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Literatura Portuguesa 1

Professora: Juliana Mariano


A lírica camoniana
Corpus
ESCOLA CAMONIANA BRASILEIRA

• Emmanuel Pereira Filho – cânone básico, mínimo ou irredutível


⤷ critério tripartido: tríplice testemunho quinhentista incontestado
⤷ 65 textos

• Leodegário A. de Azevedo Filho – revisão crítica e ampliação


⤷flexibilização do critério: duplo testemunho manuscrito quinhentista
incontroverso

⤷ corpus minimum: 133 textos


⤷ corpus additicium: 114 textos
⤷ corpus possibile: 9 textos (Álvaro de Sá)

Leodegário A. de Azevedo Filho, UERJ, 2005.


Camões e o Petrarquismo
“Na lírica de Camões, opera-se uma síntese genial,
complexa e subtil, da tradição literária do
petrarquismo (...) e das ideias, vivências, dos
sentimentos, das contradições espirituais e
ideológicas de um homem português e europeu da
segunda metade do século XVI: um português que
foi testemunha da agonia da sua Pátria e do seu
Império construído com as navegações e as
conquistas, que foi testemunha das produndas e
dramáticas mutações ocorridas na cultura europeia
pós-renascentista, que viveu decerto, na Europa, na
África e no Oriente – e embora a sua vida se
encontre recoberta de um espesso véu de silêncios e
dúvidas –, uma vida tumultuosa e atormentada.”

Cf. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Camões: Labirintos e Fascínios.


Lisboa: Cotovia, 1994. Francesco Petrarca
Petrarca Camões
Vós que escutais em rima esparsa o som Oh! quão caro me custa o entender-te,
do gemer que a meu peito deu vigor molesto Amor, que, só pera alcançar-te,
no meu primeiro juvenil error, de dor em dor me tens trazido a parte
quando era em parte outro homem, e no tom onde em ti ódio, e ira se converte!

do vário estilo em que eu discorro com Cuidei que, pera em tudo conhecer-te,
choro, esperanças vãs e esta vã dor, me não faltava experiência e arte;
onde haja quem provado tenha amor, agora vejo nalma acrecentar-te
perdão e piedade espero em dom. aquilo que era causa de perder-te.

Mas o falar de todo o povo escuto Estavas tão secreto no meu peito,
A que dei azo e repetidamente que eu mesmo, que te tinha, não sabia
De mim mesmo comigo me envergonho; que me senhoreavas desse jeito.

Descobriste-te agora; e foi por via


e desse enleio vão vergonha é o fruto,
que teu descobrimento, e meu defeito,
e arrepender-me e ver tão claramente
um me envergonha, outro me injuria.
que quanto agrada ao mundo é breve sonho.

Conferir o artigo “O amor em dois sonetos: Petrarca e Camões”, de Marina Machado Rodrigues.
Renascimento x Maneirismo
“(...) a arte clássica do Renascimento era sobretudo regida pelas idéias de
segurança, de ordem, de clareza, de harmonia, de simetria, em suma, de perfeita
conciliação entre o homem e a natureza, entre o real e o ideal, com certo repúdio às
minúcias realistas ou naturalistas, já que se empenhava em conquistar a maior
clareza e a maior sobriedade possíveis para a expressão artística. Ao contrário
disso, o Maneirismo, com a instauração da dúvida no mundo de certezas
renascentistas, iria caracterizar-se por manifesta e sutil reação anticlassicizante, ou
seja, reação a qualquer certeza ou segurança, ou a qualquer idéia de normatividade
e de equilíbrio simétrico, bem assim de rigor e de sobriedade. A partir daí, nasceu o
apego ou gosto pelas construções que evidenciam certos contrastes, ou
hesitações e dúvidas diante da firmeza e da convicção do homem
renascentista. Na verdade, o Maneirismo, como já foi dito por Eduardo Portella, ao
mesmo tempo que preservava, ia distorcendo aos poucos as linhas de força
do Renascimento.”

Cf. o artigo “Renascimento, Maneirismo e Barroco”, de Leodegário A. de Azevedo Filho. Disponível em:
http://www.filologia.org.br/abf/vol4/num1-06.htm
Ressurreição,
(Pontormo)
O enterro do Conde de Orgaz
1586
(El Greco)
Laocoonte
c.1610-14
(El Greco)
Soneto
Género lírico de origem italiana: soneto,
melodia do franco provençal sonet, diminutivo
de suono (som, melodia) vindo do latim sonus.

