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O decassílabo camoniano como modelo métrico para uma tradução da Eneida

Prof. Dr. Márcio THAMOS


FCLAr – UNESP
Grupo LINCEU – Visões da Antiguidade Clássica / UNESP
marciothamos@uol.com.br

A tradução é idealmente a expressão de uma leitura. E, uma vez que certa equivalência

estilística é o mínimo que se pode exigir de uma tradução, a consciência de fatos expressivos

observados no texto original contribui diretamente para a possibilidade de uma realização

vernácula em que aquela desejável equivalência se verifique num grau cada vez mais próximo

do ideal.

Conforme adverte João Batista Toledo Prado, nas traduções de poemas latinos para o

vernáculo, o leitor deverá estar atento a que

o texto em língua materna dê conta de produzir as equivalências rítmicas e


os isomorfismos de conteúdo e expressão, presentes no poema latino, sem o
que não existe poema em latim, sem o que não existirá tradução de poema
latino para o português. (1997, p. 250)

Ainda que reconheça de bom grado a justeza do preceito, o tradutor trabalha nos

limites de seu talento próprio: entre o vislumbre de possibilidades e a realização de uma

escolha, nem sempre o espírito se contenta. A resignação consciente é uma estratégia que se

aprende a fim de continuar.

Nas reflexões acerca do Homo Ludens, Johan Huizinga faz notar que

Toda civilização só muito lentamente vai abandonando a forma


poética como principal método de expressão das coisas importantes para a
vida da comunidade social. A poesia sempre antecede a prosa; para a
expressão de coisas solenes ou sagradas, a poesia é o único veículo
adequado. (1996, p. 142).

Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008


Essa observação pode ser confirmada por vários exemplos da história literária. No que

diz respeito às literaturas latina e portuguesa, a Eneida e Os Lusíadas representam

respectivamente modelos acabados do emprego da poesia na expressão dos valores mais

sublimes de uma sociedade. Ressalte-se que Virgílio adotou o hexâmetro datílico como

padrão métrico de sua obra e que Camões fez do decassílabo o molde de composição da sua.

Nos dois casos, a escolha do metro parece corroborar estilisticamente a grandeza do tema

cantado.

O verso latino é formado por uma seqüência de sílabas longas, indicadas, nos

exercícios de escansão, pelo macro ( ¯ ) e breves, indicadas pela braquia ( ˘ ). Uma longa

equivale metricamente a duas breves. Agrupadas em unidades rítmicas, as sílabas compõem

os pés métricos. O hexâmetro datílico é um verso composto por seis pés de quatro tempos

cada (uma sílaba breve correspondendo a um tempo e uma longa, a dois). Os quatro primeiros

pés são datílicos ou espondaicos, isto é, unidades compostas pela seqüência de uma sílaba

longa e duas breves ou de duas sílabas longas. O quinto pé, que caracteriza o verso, é

necessariamente um dátilo ( ¯ ˘ ˘ ), e o último, um espondeu ( ¯ ¯ ) ou, uma espécie de pé

quebrado, um troqueu ( ¯ ˘ )1. Completa esse esquema métrico a cesura, indicada pela barra

dupla (║), uma espécie de corte semântico que estabelece o equilíbrio rítmico-sintático do

verso, fixada com freqüência após a primeira sílaba do terceiro ou do quarto pé (embora

possam ocorrer cesuras em outros pontos do hexâmetro). A título de exemplo, veja-se a

escansão do verso inicial da Eneida:

Ārmă uĭ|rūmquĕ că|nō,║Trō|iāe quī| prīmŭs ăb| ōrīs

[Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris]

1
A última sílaba do verso teria, na verdade, sua duração neutralizada pela pausa final, daí a possibilidade de ser
longa, no caso do espondeu, ou breve, no caso do troqueu, sem que isso represente variação formal do modelo
rítmico de vinte e quatro tempos.

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O decassílabo português é um verso de dez sílabas poéticas que recebe um acento

prosódico regular na sexta. A este costuma-se chamar heróico. Quando ocasionalmente o

acento não ocorre na sexta sílaba, exigem-se acentos na quarta e na oitava. Essa variação

tradicional do decassílabo recebe quase sempre a denominação de sáfico. Nota-se assim a

preocupação métrica de garantir o equilíbrio rítmico ideal do verso: o acento regular do

heróico se desdobra, no caso do sáfico, numa distribuição acentual equivalente em torno da

sexta sílaba, ancorando-se na referência eqüidistante das sílabas pares mais próximas. Como

exemplo, observem-se os seguintes versos de uma das estrofes finais d’Os Lusíadas (X, 153),

em que um decassílabo sáfico se insinua entre a marcante regularidade dos heróicos:

A disciplina militar prestante


Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando,
Senão vendo, tratando e pelejando.

É impossível não pensar n’Os Lusíadas, obra que funda magnificamente a tradição

épica do português, como referência modelar para uma tradução da Eneida. Por isso, numa

tradução do Canto I da Eneida2, os hexâmetros virgilianos foram transpostos em decassílabos

mais ou menos à maneira de Camões, vale dizer, quase sempre em versos com acento

característico na sexta sílaba (heróico), e mais esporadicamente em versos com acentos

característicos na quarta e na oitava (sáfico). Procurou-se ainda atentar para a particularidade

de não serem normalmente acentuadas a sétima e a nona sílabas em cada verso. Esse recurso

parece garantir ao decassílabo camoniano uma cadência final própria, certa regularidade

rítmica que lembra a invariabilidade do hexâmetro a partir do quinto pé.

A melhor desculpa para não intentar a oitava rima é alegar que não têm rima nem

formam estrofes os versos de Virgílio (ainda que boa, não deixa de ser uma desculpa). Um

2
Cf. Márcio Thamos (2007).

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argumento menos contestável – e, realmente, de autoridade! – é lembrar que ninguém menos

do que Bocage escolheu o “decassílabo branco” para traduzir tanto os hexâmetros da V

Égloga de Virgílio quanto os das Metamorfoses de Ovídio3.

Nas traduções de Bocage, bem como na experiência de tradução do Canto I da Eneida,

a disparidade numérica de versos não deve induzir ninguém a uma conclusão precipitada

quanto ao poder de síntese expressiva das línguas (são sempre mais decassílabos do que

hexâmetros): deve-se antes notar que, se o texto em português é mais “comprido”, o texto em

latim também é mais “largo”.

Quanto às notas que acompanham a tradução, sendo inevitavelmente numerosas,

procurou-se garantir que fossem tanto quanto possível sucintas, suprindo não mais do que a

necessidade básica de referência exigida pelo contexto. Elas são os respingos que indicam o

necessário mergulho do tradutor nas águas caudalosas da cultura antiga, mas não devem

espantar da beira o leitor que se assentou a fim de fruir tranqüilamente o frescor da poesia.

Referências bibliográficas

BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Obras de Bocage. Porto: Lello & Irmão, 1968.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. In: _____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
2003, p. 8-264.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4a ed. Trad. João Paulo
Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1996.

OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. M. M. B. du Bocage (Introd. João Angelo Oliva Neto). São
Paulo: Hedra, 2007.

PRADO, João Batista Toledo. Canto e encanto, o charme da poesia latina: contribuição para
uma poética da expressividade em língua latina. 272 f. Tese (Doutorado em Letras).
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1997.

3
Cf. Bocage (1968) e Ovídio (2007).

Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008 333


THAMOS, Márcio. As armas e o varão: leitura e tradução do canto I da Eneida. 318 f. Tese
(Doutorado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista,
Araraquara, 2007.

Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008 334

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