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GUIA DE LEITURA

OS LUSÍADAS
Índice
Do autor__________________________________ 3
Resumo da obra ____________________________ 7
Personagens ________________________________ 15
Chaves de interpretação_______________________ 17
Do autor
LUÍS DE CAMÕES: Um vate português

HÁ QUEM imagine – não sem razão – que os poetas são meninos fran-

zinos que só pensam em versos e vivem com a cabeça nas nuvens. O


estereótipo corresponde à verdade em inúmeros casos, mas a vida de
Luís Vaz de Camões certamente não se encaixa nesta regra. Seria falso
afirmar que, assim como o Velho do Restelo, Camões tem um “saber
só de experiências feito”. Mais certo é acreditar nas palavras que esse
homem, que entrou para história da pátria e da literatura como um
misto de poeta épico e herói lendário, disse sobre si próprio:

Nem me falta na vida honesto estudo


Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.

Pouco se sabe das origens e juventude de Camões. Por via paterna, o


poeta seria descendente de fidalgos galegos dados à guerra, às trovas
e ao comércio; pela materna, da nobreza de Santarém. Simão Vaz de
Camões casou-se com Ana de Sá e Macedo e, provavelmente em Lis-

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boa, em 1524, tiveram Luís Vaz de Camões, filho único. Em 1527,
uma epidemia de peste bubônica tomou conta da cidade, obrigando a
família a mudar-se para Coimbra. Bento Vaz da Camões, tio do poeta
que ingressara no sacerdócio e estudara letras no Mosteiro de Santa
Cruz dos Agostinhos, deu as primeiras letras a seu sobrinho quando
este contava doze ou treze anos. Alguns anos depois, Camões ingres-
sa no Colégio das Artes, escola preparatória para a universidade de
Coimbra. Apesar de não ter jamais concluído os estudos e de, segundo
se diz, ter sido estudante indisciplinado, a obra de Camões mostra que
o poeta tinha grande erudição, pois dá mostras de conhecimento de
literaturas clássica e moderna, geografia, cosmografia, história e das
línguas castelhana, latina e italiana.

Não há notícia precisa das razões que o levaram a abandonar a faculda-


de. O certo é que, com cerca de 20 anos, instalou-se em Lisboa e teve
uma vida boêmia, repleta de brigas e namoros. A essa época, alistou-se
no Exército. Antes de partir rumo às colônias, envolveu-se em uma
confusão durante a procissão de Corpus Christi, que lhe rendeu alguns
meses de prisão. Em março de 1553, partiu de Lisboa na nau São Ben-
to, em frota comandada por Fernando Álvares Cabral, filho de Pedro
Álvares Cabral. Durante a viagem, seguiu itinerário semelhante ao de
Vasco da Gama, enfrentando até mesmo uma tempestade no Cabo da
Boa Esperança, que, em “Os Lusíadas”, é lar do gigante Adamastor.

Chegando em Goa, ofereceu seu serviço ao vice-rei D. Afonso de No-


ronha. Combateu reis indianos e, em 1555, foi ao mar Vermelho com-
bater muçulmanos. Em 1556, diz a tradição que, de volta a Goa, teria

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composto uma sátira criticando os governantes daquela colônia e, por
isso, condenado à prisão. Em 1561 seria liberto e empregado pelo
novo vice-rei D. Francisco Coutinho, que o tinha em alta estima. No
ano seguinte, recebeu um cargo burocrático em Macau, à época um
entreposto comercial pouquíssimo desenvolvido.

Conta-se que, nas horas vagas, Camões recolhia-se a uma gruta — um


seco, fero e estéril monte — e escrevia aquilo que veio a ser “Os Lusía-
das”. Após cerca de dois anos de trabalhos, isolamento e saudades da
pátria, intrigas levaram-no a abandonar Macau. Diz-se que, quando
a nau estava prestes a zarpar, o poeta avistou uma bela moça que lhe
interrogou a razão da tristeza em seu semblante. Ela chamava-se Tin-
-Nam-Men, e, por associação, Camões passou a chamá-la Dinamene,
como uma das nereidas homéricas. Apaixonada por Camões, a moça
decidiu embarcar na nau.

A felicidade romântica foi breve, entretanto. Uma tempestade irrom-


peu nos mares do sul e fez soçobrar a nau. As mulheres embarcaram
em um batel; os homens tentaram salvar-se a nado. Camões com um
braço nada, com o outro segura no ar o manuscrito de “Os Lusíadas”,
e por fim salva sua vida e sua obra-prima. Mas o barco onde Dinamene
e demais mulheres se abrigaram foi engolido pelo mar.

