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ste livro a range o perlodo

entre o descobrimento oficial do


Brasil por Pedro Alvares Cabral
em 1 soo, a~ à morte, em 15 72, do
grande governador Mem de Sá,
data em que, depois dos primeiros
anos atribulados da sua existência,
a jovem naçl.o brasileira, com a
sobrevivencia já assrgurada, se
encontrava com forças vitais para
reagir vitoriosamente contra a
ocupa9ão holandesa do século
seguinte.
Os trabalhos e problemas que
os primeiros povoadores tiveram
de enfrentar slo descritos nos 24
capítulos desta obra, que pode
dividir-se em três partes:
A primeira trata do descobri-
mento do Br11sil e explorações cos-
teiras até ao momento em que o rei
D. Joio 111, vendo os seus direitos
disputados por franceses e caste-
lhanos,resolveurepartirem capita-
nias toda a extensio da costa bra-
sileira, e distribui-las para serem
povoadas, governadas e defendi-
das pelos respectivos donatários.
A história individual destes
donatários, heróis da Índia na sua
maioria, e o seu procedimento
perante esta nova e perigosa aven-
tura, ocupa os capítulos a seguir,
onde vemos um punhado de ho-
mens brancos a lutar desesperada-
mente para manter-se à beira da
selva infestada por hordas de
canibais selvagens. Abandonados
aos seus próprios recursos para
resistir ou sucumbir, para financiar
a sua empresa ou cair na falência,
para organizar a defesa contra as
incursões dos selvagens da terra
desconhecida e as naus bem arma-
das dos corsários que atacav•m do
mar, nio admira que poucos dos
primeiros capities tivessem conse-
guido grandes êxitos. O rei entio,
vendo-se obrigado a intervir,
mudou de plano, nomeando para o
Brasil um Governador-Geral encar-
regado de organizãrumfortepoder
central e fundar uma capital, ao
mesmo tempo que enviava os
missionários jesuítas para con-
verter e civilizar os aborígenes.
Os trabalhos dos primeiros
governadores para estender o
domínio politico sobre a terra
bravia, as aventuras dos padres
jesuítas entre os canibais, a fun-
daçio das grandes cidades do
futuro, e o esforço reunido do
poder espiritual e temporal para
expulsar o francb Villegagnon
e seus homens da ilha na baia
do Rio de Janeiro, ocupam os
restantes capltulos do livro que
termina com a descriçAo da ;átria
brasileira tal como era já no run do
s6eulo de Quinhentos.
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dação
futuro Rua Co11de de Vlzela, 80- PORTO
poder
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Outras obras de ELAINE SANCEAU
ELAINE SANCEAU

O SONHO DA ÍNDIA (Afonso de Albuquerque\ - 3." ediçã<t


EM DEMANDA DO PRESTE JOAO- 3 • edição
O. HENRIQUE, O NAVEGADOR- 3.a edição
CAPITÃES
D. JOAO DE CASTRO- 2. • edição
O CAMINHO DA ÍNDIA
D. JOAO li DO BRASIL
TRADUÇAO
DE

ANTÔNIO ÁLVARO DÓRIA

REVISTA PELA AUTORA

LIVRARIA CI VILIZAÇAO- EDITORA


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Terra da Vera Cruz

O sol declinava lá para os lados da floresta


distante. Para o s· I, levantava-se uma longa cordi-
lheira, negra na escuridão que descia. A noite cobria
ràpidamente com o seu manto um continente desconhe-
cido, e toldava o mar cor de opala, cujas ondas apa-
gavam, com o seu marulho, os ruídos da floresta.
A escuridão estendia-se por milhas sem conta cobrindo
a terra. Das profundezas do mar ondulavam, ora subindo,
ora descendo, as luzes trêmulas de treze naYios. Os
mastros e as vergas, cujas velas haviam sido colhidas,
ven balouçavam, negros, ocultando o Cruzeiro do Sul.
mu
Bras Nos elevados castelos da proa e da popa, apinhavam-se
rega os homens, com olhos sôfregos a interrogarem a noite.
cent
mes Eis a esquadra que à Índia mandava S. A. el-rei
miss D. Manuel- D. Manuel o Venturoso, que apenas oito
vert
meses antes saudara Vasco da Gama de regresso da
terra das especiarias. Finalmente abrira-se o caminho
~~~!
brav marítimo para a fndia. Os navios portugueses tinham
jesuf encontrado Calicute. As antigas igrejas do Oriente iam
daçi
ruturl ser enfim libertadas pelos cruzados do Ocidente do
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da~ CAPITAES DO BRASIL 9
8 CAPITAES DO BRASIL
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seu isolamento milenário. O comércio das especiarias
en Alvares Cabral se encontrava em frente desta costa,
do Oriente, com que o Islão tinha enriquecido durante deve ter sido com intencionalidade, e, a ser assim,
tanto tempo, ia esvaziar agora os seus tesouros nas mãos obedecia às orden$ recebidas. O capitão-general
de cristãos. Chegara o momento de negociar com os duma esquadra je treze naus equipadas para o
reis hindus, no prosseguimento das primeiros tentativas comércio e para a guerra, encarregado duma missão
e afastando todo o desentendimento. Por isso Pedro diplomática importante e melindrosa, não devia perder
Alvares Cabral fora mandado a Calicute para concertar o seu tempo com explorações inúteis. Por isso parece
me pazes com o Samorim e levar-lhe um esplêndido que o mais provável foi Cabral ter chegado àquela
te ir
D. presente. costa porque o rei, seu amo, pensava que, ficando no
dis Mas então que viera ele fazer a esta costa do seu caminho, a armada devia reconhecê-la e reclamá-la
lha
nia Ocidente, na orla da ccQuarta Parte do Mundo» ? Aqui para a Coroa, pois essas terras ocidentais se encontra-
sile está uma pergunta que os estudiosos têm discutido de vam no hemisfério designado para Portugal no tratado
po
das todos os pontos de vista com erudição, com ignorância, de Tordesilhas.
com imparcialidade, com paixão, com calma convicção Que essas terras não constituíram surpresa, era
ou com cepticismo- sem jamais haverem chegado a mais que evidente, como se pode concluir das narrati-
qualq.uer conclusão. vas de testemunhas presenciais: ccseguimos nosso
A teoria de uma violenta tempestade que afastasse caminho per este mar delongo ataa terça feira doitavas
a esquadra da sua rota há muito que foi posta de de pascoa que foram XX dias dabril que topamos
parte. Não se encontra, entre os relatos das testemunhas alguús synaaes de tera» (1), escrtve Pero Vaz de
presenciais, nenhuma indicação de mau tempo, e os Caminha, escrivão do Capitão, como se não tivessem
marinheiros, que conhecem os ventos do Atlântico, visto mais do que o que esperavam ver; ccAos 24 dias de
declaram que nenhum golpe de vento podia ter arras- Abril, que foi quarta feira da oitava ela Páscoa, houve a
tado a armada por este rumo; tão-pouco parece poder-se dita armada vista de terra, de que teve graode prazer»t
~esponsabilizar as correntes oc~ânicas por tal desvio. diz um marinheiro anónimo (2). O que daqui se depreende
E: evidente que as armadas da India faziam rumo para não é que houvessem muita surpresa, mas apenas um
Ocidente antes de procurarem o Cabo; os navios à interesse agradável. E a terceira testemunha ocular
vela ainda hoje o fazem. Vasco da Gama seguiu sem que deixou o seu relato não parece mesmo anunciar
hesitação em direcção ao sudoeste ao largar das ilhas qualquer nova de descoberta: crquanto Seiior ai sytyo
de Cabo Verde, sendo provável que nem fosse dele desta terra -informa Mestre João, físico, dirigindo-se a
próprio tal ideia. Os navegadores portugueses haviam D. Manuel- mande vos a altesa trazer un mapamundy
estudado o regime dos ventos atlânticos, durante muitos que tyene Pero Vaz Bisagudo, e por ay podera ver vosa
::~s
gov
anos antes da sua viagem. Era portanto natural que
Cabral navegasse para o sudoeste no seu caminho em
altesa ai sytyo desta terra, en pero aquel mapamundy
do direcção ao Cabo ;-a questão é esta : porque foi ele tão
bra (1} Carta de Pcro Vaz de Camioha.
jesu longe, em direcção ao sudoeste? A navegação portuguesa F) - R•lafÕ do Pílot• Anónimo, publicada em A Viajl"tm de Pedrct·
daçíi do tempo não se fazia ao acaso. Portanto, se Pedro .A/,arts Cabral, por William M. Greeolee, p . 15.
futu
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do
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8

10 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 11

nó çertyfica esta terra ser habytada o no, es mapa- Vera Cruz e Monte Pascoal seria a montanha elevada
mundy antiguo». e arredondada que se via para além da loresta, por
Inesperada ou não, era uma terra encantadora que ser na semana da P~scoa que ele a avis!ara.. .
se revelou ao outro dia, ao amanhecer, quando os navios Então Nicolau Coelho, o irrequieto pt.oneuo ~e mm-
desterraram as velas para se aproximarem da costa. tos desembarques em costas desconhectdas, fo1 man-
di
Todas de verde brilhante, árvores enormes erguiam os dado num pequeno barco até à foz do rio. Junto da
seus topes para o azul ferrete do céu; o mar, também praia via-se um grupo de homens- br~nzeados e, de
m
te .azul ferrete, desfazia -se em ondas translúcidas sobre a cabelos pretos e corredios, nus como Adao no P~ratso .
D tina areia da praia, e o vento, fresco e rescendente, era Brandindo arcos e flechas, corriam para a betra da
di
Ih
como uma carícia. A Pero Vaz de Caminha lembrava- água, olhando espantados para o barco que conduzia
ni -lhe a brisa do verão no seu Entre-Douro-e-Minho natal. os estranhos homens brancos.
si Nicolau Coelho não se atrapalhou. Fez sinal aos
A armada lançou ferro na foz dum rio que corria
por entre as sombras verdes. Os capitães reuniram-se indígenas para pousarem as armas no chão, ~ eles
na capitaina e discutiram os seus planos com os pilo- obedeceram-lhe. A rebentação das ondas na praia tor-
tos. Não era esta uma reunião de personalidades banais nava impossível o desembarque, mas Nicolau Co~lho
.a que presidia Pedro Álvares Cabral. atirou-lhes presentes. Um dos barretes ve~melhos vtvos
O Capitão-General, fidalgo alto e magro, era um usados pelos marinheiros portugueses fm lançado por
soldado valente, mas ao mesmo tempo homem cima das ondas, a carapuça de linho -1~e Coelho levav~,
brando, mesurado e de juízo prudente, qualidades depois na cabeça, seguida pelo chapeu preto de ma1s
que tinham presidido à sua escolha, como também alguém. .
.a distinção do seu parentesco. Homem experimen- Os selvagens pareciam satisfeitos. Em troca, atua-
tado como era, podiam bem contiar-lhe o comando, no ram um dos seus toucados de penas de cores berrantes,
que o auxiliariam os seus distintos subordinados. um tope ou penacho de penas e um rosário de contas
O primeiro de todos era Bartolomeu Dias, que brancas. Depois destas amabilidades Nicolau Coelho
descobrira o Cabo de Boa Esperança. Com ele ia Diogo afastou-se. A noite caía, o vento soprava forte e não
Dias, seu irmão, de fe itio alegre, que acabara de regressar se podia efectuar qualquer desembarque naquela noite
da Índia com Vasco da Gama. Também ali ia Nicolau por entre a ressaca.
Coelho, que na viagem à Índia comandara a cara- Levantou-se grossa ventania, sendo colhidas todas
vela Bérrio. Havia ainda o famoso piloto Pero Escobar, as âncoras. Era preciso encontrar porto mais segur?.
explorador das cataratas do Congo com Diogo Cão, Portanto , a armada subiu a costa .durante. tod() o dta
mi uns r3 anos antes, e que fora à Índia no navio de seguinte, levando à frer.te os navws mats pequenos
ve
Nicolau Coelho. para observarem, até chegar a ~orto Seguro. .
go Os veteranos da Atrica e do Oriente discutiram Parece que este nome se tmpunha por s1: larga
do acerca desta terra ocidental- ilha ou continente, enseada protegida por rochedos, ancoradouro seguro e
br
que podia ela ser? Suspeitavam que continente. fundo e uma ampla entrada. O piloto fez sondagens a
O comandante achou gue devia chamar-se Terra da toda a volta d a baía, e, enquanto o fazia, encontrou
e
g
d CAPITAES DO BRASIL 13
.~ 12 CAPITAES DO BRASIL
a
s Veio 0 papagaio do capitão. É claro que aquil.o
e uma almadia tripulada por dois rapazes vigorosos, que
r
ele conseguiu agarrar e levar para a almiranta, para não causou surpresa nenhuma. Pegaram na ave fa.mi-
o liarmente com a mao e pareceram indicar qu_e muttas
s mostrar ao capitão,
Cabral viu que aquela era uma ocasião para se mais se podiam encontrar em terra. Um carneiro quase
o
d não deixar fagir. Era a primeira vez que home ns deste não lhes despertou as atenções, mas quando tr~u~eram
país desconhecido se recebiam a bordo dum navio po.r- uma galinha, acordada da capoeira, sem duv1da a
tuguês. Tinham aparência de selvagens, mas quem sabta debater-se e a cacarejar ruidosamente como elas cos-
tumam, os selvagens recuaram a fugir do espalhafatoso
que condições havia em terra? E as primeiras imp,r~s­
sões são importantes. Portanto, preparou o cenano. pássaro. Era evidente que para eles se tratava de nova
Vestindo as suas melhores roupas e com uma espécie de ave. . . _
pesada cadeia de ouro ao pescoço, o capitão sentou-se Trouxeram comida para os Visttantes: pao e
com majestade numa cadeira d e espaldar elevado, e peixe cozido, bolos, mel e figos seco~. Nenhuma destas
todos os seus oficiais sobre um tapete aos seus coisas causou sucesso. Os es.trangeiros, mal .as p~ova­
pés. Caíra a noite; trouxeram tochas. Os estran- vam deitavam-nas fora. O vmho tambem foi reJeitado
geiros de pele escura avançaram à luz trêmula. Eram com' nojo, e igual nojo mostraram pela água já salobra
altos, de cor castanho-avermelhada, de nariz bem feito trazida nas vasilhas de bordo. .
e feições regulares. Cada qual trazia um Oiso branco As contas brancas dum rosário foram muito admt-
atravessando-lhe o lábio inferior e a desformá-lo; ambas radas. Um índio experimentou pô-lo ao pescoço, mas
as cabeças eram rapadas desde a testa até às orelhas, e achou que ficava muito melhor enrolado no ~raço.
um deles trazia um toucado de penas amarelas. Com- Depois apontou para as contas e para a cad~1a do
pletamente nus, não dando quaisquer most ras de ver- capitão com sinais que davam a entender aos cucuns-
gonha ou temor, nem cumprimentando ninguém, fica- tantes :sperançados que ele oferecia ouro em troc~ das
ram de pé a olhar em silêncio. contas brancas- ou, observa o cauteloso Cammha,
A luz da tocha dança va na cadeia de ouro do «Isto tomavamonos asy polo desejarm~s ... mas se ~le
capitão, fazendo-a brilhar. Um dos selvagens olhou queria dizer as contas e mais o colar, isto nem qsena-
monos emtender porque lho nó aviamos de dar». Mas
para ela, como que a admirá-la, disse qualquer coisa e
0 selvagem acabou por tornar a dar o rosário ao seu
ve apontou para terra. Quereria ele dizer que também se
m
poderia ali encontrar ouro? lembraram os homens dono. . .
Br Apesar da sua fantástica aventura, os VISitantes
re brancos uns aos outros com ansiedade. Um castiçal de
ce parece não terem ficado muito assustados, apenas exte-
m prata brilhante também despertou interesse, e o homem
nuados com o seu deslumbramento. E mostraram sen-
m' voltou a apontar para terra. Como seria bom que
ve
ali houves~;e prata! tir-se perfeitamente à vontade, Caminha diz que eles se
estenderam no tapete e se prepararam para dormir.
Experimentaram-se em vão todos os intérpretes:
O capitão, amável, mandou buscar almofadas para
nenhum podia compreender esta língua. Seria prefe-
lhes pôr debaixo das cabeças, e deitaram uma coberta
rível mostrar-lhes algumas coisas para ver as suas
reacções, sugeriu alguém. por cima das suas nudezas. O que teriam eles pensado
d CAPITAES DO BRASIL
a
14 CAPI r AES DO BRASIL lS.
a
s
e de tais confortos, adivinhe-o quem puder. Nós só ram a aproximar-se muito, chegando os cabaços
r podemos dizer que eles os aceitaram e daí a pouco aos brancos pará' pegarem neles. Fosse como fosse,
o
s estavam a dormir profundamente. etectuou-se regular negócio, dando-se arcos e setas em
Na manhã seguinte, a armada dirigiu-se para uma troca de chapéus e carapuças de linho.
o
d baía adorável, e ali desceram os visitantes para terra. Afonso Ribeiro, que desaparecera, voltou acompa-
Cada um deles leva va vestida uma boa camisa nova e nhado dum indivíduo coberto de penas coladas por
um barrete vermelho; enrolado no braço, um rosário todo o corpo- <<parecia aseetado coma Sam Sebas-
de contas brancas, e ainda um fornecimento de atraen- tiam>. O degredado explicou que os índios não quise-
tes chocalhos e guizos. ram que ele ficasse com eles. Não lhe tinham feito
Nicolau Coelho, Bartolomeu Dias e Pero Vaz de mal algum, mas simplesmente o mandaram embora
n Caminha acompanharam-nos a terra, indo com eles sem lhe pegarem nos presentes. Mas, diss'! Bartolomeu
s um rapaz de nome Atonso Ribeiro, um dos úteis
p
Dias, tinham de os aceitar ! E obrigou Afonso
d degredados- condenados cuja sentença de morte se Ribeiro a voltar e a insistir na oferta de barretes ver-
d
comutara em deportação. Podia-se muito bem arriscar melhos e duma bacia de estanho ao homem coberto
m a vida destes homens em missões de observação em de penas.
terras desconhecidas, porque elas pertenciam ao Estado. A 2 5 de Abril, um domingo, amanheceu um dia
Afonso Ribeiro recebeu ordens de seguir os selvagens cheio de sol por sobre a terra virgem. Realizou-se a
às suas casas e descobrir o que pudesse acerca dos missa numa ilhota verde na baía, debaixo dum toldo
seus hábitos e costumes. levantado sobre um tosco altar ((muy bem core-
Na praia concentravam-se duzentos homens nus~ gido». Foi ali lJUe Frei Henrique de Coimbra, capelão
com arcos e setas nas mãos, preparados para lutar do comandante, disse missa, acompanhado por todos
para libertarem os seus camaradas presos. Todavia, a os padres. Por cima do capitão desfraldava-se à brisa
um sinal dos viajantes de regresso, pousaram as armas rescendente a bandeira branca e vermelha da Ordem
no chão. Os dois homens desembarcaram, seguidos de Cristo, e todos os oficiais e homens o rodeavam,
pelo degredado. Depois desataram todos a tugir, ouvindo <<CÕ muyto prazer e devaçam».
correndo quem mais podia, enquanto Afonso Ribeiro Todos se sentaram na areia enquanto Frei Henrique
se esfalfava atrás deles. subia a uma alta cadeira e deste púlpito improvisado
Pouco depois voltaram. Os visitantes da noite pronunciva «huúa solene e proveitossa preegaçom» a
anterior, novamente nus, com todo o conforto, trouxe- respeito do Evangelho do dia com alusões a propósito
ram consigo os amigos para pasmarem com os estran- do achamento desta Terra da Vera Cruz por ocasião da
geiros que tinham saído do mar. Aparentemente festa da Páscoa. Diz Caminha que foi coisa muitíssimo
estrangeiros inofensivos, mas nunca se pode saber! edificante.
Nicolau Coelho tentou-os com braceletes e guizos. Durante todo este tempo na praia do continente os
Eles aproximaram-se, como aves medrosas que não se homens nus olhavam admirados e com grande interesse
atrevem a comer o cibo da mão. Chegaram mesmo a para estes seres de outro mundo que cantavam canções
ajudar a levar água para o barco, mas não se atreve- tão estranhas. Acabado o sermão levantaram-se e dan-
16 CAPITAES DO BRASIL

çaram ao som duma buzina. Depois saltaram para


dentro das almadias e andaram à volta do ilhéu
para verem os portugueses, que, depois da missa,
passearam de barco ao longo da costa e desfraldando
a sua bandeira, seguindo à frente Bartolomeu Dias.
Ele mandou um homem a terra, para se misturar
à multidão. Os selvagens deram-lhe cabaças com água
e não lhe fizeram mal. D~pois os portugueses, com
d uma música de gaitas e trombetas a tocar, voltaram
I para bordo para o jantar dominical.
n
s Naquela tarde discutiram-se na nau capitaina
p assuntos importantes. Não deveria dar-se ao Rei
d
parte do descobrimento desta terra? Talvez ele
d quisesse mandar um navio para a recon~1ecer mais
pormenorizadamente do que uma armada a caminho
da fndia.
Acordou-se em q ue a nau dos mantimentos se
descarregaria e se mandaria ao reino, levando Gaspar
de Lemos, seu capitão, as notícias. Alguém lembrou
que se enviassem também exemplares humanos. Os
degredados poderiam ficar em terra como reféns para
tranquilizarem os indígenas.
A ideia foi posta de parte, por não ser bom usar
de coerção. Afinal poucas informações úteis se obti-
nham de selvagens cativos. Mas os degredados, esses
sim! que ticassem naquela terra. Seriam muito mais
capazes do que os indígenai de darem dela relação
inteligente quando o próximo navio chegasse para
os recolher.
Tendo-se resolvido estes pontos a contento de
todos- talvez com a excepção dos degredados - , o
resto daquele domingo passou-se em terra em agradá-
vel convívio com os índios.
Os portugueses nunca tinham visto homens como
aqueles- tão nus, tâo pintalgados de vermelho e ama- Fotografia gentilmente cedida pelo Sr. Pro{. Luciano Ribeiro
relo vivo, de azul e negro, as suas mulheres mistu-
I
CAPITAES DO BRASIL 17

rando-se com eles vestidas apenas do seu cabelo


negro e comprid<>, em completa inocência e sem
mostras de vergonha diante dos olh9s pasmados dos
estrangeiros. Que bendita inocência! diziam os homens
brancos. Aquela gente estava tão isenta de malícia
como o Homem antes do Pecado.
Cabral divertiu-se com um velho de lábio
todo desformado por uma grande pedra verde, fazen-
do-lhe sinal para que a tirasse, e o velho obedeceu; <e Nó
sey que diaabo falava, escreve Caminha, e hia cõ ela
pera a boca do capitam pera lha meter», com o que
todos os circunstantes se torceram com riso. O capitão
guardou a pedra e deu em troca um chapéu velho; e
assim, brincando e rindo, passearam pela praia, apa-
nhando e comendo rebentos de palmeiras que cresciam
com abundância ao longo das margens.
Noutro ponto mais distante, dançava um grupo de
índios, uns atrás dos outros sem se darem as mãos,
coisa tão engraçada que o brincalhão do Diogo Dias não
pôde resistir. Atravessou o rio para se lhes juntar,
levando consigo o gaiteiro com a gaita de foles.
Pegando nas mãos dos selvagens, fê-los dançar com
ele ao som da música de Portugal. Os índios riam e
seguiam muito bem, diz Caminha, e depois o seu pra-
zenteiro mestre deu muitas voltas e saltos mortais para
deleite deles.
Apesar de todo este alegre convivio os indivíduos
permaneciam receosos. Se, como aves atrevidas, muitas
vezes se aventuravam ao contacto, como as aves o mais
pequeno .receio fazia-os logo fugir. Para onde fugiam
eles? Tenam casas no meio da floresta verde? Em parte
nenhuma havia indícios de choças ou casas. Seriam eles
como os seres bravios das florestas que dormem em
buracos e luras? '
Afonso Ribeiro tinha de passar a noite com eles
para ver, disse o capitão. Naquela noite, Afonso
2
18 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 19

seguiu-os até muito longe, mas nada viu senão medo de passar uma noite a bordo com os estran-
pequenas cabanas de rama verde. e fetos. Os dono~ geiros. Sancho d Tovar, o imediato, deu hospita-
não quiseram que o estrangeiro ftcasse com ~les ah lidade a dois selvagens. Banqueteou-o com as melhores
depois de cair a noite. Amàvelmente, mas com hrmeza, coisas que tinha e mandou fazer para eles uma cama
levaram-no outra vez até à praia. com lençóis. Ao outro dia levou-os a almoçar na nau
No dia seguinte aconteceu a mesma coisa. Depois capitaina, onde Cabral os sentou em cadeiras a uma
dum activo negócio em terra, o capitão mandou mesa coberta com toalha. Não se nos diz quais fossem
Afonso Ribeiro com mais dois condenados para segui- as maneiras dos hóspedes à mesa; apenas sabemos que
rem novamente os índios e, com eles, o engraçado comeram com bom apetite, apreciando em particular o
Diogo Dias, que tivera antes tanto êxito. · arroz e o presunto frio. Um marinheiro deu grande
Desta vez chegaram a uma verdadeira aldeia, que contentamento a um deles oferecendo-lhe o dente dum
constava de nove ou dez cabanas de madeira, cada uma porco montês. Deitando numa ponta um pouco de cera,
das quais tão comprida como a nau capitaina, com o índio colou o troféu ao lábio, «e vijnha tam contente
telhado de colmo e uma pequena porta em cada uma com ela como se tevera húua grande joya».
das extremidades. Dentro não havia quaisquer divi- Parece que desta vez todo o gelo se derreteu.
sões, apenas postes entre os quais estavam presas Os índios estavam encantados com os seus novos
redes de ervas entrançadas, por baixo fogueiras para amigos, embora os não convidassem para irem a suas
aquecerem os que dormiam . Em cada casa viviam casas. Ajudavam-nos a cortar lenha para os navios,
3o a 40 pessoas. Parecia que não reconheciam a dançavam com eles ao som de tamboris comiam da
autoridade de qualquer chefe, nem parece que tivessem comida deles, alguns até bebiam do seu vinho, entravam
qualquer forma de religião. e saíam ~o~, b~téis, to~os queriam que os levassem a
Os portugueses arranjaram maneira de jantar com bordo, pn vtlegto que so era dado á alguns e~colhidos.
os índios. Dizem eles que a comida parecia consistir Um dest~:s foi ~ pri~eiro hóspede de Cabral, que
de inhame e outras raízes e sementes. A noite de novo reapareceu '!m ~ta vestido co':l a camisa que lhe tinham
não conseguiram que os autorizassem a ficar ali. 03 dado da pnmetra vez. Depots ele e um companheiro
seus hospedeiros estavam resolvidos a não consentirem passaram outra noite na nau capitânia numa boa cama
estrangeiros a dormir no meio deles. Depois de com colchão e lençóis, na esperança 'diz Caminha de
escurecer, o grupo voltou para bordo, levando os os civilizarem ! ' '
maiores e mais belos papagaios que tinham visto, além . Com tudo isto passara mais de uma semana.
de pequenos periquitos, e enfeites de penas de cores Tmham-se abastecido sufici~ntemente de lenha e água.
vivas trocados por ninharias. Diogo Dias e Afonso Da nau de Gaspar de Lemos haviam-se retirado as
Ribeiro tentaram mais urna vez dar-se por convidados reservas para as distribuírem pelas unidades da armada.
no dia seguinte, mas nada obtiveram com a sua tenta- Mestre João, o físico do rei com os pilotos e o o·rande
tiva senão mais papagaios. ast~ol~bio, fizera observaçó~s em terra, determi~ara a
Todavia, apesar de não quererem os homens postç~o (cerca de r 7° de latitude sul), observara o
brancos a dormir na sua cabana, os índios não tinham Cruzetro do Sul, e escrevera um relatório destas coisas
20 CAPITAES DO BRASIL 21
CAPITAES DO BRASIL

para o rei. A untca coisa que faltava antes de Evangelho foi lido, e ccque nos erguemos todos e pee
partirem era deixar um padrão a reclamar a terra para com as maãos 1evantadas, eles se levantaram có
Portugal contra todos os que viessem. . nosco e alçaram as maãos, estan o asy ataa seer
Para isso os carpinteiros fizeram uma. cruz gtga~­ acabado e entam tornaranse aasentar coma nos».
tesca, para ser erguida na praia. Os índt~s, marav!- E quando se ergueu a hóstia, todos ajoelharam, «eles
lhados, assistiram ao trabalho deles. Cammha supoe se poserã todos asy coma nos estavamos cõ as maãos
que não estavam tão interessados p_ela cr~z como levantadas, e em tal maneira asesegados que certifico
pelas ferramentas de ferro dos carpi~teuos, pois nunca a vosa alteza que nos fez muyta devaçom».
tinham visto aquele metal; «eles no teem co usa que Parece que o sermão também lhes atraiu a
de fero seja e cortam sua madeira e paaos com pedras atenção. A tala fluente e os gestos do homem branco
feitas coma cunhas metidas em huú paao antre duas eram, sem dúvida nenhuma, interessantes de ver.
talas muy bem atadas•, escreve ele. . . Quando tudo terminou, Nicolau Coelho apresentou
O capitão disse que os índios devta~ ser e~si­ grande quantidade de crucifixos que f!caram dos que
nados a reverenciar a Cruz como se devia. Por tsso ele levara na sua primeira viagem à India, dando-se
todos os brancos ajoelharam e beijaram o s~m?olo uni a cada índio para o trazer ao pescoço. Frei
sagrado, indicando por sinais aos que as~t~tt~m, Henrique mostrava-lhe como primeiro devia beijá-lo,
que deviam fazer ..o mesmo. Sempre prontos a tmtta: erguendo as mãos em oração. Agradados do que era
ção, os índios beiJaram a _cruz c~mo lhes mandavam~ evidentemente uma forma nova de feitiço, os índios
ccpareçem jente de tal moçencta que se os home obedeceram com compostura adequada.
emtendese e eles nos que seriam logo christãos, por Que almas boas e simples ! Que inocência
que eles nó teem nem emtendem em nenhúua creemça celestial! A gente como aquela podia ensinar-se-lhe
segundo pareçe», diz Caminha. . . tudo! Pero Vaz de Caminha, que durante toda a
No dia 1 de Maio, uma sexta-feua, segumdo os semana estivera a escrever ao Rei a sua carta-diário,
padres a cantar à frente, a cruz foi lev_ada em solene ficou entusiasmadíssimo. Se os dois condenados, que
procissão até à margem. Tendo esculptdas as armas deviam ficar ali, aprendessem bem a língua, poderiam
de Portugal levantaram a grande cruz à entrada ensinar a fé cristã aos indígenas. Com certeza o
da floresta;' ergueu-se um altar por baixo ~ n~le Senhor levara a armada àquela terra expressamente
disse missa Frei Henrique, enquanto 5o ou 6o mdtos para tal fim.
se juntaram à volta para ver e ouvir. Só uma mulher Que linda terra era! Para o norte e para o sul,
estava com eles, uma rapariga, nua e inocente ~o~o semelhante a uma fita branca, estendia-se a praia de
a Mãe Eva. Houve alguém que, por amor da dec_encta, areia, cortada aqui e ali por tratos de terra vermelha
lhe deitou às costas uma manta. A moça nao ~ez na orla da floresta verde. Árvores de nobre porte
qualquer obj ecção, porém, notou -se, pô-la de tal maneira cre~ciam ali, estendendo-se até perder de vista -as
que não tapava nada. , . . ma~s altas, mais frondosas, mais belas árvores, de
Mas tirando esta falta de vestuano, a atitude vane?ade multitorme, numa floresta que parecia não
dos índios era perfeitamente edificante. Quando o ter ftm. Na sombra luminosa andavam macacos e
.22 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 23

brilhavam asas de aves multicores; ribeiros de águas Lemos encarregou-se de as levar juntamente com as
cristalinas serpenteavam desde as profundezas das amostras estranhds e rescendentes da floresta: plantas
clareiras até ao mar; o clima parecia excelente, nem e madeira, arcos e setas, enfeites dos selvagens e papa-
quente nem frio. gaios de cores berrantes a falarem com gritos línguas
Havia ali um solo virgem que ninguém tinha ainda desconhecidas.
arroteado. Os indígenas «nó lavram nem criam nem Portanto, desterraram-se as velas e colheram-se
ha aquy boy nem vaca nem cabra nem ovelha nem as correntes das âncoras, içaram-se os batéis, as alte-
galinha, nem outra nenhúua alimarea que costumada rosas naus saíram lentamente pàra o mar, seguidas
seja ao viver dos homees, ne comem se nó dese inhame pelos olhos saudosos dos dois homens que ficaram na
.que aquy há muito e desa semente e frutos que a tera praia, entre os sei vagens nus, à beira do deserto sem
e as arvores de sy lançam, e com isto andam taaes e fim. Os missionários involuntários choraram amarga-
.tam rijos e tã nedeos que o nó somos tanto com mente ao ver partir os companheiros, e os selvagens
quanto trigo e legumes comemos». reunidos à volta deles pareciam consolá-los ou assim
E todos estes poderiam bem ser cultivados ali. julgaram os observadores a bordo dos navios que se
Era uma terra graciosa e «querendoa aproveitar darsea afastavam, vendo o grupo diminuir de tamanho e des-
neela tudo per bem das agoas que tem». Mas, pensa vanecer-se diante dos seus olhos. Que lhes âconteceu
Caminha, o melhor fruto em que o rei poderia pôr a sua depois? Nada de certo se sabe. Tão-pouco podemos
esperança seria a salvação daquelas almas sem pecado! dizer qual foi a sorte de dois marinheiros que deserta-
Se um padre fosse mandado com a próxima nau de ram da armada e se esconderam em terra. A grande
Portugal, ele encontraria os indígenas prontos para o floresta verde, tal como o mar, envolve um homem e
baptismo, graças ao ensino dos condenados. Por isso absorve-o sem deixar rasto.
Caminha diz ao rei que <<esta deve ser a principal Os homens a bordo das 12 naus iam ao encontro
semente que vos a alteLa em ela deve lançar. . . pera do seu destino -uns, com Bartolomeu Dias para uma
se nela conprir e fazer o q vossa alteza tamto deseja- sepultura nas águas revoltas em frente d~ Cabo de
o acrecentamento da nosa santa fe». Boa Esperança, que ele tinha descoberto-outros com
Com este tom elevado termina a famosa carta, Caminha, para serem trucidados em Calicute. s6 seis
datada «deste porto seguro da vosa jlha da vera Cruz das do.ze, n.aus regressaram com o capitão para contar
oje sesta feira prim0 dia de mayo, de 1 5oo». Foi uma htstona do mar e de tempestades de sinos de
também esse o fim da encantada semana junto t~mpl~~. hindus, de minaretes na África,' das especia-
daquelas praias paradisíacas onde o Homem andava ~Ias.e JOtas, do esplendor e da miséria, das traições, das
na sua 'inocência primitiva como na manhã da Cria- mtngas e de sangue do Oriente.
ção. A armada devia levantar ferro e atravessar Entre as memórias daquela violenta odisseia des-
dois oceanos até a os antigos reinos do Oriente, e taca-se o episódio de Vera Cruz, destes poucos dias
Gaspar de Lemos tinha de voltar a Portugal para passados num Éden do Ocidente, que havia de ficar
falar ao rei a respeito do seu novo domínio. n.a lembrança como um suave idílio dum mundo mais
Assinaram-se e selaram-se cartas, e Gaspar de stmples e primitivo.
li

Papagaios e pau brasil

Esta terra <<. • • pareçeo que noso Siinor milagro-


samente quys que se achasse por que he muy convi-
niemte e necesaria a naveguaçam Da Jmdya» 1 assim
escreveu D. Manuel, a respeito do novo descobri-
mento, aos seus primos castelhanos.
Foram estas as suas primeiras reacções ao consi-
derar os seus novos domínios. A Índia- a fonte prin-
cipal do comércio das especiarias, empório mundial
da pimenta, a arca do tesouro de pérolas, rubis.
e diamantes -enchia de luz o horizonte do seu
tempo, e tudo se via por esse prisma. Era preciso.
organizar a viagem anual à índia para trazer as espe-
ciarias para a metrópole, e para isso que útil ponto de:
escala seria esta terra ocidental! Situada, como se
encontrava, na direcção dos ventos, as naus podiam·
ali meter lenha e água depois de seis semanas no mar,
antes de fazerem a travessia do Oceano em direcçãO<
ao Cabo.
Quanto ao que a Terra da Vera Cruz produzia, isso
parece não ter despertado um entusiasmo por aí além.
CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 27

Certamente que os papagaios eram maiores e mais veneziano, escreveu à chegada dos navios de Corte
lindos do que quaisquer outros, havia-se encontrado Real a Lisboa, que aqueles expedicionários supunham
-algodão e canafístula- útil purgante- mas nada de que aquele litoral fazia parte dum continente e «estar
pedradas ou ouro. As árvores pareciam ser a única ligada (a terra) com as Antilhas que foram descobertas
Tiqueza da terra. Gaspar de Lemos dissera ter visto pela Espanha e com a Terra dos Papagaios ultima-
florestas de pau brasil-essa madeira vermelha muito mente .achada pelos navios deste reino que foram a
-dura de que na Idade Média se fazia cor para a Calicute» ('). A esta suspeita acrescenta o grande cos-
tinturaria. Os mercadores examinaram com inte- mógrato Duarte Pacheco a sua opinião em I 5o6, escre-
-resse as amostras que ele trouxera, dizendo que vendo: «Se estende a satenta graaos de ladeza da
eram de muito boa qualidade, troncos grossos cujo linha equinocial contra o pollo artico ... e do mesmo
-âmago produzia uma cor viva, julgando esta tinta circulo equinocial torna outra vez e vay alem de vinte
tão boa como a asiática até então conhecida, e oito graaos e meo de ladeza contra o pollo antartico
-sendo afinal pelo nome desta madeira que a nova e tanto se dilata sua grandeza e corre com m-aita lon-
terra ficou a ser conhecida. Terra da Vera Cruz cha- gura que da uma parte nem da outra nem foi visto
mou-lhe Cabral quando plantou o símbolo da nossa fé nem sabido ho fim e cabo della pelo qual segundo ha
naquelas praias. Terra de Santa Cruz achou o rei que bordem que leva he certo que vay em cercoyto por
-d evia chamar-se -mas as intenções piedosas foram toda a Redondeza» (2).
iludidas pelo demónio. Diz João de Barros que o Mali- Todavia, ao contrário de Colombo, os Portugueses
.gno ficou muito aborrecido com a chegada dos Cristãos nunca supuseram que este continente fosse a costa
àquela costa pagã. O seu poder não podia prevalecer oriental da Ásia, nem esperavam encontrar passagem
contra a Cruz que ali ficara erguida, mas o diabo vin- através dela como caminho mais curto para o Oceano
.gou-se movendo os corações dos materialistas, esque- Índico. Portanto, não é de surpreender que, durante
cidos da Santa Cruz, a pensarem e a falarem desta os poucos anos que se seguiram, absorvido como estava
terra apenas como Terra do Brasil. E assim lhe cha- pelas ilusões e realidades da !ndia, a organizar o
mou em breve toda a gente, apesar dos protestos comércio da pimenta que ia tornar-se o seu monopólio
devotos- Terra do Brasil, ou, de modo ainda mais real, a negociar com os reis orientais, a reunir arma-
leviano, Terra dos Papagaios. Apenas os documentos das com grandes despesas para defrontarem os ataques
oficiais conservaram o nome edificante, referindo-se à dos Turcos do Oriente, o rei tivesse pouco tempo
«minha terra» ou à «minha ilha» de Santa Cruz. para dar atenção à terra ocidental do Brasil.