É composto por 14 versos com um esquema


rimático que forma duas quadras e dois
tercetos. No soneto dito petrarquiano ou
regular, esse esquema é sobretudo abba abba
cdc (cde) dcd (cde). O verso usado é o
decassílabo, embora actualmente sejam
aceites outras formas. O soneto foi cultivado
em todas as épocas, mesmo quando
o Romantismo iniciou o culto do verso
branco. Como escreveu António Coimbra
Martins no Dicionário de Literatura, trata-se
de “um caso único de sobrevivência de um
molde literário à evolução e às revoluções do
gosto”.
https://edtl.fcsh.unl.pt/
Capa da primeira edição das Rhythmas, 1595
g

g
Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo deste corpo descontente,
repousa tu nos ceos eternamente
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,


memória deste mundo se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te


algũa cousa a dor que me ficou
da mágoa sem remédio de perder-te,

pede a Deos, que teus anos encurtou,


que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo dos meus olhos te levou. g
g
g

g
Busque Amor novas artes, novo engenho
pera matar-me, e novas esquivanças,
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirarão o que eu não tenho.

Olhai de que asperezas me mantenho!


Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes, nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgosto


onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê. Pera: forma arcaia de para
(preposição)
Esquivanças: crueldades,
indiferenças
Que dias há que n’alma me tem posto Asperezas: rudezas, rispidez
Lenho: embarcação
um não sei quê, que nasce não sei donde,
vem não sei como, e dói não sei por quê. g
g
g

g
Eu cantarei do Amor tão docemente,
per uns termos em si tão concertados,
que dous mil acidentes namorados
faça sentir ao peito que não sente.

Farei o Amor a todos evidente,


pintando mil segredos delicados,
brandas iras, sospiros descuidados,
temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto


de vossa vista branda e rigurosa,
contentar-me-ei dizendo a menor parte. Per: por
Concertados: harmoniosos
Sospiros: suspiros
Rigurosa: rigorosa, cruel
Porém, pera cantar de vosso gesto
a composição alta e milagrosa,
aqui falta saber, engenho e arte. g
g
g

g
Foi já num tempo doce cousa amar,
em quanto me enganava a esperança;
o coração com esta confiança
todo se desfazia em desejar.

Ó vão, caduco e lábil esperar,


como te desengana ũa mudança!
Quanto maior é a bem-aventurança,
tanto menos se crê que há-de durar!

Quem se viu contente e prosperado,


vendo-se em breve tempo em pena tanta, Em quanto: enquanto
rezão tem de viver bem magoado. Lábil: passageiro, instável.
Rezão: razão
Exprimentado: experimentado,
experiente
Porém, quem é no mundo exprimentado,
não no magoa a pena, nem no espanta,
que mal se estranhará o costumado.
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g
g

g
Mostrando o tempo está variedades,
por onde o que se espera não se alcança;
todo mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades


diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança
e do bem (se algum houve) as saudades.
Mor: forma sincopada de maior
O tempo cobre o chão de verde manto, Soía: costumava

que já cuberto foi de neve fria; Estes versos, muito


provavelmente de Camões, não
e, em mim, converte em choro o doce canto. pertencem ao corpus minimum
estabelecido por Leodegário A.
de Azevedo Filho; integram o
corpus additium do poeta.
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía
g
g
g

g
Oh! como se me alonga de ano em ano
a peregrinação cansada minha!
E como se encurta e ao fim caminha
este meu breve e vão discurso humano!

Vai-se gastando a idade e crece o dano,


perde-se-me um remédio que inda tinha;
se por experiência se adivinha,
qualquer esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;


no meio do caminho me falece,
mil vezes caio e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,


se os olhos ergo a ver se inda aparece,
da vista se me perde, e da esperança.
g
g
g

g
Pede o desejo, Dama, que vos veja;
não entende o que pede, está enganado.
É este amor tão alto e tão delgado
que, quem o tem, não sabe o que deseja.

Não há i cousa que natural seja,


Que não queira perpétuo seu estado;
Não quer, logo, o desejo o desejado,
Porque não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro efeito em mi se dana, Alto e delgado: puro


I: aí
Que, como a grave pedra tem por arte Pola: pela
O centro desejar da Natureza,

Assi o pensamento – pola parte


Que vai tomar de mi, terrestre e humana –
Vai pedir tão herética baxeza.
g
g
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Que poderei do mundo já querer?
Que, naquilo em que pus tamanho amor,
não vi senão desgosto, e desamor,
e morte, em fim; que mais não pode ver?

Pois vida me não farto de viver,


pois já sei que não mata grande dor,
se cousa há i que mágoa dê maior,
eu a verei; por bem, que pode ser?