O poeta foi resgatado e enviado a Malaca, na Malásia, onde convales-


ceu e foi preso por apropriar-se indevidamente de bens de defuntos.
Em 1567, foi libertado e embarcou em uma nau rumo a Moçambi-
que, onde esperaria por transporte rumo a Portugal em futuro pró-

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ximo. Passou mais de dois anos na ilha, sobrevivendo da caridade de
amigos. No final de 1569 embarcou na nau Santa Clara, atracando em
Cascais em abril de 1570.

Enfim de volta a Portugal, concluiu “Os Lusíadas” e os apresentou a


el-Rei D. Sebastião, à época ainda um adolescente. O rei apreciou o
poema, ordenou sua publicação e concedeu a Camões uma pensão
pelos serviços prestados no Oriente. A pensão lhe garantiria uma vida
confortável, mas não foi paga regularmente, fazendo com que o poeta
passasse por apertos financeiros. Nos seus últimos anos, Camões viveu
em condição precária em um quarto próximo à Igreja de Santana.

Na década de 1570, foram várias as desgraças que se abateram sobre a


pátria de Camões. Houve incêndios, enchentes, epidemias e, por fim,
na tragédia militar do Alcácer-Quibir, desapareceu D. Sebastião, tão
louvado por Camões em “Os Lusíadas”; com isto o reino entrou em
crise sucessória e Portugal perdeu para a Espanha a sua independência.

Em 10 de junho de 1580, o vate morreu. Nos seus últimos dias, vi-


veu de favores de amigos e da piedade de religiosos dominicanos seus
vizinhos, que lhe davam de comer e lhe ministravam os sacramentos
católicos. Pobre e indigente, não recebeu naquele momento as honras
fúnebres que lhe eram devidas. Estas as obteve apenas séculos depois,
quando trasladaram seus restos mortais e lhe erigiram um túmulo en-
tre os ataúdes de D. Sebastião e Vasco da Gama.

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Resumo
da obra
I

Proposição – o poeta anuncia que cantará os feitos dos portugueses;


invocação – o poeta pede inspiração às tágides, ninfas do rio Tejo, para
compor seu poema; dedicatória – o poeta oferece a obra ao El-Rei
Dom Sebastião, monarca português à época. Os deuses reúnem-se em
consílio para decidir se irão auxiliar ou impedir a chegada dos portu-
gueses às Índias. Júpiter considera que os feitos passados e a ousadia
presente tornam os portugueses dignos de ajuda. Vênus concorda,
pois vê muita semelhança entre os lusitanos e os antigos romanos.
Marte, apaixonado pela deusa, apoia sua opinião e elogia os feitos bé-
licos da nação portuguesa. Baco dá parecer desfavorável, pois teme
que as conquistas portuguesas ofusquem sua própria fama no Oriente.
A frota lusa chega a Moçambique, onde é recebida por muçulmanos
que lhes prometem mantimentos e um piloto que os leve à Índia. Os
moçambicanos, porém, mentiam, inspirados por Baco, e planejavam
levar os lusos a terras inimigas. Vênus protege os portugueses, por duas
vezes desviando-os com ventos contrários. Por fim, lançam âncoras no
porto de Mombaça.

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II

O rei de Mombaça envia um mensageiro prometendo boa acolhida,


mas, em verdade, planejando uma emboscada. Vasco da Gama envia
dois soldados à cidade, para avaliarem a situação. Os dois são enga-
nados por Baco e, ao voltarem, aconselham a entrada em Mombaça.
Vênus e as nereidas, porém, movem as águas e impedem que os navios
entrem no reino inimigo. A deusa, então, sai em direção aos céus e su-
plica por auxílio a Júpiter, que afirma que o fado está do lado dos por-
tugueses e envia Mercúrio para avisar Vasco da Gama sobre o reino de
Melinde. Os portugueses interrogam prisioneiros feitos em Mombaça
e descobrem a existência de Melinde, vão até lá e são bem recebidos. O
rei pede, então, que Vasco descreva o reino de Portugal, sua geografia,
sua história e, por fim, como foi a viagem até chegar ali.