Durante alguns anos debateu-se ainda a questão: Como quer que seja, dizer que ele não se inte-
se era de facto ilha ou parte dum continente. Os ressou seria errar muito. Mandaram-se naus explorar
melhores cosmógrafos de Portugal estavam conven- a costa desde o primeiro ano do descobrimento, mas,
cidos de que esta costa do Brasil continuava
aquela em que Colombo desembarcara dois anos
antes, costa que descia do Norte gelado aonde Gaspar (1) Carta de Pietro Pasqualígo, citada na História da Colonização Por-
tuguesa do Brasil. Tomo I, pág. LV, nota 56.
Corte Real chegara em I 5o r. Pasqualigo, embaixador (2) Duarte Pacheco, Esmeralda de Situ Orilis,
28 CAPIT.AES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 29

embora totalmente comissionadas pelo rei, estas topou com esta terra assim a qual terra se cree ser terra
parece terem sido financiadas por particulares. O capi- firme em a qual a muyta gente de descriçam andam
tal real já estava completamente investido no sedutor nuus ornes e molheres como suas mais os pario sam mais
empreendimento da Índia. Por isso incitavam-se os brancos que baços e teem os cabellos muyto corredios
mercadores a explorarem os recursos do Brasil. Equi- foy descoberta esta dita terra em a era de quynhentos» (1).
pavam-se naus à custa deles, reservando o rei o quinto Tal to; a primeira aparição do Brasil no mapa-
dos lucros e mandando completar os mapas com todas -mundi. Nos anos imediatamente consecutivos sabe-se
as informações obtidas. que se explorou o litoral desde a foz do Amazonas,
Estes mapas eram fechados a sete chaves nos na linha equatorial, até à costa rochosa que se estende
arquivos secretos; a toda a volta andavam os espiões para o sul do Trópico de Capricórnio. Infelizmente fal-
italianos com olhares irrequietos e de bolsa bem tam as descrições destas viagens. Sabemos delas atra-
recheada. Por I 2 ducados de ouro e. por meio de vés de referências em documentos, pelos nomes do
manobras nos bastidores, que nós ignoramos, um mapa e por alusões em cartas.
Alberto Cantina obteve, para seu amo Hércules de A única pessoa que fez o relato das primeiras expe-
Este, um magnífico planisfério. dições ao Brasil é uma em quem é difícil acreditar
Esta obra de arte, que um coleccionador do · ~mit?. Am.érico Ves~úcio era um florentino de espí-
século XIX salvou das mãos dum negociante de chou- nto IrreqUieto e cunoso, de tendência aventurosa e
riços, pinta o mundo tal como e se conhecia em Por- pena fácil. Fez quatro viagens para ocidente, duas sob
toga~ em J So2. A Atrica e o Oriente- e isto é que era o pavilhão de Castela e duas em navios de Portuo-al o ,
constderado do maior interesse- são indicados com navegando ao largo da costa brasileira, escrevendo des·
certos pormenores e razoável correcção, enquanto em cr!ç.ões animadas das suas viagens aos amigos da
frente do vigoroso leão sorridente, que está sentado Itaha. Desde então, os historiadores têm discu-
sobre a Atrica ocidental apertando a bandeira de tido acerca do lugar exacto até onde América Ves-
Portugal de encontro ao largo peito, vemos uma linha púcio foi e qual era o seu cargo na armada.
de costa encurvada, que nos intriga. Junto da praia Pela maneira como fala, talvez fosse capitão gene-
levantam-se ervas ondulantes. Sobre a relva verde ral, cosmógrato-mor e primeiro piloto. Ao mesmo
três soberbas araras vermelhas, de costado azul ~ tempo, pelas suas referências parece concluir-se que
amarelo e tremendos bicos, pavoneiam-se sob um havia outro comandante da armada-de quem Américo
bosque de árvores altas e de forma cónica, que se n.ão pensa~a ':lmito bem- e, quando chega aos conhe-
repetem em miragem azul por detrás delas. Alguns rios cimentos nauttcos e cosmográficos as latitudes de Ves-
e cabos têm nome, e Po'rto Seguro está indicado com púcio são desorientadoras, as su~s observações vagas
a seguinte inscrição : e as suas descrições pura literatura.
«A Vera Cruz chamada per nome a quall achou A sua primeira viagem ao Brasil realizou- se
Pedralvares Cabrall, lidalgo da cassa dei Rey de Por- parece, em I 5o 1. Diz ele que o rei de Portugal ~
tugall, indo por capitam moor de quatorze (sic) naos
que o dito Rey mandou a Caliqut y en el caminho indo (1) História da Colonização. Tomo 11, pág. 265.
30 Ct\PITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 31

mandou chàmar urgentemente a Sevilha por meio dum chegaram em Setembro de 1 Soz, eca salvamento, por
convite insistente - não diz Américo porquê, nem graça do Senhor», mas não sabendo que preparavam
nós o sabemos. uma grande dor de cabe·ça aos historiadores futuros
Saiu de Lisboa com três navios- não nomeia quando pr curassem reconstituir o seu itinerário.
o capitão- «A minha intenção era navegar para Da vez seguinte que Vespúcio navegou pelo
o Sul pelo mar Atlântico». (I) Essa intenção era, Atlântico, parece pensar ir a caminho de Malaca.
sem dúvida, regulada pelo «regimento» que levava o Diz que saiu de Lisboa em 1 5o3, com uma armada
comandante da armada, mas como tal documento de seis navios, a 10 de Maio.
não chegou até nós, não podemos falar com precisão. O capitão general- anónimo como de costume-
Os três navios desceram a costa brasileira. era homem vaidoso, que navegou até à Serra Leoa
O nosso autor pensava que ela era uma terra verde e simplesmente para se mostrar (a quem?) como coman-
agradável, mas que nada se podia ali encontrar que dante daquela armada. Tendo atravessado por fim o.
tivesse valor; o que lá h a via era apenas uma quanti- mar, este pateta incompetente conseguiu encalhar o
dade infinita de árvores de tinturaria, mirra e canafístula. seu navio num recite a umas 4 léguas da costa duma
Os navios detiveram-se em muitas enseadas que ilha montanhosa. Dàqui mandou Américo efectuar o
Américo não indicou pelo nome, e viu muito mais reconhecimento à procura dum porto. Portanto, o
coisas, diz, do que as que descreveu. Navegaram desde nosso tlore-ntino navegou à roda da ilha, chegando a
8° até 32° de latitude sul, mas, com grande desapon- uma excelente enseada, ali esperando pelos outros.
tamento seu, não encontraram quaisquer indícios de navios, mas só um apareceu. Os outro~ quatro, ao.
ouro ou metais preciosos. que parece, perderam-se, e os dois restantes jun-
Resolveram seguir para os mares antárcticos,. taram-se.
para o que, diz Vespúcio, e isso surpreende-nos~ Era junto de uma ilha deserta que eles se
«O comando da armada foi-me inteiramente con- encontravam. Os únicos ir:dícios de vida eram lagar-
fiado»! Ele levou os navios, por mares agitados,. tos, cobras, ratos enormes e aves tão mansas que se
até latitudes elevadas, até Sz• onde o frio era intenso, podiam apanhar à mão. Os marinheiros carregaram
e, por entre a neblina que ali fazia, avistaram os rochedos um batel com elas para servirem de alimento, e depois·
escuros duma costa desconhecida e desolada. AH fizeram-se de vela para a costa brasileira. Navegaram
«O nosso capitão general», que ressuscita tão inespera-- ao longo dela durante z6o léguas, encontraram um
damente como desaparecera antes, resolveu seguir· bom porto e ali permaneceram durante cinco meses a
rumo em direcção à costa africana. construir um forte e a carregar paus de tintu-
Assim, deixaram os sombrios mistérios daqueles. raria. Ficaram ali 24 homens de guarda com doze-
mares polares para atravessarem o Oceano em direcçãQ.. b~mbardas e outras armas, além de provisões para
à Serra Leoa, daqui até aos Açores e Lisboa, aonde.
• sets meses. Depois os dois navios partiram para
Portugal, onde toda a gente os recebeu de braços
abertos, pois supunham que eles se tinham perdido,
(1) -Versão portuguesa do texto da 3. 8 Viagem de Vespúcio, cit. ll"'-
ob. cit., pág. !99. Deve notar-se que não se falou mais em Malaca.
32 CAPITAES DO BRASIL

Tem-se identificado a viagem de Vespúcio com


a de Gonçalo Coelho, que nesse caso seria o capitão
que América disse ter-se perdido por causa da sua
loucura e orgulho. Damião de Góis diz resumidamente
que Coelho levou seis navios a Santa Cruz em I 5o3,
que quatro naufragaram junto da costa e dois regres-
·saram com pau brasil, papagaios e macacos. Mas
'Gonçalo Coelho não morreu nesta viagem. Sabe-se
que ainda vivia em I S22 e que voltou ao Brasil em
:mais de uma ocasião.
A ilha das aves mansas de Vespúcio é a de
Fernão de Noronha- ou Loronha como era costume
chamar-lhe, ou a ilha de S. João do mapa de Cantina.
Não foi descoberta por Vespúcio em I 5o3, mas dois anos
.antes por algum navio pertencente a Fernão de Loronha.
Este indivíduo, cujo nome se tem muitas vezes
confundido com o dos nobres Noronhas, era muito
provàvelmente um cristão-novo. Homem de negócios
como os seus irmãos de raça, foi como presidente
-duma companhia de mercadores que o rei the conce-
-deu o comércio do Brasil por meio de contrato válido
.p or três anos. Durante o primeiro ano, nada pagaria;
no segundo, um sexto, e no terceiro um quarto dos
lucros reverteriam para a Coroa. Ao mesmo tempo
deviam explorar-se todos os anos 3oo milhas de costa,
-e levantar-se feitorias fortificadas de espaço a espaço,
devidamente guarnecidas com gente para o comércio
·e a defesa. Este contrato era bastante parecido com o
que D. Afonso V, tio de D. Manuel, celebrara em 1489
com Fernão Gomes para a exploração do comércio
-da Guiné e da costa atricana.
Provàvelmente, a viagem de Vespúcio foi uma
<las de descobrimento, e apesar das suas perdas,
-p arece ter sido proveitosa. Fernão de Loronha reno-
vou o seu contrato por dez anos, desta vez mediante
.a renda anual de I ooo ducados pelo monopólio das
O Brasil no planisfério de Cantino.
CAPITAES DO BRASIL 33

madeiras de tinturaria. O rei estava resolvido a


apoiá-lo, e concordou e?J proibir todas as imp.ortações
dessas madeiras do Onente, pelo que o Brasil se tor-
nou o principal abastecedor do ~ercado mun,di~L
Assim servia-se a geografta e o comercio, e a
costa brasileira ia-se explorando aos poucos. Dizem que
os capitães regressavam encantados. A sua compara-
ção mais comum era com o Paraíso. Quanto aos degre-
dados escreveu um italiano depois de ouvir contar as
histórias deslumbradoras- não queriam voltar mais
do seu degredo, porque a Terra de Santa Cruz era
«de ar delicioso e muito abundante em frutas dul-
císsimas». Os exploradores falavam das costas de
fresca verdura perpétua, de ribeiros cristalinos e rios
majestosos, e de como em toda a extensão do mar,
semelhantes a castelos nas nuvens, fantásticas mon-
tanhas de cumes azulados se erguiam acima da névoa
que se desfazia sob os raios quentes do sol. Todos os
viajantes concordavam que era uma terra adorável-
quanto mais se via, mais encantos se lhe encontra-
vam. Era verdade que não se encontravam lá pedras
~u metais preciosos; mas quem sahe quantos tesouros
estariam escondidos para além dos montes?
O único desapontamento era o nobre selvagem.
O sonho de inocência edénica de Caminha desvanece-
ra-se! Aquelas almas sem mancha, que lhe pareciam
semelhantes ao Homem antes do Pecado, iam em breve
causar algumas surpresas desagradáveis aos seus com-
patriotas. A desilusão veio no ano imediato durante
a viagem que Vespúcio descreve. '
Segundo o fll)rentino, dois homens foram manda-
dos a terra, junt? da c~sta ~rasileira, para negociarem,
mas passados cmco dias amda não estavam de volta
Um grupo saiu à procura deles, encontrando-se co~
um band.o de mulheres índias nuas de cabelos negros
e compndos . Elas pareciam desconfiadas e pouco à
3
34 CAPlTAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL 3>

vontâde na presença dos brancos, por isso os mari- muitas vezes desobedecidas, mas a política metropoli-
nheiros retiraram-se para os seus batéis, exceptuando tana era inalterável: udefemderes ao mestre e a toda
um rapaz que ficou para ganhar as boas graças delas. a companha da dita naoo que nó faça nenhú mall nem
Vendo-o sozinho, as mulheres cobraram ânimo e junta- dano a a gemte da terra» C) como se lê no ((regi-
ram-se à volta dele mostrando interesse. Picaram-no mentO>> da nau Bretoa, que saiu de Portugal para o
todo 1 com gestos de grande espanto. Os companheiros Brasil em I 5 I I.
assis tiam à quilo di vertidos e sem receio. Não eram Esta nau Bretoa pertencia à companhia de
aquelas selvagens gente inofensiva? Fer.::tão de Loronha e destinava-se ao Cabo Frio para
Qual não foi o seu horror quando de repente aí se abastecer de pau brasil. Seu capitão, Cristóvão
viram uma velha fúria vir a correr em direcção à Pires, vivia em Lisboa, na Rua Nova. Também
cena e brandindo um enorme cacete, que deixou cair conhecemos os nomes e as moradas de 55 membros
com toda a força na cabeça do rapaz. Quando ele da companha da nau, registados pelo escrivão
caiu sem um grito, as outras mulheres arrastaram-no Duarte Fernandes.
pelos pés, ao mesmo tempo que da espessura do mato Saíram de Lisboa a 23 de Fevereiro de I 5 I I, e
se levantava uma nuvem de setas que caíam nos a I2 de Março o capitão leu o seu <<regimento» à
batéis. tripulação para ela saber como devia proceder e o
Tudo aquilo aconteceu antes de os brancos que tinha a fazer.
poderem correr às armas. Alguns pegaram numa Além de evitarem toda a ofensa, como dissemos,
bombarda e fizeram-na disparar, o que afugentou sob pena de perderem metade dos salários, ninguém
os guerreiros para o monte, onde as mulheres se podia trocar armas com os índios. Os únicos instru-
tinham juntado à volta duma fogueira. Como hienas, mentos que se lhes poderiam dar seriam facas e
elas estavam a despedaçar a sua vítima membro por tesouras. Se alguns dos indígenas quisessem ir viver
membro e assando os ped~ços no fogo. · em Portugal, de modo nenhum lhes deveriam dar
Estes habitantes do Eden eram canibais- ugente passagem upor que se a!lgús qua fallecem cuidam
peor que animais» (1), gritavam os brancos horrori- eses de lia que os matam pera os comerem segúdo
zados, que pediam sanguinária vingança em altos amtre elles custuma» (2).
brados ; mas o capitão conteve-os. Os seus homens, . Os marinheiros da nau Bretoa não deveriam
diz Vespúcio, pensaram que ele estava a mostrar uma JUrar- nem por Deus, nem por Nossa Senhora, nem
fraqueza indesejável, mas provàvelmente obedecia a pelos Sant~s: Os transgressores perderiam 3 mil réis
ordens. Os reis de Portugal esperavam que os seus dos seus salartos em favor do Hospital e quando o navio
capitães metessem no fundo uma embarcação muçul- voltasse a Lisboa seriam desembar~ados com ferros.
mana, logo à primeira vista, mas deviam evitar ,Navegando. de vento em popa, e (assim o supo-
quaisquer hostilidades com os bárbaros ignorantes. mos·) tendo cutdado com as línguas, os marinheiros
Na liberdade das selvas é certo que estas ordens eram
(1)-0b,-..b cit,. pá•
.0 ' 344·• Regrmento
· d a nau Bretoa
(2) - '"' • e&t, pag 345 ·
(1)- Loc. cit. pág. ~08
.,.

36 C.'\PlTAES DO BRASY..
CAPITAES DO BRASIL 37

chegaram ao Brasil e no dia 26 de Maio ancoraram


em frente da costa rochosa e praias brancas do Cabo faziam-na correr um pouco para leste. Ai~da se não
Frio. No dia I 2 de Junho veio para bordo o primeiro tinha encontrado o processo exacto de medtr os gra.us
carregamento- 3 I 7 troncos ?a . perfumada m~deira de longitude, e os geógrafos ,P?rtugueses, por patno-
de tinturaria. A 24 de Julho atmgtra a carga o numero tismo aproveitavam-se das duvtdas. d .
de 5oo8. O' f acto d e o novo mundo
, .
se tornar e mteresse
a Portu al
o ular não se devia sem duvtda alguma, g ··
Sabemos também que eles levaram 3 5 escravos-
homens, mulheres e crianças. Ignoramos como, f?i ~r~fundamente ab::or~idos pela sua ~iss.ã~ de desctbn- i,
dores como eram os portugueses,, nao tt~ am qua quer
aquilo, visto que não deviam fazer qualquer especte ·
de mal. Com certeza não podiam ter sido raptados, mteresse por que outros
· tambem se mteressassem. f r
A entrada recente de Castela no me~mo c~~po ora
por isso podemos supor que _os infelizes tinham sido bastante mau- tornava-se portan~o mdesejavel que
vendidos pelos seus companhetros. , . . outros países europeus se sentissem tentados a
Toda a gente levou para a patna papagatos e
competir.
sagnis. O capitão arranjou três papa~a~os e ~o.is Os Portugueses são, por natureza, tntmtgos
periquitos e ainda um gato bravo. O escnvao adqum_u da publicidade. Se se obtivess~m inf?rmações. só
um papagaio, e o mestre dois gatos alé.m dum sag':u; por intermédio deles, o mundo podta ter ~~c~do muttos
o carpinteiro teve dois gatos e três macacos. E ~sstm anos sem a consciência dos seus novos ltmttes. Era o
por diante com toda a gente de bordo. Toda a btch.a- Italiano tagarela quem divulgava os factos . As
rada que seguia na nau estava avaliada em 24.220 reats, cartas de Américo Vespúcio publicaram-se e logo
de que havia de se deduzir 7 mil réis para a Cor?a· tiveram venda extraordinária. Esse novo mundo que
É isto o que conhecemos acerca da vtagem ele não descobrira, mas a respeito de que falava tanto,
da boa nau Bretoa, a única de que no decurso acabou por se tornar conhecido pelo seu n?me, e
destes anos se conhecem factos concretos regis- nenhum dos geógrafos que realm ente conhectam os
tados. factos se preocupou com protestar contra iss~. _Em '
A exploração do Brasil não era divulgada em Portugal ninguém se incomodou com o que se dtzta a
Portugal, e isso por razões várias, sendo a principal respeito de Vespúcio ou da América. Os mercado!es
o tratado de Tordesilhas. Os cosmógrafos sabiam, italianos eram autorizados a embarcar nos navtos
com tristeza, que a linha divisória arrebatava a de Portugal, ou- melhor ainda- a investir os seus
Portugal todos os territórios ao norte do Amazonas, capitais em carregamentos. E conquanto não pudes-
e a costa que se estendia para oeste desde o Rio da sem meter o nariz nos Arquivos do Estado ou nos
Prata, ao sul, afastava- se ainda mais do meridiano de mapas secretos, tinham liberdade para falar à vonta~e
Tordesilhas. Todavia, rumorejava-se que para aqueles do que viam e ouviam. Portugal só apertou os cor~eh­
lados havia ouro e prata; por isso dirigiam-se expe- nhos quando os estranaeiros em navios estrangeuos
dições para o sul, enquanto as autoridades fechavam tentaram visitar as terr~s recém-descobertas debaixo
os olhos e os cartógrafos cozinhavam os seus mapas. da sua própria bandeira. · . .
Os traçados oficiais da costa do novo continente Oficialmente ninguém tinha esse dtretto. A bula

111& ..... --~~- -_


39
CAPITAES DO BRASIL
38 CAPITAES DO BRASIL

•. b os que transportavam frutas do Algarve


papal que dividira o mundo entre as coroas de Pact1tcos are . eram tao
- pen-
·
Portugal e de Castela ameaçava de excomunhão - nem mesmo os ·os mou ros de Barbana
É h
portugueses. claro que ouve
os competidores. gosos para os navi ·
rotestos e houve represálias que, por sua vez, ext-
. ~~s primeiros tempos não houvera nenhum. Quando P. ' t a protestos Os governos conservavam a
histonas horríve~s ved~vam o Mar Tenebroso, quando g1ram con 'd zr _de
- ·
nenhum dos lados convmha. uma
se s.upunha ser ~mposstvel ao homem viver para além sua po l1 e . d' -
quebra da paz- ma~ r;be.ntou a m tgnaçao e pro-
da lmha equatonal, quando se dizia que os baixios e
~s cor:entes em frente da costa de Africa tornavam duziram-se actos de v10lencta. _
Todavia os bretões e normandos nao eram ap~nas
tmpos.stvel o regresso de qualquer viagem, os soberar.os aves de rapina, mas homens do mar ousados e p~nto~,
da Cnstandade e os seus súbditos contentaram-se com capazes de navegar até muito longe. Eles quenam tr
deixar a investigação dos mares desconhecidos aos procurar a sua fortuna nas costas distantes que tinham
entusi~stas da têm~era do infante D. Henrique.
sido recentemente trazidas à luz, e, sem se preocuparem
. So quando velO ouro da Guiné e açúcar fino das com todas as bulas do Papa, foram lá simplesmente .•.
dhas, quando as especiarias da índia e do Oriente
era~ trazidas, através do Cabo, para Lisboa e se
e todas as vezes que puderam.
Não era muito fácil, pelo menos para aqueles que
haviam descoberto as ilhas paradisíacas do Ocidente é se tinham aventurado a ir ao Oriente. Só os Portu-
que os príncipes da ~uropa s.e mostraram preocupados gueses conheciam todos os cordelinhos ; eles tinham
e um pouco ressenttdos. Dtz-se que Francisco I de registado todas as costas, tinham posto pé e~ todos
França observou que gostaria de ver a cláusula do os pontos e estavam em guarda contra os mtrusos.
Testamento de Adão que dividia o mundo entre os Uma armada bem municiada saía todos os anos de
seus irmãos de Castela e de Portugal, deixando-o a Portugal para aproveitar a monção de Moçambique.
ele de fora! A armada de Portugal vigiava o Oceano Índico, as
•#• A bula ~o Papa não devia ser disputada por filhos fortalezas de Portugal dominavam as costas desse mar.
flets da IgreJa, e diplomàticamente teve-se de reco- O novo mundo era um caso diferente. Ali, em
nhe~ê-la, mas não podia esperar-se que rudes mari- frente de léguas e léguas de costas desoladas e sem
nheiros da Bret$nha e da Normandia compreendessem defesa, era fácil desembarcar e meter um carregamento
tal matéria. Então que se fizessem de vela e tentassem de pau brasil. E se acontecesse haver um navio que
a sorte, pois o seu amo não podia estar sempre a olhar desafiasse alguém, era fácil fazer-lhe frente e lutar em
para eles!
igualdade de circunstâncias.
E eles assim fizeram, afoitando-se aos mares a Por isso os aventureiros marítimos da França
reclamar a sua parte. Devemos confessar que a ~ua puseram-se a cruzar o Atlântico. Frequentavam a costa
reclamação da liberd~de dos ~ares tomava frequente- brasileira, carregavam pau brasil e negociavam com os
ment~ a for~a de stmples pirataria. Punham-se à indígenas. Muitas vezes iam e vinham sem ninguém os
espreita e catam sobre as caravelas carregadas que ver nem lhes deter o passo. De outras vezes encontra-
·r egressavam da costa da Guiné, apossavam-se dos car- vam uma caravela ou navio redondo de Portugal e
cegamentos de açúcar da Madeira, interceptavam os
40 CAPITAES DO BRASIL
CAPIT AE5 DO BRASIL 4

então o choque era terrível. Ambos os grupos se batiam · nav1'os e ordem de limpar a costa de-
bravamente, o sangue corria pelo convés e não havia Brasi l com seis
quartel. Fosse qual fosse o navio capturado, seria franceses. ., .
· t'ova"o Jaques nao era estrangeiro
C ns .. como
d o. seu
tomado de abordagem, tripulado e levado para a terra sobrenome parece indicar. Erab p~rt?gues ~, ong~m
do vencedor, desapossado o vencido de todo o seu catalã e conhecia bem a costa ras1 eira_, que Ja exp o-
tesouro.
Os lamentos da vítima expoliada chegavam até rara. s a bia onde os intrusos., se podenam
d' encontrar.
.
Homem duro e enérgico, nao acre 1tava em metas.
às salas do paço. Então mexiam-se os diplomatas dum
lado para o outro, trocavam-se notas, as chancelarias medidas. , d T d
Encontrou três na vi os bretões na Bata e o os-
esgotavam a tinta. O rei de França e o rei de Por- -os-Santos, e atacou-os de modo terríve;. Meteu-?s no-
tugal trocavam cartas de surpresa dolorosa. Em aten- fundo e expulsou os homens para o sertao. Fra~ctsco 1
ção ao grande amor em que os dois ardiam um pelo alega que ele executou os prisioneiros com requmtes de
outro, cada qual perguntava como podiam os respectivos crueldade, o que, diz D. João lll, é absolutamente falso.
súbditos fazer tais c0isas? Em Lisboa, na sala do paço, rodeados de ccgrande·
Francisco I declarava que o comércio era livre numero tanto de princepes e senhores de seu reyno·
para todos os homens. O mundo era muito vasto e como de gentes de seu conselho» (1), o Rei de Portugal
toda a gente devia tentar a sorte! Realmente o mundo recebeu o embaixador que trazia um violento protesto
era vasto, respondia D. João III, tão vasto que no de Francisco I. O mensageiro foi recebido com pala-
passado nenhum navio se aventuraria para longe da vras amáveis ma'> o Rei nem apresentou desculpas,
sua terra com receio de perder-se. Foram os portu- nem ofereceu' qualquer compensação. ccCuid~es vos
gueses os primeiros a correr os riscos, pagando a ver dinheiro?» perguntou à parte o Dr. Diogo de-
o preço, em dinheiro e em vidas- e, dizia o rei Gouveia ao embaixador. << El Rey deve a El Rey de
ccseria mui desalmada cousa que cuidando todo ~ Portugal e portugueses mais de quatrocentos mil
mundo que para aquela parte não havia outra cousa ducados de que os portugueses forã roubados em
senão mar ou terras que não se podiam habitar, sendo França!>> (2)
com tantos trabalhos descobertas pelos portugueses ..• Foi então que Francisco I se voltou para João
dizerem os franceses que queriam passar adeante vinte Ango, governador de Dieppe, homem rico e influente e-
ou cento e duzentas leguas pois nisso não haviam tra- dono de navios mais ou menos piratas. Deu <<cartas de-
balhado nem gastado nada e, estando disto muy des- marca» com licença para tomar navios de PortugaL
cuidados, os portugueses o trouxeram a luz»('). até ter indemnizado as perdas dos bretões.
Em I 527 deu-se uma crise, quando D. João UI, A situação ~stava a tornar-se tensa. D. João IH,.
desesperando da emenda, mandou Cristóvão Jaques ao homem pacífico com muitos negócios em mãos, não

1 (1) -Tradução do relatório apresentado a FrJincisco I pelo seu rei de-


( )- Carta de . D. João Ili ao embaixador de Portugal em Paris, armas. Torre do Tombo. Corpo Cron . maço 41 , n.o 25, publicado na ob. cit .,
datada .:le 16 de Janetro de 1530, cit. na História da Colonização Portuguesa Tom. cit., pág. 76.
do Brasil, Tom lll, pág. 79.
( :J) - Loc. cit .
42 CAPITAES DO BRASIL

tinh.a nenhum desejo de ir para a guerra, mas algo


devia fazer-se. Era preciso defender o seu domínio
transatlântico das garras estrangeiras, ou ele deixaria
de ser seu, mesmo de nome. Contudo, sobrecarregado
como estava com os cometimentos do Oriente tinha
poucos navios para distrair para a costa brasileira ou
soldados pa~a guarnecer as novas fortalezas. Que
tazer, se quena conservar o Brasil?
A resposta foi colonizá-lo.

lll

A Missão de Martim Afonso

A solução parece simples, mas- quando olhamos


o passado e vemos o Brasil e Portugal tal como eram
nesse tempo, perguntamos a nós próprios como é que tal
ideia poderia parecer realizável.
De um lado do Atlântico vemos um pequeno reino
agrícola, cuja população inferior a 2 milhões mal che-
gava para lavrar os seus campos. Este pequeno reino,
que não possuía riquezas nenhumas, toma a seu cargo
a guarnição de seis ou sete praças tortes em Marrocos,
manter uma cadeia de fortalezas e entrepostos comer-
ciais desde a Atrica até ao Extremo Oriente, dominar
o Oceano Índico com os seus navios, fundar um estado
junto da costa indiana e impor tributo a uma dúzia de
reis hindus. E por uma forma ou por outra consegue
fazer tudo isto.
Uma nação completamente ocupada com uma
tarefa estupenda, podíamos mesmo dizer- uma tarefa
já demasiado pesada para o poder do homem. Como
pôde um povo destes ocupar-se ainda ao mesmo tempo
do Brasil?
Vemos o Brasil na remota costa atlântica- um
45
CAPITAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL

Parece que já no reinado de D. Manuel se tinham


litoral de milhares ?e quilômetros, a floresta virgem a teito pequenas tentativas de colonização. De tempos a
este~der.-se por ~mtas léguas pelo interior a cobrir
tempos deixavam-se ao longo da costa ~s degredados,
cordllhe~ras sucesstvas de montanhas solitárias correndo
ajuntavam-se-lhes os desertores dos nav.10.s que pas~a­
pa!a mmto longe até aos planaltos desérticos. Terra vazia vam além dos sobreviventes de naufragtos, e asstm
emgma, deserto que nenhuma charrua jamais revolvera' se tinham constituído pequenos núcleos P?pulacionais
por onde o selvagem vagueava por entre as sombra~ nos territórios que ficavam entre ou a ~~lta dos
~ensas, os nómadas nus que em eras remotíssimas
poucos e afastadíssimos entrepostos comerc1ats. Pelos
tmham descido até à costa do mar vindos das nascentes documentos parece c~ncluir-se que capitania_s «de mar e
dos ~randes rios, que atravessam quase um continente terra>> tinham recebtdo o encargo de cutdar destes
Os nos são aqui as úaicas estradas não há povoados· núcleos- sabe-se de um Pero Capico nomeado para
nem _ald~ias fixas, nem campos c uiti va dos; tal com~ tal- e para o Brasil tinham-se mandado instrumentos
os ammats das selvas, as tribos errantes vivem da caça agrícolas. Existe um pedido urgente duma pessoa com-
e da pe,s~a, esgara ~atam o solo em redor do seu pouso petente conhecedora de máquinas para fabricar açúcar.
temporano e semetam mandioca e milho para as suas É de supor que se descobriu a pessoa, pois sabe-se
necessidades imediatas. Cortam com as pedras aguça- de certeza que se produziu algum açúcar. Em 1 S26 açúcar
das, os seus enfeites são penas, ossos e dentes os seus de Pernambuco e de Itamaracá pagou imposto à Casa da
bens terrenos são redes de palha e panelas de' barro e Índia em Lisboa. Todavia pouco se sabe destas vagas
arcos e setas para matar. Vivem para a caça e par~ a e premat aras colônias -um punhado de homens aqui
guerra: ~m. volta das baías e das lagunas Tupinambás e além, entre a floresta e o mar, experimentando a
e .T.upt~tqums batem-se até à morte, devorando os terra virgem, cortando pau brasil e colhendo alguma
pnstOnetros e a eles os Aimorés, ainda mais sei vagens <:oisa de :mas plantações, expostas às incursões de
que nem mesmo constroem cabanas, mas dormem e~ índios e aos ataques dos piratas. Na segunda década
buracos ou por entre o capim na tloresta. -d o século XVI discutia-se algo a fazer em muito mais
C?mo pode uma terra como esta ser ocupada e larga escala e melhor organizado.
det:ndtda P?r uma pequena nação, cujo elemento vital Ao que parece, Cristóvão Jaques estava com
esta~ a. esvatr-se todos os anos nos campos de batalha pressa de partir. Disse que podia arranjar mil colonos
da. As ta? A resposta clara parece ser a de que uma para levar para o Brasil. João de Melo da Câmara, que
coisa dessas se não pode fazer. pertencia a uma família de colonizadores, ofereceu-se,
, . Todavia os Portugueses nunca tiveram quaisquer por seu lado, para sair com dois mil em duas viagens.
duvidas de poder fazer uma coisa se quisessem. Parece Cristóvão Jaques tinha muito que dizer acerca do
que os portugueses do século XVI tinham deixado de Brasil, mas mais especialmente a respeito das regiões
comereender o significado de «impossível>>, Nas dis- do Rio da Prata que ele visitara- dizem alguns que
cussoes levantadas a respeito da colonização do Brasil descobrira. Ali se encontrava prata e ouro, dizia ele.
nunca se toca nas questões das dificuldades ma~ Prata e ouro, na verdade! João de Melo recalcitrou.
apenas nas de resolver se as coisas se devem f~zer e Só acreditaria naquilo quando o visse! «ata qy não
quando.
CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL
46

temos visto essa soma de metaes nem quem os vice Mas porque não partiu João de ~elo? Não sab~-
nas sabemos que o Dr. D10go de Gouveia
senão dizerem que hum ornem viu outro». (I) mos. Ape E . ·~
O que João de Melo prometia era fazer produzir pensou que aquilo e~a uma ~ena. .m sua OJ?:mao.
o solo, ficando ali ricos agricultores com cavalos, ambas as ofertas deviam ter sido aceitas: <<Eu Ja P?r
éguas, gado e todas as coisas necessárias. Todos eles muitas vezes lhe (a V. A.) sprevi o que me parecia
seriam homens de trabalho respeitáveis- não da deste negócio- disse ele ao rei em 1 53 2 - a verdade
espécie de tomarem índias por concubinas e de vi verem era dar senhor as terras a vossos vassallos, que tres
na terra sem a fazerem produzir. anos ha' que se ' as V. A. dera aos d ois
. d e que eu. vos
João de Melo sabia como deve organizar-se a faltei, a saber do irmão do capitam da ilha de s. Mrguel
co~onização; diz~ a ele que a tinha no sangue: <<Porque que queria ir com 2000 -:no~~dores la a povoar, e de
a Ilha da Madetra meu bisavo a povoou e meu avoo Christovam .Taques com mtl, Ja agora ouvera quatro ou
a de Sá Migell e meu tyo a de São Tomé e com muito seis mil creanças nacidas, e outros muytos da terra
trabalho e todos de geito que ve e espero parecerlhe casados com os nossos, e he certo que apos estes.
1
nisso».(2) ouveram de ir outros muitos ... » ( )
Uma vez que se encontrasse no Brasil, o rei podia Todavia, o rei, à sua maneira lentá mas segura~
ter a certeza de que IJ(nam lhe avião franceses a fazer tinha estado a estudar o problema. Antes de começar a
decerviço na costa», e) Quanto a Cristóvão .Taques- distribuir terras em larga escala, queria ter a certeza
João ~e Melo dá-nos a entender que era um cabeça no. do que estava a fazer. Primeiro mandaria u.ma expe-
ar vatdoso, gabando-se aos quatro ventos de que o rei dição experimental para fazer o reconhecimento e
lhe prometera nada fazer sem o seu conselho: «elle cre escolher o local mais conveniente para fundar uma
que toda esta terra lhe pertence de direito e que nam colónia organizada.
O norte equatorial, com as suas florestas impene-
a lla de ma?-dar V.. A:, ou~rem .senam a elle))! (4) tráveis descendo até à costa, encharcadas de água da
Toda via, o ret nao tinha mtenção de mandar Cris-
chuva como se estivessem debaixo duma comporta
tóvão Ja.q~es. ?utra vez ao Brasil, talvez por pensar que aberta, ou cheias de vapor de água sob os raios dum
este capttao Ja se excedera com os franceses. E em volta
sol tórrido, não parecia ser a região indicada para uma
do Rio da ~rata toda a cautela era pouca, pois os Cas-
primeira escolha. E que dizer dos belos campos do.
telhanos afumavam que se encontrava no seu hemisfério.
sul, que Cristóvão J aques visitara? Frescos e tempe-
~ão se qu~ria reconhecer o facto, mas nem por isso se
rados como Portugal na primavera, onde o grande Rio.
tl~ha deseJO de levantar. ques~óes, e Cristóvão Jaques
da Prata serpenteava por entre terras arrelvadas em
nao era homem para evrtar dtscretamente tais coisas.
que bandos de gazelas pastavam, onde com certeza as
frutas e os cereais europeus se dariam bem e onde se
(1)- Carta de João de Melo da Câmara. Torre do Tombo Cartas d0s
Governadores, maço único, n • 124. Publicado pvr Sousa Viterb~ e na Hist.
da Cal. Port . do Brasil, Tom III, pág. 90. ' (l)-Carta do Dr. Di0g·) de Gouveia a el-rei D. João III. !orre ~()
( l) - Loc. cit. Tombo, Corpo Cronológico, Parte 1!, maço 46, doc. 64 . Publicado m
(3) -lbid.
