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ISABEL FRANCHI CAPPELLETTI (ORG.} DISCUSSAO DE CAMINHOS a Bd FUNDAMENTOS PARA UMA AVALIACAO EDUCATIVA Aliplo Casali *Filsofo, Bdvcador, Professor Titular e Pesquisador do Program de Pés-Graduaso 10 Alipio Casati 1.0 CONCEITO E OS PRINCiPIOS DE UMA AVALIACAO EDUCATIVA Vale recordar, inicialmente, os significados da palavra waliagdo”. Avaliar & “estabelecer a valia, 0 valor (..), deter- minar a quantidade e a qualidade (...), apreciar 0 mérito, 0 valor de; estimar” (HOUAISS, 2001). A raiz val- provém do verbo valere (lat.) ¢ comporta uma riqueza extraordinaria de gnificados: “ser forte, ter saiide, ser eficaz, ter esta ou aquela virtude, ter forca, ter crédito, ser capaz de, ter poder, ter va- Jor”. Nessa familia semantica encontram-se, além de avaliar: “aval, avalista, convalescente, desvalido, desvalorizar, invali- do, prevalecer, valente, valia, validar, vale-tudo, valor”, ¢ muitos outros termos (Ibid.). Os significados no campo da sati- de © no campo econdmico séo os que prevalecem. O campo educacional epistemoldgico, pelo visto, nao contribuiu muito para enriquecimento semantico do termo, Ser4 isso sinal do pouco valor de nossas priticas avaliativas? Consideraremos “avaliar”, de modo geral, como: saber si- tuar, cotidianamente, mama certa ordem hierdrquica, 0 valor de algo enquanto meio (mediago) para a realizagio da vida dos) sujeito(s) em questo, no contexto dos valores culturais e, no limite, dos valores universais HA muitos elementos em jogo nessa caracterizagio. De par- tida, e preliminarmente, a idéia de que avaliar é reconhecer ou atribuir valor (0 que jé supde uma certa ordem hierdrquica). De- vemos nos perguntar sobre 0 que ¢ isso, 0 valor. O que é que vale, por que vale, o que significa ter valor. Assumiremos diante dessa questo uma posi¢ao radicalmente epistemoldgica e radi- calmente ética, ja que estamos falando de valor em educagdo. O valor ético por exceléncia é a vida. O que vale, em definitivo, é a vida. A vida é a medida do valor de toda e qual- quer coisa. $6 tem valor o que for um meio para realizar a vida, e realizar a vida significa: crié-la, reproduzi-la (manté-Ia, cui- Fandarnts par une Avaliao Beata u dar dela), desenvolvé-la (DUSSEL, 1998). H tanto mais valor, quanto mais essa mediagdo for indispensavel para criar, manter e desenvolver a vida. Toda a ética (individual, econdmica, soci- I, politica, de convivéncia cultural etc.) justifica-se, em tiltima stncia, em fungo do valor da vida, No nosso caso, como a fungo especifica da escola é promover 0 cuidado e o desenvol- vimento da vida dos alunos (e em conseqiiéneia da sociedade), fornecendo-lhes acesso ao patriménio cultural produzido pela humanidade e permitindo-Ihes assim terem os meios para da- rem continuidade (cuidar, manter e inovar) a esse processo co- Ietivo de desenvolvimento, resulta claro que a avaliagao deve ser pensada como uma mediagdo no processo de desenvolvi- mento da vida de cada um e de todos. Assim é igualmente quanto ao valor epistemol6gico. Em liltima instancia, o que vale na epistemologia também é 0 vi- tal: $6 existe a epistemologia, esse sistema critico construido coletivamente para validar ou invalidar conhecimentos, por- que ela é um dispositivo util, que serve, ainda que indireta- mente, 4 vida. Nao por acaso 0 conceito-chave da epistemologia chama-se validagdo! Uma validagio é um re- sultado positivo de uma avaliagao epistemolégica. Nesse sen- tido, avaliagdo e critica sao sinonimos. Dessas consideragdes iniciais resultam quatro observagdes Em primeiro lugar, fica claro e assumido que nao existem valores emi. Os valores nfo so esséncias abstratas, imutaveis. Os valo- res sio