III

Invocação – o poeta pede inspiração à musa Calíope. Vasco da Gama


apresenta a geografia de toda a Europa e a posição de Portugal no
continente. Inicia, então, a narrativa da história de Portugal através de
seus monarcas, seus heróis e suas batalhas contra muçulmanos e caste-
lhanos. Narra-se o mito de Luso, fundador da Lusitânia, Viriato, que
se rebelou contra os romanos, Afonso, o primeiro rei, Egas Moniz, seu
aio, e demais monarcas da dinastia de Borgonha: Sancho I, Afonso II,
Sancho II, Afonso III, Dinis I, Afonso IV, Pedro I e Fernando I.

Durante o relato sobre o reinado de Afonso IV, há a história de Inês


de Castro. Ela apaixonou-se pelo infante Pedro, homem já casado.

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Os dois iniciaram um romance, que foi descoberto pelo rei Afonso.
Os conselheiros do rei insistiram para que a relação fosse rompida e
a dama, assassinada. Afonso assim o fez, tornando o filho viúvo e os
netos órfãos. Quando herdou o trono, Pedro vingou a morte de Inês e
fez de sua amada rainha de Portugal.

IV

Vasco da Gama prossegue a narrativa histórica. João, filho bastardo


de Dom Fernando, subiu ao trono após uma guerra civil e deu iní-
cio à dinastia de Avis. Relata-se os reinados de Dom Duarte, Afonso
V, João II, Manuel I. Este foi visitado em sonho pelos rios Indo e
Ganges, que lhe revelaram que seriam várias as glórias portuguesas
no Oriente. O rei, então, prepara a viagem para lá, dando a Vasco
da Gama o comando da frota. As naus partem de Belém após re-
ceberem a Eucaristia, e são seguidas por familiares dos navegantes
e curiosos. Quando estão prestes a partir, os navegantes ouvem o
discurso do Velho do Restelo, que pragueja contra a cobiça dos pro-
jetos portugueses.

Vasco da Gama narra a viagem de Lisboa a Melinde. Quando as naus


passavam pelo cabo das Tormentas, deram com o Gigante Adamastor.
O titã vaticina as desgraças que recairão sobre muitos daqueles que
ousarem passar por ali e, em seguida, conta a história de seu amor (não
correspondido) por Tétis. Após passarem pelo cabo, os navegantes so-

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frem com o escorbuto. Por fim, Vasco narra a chegada a Melinde e o
poeta censura por iletrados seus conterrâneos.

VI

As naus partem rumo a Calecute guiadas por um piloto de Melinde.


Baco percebe que os portugueses chegarão à Índia e, para impedi-los,
pede auxílio a Netuno; convoca este um concílio dos deuses maríti-
mos, que tomam decisão contrária à das divindades olímpicas. Orde-
na-se, então, que Éolo sopre ventos para afundar as naus.

Enquanto isso, Fernão Veloso conta aos marinheiros o episódio dos


“Doze de Inglaterra”. No reinado de João I, doze cavaleiros ingleses
ofenderam a honra de doze damas inglesas, desafiando quem quisesse
defendê-las. Como fossem poderosos, nenhum inglês quis enfrentá-
-los. As damas pediram auxílio a João de Gante, duque de Lencastre
e genro do rei de Portugal. Onze cavaleiros portugueses armaram-se
prontamente e embarcaram; o 12º era o Magriço, que decidiu ir por
terra até Flandres. Após aventuras, chegou ao local do desafio em
cima da hora. Por fim, os portugueses venceram e salvaram a honra
das damas inglesas.

A tempestade alcança os navios. Vasco da Gama dirige preces a Deus e


é atendido por Vênus, que, com ajuda de ninfas, acalma os ventos. A
armada enfim avista Calecute.

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VII

Camões compara os feitos dos portugueses, que pela guerra santa es-
palharam a fé cristã, com as guerras entre cristãos promovidas por
franceses, alemães e ingleses.

Assim que chega em Calecute, Vasco da Gama envia um mensageiro


ao soberano indiano. O capitão encontra Monçaide, mouro que fala
castelhano, serve-lhe de tradutor e apresenta aos portugueses os cos-
tumes e a história da Índia. Capitão e tradutor, então, encontram-se
com o Catual, um ministro, e vão até Samorim, o soberano. Vasco
propõe um acordo comercial; enquanto Samorim pondera, Vasco vol-
ta às naus e encontra um painel representando a história de Portugal.

Ao final do canto, Camões sente falta de inspiração, faz breve relato au-
tobiográfico e lamenta o modo como os nobres portugueses o tratam.