(4) -lbid. ob. cit., pág 94.
48 CAPITAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL 49

.contavam histórias animadoras de tesouros existentes


no interior. Não tinha vindo, em tS 14, um machado nheira quem insistira por esta escolha. O o~nipotente
~e prata quando uma armada enviada por D. Nuno ministro do rei receava a influência de Marttm Afonso
Manuel voltara do estuário daquele rio? Para além das sobre o seu amo e desejava vê-lo afastad? para o ul!ra-
montanhas distantes jaziam as minas de ouro e prata mar. Os três-o príncipe D. João, D. Antomo de Atatde,
·e os reinos de fabulosas riquezas como as que os Cas- futuro conde da Castanheira, e Martim Afonso de Sousa .
telhanos tinham encontrado no México! tinham passado a infância juntos e formava~ u~ tn_o
E entre os dois vastos rios do norte e do sul esten- inseparável na Corte de D. Manuel; mas havta nvah-
·dia-se uma terra encantada onde cresciam florestas de dade entre os dois jovens fidalgos que disputavam um
madeira de tinturaria- terra de árvores floridas e rico ao outro o primeiro lugar na amizade e favor do her-
solo vermelho, de pedras cor de p~rpura, picos fa~tás­ deiro do trono. Ao principio parece que ia ganhar
ticos e ar suave, terra em que havta sempre o ambtente Martim Afonso. Alguns anos mais velho do que o
príncipe, numa idade em que tais diferenças são _privi-
·duma tarde de verão.
légios, a influência de Martim Afonso sobre o seu JOvem
Aquela região era tentadora também, mas, bem
amo tora tal que dizem que o falecido rei D. Manuel
vistas as coisas o sul parecia mais próprio para dar
acreditava que o filho estava enfeitiçado. Parece que
·começo à empr~sa. Todavia, o que causava ali emba- ele tentara separar os dois, e, se dermos crédito ao que
raços eram os Castelhanos. Eles reclamavam o Rio da Martim Afonso conta, ele resolveu fazê-lo dum modo
Prata embora não o tivessem descoberto, dizendo que muitíssimo peculiar: comprando o mancebo para ele
·o estuário se encontrava do seu lado da linha divisória. abandonar a Corte! Pedisse ele a recompensa que
E tinham razão, digamo-lo aqui em particular, mas o quisesse, mandou o rei dizer em segredo a Martim
.certo é que os pilotos portugueses conheciam melhor a Afonso; se ele quisesse retirar-se para casa de seu pai,
·c osta do que eles-não fora o desertor português, João a recompensa ser-lhe-ia dada. O jovem respondera
Dias de Solis, quem conduzira os castelhanos até ao altivamente que nunca deixaria por interesse o amo a
1fio meridional? Aproveitasse-se, pois, esse facto e cozi- quem servia. Então o rei deu a entender que havia de
nhassem-se os mapas com mais discrição! E se alguém encontrar-se um pretexto para o banir pela força o que
fundasse uma colônia para além da linha divisória, só fc:_z o jovem ~alo canta~ mais alto do que nu~ca. Se
talvez mais tarde se aceitasse o facto consumado. o nao conseg_utam _por Interesse, muito menos por
Ao mesmo tempo não eram de desejar atritos com medo o forç~nam a ~r-se embora! O rei cedeu aparen-
os súbditos do querido irmão Carlos V. Os capitães temente, pots Marttm Afonso ainda estava com o
·COmandantes de armadas em cruzeiro diante de costas príncipe D. João à morte de D. Manuel.
contestadas deviam estar preparados para agirem com Foi e!e quem acompanhou a irmã do monarca a Cas-
diplomacia quando tivessem de tratar com os seus tela para Ir casar com o imperador Carlos V. Ele próprio
rivais. Ora não se podia confiar num Cristóvão Jaques casou _com _uma senhora castelhana, D. Ana P imentel,
para tal efeito. e serv10 o Imperador nas suas guerras com a França.
Portanto o rei resolveu mandar a Martim Afonso Carlos V estava satisteitíssimo com ele diz Martim
.de Sousa. Rumorejou-se que fora o Conde da Casta- Afonso: !<O Impe ra d or ... me d'tsse pallavras
' .
pubhcas
4

CAPITAES DO BRASIL 51
CAPIT AES DO BKASIL
50

muytas, e de tantos gabos do que Eu lá fezera diante cubrime_nto ge alguns Ryos, que me ElRey mandava
descobnr». E uma pena que o Sumário seja realmente
a corte, do que Eu podia ter Muyta Vaidade, E todo o
demasiado resumido e não dê mais informações a tal
o senhor levar gosto de se dizerem a hú criado, que
respeito.
elle criara. (I) Além de expulsar todos os franceses daqueles
Pouco depois disto D. João lll chamou Martim
mares, parece que devia ainda explorar a costa - com
Afonso a Portugal, aonde chegou em r5z5, trazendo
todas ~s pr~cauções, assegura o rei à irmã imperatriz,
a esposa com ele. para nao se mtrometer de qualquer modo com as «cousas
Ali o vemos-verdadeiro capitão da Renascença,
do e~perador»; (1) Entr~ estas é evidente que não se
viajado, valente, culto, extraordinàriamente senhor de refena ao estuano do Rto da Prata aonde João Dias de
si, sempre alerta à espera duma oportunidade para Solis, homiziado por crime de m~rte, levara os cas-
ganhar fama de cavaleiro, e também pronto para o telhanos em I 5 I 5, tendo sido morto e devorado
lucro material. Homem do mundo, Martim Afonso era pelos índios.
pessoa capaz e experimentada, e, como todos os fidal- Uma armada portuguesa visitara aquelas partes já
gos portugueses do seu tempo, profundamente interes- em I 5 I4, e em I 5:6 parece que Cristóvão Jaques fizera
sado pelos problemas marítimos. O rei tinha a certeza algumas exploraçoes naquelas latitudes. Desde então
de ser homem a quem podia contiar-se uma missão os castelhanos tinham estado ali mais do que uma
difícil e perigos'!. vez,_ e D. João HI recebera interessantes cartas de
Esta opinião foi apoiada pelo conde da Casta- Sevilha a respeito do caso.
nheira. D. António de Ataíde desfrutara uma larga . Não há dúvida de que por muito que os reis de
oportunidade durante a ausência de Martim Afonso. Portugal e Ca~tela se agarrassem zelosamente às suas
Tornara-se o poderosíssimo favorito e factotum do rei. descobertas ~nvadas nos mares do Ocidente de amb
Rumorejava-se na Corte que não vira com grande satis- os_ lados havia t~lhas,, p~incipalmente atravês dos c~~
fação o regresso de Martim Afonso. Era uma boa ideia mmosos. que fugtam a JUStiça. Era costume secular
mandá-lo para o Brasil! estes, :~girem pelas fronteiras para os reinos vizinhos e
Seja como for, Martim Afonso foi escolhido para ~os u ttmos anos esse _hábito intensificara-se. Os Por;u-
comandar a expedição. O «regimento• que levou c~~uhes~s eramd supertores aos seus antagonistas no
perdeu-se, infelizmente; «por ElRey ter novas que no ectmento a navegação. .
português d· ' por tsso um marinheiro
Brasyl havia muytos franceses me mandou laa em húa Castela e po ta enc~ntrar sempre asilo seguro em
armada»,e) escreve o próprio Martim Afonso no seu braços ~berf~:.lquer piloto português seria recebido de
Breve Sumário da sua Vida e Obras dedicado à rainha
regente D. Catarina. Mais adiante retere-se ao «des- Um piloto que · .
estava liquidad . ~tsesse servtr fora da pátria
0 · em ortugal só poderia esperar 0
(1)- Brevíssima e Sumaria Rellaçam, que fez de sua Vida e Obras o
Grande Martim Atonso de Sousa, publicada por Eugénio de Castro in-D1áriC) . ('I Carta de D. João lii . .
1n-ob cit., vo), I, pág. 45ó. a rainha de Espanha, sua irmã, .Publ icada
da Navegarão de Pero Lopes de Sousa. Vol li 2.• ed. pág. 53.
(2) Loc. 'it . pái· 54.
52 CAPITAES DO BRASIL

CAPITAES DO BRASIL 53
machado ou a corda como prêmio da sua traição. Mas
os delinquentes mais leves podiam andar de cá para lá da civilização. O rei declarou que confiava em que
e muitas informações se transmitiam através destas •Anrique Montes, cavalleiro de minha cosa que nesto
andanças. me tara bem e fyellmente como compre a meu serviço
Foi assim que o rei teve conhecimento de todos e querendo lhe fazer graça e merce» C) nomeou-o Pro-
os pormenores a respeito da expedição comandada vedor dos Mantimentos da armada e da colónia a fun-
pelo veneziano Sebastião Caboto, que partira com dar, com o vencimento de 24000 reais por ano.
navios castelhanos e subira o Rio da Prata ; e da de O próprio Martim Afonso levava amplos poderes.
Diogo Garcia de Moguer, que se seguiu pouco tempo Era não só o Capitão-General da armada, mas de todas
depois. Um certo Gonçalo da Costa, português que as terras que viesse a explorar, com poder de vida e de
regressou nesta armada, foi contar tudo ao rei, embora morte sobre todos os colonos, excepto os fidalgos que
ele não pudesse estar em Portugal por ter a mulher e cometessem crimes, os quais deveriam ser enviados
os filhos em Castela. para a metrópole sob prisão para serem julgados.
Henrique Montes era outro dos tais-abandonado A organização da colónia ficou inteirament~ ao
por Solis mais de I o anos antes nas regiões desabita- seu cuidado. Tinha o direito de escolher e nomear
das do sul. Não existe qualquer relato das suas notários e magistrados, para servirem nos tribunais
aventuras- infelizmente para nós, raras vezes estes cíveis. entre as pessoas que o pudessem fazer e tivessem
pioneiros escreviam as autobiografias - apenas se qualidades para tal. Também podia distribuir terras à
sabe que foi aproveitado por Sebastião Caboto para sua .vontade por aqueles que quisessem fixar-se no
lhe servir de intérprete, e a estes expedicionários ouviu B~asd. ~stas concessões eram apenas por uma vida e
contar as histórias do distante El Dorado. Henrique nao devt~m fazer-se a quem não estivesse preparado
Montes embarcou com Caboto para Espanha, mas, ao para culttvar o solo. Se passados seis anos não fosse
entrar no Guadalquivir, abandonou a armada caste- con~e~ientemente utilizada, a propriedade devia ser
lhana para se refugiar na sua pátria, onde foi bem restttutda para se entregar a outros. Estas concessões
recebido pelo rei que ouviu com interesse tudo o que d~ terras -costume velho em Portugal -eram conhe-
ele tinha que contar. Ele percorreu mais de I 20 léguas ctdas pelo nome de <<sesmarias», À escolha de Martim
subindo o grande rio do Sul e fora informado de que Afonso de Sousa ficava o lugar onde a colónia devia
ele descia de um vasto Jago situado para além das fundar-se. ·
altas montanhas do interior, de cujas margens as tribos . .. Com _ele, como que seu braço direito, seguiu seu
nómadas traziam o ouro e a prata. umao mats novo, Pero Lopes de Sousa que devia ter
Parecia conveniente investigar aquilo. Henrique c_erca de. ~~ anos. de idade. O conde da Castanheira
Montes foi convidado a acompanhar a armada de ~nha optmao ~utt~ lisonjeira a respeito dele: <cPero
Martim Afonso, como intérprete das línguas índias e opes, vosso trmao, está feito um homem muito
ainda para dar informações. Henrique Montes mos-
trou-se disposto a ir. Talvez, depois de ter passado (I) Carta régia datada de L" b
tantos anos perdido no deserto, se sentisse desiludido de D. Joãc IH Liv 48 fol 180 ts oa 16 ~e Novembro de ;530-Ch ancel .
Bra.<il, Tom. ctt:, pág. 12S. · e 8 • .s Publtcada na Hist. da Col. Portug, do
54 CAPIT AES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 55

honrado, e outra vez vos affirmo muito honrado», (1) que operava ao largo dos Açores e da costa portuguesa.
escrevera ele pouco antes a Martim Afonso, e isso O primeiro piloto que ia com Martim Afonso era
acrescenta o conde, não era ainda dizer tudo. ' Vicente Lourenço.
Com certeza o jovem Pero Lopes tinha uma sólida Pero de Góis, futuro capitão da Paraíba do Sul,
cabeça. Era inteligente, activo, ágil, e muito enérgico. foi para o Brasil pala primeira vez com os dois irmãos
Marinheiro desde a intância, era já um experimentado Sonsas. Havia um Pero Anes como intérprete das lín-
nauta, pronto e capaz de trepar ao tope dos mastros guas índias. Henrique Montes, como já se disse, era o
ou pegar na cana do leme, determinar o rumo pela principal dos informadores acerca das terras do ouro
agulha e pela carta ou manter-se na ponte a comandar e da prata, enquanto Pero Capico, que durante anos
o seu navio. Talvez demasiado dinâmico, já fizera dan- dirigira as feitorias da costa de pau brasil, ia com a
çar os seus marinheiros na corda bamba e mais tarde armada para que se pudessem aproveitar os seus conhe-
, '
na India ia ser um chefe disciplinador, sob cujas ordens cimentos daquelas regiões.
ninguém queria servir. Mas a sua eficiência no mar Nos navios seguiam cerca de 400 homens-
destacava-se no meio duma geração de fidalgos mari- marinheiros, soldados e bombardeiros com boa arti-
nheiros. Até o mestre D. João de Castro dizia que lharia para combater os franceses, lavradores com
Pero Lopes era homem perante cujos conhecimentos charruas e grades e sementes para arrotearem o solo, e
náuticos todos os portugueses deviam inclinar-se. homens de leis para servirem de magistrados, e capelão
Pero Lopes embarcou na nau capitaina com o para as nec~ssidades espirituais de todos. Tanto quanto
«capitão irmão», como ele lhe chama no diário da iabemos, nao embarcou mulher nenhuma. É evidente
que as noivas seriam recrutadas entre as índias.
sua viagem, e Martim Afonso não podia ter desejado
melhor imediato. . Assim a armada de Martim Afonso de Sousa par-
ttn ? 3 de Dezembro de I 53o, preparada para a guerra,
O navio- inominado em todos os relatos- era
eqmpada para. a .paz e pronta para fazer explorações.
um navio redondo do tipo conhecido pelo nome de Mas ta pnnctpalmente colonizar.
nau, com cerca de tSo toneladas. O segundo navio,
també~ uma nau, chamada S. Miguel, ia sob o comando
de Hettor, de Sousa, homem de quem se falaria mais
tarde na India. O galeão S. Vicente tinha por capitão
Pero Lobo Pinheiro, e as duas caravelas que comple-
tavam a frota eram Rosa e Princesa, uma comandada
por Diogo Leite, que acompanhara Cristóvão J aques
no cruzeiro à costa brasileira, e a outra por Baltasar
Gonçalves, caçador experiente de piratas da esquadra

(1) Carta do Conde da Castanheira a Martim Afonso de Sousa, cit.


por Caputraoo de Abreu no Prefácio à l .a ed. do Diário da Navtgação de
Pero Lopes de Sousa.
IV

De Lisboa ao Rio de Janeiro

O vento leste soprava dos montes para o mar,


enfunando as grandes velas rectangulares dos cinco
navios. A armada de Martim A(onso descia serena-
mente em direcçáo à barra e ao azul que se estendia
infinitamente para sudoeste.
Havia oito semanas de navegação entre os dois.
continent~s- metade do tempo que levavam as arma-
das da India na sua viagem anual de Lisboa para
Moçambique. Nem os ventos violentos do Cabo, nem
as temerosas tormentas antárcticas ameaçavam as frotas.
que se dirigiam para o ocidente, cuja viagem era breve
e fácil tal como então era possível.
Podemos fazer uma ideia dela dia a dia porque
Pero Lopes manteve o seu diário de bordo rigorosa-
mente em dia. Todos os dias media a altura do sol ao
meio-dia e apontava a direcção do vento. A sua nar-
ratiYa é nàuticamente de grande concisão, austera-
~ente desprovida de todo e qualquer pormenor
pttoresco.
A nau capitaina obedecia mal ao leme, diz ele.
CAPITAES DO llRASIL CAPITAES DO BRASIL 59

Debatendo-se nas garras do vento nordeste ao largo mar por uma bela noite de luar. O vento
uma vez a O , .
da Madeira, parecia que os mastros iam partir-se. do noroeste levantou-se tão repentmamente e sopro?
Passaram a Madeira sem a avistarem, mas a 9 de om tanta força, que o mastro do traquete da capt-
Dezembro o fantástico pico de Tenerife surgiu acima e . artt'u obrigando-os a colher as velas e a correr
tama p ,
das ondas; pairaram em frente do arquipélago até ao adiante do vento. . . d
quarto de alva. Pero Lopes mediu o sol em terra, na 0 primeiro dia de calmaria fo1 aprovetta o para
ilha de Gomeira, onde pôde consertar o leme dani- consertar 0 mastro : «O corregemos o melhor que
ficado. udemos», amarrando com cordas as partes rachadas,
A semana do Natal encontrou os cinco navios em ~ parece que assim amarrado aguentou os ventos e as
frente da costa da Guiné sem uma única aragem, mas tempestades. d
a baloiçar com mar muito grosso. Foi ali que apare- Nos mares equatoriais, impelidos yor saltos e
ceram duas veJas de navios que voltavam da pesca no vento ou pairando no meio da calmarta com chu~a
Cabo Branco. Os marinheiros que iam para o ocidente quente- «fazia tam grande calma, que ~am s.e P?dta
aproveitaram esta oportunidade para mandarem notí- suportar>>- até que o alíseo de sudoeste. tmpelm !mal-
cias para a pátria. Havia de levar ainda muito tempo mente a armada com velas pandas por ctma das aguas
antes de surgir outra oportunidade. azul ferrete. · • lt d
Daqui prosseguiram até ao arquipélago de Cabo A 3o de Janeiro nenhum peixe se vta a ~o . a o
Verde, onde o vento caprichoso abateu. As mon- navio_ sinal certo, diz Pero Lopes, da prox~mtdade
tanhas escalvadas erguiam o seu vulto ameaçador da terra. No dia seguinte, ef~ctivame~te, a hnha da
acima do mar agitado. As grandes ondas que corriam costa brasileira surgia no honzonte. La estava o cabo
para a costa teriam atirado os navios de encontro aos de Santo Agostinho, ponto habitual de cheg,a~a das
rochedos, se muito a propósito não se levantasse uma armadas destinadas ao Oriente, onde a Amenca do
brisa do lado norte. Sul avança em direcção à Atrica pelo oceano dentr?.
No porto da Praia encontravam-se dois navios Foi aqui que ao amanhecer o vigia do traquete gn-
castelhanos. Deram de explicação que também se diri- tou: «Navio à vista!»
giam para o Ocidente, para explorarem o rio Maranhão. Na vi o? Com toda a certeza um francês! Com
O «capitão irmão>> não aprovou: o Maranhão ficava todas as velas desterradas, a armada avançou. Martim
na zona litigiosa do mapa, pelo que <<lhe mandou Afonso mandou dois navios para o norte e doi~ par~ .o
requerer que elles nam fossem ao dito rio; porquanto sul, para cortarem a retirada; o navio persegutdo dtn-
era de el-rei nosso senhor e dentro da sua demar- giu-se para a costa, ancorou a meia lé~ua da_ terra. e
caçam» (1). Ignoramos qual fosse a resposta dos cas- depois arriou o batel dentro do qual a tnpulaçao fogm
telhanos. para a praia. O batel da caravela Princ.esa foi atrás
Passaram quatro dias junto da ilha de Santiago, dele furiosamente mas os franceses espatifaram o seu
"«tomando cousas necessarias•, até se fazerem mais barco e desaparederam na floresta. Só um homem ficou
a bordo do navio abandonado, que ia carr~gado ?e pau
(1) Diário da Navegação, cit., pág. 9&. brasil e estava bem equipado de artilhana e polvora.
CAPITAES DO BRASIL 61
60 Cr\PITAES DO BRASIL
xar os estrangeiros levá-la, não se deixando tentar pelas
Seria interessante saber alguma coisa do francês mercadorias. ..
solitário abandonado pelos seus companheiros, mas Os portugueses não insistiram-na~a de coerçao
Pera Lopes não diz nada a tal respeito. Outro navio obre as tribos indígenas! parece ter stdo a palav~a
francês carregado de pau brasil foi tomado naquele de ordem desta viagem. Martim Afonso trocou a capt-
mesmo dia, e à noite o «Capitão irmão» mandou Pera taina pela caravela Rosa e foi à procura do porto de
Lopes com as caravelas procurar mais dois navios que Pernambuco para ali fazer os preparativos para a che-
eles tinham sabido andar por aquelas paragens. gada da armada. Pera Lopes, com o comando d~s
Navegou toda a noite, deitando a sonda, e outros navios, seguiu atrás, poupando a água o mats
quando a alvorada cor-de-rosa brilhou por cima da que podia, até chegar a um rio onde puderam abas-
linha escura da floresta, viu a cerca de meia légua no tecer-se.
mar um navio que fugia a todo o pano diante das cara- O porto de Pernambuco, que se alargava dent~o
velas. Perseguindo-o durante todo o dia, Pero Lopes de recites coralinos, mostrava as suas águas azms
conseguiu alcançar o navio francês uma hora antes do junto duma costa desértica. P.ara o inter_ior e a tod.a a
pôr-do-sol. Aquele disparou, a caravela respondeu aos volta havia florestas de brastl, para alem das batxas
tiros, e durante toda a noite se travou um duelo de onde se contorciam as mangues raquíticas e o estranho
artilharia, continuando a batalha com violência no dia cajueiro erguia os seus frutos carminados e amarelos
seguinte. «A nao me deo dentro na caravela trinta e acima dos terrenos alagadiços. A entrada da floresta
dous tiros- escreve Pera L'Jpes- quebrou-me muitos havia um entreposto comercial, ninguém sabendo, ao
aparelhos e rompeo-me as velas todas» (1). Mas ninguém que parece, desde quando. Diziam a!gurnas pessoas .que
foi ferido, diz ele, «de que dei muitas graças ao senhor 3o anos antes de Martim Afonso ah chegar, mas tsso
Deus,>. Embora a bordo do navio francês houvesse seis deve ser exagero.
homens feridos, não sabemos de ninguém morto, pelo Um feitor e doze residentes tinham sido encon-
que o combate parece ter sido mais ruidoso do que trados ali bem estabelecidos pela expedição de Caboto
mortífero. em I 526 sendo certo que alguns deles viviam havia
A falta de pólvora obrigou o francês a render-se, muitos a~os em Pernambuco. Junto da feitoria à beira
e depois, quando Martim Afonso chegou, Pera Lopes do rio Iguaraçu, havia uma ig~eja provi?a de cálices
abordou o navio. Encontraram-no carregado de pau e outras alfaias sagradas, e a volta tmham cons-
brasil e bem preparado para a guerra- útil reforço truído ca:;as e as tribos índias davam-lhes mulheres.
para a armada. Para além da floresta verde impenetrável ocor-
Desceram a costa- extensa linha de florestas, riam mistérios estranhos; o rio, que vinha dos pântanos
com margens de terra vermelha que se erguiam a de mangues dirigia-se preguiçosamente para o mar, e
pique sobre o mar. Os índios vinham a nado até dos terreno~ enJameados, de tempos a tempos, saíam
junto dos navios a oferecer pau brasiJ, mas quando um monstros de nome i onorado. Desde a alvorada vermelha
barco foi a terra para meter água, recusaram-se a dei- de sangue até ao ~repúsculo ~or de p~rpura, os d!as
passavam-se a juntar pau brastl, algodao e papagatos
(1) Ob. cit., pág. 115
62 CAPITAES DO BRASIL
CAPITÃES DO BRASIL

e macacos para seguirem nos navios que vinham da


Europa com largos intervalos, e de vez ~m quando, ta rem 0 melhor que pudessem
se· t raque
ao abrigo da feito-
na, com certeza h a vta st o rea b as t ec1'd a de
. 'd
qualquer unidade da armada da Índia, a lutar com
os ventos ao largo do cabo de Santo Agostinho, fazendas e outros produtos.
Depois as duas caravelas foram destacadas ~a
entrava no rio de Pernambuco com notícias do resto
armada e mandadas para o norte a ex~lora~ o no
do mundo. E assim se passava, ou melhor parava Maranhão. Visto os castelhanos estarem msso mteres-
o tempo. sados o melhor seria ir à frente! João de Sousa, num
Todavia, dois meses antes da chegada de Pero dos n'avios franceses com todo o pau brasil e todos os
Lopes, houvera uma diversão desagradável •.um. galeão prisioneiros, seguiu para Portugal, e ali forneceu
francês entrara no estuário e saqueara a fettona, car- aos diplomatas novos elementos para protestos. O .outro
regando «toda a fazenda que nelle estava delRei nosso navio tomado foi queimado, mas Pero Lopes contmuou
senhor» (1). a comandar o que tomara, mudando-lhe o nome paré\
Quem ficou no lugar para contar o facto não se Nossa Senhora das Candeias.
sabe de ce-rteza. O feitor, Diogo Dias, estava ausente A armada, com a capitaina e o galeão S. Vicente,
do local do desastre. Fora recolhido por uma caravela estava reduzida a três unidades, quando a r de Março
que se destinava a Sofal~, com a intenção de ser d~sem­ partira ·seguindo ao longo da costa, apesar do vento,
barcado mais ao sul, JUnto das costas do «Rto de da calmaria e de trovoadas, até à Baía de Todos o~
Janeiro". Santos, umas 70 léguas ao sul.
Pero Lopes ouviu contar tudo isto quando ali Esta ampla baía, com as suas enseadas e angras e
chegou, mas o «Capitão irmão» ainda não tinha che- as suas belas praias, ainda pertencta à selva antiga, vir...
gado. As suas caravelas haviam sido retardadas por gem de todo o contacto com o mundo civilizado. Navios.
ventos contrários e só vários dias depois apareceram. vindos de partes remotas da Terra tinham lançado ferro
Dentro dos recites de coral, onde sete homens da às vezes, durante um dia, nas suas águas tranquilas,
capitaina morreram afogados- Pero Lope~ não diz mas partiam sempre sem deixar rastos. A Baía
como ou porque se deu o acidente-já se encontravam ainda se conservava solitária e secreta-espelho apenas
reunidos os outros navios. Só Heitor de Sousa, que perturbado pela passagem de qualquer piroga veloz,
vinha no S. Miguel, ainda não aparecera. Ignoramos silêncio apenas cortado pelos gritos dos animais selva-
0 que lhe acontecera. O mais provável é ter-se p~rdido gens do bosque ao anoitecer e ao amanhecer, ou pelos
no caminho, abandonando a esperança de se JUntar brados de tribos de homens tão selvagens como aqueles,
à armada, regressando então a Portugal. Pode presu- que junto daquelas praias adormecidas se degladiavam
mir-se com certeza que chegou ali s_ão e salvo, porque até à morte pela posse destas pescarias abundantes
dois anos depois o encontramos na lndia. e tlorestas tão ricas de caça.
Em Pernambuco Martim Afonso reorganizou a sua Todavta, foi ali que ~artim Afonso e Pero Lopes.
frota. Todos os doentes foram deixados em terra para encontraram um portugues que lhes disse que vivia
naq1;1ela s?l~dão havia m~is_ de 22 anos. Pero Lopes__,
(1) Ob. cit., pág. 135 escntor ngtdamente lacomco- não se incomoda a
CAPlTAES DO BRASIL

repetir a história que ele contou, e nós temos de


reconstituir de outras fontes mais recentes.
O homem chamava-se Diogo Alvares Correia.
· Viera de Viana do Castelo, no Minho verde e ouro.
Em 1 5o8, não sabemos sob o comando de quem, naufra-
gou junto daquela costa e todos os seus compal}heiros
foram mortos e devorados pelos índios. Diogo Alvares "
..Q
teve mais sorte- talvez tivesse personalidade mais :::>
u
'Q)
insinuante-e caiu nas boas graças dos seus captores. V)

Ajudou-os a aproveitarem todos os salvados que lhes o.,


pudessem servir, o que lhes agradou tanto, dizem, I Q)
-o
que eles o levaram vivo para o seu povoado. A intençã
deles era provàvelmente engordá-lo para poder vir
constituir um bom pitêu-havia prisioneiros que eram
l "'
~
<:(
o
conservados durante um ano e mais antes da cerimônia -o
1
em que eram devorados. Assim podia ter acontecido a
I ·o;;
Diogo Alvares, se, entre outras coisas, ele não tivesse <o
.._
co
conseguido recuperar uma espingarda. o
Na aldeia índia, com certeza cercado de especta- -o
-dores pasmados, Diogo Álvares encontrava-se com o ~"'
seu mosquete, quando uma ave qualquer passou por o
11)

cima dele a voar. O português era bom atirador, levan- u


-tou a espingarda- pum! pum t-o pássaro tombou "'
-o
<o

morto, e todos os índios, tomados de pânico, fugiram o


ICO
por todos os lados ao ouvirem o terrível barulho. Quem u-
co
.....
era este branco estranho com um pau-de-fogo que ..Q
Q
matava a quito para que o apo9-tasse? E mal se atreviam LU
)(

.a aproximar-se dele. Diogo Alvares tranquilizou-os o


melhor que pôde, procurando fazer-lhes compreender
que era amigo deles e que o seu pau-de-fogo seria
.posto ao serviço deles.
Daquele momento em diante Diogo Álvares tor-
nou-se chefe índio. De ora avante viveria com a tribo, a
sua palavra seria lei, e todos os guerreiros mais poderosos
lhe ofereceram as filhas em casamento. Diogo Alvares
L
aceitou-as todas delicadamente, e daí a pouco uma
CAPITAES DO BRASIL 65

numerosa progênie brasileira andava à volta dele e


trepava-lhe pelas pernas acima.
A tribo chamou-lhe «Caramuru»- o que alguns
entendem significar «Ü Homem do Fogo». Outros,
conhecedores das línguas indígenas, inclinam-se, menos
românticamente, a acreditar que a palavra significa
certa espécie de peixe!
Para os índios ele deve ter parecido filho do lendá-
rio Sumé, o misterioso branco de barbas de cuja passa-
gem entre eles havia longa tradição em toda aquela
costa. Sumé tinha vindo até eles, por sobre o mar,
mostrar-lhes como se faz o fogo e ensinar-lhes tudo o
que eles sabiam, até que um dia desapareceu, tão miste-
riosamente como viera, para além do oceano. Quando
contaram a história aos portugueses, eles exclamaram:-
Era, evidentemente, S. Tomé! Tomé, Sumé? O nome
não podia ser mais semelhante, e aqui estava outro
continente a juntar ao itinerário do apóstolo ubíquo.
Diogo Álvares Caramuru parece ter sido perfeita-
mente feliz entre os índios. Desde que ali chegara,
navios portugueses, castelhanos ou mesmo franceses
tinham aparecido de tempos a tempos, mas - a não ser
que seja verdadeira a história duma duvidosa viagem
a França- sempre os deixou partir sem ele. Parece que
nem mesmo se propôs acompanhar a armada de Martim
Afonso, mas trouxe todos os chefes índios da tribo para
prestarem obediência ao capitão, fê-los dançar em sua
honr~ ~ e abastecê-lo com grande quantidade de
prOVI SOes.

. Que gente de bela aparência I observa Pero Lopes.


Tmham a pele. :la~a, ~ as mulheres pareciam-lhe for-
mosas! O «capttao trmao» deu muitos presentes a todos
e toda a gente ficou contente. Parece que os índios do
Caramuru eram gente muito feliz.
Ma.s elas não eram as únicas tribos que andavam
4 caça pelas florestas daquela costa. Antes de partirem,
s

66 CAPITAES DO BRASIL
CAPJTAES DO BRASIL
67
os portugueses tinham assistido a um espectáculo
horrendo. Cinquenta canoas, todas protegidas por ::: ~aA~pt~r Cor~eia diz ter saído de Lisboa em d"
escudos de cores berrantes, todas tripulados por guer- rtca onental em 53 _ trec-
quando diz ue B J I o, mas nao tem razão
reiros nus com as penas de guerra, saíram bruscamente Baltasar Gon~alve: ~:sar Gonçalves era o seu capitão.
da sombra de ambos os lados da baía. M t' A , como se sabe na a d
Então acordaram os ecos adormecidos com tremen- ar tm fonso a comanda ' rma a de
!emente mand~da para o ~a~:~:~ela Princ:esa recen-
dos gritos de guerra, enquanto uma chuva de setas e exacto quando diz qne o na . -· Todavta, Correia
sibilantes atravessou os ares. Desde o meio-dia deslum-
brante até ao cair das sombras da noite, os selvagens da Le~bora, como ele pensava :~~on~? chegou a Sofala,
rsboa. ' tvesse chegado a
floresta lutaram nas águas tranquilas, esquecidos da
N_a Baía, o capitão da c .
presença dos na vi os estrangeiros vindos dum mundo cumJ:»nmentar Martim Afonso ara vela for. no. seu batel
desconhecido, preocupados unicamente com os seus . ex-fettor de Pernambuco N-' e com ele VeiO Dtogo Dias
ódios antigos; as «cincoenta almadias, da banda de que andava a caravela a faze~ a~~ se sabe muito bem o qu;
estavamos surtos foram vencedores )} ('), diz Pero Lopes. e para baixo, E natural a~go da costa, para cima
Depois houve um espectáculo terrível. Os muitos bordo, pois Martim Afons~ue tivesse havido revolta a
prisioneiros foram levados para terra e amarrados com . P<?,r is~o chamou o ca:~con.trou_ o piloto a ferros.
cordas. Esmagaram-lhes as cabeças com cacetes, dila- comrssao drreito de autor'd a sr. Nao lhe dava a sua
ceraram-lhes os corpos membro a membro, sendo os alo l~go da costa brasile/ra~dep sobre todos os navios
pedaços assados em fogueiras e comidos. o e iJnao p ar t"lh
e I ava as vistas do
· arece. - c onc1Uir-se
· que
É bem de crer que, para prováveis colonos a en:o:tto. Também desembarcou ~~~ttao, porque soltou
fixar-se na terra, aquilo seria uma cena desanimadora, b rou a bordo- supõe os os escravos que
mas Martim Afonso encontrou dois homens prontos a oco. Permitindo-Ih . -~e que índios de p
Marti Ai~ es trem h vres ernam-
tuiria ~m ~~~o ap?derou-se da c~~~~e~~de quisessem~
juntar-se ao Caramuru. O capitão quis que eles experi-
mentassem o que o solo podia produzir, pelo que lhes
forneceu sementes de várias plantas para frutificarem o qu~ disse a is~!c:;oc:;i~~: sua armada, Ni::a~~:~~
e se multiplicarem, e os homens prepararam-se para dos iJ 27 de Março, levant~ram f
fazer o mesmo casando com filhas mestiças do Caramuru. para p otulos, que diziam ser má , erro, contra a opinião
A armada fez-se de vela a I 7 de Março -para os o s . Os ventos d epoca para se diri .
os Abrolhos e tudo o sudoeste arrastá-I . grrern
I mares bravios e as trovoadas. O tempo estava de tal «lavrando o mar:. ll)o que eles conseguiriam os-t~m para
forma que eles não podiam avançar, tendo de voltar à Sem · \ ·• sena andar
1 Baía de Todos os Santos passados dez dias. •
d eJxoa se Importar
a Bafa d com tais conselh
Ali chegados, viram que um navio viera depois de garras de todos e Todos os Santos os, ~ armada
eles terem partido. Era a caravela de Sofala, de que Yento de IUdoes~s ~entos e tonnentas P~a carr sob as
tinham ouvido falar em Pernambuco. Deve ter sido a e evaatou.se tão . 2~ de Abril o

( ) 06. dt. pág_ 167. repentinamente e
(1) Ob, cit., pág. 158.
68 CAPITAES DO BRASIL
CAPIT.AES DO BRASIL
69
com tal fúria que mal houve tempo para colher as
erguia -azul di t · .
velas; os navios navegaram em árvore seca quase dilheira altan~iras a~e, tmatenal-? perfil duma cor-
debaixo de água, e o céu estava tão carregado de dom órg-ao. a estacar-se no ceu como os tubos
nuvens de tormenta «que era meo dia e parecia de
Um harm ·
noite))(!). a luz intensa a~~:~o c~n~~nto de luz e colorido, desde
O vento amainou antes do amanhecer do dia encanto sobre pa~ e e sonho, lançado como por
seguinte e a luz brilhou por cima do mar agitado. Dois caóticas e quebr~~:S t e~ordem s~lvática de formas
dias depois, de manhã, novamente tiveram terra à de Janeiro- assim c' a era- e e - es~e f~érico Rio
vista- uma terra de altas montanhas que se erguiam bridor, em Janeiro dhama~o pelo seu pnmeiro desco-
acima duma costa rochosa. ci.do dos indios pelo e n~ua quer an? incerto, conhe-
Foi a 3o de Abril, à luz rósea do nascer do Sol, •Agua Oculta» N- me ~ugestJvo de Niteroi a
que no mar coalhado de ilhas se avistou a entrada do
como Martim Afonso p um r1o de m aneua
· ao era · nenhuma '
Rio de Janeiro. Da parte de fora da estreita abertura
-com a largura de um tiro de arcabuz- ancorou a
sa_biam, mas foi semp;:,
Rto de Janeiro ainda h ·
;:ao dLopes ~rovàvelmente já
e Janetro para eles e é
armada e esperou pelo vento, enquanto os cumes rosa- A d OJe para nós
dos se iluminavam aos raios matutinos e a água cor arma a conservou-se . .
tadas durante três m M JD~to destas costas encan-
de púrpura se tornava de safira. t o d os os seus homeses. artun Aton so d esembarcoo
Ao meio-dia levantou-se a brisa marítima; os r h d . ens, acampando • b .
oc e o Imponente que f I a eua dum
navios, de velas enfunadas, passaram devagar por de Açúcar porque s ~ tcou ~go a chamar-se o Pão
entre os rochedos cónicos, de encostas lisas e per- · ' , em torçar at
Simples e exactamente aqa J magem, a sua forma é
pendiculares, que quase fechavam o canal. Dentro era Ai l e a.
evantaram um forte d
uma visão fantástica, fantasmagórica, um espelho de çada, e prepararam a f , ro eado por uma pali-
água azul, brilhante, de grande amplidão e que banhava cousas, de que tinha s erramen~as • para fazermos
os montes que se erguiam abrup~amente das ondas, :gua d?s ribeiros cris:.~i~o~ecesst~ade» (I). Beberam
perdendo-se em fundas angras por entre pântanos de as colinas- a melhor á a que rotavam do meio
mangues até ao próprio sopé das montanhas mais ;ero Lopes. Jantaram prcfvi:- que talveL houvesse, diz
incríveis. Cumes de formas estranhas recortavam-se ura_nte um ano a 400 ho oe~ para darem de comer
no céu, emergindo de copas de árvores dum verde ganttns, cada um com u~ens' construíram dois ber-
aveludado, com todos os cambiantes, desde a cor mais ;~:,scom os !ndios. Ao~ o~~~sb~nc~das, e fraterniza-
suave dum verde primaveril da Europa até ao tom admirad:am aBtnda mais belas do qe u ero Lopes estas
mais fundo das regiões tropicais. Semeada de ilhas, na_ aia de Todos os S e ,as que ele tinha

I copas frondosas a recortar-se no azul, a ampla baía


estendia-se para o interior o mais longe que podia
ver-se e perdia-se em neblina iridescente de que se
. O «capitão
Interior El
i -
rmao» mandou
antos.
cobria ~~ ~s meteram-se pela espgente a explorar o
- - - - p ntanos onde cresci essu~a do mato que
am orqatdeas estranhas
(') Ob. cit., pág. 179. (') Oh. cit., ~~- 189.