histérica e culturalmente construidos. So mutéveis,alte- ram-se. Assim é também a avaliagdo: € histérica e cultural. Os valores histéricos e culturais movem-se sobre um fundo de refe- réncia critica sempre supostamente universal (isto é, cada cultura imagina estar realizando valores universais quando expressa seus valores particulares: é o modo pelo qual cada cultura busca vali- dar-se). © mesmo vale para cada instituigao educativa e seu sis- tema de avaliagdo: sempre supde-se estar realizando um projeto de validade universal, Falamos corriqueiramente de “os valores”, 12 Apo Casali mas, na verdade, s6 existe “o valor disso” ou “o valor daquil porque o valor sé existe como uma referéncia mediadora de uma ago concreta (supostamente vital). A conseqtiéncia disso para nossa avaliac’o educativa é imediata e clara: a avaliagio nio é um fim de proceso, mas o seu meio: um meio para algum pro- duto final. Ao mesmo tempo, nessa afirmagio jé esta contido 0 conceito de avaliago como intrinsecamente continua. Em segundo lugar, e em conseqiiéncia, impée-se consi- derar 0 valor da propria avaliagao, por mais que isso soe tautoldgico. A conseqiiéncia parece clara: a ordem hierarqui- ca dos valores no poder ser outra que aquela que distingue gradagdes nas possibilidades de realizar mais e melhor e mais duradouramente a vida de um mimero maior e mais diverso de pessoas maximamente necessitadas. As mediagSes mais aptas a realizar mais plenamente essas prioridades sero as avalié- veis como sendo as de mais e maior valor. Em terceiro lugar, cabe advertir que a avaliagdo educativa no tem por objeto apenas conteiidos ou conhecimentos, mas também atitudes e condutas coneretas. A vida humana, horizonte liltimo de toda avaliagdo, é social, e a educagao cumpre também uma fungdo de socializagdo permanente, o que requer das prati- cas avaliativas um foco permanente também sobre as qualidades de comunicagdo, cooperaco e responsabilidade. Em quarto lugar, deve-se considerar que ha trés distin- tos ambitos de aleance dos valores, das validagdes, das avali- ages. Hé valores para um sujeito, ha valores para uma cultu- ra, ha valores para a humanidade. O singular, 0 parcial, o universal. A avaliagao é uma medida e uma referéncia de valor para um, ou dois, ou os trés desses ambitos. Objetivamente falando, tem mais valor o que alcanga a cultura do que apenas um ow alguns sujeitos. Tem mais valor o que aleanga algumas culturas do que apenas uma; e tem valor supremo o que alcan- gaa humanidade toda, inclusive a futura, inclusive todo o sis- tema-vida do qual ela depende e do qual faz parte. Esses trés Fundamentos pars uma Avaligdo Educatva 13 Ambitos (individual, cultural, universal) esto presentes con- cretamente no cotidiano da escola: nas origens, nos contei- dos, nos métodos, nos meios, nos produtos, nos destinos dos processos de aprendizagem. Por esse critério, a escola deve ser um lugar de experiéncia fundamental da subjetividade, da culturalidade, da universalidade. A avaliago é 0 que avaliza (reconhece e atribui valor a) essas experiéncias, distinguindo o alcance de cada um desses trés ambitos e credenciando-os respectivamente. A institucionalidade da avaliagio & 0 que atribui a ela poder para isso. 2. AVALIACAO COMO UM DISPOSITIVO DE PODER E DE AUTORIZACAO. Avaliar & definir 0 qué, 0 quanto, e 0 como: vale ou néo vale, pode ou nao pode, deve ou nao deve. A avaliagao € um credenciamento, um uso de poder e, em conseqiiéncia, uma dis- tribuigdo de poderes, uma validagiio, uma autorizagaio, ou os seus “contririos. O sujeito ou grupo ou instituigdo avaliado(a) deve poder saber o quanto foi validado, como foi validado e porque (critérios) foi validado, ou invalidado, Deve