VIII

A descrição da pintura inicia com Luso, companheiro de Baco, Ulisses,


herói de Homero e fundador de Lisboa, e Viriato e Sertório, heróis da
Lusitânia. Em seguida, Henrique de Borgonha e Afonso Henriques,
Egas Moniz e Fuas Roupinho, prior Teotônio e Mem Moniz, Sancho I
e Geraldo Sem Pavor. Durante a narração do reinado de João I, fala-se
de Nuno Álvares Pereira e de outros homens de relevo.

À noite, Baco visita os conselheiros muçulmanos do rei e lhes diz que


os ocidentais são piratas, incitando-os a destruir as frotas. O Samorim

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acata os conselhos, temendo ser dominado pelos portugueses, e acusa
Vasco de pirataria. O capitão, porém, defende-se com dignidade, e
sai do encontro com permissão para comercializar. Influenciado pelos
muçulmanos, Catual faz Vasco de refém, tenta trair e assaltar o restan-
te, mas termina libertando o capitão em troca de mercadorias.

IX

Os portugueses enfim partem de Calecute rumo a Portugal. Antes de


prosseguir a narrativa da viagem de retorno, Camões critica os gover-
nantes antes preocupados com bajulações e riquezas do que com o
bem-estar do povo.

Para recompensar o trabalho árduo dos navegantes, Vênus decide


premiá-los. Pede a Cupido, seu filho, que lance setas sobre as ninfas,
para que elas, sob ordens da deusa, enamorem-se dos portugueses.
A esquadra chega à Ilha dos Amores. Enquanto caçam, os soldados
encontram as ninfas, que, num fingimento sedutor, fogem, mas logo
se deixam apanhar.

Enquanto navegantes e musas aproveitam as delícias da ilha, Tétis, que


comanda todas as ninfas, toma a mão de Vasco da Gama e o conduz ao
cume de um monte “alto e divino”. Ao final do canto, Camões afirma
que as entidades mitológicas representadas ao longo do poema não são
senão homens que, graças à Fama, tomaram pra si os títulos de deuses
e semideuses.

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X

As ninfas oferecem um banquete aos portugueses. Após o poeta pedir


inspiração a Calíope, uma ninfa profetiza glórias militares dos portu-
gueses no Oriente. Tétis, por sua vez, leva o capitão Vasco da Gama ao
cume de um monte, onde lhe mostra a Máquina do Mundo e vaticina
os futuros descobrimentos portugueses. Os navegantes enfim chegam
de volta à pátria. Ao fim da obra, Camões queixa-se da falta de interes-
se dos portugueses pelas letras e pelos feitos pátrios.

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Principais Personagens
ADAMASTOR – Gigante mítico que agita as águas do Cabo das Tor-
mentas

BACO – Nome adotado pelos romanos do deus grego Dioniso, divin-


dade do vinho, da ebriedade e dos excessos da violência e do sexo. Diz
a mitologia que Baco foi cultuado nas Índias. Por isso receia que as
conquistas portuguesas o coloquem em segundo plano.

MAGRIÇO – Álvaro Gonçalves Coutinho, conhecido como Magriço.


Nasceu por volta de 1380 e faleceu em 1445. Foi um dos Doze de
Inglaterra, tendo destaque por ter optado por ir até a ilha inglesa por
terra, separado dos onze outros cavaleiros. É retratado como um rapaz
corajoso e dotado de um ardente espírito de aventura.

TÉTIS – Em português, confunde-se Τηθύς (tethýs), ninfa do mar e


filha de Nereu e Dóris, e Θέτις (thétis), titânide filha de Urano e Gaia.
No poema, tal confusão está presente. A Tétis camoniana está entre as
ninfas da Ilha dos Amores, mas tem aspecto sábio, como a titânide.

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VASCO DA GAMA – Herói da epopeia, Vasco da Gama é inspirado no

personagem histórico homônimo. É descrito pelo poeta como corajo-


so, forte, piedoso e astuto.

VELHO DO RESTELO – Um idoso de aparência circunspecta que, du-

rante a partida das naus, faz um discurso de crítica à cobiça de glória e


riquezas dos navegantes.

VÊNUS – Nome romano da deusa grega Afrodite, divindade do amor e

da beleza. Os romanos consideravam-se filho de Vênus, pois ela é mãe


de Eneias. Em Os Lusíadas, a deusa afeiçoa-se aos portugueses por
vê-los como herdeiros de seus amados romanos.