/
70 CAPITAES DO BRASIL

e voavam colibris e borboletas de asas semelhantes


a pedrarias; defrontaram fetos gigantes e elevadas
árvores floridas no meio da floresta, e palmeiras e
lianas entrelaçadas que cobriam as montanhas. Por
qual dos lados seguiram? Seria interessante saber.
Dirigiram-se para o extremo da baia para desem-
barcarem por entre os canaviais e a lama vítrea
-em que se reflectia o sol poente, para depois
·e scalarem, em funda sombra, as encostas alcantiladas
.que atingem as alturas da Serra dos Órgãos e o ar
puro e fresco? Seguiriam as águas límpidas cor de v
âmbar do pequeno Paquequer, por entre gargantas
verdes e rochosas e ao lado de cascatas espumantes
até ao largo rio Paraíba e aos amplos planaltos? Seria O remoto Sul
ao futuro Estado de Minas ou de São Paulo que eles
chegaram por fim? Apenas se sabe que percorreram
65 léguas de montanhas precipites, e depois mais 5o O nevoeiro caiu como ,
léguas dum elevado plató, onde encontraram um grande e mar Ao meio d' ' um veu, envolvendo montes
Os ct'n. co : ra qua.se se via tanto como à meia-noite
-chefe- o rei de todas aquelas terras, disseram eles- na vtos segu 1am às ·
que os recebeu muito bem. Ofereceu-se para ir com os desconhecidos às vezes tão ctg~s por entre baixios
estrangeiros até à costa do mar e trouxe ao capitão o ruído das oC:das de encontprer.o a chosta que se ouvia
um presente de cristal das montanhas do interior, Etectuou-se um desemb o as roc as · .
de aves marinhas p L arque numa llha coberta
falando-lhe do rio Paraguai junto do qual se podia · ero opes e 0 «c -1- . _
encontrar muita prata e ouro. mataram enormes quantidades I apt ao trmao»
uma boa provisão delas N e ev~ram para bordo
Martim Afonso cumulou o rei dos desertos com noroeste um vento escald~nteaquele dta .levantou-se do
todas as honras e carregou-o de muitos presentes antes Pt-ro Lopes e causou I b ' que parecta fogo, declara
de voltar para a sua pátria distante. '· e re a toda a. gen t e, o que nao
_
era uma vanante agradáv 1d
Assim se passou o tempo até Agosto, quando a A . e o nevoetro
costa continuou i · • ·
armada se preparou para partir. A capitaina, cujo nome de Agosto. •Quiz a Nos n~stve1 sob o nevoeiro até r 2
continua a ignorar-se, a Nossa Senhora das Candeias Santa Crara, cujo dia esr: enhora. e a bemaventurada
tomada aos franceses, a caravela que devia ter ido para
Sofala e os dois bergantins acabados de construir, saíram
vagarosamente da encantadora baía, e dirigiram-se
•para sudoeste, por entre a branca neblina envolvente
.do mar.
I Depois encontraram, qu~ ahmpou a nevoa. (1)»
ta~a desde r5o4 nos m -se JUnto duma ilha regis-
hofe Bom Abrigo- cer:~a~~o~oodnome_ de Cananeia-
2
e latitude Sul.
(I) 06. rit., p.il• 20ó
72 CAPITAES DO BRMIL
CAPITAES DO BRASIL

Ali o piloto Pero Anes, que falava as línguas índias!


foi enviado a terra para estabelecer contactos, e at os vira, mas corria entre as tribos do continente que
encontrou o «Bacharel». . para além das montanhas reina va um grande rei branco
Quem era este misterioso exilado- nunca cttado em reinos de riquezas inenarráveis. Mandasse Martim
pelo seu nome mas apenas pelo seu grau escolar? Ele Afonso uma expedição desde ali e Francisco Chaves.
fora visto pelos homens de Caboto alguns anos an~es e prometia-lhe que em dez meses estaria de volta com
400 escravos carregados de prata e ouro!
também pelos expedicionários da armada de Dtogo
Garcia. . • Visão deslumbradora! Pero Lobo, capitão do.
Dizem-nos ter sido um degredado, mas mnguem ~ale_ão São Vicente, sentiu-se inflamar. O cccapitão.
diz qual o crime por que o condenaram. Tão-pouco se umao» mandou-o com 8o homens seguir Francisco de
conhece a data da sua chegada ao Brasil. O ~cast~lhano Chaves até à Terra Prometida. A 1 de Setembro de
Diogo Garcia, que passou em r. 527 ~m Sao Vtcente, r ~3 r -dia escuro e chuvoso- com dez besteiros e 40.
entre Cananeia e o Rio de Janeuo, dtz que encontrou attradores, partiram à procura do reino do ouro, que·
o escolar banido ali a viver e que ele se encontrava na se encontrava para além das montanhas ínvias.
terra havia 3o anos. Isto faz-nos recuar até 1497-antes . A armada conservou-se em Cananeia durante 44-
da descoberta oficial do Brasil! • . dtas .e d~rante todo esse tempo jamais viram o sol.
Apenas podemos conject?rar que genero de ~tda Chovta dta e noite, e havia terríveis ventos e trovoa-
levou ali durante esse longo mtervalo. Quando Dwgo das; perderam-se as âncoras e quebraram-se muitas.
amarras.
Garcia o encontrou não estava sozinho. Tinham-se-lhe
reunido alguns castelhanos e alguns ~o!tugueses­ _ Apesar de tudo isto, a 26 de Setembro seguiram
abandonados ou sobrevi ventes de naufragto- a quem mats para o Sul, encontrando mau tempo todo o caminho.
chamam seus genros, de onde se conclui qu~ o Perderam um dos bergantins. Pero Lopes apanhou uma
«Bacharel» tal como o Caramuru mais ao norte, tmha vaga tal que <? seu ba!el. de bordo chegou a flutuar
sido feliz j ~nto das belas índias e ti vera várias filhas
dentro do navw; as subttas mudanças do vento por
~obre o mar encapelado faziam andar os navios à toa e
casadoiras.
Foi em Cananeia que Pero Lopes encontrou este
t~l forma, que nenhum homem podia conservar-se·
dee pe.
enigmático indivíduo, com cinc~ ou seis castelhanos ~ Finalmente reapareceu o Sol por cima daquele
um português chamado Fr~nctsco. de ~haves, «m~t m~ndo revolto. Pero Lopes pôde calcular de novo a
grande lingua desta terra•> ( ), que tm~a tdo ~om Solts la:~tu~e. tundearam junto dum grupo de ilhas a 34 o de
sa ttu ~ uld de: on~e puderam ver colunas de fumo ·que·
para o Rio da Prata em 1515, e devta ter s1do velho
amigo de Henrique Montes.
Pero Anes levou toda a gente com ele para a nau n~~rf,~~~~ f~/~tenor das terras. Pero Lopes meteu-se
capitaina, e ali todos falaram acerca dos tesou:os q_ue d e n'b etros,
. rei vaer, encontrando
e flores cc uma
d terra
p encantadora
se encontravam no interior. Como de costume, mnguem sem quaisquer indícios de vf~amho as e . o:tugal» ('),mas.
uma na, tao-pouco pôde
(') Ob. cít., pág. 2 10. (') Ob. cit, pág, 144.
74 C t\PlTAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL 75
saber do que provinha o fumo. Os únicos seres vivos
que encontraram foram duas grandes onças. • A madrugada v-eio revelar a terra à distância duma
Estavam agora a aproximar-se do cabo de Santa legua; as ondas passavam por cima do mastro do tra-
Maria, à entrada dum formidável golfo aonde o grande que!e. A toda a volta havia traiçoeiros recites contra os
rio do Sul vai desaguar no mar, ponto que já tinha sido 9u~ts o mar se queb:ava. Parecia a Pero Lopes que a
atingido anteriormente por outros nautas -primeiro untca esperança sena dobrar o promontório. Portanto
portugueses, depois castelhanos. Alguns chamaram ao mandou desterrar as veias e avançar apesar do mar
·r io Santa Maria, como o cabo, outros deram-lhe o grosso que se desfazia sobre a coberta.'
nome de rio de Solis, do nome do infeliz piloto que ali Quando se aproximavam do promontório, rasga-
tinha morrido, mas espíritos mais optimistas chamaram- ram-se as velas da mezena. Poderia o navio dobrar
-lhe rio da Prata, ideia que, todavia, não passara até a ponta? Uns pensavam que sim, outros gritavam que
·então de simples esperança. era lo~cura avançar- se não se detivessem, todos se
Numa ilha situada em frente do cabo de Santa perdena~. Cada qual expunha com brados o seu
Maria encontraram um bom porto, onde Martim Afonso parecer diferente, e fez-se tal barulho diz Pero Lopes
-abasteceu os navios de lenha e água. A pesca ali era que «nos nam entendíamos» (1). ' '
simplesmente fenomenal; num só dia, diz Pero Lopes, B~stava de falatório! O jovem capitão ordenou
"(<matamos desoito mil peixes entre corvinas e pescadas com ftrruez~ a toda a tripulação que descesse e
·e enxovas» (1). Corriam em tal número para o anzol que man~ou o ptl?to. para o leme, indo ele próprio para a
mal havia tempo de puxar um e logo outro aparecia. proa, a:determmet de fazer experiencia da fortuna e me
Esperaram lá oito dias pelo bergantim que faltava, por a ver se podia dobrar a ponta· porque se a' nam
mas não veio. Por isso o «capitão irmão» deixou dobrava nam ~avia onde varar sen~m em rocha viva
instruções escritas para o navio perdido, no caso de onde nam havta salvaçam» (2). '
ele ali chegar depois. Envolveu o papel em cera e . O pr?montório ameaçador mostrava-se cada vez
.amarrou-o a uma cruz, que ergueram na ilha. O tempo mats pró~mo, enquanto as grandes vagas se desfaziam de
horrível que os acompanhara por toda esta costa rece- ;ncontro costa, semelhantes ao trovão. O navio encon-
·beu-os à saída do porto com redobrada fúria. A capi- :.tv::~ t~op~:~!~ da costa que parecia ir desfazer-se
taina desapareceu logo da vista e a Nossa Senhora filho• ta\ a noss!' senhora e ao seu bento
-das Candeias de Pero Lopes, navegando com os dois ' \ J que a ressaca, catndo com fúria sobre o .
o arrastasse de novo nav10,
castelos debaixo de água, parecia condenada à destrui- penetrava pelas escotilt'a~raAo _mar enq~anto a água
ção num promontório rochoso. Pero Lopes mandou e da perfcia náutica a • sstm,. por milagre do Céu
desfazer os castelos, e teve de cortar o cabo do batel naquela mesma tarde p~nta pengosa foi passada e
que seguia o navio. Procurou lançar ferro mas as a ossa Senhora das Candeias
.âncoras eram arrastadas como se nada houvesse em
que se prendessem.
M)J Ob. Cit., pág. ::!66.
Oh. cit., pá~. ';,67.
(1) Ob . cit., pág 255 ('j) Loc. cit.
Ct\PITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL
76

lançou ferro junto duma i_lha, a sal~o e sem estragos, uma jangada e desembarcou ferro e uma forja na ilha
mas com seis palmos de agua no boJO. . para fabricar pregos para o batel que ele estava
O galeão São Vicente juntou-se-lhe alt- sem o a construir.
batel e três âncoras. E a nau capitaina? O piloto do Naquela tarde regressaram os cinco homens, tra-
galeão disse tê-la visto desmantelada e junto da costa, zendo- oh! alegria!- o que fora o batel da caravela,
mas não tinha a certeza de ela ter encalhado. muito danificado é certo, mas não sem conserto.
Ao outro dia apareceu a caravela~ perdera todos Remendaram-no logo e puderam mandá-lo a terra à
os cabos todas as âncoras e o batel. Não se soube procura de peixe e de caça seca que os índios lhes ofere-
mais nad~ da capitaina. Pero Lopes analisou a situação. ciam com abundância.
Sem cabos, sem batéis e sem âncoras, era quase Uma semana depois o grupo voltoú com notícias
impossível sair para o mar; «puz em obra fazer hum tranquilizadoras do «capitão irmão». A nau capitaina
batel de aduelas dentro da nao» (1). Entretanto mandou encalhara na costa, mas Martim Afonso e a maior parte
trinta homens- todos bons nadadores -para a c a:a- dos seus homens estavam em segurança. «Escapei em
vela, levando as armas pela água .dentro. de uma ptp.a húa taboa» (L), como escreveu o capitão resumidamente
tunda para não se molharem, e dots barns com provi- nas suas memórias; Pero Lopes fala apenas em sete
sões para uma semana. As ordens eram que a caravela mortes- seis por afogamento e uma de simples choque.
navegasse o mais próximo d~ terra : ?s desembarcasse Os bergantins também tinham encalhado, mas não
a todos em jangadas. Depois segutnam a~ longo da sofreram estragos. Os batéis da capitaina e do galeão
praia, procurando quaisquer ~in~i~ de Marttm At~nso. São Vicente foram encontrados intactos. Além disso
O desembarque não fot factl, mas consegutram Martim Atonso ficara surpreendido por encontrar
etectuá-lo observados à distância por um grupo de outro bergantim novo- muito bem feito de madeira
aborígene~. Depois os indígenas afoitaram-se e «logo de cedr~- sem dúvida abandonado por quaisquer
chegaram e abraçaram a todos co;n grandes choros aventuretros castelhanos, e que seria de grande utili-
dade para os portugueses !
e cantigas mui tristes>>, (2) embora nao se tornasse apa-
Martim Afonso deu ordem a Pero Lopes para ir
rente a causa dessa tristeza. ter com el~ na caravela com todos os homens dos
Deixando os seus melancólicos amigos, os homens
?atro~ navtos que pudessem ser dispensados. Numa
foram vistos por Pero Lopes seguir a? longo da p~aia
até meia légua de distância, quando hzeram um smal
Ilha s~tu~da ~ 4 léguas a ~es.te ?o
lugar do naufrágio,
os .dots _umaos e os pnnctpats oficiais d iscutiram
com fumo. Pero Lopes redobrou de atenção. Q~e a sttuaçao.
objecto era aquele junto da praia? Seria um dos batéts As. ~erspectivas não pareciam ser cor-de-rosa
perdidos? . . Da crpttama,, com excepção da artilharia e algum ferr~
Seguiram logo cinco homens em ctma dum barnl que ora posstvel salvar, tudo o mais ficou perdido, e o
para ver. Entretanto Pero Lopes não ficou quieto. Fez
(I) -Brevíssima e Sumária Rei - f d .
Martím Afonso de Sousa publ" d . açabo, ~ue ez a sua V1da e Obras o Grande
(I) Ob. cit., pág. 270, ' 1ca a m·o . Clt., vol. 11, pág 54
(2) Ob cit., pág. 371.
78 CAPITAES DO BRASIL
CAPlTAES DO BRASIL
navio Nossa Senhora das Candeias e o galeão São
Vicente, que tinha resistido à tempestade, esta- semeada de recifes, ali já a água do mar era doce
vam em tal estado «que se nam poderiam soster emb,o:a o grande estu~rio tivesse o aspecto de cost;
3 mezes» (1). ~an.ttma. O ve~to amatnara. Relâmpagos jnquietantes.
Os pilotos e os mestres insistiram com Martim tlummavam o ceu para os lados do ocidente- nesta
Afonso para não prosseguir mais, até porque aquele latitudes indício certo de gran?e te~pestade a prepa~
estuário não parecia navegável nas garras das tempes- rar-se, segundo Pero Lopes ouvira dtzer. Portanto pro-
tades desencadeadas que o varriam todos os dias. curou um ~orto onde pudesse passar a noite e encalhar-
O «capitão irp:1ão» tomou em consideração estas obser- o berganttm e descarregá-lo parcialmente. Tendo.
vações. Certamente os seus navios não se encontra- ~esembarcad? a ~rtilharia e construído um abrigo.
vam em condições para se embrenharem pelo rio em Janto da ~r.at_a, o JOvem capitão, acompanhado de dez
exploração demorada. Ao mesmo tempo aquele belo homen~, dmgm-se para o interior à procura de indícios
bergantim abandonado na praia lembrava que os de habttantes.
rivais tinham interesse por aquilo e já estavam a Não se encontraram nenhuns rastos humanos_
trabalhar. Um bergantim era uma embarcação jeitosa apenas. pegadas de numerosíssimos animais; havia
e útil que se podia adaptar aos remos, e prestava codormzes, perdizes e outra caça. Realmente aquela
valiosos serviços nas enseadas apertadas e águas pouco t~r.ra era admirável! Pera Lopes, 0 menos expan-
fundas. Que Pero Lopes levasse um deles, com s~vo dos mancebos, pela primeira vez se mostra entu-
3o homens e alguns ccpadrões» para tomar posse do rio ~átasma_do. «~ t~rra he mais fermosa e aprasivell que eu
em nome do rei de Portugal. Martim Afonso deu-lhe J mats cutdet
. de ver» ' (1) exclama ele , e d os seus
20 dias para ir e voltar. Não devia demorar-se porque compan hetros «nam havia homem qu f
d'olha e se artasse
o porto onde os navios se encontravam era muito desa- L r os campos e a fermosura delles. ,, Para Pera.
brigado para longa permanência. _opes o arvoredo, crescendo janto das mar ens do
O jovem Pero Lopes, sempre pronto para tudo, no que banhava estes campos Elíseos era eco mg . &
moso que nunca vi.» (') , ats ler-
partiu a 23 de Novembro para entrar pela foz do
imenso rio- embocadura tão ampla que ainda parecia Carregados com caça bastante
mar largo. O bergantim seguiu ao longo da costa
recortada e acima da qual se erguia um monte elevado
~~n;~;~o~~~r,o.~~:[::•:~o~~~:;:•'gi': ~~~~o•::.::r?•:
eram de tal força que ni , · en o e o gramzo.
g~~~:~:·~,~~:::d~~r~;~~i:7 i:::~~v"!~=~~~':/:d~:
a que Pero Lopes chamou monte de São Pedro. Era o
mesmo que já avistara, mais de 10 anos antes, Fernão
de Magalhães e ao qual chamara Montevideo - e
:!•
tilizados. tcaram completamente inu-
M0ntevideo ficou para as gerações que ainda não
No dia seguinte d b · d
tinham nascido. ram as roupas enq~an~ atxod um sol radiante, seca-
Terra verde junto de uma costa rochosa, toda , on as enormes rebentavam
O) Oh. rit,, pag·• 28 3
(1) Diário da Navegdção, vol. I, pág. 277. {2) lhid. .
so CAPITAES DO BRASIL
CAPIT AES DO BRASIL 81

na praia, como se o estuário fosse o próprio Oceano. o que os encheu de alegria tal que «Parecia que que-
Que poderiam eles fazer sem provisões? Voltar para riam sair fora de seu siso» (1). Separando-se deles cheios
trás? Isso era uma pena. E absolutamente desneces- de entusiasmo, os portugueses fizeram-se de vela.
sário concluiu Pero Lopes depois de pensar melhor. Navegaram por entre margens verdejantes durante
Não 'abundava a terra em toda a espécie de caça, e dias seguidos. Cada vez mais ilhas enchiam o estuário,
não estavam as águas repletas de peixe, o melhor e enquanto o bergantim continuava a subir o rio, com
mais saboroso que ele vira? Seria fácil viver naquela pouca vela e fazendo sondagens à medida que avança-
terra. vam. Desembarcando para caçar, Pero Lopes trepou a
Portanto, lançaram-se à busca e viram manadas uma árv-ore e nada pôde ver senão ilhas. Voltou ao
inteiras de gamos e ainda havia mais mel silvestre do bergantim carregado de mel e caça; o vento amainara
que naturalmente eles poderiam levar, e que era exce- e ele deu ordens para o barco seguir à força de remos.
lente bem como cardos comestíveis e muito bons- E assim navegaram por entre o arquipélago, por estrei-
'
provàvelmente uma variedade de alcachofra. Numa tos canais e por enseadas que penetravam pelas mar-
1erra daquelas ninguém morreria de fome. E todos gens verdes, delta formado pela vasa das aluviões dos
votaram por que se seguisse para a frentl!. rios tributários. Muitas vezes o fumo erguia-se
Resolvidos a subir lentamente o rio durante toda em qu,alquer ponto, lá muito longe, no interior mas
.a noite de luar, içaram a vela. Ainda não desaparecera mesmo do ctmo . ,
d as arvores mais altas, não se ,podia'
a luz do dia, quando de repente quatro canoas surgi- ver nenhum ser humano. Era uma terra silenciosa soli-
ram das margens verdes e com tal rapidez que pare- tária, encantada, pelo meio da qual eles desliz~vam
ciam voar, cada uma com 40 homens, todos em pé a por sobre águas límpidas como um espelho -terra de
remarem, todos armados de arcos, setas e azagaias, campos, de flores e bosques.
-estando cada homem pintado com cores múltiplas e Pero Lopes afirma que, «quanto mais ávante ia tanto
-enfeitado com penas coloridas. melhor me parecia.>> (2) Ele estava encantado com as
Todos pareciam saudar os brancos com grande árvores majestosas, a relva esmaltada de flores como
satisfação, mas ninguém podia compreender-lhes a fala, as d~ Portugal, a espessura das árvores toda palpitante
por ser completamente diferente da dos índios do Brasil de passaros- «aves as mais fermosas que nunca vi» (3).
- língua áspera e gutural: «falavam do papo como As garças e as abetardas abundavam em tal número que
mouros.» (1) se podiam m_atar à paulada; os gamos daquelas florestas
Pero Lopes declinou o convite, feito por sinais, eram os ~atores _que se tinham visto; quanto ao peixe
para ir ao acampamento que ficava junto da mar- que enchta os r~os e as enseadas, era inacreditável.
gem, porque era quase noite. Com a rapidez do Nenhum se parecia com qualquer dos que se pescavam
relâmpago os índios desapareceram, voltando com na costa portuguesa- <c toma vamos peixe d'altura de
igual velocidade com um barco carregado de peixe.
Pero Lopes deu-lhes guizos e contas de vidro em troca, (I)Ob cit. pág. 283.
C2)Ob. cit , pàg. 291.
(3) ub. cit pág. 292.
(1) Ob . cit. pág. 287 .
6
82 CAPITAES DO BRA~IL
CAP1TAES DO BRASIL 8.}

hum homem, amarelos e outros pretos com pintas ver-


mar a atenção não deram resultado. Não havia tempo
melhas.» (') Mas que peixes deliciosos ! E como se dige- para mais. Só falta va uma coisa: não se devia esquecer
riam fàcilmente! Ao apetite jovem de Pero Lopes pare- que havia pretendentes rivais a este paraíso. Por isso,
cia que se podiam comer dez arráteis deste peixe e Pero Lopes mandou levantar «dons padrões das armas
sentir vontade de comer ainda outro tanto. E o ar nesta d'el-rei nosso senhor>>(') e tomou formalmente posse
parte do rio era tão bom que os alimentos nunca se desta deliciosa terra para Portugal.
deterioravam- embora estivessem «na força do verão Impelido por uma ?risa forte. '!ue sopr~~a . do
que matavamos veados, e trazíamos a carne Io, l2 noroeste, o bergantim satu do arqutpelago labmnttco
dias sem sal, e nam fedia» .(2) à velocidade de 3 ou 4 léguas por hora. Ao passarem
A água do rio era deliciosa também-. tépida de por um grupo de árvores altas ouviram grandes brados.
manhã e fria como gelo ao meio-dia. Não se podia Puseram-se a investigar e por fim viram um homem,
beber de mais, pois quanto mais se bebesse melhor todo vestido de peles, com arco e seta na mão e a ges-
uma pessoa se sentiria: c:Nam se podem dizer nem ticular junto do rio.
escrever as cansas deste rio, e as bondades delle e da Disse algumas palavras na língua guarani, com-
terra». preendida pelos intérpretes de Pero Lopes, mas
Toda a gente estava de acordo. Além dos portu- quando lhe falaram na mesma língua, o homem mos-
gueses que iam com Pero Lopes, muitos dos quais trou não compreender. Todav:ia, conseguiu dizer que
tinham conhecido a India, havia aind a italianos, fran- se chamava Inhandu e pertencia à tribo dos índios
ceses e alemães, mas todos estavam também encan- Baguoa Chana.
tados com a beleza do país : «anda vamos todos pasma- Ao seu lado apareceram mais três homens e uma
dos que nos nam lembrava tornar!» (3) mulher. Esta, segundo Pera Lopes, era muito tonita.
Mas tinham de tornar. O tempo que lhes fora Usava cabelo castanho comprido, e abaixo dos olhos
concedido pelo «capitão irmãO>> eram 20 dias, e quase tinha um alfinete de metal que lhe atravessava as
tantos tinham já passado. Pero Lopes chegara ao que maçãs do rosto; os homens traziam barretes feitos
ele chama «Rio dos Carandins»- Quyrandies para os duma cabeça inteira de onça, com dentes.
expedicionários de Caboto- e que os historiadores Era uma pena que ninguém se pudesse fazer com-
modernos supõem ser um sítio nas proximidades da preender. Os Baguoa Chana pareciam pensar o mesmo~
confluência dos rios Uruguay e Paraná. Por gestos, deram a perceber que conheciam um
Os portugueses tinham esperado encontrar alguns homem que sabia falar muitas línguas. Iriam buscá-lo
indígenas destes sítios, que pudessem dar-lhes infor- e voltariam dentro de 5 dias.
mações relativas às minas de prata, mas todas as Pero Lopes deu-lhes grande satisfação oferecen-
fogueiras que Pero Lopes mandara acender para cha- do-lhes guizos e contas de vidro, além duma camisa
que deu à mulher. Os índios trouxeram aos portugueses
uma perna de anho e bocados de carne seca mas não
(•)
(2)
Ob. cit., pág. 291.
Ob. cit., pág. 304.
'
(3) Ob. cit., pág. 303, (I) Ob. cit., pág. 301.
CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL
84

se atreveram a entrar no bergantim, apesar de se sepa- quebravam-se em cima do bergantim, que quase se
rarem todos como os melhores amigos. encheu de água. Conforme puderam, esvaziaram-no à
Pero Lopes ficou ali seis dias, a pescar e a caçar bomba e procuraram seguir junto da costa até que
gamos tão grandes como bois, cuja carne secaram. sentiram o navio embater com força. Todos pensaram
Todavia, ao fim do tempo marcado os índios não apa- que encalhara, mas era apenas um peixe enorme r
receram com o seu amigo poliglota, pelo que se resolveu O monstro ferido contraiu a cauda e bateu com ela
não esperar mais. com tal torça que arrancou metade da amurada. Os
Voltaram a passar pelo acampamento índio que marinheiros, atônitos, não voltaram a ver o enorme
tinham visto quando subiam o rio. Mais uma vez bicho, mas apenas a espuma que deixou atrás de si.
aquela gente amiga foi, desarmada, ao encontro dos O vento amainou, o bergantim pairou entre uma
portugueses e . abraçou-os com alegria. Pero Lopes ilhota pedregosa e a terra firme, onde esperavam passar
deu-lhes muitas coisas, diz ele, e em troca eles trouxe- a noite em paz; mas repentinamente veio da terra uma
ram-lhe um bom carregamento de peixe. O bergantim tremenda .trovoada, acompanhada de tal furacão que
partiu de novo, e os índios, que «nadam mais que gol- «nam havia homem que falasse, nem que pudesse abrir
finhos», (I) acompanharam-no dentro de água, embora a boca» (1).
ele navegasse com vento forte. Num instante o bergantim foi atirado para uma ilha
Abaixo do monte de São Pedro (ou Montevideo), onde naufragou entre dois rochedos. Os homens conse~
os portugueses tornaram a encher as barricas de água, guira~ salvar-se agarrando-se aos rochedos pontiagu-
pois adiante o rio tornava-se salobro. Pero Lopes tre- dos, ta o aguçados. que lhes puseram os pés em sangue.
pou ao cimo do monte para inspeccionar a terra. Até A tormenta, gtrando da terra para o mar, levantava
onde a vista podia alcançar, estendiam-se planícies ondas enormes a cobrirem o ilhéu, que se encontrava
cobertas de erva, atravessadas por rios com belas <JUase totalmente submerso. Os desgraçados, agarrados
árvores junto das margens. Sobre estas prada- as rochas e cercados de água que quase os arrastava
rias infinitas, vagueavam manadas de gamos e confessavam os pecados uns aos outros, convencidos d;
s~r aquela a sua hora derradeira. O frio era intensíssimot
corças- a planície estava pejada de caça; «nunca vi
em Portugal tantas ovelhas, nem cabras, como ha nesta diz Pero Lopes. Molhados até aos ossos bateram os
terra de veados», (2) exclama Pero Lopes. Carregados dent_es durante toda a noite sob as rajadas do vento
glacial.
de caça, voltaram para a pequena embarcação.
Não se encontravam a muitos dias de distância Ao. amanhecer o vento mudou e as águas baixaram,
do lugar onde haviam deixado o «capitão irmão». Sem descobnndo o berg~ntim encravado entre dois rochedos.
dúvida chegariam lá em breve, se, na véspera do ~s homens q?e nao estavam inteiriçados pelo frio e
Natal, não se tivesse levantado forte ventania do norte. amda se _senttam com ânimo, agarraram os remos e
ou~os ObJectos que flutuavam e fizeram jangadas para
Era impossível continuar à vela; ondas enormes po erem alcançar a terra firme.

( 1) Ob. cít ., pág 312. (I} Ob. cít, pág 320,


(2) Ob. cít , pág. :ns.
86 C APITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 87

Pero Lopes, imperturbável como de costume, levou pois o Natal naquelas latitudes é no verão. Pero Lopes
três homens com ele ao bergantim para o esvaziar da e mais alguns foram a terra «em busca de lenha para
água. Pensava em cortar o mastro para os homens nos aquen armos (')», mas aquela região não era
poderem vir nele para terra, mas uma vez a bordo pare- arborizada.
-ceu-lhe que se descarregasse toda a artilharia e aliviasse Caminhando ao acaso pelos campos desertos, che-
<> barco da outra carga, poderia pô-lo a flutuar. Chamou .garam a um sítio que tinha a toda a volta uma paliçada
mais homens para o ajudarem- homens que não sabiam com redes presas entre as varas. Seria aquilo uma
nadar, pois os nadadores, diz ele, procuravam todos armadilha para apanharem gamos? foi o que eles
.alcançar terra firme munidos dum remo ou dum pau, primeiro supuseram. Não! Dentro do círculo Pero Lopes
para lhes darem ajuda. Entretanto, a bordo do bergan- viu o que lhe pareceu sepulturas aberta& de fresco. Por
tim o grupo desceu para trabalhar até que- oh alegria!- dma de cada uma havia peles como as que os índios
ó barco se levantou na água e flutuou soltando-se dos usavam, e à volta de cada sepultura estavam armas
ifochedos. cuidadosamente pousadas: cacetes e azagaias. Havia
-Voltem! Voltem! gritaram eles aos fugitivos. também redes de pesca e das que os indígenas se utiliza-
Nenhum homem precisa de alcançar a terra a nado. vam para caçar o gamo- «vi que eram sepulturas dos
O bergantim está intacto, todos estamos salvos! que morriam» (2), escreve Pero Lopes. Contou umas
E era verdade, O sólido barquito não se encontrava trinta sob o céu silencioso, sentindo-se tentado a abrir
danificado, com excepção dum rombo na tábua dores- uma, mas absteve-se prudentemente, pois a gente da
bordo, que foi ràpidamente tapado. terra poderia tomar isso a mal.
Tornaram a carregar o barco e toda a gente reem- Mas havia de levar os postes de madeira, que
barcou. Foi uma tripulação esquálida e exausta a que foram aproveitados para fazer uma fogueira para assar
se reuniu a bordo. Alguns dos homens <<já quási mortos, dois gamos que tinham matado naquele dia. Deste
que nam tinham forças para andar» (1) tiveram de ser modo puderam satisfazer a fome e aquecer os membros
transportados, e muitos, diz Pero Lopes, estavam irre- enregelados.
conhecí v eis. Durante dois dias ninguém comera nada, Entraram depois em contacto com alguns aborí-
nem havia nada de comer senão ervas cozidas. Toda a .g_e?es. Como já_ tinham observado, os homens daqueles
noite trovejou, ventou e choveu torrencialmente. A 26 s1t1os eram mUtto altos e fortes, e muito feios. Tinham
de Dezembro o tempo clareou por fim, mas o vento <> cabelo comprido, usavam um altinete reluzente atra-
era ainda contrário, impedindo-os de partir. vessa~o no nariz, v_estiam-se de peles e tinham por armas
Então Pero Lopes mandou um homem para terra azagatas de madetra. As ~ãos eram mutiladas, porque
até ao sítio onde tinham deixado a armada. Se o vento cortavam os dedos pelos nos todas as vezes que perdiam
não mudasse breve, Martim Atonso devia mandar-lhes um parente. Os portugueses viram um velho que não
auxílio, porque lhes faltava tudo. tinha mais do que os polegares.
Ainda estava frio, um frio impróprio da época,
(1) Ob. cit., pág. 325.
(1) Ob. cit , pág. 323. (2) Ob. cit. , pág. 326.
88 CAPITAE5 DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 89-

Quanto às mulheres, permaneciam invisíveis, com futuro próximo. Talvez fosse local mais próprio o.
excepção duma velha, que ao avistar os brancos território que circundava o sítio onde o ccBacharet. se·
escondeu o rosto no chão e nunca mais levantou a estabelecera. Não só era mais acessível para quem
cabeça. vinha de Portugal, mas também já havia aí um
Esta gente era a mais triste da terra : «O mais núcleo populacional. Era assunto que requeria consi-
do tempo choram» (1), diz Pero Lopes, e parece não deração.
acharem prazer em coisa alguma. Envolvidos em Quatro dias depois de Pero Lopes ter chegado, a
tristeza impenetrável, deram a sua carne e o seu armada de Martim Afonso seguiu para o norte, a
peixe e parecia que não esperavam nada em troca. caminho de São Vicente.
Aceitaram todos os presentes que lhes ofereceram,
sem um sorriso - «mostrámos -lhe quanto trazía-
mos» (2) e eles não manifestaram surpresa nenhuma,
nem sequer pestanejaram ao ouvirem troar a artilha-
ria. Nada parecia poder levantar a nuvem da sua
indiferença melancólica, e nunca pararam de suspirar.
Pero Lopes concluiu que o seu único prazer era
a dor!
Deixando esta gente melancólica entregue à sua
tristeza desconhecida, os portugueses fizeram-se de
vela a 27 de Dezembro, e ao pôr-do-sol- «cheguei
à ilha das Palmas onde Martim Afonso estava» (1).
Pero Lopes, pessoa pouco emotiva, nada mais tinha
para dizer do encontro fraterno.
A armada dos irmãos tinha efectuado o reconhe-
cimento de toda a costa meridional que pudesse ficar
dentro do meridiano de Tordesilhas- na verdade,
tinham-no ultrapassado, mas não para além das possi-
bilidades da cartografia cozinhada.
Todavia, por então já se explorara bastante.
Faltava ainda a missão de colonização. Estas terras
meridionais eram muito boas, mas na realidade ficavam
demasiado longe para poderem ser aproveitadas num

11) Ob. cit,, pág. 329.


(2) Ob. cit,, pá~. 330.
(3) Ob, cit., pág. 331.
VI

São Vicente e os belos campos de


Piratininga

No sopé das montanhas alcantiladas acima de


São Vicente, uma costa acidentada vinha morrer junto
duma franja de espuma branca de neve e de numerosas
ilhas em frente da vastidão do mar azul ferrete.
Ali, praias de areia de brancura deslumbrante e
lagunas verdes de mangues de tronco torcido rodeavam
milhares de baías e enseadas e salinas aonde todos os
anos os índios das alturas desciam como enxames pat a
acamparem junto da costa, enquanto apanhavam
mariscos.
A colheita era muitíssimo compensadora. Milhares
de ostras, de mexilhões, perceves e búzios- crustáceos
de todas as espécies- viviam agarrados às rochas. Os
índios alimentavam-se de marisco durante meses a tio
e secavam o que ficava para levarem para casa, deitando
fora as conchas, grandes montes das quais se viam por
toda a parte, e a vegetação tropical cobria-as até pare-
cerem colinas verdes; muitas vezes também havia por
baixo ossos humanos, porque todo o índio que morresse
durante a pesca era sepultado debaixo das conchas.
92 C APITAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL 93

Durante séculos foi este um lugar solitário. Os


sendo muito boa a pescaria que se fazia n.aquelas águas . .
índios pescavam, levantavam os acampamentos e
Tinham também uma espécie de e,staletro onde :ons-
desapareciam na floresta, deixando a costa em poder
truíam bergantins, como vimos atras ..Tal era o nucleo
dos macacos, que se multiplicavam por aqueles sítios.
colonial isolado de São Vicente, numa tlha separada ?a
Os índios chamavam-lhes buriquis e o monte em que costa por uma enseada, num dos lados duma bata,
eles viviam, Buriquioca- Casa de Macacos. Parece
que as primeiras habitações humanas que se viram vasta e abrigada. .
Esta descrição reporta-se a I 5 3o, menos de d01s
naquela costa foram as choças levantad?s r:a ilha anos antes de chegarem os dois irmãos Sousas. Toda-
alagadiça de São Vicente por certos marmhetros de via o irritante Pero Lopes nada nos diz acerca destas
Portugal e de Espanha ali naufragados. '
coisas.