poder saber do va- lor que foi atribuido a seu desempenho e a seus resultados Estamos falando de poder como verbo, como possibili- dade de ago: poder fazer, poder tornar-se, poder alcangar. Alias, todo poder deve ser, eticamente falando, um verbo (ser ara uma aco) e nao substantivo. O poder (das estruturas, dos cargos) era originalmente um verbo que posteriormente substantivou-se, torou-se fetiche. Por alguma raziio histérica © verbo fazer nio se substantivou com o mesmo vigor que 0 poder. Por que seri? O poder de atribuir valor a desempenhos e a resultados € a medida do poder do professor em definir o futuro poder do aluno. A literatura educacional é farta em histérias dos usos e “ lipo Casali abusos desse poder do professor na avaliagdo. A medida desse valor, supostamente deveria decorrer exclusivamente de uma avaliagdo objetiva, comparativa entre recursos, métodos, mei- 0s ¢ contetidos. Mas nao existe a objetividade. A chamada obje- tividade ¢ apenas uma pretensio, é aproximativa, Em todo pro- cesso avaliativo o sujeito avaliador esta implicado, e com inevi- tavel poder de indugao. Desse ponto de vista, as chamadas “ques- tes objetivas” (questiondrio com respostas fechadas, de muilti- pla escolha) podem cumprir um importante papel no jogo de dissimulagao do poder do avaliador. O exercicio do poder nao € para ser dissimulado em ages, no raro cinicas, de didilogo e compartilhamento de decisdes. O didlogo deve ser um exerci- cio efetivo ¢ explicito, mas no limite quem tem a responsabili- dade e, portanto, o poder decisério no processo educativo é 0 educador, e ele deve usé-lo (realiza-lo) educativamente, o que implica revelar todos os seus fundamentos e recursos aqueles que a ele estardo em alguma medida submetidos. Por isso também deve-se dizer que os problemas (e, em conseqtiéncia, as solugdes) comerain sempre do lado do profes- sor. Deve-se afirmar isso claramente, porque a responsabilidade primeira em armar ou desarmar conflitos na escola cabe ao pro- fessor. O professor precede 0 aluno na histéria e na cultura, ele responde (é responsavel) pela histéria e pela cultura diante do aluno. Psicologicamente falando, nem sempre é facil para um professor chegar em uma escola ¢ ter que enfrentar um clima hostil, uma tens%o, principalmente considerando-se que foram “outros” que produziram 0 problema, Mas ser educador implica em nao se esquivar disso. De seu lado, os educandos também dispdem de poder ¢ exercem seu poder. Pois eles também avaliam. E tampouco fa- zem isso com objetividade. Quase sempre sio criangas, adoles- centes, jovens: 0 mundo ao redor, dos adultos, se Ihes aparece nao raro como uma ordenagao cinica de injusticas, privilégios, caréncias, favoritismos. Eles dispdem antes de tudo do poder da Fundamentos para una Avaliagdo Educative 5 resistencia, da recusa, ou da indiferenga, quando nio da indisciplina explicita, da rebeldia. Os alunos, agindo corganizadamente, podem desmontar todo 0 projeto pedagdgico de uma escola. Os alunos deveriam ser atraidos pela cultura da escola, mais do que empurrados por ela. Deveriam ser fascina- dos pelo mundo do conhecimento ¢ da convivéncia cooperativa na diversidade. Para isso eles precisam realizar uma experiéncia “fascinante com o conhecimento e a convivéncia cooperativa, A avaliagdio deve ser um meio de estimular essa experiéncia, Quando se instala um clima de competitividade de pode- res na escola, tem-se o avesso do ambiente de aprendizagem educativa. A primeira reagao dos professores costuma ser a de usar seus poderes especificos de avaliagao para controlarem a situagao. A avaliagdo como mecanismo de controle é um tema antigo, ¢ isso no acontece por acaso. Os desejos de poder so