A morte a meu pesar me assegurou Em fim: enfim


I: aí
de quanto mal me vinha; já perdi Pera: forma arcaia de
o que perder o medo me ensinou. para (preposição)
Naci: nasci

Na vida desamor somente vi;


na morte, a grande dor que me ficou:
parece que pera isto só naci.
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g
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por soldada pretendia.

Os dias na esperança de um só dia


passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que por enganos Soldada: pagamento


Dezia: dizia
lhe fora assi negada a sua pastora, Pera: forma arcaia de
como se a não tivera merecida; para (preposição)

tornando já a servir outros sete anos,


dezia: - Mais servira, se não fora
pera tão longo amor tão curta a vida.
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Tanto de meu estado me acho incerto,
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto desconcerto:


d’alma alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao céo voando;


em ũ’hora acho mil anos, e de jeito
que em mil anos não posso achar ũ’hora.

Se me pregunta alguém porque assi ando,


respondo que não sei; porém sospeito
que é só porque vos vi, minha Senhora.
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Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mi tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,


que mais deseja o corpo de alcançar?
em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semidea


que, como um acidente em seu sojeito, Liada: ligada
assi como a alma minha se conforma. Semideia: semideusa; ninfa
Sojeito: sujeito
Simpres: simples

Está no pensamento como Idea:


o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simpres busca a forma. g
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Diálogos
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Jorge de Sena
Camões dirige-se aos seus contemporâneos
tido por meu, contado como meu,
Podereis roubar-me tudo:
até mesmo aquele pouco e miserável
as idéias, as palavras, as imagens,
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
e também as metáforas, os temas, os motivos,
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
os símbolos, e a primazia
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
nas dores sofridas de uma língua nova,
para passar por meu. E para outros ladrões,
no entendimento de outros, na coragem
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
Assis, 11/6/1961
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E, mesmo será meu,
g

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Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
Herberto Helder que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
Tríptico (excerto) a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
I e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
Transforma-se o amador na coisa amada com seu do amador.
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias dá-lhe o grito dele.
e das ardentes pedras que tem dentro de si. E o amador e a coisa amada são um único grito
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado anterior de amor.
silêncio da sua última vida. E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
O amador transforma-se de instante para instante, de amador. E ela é batida, e bate-lhe
e sente-se o espírito imortal do amor com o seu espírito de amada.
criando a carne em extremas atmosferas, acima Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
de todas as coisas mortas. do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro. o imprevisto silêncio do mundo
E a coisa amada é uma baía estanque. e do amor.
É o espaço de um castiçal, In: A colher na boca, 1961
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.
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Adília Lopes
Com o fogo não se brinca
porque o fogo queima
com o fogo que arde sem se ver
ainda se deve brincar menos
do que com o fogo com fumo
porque o fogo que arde sem se ver
é um fogo que queima
muito
e como queima muito
custa mais
a apagar
do que o fogo com fumo

In: Um jogo bastante perigoso, 1985.


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Legião Urbana
Monte Castelo
Canção do álbum As quatro estações, 1989. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=53W3u-74Nz0
Bibliografia recomendada
AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Sonetos de Camões. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 2004.

______. In: Cadernos da Academia Brasileira de Filologia, volume IV, número 1.


Rio de Janeiro: Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos, 2004.

BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. 2.ª ed., rev. e ampl., Rio de


Janeiro: Nova Fronteira: Cátedra Padre António Vieira de Estudos
Portugueses, Instituto Camões, 2000.

HAUSER, Arnold . Maneirismo: a crise da Renascença e o surgimento da arte


moderna. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1974.

LOURENÇO, Eduardo. “O romantismo e Camões”. Tradução de Maria Cristina


Batalha. In: Idioma, 21. Rio de Janeiro: Centro Filológico Clóvis Monteiro –
UERJ, 2001, p. 75-81. Disponível em:
http://www.institutodeletras.uerj.br/revidioma/21/idioma21_a10.pdf
MACHADO, Lino. “O maneirismo em Camões: uma linguagem em crise”.
REEL – Revista Eletrônica de Estudos Literários, Vitória, a. 4, n. 4, 2008.

MARNOTO, Rita. Sete ensaios camonianos. Coimbra: Centro


Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2007. Col. Estudos Camonianos,
v.3.

RODRIGUES, Marina Machado. Camões e os poetas do século XVI. Rio de


Janeiro: EDUERJ, 2006. Coleção Comenius.

______. “O amor em dois sonetos: Petrarca e Camões”. O MARRARE - Revista da


Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ. Rio de Janeiro, n. 11,
2009. Disponível em:
http://www.omarrare.uerj.br/numero11/marina.html

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Camões: Labirintos e Fascínios. Lisboa:


Cotovia, 1994.

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