Não se sabe ao certo como e quando eles lá Ele e Martim Afonso, na Nossa Senhora das
chegaram. Supõe-se que o «Bacharel» acima citado foi Candeias, seguida pelo galeão São Vicente, chega-
o primeiro desse número. Houve também um chamad() ram à ilha do mesmo nome a 22 de Janeiro de I 532,
Antônio Rodrigues, que dizem ter vivido junto da praia, A caravela, que completava a sua armada de três
e houve muitos mais. Diogo Garcia, que passou ali em navios, ficara mais adiante, no que então se conhecia
1527, diz que encontrou o <<Bachareh com os seus pelo nome de Porto dos Patos (o actual Rio Grande do
genros e que o abasteceram de provisões, venderam-lhe Sul), na esperança de encontrar sobrevi ventes do
um bergantim que tinham construído e contrataram bergantim, perdido na tempestade de 4 meses antes.
com ele o fornecimento de 8oo escravos para embarcar Da ilha de Guaipe (mais tarde chamar-se-ia
para a Espanha. Como os brancos viviam na melhor Santo Amaro) a ocidente da baía, ·os dois navios
harmonia com as tribos tupis dos arredores, natural- passaram para o porto de São Vicente, mais abrigado.
mente os cativos a exportar pertenciam ao grupo dos A toda a volta viam-se montes verdes e muito juntos
inimigos dessas tribos. saindo de pântanos verdes, ilhas de vegetação beijada
O jovem cosmógrato Alonso de Santa Cruz, que pelas águas envolventes, aparecendo, aqui e além
passou um mês neste porto com a armada de Caboto, como feridos na encosta dos montes, a rica terra
também tem alguma coisa que dizer do estabelecimento vermelha. «A todos nos pareceu tam bem esta terra-
português chamado São Vicente. O «Bacharel» ainda declara Pero Lopes- que o capitam Irmão determinou
ali estava com os seus genros, levando vida primitiva de a povoar»(~). Não faz qualquer menção de portu-
mas razoàvelmente cordata. Tinham dez ou doze casas, gueses a viverem ali. Podiam eles estar todos ausentes
dizem, sendo uma delas de pedra, com telhado, com o <<Bachareln em Cananeia?
havendo também uma torre defensiva para aí se refu- Tão-pouco tem alguma coisa a dizer das edifica-
giarem em caso de luta com os índios. . ções vistas por Alonso de Santa Cruz. Supomos que ainda
Os portugueses viviam do produto da terra; culti- ali se conservavam, embora, evidentemente, naquela
vavam os seus vegetais, e os navios que passavam região de tempestades portentosas, um ciclone pudesse
deixavam-lhes galinhas e porcos. Uma ilhota fora
completamente aproveitada para a criação de suínos, (I) Ob cit., Tom . I, pág. 350
94 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL

tê-las arrasado completamente. Apenas se sabe que o Não temos dificuldade nenhuma em acreditar que
ccCapitão Irmão» fez construir um abrigo precário para estes índios nunca tivessem visto antes navios dos.
guardar as velas e o cordame, e qu~ varou u~ ~os brancos, embora seja um facto que durante os últimos
seus navios em terra para reparaçoes necessanas, trinta anos mais do que um aparecesse naquelas águas, e
Quinze dias depois foi ali ter a earavela, levando a não é provável que essàs tribos, irrequietas e a deslo-
tripulação do bergantim perdido, com 1 5 castelhanos car-se com rapidez, que andavam sempre por ali,.
recolhidos com eles no Porto dos Patos. Estes homens nunca tivessem ouvido falar daquelas visitas. O que,
tinham, ao que parece, estado ali durante muitos anos, com mais probabilidade, lhes causou surpresa foi o
e haviam-se unido aos portugueses naufragados. Todos número dos brancos naquela ocasião. Os estrangeiros
juntos, andavam a trabalhar na construção de outra barbados até então tinham aparecido apenas em
jangada, quando a caravela aparecera e os levara pequenos grupos, ao passo que as forças de Martim
para São Vicente. Afonso eram centenas. E pareciam estar muito à
E depois voltou a falar-se de prata e de ouro: Os vontade, estas curiosas criaturas - mbae.aba, eco que
castelhanos tinham entrado em contacto com as tnbos parece um homem)) é um dos nomes que os índios.
do sul e arranjaram amostras dos preciosos metais. deram aos seus exóticos visitantes- e estavam a fazer·
De onde vinham eles? Sempre a mesma história enga- casas para si !
nadora- um reino de ouro, lá muito longe. Notícias Os tupis receavam que dali lhes viesse m~l. Em·
mais concretas se poderiam obter quando Pero Lobo silêncio e sem que os vissem, como tinham vindo,
voltasse com os seus expedicionários que tinham par- afastaram-se pelas veredas da floresta, subiram, por
tido em direcção ao desconhecido seis meses antes. c~minhos precípites, até ao plató que se erguia por
Entretanto, Martim Afonso lançara-se ao trabalho alt, para consultarem os anciãos da tribo. Canoas.
de construção, edilicando e traçando o plano para a enormes tinham saído do mar ! exclamaram eles-
organização da colónia. Depois, machado e martelo canoas que, comparadas com as suas eram como a
fizeram-se ouvir na floresta virgem, enquanto as árvore e a relva humilde! Uma multidã~ de antropóides.
árvores eram derrubadas e se cortavam pranchas, que desembarcara e estava a tomar posse da terra.
se pregavam para fazerem casebres para os colonos- Então que os desalojassem! opinou o chefe.
o que devia ser, para cada homem, casa e lar neste Passassem palavra às tribos dos arredores mas pri-
país de sua escolha. E enquanto todos eles trabalha- meiro ele iria falar no assunto com o' poderoso
vam, se dermos crédito ao historiador paulista Madre guerreiro Tibiriça, que era senhor dos vastos campos.
de Deus, olhos brilhantes os observavam, sem serem de Piratininga.
vistos, desde as profundezas da floresta. . O grande homem ouviu a história com imenso.
Alguns índios tupis tinham descido das alturas mteresse. Por sua vez, comunicou o caso ao seu mais.
para pescarem nas enseadas pantanosas, ficando seguro oráculo, que, por acaso, era o seu genro.
espantadíssimos ao verem três na vi os muito alto~ e Este era um estrangeiro, vindo de muito longe-
algumas centenas de brancos acampados na prata, h~~e~ sensato de falas estranhas, e terrível no combate.
com o aspecto de quem se preparava para ali ficar. Ttbmça nunca fazia nada sem o consultar, por isso..
96 CAPITAES DO BRASIL
CAPlTAES DO BRASIL 97

-contou-lhe tudo a respeito dos intrusos que deviam ser seu gosto. Certamente, não era bacharel. Sendo com-
exterminados. pletamente analfabeto de facto, não sentia a falta de
De modo nenhum! respondeu o outro, horrorizado. contactos intelectuais. O clima era bom, ele novo
Esses estrangeiros eram, com toda a certeza, irmãos e forte, e a caça excelente, os guerreiros índios amigos
seus! Sem dúvida deviam ser uns pobres desgraça- e as filhas deles acolhedoras. Quanto à mulher que
dos batidos do mar e das tormentas, que naquela costa deixara em Vouzela, se João Ramalho alguma vez
hav'iam encontrado a sua única esperança de salvação. sentiu saudades, breve se consolou. Ninguém se
Permitisse Tibiriça que ele corresse em seu auxílio antes preocupou com descobrir quantas mulheres índias ele
de outras tribos levarem por diante os seus maus intentos! adquiriu, mas toda a gente está de acordo em que a
Tibiriça admirava o genro. O que ele dizia fazia-se-, principal era a filha de Tibiriça. ·
e - escreve Madre de Deus- os esquadrões volantes Segundo Madre de Deus, João Ramalho contou a
·d o Brasil excediam em rapidez todos os exércitos da sua história a Martim Afonso e apresentou-lhe o sogro.
terra. Assim foi que, dentro dum espaço de tempo, ina- Martim Afonso recebeu Tibiriça como um príncipe;
·creditàvelmente breve, Martim Afonso e os seus homens celebrou-se uma aliança; os índios dançaram e canta-
viram uma nuvem de índios em marcha, com 5oo arquei- ram ao som dos seus bárbaros instrumentos, enquanto
ros à frente. atiravam setas para o ar. Os portugueses tocaram
Aquilo parecia ameaçador. Todos os homens música sua e despertaram os ecos dos montes .com o
correram para o seu posto defensivo, a artil~aria já troar da artilharia. De ambos os lados o barulho era
tinha sido apontada, quando de repente se vm uma ensurdecedor e toda a gente se sentia contente.
figura sair do meio dos guerreiros emplumados e Pero Lopes nada diz acerca de tudo isto. Em
avançar sozinha a grandes passos. Chegada ao alcance algumas linhas refere a sua permanência de três meses
da voz, gritou alto em português e correu para o rece- em São Vicente.
berem de braços abertos. Fala por alto da visita a Piratininga. João Rama-
Desta maneira entra em cena o grande João Rama- lho deve ter servido de guia. Realmente, eles não
lho mas se realmente aquilo aconteceu desta maneira, poderiam ter alcançado o planalto sem um guia a
nã~ o juramos, nem i~porta. A história talvez seja lenda, orientá-los pela muralha de montanhas.
o homem não é. E facto concreto e documentado Era quase inacessível. Diz-se que a actual via-férrea
-montanhês robusto da Beira, nascido na antiga vila de S~ntos a São Paulo foi uma proeza de engenharia
de Vouzela, nos pinhais e soutos do Vale do Vouga; perfeitamente atordoante, e quanto ao caminho nesse
Ignora-se a história dos seus primeiros tempos, e tempo, escreve Madre de Deus, que o conheceu é
quando ou porque deixou ele a sua terra para atraves- «talvez e peior que tem o mundo». '
sar o oceano. Naufragado como o Caramuru, em I 5 I o Estrada não havia nenhuma, nem mesmo caminho,
pouco mais ou menos, os índios re.cebe!am-no c~mo apenas veredas escorregadias e íngremes, de rochedo
um dos seus, e levaram-no para o mtenor para vrver para r~chedo, uma escada sem tim trepando de pico
no elevado .planalto de Piratininga. pa~a prco. Andaram de joelhos e com as mãos pelo
Parece que João Ramalho encontrou ali vida ao chao, agarrando-se às raízes por cima do precipício,
7
98 C.'\PITAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL 99
ferindo-se na vegetação emaranhada e escorregando nas
pedras soltas. . . mente inutilizados e incapazes de atravessar o oceano.
E assim indefinidamente, sempre a subir, acima das Os marinheiros também estavam ociosos. Recebiam o
nuvens que se enovelavam pelos flancos da.n:ontanha, pré e comiam em terra, mas apenas serviam o rei com
abrindo-se de vez em quando para revelar ~Isoes celes- a sua presença. Acordou-se que Pero Lopes voltasse
tiais lá muito em baixo. Os cabos, as pemnsulas e as com os navios a Portugal, enquanto o resto da gente
ficaria com o «capitão irmão».
ilhas da costa, jardins cheios de verdura, ro?eados pela
água azul das baías e das enseadas, ,apareciam e desa- Por isso, no dia 22 de Maio, Pero Lopes fez-se de
pareciam por entre os pedaços de ?evoa flut~ante que vela com a Nossa Senhora das Candeias e o galeão
se enovelava acima deles. A arqueJar, mas tnunfantes, São Vicente. A caravela só seguiria quando se com-
chegaram finalmente ao cume e resp~ra!am a aragem pletassem as reparações. Assim Martim Afonso ficou
pura e vivificante que soprava na amphdao dos espaços sem a.rmada para comandar, mas com uma colônia para
orgamzar e governar.
dos campos cheios de frescura a qu.e ~avam. so~bra
grupos de araucárias, banhado~ por nbetros ~ns~a~mos . Martim Afonso concentrou a sua atenção em· São
que corriam para. o pequeno no. chamado Ptratlmng?. VIcente. Embora os belos campos de Piratininga fossem
muito atraentes, entendia ele que o porto de mar devia
Que belo sítto para uma cida~e! P.ero Lopes. d!z
desenvolver-se primeiro. Um estabelecimento no inte-
que o «capitão irmão» resolveu cn~r ah um~ ~o~oma
como a que já se criara em São VIcente. DividiU os rior sem porto apenas constituiria uma comunidade
isolada vivendo vida pastoril entre os rebanhos, plan-
colonos entre o planalto e a planície- e, diz seu. irr:x~ão,
tando o que 1he fosse necessário para a sua subsistên-
«fez nellas oficiaes: e poz tudo em boa obra de JUstiça, cia, unidade isolada, talvez próspera mas não um
de que a gente toda tomou. muita co~~olaçarn, com membro activo dum império mundial. '
verem povoar villas e ter lets e sacreftcios e celebrar Martim Afonso pertencia a uma geração que
matrimônios (com mulheres índias, certamente), e aprendera a pensar imperialmente. Era o mar que
viverem em comunicação das artes; e ser cada um ligav.a a mãe-pátria aos seus postos avançados remotos.
senhor do seu; e vestir as enjurias particulares; e Por Isso convinha tratar-se de desenvolver primeiro os
ter todolos outros bens da vida sigura e conversavel»('). estabelecimentos ao longo da costa pelo que não se
Este quadro fagueiro deve ter pertencido antes devia iludir ~mitos colonos com d encanto daquele
ao futuro parece-nos do que aos breves meses em que planalto adoravel. E como os índios viviam na sua
Pero Lopes pôde as~istir ao incremento das cidades. m~i~r par~e, no interior, não lhe parecia de adonselhar
Em São Vicente o «capitão irmão» convocou um deixa-los Isolados ali. Sempre que um degredado anda
conselho da oficialidade de bordo, aí se debatendo por onde quer, result.am daí e~baraços com os indígenas.
acerca do que convinha fazer. Os navios estavam todos Por este mo ti vo Marttm Afonso publicou um
atacados do busano e as quilhas sujas. Se eles perma- dec~eto peJo qual os mercadores idos da costa só
necessem mais dois meses no porto, ficariam completa- ~odta~ fazer o seu ~e-gócio no planalto com licença
special do ~eu. c.apttao. Parece que a aldeia que
(1) Ob. cít. , pág. 351 , 352, fundara em Ptratmmga a confiou aos cuidados de João
\ 00 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 101

Ramalho, mas não há notícia exacta do modo como ali e Antonio Rodrigues, línguas d'estas terras já de quinze
deixou as coisas. e vinte anos estantes n'esta terra, e conforme o que
Como se fizera nas ilhas oceânicas um século elles juraram assim o fiz o assento como mais larga-·
antes, e na Costa do Ouro havia 5o anos, organizou-se mente se verá pelo livro do tombo que o dito gover-
um Município no modelo dos concelhos de Portugal à nador para isso mandou fazer, e com meu poder 0>
beira das florestas do Brasil. Tinha os seus vereadores, metti de posse d'ellas ao dito Pero de Goes, de
os seus magistrados, os seus notários com o livro das todas as terras que na carta faz menção e lhe metti
Actas e Vereações, as suas assembleias de «Homens nas suas mãos terra, pedra, páos e ramos de arvores
bons», convocadas ao toque do sino para resolverem os que das ditas terras tomei e pela qual o dei empossadO>
negócios do burgo. e dou d'este dia para todo o sempre tão solemnemente
Martim Afonso distribuiu terras. Existem ainda como de dereito se pode fazer ... )) (') É a mesma forma-
hoje alguns dos documentos lavrados, que constituem lidade que encontramos nos registos de numerosos.
leitura curiosa. A linguagem estereotipada do direito tabeliães das antigas vilas de Portugal- cerimônia.
medieval, usada para conferir a qualquer bom lavrador a que deveria levar uma hora duma tarde, mas aqui
posse dum pequeno campo que confina com o quintal do deve ter sido uma expedição de alguns dias, atraves-
seu vizinho ou as terras do Senhor Prior, soa de modo sando uma floresta virgem, indicando os limites solitá-
estranho nos vastos espaços do Brasil, inçada de nomes rios duma propriedade para além das montanhas ínvias.
bárbaros. Assim, Martim Afonso declara que é do seu e junto de rios ignorados.
agrado conceder a Pero de Góis «as terras de Taqua- Assim Martim Afonso entregou aos seus homens.
rarira com a serra que está da banda d'onde nasce o sol léguas incomensuráveis como «sesmaria» durante dois.
com águas vertentes com o rio Jarabatyba, o qual rio e anos, ao fim dos quais, se não fossem exploradas de.
terras estão defronte da ilha de São Vicente d'onde qualquer maneira, deveriam ser entregues a outro.
chamam Gohayó, a qual terra subirá para serra acima Esta era uma comunidade agrícola. O açúcar,.
até o cume e d'ahi a buscar o Capetevar, e d'ahi virá segundo Martim Afonso acreditava, devia ser provàvel-
a intestar com o rio adiante que está da banda do mente a melhor colheita. Durante muitos anos fora
Norte)) (1), e assim por diante em picos e prados e o açúcar a principal fonte de riqueza das ilhas oceâni-
pinheirais, cadeias de montanhas até São Vicente-tem cas. O clima junto da costa brasileira não era muitO>
o aspecto duma lição de geografia física. diferente do ~a Ma~eir~. Portanto, Martim Afonso pro-
Adiante está cuidadosamente registado um «Auto curou arranJar maqumas para fabricar o açúcar.
de Posse))- lavrado nos termos costumados: <1por vir- A indústr~a açucareira só por si asseguraria a prosperi-
tude da qual carta e doação em cumprimento fui eu dade do htoral, antes de a prometida colheita de prata
escrivão ás ditas terras com o dito Pero de Goes e e ouro começar a vir do interior.
lh'as divisei e demarquei, puz todos os nomes das mais Até ~n:áo não haviam chegado quaisquer notícias
terras e confrontações e levei commigo a João Ramalho da expedtçao de Pero Lobo à terra do ouro no tiro do

(1) Ob. ~it , vol. 11, pág 14 (I) Oh. cit , pág. 15.
CAPITAES DO BRASIL 103
102 CAPITAES DO BRASIL

ano, quando João de Sousa regressou de Portugal o João para vos cem leguas, e p~ra. Pero Lopes, vosso irmão,
de Sousa que Martim Afonso mandará de Pern~mbuco cincoenta nos melhores hmltes dessa costa ... » .
com o navio pirata capturado em I 53 I. Entr~tanto havia notícia de novos actos de pira-
Ele trazia despachos consigo: «Martim Afonso taria. Junto da costa da Andaluzia «foi tomada agora
amigo», escrevia D. João III, «Vi as cartas que m~ pelas minhas caravelas, que andavam na Armada do
escrevestes por João de Sousa: e por elle soube da vossa Estreito uma nao tranceza carregada de brazil e tra-
chegada a essa terra do Brasil, e como ieis correndo a zida a e~ta cidade; a qual foi de Marselha a Pernam-
costa, caminho do rio da Prata; assim do que passastes buco e desembarcou gente em terra, a qual desfez uma
com as naos francezas, dos corsários que tornastes feito;ia minha que ahi estava (pela segunda vez!),
e tudo o que nisso fizestes vos agradeço muito· e foi e deixou lá setenta com intenção de povoarem a terra
tão bem feito como se de vós esperava; e sod certo e de se defenderem. E o que Eu tenho mandado que
qual a vo~tade que ter:des pa!a me servir ... » (I) se nisso faça, o mandei ao Conde que vol-o escrevesse,
Martlm Afonso nao precisava de mandar o navio para serdes informado de tudo o que passa e ~e .ha de
francês para Portugal. Podia ter ficado com ele para fazer». Entretanto Martim Afonso dev1a estar vtgtlante,
aumentar as suas forças. Quanto à exploração do Rio «que vos não possa acontecer nenhum mao recado;
da Prata - o rei não dava instruções deixando-a à e que qualquer torça ou fortaleza que tiverdes feita,
di~crição de Martim Afonso. Tudo o qu~ pedia era que quando nella não estiverdes, deixeis pe~soa de que
o mtormassem. confieis que a tenha a bom recado ; amda que Eu
Martim Af~nso podia tomar decisão quanto à sua creio que elles não tornarão lá mais a fazer outro tal;
demora no Brasil: «se vos parecer que não é necessario pois lhe esta não sucedeu como cuidavam»! (I)
esta~des Já mais, poder-vos-eis vir; porque pela
Martim Afonso veio a saber por João de Sousa
confiança ~ue em !ós tenho, o deixo a vós, que sou muito mais do que o rei sabia na ocasião em que
certo q~e msso fare1s o que mais meu serviço for». escrevia acerca do malogro das esperanças postas na
Últlmamente houvera muitas discussões a respeito expedição de Marselha. João de Sousa passara por
Pernambuco na descida da costa e por isso pôde
~a coloni~açã.o do Brasil: o: algumas pessoas me reque-
n.am cap1tamas em terra della. Eu quizera antes de completar a história.
msso fazer causa alguma, esperar por vossa vinda para
com vossa informação fazer o que me bem pare~er e
que na repartição que disso se houver de fazer, es~o­
lhaes a melhor parte». A intenção do rei é dividir
a costa em capitanias de 5o léguas cada uma, mas
«antes de se dar a nenhuma _pessoa mandei apartar

( l) -Carta de El·Rci O. João III para Mutim Afonso de Sousa 1 de


29 de Setembro de 1~32, publicada por Caetano de Sousa, Hist . Gen eal.,
vol. VI das ~Provas•; H!st . da Cal . Port. do Brasil, Tom. lll, pág. 160, e Diário (1) Loc, eit.
da Navt~açao, vol. I, pag. 433.
VII

A Aventura de ~<La Pellerine>->-

O barão Bertrand de Saint Blancard, almirante-


da esquadra do Mediterrâneo do Rei Cristianíssimo
de França, tinha grandes aspirações coloniais. Tal
I como o seu real amo, entendia que o testamento de:

l Adão tinha sido injustamente interpretado. Porque


não fundaria a França uma colónia em Pernambuco r
Francisco I aprovou a ideia, não ostensivamente,
é claro- a situação diplomática era delicada -mas-
de modo concreto e sem ruído. Por isso, com a sua
bênção eficaz, Saint Blancard equipou um belo navio no
porto de Marselha, de nome La Pellerine. Leva va ela
((dezoito peças de metal bronzeo pesando quatrocentos
e cinco quintais, e muitas outras peças de metal ferro,
em quantidade tal que bastassem para a defesa da sua
citada nave e, alem disso, de uma fortificação.
«E armou essa nave com o maior número possível
de armas de todo o genero, taes como ballistas, chuços,
lanças e muitos outros petrechos destinados a defender
tanto a nave como o forte. Tripulou a nave com cento
e vinte homens de guerra, nobres e plebeus, com altas
soldadas.
! 06 C APITAES DO BRASIL CAPlTAES DO BRASIL 107

<<E abasteceu a dita na ve com a maior quantidade tribunal internàcional de inquérito que alguns anos
possível de mercadorias, procuradas e tidas em alto depois seria convocado para ju_lgar o ca_so, apresenta
preço nas ilhas brasileiras, para as quaes seriam con- os factos de maneira um tanto dtversa. Dtz ele: «tanto
-duzidas afim de se permutarem com outras mercadorias que a gente da dita nao chegou ao por~o de Fern~m
-dessas mesmas ilhas, muito procuradas em França. Buquo sabendo que a dita fortaleza era fetta e possmda
Abasteceu tambem de instrumentos precisos para por p~rtuguezes que estavam nella e tinham ay muito
-construir um forte e para aproveitar a terra inculta em ouro e prata e muitas mercadorias e fazenda com que
culturas, e dos moveis necessarios para guarnecer o tratavam com os naturaes da terra, logo em chegando
.<fito forte. ao dito porto poseram cerco a dita fortaleza e aos
«E nomeou para capitão da dita nave a João portuguezes que nella estavam e. os combateram com
Dupéret, que partiu de Marselha e atravessou os muitos tiros de bombardas e espmgardas e alcabuzes
mares por tres mezes, findos os quaes aportou nas e outras armas e lhe poseram fogo e a dirribaram e
·ditas ilhas no logar chamado Pernambuco,.. (I) Deve queimaram e asi a ~odallas cas.as .da . dita fortaleza
ter sido isto em Março de 1532, quando Martim Afonso e asi roubaram e queimaram a dtta tgreJa e lhe toma-
e o seu irmão Pero Lopes estavam empenhados na sua ram e levaram os calizes e cruzes e toda outra prata
·empresa colonial de São Vicente e de Piratininga. e ornamentos da dita igreja a qual riqueza ouro e prata
La Pelleríne encontrou o porto de Pernambuco e merquadorias e mantimentos _que na.dita fort~leza,
mais ou menos como Martim Afonso o deixara no ano igreja e povoação roubaram valtam multa quantidade
.anterior. A feitoria havia sido reconstruída e reabaste- de dinheiro» (').
cida de fazendas. Seis homens tinham-na a seu cargo- Os franceses, continua ele, «mataram muita gente
muito provàvelmente os doentes que Pero Lopes diz dos ditos portugueses, homes, molheres e muitos escra-
ter deixado em terra, mas nesta altura é razoável supor vos» (evidentemente índios), saquearam tudo e os
.que já estariam restabelecidos. poucos portugueses que tinham ficado vivos foram
Há duas versões do que aconteceu depois. Segundo carregados de ferros e tratados «muy cruelmente como
o depoimento de Saint Blancard, esta meia dúzia de se foram infieis>>.
portugueses atacou os franceses, «com o maior furor e Entretanto como dizem ambas as versões, La
.grande auxilio dos índios mas, com a ajuda de Deus, Pellerine carregava o roubado e partiu, levando- diz
-sahiram incolumes os francezes e lograram vencer». (2) Saint Blancard- um rico carregamento de pau brasil,
A seguir fizeram as pazes, acrescenta o barão, e os além de 3oo quintais de algodão, outro tanto de semen-
franceses, com a ajuda dos índios e dos seis portu- tes diversas produzidas na região, e óleos medicinais.
.gueses, continuaram a levantar o seu forte. Havia também 6oo papagaios que falavam francês,
Pero Lopes, no seu depoimento apresentado ao 3oo peles de leopardo e de outros animais, com dife-
rentes características, assim como 3oo macacas, tudo
(I) Trad. da cópia fotográfica do 2.o Libelo do Barão de Saiot Blan- avaliado num total de 623 mil ducados.
card. Torre do Tombo, Corpo Cron•l., Parte l.a Maço 6, doc. 148, publicado
:por Eugéoio de Castro, Diário de Navegação de Pero Lopes, Vol. II, pág. 31 .
(2) Ob. cit., pág. 32. ( J) Per maneira de contrariedade de Pero Lopes, ob, cit., pág. 43.
CAPITAES DO BRA~IL CAPITAES DO BRASIL 109
108

Tudo roubado da feitoria! declara Pero Lopes. real e c<as g oras do dia vi a ilha de santalexo (em
Saint Blancard afirma que fora adquirido por troca frente de Pernambuco): demorava me ao norte e como
honesta com os índios. eguei mais a ella vi húa nao que estava surta
me ac h . · d 1
Seja qual for a verdade, e talvez haja alguma de antre ella e a terra: parecia ser mu1 gran e: ogo ~e
ambos os lados, La Pellerine partiu, deixando o senhor d eç1· d a gavia , e mandei fazer prestes · h
a artelhana
· h
De la Motte a comandar a fortaleza francesa com mandei fazer sinal ao galeam que vm a por mm a
6o homens e mercadorias que valiam três vezes, diz. e opa e em chegando a mym lhe disse que pusesse
o barão, as que seguiam a bordo do navio. ~ artelharia em ordem, e se fizesse a gente prestes porq~e
Foi então que, como D. João III informara Martim se a nao que estava na ilha s.~r~a fosse. de Fra.nça av1a
Afonso de Sousa, as coisas deixaram de passar-se de pelejar com ella», (') O Dzarw termma aqm- nada
de acordo com o plano traçado. La Pellerine foi captu- mais sabemos em primeira mão. É por docu~ent?s
rada pela armada metropolitana de Portugal e levada posteriores que se averigua que ele atacou o nav10 tao
para Lisboa. eficazmente que o capturou.
La Pellerine de verdade! exclamavam os portu- Quanto à fortaleza, também se sabe o que acon-
gueses. O barão de Saint Blancard nunca fora o pro-- teceu, mas não é fácil concluir como e qual foi a
prietário legal deste navio! Ele tinha sido roubad(} sequência exacta dos factos.
a André Afonso, cidadão do Porto e vassalo de Segundo o depoimento de Pero Lopes em I538,
e::El-Rei nosso Senhor». os gemidos dos infelizes prisionei~os. chegaram-lhe. a?s
O pau brasiJ, os papagaios que falavam francês,. ouvidos em Pernambuco. Ele mttmou a guarmçao
as macacas e tudo o mais foi apresado imediatamente,. trances a a entregar-lhe os c a ti vos e as coisas roubadas,
e a tripulação de La Pellerine metida na prisão. 0 que c<O nam quizeram fazer antes se pozeram ~m
Alguns dos homens, declara Saint Blancard, foram. armas contra elle reo e contra os da sua companhia,
enforcados e outros torturados, e, segundo o seu depoi- tirando-lhe muytas bombardadas, espingardadas e
mento, seis anos depois os sobreviventes ainda gemiam outros muytos tiros de fogo, com~tendoos e often2-
no cativeiro, sujeitos a toda a espécie de maus tratos. dendoos e impedindoos que nam satsem em terra». ( )
O senhor De la Motte em Pernambuco não teve mais Então, declara Pero Lopes, desembarcou em força
sorte. Parece que chegou um navio francês com reforços,. e obrigou os franceses a rende:-se. . .
mas ao mesmo tempo Pero Lopes apareceu em frente O cerco durou vários dia3, diz Samt Blanc~r~.
da costa. O senhor De la Motte, sem esperan~a de recebe~ rapl-
Como de costume, aquele mancebo estava pront(} dos reforços de França, !iu-se obngado a .capttular.
para enfrentar fosse o que fosse. Na Baía de Todos os. Os franceses tiveram a vtda poupada, sob JUramento
Santos recebera abastecimentos e calafetara os navios. prestado sobre a Hóstia. .
Passou revista às suas forças e viu que tinha 53 homens. Apesar disso, acrescenta Saint Blancard, Pero
capazes de combater. É verdade que 3o não tinham
armas ; em todo o caso eram 53 homens. ( l) Diário da Navegação, vol. I, pág. 379 • 388.
A 4 de Agosto, estava ele de observação no mastro. (2} lbd. vol. li, pág 4 t
110 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRA~IL LU

Lop_es enfor~ou o senhor De Ia Motte com 20 compa- mos qual foi a decisão final dos juízes das duas nações
nhetros. Dots homens foram entregues aos índios para que 6 anos depois, se reuniram em Baiona para estudar
os devorarem e os restantes mandados para Portugal. 0 a~sunto. Por essa ocasião Pero Lopes estava ausente
Segundo Pero Lopes, a verdade era diferente. Os na índia, e o seu depoimento foi fei~o por procuraçã?.
franceses, declara, foram muito bem tratados. Prome- Ele deixara Pernambuco nos hns de I 532, dep?IS
teram obedecer-lhe e levou-os com ele, deixando-os de ter reedificado o disputadíssimo forte. Em Janet~o
andar em liberdade, comportando-se para com eles de I 533 sabemos que estava em Faro com ~s dots
todos tão ccamigavelmente asi como fazia aos proprios navios franceses- Nossa Senhora das Can~:zas _e a
portuguezes de sua companhia». C) sua captura mais recente transportar:do 3o p_nstoneuos,
Mas eles, diz, estavam a tramar com os índios além de dois «reis» índios. Estes tmham stdo levados.
matá-~o à traição. Uma noite, quando ele estava sen- em visita de cortesia, cremos, pois D. João III ordenou
tado JUnto duma vela acesa com a janela aberta sobre que os vestissem de seda.
a escuridão tépida, duas setas foram disparadas da Pero Lopes nunca mais voltou ao Brasil para !om~r
tr~va, uma das quais, atravessando-lhe o roupão, posse da capitania que o rei lhe concedera- capttama
fot espetar-se na almofada por detrás dele, e ficou a composta de duas porções .completam~nte separadas :.
tremer na parede de madeira. Vendo esta traição diz uma ao norte, em Itamaraca, logo abatxo de Pernam-
ele, : <<constando-lhe d? dito caso mandou fazer ju~tiça buco, outra conhecida pelo nome de Santo Amaro, aO<
dalgus que achou mats culpados e huú ou dous dos sul de São Vicente.
ditos culpados se lançaram com os silvestres e os outros Tão-pouco permaneceu em Portu_gal para saborear
t~ouxe elle ~eo a Portugal e os entregou as justiças da a vida de família, embora casasse depots do seu regress?.
ctdade de Ltxboa pera delles se fazer o que tose direito Serviu em várias comissões na armada da costa, parttu
e justiça».e) com seu primo Tomé de Sousa para Safi em Marro~o~;
O historiador brasileiro, Frei Vicente do Salvador e com o contingente português comandado por Antomo·
escrevendo algumas gerações mais tarde conta mais o~ de Saldanha, tomou parte na conquista de Túnis pelo.
menos a mesma história. Apenas, con~luímos da sua imperador Carlos V. .
narrativa, Pero Lopes dera ordem para enforcar toda a Em I53g era ? capitão-mor da armada. que_ saiU
gente logo os dois bombardeiros franceses avançaram e de Portugal para a India, onde ganhou a admtraçao de
confessaram ser os únicos culpados. Então o carrasco D. João de Castro pela sua perícia naval, e as censuras.
recebeu ordem de parar. Infelizmente já 20 homens de Gaspar Correia pelo modo violento como tratou os
pernea vam na forca, entre os quais o senhor De la Motte. seushomens. . I
Quanto a nós, parece-nos que de ambos os lados No fim daquele ano partiu para Portugal e é esta I
a verdade não é clara, e cremos não haver qualquer a última vez que ouvimos falar de Pero Lopes. Desa-
documento a provar a certeza dos factos; tão-pouco sabe- pareceu para sempre no Oceano Índico, onde o seu
navio foi engolido sem ficar um único sobrevivente ou
(I) Ob. cit., v o!. IT, pág. 44. Contrariedade cit. um resto do navio para dar testemunho da sua sorte.
(2) Ob. cit, pág. 45. Isto foi semelhante ao que acontecera seis anos antes.
112 CAPITAES DO BRASIL

a Pero Lobo e aos 8o homens que se tinham embre-


nhado no continente desconhecido à procura dos reinos
<lo ouro. De modo tão decisivo e inexorável como o
grande mar engolira Pero Lopes, a vasta terra fechou-se
sobre eles para sempre. Em São Vicente, Martim Afonso
-esperou em váo noticias deles. Jamais se ouviu qualquer
palavra a seu respeito pelas longas léguas de monta-
nhas solitárias e florestas impenetráveis. Todos truci-
dados pelos índios ! dizia um boato- boato nascido
não se sabe como nem onde.
Tendo espera do oito meses, Martim Atonso
armou outra expedição comandada por Pero de Góis e
Rui Pinto para ir procurar os pioneiros perdidos.
Depois fez-se de vela para Portugal, atrás do irmão.
Como Pero Lopes, também o ((capitão irmão)) não
voltou a ver o Brasil. O esplendor e o feitiço do Oriente
reclamaram-no a seguir, e a sua carreira ali foi
·proveitosa, embora sempre distinta.
_ Não esqueceu completamente o Brasil. Mandou
colonos e canas de açúcar e gado para a sua capitania
ocidental, mas não há dúvida de que perdera o inte-
resse. Durante a sua ausência na fndia, os assuntas
brasileiros foram tratados (e maltratados) pela mulher
em Portugal, e quando o seu amigo conde da Casta-
nheira manifestou desejo de possuir terras na capitania
-de São Vicente, Martim Afonso disse que ele podia
escolher a que quisesse- de facto não se importava que
ele ficasse com tudo !

A repartição das capitanias no fim do século de Quinhentos Os n d ·-


· 1 'd - d . · ornes os capttaes
mc ut os no mapa sao os os herdetros dos primeiros donatários.
-

VIII

j Capitanias do Deserto

O Brasil estava na ordem do dia depois de se


divulgarem as notícias que Martim Afonso trouxera de
piratas em frente da costa de Pernambuco, e a vista
dos montes de pau brasil contiscado, de papagaios
que falavam francês, de macacos e do resto, quando
tudo isto foi descarregado de La Pellerine nos cais de
Lisboa.
De Ruão escrevia o Dr. Diogo de Gouveia : Eu
bem dizia 1 De facto, ele tinha dado muitas vezes a
sua opinião acerca do assunto. Se ao menos, dizia o
doutor, houvesse sete ou oito feitorias na costa do
continente ocidental, isso teria bastado para impedir
os índios de venderem pau brasil a qualquer pessoa-e
«não o vendendo as naus não hão de querer lá ir para
virem de vazio. Depois disso aproveitarão (os colonos)
a terra( ... ) e converterão a gente á fé» (1).
Colonizassem a terra sem mais demora! bradavam

li TOI.
(l) Carta de Diogo de Gouveia, in- Hist. da Col. Portuguesa do Brasil,
cit., pág. 170.

-= ~
- - :- .-
114 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 115

todos. Mas qual seria a solução prática? Tratava-se tamente. Ali havia terra para todos- não hectares
duma terra vasta, cujo interior se conhecia vagamente. mas léguas dilatadas - e tomar posse dela em face de
A Coroa já estava envolvida nos seus cometimentos do perigos em grande parte desconhecidos, seria uma
Oriente. Seria necessário interessar a iniciati va parti- grande aventura, mas também meritório, pois não
cular em larga escala. era ela uma terra selvagem e pagã a reclamar para
Qual seria a melhor maneira? A prata, o ouro, as a Santa Igreja?
jóias e as especiarias atraíam para o Oriente. O seu Portanto, o rei, como disse a Martim Afonso,
feitiço seria sempre bastante para atrair voluntários. resolveu dividir o Brasil em capitanias, cada uma
O Brasil não tinha por enquanto tais atractivos para com o tamanho dum reino, para serem distribuídas
oferecer-mas havia ainda outra solicitação que podia pelos sequazes do capitão.
aproveitar-se e que podia satisfazer por completo-era Este sistema fora iniciado, em muito menor escala
a fome de terra. pelo infante D. Henrique quando povoara as ilhas deser~
O amor da gleba é uma paixão enraizada na alma tas do Oceano. E tinha dado bom resultado. O capitão
portuguesa, quer na do pobre camponês que sonha de cada ilha trabalhara com entusiasmo para fundar
aumentar a área da sua pequena propriedade, quer na colônias e cuidar do seu bem-estar.