antigos ¢ a escola ¢ um ambiente relativamente acessivel e atra- ente (exceto pelos salirios) para se jogar 0 jogo do poder, as- sim como as policias atraem pessoas particularmente desejosas de realizar a violéncia (pois nao hd melhor modo de realizé-la ~ do que sob a protegao da legalidade institucional). Estamos no centro do tema da autoridade, da autoriza- go. A escola é uma instituigo credenciada socialmente (pu- blicamente, pelo Estado — suposto realizador do bem-comum) para distribuir as credenciais dos conhecimentos validos so- cialmente. Sabemos que o valor simbélico de um Diploma no mercado ha de sujeitar-se a uma avaliagdo futura do pré- prio mercado, mas isso nao tira, ao contrario, aumenta 0 peso da responsabilidade da escola em conferir valor real ao va- lor simbélico desse Diploma. A escola e o professor (além dos demais educadores, técnicos etc.) sio publicamente e oficialmente autorizados para o credenciamento social. Para isso eles sao autorizados a avaliar. Mas no sistema escolar 0 poder real dessa autorizagao formal & sempre relativo. In- clusive porque os professores estio sendo continua e per- 16 Alipio Casal manentemente avaliados pelos alunos em contrapartida, 0 que também ¢ absolutamente legitimo e até necessario. Se nao houvesse esse contra-controle dos alunos, os desmandos na avaliag&o seriam muito mais perversos. A autorizagao (au- toridade) formal dos professores deve submeter-se & autori- zagao real pelos alunos. No plano propriamente educativo é assim que se passa. Ocorre que ndo ha normas para isso. Esse jogo de reconhecimento reciproco de autoridades se passa num plano invisivel de sutilezas. O respeito positivo intimo que se cultiva por um professor € construido cotidia- namente a partir do modo como esse professor exerce a sua autoridade formal e real. Igualmente 0 desprezo. Este ¢ 0 ponto em que muitos conflitos de avaliagio cos- tumam acontecer. O professor portador de uma autorizagdo formal, se nfo logra construir uma autorizagao real dentro de um certo tempo, tenderd inevitavelmente a escudar-se nos me- canismos formais de exercicio da autoridade, e a avaliagio burocritica ¢ controladora logo Ihe apareceré como 0 mais, eficiente deles. Falamos de sutilezas e invisibilidades porque autorizar-se é um proceso complexo que ultrapassa em mui- to as formalidades dos credenciamentos sociais. Autorizar-se é parte do processo de subjetivagao que consiste em altima instncia em construgao de uma certa autonomia (nao existe autonomia pura). Autorizar-se é fazer-se a si mesmo (autés [gr.]=si mesmo). E ser autor de si. A construgao da subjeti- vidade do professor deve coincidir com a construgio da sua professoralidade e vice-versa, 0 que dé no mesmo. Se o pro- fessor em alguma medida nao “identifica-se” (também nao existe “identidade” pura: todos alteram-se permanentemente) com o “ser professor”, a sua ago ndo lograré ser propria- mente educativa. A escola é uma instituigdo complexa tam- ‘bém por causa disso: o essencial da ago educativa transcorre ‘numa zona fronteiriga nebulosa entre o visivel e o invisivel, © formal ¢ o material, o real e 0 simbélico, o piblico eo priva- do. E nessa zona cinzenta e nebulosa que desenvolve-se 0 cur- riculo’ real de uma instituigao educativa. O mais importante do projeto pedagégico nao depende de credenciamentos for- mais. Nao costumamos dizer que o clima na escola é decisive para um processo de aprendizagem bem sucedido? Mas como se constréi esse clima? A avaliagao € uma pratica na qual muitos processos complexos deséguam e da qual muitos outros decorrem. Ela €o ponto crucial do curriculo. Por isso, ela pode ser tam- bém (portanto, deverd ser) 0 ponto de partida de desarma- mento