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 Quando me foi proposto o contrato de leitura pensei imediatamente em trabalhar uma

obra que realmente tivesse a capacidade de me suscitar interesse, logo, à partida teria que
ser poesia. Após uma reflexão sobre Fernando Pessoa e heterónimos optei pelo poema
XXIV d’ “O Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro, devido essencialmente à
valorização que este faz ao acto de ver que é absolutamente extraordinária e pouco
convencional. Além disso, admiro o facto dos poemas carregados de uma simplicidade
autêntica conseguirem ser tão perfeitos.

Alberto Caeiro, O Mestre, a voz de que Pessoa se serviu para se


libertar da excessiva dor de pensar,foi a sua única escapatória da excessiva
lucidez que o sugava e o deixava em constante desassossego.
Na obra intitulada “O Guardador de Rebanhos” ele faz questão de se
considerar um pastor, pois partilha a mesma necessidade de passear sem
destino com o desejo de assistir a cada demonstração espectacular da
Natureza.
É de notar que a poesia de Caeiro é espontânea, natural, e além disso
a sua simplicidade verifica-se na linguagem utilizada mas nem por isso a
sua obra se torna menos bela.
Após uma leitura atenta aos poemas é possível verificar que o
heterónimo está nos antípotas de Pessoa. É um homem livre de ansiedades
e de preocupações porque adoptou uma maneira de ver o Mundo que o
mantém distante de tudo quanto seja pensamento, ideias e filosofias.
Apesar de rejeitar a filosofia, ele próprio elaborou uma, a filosofia dos
sentidos, onde nos damos conta da primazia das sensações: “Vi como um
danado”.
O poeta dedica-se ao momento do “agora”, do carpe diem, o suposto
apologista da rejeição da filosofia, acaba por estabelecer uma ligação com
o epicurismo. Segundo ele, devemos gozar plenamente o “hoje” que nos
encherá, por assim dizer, de múltiplas sensações.
O pleno gozar das sensações requer o afastamento do pensamento, e isto,
explica, de certo modo, o facto de ele ver a realidade sem tempo. Caeiro
não se interessa pelo passado e muito menos pelo futuro, por um lado
temos a recordação que surge à posteriori, está na memória, e lembrarmo-
nos do que quer que seja implica pensarmos, por outro lado, por exemplo,
se ambicionarmos algo começamos de certo modo a equacionar maneiras
para atingirmos certos objectivos que temos para nós. E também porque
nem o passado nem o futuro têm a capacidade de nos darem sensações,
logo, não fazem parte dos interesses deste poeta.
Fácil de definir, é um homem simples que se dedica única e
exclusivamente à contemplação da Natureza, nada tem a acrescentar ou a
retirar à realidade que se apresenta diante de si, e por isso, a Natureza é
perfeita.
Ele vê e ama a Natureza sem fazer qualquer análise à mesma, quer
fazer parte dela, quer rasgar tudo o que há de humano em si e tornar-se
parte integrante dela. Mas é impossível tal acontecer, quer queira ou não,
ele faz parte do mundo dos Homens.
É preciso entender que somos participantes de uma vida que não tem
que ser analisada para ser mais bela. Aliás, se encararmos a vida deste
modo, encontraremos a paz e o equilíbrio.
Ao ler atentamente o excerto, percebe-se que o poema está dividido
em dois momentos lógicos, o primeiro abrange as duas primeiras estrofes
enquanto que o segundo abrange a última estrofe.
Quanto ao primeiro momento, a ideia essencial a reter é a (re)afirmação
que Caeiro faz, dos príncipios do sensacionismo.
Em relação ao segundo momento, este fala da caminhada necessária para
atingir esses objectivos.
Estes dois momentos estão ligados por duas palavras, “Mas”,
conjunção coordenativa adversativa, e por “Isso”, pronome demonstrativo.
Quanto à análise externa do poema, é de notar, a repetição dos sons
“vv” presentes no verso 1 – “O que nós vemos das coisas são as coisas”, no
verso 5 – “O essencial é saber ver” e ainda no verso 6 – “Saber ver sem
estar a pensar”.
Devemos ainda interpretar a tautologia, que é a linguagem simples
que Caeiro utiliza em todos os seus poemas, as pergunta retóricas que se
encontram nos versos 2 e 5, a anáfora onde “Saber ver” se repete nos
versos 5, 6 e 7, a parataxe, que é a utilização excessiva do “e” e ainda as
metáforas: - “as estrelas são as freiras eternas” e “as flores as penitentes
convictas”, quando Caeiro fala da linguagem dos “poetas místicos”.