• do fidalgo que aspira a ser dono de vastos campos, A Madeira transformara-se num jardim de delícias
florestas e solares. O amor da aventura era a paixão cujos frutos, açúcar e vinho, enriqueciam as mesas dos
rival desta solicitação, e no século XVI mostrava-se banquetes da Europa. Os verdejantes Açores produziam
mais forte. Os campos de Portugal estavam entregues à tod?s os lac~icínios, e os seus portos proporcionavam
urze invasora, abandonados pelos jovens irrequietos a?~I~os, equipamento e aguada às armadas que se
que desertavam das propriedades da família, atraídos dmgiam para longe. Descobertas, possuídas, coloniza-
pelo feitiço e pelo mistério dos mundos recém-des- das e exploradas por Portugal, as ilhas ficaram a fazer
cobertos além dos mares, onde combateriam pelo seu parte da mãe-pátria: nenhum estrangeiro sonhava em
Deus e pelo seu rei contra os inimigos da Santa Fé. disputar o seu domínio.
Cruzados, iriam implantar a bandeira da Cruz em cima Coisa análoga devia fazer-se no Brasil. Todavia
das torres do Paganismo, e ganhariam a coroa do mar- tornava-se evidente que isto era coisa de maior vulto'
tírio ou amontoariam riqueza tal como nenhum homem Pequenas ilhas estreitas podiam tratar-se com tant~
jamais sonhou, com os tesouros dos príncipes pagãos f~cilidade como ~s _p~opriedades em Portugal- a ques-
vencidos. Um dia, quando fossem ve-lhos, voltariam à tao era: como dividir uma grande faixa de continente
pátria, a qualquer pequena quinta ou antigo solar cujos limites exactos ninguém conhecia apenas s~
entre pinheiros e castanheiros, ou à sombra das oli- ~ncontran~o fixada no_ mapa com algu~a certeza a
veiras. Aí cultivariam o solo e a vinha, e com a riqueza hnha do litoral? Segumdo unicamente esta linha a
trazida do Oriente comprariam terras e mais terras, solução alc~nçada pelo rei foi simples. Como ele inf~r­
deixando depois hectares e hectares de campos mar~ Martim Afonso, mandou-a dividir em secções de
aos filhos. 5o leguas do Norte para o Sul. Cada capitania tinha
O Brasil poderia satisfazer a dupla paixão imedia- uma frente de 5o léguas de costa. Entre ela e a sua
116 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 117

vizinha, traçou-se uma linha recta em direcção ao carias da capitania pertencia-lhe, além de um décimo
interior. Qual era a sua extensão? Isso ficou indeciso. das dízimas pagas à Ordem de Cristo.
«Até aos limites da minha conquista>>, disse o rei, Uma capitania daria assim proveito ao seu
tendo em mente o meridiano de Tordesilhas. Como a donatário- tinha de dar, porque isso era tudo o que
costa avultava consideràvelmente para leste, isso queria a Coroa se propunha fazer em benefício das suas des-
dizer que as capitanias médias teriam muito mais pesas. Os colonos e o seu transporte, o gado e as
léguas de território do que as do norte ou do sul. semente:, e os instrumentos agrícolas deviam ser forne-
Todavia, parece que ninguém se incomodou com isso. cidos por ele. Tinha de governar o que era quase um
Tão-pouco era provável que devesse nomear-se qual- reino seu, mas, a não ser que pudesse fazê-la render,
quer comissão para delimitar a fronteira ainda durante tinha ele de pagar as favas.
muitos anos. As florestas ínvias e os montes inex- Não há dúvida de que a proposta do rei desper-
pugnados do interior pertenceriam àqueles que primeiro tou interesse. Seria talvez ir demasiado longe dizer
lá quisessem ir. que houve competição encarniçada à volta das capita-
As capitanias do Brasil seriam hereditárias - nias, mas não deixaram de aparecer pretendentes.
primeiro na linha dos descendentes varões directos do Parece que os veteranos da fndia foram principal-
capitão, talhando a qual passariam às filhas ou aos mente o tipo de gente a quem esta oportunidade
colaterais. Todavia, cada uma dessas vastas herança~ convinha. Depois de terem passado longos anos a
não constituiria propriedade privada- o donatário não navegar em mares orlados de palmeiras e a vaguear
podia reservar mais de I o léguas para explorar por sua por remotas terras fantásticas, onde todos os dias um
própria conta, e isso não num único bloco, mas por parce- homem tinha a vida em perigo e quase tudo podia
las separadas-seria um domínio dependente da Coroa. acontecer, nem toda a gente queria voltar à pátria para
Governar-se-iam pelas leis de Portugal. O capitão de~cansar. _Passar os dias em qualquer quinta tran-
não seria um soberano com poder legislativo. A sua qutla,. perdt~a entre montes cobertos de pinheiros, ver
função era interpretar e administrar. Podia fundar o~ _bots p~cte?tes a lavr.ar os pequeninos campos, e
cidades e conceder-lhes forais; devia nomear magistra- vtgtar as v~ndtmas, pa~ecta coisa aborrecida e insípida
dos e criar cargos executivos. Seria o juiz supremo a homens vtgorosos e atnda na força da vida; frequentar
para todos e árbitro de vida e morte para colonos de a~ antecâmaras da Corte não parecia melhor. Em vez
baixa extracção ; para os delinquentes nobres a sua dtsto, ser um potentado num novo continente senhor
jurisdição não ia além da sentença de I o anos de de tudo quanto a vista pudesse alcançar, árbitro da
degredo ou de multa pecuniária. Em caso de crime ~az e da guerra c?m. as tribos selvagens, chefe dos des-
demasiado grave, o delinquente devia ser remetido ttnos dos seus propnos compatriotas, responsável ape-
à justiça do reino. nas perante o rei pelo que fizesse e resolvesse -era
O capitão podia distribuir as terras à sua uma perspe~tiva aliciante para um guerreiro regres-
vontade, como sesmarias que deviam ser cultiva- sado da f?dta, onde tantas vezes se sentira oprimido
das. Tinha direito à dízima do rendimento que o pau pela autortdade dum <<Capitão-moP•.
brasil desse à Coroa, um vigésimo de todas as pes- No Brasil um homem podia levar vida completa-
i18 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 119

mente livre à beira do Grande Desconhecido, onde O geógrafo e historiador João de Barros também
todos os dias poderi~ surgir uma aventura estranha. Por se interessou. Homem de espírito curioso e investi-
isso, capitães da India procuraram ser capitães do gador, o desenvolvimento do Novo Mundo era uma
Brasil e investir no novo empreendimento todo o aventura que lhe estava acarácter. Não podia ir pes-
capital reunido. soalmente, mas obteve uma capitania em que o seu-
Assim, entre os primeiros encontramos Duarte amigo Aires da Cunha o representaria, juntamente com
Coelho, herói do Extremo Oriente e dos mares da seus dois filhos João e Jerônimo de Barros. Fernando
China, e Francisco Pereira Coutinho, que em I 5 I o Alvares de Andrade, tesoureiro do reino, também
tomara parte na conquista de Goa; do mesmo modo tomou uma capitania para ser administrada junta-
Vasco Fernandes Coutinho, que em rapaz servira às mente com estes.
ordens de Albuquerque, e Aires da Cunha, coxo duma Finalmente, um Antônio Cardoso de Barros igual-
perna pelas feridas recebidas em ~ombate junto da ilha mente pediu terras perto das deles, mas embora em anos
de Bintang, que servira muitos anos na costa indiana pos teriores o encontremos no Brasil, parece que nunca
e nos arquipélagos do Extremo Oriente. desenvolveu a sua capitania por falta de fundos ou por
Martim Afonso de Sousa e seu irmão Pero Lopes, qualquer outra razão.
como vimos, foram também capitães do Brasil e no Seja como for, em I 53 5 já vemos a costa brasileira
Oriente, mas a sua carreira seguiu ordem inversa- do dividida claramente em secções, cada uma com o seu
Brasil passaram para a Índia. · dono. De João de Barros e Aires da Cunha, junto da
Não assim com Pero de Góis, já possuidor duma foz do Amazonas, até Pero Lopes de Sousa, na Cana-
sesmaria em São Vicente. Ele aprendera a amar a neia, ao sul, cada polegada de costa tem seu dono.
imensa terra inexplorada, portentosa de promessas Faltava ir agora tomar posse. Já a bandeira das
misteriosas. E pediu uma capitania do Brasil. «quinas» dominava nas costas e nos mares da Índia.
Homem de tipo diferente destes era Pero do Portugal, com o seu milhão de habitantes, preparava-se
Campo T ourinho- marinheiro e agricultor de Viana agora para ocupar o Brasil.
do Castelo. Dizem que era um hábil navegador, mas
ao contrário do marinheiro da velha canção que « ven-
deu a sua herdade para ir para o mar», Pero do Campo
fez o inverso : abandonou a vida marítima para levar
vida agrícola em longa escala no Brasil.
Além destes homens activos e empreendedores, um
ou dois capitalistas tomaram para si uma capitania
como exploração comercial. Um deles era o rico Jorge
de Figueiredo Correia, funcionário do Tesouro real, que
obteve um belo pedaço de terrá mesmo no centro da
costa, e mandou para ali o castelhano Francisco
Romero como seu agente.
I

IX

Nova Lusitânia

«Aos 40 já se é velho !• esta é uma frase-feita que


se ouve hoje a cada passo. Não há a certeza do que
pensava o século XVI a respeito dos limites impostos
pela idade. Todavia, é evidente que Duarte Coelho aos
5o ou mais não tinha sequer pensado numa coisa
dessas.
Se a aproximação do meio século o encontrara em
boa forma e pronto a recomeçar a vida, não era porque
ti vesse um passado tranquilo e recolhido. Os anos
estavam cheios de aventuras e incidentes em muitas.
terras, e ele começara muito novo.
Filho dum capitão de navios, nascido em Mira-
gaia, à sombra das muralhas antigas do Porto,
acompanhou, diz-se, seu pai Gonçalo Coelho a<>
Brasil em 1 5o3, numa das soas primeiras viagens de
exploração. Cç>m mais certeza sabe-se que o mancebo.
partiu para a India em I 5og, sob o comando do malfa-
dado marechal D. Fernando Coutinho.
Durante os I g anos seguintes encontramos Duarte
Coelho a servir no Oriente, às vezes em Malaca, outras
123
CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL
122

vezes a návegar nos mares do Extremo Oriente em conceder-lhe, não 5o mas 6o léguas de costa brasil~ira,
missões diplomáticas, a combater ou em exploração, desde a ilha de Itamarcá até ao rio de S. Franctsco,
levando um junco ao Sião, negociando ali tratados junto do cabo de Santo Agostinho.
visitando a costa da China, procurando a pimenta d~ Era uma bela doação- quase a melhor de toda~
Sonda ou comandando uma viagem de descobrimento as capitanias da costa brasileira. Não só se tornava dat
à Cochinchina. mais fácil alcançar a Europa, ~ se encontrav~ ela ?o
. Par~ce ter. voltado à pátria em I S27, mas n~o se
caminho das armadas da fndta, mas tambem • dt~­
ftxou ah. Ouvtmos falar dele em missões à Africa frutava de agradável clima, batida dos saudavets
ocidental e a Marrocos; esteve em França em I 53 I - ventos aHseos.
se~ dúvida em missão diplomática- e dois anos
Também tinha a vantagem de haver lá já alguns
mats tarde cruzava o mar dos Açores à caça de piratas. colonos. A feitoria fundada no rio Pernambuco
Ali encontrou Martim Atonso de Sousa, que regres- por Cristóvão Jaques, saqueada pelos tra?ce~es e _res-
taurada por Martim Afonso_ de_ Sousa~ seu um ao, ~mda
sava. da sua. recém-fundada colônia de São Vicente , e ali se encontra va para constttutr um nucleo populac~onal.
.parttram JUntos para Portugal. Podemos ter a certeza
de que os dois tiveram conversas interessantes acerca do Os portugueses lá residentes eram casa,dos (m~ts. ou
Brasil, e Duarte Coelho voltou à pátria a sonhar com menos) com mulheres índias e falavam hnguas mdtas,
-<> continente ocidental, cujas florestas virgens e monta- podendo fornecer toda a espécie de intorma_ções. .
O novo capitão de Pernambuco era tao belo ttpo
nha~ i~ex~loradas vira quando era rapaz. O rei estava
.a dt~tnbutr tod,a ~que_la costa em capitanias, disse de pioneiro, como qual9uer home~ pronto ~ara. se
Marttm Afonso. Opttma tdeia! Com toda a certeza alem- estabelecer numa terra vugem. Cheto de energta vtgo-
rosa que a idade não diminuíra, possuindo experiência
brança dos serviços de Duarte Coelho durante muitos
variada como marinheiro e como soldado, explorador
.anos o habilitava a participar desta nova aventura.
e diplomata, condutor nato de homens e. habituado
~ediu uma capitania e o pedido foi graciosamente
a tratar com todos os tipos, e, além de tudo tsto, verda-
·r ecebtdo, porque- escreveu D. João III no estilo enfá-
deiro filho do Renascimento, a sua carreira de vag~­
·tico desses diplomas de concessão: « Esguardando eu bundo não o impedira de adquirir alguns conheci-
aos muytos serviços que Duarte Coelho fidalguo da
mentos dos clássicos. Produto genuíno do século
~inha casa a elRey meu sõr e padre que samta glorya
dinâmico em que viveu, Duarte Coelho, ?epoi~ dos anos
.aJaa e a mym tem feytos, asy nestes Reinos como nas
plenos e variados que lhe tinham ab5.orvtdo a JUVentude,
partes da India onde servio muito tempo e em muytas
estava pronto a recomeçar de novo. Queria fund~r
.cousas de meu serviço nas quaes sempre deu de sy muy uma família no novo mundo, porque se casara havta
boa co~ta, avendo como he rezão de lhe fazer asy por
·os servtços que até 9uy tem feitos como por os que pouco tempo.
A noiva era D. Brites de Albuquerque, dama da
espero que me ao dtamte fara», (') o rei dignava-se
casa da rainha, e parente do gran?~ Afonso.~e Albu-
(1) Cart~ de Doação da Capitania de Pernambuco, 5 de Setrmbro de
querque. Esta digna filha duma tamtlta de herots est~va
. 1534 Chancelana de O. João III. Livro 7. foi. 83, publicada na História da resolvida a trocar, da melhor vontade, o luxo da vtda
Colon . Port. do Brast/ . Tomo III, pág. 309
125
124 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL

da Corte pelas dificuldades e perigos ignorados duma Foi em Março que pela primeira vez _avistaram a
terra selvagem. dos seus desejos-uma linha longa e b~txa de flo~es­
Seu irmão Jerônimo- <<Branco cisne venerando» (I) terra 1 das de areia branca de neve, protegtda por recttes
como lhe chamou o poeta Bento Teixeira- também tas or abate das ondas do Atlântico. Os índios chama-
quis ir. Em 1534 o «branco cisne» ainda não era vene- do e~ este pedaço de costa Pernambuco, palavra que
rando, mas a sl!a «natural brandura e boa condição»,(') va~ua lingua significa -Buraco abert~ no mar.
que um crontsta louvara, faria dele um agradável na Nas margens do rio lguaraçu havta um grupo de
companheiro. b • volta do forte de madeira restaurado por
Vasco Fernandes de Lucena, descendente duma ca anLas a d Sousa Um Paulo Nunes ficara ali a
Pero opes e o homens · que esperavam com anste- ·
família culta e de letrados gozando muito do favor de coman d ar 8 Ou l
' t o
vários. reis, de~ara a mulher e os filhos para ir para dade a chegada de colonos para lhes aumen arem
o Brastl, mas nao se sabe por que razão. número. · .. • h da da
Outros colonos foram recrutados entre os velhos Deve ter sido grande a ammaçao a c ega
companheiros de armas de Duarte Coelho- homens do da que levava o recém-nomeado senhor da terr~,
campo e agricultores. Já a atracção do Brasi.I-terra ~~:_a todo 0 seu séquito e o equipamento e - a ~ovl­
de promissão além dos mares, que durante os últimos dade mais encantadora de todas as que se vuam
400 anos tem atraído da sua pátria o camponês - na nelas partes - mulheres brancas l . .
começava a lançar o seu feitiço sobre as províncias de q Seria interessante saber o que D. _Bntes se~tm
Trás-os-Montes e do Minho. uando viu pela primeira vez a terra que ta ser o ~emo
Duarte Coelho não era um desses muitos homens do marido: uma tloresta de árvores gigantescas JUnto
que partiram para o novo mundo à caça das riquezas. dum pântano de mangues -terra sem e_:;tradas ne!D
Muito pelo contrário, tinha já fortuna- não fora em vão caminhos, nem povoações, com excepçao de meta
que passara os melhores dias da sua vida nas Ilhas das dúzia de cabanas, e ocultos, no deserto, os acampa-
Especiarias do Oriente dourado. O Ocidente1 ainda mentos volantes dos selvagens nus, que vague~vam por
por desenvolver, abriria agora uma brecha no seu trilhos desconhecidos, em número que ~e tg~orava.
tesouro. Equipou uma bela armada à sua custa com E das sombras enigmáticas corria. o. no- no. ~os
tudo o que ela precisava, sendo alguns dos fo;neci- Monstros tora el~t chamado pelos pnmeuos expedtct~­
mentos comprados em Portugal, vindo outros do estran- nários por terem nele visto uma dúzia de seres tern-
geiro. Sabemos isto por uma concessão que obteve isen- veis, ~om braços compridos, corpos cabeludo_:;, cabelo
!ando de todos os direitos na Alfândega de Lisboa os lanoso e mãos espalmadas, saltando como ras para a
1~strumentos de ferro e outras coisas que mandou água.
v1r para embarcar nos seus navios, que partiram de Foi para esta terra que Duarte Co~lho trouxe a
Portugal em 1535. noiva. No forte de madeira junto do no dos M?ns-
tros começou a sua vida de casada esta dama cna~a
no paço duma rainha, e ali lhe nasceram os dots
(I) Bento Teixeira, Prosopopeia .
(2) Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, cap. X. filhos.
127
CAPITAES DO BRASIL
126 C/\PITAES DO BRASIL
contas foram bem recebidos, e promessas de ajuda
. D. Brites era nova, forte e ani contra os inimigos das tribos. Os chefes caetés Itabira,
fume ao lado . do marido ' qu e t omou mosa.
a tarefManteve-se
.. Itagipe e Uirahy (Arco Verde) ficaram cativados com as
sem empahdecer. Para empre a nas maos
palavras, Duarte Coelho estav~arpmos asdsuas próprias
propostas de Duarte Coelho, enquanto o amável Jerô-
quistar a palmos a t erra que repara nimo de Albuquerque teve ainda mais êxito junto das
, lhe to o para
d d«con-..
(I) e começou imediata tilhasAdeles.
1eguas»,
Deixando a jovem es
t ra oa a as
men e a trabalhar.
construção progrediu com rapidez e os índios
0
:a
Iguaraçu, fez 0 reconhecimP 0 de a gent; da casa em
sítio apropriado para ergue:~ a .~os~a a procura dum
prestaram auxílio, trazendo frutas, peixe e caça aos
brancos. Olinda tinha em breve quase o aspecto duma
desejava algumas léguas sual cpt a e~ achando o que pequena cidade, e Duarte Coelho concedeu-lhe foral.
· ao su · or ctma d .. Passava-se isto em I537· Supomos que nessa
qmetas e azuis resguardadas . as aguas altura a família do capitão se havia transterido de
Iguaraçu para Olinda. Iguaraçu foi contiada à g~arda
ondulado coberto de , pelos rectfes, um istmo
arvores verdes
ao sol. Como aquilo era b 1 I que murmuravam
Duarte Coelho de pe' be o. Conta uma história que de Afonso Gonçalves, companheiro dos tempos da India,
' so re o mont . que mandou chamar todos os parentes pobres (muitos
reu com a vista o mundo d e auoso, percor-
pés, exclamando éom al:;~ae ~ ~.z~l Jue ti~ha a seus
e muito pobres, segundo o cronista) de Viaqa do
E assim a cidade fundad . e tcta a: «0 linda!» Castelo.
Em Olinda a colônia seguia bem. Tendo servido
Segundo outra versão nã~ f:~lO a c~a,?lar-se Olinda. em novo às ordens de Albuquerque, Duarte Coelho
criado galego quem prim . 1 o capttao mas um seu
Provàvelmente ambas aset~?st ~~vou ~ beleza do local.
tivera boa escola na arte da administração colonial.
certo é que Duarte Coelho escol~:~~ 1saol falsas, mas o
Governou os seus domínios paternalmente, mas com
Com a sua energia costumad o:a .e aq~ele nome.
vara de ferro. Cada homem tinha de puxar à corda
e trabalhar na protissão em que fosse hábil, pelo bem
toda a gente a trabalh a, pos tmedtatamente
defensiva quadrada coma~, c~meçando por uma torre
comum. Carpinteiros, ferreiros e oleiros trabalhavam
Foi levantada uma a um castelo da sua pátria. em Olinda, arranjando-se o casamento dos rapazes
e casas próprias pa:':~~e~~e~apela para a colônia rezar solteiros com mulheres índias.
O capitão distribuía terras para lavrar e cultivar,
, . Da nus
mdtos, floresta
com acorreram
os s ~ m massa os guerreiros tendo num livro copiadas todas as cartas de doação.
Aquela terra era muito fértil, o clima de um calor
ondulantes,' reunindo-s:us grandes arcos e as plumas suave e de chuvas torrenciais, tudo o que se plantava
para o que os brancos par~ olharem com admiração
nascia, mesmo um pau seco metido naquela terra
experimentada no trat faztam. Duarte Coelho, mão
mares do Sul proc o com as raças primitivas dos rebentava em botões como a vara de Arão.
' de urou captar a amtza
· d e d os selva- Os colonos lavraram, semearam e fizeram experiên-
gens. Presentes ·
Instrumentos de ferro . cias. O solo era muito rico e o sol, segundo achavam,
, gutzos e
muito quente para o trigo, mas a farinha de mandioca
que os índios lhes ensinaram a preparar era excelente,
o on. Port. ao Brasil, Tom. IV, ~:g.o29~:t., sem mais indicações, na Hist . da
C I {l) Carta de Duarte C Ih .
128 CAPITAES DO BRASIL CAPlTAES DO BRASIL 129

.a da raíz conhecida por aipim dava um pão esplên- timo com um financeiro de Lisboa, e quando voltou ao
dido · feijões de todas as espécies cresciam de modo Brasil disse ao rei que estava fortemente endividado.
fantá~tico as hortaliças de Portugal não davam tra- Não era que isso o incomodasse. Entusiasta com
-b alho nedhum, as abóboras, os pepinos e as melancias os olhos postos no futuro, jamais se queixara das
.cresciam lado a lado com as taiobas de tolhas largas e despesas. Aos seus peritos deu «tudo o que me pedyram
com o sabor do espinafre, os amargos gilós e maxixes sem olhar a proveito nem ynteresse algum meu mas a
que os portugueses aprenderam a saborear cozidos. hobra yr avante como desejo. Temos grande soma de
O caju sumarento era muitíssimo refrescante, o grande canas prantadas todo povo com todo o trabalho que
mamão amarelo não diferia muito dum melão e parecia foy posivell e dando a todos ajuda que a mim foy
não haver fim nas frutas fragrantes e exóticas que posivell e cedo acabaremos um enjenho mui grande e
.aprenderam pelos índios a conhecer. perfeito e ando ordenando de começar outros praza ao
Assim a alimentação não constituía um problema Senhor Deos que segumdo sua graça mysericordia e
no Brasil e como fonte de riqueza havia o açúcar. Duarte minha boa entençam sua ajuda» e).
-Coelho resolveu que isto devia fazer-se segundo os Isto era em I S42. Em I S46 Duarte Coelho pôde
métodos mais perfeitos. Em I S4o ou 1 S4 I empreendeu mandar para a pátria caixas com amostras escolhidas
.uma viagem à Europa, para contratar operários espe- do seu açúcar. O açúcar de Pernambuco era muito
cializados. bom. Os cinco engenhos que trabalhavam no tempo de
Voltou dali com peritos das famosas plantações Duarte Coelho produziam com abundância. A futura
-d a Madeira, levando toda a maquinaria para instalar fonte de receita da «Nova Lusitânia», como ele cha-
os engenhos ou fábricas de açúcar, que eram movidas mava à sua colônia, era certa. O algodão parecia ser
.a água, ou então utilizava-se uma junta de bois também um produto aproveitável.
.para fazer girar a roda que punha em movimento os A colônia cresceu e floresceu sem dúvida, mas não
grandes tambores entre os quais se esmaga va a cana. deve imaginar-se que o seu progresso foi um caminho
O suco era recebido em grandes tanques, e levado de rosas. Duarte Coelho fala em sangue e sacrifício,
-depois para caldeiras de cobre para ferver. e ser puriti- mas não dá quaisquer pormenores. Quando e como
cado. Depois vazava-se dentro de moldes de barro e começaram os aborrecimentos? Infelizmente os cronis-
levava-se à refinaria para ser submetido ao último tas não indicam datas, e os poucos documentos que
_processo. Aí o líquido escuro era filtrado e lançava-se, restam não dão quaisquer indicações.
por cim:. do açúcar que ficava, barro para o tornar Duarte Coelho não era homem para hostilizar as
.branco, dat resultando um pão de açúcar branco de tribos indígenas, parecendo ter sido bom no trato com
neve. os índi?s· Fora ~du~ado na tradição dos primeiros
Mas tudo isto era dispendioso de instalar-se. Cal- descobndores, CUJO Sistema com os povos primitivos
-culara-se que um engenho de açúcar custaria 1 o mil
.cruzados para ficar pronto a trabalhar. Duarte Coelho,
-que já tinha gasto uma grande parte do seu capital na (1) Carta de Duarte Coelho para el-Rei, datada de Olinda 27 de Abril
~e 154).. Torre do_ Tombo, Corpo Cron. Parte I, maço 71, doe 145, publicada
·empresa brasileira, teve então de contrair um emprés- to·ob. c1t., Tom. Clt., pág. 313, 314.

9
130 CAPITAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL 131
consistia na tolerância e na amizade. Sabia como devia
aliar a autoridade com a justiça, que ganhava a con- dos sozinhos quebrarem as cabeças uns aos outros se
sideração dos indígenas. ~or essa a sua vontade, porque, se um branco' se
Infelizmente, porém, a capitania vizinha de Itama- Intrometer, unem-se contra ele.
racá constituía um elemento perturbador. Ali não se Ao capitão este conselho pareceu desassisado.
fixara nenhuma colônia, sendo simplesmente ponto de ~ra necessário pôr fim a uma balbúrdia daquelas. Por
reunião dos mercadores à procura de pau brasil, que Isso, mandou alguns brancos com os seus escravos para
pagavam aos índios com belas roupas e outras coisas separarem os combatentes - exactamente com os
que os colonos de Pernambuco não podiam obter resultados previstos. Os pacificadores tinham disper~
fàcilmente, ou- o que era muitíssimo pior- com sado um vespeiro, que imediatamente lhes caiu na
espingardas e munições. Tão-pouco esses visitantes espo- c~beça. Seguiu-se uma luta furiosa, o capitão teve de
rádicos pensavam no modo como deviam proceder, como VIr. em socorro com mais homens, e aquilo foi deitar
pensavam os residentes. A homens que vinham, carre-· aze1t~ no lume. Os poucos índios que não estavam
gavam e partiam, fazer boa impressão não parecia embnagados correram às aldeias com a notícia de que
coisa de importância. Muitas vezes semeavam a sus- os branco~ estavam a matar e a prender os seus cama-
peita e a inimizade, deixando a colônia colher os radas.« Vejam es~e cadáver»! Casualmente, era o do filho
r~sultados dos seus actos menos correctos. do chefe d_a aldeta, a quem tinham quebrado a cabeça.
Fosse qual fosse a causa latente, parece que a Daqut resultou uma confusão indescritível A aldeia
chispa se transformou em chama em Iguaraçu em data correu às armas, e caindo sobre os escravos d~ capitão
ignorada. que estavam perto a abater árvores tranquila-
Afonso Gonçalves fizera ali muita coisa. Os parentes mentfe, mataram um enquanto os outros se punham
em uga. ,
pobres tinham trabalhado bem. Cultivavam o solo com
o maior zelo fazendo produzir tudo aquilo de que preci- E ~epois, daquilo, todas as explicações eram inúteis
savam para se alimentarem. Plantaram canas, e assim ra Impossivel fazer compreender aos I' d' .
br t' h . n tos que os
começaram a fabricar açúcar. Os índios vinham e iam co:~:t~nt~~ ar:r Slm;lesmen,te procurado separar os
em paz, por entre eles, trocando mercadorias. As aldeias O h t .P pu o altruismo, como seus amigos
c e e parttu o escravo do ca it- , . ..
indígenas ficavam perto da colônia dos brancos, que buiu-as a todas as ald . . ~ ao as postas e dJstn-
viviam com eles em excelentes relações. etas VIztnhas pa d
a gente comesse um ed . ' ra que to a
Foi obra do demônio da bebida o fim de tudo guerra. P aço e VIesse depois para a
aquilo. Fosse com vinho de Portugal ou com bebidas A seguir a jovem cidade d I .
suas, ignoramo-lo, mas um dia, um grupo de índios por uma infinidade d e. guaraçu VIU-se cercada
embriagou-se. O vinho tornou-os implicativos, das. o acesso às plant C: guerreiros que cortaram todo
palavras azedas chegaram a vias de facto e daí a pouco pescar no rio. açoes e tornaram impossível ir
atiravam-se às gargantas uns dos outros. «Sepa- Nuvens de setas m n ,
rem-nos!» gritou o capitão, mas os colonos mais antigos que se aventurasse or I_eras catam sobre todo aquele
encolheram os ombros. Devem-se deixar os índtos bêba- primeiras vítimas foi o: s~~~ daos de~:sa~, e uma das
api ao. proJectii penetrou-lhe
132 CAPITAES DO BRASIL
CAPJTAES DO BRASIL
133
num olho e atravessou-lhe o cérebro. Os seus ca~a­
radas recolheram o cadáver e enterraram-no alta no1te consiencia» C). Todavia, a mulher e os filhos, que
tão silenciosamente que os selvagens nunca sonharam ficaram em Portugal, não parecem ter-lhe pesado
que tinham matado o capitão. . muito. Vasco Fernandes encontrou consolação na
Privados do seu comandante, os cercados um- filha dum chefe índio e aprendeu a falar fluente-
ram-se e conservaram-se firmes, repelindo todos os mente a língua indígena. Parece ter tido uma perso-
assaltos, vigiando dia e noite, enfrentando .a ~ome. As nalidade que exercia sobre os índios um ascendente
mulheres brancas e índias, longe de constltuuem um magnético. Eles consideravam-no feiticeiro poderoso
embaraç~, prestaram grande auxílio, vigiando enquanto e o velho chefe sentia-se orgulhoso de ter por
os homens dormiam. genro um estrangeiro tão distinto. Durante este
Uma noite escura e silenciosa, o inimigo avançou cerco, a mulher de Vasco Fernandes prestou ajuda
rastejando e s~m ruído até à muralha. Não ou-yindo eficaz, atravessando as linhas e indo visitar as suas
qualquer som dentro, os índios supuseram a cidade amigas do campo inimigo, a quem elogiou os portu-
deserta e morta. Como cobras por entre a erva, alguns gues.es até levar as col~gas a ajudarem a transportar
desses treparam até às seteiras. Mas na escuridão, de comida e 4gua para Ohnda para que gente tão inte-
ressante nlo morresse.
dentes cerrados e IÍgidas, as mulheres estavam de
vigia, com partasanas na mão. Pela sua parte., Vasco Fernandes agia larga-
O corpo nu ficou quase atravessado ~uando o m~nte valendo-se. dos seus supostos poderes mágicos.
frio aço foi arremessado d:,. enco~tro ao petto. U~a Dll-se que a~ dta,. quando o inimigo atacava muito
perto, ele saiu sózmho e falou-lhe, dizendo que os
mulher agarrou num morrao e disparou uma .e!pl~­
portugueses eram os seus melhores amigos, não os
garda. O súbito ribombo que quebrou o sdencto falsos franceses! ~stes enganavam-nos e estavam a
pôs os índios em fuga. Então os homens acordaram e lev4-l?s para perdtçlo certa. Que nenhum homem se
louvaram as heróicas mulheres, pensando, como aproXImasse d? forte! Com uma vara, Vasco Fernandes
homens que era admirável que as mulheres pudessem t.raçou _uma linha no chão. Quem passasse aquela
ser tão' caladas e mostrar tão grande presença de linha, disse ele significativamente seria homem morto
espírito! . alir:;a~lo que foi recebida coO: grandes risadas d~
d: ;:'~;!~v:.:..&';..~::.~~~~~::: !o'J.~.p~~ :~
Assim se aguentou Igoaraçu, sem Ohnda poder
auxiliá-la, pois Duarte Coelho també~ _se encontrava
cercado na sua torre quadrada. A rebehao estendera-se perm:e~::aaii, sózinh~, eni~mático e provocante. ao,
até ao sul ao longo da costa, incitada ainda ~or .alguns
corsários franceses que se juntaram aos mdtos no desafio~ pr n~o.tde ratva, Oito guerreiros aceitaram o
ecipi aram-se para 0 t
cerco aos portugueses, cortando todo o abastecimento atravessavam a liah t 0 d ,ma ar, mas quando
de alimentos e água. a os catram mortos -não
Foi então que Vasco Fernandes de Lucena desem-
penhou um útil papel. Duarte Coelho descreveu M (I) Carta de Duarte Coelho
&140 de 1548. Torre do To . h
·
para ei-Rea, datada de Olinda 22 de
Vasco Fernandes como «homem manso e de boa publicada in-ob. cit,, tom. cit' ~g~'3T:.rpo Cron., Parte I, maço 80,
doc. 60,
CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 135
134

sabemos se atingidos por atiradores. oc~ltos do forte tiva, ansioso por pôr em marcha a máquina adminis-
ou mortos por sugestão me.nta!. Fre1 V1~en,t~ do Sal- trativa, cheio de planos para a prosperidade futura da
dor diz que nunca acred1tana nesta htstona, se ele sua Nova Lusitânia.
:~ão soubera que neste proprio luga~ onde se tez a Mostra-se desejoso de atrair para ali o tipo con-
risca 1 defronte da torre, se edificou depots um sumptuoso veniente de colono. A sua escolha recaiu nos laboriosos
temp lo ao Salvador» (1). camponeses do Minho ou da Galiza, ou mesmo indí-
Não se sabe de certeza quando e como acabaram genas das Ilhas Canárias, habituados ao sol e ao
as hostilidades. Segundo Frei Vicente, os índios cansa- trabalho, levando-os para o Brasil à sua custa e fixan-
ram-se de combater sem resultado e por isso estavam do-os na terra. Porque é que o rei lhe transtornara
ansiosos por fazer a paz. todos os planos, mandando-lhe carregamentos de cri-
Vendo a sua capital libertada, Duarte ~oel?o minosos e de vadios? «juro pella ora da morte que
desceu a costa, em toda a extensão da sua cap1tama, nenhum fruyto nem bem fazem na terra» (1).
entrando em todos os portos e capturando todos os Mas disso resultaria ainda menos bem e proveito
navios franceses que encontrava ancorados: H~uve pàra Portugal. Ver-se livres dos indesejáveis mandan-
alguns combates violentos e o velho guerretro flc~u do-os para o Ultramar pareceu em certas ocasiões, a
gravemente ferido com um tiro de bombarda, mas nao todas as nações coloniais, uma solução feliz. E assim
descansou enquanto não limpou a co~ta.. . aconteceu que a capitania de Duarte Coelho foi preci-
Depois disto, apresentou aos mdtos admt~a.dos samente uma que as autoridades escolheriam para
as suas condições de paz. Este homem, dtztam mandar os tais elementos perturbadores. Sabia-se que
eles não era humano, mas qualquer diabo imortal! o velho capitão era um disciplinador severo, muito
Nã~ satisteito com derrotar o inimigo na sua terra, capaz de meter na ordem todos os desordeiros. Mas
ainda precisava de ir à procura de outros i?imigo~ para ele ~ôs obj~cç~es a este papel de regenerador que lhe
combater! Toda a resistência estava no hm. Fo1 pos- quenam atnbutr: ao que Deos nem a natureza não
sível estabelecer novas plantações de açúcar nos arre- remedeia como eu ho posso remedear Senhor, se não
dores de O linda o solo era lavrado e semeado em paz ~m. cada dya os_ mandar ~mforcar» ? pergunta ele
em todas as redondezas, os índios ofereciam os seus md1gnado. E aqm~o era mntto mau para o prestígio
inimigos capturados para trabalharem como escravos, d_?s portugueses dtante dos índios: <ecrea V. A. que
e ainda abasteciam os portugueses com caça, fruta sao pyores qua na terra que peste pollo qual peço
e peixe. a _v. A. que pollo amor de Deus tall peçonha me qua
Nas cinco cartas de Duarte Coelho, que se conser- nao mande» !
vam no Arquivo de Lisboa, não encontramos quaisquer No monopólio do comércio do pau brasil estava
referências ao cerco de Olinda. Não se toca nelas nas outra causa de preocupações para Duarte Coelho. Era
dificuldades e provações da colonização. Duarte Coelho
mostra-se totalmente absorvido pela sua obra constru-
Oezem~!o J:r:; ~c: TDuartc: Coelho para e! Rei, datada de Olinda, 20 de
4
publicada in-História d:r~~t Jomt bdo,BCorploTCron., Part~ I. Maço 78, doc. !05,
(') Frei Vicente do Salvador, História, pág. 112·115. · or • o rau , om. IH, pag. 314·316.