de tensdes € de reconstragdo de novas relagdes pro- priamente educativas, as quais ndo se constréem fora de um ambiente de confiabilidade, de lealdade reciproca, de con- vergéncia de interesse de todos sobre os processos educativos. Uma pritica de avaliagdo educativa de um pro- fessor tem o poder de induzir outras praticas na mesma dire- 40, pois cria contraste, diferenca, desacomoda, desencadeia mudangas no conjunto das priticas do curriculo escolar. ponto de equilibrio da avaliago coincide com o da re- ~alizagao da justiga. Entretanto, a avaliagao justa s6 tem o poder de reeqliilibrar uma relagdio pedagégica quando se tem a boa disposi¢o de todos os lados. Trata-se da responsabilidade institucional pelo sistema avaliativo. Uma escola sozinha nao poder resolver tudo: ela dependera sempre do clima na comu- nidade em que ela se encontra, do clima ou situagao da socieda- de (as condigdes econdmicas, sociais ete.). A escola, ou a uni versidade, nao é uma ilha, Mas ela tem, sim, condig@es inter- ic0s e ndo-cientificos, e © culturais, endégenos ¢ ‘exégenos, que constituer as priticas escolares cotidianas (CASALI, 2001) 18 Alipio Casal nas, sejam quais forem as condig6es externas, suficientes para realizar algum projeto pedagégico. Por esse projeto ela deve responder, em qualquer condigao. Devemos considerar, pois, 0 conjunto de caracteristicas que deve ter um sistema de avalia- ¢4o, como parte do projeto pedagégico institucional para que ela se cumpra com justiga, e com isso tenha sua autoridade re- conhecida, ¢ assim realize a formago educativa. 3. A PRATICA DA AVALIACAO EDUCATIVA Afirmamos que avaliar supde a possibilidade de se alte- rar, Alteragdes so resultado de um jogo complexo entre: a) as condigdes relativamente estaveis em que se encontra um indivi duo ou um grupo ou uma instituig&o; b) a identificagao de cer- tas insatisfacdes (no limite: problemas, impedimentos bisicos a satisfagdes basicas da vida); c) a identificagao de possibilida- des (potencialidades) suficientes para a solugao das insatisfa- ges ou problemas; d) a mobilizacdo de esforgos € recursos suficientes para a solugao; ¢) alguns resultados. Esse processo € feito predominantemente a partir de fora da situagao. A alte- ra@o implicada na avaliagaio ¢ também essa: a interferéncia de um outro (alter [lat.] = outro). O resultado pretendido é para- doxal: 0 outro interfere (hetero-nomia [gr.] = 0 outro é a nor- ‘ma) para que o sujeito seja mais capaz de reconhecer-se por si mesmo e de dirigir-se a si mesmo, ou seja, auto-determinar-se (auto-nomia). A avaliagao heteronémica é um paradoxo tam- bém porque s6 pode efetivar-se na medida em que 0 sujeito avaliado reconhecer a si mesmo minimamente na representa- 40 feita pelo outro. Toda hetero-avaliagao, pois, pressupoe uma certa capacidade de auto-conhecimento, auto-avaliagio, auto- formagio, ao mesmo tempo que os visa como produto final. © formado e, portanto, 0 avaliador, é idealmente um sujeito que desenvolveu-se ¢ conheceu-se o suficiente para inverter os pa- Fundamentos para uma Avaliaglo Eaveatva 19 péis e ser capaz de orientar (avaliar) outros. © ponto mais ctitico do processo é a identificagio de novas possibilidades de ser, capazes de mobilizar o sujeito a alterar-se (aquilo que ‘Vygotsky chamou de zona de desenvolvimento proximal) e al- terar a situago-problema. A vista dessas consideragées, podemos elencar algu- mas conclusoes. A avaliagdo educativa deve ser abrangente. No horizonte social, deve considerar os problemas e as possibilidades de so- lugdo e de desenvolvimento da sociedade ao redor. No hori- zonte individual, deve considerar todas as qualidades, compe- téncias e capacidades que cada um, na sua