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LL 935 – A – Textos Latinos II: Épica

Nome: Mônica Souza Venturini RA: 103584

Resenha de “O texto como professor”, de Alessandro Perutelli1

O texto de Perutelli se propõe a descrever a constituição do gênero didascálico na


história da literatura greco-latina levando em consideração, principalmente, alguns aspectos em
relação às obras apresentadas: a função, o destinatário, o conteúdo e a linguagem.
O autor inicia sua discussão contrastando brevemente a maneira como os textos
didáticos eram lidos na Antiguidade e modernamente. Hoje é raro que leiamos um texto
científico com o único objetivo da fruição estética. Parece-nos inadequado, quando não
impossível, unir os fins práticos de uma obra ao seu fim estético. No entanto, essa distinção não
era nítida na Antiguidade. Ainda que isso seja afirmado inicialmente, Perutelli mostra a
contradição existente ainda entre os críticos antigos no que concerne ao reconhecimento do
gênero didascálico como literário, uma vez que alguns se negavam a chamar de poeta quem
tratasse de uma matéria científica. Isso nos direciona para o problema dos múltiplos temas
tratados como conteúdo das obras filiadas ao gênero didascálico.
Perutelli indica que tal filiação genérica não se dá pelo conteúdo ou pela forma, mas sim
pela função. Como a própria denominação pode sugerir, essa função seria ensinar determinado
conhecimento - prático, científico ou filosófico. Contudo, como veremos adiante, essa não é
necessariamente a única função do texto didático. Outro ponto relevante a se considerar é o
público a ser ensinado.
A tradição do gênero, provavelmente, iniciou-se com Os Trabalhos e os dias, do poeta
grego Hesíodo, que em sua obra se dedicou a transmitir conhecimentos práticos sobre técnicas
agrícolas, vida doméstica e outros aspectos da vida, em geral, para seu irmão Perses. Perutelli
deixa, mais ou menos claro, que o metro utilizado por Hesíodo em sua composição foi o
hexâmetro o que, sabemos, é uma relevante característica formal dos poemas didáticos. A outra
famosa obra de Hesíodo, Teogonia, não é, segundo o autor, considerada uma obra didática, mas
ele não explicita quais são os motivos para essa exclusão.
Os trabalhos e os dias tornou-se, então, uma matriz compositiva para as obras didáticas
posteriores. Sendo assim, o leitor das obras didascálicas deveria ter alguma erudição para