136 CAPIT AES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL l3r

vigiar os contratadores que iam de~ru~ar as á~vores minas ficavam muito longe, com índios perigosos de-
para embarcar. Eles alvorot~vam os t_?dtos d~s circun- três tribos hostis a impedir a passagem. Para tentar-
vizinhanças de Olinda. Nao podena o re1 or~e~a~ qualquer coisa seria necessário organizar cuidadosa-
que eles frequentassem outros portos, longe da coloma. mente uma expedição que o capitão deveria comandar-
Havia muitos lugares adequados entre o cabo de em pessoa- mas para isso não chegara ainda o-
Santo Agostinho e o ri.o de ~ão Francisco, on?: ~e momento oportuno. Não se devia cometer o erro que.
poderia encontrar madetra mmto boa, ou no terr.ttono os castelhanos tinham cometido no rio da Prata, onde
onde viviam os índios Potigares, que eram hostts aos mais de mil homens se perderam, ou repetir <>
Caetés que viviam à volta de Olinda. Nenhum mal se fracasso mais recente do Maranhão. Por isso, escreve
faria à colónia cortando madeira naqueles lugares, e Coelho, «espero que a ora do Senhor Deos em o quall
todos os navios seriam bem acolhidos no porto de praza a elle Deos que me cometa esta empreza e pera
Olinda onde receberiam intérpretes e se abasteceriam seu santo serviço e de V. A. que será o maior conten-
de tudo aquilo de que precisassem. tamento e ganho que eu dyso querya dar». (I)
Duarte Coelho também pedia ao soberano que Entretanto ele próprio construiu uma frota de-
lhe concedesse um privilégio autorizando-o a expor~ar barcos costeiros para manter as comunicações com os
3.ooo quintais de pau brasil por sua conta própn~. seus vários postos e os de outras capitanias. Os índios,.
Ele sabia onde obtê-lo de lugares onde não havta em troca de ferramentas e de outras coisas de pequeno-
inconveniente, e precisava de dinheiro para adquirir valor, vendiam-lhe escravos- mulheres que o capitão
as coisas de que carecia para os negócios da terra. casava com os seus criados, e homens que forneciam.
Receava já não poder contrair mais empréstimos mão de obra para as plantações.
em Lisboa. Este problema da mão de obra não deixava de ser-
Apesar de ter falta de fundos para fazer face às um caso sério. Devemos recordar que os brancos de
suas despesas, Duarte Coelho não se. deixava Jevar Olinda e Iguaraçu não se contavam às centenas.
pela ilusão do ouro e das pedras prectosas. Rumores Naquele clima de abundância natural, viver simples-
de riquezas fabulosas existentes em sítios ignorados mente seria bastante fácil. Caçar e pescar, comer as
do interior continuavam a chegar à costa. O rei fr_utas da florest~, ~sgaravatar o solo e plantar man-
ouvira falar disso e estava com muito interesse. As dtoc~ cAom? os mdtos faziam, bastaria para manter·
despesas de manter exércitos e armadas quase à volta a extst~ncta. Mas os brancos não tinham ido para
do mundo esgotavam o tesouro muito mais depressa o . Br~stl _apenas para levar uma vida primitiva.
do que as especiarias do Oriente entravam. As minas A_ tdeta nao era pôr de parte as tradições e padrões de
de ouro ou prata do Brasil seriam uma descoberta vtd~ do passado, mas refazê-los noutro continente
benvinda. e cnar um futuro brilhante para os filhos. Nesta terra
Duarte Coelho sabia aquilo muito bem. Afirmou va~ta e selvagem, esperavam reconstituir o que tinham
ao seu real amo que não esquecia a possibilidade de detxado, desenvolver as possibilidades do país e abrir-
achar metais preciosos, e mandou pesquisadores, cujas:
indicações eram prometedoras, mas parece que as (1) Carta de 27 de Abril cit.
CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL U9

·novas fontes de riqueza. A colónia tinha que vi ver com dável, parece ter sido muito feliz no Brasil onde deixou
·<>S seus próprios recursos, e para isso tornava-se neces- 24 filhos. Oito eram os filhos do Arco Verde, cinco
'Sário haver excesso de produção. Como poderia che- nasceram de várias mães índias, e finalmente quando
.gar-se a isso sem ?raços suplementare~ pa.ra o trabalho? já passara em muito a idade madura, por sugestão da
Para isto, tmham pensado nos mdtos, mas estes rainha D. Catarina, Jerónimo casou-se obsequiosamente
~mostravam não servir para a agricultura. A sua vocação com D. Filipa de Melo, sua protegida, que lhe deu mais
-era a caça e a pesca- um escravo índio podia ter a onze filhos. Todas as melhores famílias de Pernambuco
mesa do amo bem abastecida, mas quando se tratava haviam de considerar-se suas descendentes.
de trabalho nas plantações ou nos engenhos do açúcar, A pequena cidade de Olinda estava a receber
logo se via que os índios não satisfaziam. Como melhoramentos - tinha casas de pedra com telhados
·eram muito mais úteis os negros da Guiné, mansos de telha, igrejas e algumas lojas. Pelo seu lado, Igua-
·-e trabalhadores! Duarte Coelho obteve autorização do raçu era um burgo em progresso. Duarte Coelho diz ao
rei para importar um certo número de escravos da rei que ele não faz ideia completa da grande impor-
.-África, e assim apareceu o preto no Brasil para aumen- tância do Brasil-especialmente da Nóva Lusitânia!
1ar a grande contusão racial que se estava já a formar. O próprio donatário, depois de 13 anos em
Não há dúvida de que ele contribuiu muitíssimo para Pernambuco, declara que é um pobre homem, mas
o progressoe prosperidade de Pernambuco. acrescenta: «Nenhuúa inveja tenho aos mais ricos nem
Duarte Coelho assistia com grande satisfação as suas riquezas pois do all pera o de Deos e pera o do
·e amor ao desenvolvimento da sua Nova Lusitânia. meu Rey e Senhor poucos darey à vantajem asy do
Tudo ia de bom a melhor, informou ele o rei. E consi- passado como do porvir confyando em Deos» (i)
·derava, com reprovação, as desprezadas capitanias do Era um alarde de orgulho mas não despropositado
·norte e do sul-Itamaracá, governada em nome da na boca de um dos fundadores duma nação.
viúva do pobre Pero Lopes por agentes que não gover-
·navam nada- Ilhéus, onde Jorge de Figueiredo estava
·r epresentado por um castelhano. Porque era a Nova
·Lusitânia um caso muito mais feliz? Porque, diz ele,
o próprio pastor estava à testa e não um merce-
1lário!
E assim era. O pastor encontrava-se ali permanen-
·temente com a família: D. Brites, digna mulher dum pio-
neiro, era mãe de todos em Olinda, diziam, e tratava
·todos os colonos como filhos. Os seus próprios filhos,
Jerónimo e Jorge, ambos brasileiros, cresciam robustos
e corajosos como qualquer herói da sua raça, sob o sol
ardente junto da selva, fraternizando com caçadores
índios. Quanto ao irmão dela, Jerónimo, manso e agra- (l) Carta de 2.2 de Março cit.
X

Vasco Fernandes Coutinho


e o seu «Vilão farto•.

No ano de 1510 Vasco Fernandes Coutinho é


referido como •homem bem mancebo». (1) Novo e forte
e sem recear nada deste mundo: levantava um «mouro»
do cavalo com a ponta da lança, atirava-o ao chão e
matava o intiel.
Sob as ordens do grande Afonso de Albuquerque,
Vasco Fernandes ajudou à conquista de Goa aos Turcos.
Em I 5 1 I partiu com o conquistador para o Extremo
Oriente e fez frente a uma carga de elefantes na tomada
de Malaca.
Comandou um na vi o da esquadra que Albuquerque
deixou de vigia no estreito de Mala c a, mas em 1514
encontramo-lo de novo na Índia. No ano imediato
partiu com Albuquerque para Ormuz, no Golfo Pérsico,
tomou parte na morte do guazil Ras Ahmede e traba-
lhou com outros fidalgos na construção da fortaleza.
Estouvado e irresponsável como qualquer dos
traga-mouros que compunham o grupo de Albuquerque,

(1) Gaspar Correia, Lenda1 d.s lndia, 11, pág. 175.


142 CAPlT.AES DO BRASIL
CAPJT.AES DO BRASIL
14-l-
Vasco Fernandes, como os outros, teve de submeter-se
à dura mão da disciplina. Assim, quando o jovem ~~=:oc:atvegan~o por aq~e1es mares, e juntos comba-
capitão teve falta de recipientes para água para a sua n ra os JUncos chtneses.
galé prestes a levantar ferro, pareceu-lhe que não pas- _ Quando Vasco Fernandes re&ressou a Portugal
saria duma brincadeira roubar uns dois a um mouro. ;ao :e ~abe ao certo, nem o que fez antes de r 529 .
Mas quando este se queixou a Albuquerque, este le~:: v; m:te esteve algum tempo numa das forta:
jurou pelas barbas que os jarros que faltavam tend e .darrocos. Os documentos dão-no como...
deviam ser imediatamente entregues, senão man- Áfr' 0 servi o não só no Oriente, mas também na
1 8
daria cortar as orelhas do homem que os tivesse em 1
q ue ~~mserv1ço
• e est.e parece ser o único intervalo de tempo em:
podia ter •ido desempenhado.
seu poder. Todos sabiam que as ameaças de Albu-
querque não eram palavras vãs. Os jarros foram quinta e~ 5~g sabe-se que comprara uma pequena,.
apresentados a toda a pressa, mas Vasco Fernandes . lenquer. Pensava ele em fixar-se enta-o
entre o11. veuas · h · ·
ficou privado dos seus soldos durante seis meses, e bucólica do Rib et ~~~ ;uos manso~ para gozar a pãz.
teve de indemnizar o mouro à razão de cem pardaus. Vasco Fernande~ eb:utt'nahreoce ~ue naohpor muito tempo_
Parece que o mancebo irrequieto não ficou muito AI' h nao era omem pa ·
1 c egou-lhe .aos ouvidos a história d ra Isso.
abatido com aquilo; porque, pouco depois, no mar, tro- tamanho de retnos que f d e terras do..
cou palavras azedas com D. Garcia de Noronha, sobrinho mares ocidentais e ue tcavam .o. outro lado dos.
do Governador. O navio de Vasco Fernandes atraves- O seu velho camarad: Du:~te adqotna~ por pedido..
sou por diante da nau de D. Garcia tomando-lhe o vento. duma capitania no Brasil V Co~ho ta tomar posse~
- «Cachaparrão sandeu sem nenhum acata- queria ser grão-senhor nu~ ~sco ernandes também.
mento»! gritou D. Garcia enfurecido. dia, 25 de Setembro de I 53 a erra virgem. No mesmo .
- «Sabeys quão sandeu, replicou Vasco Fernandes, pelo rei as duas cartas d d4 ,em Évora foram assinadas
que se nom foreys tio (sic) do Governador nom cha- As 5o lêguas de Vascoe oação. ·
F
máreys tal r» (') desde 2o• de latitude S 1 ernandes desciam a costa.
Albuquerque reconciliou os dois jovens. Ele conhe- Se~aro e a pequenina ~ ! entre a capitania de Porto
cia-lhes os t'!mperamentos. Góts, ao longo do rio de ;•xa, reclamada por Pero de
Após cinco anos de serviço com Afonso de Albu- de Duarte Coelho era aratba do Sol. Se a tentativa..
querque, não é provável que Vasco Fernandes pudesse Vasco Fernandes era-oum s~lto _no desconhecido, a de -
continuar a servir sob o comando pouco estimulante nambaco. fora conheci~ats at?~a. O «Rio de Per-
do sucessor do grande Governador. Parece que o jovem dêcadas, mas os dom· . o e vtsttado durante dua"
um f · tmos de v ~-
Vasco voltou a Portugal em I 5 I 6, mas regressou . a atxa de costa desc . asco Fernandes eram
à Índia em I 52 I, durante o governo de D. Duarte de VIvera atê então. onhectda, onde nenhum branco..
Meneses. Dali acompanhou seu irmão Martim Afonso Isto nio assustou V
de Melo Coutinho à China, onde encontraram Duarte taoso na idade . 'I asco Fernandes y- .
d vm como · · ao tmpe--
~e eu à venda de tudo o na ~aventude irrequieta, pro-
(l) Gaspar Correia, Lendas da lndià . Tomo 11, pág. 408. e ser um homem rico e ~:~hn~a, porque estava longe..-
apttamas do Brasil req_ae-
'144 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO 8RASIL

'1'iam muito capital. Vasco Fernandes vendeu a quinta seja pelos casos que cá tiverem commettido», (i)
·de Alenquer, trocou por uma nau e alguns fornecimen- mesmo que tivessem sido condenados à morte.
tos a tença que comprara à Coroa, e pediu dinheiro Para mais, o seu exílio no Brasil não seria sem
·emprestado a torto e a direito. remédio. De quatro em quatro anos, dependente de
Tudo aquilo não bastava. Era preciso ter também licença do capitão, seriam autorizados a voltar à
·em consideração o elemento humano e arranjar pátria e a permanecer 6 meses em Portugal, desde que
.colonos para irem com ele. Mas onde estavam eles? não voltassem ao local do crime nem tentassem mos-
O portuense Duarte Coelho pudera contratar para a trar-se na Corte.
·capitania a ajuda de minhotos, gente dada à agricul- Escusado é dizer que aquilo era uma ocasião para
·tura - ainda hoje são estes os melhores imigrantes os condenados agarrarem pelos cabelos. Vasco
para o Brasil-, mas a região de Alenquer não tinha a Fernandes contratou uns 6o patifes.
ipopulação de Entre-Douro-e-Minho. Vasco Fernandes Alguns amigos velhos dos tempos do Oriente vic·
nem por isso deixou de solucionar o seu caso. Havia ram também- talvez não mais recomendáveis, embora
um tipo de homens sempre prontos para emigrar- pudessem ser «de muyta calidade», (2) como D. Jorge
·espíritos animosos que a polícia da metrópole buscava. de Meneses. Este indivíduo, após alguns acidentados
Nisto mostrava-se o rei disposto a colaborar. anos como capitão de Terna te, fora mandado para o reino
rD. João 11, o seu grande antecesssor, estabelecera o para responder perante o rei por uma longa lista de
~princípio de que era desperdício executar um homem acusações. Homens da qualidade de D. Jorge tinham
quando havia tantas ilbas para colonizar. D. João IH sido no passado banidos para as fortalezas marroqui-
·estava de acordo- como estavam outros que não nas para embotar as suas energias inconvenientes nos
. eram chamados para vi ver nessas ilhas. Além disso, mouros, mas agora er~ .o Brasil que o fazia, pelo que
•havia muitos condenados por crimes, que escapavam D. !org_e de Meneses tna cumprir a sua sentença na
à justiça fugindo para o estrangeiro, e o rei achava capttama do seu velho camarada Vasco Fernandes
-que era «Mais serviço de Deos e Meo que os sobre- Coutinho.
ditos fiquem antes em terra de Meus senhorios e vivam D. Simão de Castelo Branco era outro que tal ao
· e morram n'ella especialmente na Capitania do Brasil que parece. Não apareceu até hoje nenhum relato 'dos
que ora fiz mercê a Vasco Fernandes Coutinho»('). seus. feitos no. Oriente, mas sabe-se que foi para 0
Assim, com excepção dos condenados por crimes Brastl para exptar mau comportamento na fndia.
:sem perdão- heresia, traição, sodomia ou moeda falsa Com toda esta bela gente e o coração cheio de
-todos «indo-se para o dito Brasil a morar e povoar esp~rança, Vasco Ferna?des partiu em 1535, e a 2 3 de
.a Capitania do dito Vasco Fernandes, não possam lá ~ato a sua ~au aproxtmava-se da costa prometida
ser presos acusados nem demandados, ou constrangi- Dtante dele, vtu uma terra encantadora de montanhas·
. dos nem executados por nenhuma via nem modo que campos e florestas, fresca e brilhante com campmas . '

(1) lbid.
(l) Documento publicado por Misael Ferreira Perma, in-História da (2) Gaspar Correia, o!.. çít., tom. cit., pág. 378 .
•prnincia de Espírito Santo. Rio de Janeiro, 11178. Apêndice, pág. '27 .
10
146 CAPITAES DO BRASIL C.>\PITAES DO BRASIL 147

verdejantes e bem irrigadas. Esta costa figurava nos ma- tinham levado com eles. Os índios - alguns deles -
pas, embora o país ainda não fosse ~xplorado, e Vasco fizeram as pazes, e ajudaram a derrubar as árvores e a
Fernandes sabia onde se encontrana o melhor porto. abrir clareiras, mas as suas boas graças eram duvido-
A nau entrou numa baía azul semeada de belas sas, e a gente de Vasco Fernandes não era da
ilhas e ancorou no sopé de um rochedo liso e escar- espécie capaz de captar simpatias. A todos os
pado'. Era então a t.esta de Penteco~tes. O Espírito do momentos havia questões, e os índios desapareciam
Senhor parecia patrar na luz douada. Que nome para voltarem a aparecer soltando gritos de guerra de
melhor do que Espírito Santo para este lugar encan- gelar o sangue nas veias, por detrás duma nuvem de
tador·? Aqui construiria Vasco Fernan_des . a su_a setas mortíferas.
capital antes de partir para explorar o mtenor ah- E 6o homens eram muito poucos para se aguenta-
ciante,' à procura de tesouros escondidos nas monta- rem junto da costa contra as tribos ferozes do deserto
nhas distantes. com léguas ignoradas de floresta a servir-lhes de
Mas foi necessário desembarcar debaixo duma esconderijo. Defender as vidas e fundar uma colônia
chuva de setas. Os guerreiros das tribos selvagens dos requeria coragem e iniciativa- que não faltavam- mas
Goiatacazes com o corpo nu pintado de símbolos fan- carecia-se ainda mais de método, tacto e disciplina,
tásticos co~ o suco da fruta genipapo, saíram em mul- qualidades que Vasco Fernandes não podia encontrar
tidão da floresta para expulsar a estranha invasão. Mas nos seus subordinados.
soldados do Oceano Índico e das ilhas do Extremo Ao menos tinha um bom vizinho em Pero de Góis,
Oriente estavam acostumados a desembarques em que ocupava a estreita capitania do sul. Onde acaba-
frente de resistência armada. O inimigo foi rechaçado vam os domínios de um e começavam os do outro tor-
com êxito, enquanto Vasco Fernandes estabelecia e nava-se difícil de determinar naquelas regiões ainda não
fortificava o seu acampamento. exploradas- por, diz Vasco Fernandes, «não saber
Logo de princípio se notou que _aquela terra homem como se ha de medir que de húa maneira cres-
era muito boa. As florestas rescendiam com as cerá e doutra minguará)) (1).
gomas aromáticas e os óleos p~rfumados que brotavam Juntos fizeram a demarcação com o maior cui-
das árvores· em todas as clareuas abundavam os pas- dado e muitas vezes, ~orque nenhum deles queria
tos para o ~ado; frutas estranhas ~ doces, ~ de muit~s defraudar o outro. Por fim resolveram escolher o rio
espécies, cresciam em abundância ; a bata e o r~o Itaperimim, a que deram o nome de Santa Catarina
enxameavam de peixe, e nas enseadas e lagunas podia como limite, e mesmo assim Pero de Góis receava te;
apanhar-se o «peixe boi)), um monstro estranho, de enganado Vasco Fernandes. Não se tratava disso
cabeça de vaca e rabo de peixe, grande e corpulento como declarou Vasco Fernandes, e se assim fosse não impor~
uma vitela cuja carne não se distinguia da de vaca. tava! Pero de Góis fora muito amável em ;ajudarme e
A terr~ vermelha e rica parecia estar a pedir que
a cultivassem. Evidentemente, o açúcar foi a primeira (!) Carta de Confirmação da de
Góis • de Vasco Fernandes Couf h
- d · ·
marcaçao as capttamas de Pero de
D. João Ill, liv., 6 foi. 15 v.• publ i~~~- ~ d deCM/ arço de 1543, Chance!. de
2
coisa em que se pensou. Vasco Fernandes e os seus
pá&. 264, 265. ' . IS • a o on. Port. d6 Brasil, Tomo m.
homens lançaram-se ao trabalho plantando canas que
148 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 149

socorrerme e fazer obras porque depois de Deus a Do cimo do monte coberto de palmeiras, Vasco
minha capitania se sustivesse e eu recebi grande bem Fernandes olhava para as belas florestas e as monta-
em darme escravos e outras boas obras)). (I) Por isso, nhas azuis da sua capitania, e sonhava. Quem sabia o
se por qualquer circunstância a demarcação atri- que se escondia por detrás daquelas montanhas?
buísse a Pero de Góis mais do que por direito lhe per- Falava-se doma montanha de cristal, lá muito longe,
tencia a ele, Vasco Fernandes, ficaria satisfeitíssimo e de esmeraldas e outras pedras preciosas. Deviam com
em o deixar ir ! certeza existir terras de ouro no coração deste conti-
Outros, menos desinteressados do que Pero de nente- não estariam elas na sua capitania, cujos
Góis tinham também prestado assistência, porque limites ocidentais ninguém podia adivinhar? Não devia
Vasdo Fernandes distribuiu terras com abundância, ele ir à procura dessas minas? Mas isto implicava
não só por ser, de seu natural, liberal e imprevidente, grandes despesas, e Vasco Fernandes não tinha cápital.
mas também devido à necessidade que tinha de obter Resolveu portanto ir à pátria buscar dinheiro. Duarte
mais auxílio. Por isso, aos espíritos empreendedores e de Lemos resolveu ir com ele e obter a confirmação
gananciosos, parecia que o Espírito Santo oferecia dos seus domínios por diploma real para melhor se
grànde futuro. garantir.
Duarte de Lemos, outro veterano dos mares da Pensavam eles que podiam deixar por então a
Índia desceu da Baía de Todos os Santos, levando com capitania. Os índios estavam sossegados e as planta-
ele aiguns colonos. Este, homem calmo e prático, com ções prósperas. D. Jorge de Meneses ficaria como capi-
os olhos postos na melhor oportunidade, levou a Vasco tão da colónia. Não tinha ele muita experiência das
Fernandes uma boa ajuda, recebendo em troca a melhor Molucas?
das ilhas da baía, para ser governada por ele e pelos Infelizmente D. Jorge tinha. Desde então nada apren-
seus herdeiros com quase os mesmos poderes que Vasco dera e nada esquecera. Nem lhe lembrou que não é tão
Fernandes exercia na sua capitania em geral. Vasco perigoso criar questões com indígenas das ilhas dos
Fernandes Coutinho, alma sempre grata, declarou que mares dominados pelas armadas de sua pátria, como
dava aquela ilha de Santo António a Duarte de Lemos hostilizar tribos desconhecidas espalhadas por um con-
em reconhecimento da grande dívida que lhe devia por tinente desconhecido, em que apenas se tem um pequeno
o ajudar a conservar a terra, o que ele não podia ter sitio na costa em que pôr os pés. D. Jorge de Meneses
feito sem o seu auxílio. nunca se preocupou com ganhar a amizade das hordas
Duarte de Lemos fora realmente útil. Coru a sua que viviam em volta do acampamento- os belicosos
ajuda e conselho, os índios tinham sido vencidos e Goiatacazes_e Tupiniquins que vagueavam pelas florestas
pacificados, a «cidade)) do Espírito Santo fundada das cercamas, ou os ainda mais ferozes Aimorés
junto da costa, canas de açúcar plantadas em redor, selvagens emigrados das selvas densas que cobriam a~
que se multiplicaram de tal modo que já estavam a encostas da fantástica serra dos Órgãos situadas mais
trabalhar quatro engenhos. para o Sul. '
Do caminho da floresta uma chispa pode fàcil-
(1) Loc. cit. mente provocar um incêndio. D. Jorge de Meneses e
150 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 15 1

os condenados que Vasco Fernandes levara com ele andavam constantemente em questão uns com os outros,
não estavam habituados a impedir essas chispas de e Vasco Fernandes não desanuviou o ambiente abrindo
saltar. de par em par os seus domínios como refúgio dos cri-
Daí resultou uma luta feroz entre forças desiguais. minosos fugidos à justiça das capitanias limítrofes.
Quando Vasco Fernandes regressou, verificou que o Ao contrário do esperto e sisudo Duarte Coelho, Vasco
seu lugar-tenente fora morto pelos índios, tendo acon- Fernandes estava pronto a tomar «aquele veneno».
tecido o mesmo a D, Simão de Castelo Branco, que lhe Achava mesmo que devia, por precisar de homens.
sucedera. Os engenhos de açúcar estavam todos Porque a soa capitania era boa. Ele bem o sabia !
destruídos, os colonos tinham sido dispersados. Uns Desprezada como a terra estava, ainda assim produzia
subiram a costa até às margens do rio de São Mateus, com abundância. «Meu vilão farto»: era como Vasco
outros agarraram-se com desespero às suas posições Fernandes chamava ao seu rico domínio arreliador, e
junto da costa, mas as esperanças da capitania estavam apesar de apertado por todos os lados, ainda assim,
perdidas. aguentava-se.
Duarte de Lemos não era homem para interes- Não se sabe quanto tempo durou a luta. Há
sar-se por causas perdidas, e parecia que o Espírito poucos relatos desse período no Brasil. Todavia, parece
Santo não podia ser restaurado ainda durante muitos que em 1549 as notícias de Portugal levaram Vasco
anos. A ser assim, achou preferível evitar mais pre- Fernandes a empregar esforços desesperados.
juízos. Deixando Vasco Fernandes arranjar as coisas O rei resolvera mandar um Governador Geral para
o melhor que pudesse, Duarte de Lemos mudou-se o Brasil, com jurisdição suprema sobre todas as capi-
para outro sítio. Qual ele fosse não se sabe com certeza, tanias. Para a maior parte dos donatários aquilo era
mas é provável que voltasse à pátria. um golpe fundo. Não lhes tiravam as terras, mas daí
Com falta de homens e cada vez mais falho de em diante já não seriam apenas responsáveis perante
dinheiro- parece que a viagem a Portugal só servira Deus e o rei, do outro lado do mar, pela forma como
para lhe aumentar a insolvência-Vasco Fernandes não as governavam ou desgovernavam.
perdeu a coragem. Resolveu transferir a sua capital Nas instruções dadas a Tomé de Sousa o
para a ilha de Duarte de Lemos, boa posição estraté- primei~o G_overnador, encontramos referências espediais
gica, protegida por rochedos e montes elevados, onde à c_aptta~ua de Vasco Fernandes Coutinho. O rei
podia fortificar-se contra os ataques de selvagens do ou~tra dtzer que ela se encontrava em estado de anar-
interior. quta: era necessário fazer um inquérito a tal respeito.
Ali procurou reunir as forças dispersas, mas se os Esperando, apesar de tudo, conseguir dar-lhe um
índios eram difíceis, também o eram os ferrabrazes aspecto de estabilidade, Vasco Fernandes embarcou
europeus. Estes eram muito poucos para constituírem numa caravela e visitou vários portos ao longo da
uma colônia próspera, além de serem demasiado costa, para reunir recrutas para se estabelecerem nas
turbulentos para ele os manter na ordem. De certo soas terras e ajudá-lo a defendê-las. Mas parece ter
modo, estavam organizados: tinham uma Vereação, encontrado só indesejáveis.
meirinhos e outros funcionários municipais. Mas Duarte de Lemos, que regressara em 1 549 e que
152 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 15l-

ele encontrou em Porto Seguro, fez certos comentários fez durante os poucos anos seguintes. Pero de·
desagradáveis. Este indivíduo desfrut~va nessa ~ltu~a Góis, escrevendo da Baía em 1551, diz que Vasco Fer-
do cômodo cargo de lugar-tenente da prospera capttama nandes tinha partido, ninguém sabia para onde. As.
de Porto-Seguro, cujo donatário se encontrava então comunicações ao longo da costa brasileira eram raras.
em Portugal, para responder por acusação perante a e lentas. Vasco Fernandes deixara o Espírito Santo por
Inquisição. algum tempo, mas certamente nunca foi para França,.
E provável que o pobre Vasco Fernandes, em nem tentou traição de qualquer espécie. O que aconte-
conversa com o seu velho camarada, deixasse escapar ceu ao carregamento de criminososs-e realmente levara
algumas frases amargas. Desde que as doações já não carregamento -do seu navio, não podemos dizê-lo. Se
deviam continuar nas condições primitivas, achou lançou ferro com eles em Pernambuco, é mais que cert0o
preferível abandonar tudo e ir para qualquer outra que Duarte Coelho não os autorizaria a desembarcar.
parte em busca da fortuna. Vasco Fernandes permaneceu algum tempo em
Duarte de Lemos carregou o mais que pôde as Pernambuco, ao que parece, antes de partir para a nova
cores a tudo o que ele disse, escrevendo uma carta ao cidade do Salvador que o governador edificara junto.
rei a informá-lo de que Vasco Fernandes chegara da Baía de Todos os Santos. Vasco Fernandes sempre
numa caravela com um bando de ladrões e criminosos esperara que haviam de fazer qualquer coisa da sua
com quem teimava «yr se a França a se restaurar se capitania, mas até então tudo talhara. Ninguém lhe-
de seus gastos ffeitos na sua capitania, dizendo que obedecia na ilha ; os índios eram senhores do interior~
asy ho ade fazer pois lhe V. A. quebra suas doações». e} ele não conseguira jantar os reforços que buscara, e
Diz que não tem dúvidas de que Vasco Fernandes parece que nem sequer tinha dinheiro para a volta; a
executará o seu plano: nada tem que perder porque sua saúde ressentia-se dos anos de dificuldades numa.
está crivado de dívidas no reino. Além disso- ele terra selvagem, e então devia ter 70 anos ou mais. Iria
tivera sempre más intenções a tal respeito: quando isto ser o fim de todos os seus sonhos? Onde estava o
chegou pela primeira vez ao Brasil, quisera libertar-se Vasco Fernandes dos velhos tempos- os heróicos
da obediência à Coroa, propondo a Duarte de Lemos velhos tempos, os violentos velhos tempos-o jovem
que fizesse o mesmo, ao que ele respondera com justa que levantava mouros na ponta da lança, que lutava
indignação! Por agora - ~<Se vay a Pernambuco a ver com elefantes, que saltava como um garrano indo--
com Duarte Coelho». mado sob as rédeas de Albuquerque? Onde estava,
Com certeza pouco mal havia nisso. Vasco o Vasco Fernandes que sonhava dominar as montanhas.
Fernandes esperava, sem dúvida, que o:seu antigo:com- de cristal duma terra de ouro? O Vasco Fernandes.
panheiro dos mares da China o ajudasse. que então vivia estava em baixo, alquebrado, velho e
É coisa vaga para onde ele foi exactamente e que d~ente, a quem os amigos davam de comer é de dor-
mtr por amor de Deus.
dis A . sua consolação era uma planta indígena que se-
( .) Carta de Duarte de Lemos escrita de Porto Seguro a D. João III. d solvta em fumo que muito acalmava. Vasco Fernan-
Torre do Tombo. Corpo Cron. Parte I, Maço 84, n.o 9Y. Publ in- Hist. d4
Co/, Port, do Bras1l. Tomo III, pág. 267. es «bebia fumo» como os índios, diziam os que o.
154 CAPITAES DO BRASIL CAPIT AES DO BRASIL 155

viam, e o bispo, recém-chegado, ficou horrorizado. O autor desta modificação oportuna era um bom
Aquilo era um costume pagão, e quem sabia a que padre jesuíta, o P.e. Afonso Brás. ~ Co~panhia de
<>diosos ritos ele podia estar associado? O bispo não Jesus- de que depois falàremos mUlto mats desenvol-
toleraria tais hábitos entre os membros do seu rebanho! vidamente-aparecera no Brasil em I 549, e a sua influên-
Quando um homem das classes baixas se dava a «beber cia e actividade estavam a descer ao longo da costa.
o fumo», as ordens do prelado eram que o desnudassem O P.• Afonso, que chegara ao Espírito Santo em
até à cintura e que ficasse na igreja durante a missa I 551 com um irmão da Companhia, ficara deliciado
com a perniciosa planta enrolada no pescoço. com a terra- cca melhor e mais fertil de todo o
Ele não podia tratar assim um fidalgo, mas fez Brasil», (I) disse ele, lamentando não poder dizer
tudo o que pôde para humilhar o pobre capitão velho. outro tanto acerca dos colonos ali estabelecidos.
Negou-lhe o privilégio de sentar-se numa cadeira de Embora fossem poucos em número, davam-lhe muito
-espaldar na igreja, como era devido à sua categoria, que fazer.
proclamou em público a sua excomunhão, e nunca Pelo menos receberam o P.e Afonso com alegria.
deixou de dizer, do alto do púlpito, ((cousas delle tam Havia muitos anos que eles não viam igreja nem padre.
descorteses estando elle presente que o puseram em Também não tinham ocasião para confessar os seus
condiçam de se perder» (1). pecados, cuja história era muito comprida. Durante
Vasco Fernandes protestou dizendo que não podia dias e dias seguidos o P.e Afonso nada mais fez senão
deixar de fumar, ((sem o qual nam tem vida» e o confessar.
.governador - então D. Duarte da Costa - julgou O padre tomou firmemente a seu cuidado estes
·O bispo pessoa de espírito demasiado estreito, penitentes. Obrigou-os a deixar as amantes ou a casar
dizendo que aquela planta era medicinal, ((húa mezi- com elas, confiscou cartas e dados, e embora os obsti-
nha que nesta terra sarava os homens e as alimarias nados protestassem, outros resolveram cede se emendar
de muitás doenças e que parece que nom devia de e ser bons ao diante».
-defender». Certamente fizeram-se mais observantes. Sabemos
D. Duarte da Costa era uma boa alma. Recebeu que em I 552 toda a gente se confessava quinzenal-
Vasco Fernandes em sua casa, fez o que pôde para lhe ~ente, e muitos uma vez por semana. A supressão da
mitigar a pobreza e mandou-o de novo para o Espírito h?guagem baixa foi talvez mais difícil, porque as pragas
Santo. vmham à boca dum homem quando ele estava irritado,
Encontramos Vasco Fernandes a residir ali de pelo que os espíritos zelosos organizaram uma Irman-
novo nos princípios de I 555. Ele deve ter-se sentido dade que tinha em vista acabar com as blasfêmias.
muito contente por encontrar uma capitania melhor Havia multas para cada transgressão: 5 réis se o trans-
do que a que deixara, talvez não melhor organizada gressor se denunciasse a si mesmo, 20 réis se a sua
mas melhorada em moral e maneiras. falta fosse denunciada por outrem.
d (l} Carta de Afonso Brás mandada do porto do Espírito Santo do ano
(1) Carta de D. Duarte da Costa a el-Rei, 20 de Maio de 1555· e l551. Cartas Jesuíticas. Vol. JI. Cartas Avulsas. Rio de Janeiro, 1931.
Pã1 . ss.
Corpo Cron ., Parte I, maço 95, n, 0 70, Publicado in-/oc. cit , pág 375.
156 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 157

Foi a esta comunidade reformada que Vasco Fer- Estes selvagens perseguidores continuavam a
nandes voltou. P.• Afonso Brás não estava ali, tendo ser a grande ameaça. Em toda a parte os índios
as suas funções sido tomadas por um colega seu cujo eram difíceis e perigosos, e os colonos de Vasco Fer-
nome- que se confunde com o dele- era P.• Brás nandes, em especial, tinham-se tornado impopulares.
Lourenço. Já se tinha edificado uma igreja e aberto Falhos de mão de obra como estavam, parecia
uma escola onde as crianças -mestiças e índias - uma solução feliz raptar os indígenas e fazê-los escra-
aprendiam a doutrina cristã, além de ler e escrever. vos. O resultado foi que os índios se retiraram para
Vasco Fernandes deu-se muito bem com os alguma distância da costa e da segurança das suas
Jesuítas, pessoas muito mais compreensivas do que florestas faziam incursões e assaltavam os estabe-
o bispo da Baía. Fosse o que fosse que eles pensassem lecimentos dos brancos, levando estes por sua vez, não
do seu hábito de fumar, os missionários estavam para trabalharem para eles mas para os engordarem
ocupados de mais na luta contra os pecados mais para o festim de cerimônia. Nestas circunstâncias,
graves, como a poligamia, o adultério, o canibalismo pode-se imaginar como era precário para um branco
e o assassínio, para voltarem as suas baterias contra as trabalhar na sua plantação a certa distância da «vila».
fraquezas do velho capitão. Tudo por culpa deles 1 diziam os Jesuítas. Eles próprios
Com o seu regresso, a capitania adquiriu um tinham atraído esses males. A maior parte das vezes os
aspecto mais esperançoso, de certo modo . Além do culpados tinham sido eles, mas isso não tornava a situa-
apoio moral dos padres, Vasco Fernandes parece ter ção mais fácil.
encontrado alguma ajuda para a administração no seu A acrescentar ao perigo que espreitava das flo-
secretário, Belchior de Azevedo, homem geralmente ~estas do interior, havia o dos piratas franceses que
estimado. mfestavam a costa. Na sua estreita faixa junto do mar,
O capitão estava mais pobre do que nunca, mas o punhado de colonos mal armados deve ter-se sentido
algumas expedições ao interior trouxeram amostras de exactamente «entre a cruz e a caldeirinha».
ouro, e o que parecia ser pedras preciosas, ficando toda _ Aos preocupados colonos, era ao menos uma bên-
a gente cheia de esperança, tanto mais que na própria ç~o que! se os índios não gostavam deles, as diferentes
ilha se encontrara um metal que parecia prata. Talvez. tnbos au~da gostavam menos umas das outras. Foi por
um dia- quem sabe? -grandes riquezas se desco- e~se mottvo que o «Grande Gato• e toda a sua família
brissem 1 Vleram viver para a capitania do Espírito Santo.
Entretanto, a capitania consistia em três povoa- Maracajaguaçu- Grande Gato- fora um chefe
ções, a que chamavam vilas: a «capital», na ilha de J!Oderoso, cujo nome era respeitado e temido em muitas
Duarte de Lemos, mais tarde chamada Vitória; a leguas de floresta. Vivia na ilha principal da baía de
primeira povoação, quase abandonada, chamada Vila ~o~nabara, aliás conhecida por Rio de Janeiro. Dali
Velha, onde alguns brancos ainda viviam; e São Mateus,. ~z1a. guerra aos Tamoios e durante muitos anos a
mais ao norte da costa, junto do rio do mesmo nome,. ~tón~ ~eguiu-o, comend? a ~arne dos seus inimigos.
onde alguns refugiados desgarrados, em anos passados,. . as ultimamente a mare batxara. Os seus inimigos
tinham procurado fugir aos índios. JUntaram-se e atacaram em massa de todos os lados , a
158 CAPITAES DO BRASIL
CAPIT.AES DO BRAML

aldeia foi cercada e a sua retirada cortada. Parecia


certo que dentro em breve o Grande Gato e toda a educadas como bons cristãos ; se morressem, iam para
o Céu.
família dariam aos Tamoios o banquete da vitória. P.• Brás Lourenço andava ocupadíssimo a cuidar
Eles não podiam fugir senão por mar, e para onde de tanta gente deslocada, missão que estava mesmo ao
poderiam ir? São Vicente ficava perto, e o Grande sabor do excelente padre. Grande Gato e todos os que
Gato mantivera relações amistosas com os portugueses. lhe pertenciam foram persuadidos a fixar-se numa
Mas infelizmente os Tupis, que viviam em volta do seu aldeia que edificaram fora da cidade, e aí P. • Lourenço
estabelecimento, eram todos seus inimigos. Fugir para o colheu muitos frutos entre todos eles, catequizando as
norte seria o mesmo que ir meter-se na boca do lobo! crianças e esforçando-se por preparar os adultos para
O melhor seria tentar ir para o Espírito Santo. professarem a fé cristã. O próprio Grande Gato levou.