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Chaves de interpretação
A FÉ E O IMPÉRIO

Na segunda estrofe de “Os Lusíadas”, Camões afirma que cantará, se


o seu vigor poético permiti-lo, as façanhas “daqueles reis que foram
dilatando a fé e o império”.

No século dos descobrimentos, já não havia na Europa as mesmas


condições sociais que forjaram o espírito da cavalaria medieval. Após
a Reforma Protestante, havia se quebrado a hegemonia católica em
territórios alemães, na Inglaterra e em partes da França; o protestan-
tismo conquistava cada vez mais almas e reis e territórios. Os huma-
nistas já não se interessavam pela discussão paciente e interminável
de sutis questões teológicas, como nos tempos da escolástica; agora,
havia interesse sobretudo pela antiguidade greco-latina e pelo estudo
de manuscritos. Na economia, o capitalismo nascente ia, aos poucos,
suplantando o espírito econômico medieval, que tinha muitas pre-
venções quanto ao lucro. O espírito dos homens de guerra não passou
incólume por essa época de tantas mudanças.

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Os ideais da cavalaria já não podiam ser integralmente copiados pelos
jovens que buscavam se engrandecer nas lutas. Os cristãos, dentes de
Cadmo desparzidos, estavam mais preocupados em brigar entre si do
que em manter o costume milenar de combater o inimigo muçulma-
no. Além do mais, as mudanças econômicas e as inovações tecnológi-
cas como que lançavam os portugueses ao mar.

Em aliança com religiosos jesuítas, então, os portugueses foram dila-


tar a fé, comprando para Cristo, para a glória da Igreja, novas almas,
e o império, acrescentando territórios e riquezas à coroa portuguesa.
Ao longo do poema, podemos notar os dois aspectos alternando-se.
Ora Camões e suas personagens preocupam-se em alcançar acordos
comerciais, em dominar quem encontram pela frente e em enaltecer
a história do seu rei e dos seus antepassados lusitanos; ora agem como
verdadeiros cristãos, orando quando em perigo e agindo caridosamen-
te perante os mais fracos.

No episódio da partida de Belém, que se inicia na estância 84 do quar-


to canto, podemos observar mais claramente a tensão entre a busca
por glória e o zelo pelas coisas da religião. Os navegantes, cobiçosos de
honra e fama, participaram de uma missa em que sua missão foi aben-
çoada pelos religiosos. Enquanto caminhavam rumo às naus, a um só
tempo temiam e ansiavam pelo que o futuro lhes reservava. Quando
enfim embarcaram, ouviram as repreensões do Velho do Restelo, que
via naquela aventura maior interesse por ouro do que intenção de res-
taurar a Cristandade.

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CAMÕES E ALCÁCER-QUIBIR

Em agosto de 1578, entre as cidades de Tânger e Fez, ocorreu a bata-


lha de Alcácer-Quibir, em que o império português, comandado por
el-Rei D. Sebastião, combateu as forças do Sultão Mulei Moluco. Se-
gundo as justificativas prévias do próprio Sebastião, a batalha visava
impedir que o Império Turco Otomano dominasse aquela região norte
da África e, por consequência, se tornasse uma ameaça militar para
Portugal e Espanha.

Após quatro horas de batalha, o exército de Sebastião foi dizimado,


restando pouco mais de 100 sobreviventes. Do rei, nunca mais houve
notícia do paradeiro. Entre a nobreza, a maioria morreu. Como Sebas-
tião não tinha herdeiros diretos, instalou-se uma crise sucessória. Pri-
meiro subiu ao trono o Cardeal Henrique, tio-avô do rei desaparecido.
O Cardeal-Rei não teve filhos e, após sua morte, Filipe II da Espanha
reclamou para si a coroa e deu cabo à soberania portuguesa, em um
duro golpe à identidade nacional portuguesa.

Antes do aparecimento da epopeia camoniana, o ímpeto de Sebastião


por guerrear no norte da África em nome da defesa da pátria e da Cris-
tandade era contido por conselhos em contrário de conselheiros mais
experientes. De repente, um português vindo do Oriente, com diversas
passagens pela polícia e cego de um olho, chegou à Corte, trazendo con-
sigo versos heroicos dedicados, de início a fim, a Sebastião, chamando,
no início, o monarca de tenro e novo ramo florecente de uma árvore, de
Cristo mais amada que nenhũa nascida no Ocidente, Cesárea ou Cristianís-
sima chamada (Canto I, 7) e, ao final, exortando-o a subjugar o poderio

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de alemães, franceses, italianos, ingleses e de todos aqueles que ousarem
se pôr no caminho das glórias portuguesas (Canto X, 152).