irredutivel singulari- dade, pode realizar: sua inteligéncia légica, matematica, lingiiis- tica, espacial, musical, pictérica, plastica, corporal, intra-pes- soal, social, politica, espiritual. Uma expressio pratica dessa perspectiva tem sido a abertura da avaliagao de aprendizagem escolar a desempenhos individuais e grupais. Em alguns casos observa-se que tem havido exagero para 0 outro extremo: pro- fessores que praticam apenas avaliago grupal, perdendo com isso a preciosa oportunidade de acompanhamento das individu- alidades. Muitos problemas e muitos talentos permanecem in- visiveis, com tal procedimento. No horizonte intermedirio, que liga o individual ao social, deve considerar as necessérias quali- dades, competéncias e capacidades formativas em sua fungdo civica (formagao do cidadao) e em sua fungao produtiva (for- magao do profissional). ‘A avaliagdo educativa deve ser continua. Os sistemas avaliativos convencionais acomodaram-se aos ritmos periédicos de avaliago em conseqiiéncia da racionalidade programatica ¢ previsivel propria dos sistemas de controle. As avaliagdes peri6- dicas pressupdem a realidade humana como realidade previsivel € programavel em toda a sua extensio. Por isso perdem 0 conta- to € 0 acesso as imprevisibilidades que, quase sempre, so 0 que melhor caracterizam os sujeitos, os grupos, as instituigdes. O 20 Alipio Casal principio da avaliago continua nao separa um tempo “avaliav: de outro “ndo-avaliavel”. A continuidade deve ser reconhecida, alids, no apenas no interior de um ano (uma série ou classe) ou uum ciclo, mas rigorosamente ao longo de todos os anos de for- ‘magio escolar. Do ponto de vista epistemol6gico, nao ha qual- quer descontinuidade de conteiidos ou métodos, desde a alfabe- tizagdo até 0 doutorado ou pés-doutorado. O que distingue um de outro “nivel” é to somente a forma ¢ o alcance critico dos contetidos e dos métodos. O principio da avaliagao continua, da mesma forma, busca romper a temporalidade descontinua carac- do capital e do poder controlador. Por isso ele com a serialidade descontinua da anualidade dos estudos, a qual aprisiona conteiidos como em compartimentos estreitos, e por isso também ele cobra flexibilidade da aprendiza- gem em sistemas de ciclos mais ampliados. A avaliagio educativa deve ser conjunta. Um sujeito aprendente, ou um grupo aprendente, sto uma unidade. Nao exis- te, dentro do sujeito, uma parte matematica, outra lingiistica, outra biolégica, outra social ete. A avaliagio do desempenho ¢ das dificuldades de aprendizagens em matemitica é insepardvel de todo 0 conjunto, por mais que se reconhegam.as especificidades das inteligéncias logico-matemiticas, lin interpessoal etc. ide dos professores pela avaliagdo niio pode ser apenas a de cada um, respectivamente, mas também a de todos, conjuntamente. Toda aprendizagem é inerentemente interdisciplinar, toda avaliagao deve sé-lo. Por razées | epistemolégicas, antes mesmo que pedagégicas. Nao é uma me- to, mas simplesmente a correspondéncia com a realidade. A avaliagdo educativa deve focar e integrar ensi quisa e pratica social. A cada nivel ou ciclo de aprendizagens correspondem formas mais adequadas de ensino, de pesquisa, de pritica social. No ciclo superior de estudos universitéris a formagdo de educadores deve fazer-se mediante uma explo- ‘Pundamentos para uma Avalingéo Edcativa 1 ragdo maxima das potencialidades formativas do ensino (stricto sensu, em sua modalidade de aula expositiva), da pesquisa sis- tematica segundo parametros cientificos rigorosos, e da prati- ca pedagégica articulada institucionalmente num projeto so- cial e cultural organicamente implantado e sistematicamente acompanhado (avaliado). ‘A avaliagio