Procedendo agora com uma análise interna, em relação à primeira


estrofe do poema XXIV, é necessário relembrar que para Caeiro as
sensações têm um papel fundamental, é através delas que compreendemos
a realidade, que chegamos à Verdade. No fundo, ele alcança a Verdade das
coisas sem as pensar.
E para chegar ao entendimento da realidade é necessário procedermos à
distanciação da mesma, para não corrermos o risco de querer conhecer o
“interior” das coisas, para não haver a tendência de ir buscar o que os seus
olhos não vêem. Assim, o poeta resolve ficar na simples aparência.
Existir, para ele, já é um facto maravilhoso, e não há nada por detrás
das coisas, por isso ele diz: “O que nós vemos das coisas são as coisas”.
Ver e ouvir seria iludirmo-nos se na base destes sentidos estivesse o
pensamento, ora como não está, eles só nos provarão a existência da
realidade e nada mais.
O poeta do real objectivo, faz-nos ver a realidade tal e qual como ela
se apresenta, porque não há nada mais que a própria existência das coisas.
E isso agrada-lhe. O tão pouco, que a nós, gente comum possa parecer, é
tudo para ele. Mas a verdade é que Caeiro expressa um sorriso espontâneo
a cada instante que possa olhar para a Natureza, enquanto que nós, olhamos
uns para os outros e vemos demasiadas preocupações, ansiedades e tristeza,
porque pensamos demais.
Talvez este modo de viver seja a nossa salvação, mas também, sabemos
que Caeiro apesar de muito esforço nunca conseguiu largar para bem
distante de si a complexidade do pensamento, porque é inevitável, faz parte
do nosso ser.
Quanto à segunda estrofe, basta-lhe este estar onde há lugar apenas
para olhar com olhos de ver, reparar de facto no mundo, e o resultado disto
será o pleno gozar das inúmeras sensações que suscitarão, um puro sentir.
Tudo isto sem que haja a intervenção do pensamento (“Saber ver sem estar
a pensar”), que apenas serviria para nos cegar aos poucos, para perturbar a
nitidez da visão. Mas, como se sabe, o “Poeta das Sensações” quer
sobretudo ver claramente, reparar na pequenez e na simplicidade louca das
coisas.
A meu entender, é escusado cavar mais fundo e querer ver coisas
onde não existem, se nos basta a solidez da realidade, porquê esta vontade
danada de procurar mais para além do que as impressões visuais nos
oferecem?Para quê sujeitarmo-nos a uma série de questões se nunca vamos
encontrar uma resposta que nos satisfaça?Questionarmo-nos acerca de tudo
o que nos rodeia é deixarmo-nos na total ignorância, porque nós somos uns
eternos insatisfeitos, por isso, é preferível deixarmo-nos ficar neste viver
onde não andamos de olhos vendados, mas sim, de olhos bem abertos a
tudo o que passa e fica, reparando de facto.
Portanto, o “poeta antimetafísico” vê as coisas como se não tivessem
dentro, por mais que o “dentro” seja demasiado tentador, ele evita buscar o
que os seus sentidos não conseguem captar directamente, então, agrada-se
com o que há de “fora”, de “exterior” nas coisas como a cor, o movimento,
a forma e a textura.
Os seus sentidos, nomeadamente a visão, a audição e o tacto, estão
activos, prontos para captarem a qualquer instante tudo o que seja palpável
e natural.
Relativamente à última estrofe, Caeiro quer subir a um patamar um
tanto difícil, quer alcançar o olhar de uma criança. Passo a explicar, ele
quer manter o pasmo essencial, o mesmo que as crianças têm quando vêem
as coisas pela primeira vez. Aqui está o desejo de manter a “eterna
novidade do mundo”.
Mas isso exige um trabalho duro por parte do poeta, “uma aprendizagem de
desaprender”,a partir deste paradoxo, percebemos que ele terá que partir do
zero, despir toda a cultura, esquecer-se de ser, esquecer o modo de pensar
que a sociedade impôs, ignorar que outrora fomos moldados com uma série
de ideias fixas, supostas verdades absolutas e preconceitos que nos levam a
crer num determinado modo de ver o mundo, só assim é que deixará de
olhar para reparar e de ouvir para escutar.
Portanto, o Argonauta das Sensações verdadeiras, para manter o pasmo e
conseguir usufruir realmente das sensações e aproximar-se o mais possível
da Natureza que tanto ama, terá que se isolar, abdicar do contacto humano.
A liberdade que Caeiro necessita implica perder as tradições humanas, a
educação que recebemos, esquecer, por assim dizer, o que resta de humano
nele. Por isso a dada altura ele diz: “…E uma sequestração na liberdade
daquele convento”, o convento refere-se á solidão. Só ignorando o passado,
todas as experiências anteriores, é que nos sentimos dispostos a aprender de
novo.
De facto, conseguimos ver que há uma teoria, um plano arquitectado
para conseguir alcançar os desejos deste simples homem, mas na tentativa
de passar tudo isto para a prática ele depara-se com o grande obstáculo que
é nada mais nada menos que a “alma vestida”.
Quanto aos três últimos versos, o autor pretende revelar a sua
posição contra o acto de atribuir nomes às coisas, as coisas são o que são, e
dizer que as estrelas são as freiras eternas é deixar recair sobre as coisas a
subjectividade, algo que Caeiro recusa de todo.
Em suma, Alberto Caeiro pretende usufruir das sensações que derivam da
contemplação da Natureza sem a intervenção do pensamento.

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