Após conhecer o poema daquele tal Luís de Camões, e de sentir o po-


der de versos tão eloquentes dirigidos a si, não houve meio de conter o
ímpeto bélico de Sebastião. Assim, não seria exagero afirmar que “Os
Lusíadas” ajudaram a criar o clímax ideal para a batalha de Alcácer-
-Quibir, ainda que houvesse mais riscos de derrota que possibilidades
de vitória naquela empreitada.

Como as condições materiais e estratégicas não eram tão excelentes


quanto o espírito patriótico insuflado por “Os Lusíadas” em D. Sebas-
tião, a batalha foi perdida e o rei, morto. Dali em diante, Portugal foi,
década a década, século a século, perdendo relevância, colônias e força,
até tornar-se um país coadjuvante no teatro mundial.

O LIRISMO NA ÉPICA CAMONIANA

Conforme se espera de uma epopeia, há em “Os Lusíadas” diversas


passagens muito eloquentes, em que se descrevem atos de heroísmo e
batalhas ferozes. É a fúria grande e sonorosa de tuba canora e belicosa,
que o peito acende e a cor ao gesto muda de que o poeta fala na estância
5 do primeiro canto do poema.

Porém, há muitos momentos do mais comovente lirismo na obra-pri-


ma de Camões.

No canto III, Vasco da Gama narra a história do povo português desde


os tempos de Roma até aquele momento. Quando narra os fatos do

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reinado de Afonso IV, detém-se na história de Inês de Castro, amante
do príncipe Pedro I que foi assassinada pelo sogro. Neste ponto, há
expansão lírica, com espaço para subjetividade, emprego de muitos
adjetivos, lamentações, censuras ao Amor e momentos de maior con-
centração no julgamento das ações do que nas ações em si.

No canto V, sabemos que os navegantes se encontram com um gigante


chamado Adamastor quando estão atravessando o Cabo da Boa Espe-
rança – então chamado de Cabo das Tormentas. O encontro, a princí-
pio, não é nada amigável, e tem um tom certamente épico. O gigante
indignado profetiza um sem fim de desgraças que se abaterão sobre a
gente portuguesa. Os navegantes, porém, querem saber quem é esse
que lhes fala. O gigante, então, apresenta outra fase: em estâncias de
puro lirismo, conta sua história de sofrimentos amorosos, faz censuras
ao destino, lamenta seus infortúnios e, de fera temível, soa para o leitor
como um desenganado digno de piedade.

Já no canto IX, a Ilha dos Amores é como um prêmio e descanso mereci-


do pelos portugueses. Após cruzarem o mundo, combaterem mouros,
enfrentarem gigantes, negociarem com indianos e enfrentarem tem-
pestades, os portugueses são recebidos em uma ilha fantástica, onde a
comida é farta e as mulheres os tratam como reis. A natureza está cheia
de frutos disponíveis para quem quiser pegá-los, e parece impregnada
de sensualidade semelhante à das ninfas:

“Os fermosos limões ali, cheirando,


Estão virgíneas tetas imitando.”
Canto IX, 56

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As ninfas, inicialmente, dedicam-se a um jogo de falsa resistência aos
portugueses, para lhes aumentar o desejo. Enfim entregam-se aos na-
vegantes, e a volúpia do episódio atinge seu ápice:

Ó que famintos beijos na floresta,


E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,
Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.
Canto IX, 83

Após terminar a narrativa sobre as delícias experimentadas naquele dia


pelos heróis portugueses, Camões exorta as futuras gerações a mante-
rem-se humildes e distantes dos vícios, terminando por dizer que, se
agirem de forma correta, “sereis entre os heróis esclarecidos e nesta Ilha de
Vênus recebidos” (Canto IX, 95).

O episódio da Ilha dos Amores é, ainda hoje, amplamente discutido,


pois há possibilidade que revele algo da mentalidade do colonizador em
relação às mulheres das terras colonizadas. Sob o viés que trouxemos nes-
te pequeno texto, porém, cabe notar como uma passagem de erotismo e
lirismo sublimes coroou um poema épico que versa sobre feitos bélicos.

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