educativa deve incorporar e integrar quanti- dade e qualidade. Um certo maniqueismo pedagégico em voga nas décadas passadas cultivou uma espécie de “qual ” que menospreza e, nio raro, despreza a quantidade. As pesquisas “quantitativas” foram rotuladas ndo apenas de ultrapassadas mas, pior, de “reacionérias”. Os contetidos disciplinares que dessem alguma atengo a materialidades quantitativas eram vistos com suspeita, Entretanto, no interior dos sujeitos, dos grupos, das instituigdes, as qualidades ndo apenas nao existem apartadas das quantidades materiais, mas sim, também, no limite, decorrem destas, A qualidade e a quantidade sao duas faces de uma mesma realidade, Nao hé divida que o educador tem motivos abundan- tes para generalizar a virtude dos aspectos qualitativos. No que _ se refere as priticas avaliativas essa questio se torna mais critica. Ainao resta davida que a quantificagao pode distorcer o signifi- cado do que se ensina-pesquisa-aprende. Um valor atribuido de 0-10 sempre podera ser visto com uma importéncia maior do que deve ter, Mas a questéio que importa nao ¢ sumariamente substi- tuir a atribuigdo de um valor por uma descrigzio qualitativa do desempenho e sim saber utilizar uma’ou outra linguagem (quan- titativa ou qualitativa) para, em didlogo critico com o estudante (este, sim, um procedimento avaliativo de maxima importancia), consentirem sobre as dificuldades a serem resolvidas, as potencialidades adormecidas e os préximos desenvolvimentos a serem empreendidos. O tema do dislogo como principio educativo tem sido insistentemente explorado desde Paulo Freire, e com razo. Ele é um procedimento que encontra fundamentagao ci ca da epistemologia ética. E um procedimento essencial na ava- 2 AlipioCas 9, capaz. de manter em aberto possibilidades inesgotaveis de desenvolvimento educativo. 4. AAVALIAGAO INSTITUCIONAL, Todos os principios que aqui se afirmaram acerca da avaliagdo de desempenho e aprendizagem em contexto es- colar, poderiam ser reafirmados no que se refere a avaliagio institucional. As obvias distingdes entre uma e outra situa- do devem ser secundarizadas diante das correspondéncias e analogias entre os dois fenémenos. O conceito de avaliagio € atribuido tanto a avaliagao de sistemas piblicos (progra- mas governamentais, sistemas permanentes como o de ensi- no, € 0 proprio sistema de avaliagao da educagdo), quanto a avaliagao de instituigdes especificas, como uma universida- de ou uma rede delas. Toda instituigdo, mormente a educacional, apresenta ca- racteristicas orgdnicas que justificam essa correspondéncia e, con- seqiientemente, o similar fundamento para os processos avaliativos. O que faz uma instituigao educacional (diferente de uma usina siderirgica, por exemplo, ou uma montadora de auto- méveis) nao so propriamente as instalagGes fisicas e os equipa- ‘mentos materiais. O que faz uma instituigdo educacional sio as, pessoas, 0s sujeitos, os grupos. Educadores e educandos, essen- cialmente. Podem faltar todos os elementos fisicos, mas se tiver- ‘mos um grupo de educandos em relagdo comunicativa sisteméti- ca e permanente com um educador, a sombra de uma arvore, ou num laboratério high-tech, teremos uma instituigdo educativa, Toda instituigdo deve ser pensada como constituida por dois principios em permanente tensio: o instituido e 0 instituinte (CASTORIADIS,1975). Grosso modo, podemos caracterizar ido como o do conjunto de forgas sedimentadas, consolidadas, corroboradas, inerciais, que nao Fundamentos para ums Avaliaglo Edveativa 23 almejam outra coisa que ndo a sua propria conservagao ¢ re- produgao naquele quadro institucional. O instituido é uma for- ‘ma. O principio do instituinte & a outra dinamica