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PERUTELLI, A. O texto como professor. In: CAVALLO, G.; FEDELI, P.; GIARDINA, A. (Org.). O espaço literário da
Roma antiga: vol. I – a produção do texto. Tradução de Daniel P. Carrara e Fernanda M. Moura. Belo Horizonte: Tessitura,
2010, p. 293-327.
compreender as teias de referências e alusões às obras anteriores. De acordo com Perutelli,
uma outra função do texto didascálico seria homenagear a tradição literária a qual pertencia por
meio de um jogo de alusões.
Em Roma, Catão é considerado o autor que primeiramente manifestou traços do gênero
didascálico em sua obra. Ele era caracterizado como um homem severo e autoritário, que
desgostava das influências gregas, e aplicava essas características a sua obra. A única obra de
Catão que chegou completa até nós, De agri cultura, é um manual de práticas agrícolas, escrito
com um estilo severo e até mesmo rude. A ampla utilização de imperativos mostra uma posição
autoritária do autor e deixa nenhum espaço para que os interlocutores sejam citados no texto.
Conforme Perutelli, Catão revelou na obra sua aversão por uma cultura refinada e uma forma
literária elegante. Tais caracterizações podem soar desagradáveis, uma vez que não sabemos
qual é a noção de cultura utilizada pelo autor italiano. Estaria ele fazendo essa depreciação com
base em uma comparação entre o estilo literário de Catão e de Hesíodo ou Homero?
Contemporâneo de Catão, Ênio foi outro autor que colaborou para o desenvolvimento
do gênero didascálico em Roma. No entanto, ao fazer propaganda política de maneira sutil em
suas obras, elaborou um estilo literário mais sofisticado que Catão. Sua principal obra didática
são os Hedyphagetica, um manual, em forma de poema épico, que indica as especialidades
gastronômicas de certas regiões litorâneas, quase como um guia turístico muito erudito.
As obras de Catão e Ênio diferenciam-se grandemente quanto à linguagem, estilo e
forma e, assim, não configuram as características necessárias para definir um texto como
didascálico.
Lucrécio, com seu De rerum natura, começou a delinear algumas características
importantes para o gênero. O texto passa a ter um destinatário personificado em um dedicatário,
aquele que financia a obra ou a quem o autor se filia no âmbito político. No entanto, a obra é
dirigida não apenas para esse único personagem, mas para um grupo de leitores – de elite e
doutos, provavelmente capazes de compreender as alusões e a linguagem elevada utilizadas na
composição da obra. Lucrécio fez uso de uma linguagem sublime e expressiva para “ensinar”
a doutrina epicurista: usou linguagem vibrante e alegre para retratar a natureza e uma que
descrevia o horror para retratar a relação dos homens com a religião. Os proêmios longos
também são parte fundamental da obra de Lucrécio: eles apresentam a obra, criando uma
relação com o leitor ao introduzi-lo no tema e no estilo do texto. Em relação à forma, Perutelli
faz uma observação perspicaz ao mostrar que Lucrécio utilizou a estrutura de um hino –
sabidamente ligado aos cultos religiosos -, para expressar uma doutrina que propõe uma vida
sem deuses, sem religião.
Lucrécio serviria, então, de inspiração para as Geórgicas, de Virgílio. São muitos os
trechos na obra virgiliana que aludem ao De rerum natura. Da mesma forma, Virgílio fez uso
dos longos proêmios e dedicou sua obra a Mecenas, seu patrocinador. Além disso, o poeta
utilizou uma linguagem elevada, fazendo uso do contraste expressivo entre momentos
luminosos e escuros, como apontado na obra de Lucrécio.
No entanto, enquanto o De rerum natura tinha como objetivo mais facilmente
identificável a divulgação da filosofia epicurista, as Geórgicas participavam de uma campanha
de constituição da moral romana condizente com o novo regime de Augusto. Ainda que
superficialmente o poema didático se dedique ao ensino de práticas agrícolas, num nível mais
profundo ele está conectado a uma ideologia política.
A análise da linguagem também nos sugere que o leitor de Virgílio não seria um rude e
pouco letrado agricultor – para quem faria sentido ensinar sobre o cultivo da terra, pecuária e
apicultura -, mas sim um leitor aculturado pertencente à classe política e intelectual de Roma.
Mais uma vez, não fica explícito no texto qual é, de fato, o significado de “aculturado”. É
possível suspeitar que tal “aculturamento” signifique não pertencer, ainda, a esse modo de vida
guiado pela moral romana pintada por Virgílio em seus versos. Ou seja, o público alvo das
Geórgicas seria constituído pelo potencial grupo de apoiadores do regime augustano.
O poema didático de Virgílio se tornou o máximo exemplo do gênero, sendo copiado e
parodiado por autores posteriores. Ovídio compôs seus poemas didáticos, Ars amandi e
Remedia amoris, parodiando a obra virgiliana. Sua originalidade foi garantida pelo tema
ousado.
Outros autores, como Manílio, Germânico e Avieno, de certa forma apenas se dedicaram
a traduzir autores anteriores, como o grego Arato, sem trazer grandes novidades para o cenário
literário da poesia didática.
Por fim, Perutelli não faz uma sistematização dos elementos que caracterizam o gênero
didascálico. O autor pouco fala da forma, normalmente definida pelo metro hexâmetro datílico,
mas garante que ela está principalmente relacionada à função da obra: comunicar um conteúdo
científico. No entanto, anteriormente, seu texto mostra como a função do poema didascálico ia
muito além da divulgação de determinados conhecimentos. Isso se evidencia também pela não-
correspondência, muitas vezes, entre os leitores reais da obra e aqueles para quem faria sentido
que ela se dirigisse, como no caso das Geórgicas. A ausência de uma sistematização das
características definidoras do gênero didascálico revela como existe, ainda hoje, grande
dificuldade na designação de certas obras da antiguidade como didáticas.

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