do institucional 0 conjunto de forgas em constante estado de pulsagdo, em peto de ruptura, de mudanga, de transformagdo, renovagao, re- criagao. O instituinte é um campo de forcas. A tensfo entre instituido e instituinte requer e produz um projeto institucional, que poder ser mais ou menos explicito, for- malizado, dependendo do jogo de forgas no interior da instituigao e nas instancias exteriores das quais ela em certa medida depende ou com as quais ela relaciona-se politica e culturalmente. Todo projeto institucional é como uma promessa formal de realizar certas ages, com certas intengdes e objetivos, para alcangar certos resultados. A avaliago institucional é, formal- ‘mente, a avaliagio desse instituido formal. Nesse ponto, a tarefa de avaliagao institucional consiste em se identificarem indicado- res concretos (muitos de natureza quantitativa) de realizagao dos objetivos, para se avaliar o alcance de sua efetivagao. ‘Mas uma avaliagao institucional critica deve iralém, Deve cap- tar também o instituinte institucional. Essa tarefa nao é simples. Tra- ta-se de primeiramente dar-se conta da dindmica institucional como sendo a dindmica de um organismo vivo com suas pulsagdes, suas inquietagdes, as expressdes intuitivas e sugestivas de seu movimento. ‘Nesse aspecto, nfo hi pesquisa ou avaliagdo quantitativa que resolva. Esté-se falando de outra ordem de fendmenos, Requer-se uma per- cepedo sensivel A qualidade. Os verdadeiros ideres institucionais po- dem ser considerados carismaiticos quando, por sua sensibilidade po- litica e cultural captam esse espirito da instituigao e projetam seus ‘movimentos, induzindoa consciéncia institucional a convergirna mesma diregao. A avaliag3o institucional critica é a que, no limite, consegue captar 0 maximo também desses movimentos institucionais in-formais. ‘Nese aspecto voltamos & correspondéncia com a avaliagiio escolar de desempenho e aprendizagem, em que se requer do edu- cador a capacidade de perceber os talentos do educando e identifi- oy Alipio Casati car 0s bons usos desses talentos ¢ os horizontes de seus desenvol- ‘vimentos futuros. A aura de poder que cerca as instituigdes educa- cionais, principalmente a universidade (inflada com a denomina- ¢ao de ensino superior”), costuma obscurecer um fato: toda in ‘tuigdo ensinante é também uma instituigdio aprendente. Toda insti- ‘uigdo experimenta tensdes ¢ disputas intemnas, movimenta-se, re- cua, estagna, atravessa as mais diversas experiéncias. Acumnula ex- periéncias. Aprende, Como qualquer ser vivo, que tem memoria, consciéncia do presente e, no caso dos humanos, projetos de futu- ro. Uma avaliagao institucional ¢ critica quando busca também. compreender esse movimento institucional. Estamos falando, em iiltima instancia, da necessidade de um projeto pedagégico institucional, que se apéia nos seus dis- ivos legais los para desencadear novos movimentos instituintes, mediante um projeto integrado. Estamos falando de ‘um curriculo no sentido mais pleno possivel: aquele que expressa e realiza o carater da instituigao propriamente educativa. Fundamentoeparauma Avabagso Bducatva 95 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BAILLY, Anatole (1950). Di Hachette, 26° ed. 1963. BONNIOL, J. e VIAL, M. (2001). Modelos de avaliagdo: textos _fundamentais. Porto Alegre: Artmed, CASALL Alipio etalii Orgs.) (1997). Empregabilidade e educagdo: novos caminhos no mundo do trabalho. Sao Paulo: EDUC. jonnaire Grec-Francais. Paris: CASALL, Alipio (2001). Saberes e procederes escolares: o sin- ‘gular, parcial, o universal. In SEVERINO, A.J. € FAZEN- DA, L. (Orgs.). Conhecimento, pesquisa e educacao. 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