Grande Gato mandou o filho implorar auxílio aos portu- dois anos a ser instruído com esse fim.
gueses. Não quereriam eles mandá-lo buscar e à famí- Em t558, Vasco Fernandes perguntou se Maraca-
lia? A maior parte deles estavam preparados para se jaguaçu queria cumprir a sua promessa e fazer-se ct istão..
fazerem cristãos. Sendo como era tão grande amigo dos padres, como ele-
Os Jesuítas, como é evidente, ficaram encanta- dizia ser, porque não comprovaria as suas palavras?
díssimos- tantas almas a salvar e «moveu isto a pie- Com certeza chegara o momento de se baptizar.
dade aos moradores» C). Todavia hesitaram durante a Talvez! Grande Gato pensou no caso. Um
ausência de Vasco Fernandes. A situação era delicada, dos seus filhos- um jovem doente- fizera profissão da
o Grande Gato e a sua tribo vinham de terras perten- fé dos brancos: Duarte de Lemos, que reaparece em
centes à capitania de São Vicente. Devia Espírito cena nesta conJuntura, tora o padrinho, dando ao jovem.
Santo intervir? o nome de Sebastião de Lemos.
O filho do Grande Gato ia partir desanimado, Vasco Fernandes ofereceu-se então para padrinho,
mas voltou ao saber do regresso de Vasco Fernandes. de Grande Gato e da mulher, dando a um o seu próprio
O capitão ouviu com simpatia a sua triste história, nome, e ao outro o da sua mãe. Também havia de daf'
prometeu mandar quatro barcos com munições em um grande banquete para celebrar o facto.
socorro do Grande Gato, mas disse que só em último . E assim Maracajaguaçu recebeu a água santa na.
recurso ele e os seus deviam ser trazidos. p1a, e o nome de Vasco Fernandes Coutinho, enquanto
Todavia, quando o grupo chegou à Guanabara, a sua mulher de pele fusca se chamou D. Branca
encontrou o Grande Gato e todos os sequazes à espera O capitão, conforme prometera, deu um grande janta;
na praia, tendo já queimado as suas choças e todos os para 7elebrar o alegre acto e sentou o afilhado ao seu,
seus haveres. Nada mais podia fazer-se senão levá-los, lado a mesa.
e todos embarcaram tão depressa que deixaram várias O novo Vasco Fernandes tornou-se em geral um
criancinhas em terra, as quais os bons dos Jesuítas bom converso, embora de vez em quando desgos~as
foram buscar e baptizaram. Se elas vivessem, seriam o seu confessor com recaídas no paganismo M se
o ex-Grande Gato não deixou de acentu~r als, co~o·
deviam · d , e es nao-
(I) Novas Cartas Jesuíticas . Publicadas por Serafim Leite. Pág. 180. esperar muito e1e, que era cristão havia tão.
1.60 CAPITAES DO BRASIL

CAPITAES DO BRASIL 161


;pouco tempo, considerando o que. el: observara .do pro-
-cedimento de alguns que eram cnstaos de nascimento!
Ao menos, desde que fora baptizado.. tiver~ ap~nas uma Se havia uma capitania que tivesse necessi~ade
mulher. Parecia-lhe que o mesmo nao podta di1.er-se de de ser unida e estar em paz dentro das suas fronteiras,
muitos cristãos! era o Espírito Santo nessa época.. ~ ~egresso de
Vasco Fernandes Coutinho fez tudo o que pôde Vasco Fernandes Coutinho quase coincidiu com uma
para proteger os índios da sua capitania dos bran- grande investida dos Tam?ios, in~itados e auxiliados
pelos piratas franceses CUJOS navios frequentav?m a
·cos e dos outros. Proibiu de vender os filhos como
costa. A colônia não estava bem armada ou eqmpada
-escravos aos colonos, e os brancos de entrarem em para a defesa, nem havia dinheiro para comprar c~m
tais negociações que fazê-la. A capita!lia tinha com ce~tez~ os .dtas
Não lhe obedeciam muito bem. Apesar de todas as contados se não se ftzesse qualquer cotsa Imediata-
;práticas piedosas introduzidas recentemente, é de recear mente.
que a regeneração estivesse longe de ser completa, e Vasco Fernandes apelou para o novo governador
,mesmo que os fiéis se confessassem uma vez por semana Mem de Sá. Se ele não lhes mandasse ajuda, os colonos
nunca podiam estar isentos de culpas. Entre eles, esta- seriam mortos e devorados.
-vam constantemente a questionar e tinham violentas Mem de Sá, que chegara h a via pouco tempo, man-
,questões com o capitão. A Câmara trataya-o co~ sobran- dou uma armada de que fazia parte seu próprio filho.
ceria parecendo que foram as mmas, amda por Os homens desceram a costa, desembarcaram junto do
'
descobrir, a causa das zangas. Pertencia . aos verea - rio Cricaré, e avançaram para o interior pelos cursos
·dores tratarem desses assuntos, diziam eles, e não ao de água e pelos caminhos da floresta. Descobriram as
-"Capitão. De facto, segundo Vasco Fernandes escreveu, tribos de Tamoios e puseram-nas em fuga diante do
-trataram-no com «pouco amor e cortesia». (I) troar da sua artilharia, perseguiram-nas pelo interior
Vasco Fernandes, que fora arrebatado na juven- até muito longe nos seus esconderijos e alcançaram
·tude, pode muito bem ter sido irritável na velhice. Mas uma vitória retumbante no deserto- vitória que
também ele sentiu a influência dos bons missioná- Fernão de Sá, filho do governador, pagou com a vida.
rios· <<quiz Nosso Senhor movei-O>>, escreve um deles, Vasco Fernandes recebeu com tristeza o exército
«e ~andou chamar a todos aquelles que lhe parecia triunfante na sua capital, desde então chamada Vitória.
·estarem escandalisados e com boas palavras e mostra Obtivera-se .uma libertação completa, mas por que
de sentimento lhes pediu a todos perdão com protesta- preço? Os índios foram derrotados e a capitania salva,
·ção que, si a algum havia damnificado, o satisfaria e para quê? Não para ser governada por Vasco Fernandes
-que dali por diante queria estar bem com todos. >>e) Coutinho.
Ele sentia-se velho e doente. Já não estava em
(l) Carta de Vasco Fernandes Coutinho para Mem de Sá. Torre do
condições de comandar rudes pioneiros -sentia-o no
·Tombo. Corpo Cron . Parte I. Maço I02, n.o 96. Publ. in - Hist. da Col. Port. coração e via-o nos olhos dos seus homens. Não tinha
.do Brasil, Tomo 111, pág. 382.
(2) Cartas Avulsas n.• 196. Carta de Francisco Pires do Espínto
. força para impor a. s_ua vontade, ?em dinheiro para
-Saato, 1558. conservar a sua postçao. Era um Indivíduo isolado
A mulher, D. Isabel Fróis, ao que se sabe, nunca ~
162 CAPITAES DO BR ASIL CAPITAES DO BRASIL 163

acompanhara para a sua capitania, naturalmente tada e que a:não esteja tão deserta, como está e tão
morrera em Portugal havia muito tempo; e embora por desamparada, é necessário _i~ to~ar conclus.ão antes
reterências se saiba que ele tinha dois filhos, ambos no que morra, porque são (sou) Ja mm ve_lho e mu1 cercado
Brasil, não consta que eles fossem de muita ajuda para de doenças e morrendo desta maneua corra a alma
o pai. Passara o seu tempo; tinha de dar o lugar a muito risco». Implorava ao go!er~ado~ que escrevesse
outros. Pediria ao rei que o exonerasse da sua capita- ao rei a respeito da sua capttama, dtzendo-lhe como
nia e mandasse alguém competente ·para tomar conta não se devia deixar perder tal terra, a: se la ha e~barca­
do seu «Vilão farto». ção e Vossa Senhoria ha de mandar algum n_avto para
Vasco Fernandes queria voltar a Portugal e ver os o Reino folgaria de por elle ser embarcado e tr>>.
velhos lugares e os velhos amigos antes de morrer. Mem de Sá concordou perfeitamente em ser
Iria ele morrer em Portugal? Mas amava muito esta preciso fazer qualquer coisa pelo Espírito Santo. Agora
terra luminosa de azul e verde, esta terra nova de já estava livre de indios, •mui pacifica e o seu gentio
esperança radiante, a que devotara um terço da sua tão castigado, mortos tantos e tam principaes que
v~da. Em Portugal talvez encontrasse ajuda afinal, parece que não Alevamtarã a cabeça tam cedo( •.. ) o
quaisquer meios de realizar tudo aquilo que planeara perigo que esta terra agora pode ter- dizia ele ao
e esperava fazer ainda nesta hora tardia. E o velho rei- hee ter capitão tão velho e pobre>> (1). O rei devia
sonhador mais uma vez sonhou. chamá-la de novo à Coroa. Vasco Fernandes estava
Entretanto, teve de subir a costa até ao Salvador •tão cansado e emfadado que não deseia senão que lhe
para agradecer ao governador o seu auxílio oportuno. tome a capitania».
Por isso, Vasco Fernandes deixou Vitória, mas estava Em I 56o Mem de Sá fez isso finalmente. Chegando
longe de encontrar-se bem, e os navios não eram a Vitória, tomou posse formalmente em nome da Coroa
então lugar para doentes. Não passou além de Porto e nomeou Belchior de Azevedo como lugar-tenente.
Seguro- ucom mao tempo e má vida do barco, ja Vasco Fernandes nunca mais voltou a Portugal.
quando aqui cheguei, foi dita chegar vivo» C), escre- Não tinha saúde para tão longa viagem. Ficou no
veu ele a Mem de Sá. Logo que se sentisse melhor, iria Brasil mais um ano- tão pobre que dizem que algu-
ver o governador e falar acerca da sua capitania, que, mas pessoas lhe davam de comer por esmola, tão
graças a Mem de Sá, estava agora livre dos seus ini- pobre que, quando morreu em I 56 r, Frei Vicente do
migos e «em termos melhores de que nunca esteve >>. Salvador duvida que deixasse o bastante para comprar
a mortalha.
Mas ele não podia aguentar mais os colonos, pelo
que pedia ao governador para abandonar o cargo. Por
muitas razões, o seu ú aico desejo era chegar a Portugal,
se Deus lhe fizesse essa grande mercê. Ali esperava
recrutar novos colonos para a sua capitania ou vendê-la
a quem pudesse. Estava ansioso por ver a terra habi- (I) Carta de Mem de Sá para el-Rd de 1 d J h
Tombo, Corpo Cron. Parte I Maço 102 do~ 103 ; buo_ o de _1558. Torre do
tlo Blpirito Santo, pá1 35· ' ' ' ' u • 10 - Hut. da Províncie1
( I) Lo cit.
XI

Trabalho baldado

Pero de Góis amava o Brasil. Entre todos os


capitães que pediram terras no novo continente, era ele
o único que conhecia por experiência o que pedia,
escolhendo o Brasil por ser a terra do seu coração.
Navegara ao longo de toda a costa com Martim
Afonso de Sonsa. Vira a alvorada surgir cor de sangue
por cima das árvores da floresta de Pernambuco ;
conhecia as ilhas verdes e frescas que enchiam a Baía
de Todos os Santos, e as montanhas encantadas, que
ao lnsco-fnsco pareciam cor de pérola e púrpura que
cercavam o Rio de Janeiro; e trepara aos montes de
Piratininga para ver o mar azul a estender-se lá em
baixo com a sua linha de ondazinhas brancas de neve
cobrindo os contornos irregulares da costa.
Ajudara a fundar os dois estabelecimentos de
Martim Afonso, no planalto e junto do oceano em São
Vicente; possuía uma •sesmaria» na capitania um
d?mínio de montes ainda por explorar, de rio; que
vmham de nascentes desconhecidas.
Andara pelo interior até grande distância com o
166 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 167

grupo que procurara em vão os perdidos expedicio- deles assaltou e saqueou a jovem cidade de São Vicente
nários de Cananeia. Aspirara esse perfume, suave e acre, enquanto Pero de Góis e o irmão se encontravam
que paira nos vales selváticos duma terra erma, e atra- ausentes no planalto. Tiveram que descer com o seu
vessara com dificuldade as florestas impenetráveis por aliado T abiriça para ca·stigar os rebeldes.
onde vagueia, entre as sombras profundas, a onça. Tal foi a vida vi vi da por Pedro de Góis até r5 36,
Conhecia o silêncio murmurante das longas noites à quando voltou à terra natal para ser investido da capi-
luz das estrelas meridionais e ouvira os periquitos tania que o rei lhe concedera.
gritar ao nascer do sol. Talvez por ter chegado mais tarde do que os
Pero de Góis era oriundo, ao que parece, de Beja outros, quando a maior parte das doações já estavam
-antiga cidade erguida num monte sobranceiro à repartidas, Pero de Góis teve menos do que qualquer
infinita planície alentejana. Campos de trigo a ondular outro capitão. Deram-lhe a terra entre o Espírito Santo
sob um céu sem nuvens- verde claro nos princípios e São Vicente, umas 3o léguas da costa que abrangiam
da primavera, dourados nos começos do verão e, depois, o vale fértil do rio Paraíba, a nordeste do cabo Frio.
queimados a reverberarem ao calor de Agosto- eis a Ficou muito contente com isto, porque não era
paisagem no meio da qual crescera, simples, batida do r;ico e não teria podido arranjar o capital para man-
sol e seca- terra que conhecia o arado desde o tempo ter mais. Parece que era solteiro, mas tinha mãe e
dos Romanos, onde basta raspar o solo para desenterrar três irmãs a sustentar. Como muitos outros nestas
os restos de civilizações mortas. Pero de Góis passara ccndições, esperou que o Brasil resolvesse o seu caso
deste para um mundo novo e estranho, sem história, pessoal. Não tinha muitas ambições. Não sonhava com
onde a passagem do homem não deixa rasto sob o minas e pedras preciosas. O que ele pensava fazer era
verde perene que se fecha sobre ele como as ondas do lavrar o solo, torná-lo fértil e multiplicar as suas
mar sobre os navios que engole. colheitas.
Quando Martim Afonso de Sousa voltou a Portugal A sua capitania ticavã próxima de São Vicente,
em t533, Pero de Góis e seu irmão Luís ficaram na ~ parte do Brasil que ele conhecia melhor. Terra
jovem colônia de São Vicente. Viveram a vida dos tdeal para a cultura do açúcar, estava ele certo de
pioneiros, lutando para domar o deserto, caçando e que . havia de ser. Em r536, quando chegou ao
pescando com João Ramalho e os seus guerreiros Bras~l n~vamente, passou por São Vicente, e convenceu
índios, e ao mesmo tempo dando-se ao trabalho de seu. uma? Luís a juntar-se-lhe. Luís trouxe alguns
criar uma organização política em sítios onde jamais mats, assim como grande número de canas de açúcar,
se vira tal coisa. transplantadas de outras já nascidas na terra de
Não era fácil. O homem civilizado volta mais Martim Afonso. ·
depressa ao estado selvagem do que refaz uma civiliza- _üs dois irmãos subiram juntos a costa até à foz
ção. Os grupos de condenados e os marinheiros nau- ~o no Paraíba aí fundando a Vila da Rainha. Plan-
tragados que se tinham tornado selvagens com os índios aram ca?as, que se deram bem, mas faltavam muitas
da costa ressentiram-se com a nova autoridade que se outras coisas : máquinas para os engenhos, mercadorias
propunha diminuir a sua liberdade sem lei. Um bando para trocar com os índios e ferramentas de toda a
168 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 169

espécie para fabricar e fazer consertos. Como outros t 8s densas entraram e saíram dos muitos afluentes,
capitães, Pero de Góis, feito o reconhecimento da terra tudando 'onde poderia ser melhor sítio para insta-
e a primeira experiência, encontrava-se insuficiente- es d , Os m, d'tos perce b'tam
Iare m os engenhos e açucar.
mente equipado, resolvendo ir à metrópole para arranjar ito pouco do que se preten ta para po d erem aJU
d' . d'a-
as coisas para o futuro. Ele e Luís partiram em Abril ~:s. Apenas podiam avançar milha a milha observando
de 1542, e visitando Dnarte Coelho na passagem, che- por si mesmos.
garam a Portugal naquela primavera. Não era de aconselhar fixarem-se a grande
Pero de Góis teve sorte ali. Conseguira interessar distância da costa, e muitos sítios que pareciam bons
Martim Ferreira, um rico mercador, que aceitou asso- a Pero de Góis tiveram de se pôr de parte, por serem
ciar-se a ele, explorando juntos a indústria do açúcar. de difícil acesso, encontrando-se a água obstruída por
Martim Ferreira forneceria os capitais e todos os raízes e troncos que dariam muito trabalho a destruir.
utensílios de ferro e outras coisas necessárias. Por fim encontrou, no rio Menagé, um lugar com
Talvez em I 543, Pero de Góis partiu uma vez água limpa. Não era o ideal, disse ele ao sócio,
mais, cheio de esperança. Luís também foi, sendo talvez porque estava a 7 ou 8 léguas..da co~ta por terra, ?.u
então que levou a mulher para o Brasil- ou ela já ali 1 o léguas por água, mas por entao servta. Pero de Gms
se encontraria - e seu filhinho Pero. subiu o rio até onde os barcos puderam chegar, em
Era uma pena que os capitães tivessem de sair frente das cataratas, e aí ccachey poderem se fazer
alguma vez das suas capitanias. Ao voltar à terra, Pero todos quantos engenhos quisermos», (1) escreveu ele,
de Góis viu que se passara o costumado. Os colonos, e na estação das chuvas os navios podiam ir do mar
cada um a puxar para o seu lado, tinham-se zangado e até lá.
entrado em questões com os indígenas: «quanto des- Neste lugar, informou ele mais tarde o rei, cdis húà
baratada achei a minha capitania e allevantada», (1) mui boa povoação com muitos moradores e muita
escreveu ele ao rei ; os colonos tinham-se dispersado e fazenda» r). Tinha sido difícil, acrescenta ele, para
as plantações estavam abandonadas. todos por se encontrar tão longe da costa.
Mas não era homem para desanimar fàcilmente. Foi ao Espírito Santo para arranjar um mecânico
Com toda a paciência, recomeçou a trabalhar. Sem hábil para. instalar os engenhos, que pediu salário
dúvida tinha trazido outros colonos com ele, e elevado: um cruzado por dia. O custo total montava a
arrebanhou os que pôde entre os fugitivos. 18 mil reais pelo tempo todo, mas Pero de Góis teve a
Armazenado o grosso dos fornecimentos que satisfação de saber que o trabalho tinha sido bem feito.
trouxera, junto da foz do rio Paraíba, Pero resolveu O transporte era um problema que se tornava neces-
explorar todos os cursos de água que atravessavam sário considerar em tempo oportuno. Pero de Góis man-
os seus domínios. Dnrante dois meses, por entre tlores- dou abrir uma estrada através da selva, direita à costa.

(1) Carta de Pero de Góis para o seu sócio Martim Ferreira, escrit..,
(1) Carta de Pero de Góis para el-Rei, escrita em Vila da Rainha de Vila da Rainha, 18 de Agosto de 1545. Biblioteca Pública de Évora .
em 29 de Abril de 1546 Corpo Cron. Parte l. Maço 77, doc. 120. Publ. in GOd. CXVI, 2- 3, n .o 2, in- ob. cit., pág, 262.
- Hist . da Col. Port. do Brasil, tomo lll, pág. 263 (2) Carta para el- Rei. cit.
170 CAPITAES DO BRASIL
CAPlTAES DO BRASIL 171

Ao longo ·destas 7 léguas, escreveu ele ao socto, um Góis o deteve e lhe ordenou que ficasse. Devia
-carro podia andar em seco <<e cavalos e tudo, tudo ganhar 20 reais durante o primeiro ano antes de os
ho que homem quiser» ('). Assim «quem nam quer ir engenhos começarem a trabal~ar, e. o dobro quando .se
polo rio, vai por terra» e o açúcar podia ir pela água. fabricasse açúcar. A oferta f01 acetta com !elutâncta,
-«<sto da propria maneira que lhe escrevo, pasa; e diz Pero, o que, quando a comparamos co~ a norma
escrevo lhe pera que o saiba». dos sálarios, não é para surpreender! Mas «hqua seguro
Pero de Góis parece muito contente. por ser casado que não ha outra cousa pera ter~a».
Arranjara um bom intérprete que, juntamente com Seriam precisos mais homens desses, que devtam
outro homem, andava pelo país a negociar com os ir no momento oportuno, para «te-los seguros na boia>>
índios e a contratá-los para servirem. Ajudado por logo que os engenhos começassem a trabalhar. Mesmo
eles, os dois homens desbravaram e plantaram na ilha, que uma pessoa fosse! obrigada a pagar-lhes durante um
que estava no rio, canas de açúcar, e procederam a ano sem trabalharem, era melhor que eles tivessem de
·outros trabalhos para a cultura de cereais- e assim esperar pelas máquinas do que os engenhos ficassem à
quando chegassem mais colonos, eles encontrariam espera deles, com prejuízo das canas. Em qualquer dos
.alimentos para comer. casos, acrescenta ele, um homem não servia para muito
Enquanto este trabalho agrícola prosseguia, Pero durante o seu primeiro ano no Brasil: «neste anno
de Góis instalava dois «engenhos• junto da costa, os primeiro sempre gastão em doenças e fazerem-se á
quais deviam ser accionados por trabalho animal; terra>>. Portanto, arranjasse-se tudo com tempo.
«moia um delles pera os moradores, e houtro pera nós Quando chegou ao trabalho manual, Pero de Góis
(Pero de Góis e o seu sócio) somente». Isto por então, estava preparado para meter ombros ao carro. Para os
para toda a gente ter que fazer, porque «Pera estes dois engenhos movidos a cavalo que ele estivera a ins-
dois engenhos, bento Deus, tenho gente e o mais que talar, ceu só, bento Deus, com Joã.o Velho abasto>>.!
lhe pertence que he canas pranto agora». Dentro de 18 Por então não era preciso fazer mats despesas. Mats
meses contava mandar para o reino umas 2 mil arrobas tarde, quando a expansão que ele esperava tivesse
de açúcar, e no futuro esperava aumentar esse número. começado, seriam precisos uns 6o escravos da Guiné-
Pensava ele que havia de ser o melhor açúcar da dez para ajudar a levar os carregamentos para os
costa, pois aquela terra era a ideal para ele. Os engenhos, e 5o para os engenhos de água que traba-
técnicos, diz Pero, sentiam-se •muito satisfeitos da lhavam junto do rio.
terra». A carta de Pero termina com uma nota admoni-
Já tinha um «Mestre de açúcar», homem casado tória ao seu sócio para o abastecer de instrumentos
ido do Espírito Santo, onde já estivera contratado e ferramentas; a~ que parece, aquele. q~eria muito
pelo salário anual de 6o mil reais. Acontecia que este economizar: comprar só do melhor, tnstste ele, os
homem deixara a mulher- índia, cremos- junto do produtos baratos saem caros afinal.- «Tenho pera mim
rio Paraíba. Ele ia buscar a mulher, quando Pero de que nenhúa cousa é pior pera armação. ~ue mandar
cousas roins». E mandasse-as bem acondiciOnadas em
(I) Carta cit. boas caixas. A última remessa de tesouras, feita em
172 CAPITAES DO BRASIL

CAPITAES DO BRASIL 173


cestos não servira absolutamente para nada: «e isto
nom he minha culpa que eu ho avisei bem do caso e um levantamento geral co~tra ?s bran~os. O odioso
nom sey porque se nom lembra do que lhe escrevo pois Henrique Luís e os seus cumphces fugtram a toda a
tudo é seu proveito e serviço» ! pressa para a sua car~vela, deixando o inocente sofrer
Assim discorria Pero de Góis, cheio de esperança, a vingança dos seus cn~es. ,. .
da sua Vila da Rainha, a I 8 de Agosto de I 545. Daquele dia em dtante, Pt:ro de Gots vm os seus
O futuro parecia realmente muitíssimo prometedor. sonhos desvanecerem-se e o trabalho das suas mãos
Quem podia adivinhar que menos ~e um an~ passado destruído à sua vista. Os índios faziam incursões cons-
tudo teria caminhado mal? Resultou tsto da vtzmhança tantes. Não havia possibilidade de paz, porque . todos
com a capitania do Espírito Santo. diziam «de nos muitos malles que se não fiassem em
Pero de Góis e Vasco Fernandes Coutinho eram nos que não mantínhamos verdade», (') escreveu ele
os melhores amigos, prontos a ajudarem-se em to~as ao rei.
as ocasiões, cada qual muito escrupuloso em respet!~r Os engenhos situados jun.to do rio e perto das
as fronteiras do outro, e m~smo quando Pero de Gots cataràtas foram destruídos, assim como as florescentes
se apropriou do melhor perito açucareiro do seu amigo, plantações. Os colono~ tiveram. de ~bandoná-las e
parece não ter havido má-vontade- é muito possível entricheirarem-se na Vtla da Ramha, JUnto da costa.
que Vasco Fernandes nunca soubesse nada acerca Ali lutaram desesperadamente contra os milhares de
disto. selvícolas. Vinte e cinco dos melhores homens breve
Como quer que fosse, entre os capitães continuava a foram mortos- «fiquei com hum olho perdido de
haver perfeita harmonia, e nenhum deles queria ca~sar que não vejo». E acrescenta que também perdera
incômodos ao outro. Foi o bando de aventuretros os I 5 anos que dedicara ao Brasil, mas o que o
ousados de Vasco Fernandes que deitou azeite no preocupava mais era ter ~rrast~do o.s h?mens que
lume. Aquele não tinha qualquer autoridade sobre eles. tinham acreditado nele e mvesttdo dmhetro na sua
Portanto, sem o consultar, Henrique Luís, homem empresa. Há tão pouco temor de De~s em ~lguns pon- .
atrevido e mau, com oatros do mesmo estofo, desceram tos desta terra dizia ele, que se nao se hzesse qual-
um dia a costa para traficar com os índios, desafiando quer coisa por' ela, dentro de dois anos ficava arrui-
as ordens reais. Henrique Luís não se contentou com nada! Sua Alteza devia insistir por que as suas ordens
limitar as suas actividades a um simples comércio fossem cumpridas, e os actos de pirataria e de violên-
ilegal; raptou o principal chefe da capitania de Pero
cia suprimidos! . , . . ...
de Góis, homem que tinha sido sempre bom amigo dos Realmente devia mas era mats factl dtze-lo do
colonos - e levou-o para pedir resgate por ele. Aquilo que fazê-lo ! Como p~dia qualquer autoridade de tão
já era mau, mas quando a extorsão foi paga, Henrique longe impor a lei a tão poucos homens espalha~~s por
Luís fez pior. Nessa altura andava ele a mendigar os léguas e léguas ao longo duma costa selvattca e
favores de outra tribo, inimiga do seu prisioneiro e à deserta?
qual o entregou para o matarem e devorarem. Se ao menos houvesse paz na terra, lamenta-se
Acto de traição tão vil provocou, naturalmente,
(I) Carta para cl-Rci, cit.
174 CAPITAES DO BRASIL
CAPITÃES DO BRASIL 17.>

Pero de Góis, os seus engenhos de açúcar deviam de estar


então a produzir riqueza. Mas encontravam-se em ruínas não já como capitão donatário, mas como coman-
o o seu espírito muito preocupado com a mãe e os dante da esquadra ~~ndada pelo rei para cruzar em
irmãos que deixara em Beja. Não tinha fortuna pessoal frente da costa brastletra. Sabemos que serviu ali fiel-
-«mantenho-as com muito trabalho da mynha vida e mente vários anos, fazendo tudo o que pôde em
pesoa)). E pedia ao rei que lhe mandasse auxílio antes benefício da terra, e supõe-se geralmente que morreu.
no Brasil.
que fosse tarde para que não se perdesse a capitania,
com a qual esperara sustentá-las.
Não sabemos qual foi a resposta a este apelo
patético, nem como Pero de Góis resistiu na sua Vila
da Rainha. Diz-se que foram os seus colonos que
exigiram que a abandonasse, gritando que os levassem,
porque a vida era impossível em tal lugar!
Pero de Góis teve de aceitar a derrota. Apelou
para o seu amigo Vasco Fernandes Coutinho para o
ajudar com embarcações a fim de transportarem os refu-
giados da: Vila da Rainha. Vasco Fernandes man-
dou-lhes barcos, acolhendo Pero de Góis na sua capi-
tania, mas, como vimos, ele próprio não podia fazer
muito.
Luis de Góis voltou com a familia a São Vicente,
e Pero de Góis regressou a Portugal, não se sabe ao
certo quando.
Nunca chegou a adquirir meios para restaurar
a sua capitania. Nas margens do rio Paraíba todos
aqueles engenhos de açúcar foram absorvidos pela flo-
resta. A Vila da Rainha, caindo em ruínas na solidão
da costa, foi envolvida e engolida pela selva. Não há
hoje quaisquer indícios do lugar onde se encontrava,
discutindo os historiadores qual ele teria sido. Dizem
uns ser a cidade de Campos, capital do açúcar, cujas
refinarias são abastecidas pelas canas do vale do
Paraíba. Se assim é, a visão que Pero de Góis teve da
região chegou a realizar-se.
A ele só lhe trouxera desilusões, mas, de qual-
quer modo, amou o Brasil. Voltou lá em 1 S4g,
A baía de Todos os Santos e a cidade do Salvador
Do códice quinhentista da Biblioteca da Ajuda "Roteiro de todos os sinai1>, conhecimentos
fundos, baixos, alturas, que há na costa do Brasil".
IJ

XII

Paraíso perdido

A ampla Baía de Todos os Santos, ou simplesmente


a cBaía» , como iriam chamar-lhe daí a pouco, com as .
ricas terras que se estendiam a toda a volta, era consi-
derada a jóia e a prenda de todo o Brasil.
De onde lhe viera o nome? De ser um paraíso
digno de todos os santos! Diziam outros que era porque I

parecia que todos os santos tinham contribuído para


a sua beleza.
Estava ali um porto que poderia abrigar todas as
armadas do mundo -um mar interior com as suas
próprias baías e enseadas com os seus pântanos salgados,
as suas dezenas de ilhas, ilhotas infinitas de verde ondu-
lante, e os seus rios a desaguarem nas águas cristalinas.
Estas águas eram tão calmas e transparentes que do
meio da baía a vista podia alcançar o fundo onde se
avistavam as conchas e os seixos prateado:;.
As margens, que num arco de círculo de algumas
léguas de extremo a extremo envolviam este cristal
encantado, eram um jardim de verdura, com as folhas
mais escuras dos mangues de raízes aéreas que orlavam
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a praia, mergulhando nos verdes claros da re.lva, das


palmeiras e das árvores da Uoresta a cobnrem os quys falar nem dizer porque fizera aquyllo». C) No ano
montes que se estendiam para o interior. S~rpente_ando seguinte parece que foi para Ormuz com Afonso de
até à baía havia uma rede de cursos de agua, nos e Albuquerque e ali ficou depois de partir o governador,
ribeiros desaguando uns nos outros ou deles brotando, com a armada que patrulhava o Golfo Pérsico. Fran-
todos navegáveis por embarcações ,pequenas. g.uase cisco Pereira e os outros capitães serviam bem, escre-
não se precisava de estradas atraves, desta r:gtao, ~s veu o comandante da fortaleza de Ormuz, não dando
comunicações estavam feitas-e que e que nao havta qualquer incómodo. São estas as referências que encon-
de crescer neste rico solo vermelho? tramos a seu respeito, mas há poucos pormenores
O clima era considerado di vinal. Nem o calor acerca das suas acções. Francisco Pereira Coutinho,
esmagador da Atrica, nem o violento sol da India, que o «Rusticão», era apenas um entre muitos outros.

li
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secava a medula dos ossos do homem, nem o vento
gelado dum inverno europeu afligiria o feliz colono al~
estabelecido- nem mesmo a geada nocturna que cat
Não é fácil inferir das crónicas quantas vezes ou
durante quanto tempo serviu no ultramar. Sabe-se que
acabava de regressar do Oriente em I 534, quando
nos montes de Piratininga. Na Baía havia uma tempe- as capitanias brasileiras estavam a distribuir-se. Fran-
ratura levemente quente durante todo o ano, uma brisa cisco Pereira requereu uma delas e assim recebeu as
5o léguas de costa que, medidas desde o rio São Fran-
suave vinda do mar, que refrescava o ar mas nunca
cisco para o sul, abrangiam precisamente a majestosa
gelava. De mês para mês, do dia para a noite, o baía dentro dos seus limites.
ambiente era abençoado. A doação está datada de I 534, e evidentemente
Foi isto que tocou em sorte a Francisco Pereira Francisco Pereira partiu no ano imediato, como pode
Coutinho conhecido pelo «Rusticão» pelos seus com-
panheiros' dos tempos da In?ia.
. depreender-se do documento de 6 de Julho de I535
. em que o rei lhe faz presente de «mil cruzados per~
Porque foi ele favorectdo de tal ma~e1ra? C?n- comprar artelharia pera levar nos navios em que ora
fessamos que não vemos qualquer razao espectal. vai pera a sua capitania do Brasil. (2).
Francisco Pereira sem dúvida um homem valente, . Todas, as vant~gens de Pernambuco como capi-
servira durante ~uitos anos e com honra na Índia. t~n_ta tambem s: dtsfrutavam na Baía. Era quase tão
Nos fins de I 5og já ali estava e o seu nome tigura facilmente. a~esstv:I da Europa e pda navegação da
it
entre os dos fidalgos que acompanharam Albu- rota da Indta. Tao-pouco era costa desconhecida.
querque em J 5 IO à conquista de Goa. Depois_disto Fora visitada durante mais de 20 anos e havia colonos
parece ter voltado . ao reino, encontrando-se regtstado a viver junto da Baía. Devemos recordar como Martim
o seu regresso à In dia em 1 5 I 4· Comandou ~m, d~s Afonso de Sousa deixou ali dois homens da sua armada
navios que se encontravam sob as ordens de Cnstovao
de Brito, capitão-mor, que se queixa amargamente de
Francisco Pereira Coutinho quase ter feito naufragar (1) Carta de Cristóvão de Brito para el-Rei de 9 de N b
a esquadra! Por ter visto alguns lobos marinhos, de 15 14. Publicada in ·Cartas de Ajonso de Albuquerque Tomo Ill ov~m ~~
(7) Registo da Casa da lndia, publ. pelo Prof Luci~oo Ribe "r ' pag.
indicou terra onde não havia tal coisa- e ccnunca me pág. 64, doc. no, 276. 1 o, Vol. J~

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180 CAPlTAES DO BRASIL


CAPITAES DO BRASIL 181

para ver o que o solo podia produzir e casarem com


li as fil has meio-índias do Caramuru. fruta de variadas espécies crescendo nos bosques,
Como pai duma colônia, Diogo Alvares Caramuru pronta a colher-se.
devia desempenhar também o seu papel. Ele so~ber~ Quanto aos índios - eram gente encantadora!
tudo acerca da região havia anos, tendo apr:ndtdo a Muitíssimos deles vieram saudar o capitão à chegada,
sua custa· encontrava-se nas melhores relaçoes .com trazendo-lhe presentes. Parecia até que queriam
índios, e tinha um grupo muito conveniente de filhas fazer-se cristãos !
casadoi ras. Sabemos que uma delas se chamava ~ada­ Tal era a brilhante descrição redigida em I 536,
lena Álvares e que em I 534 casara com Afonso ~odngues quando o capitão edificara a sua Vila Pereira. Uma
de Óbidos na primeira igreja construída na ~a1a -.pelo torre andava a erguer-se para dominar a terra em
~I menos assim reza a inscrição numa que fica ~OJe .no grande extensão- a terra ~dorável que el~ estãva .a
distribuir aos seus companheiros em «Sesmanas». Evi-
mesmo local. Todavia temos de supor que a <<lg.r~Ja»
de I 5 34 pode ter sido pouco melhor que um pardtetro. dentemente, Diogo Alvares Caramuru vinha pedir um
Outro dos genros do Caramuru foi Paulo Dias, ge~ov~s, bom pedaço dela, assim como Fernão Dolores, Sebas-
parece que vindo de Pernambuco, onde pnmeuo tião Aranha e Francisco de Azevedo, além de muitos
residira. outros cujas escrituras não chegaram até nós. Espalha- I

Quando Francisco Pereira desembarcou encon- ram-se pelas amplas curvas da baía larga e lavraram e
trou nove europeus a viver na Baía ao .l~d~ do semearam, e tudo nasceu. Que terra para agricultura f
patriarca Caramuru, aparentemente todos feltctsstmos Como conseguiu entrar a serpente neste éden?
e prósperos. , , Não saoemos. Supomos que se chamava João Bezerra.
Assim pudessem eles tambem ser! Os recem-che- Quando este homem, useiro e vezeiro em armar
gados ficaram encantados com tudo. Com certeza questões, apareceu, ou de onde veio, não se sabe. Ape-
aquela era a terra mais bela do mundo! Que porto - nas sabemos que era padre com nenhuma reputação de
tão fácil de entrar - que perfeito ancoradouro lá santidade e devia ser afinal o gênio mau de duas
capitanias.
dentro - como eram belas as praias à volta- que
rica terra, «dara tudo que lhe deitarem (i)- que Parece que era o padre que, segundo a informação
de Nóbrega, tivera fortes questões com um chefe índio;
esplêndido algodão havia na terra--:- que gr~nde quan-
tidade de açúcar havia de produztr um dta- e que e «lhe lançou a morte». Por outras palavras, com todo
coisas adoráveis havia ali já para comer! Caça de o poder de sugestão mental que possuía, ordenou ao
todas as espécies em tal abundância que uma anta, homem que morresse e para um índio isso bastava
um veado ou um porco bravo seria !~ndido por ~m para o matar. Convencido da condenação, o chefe
vintém e peixe- peixe enorme e dehctoso - atratdo desfaleceu, sendo as suas últimas palavras exortar os
filhos a vingarem-no.
pelo is~o tão fàcilmente que se podia obter de graça, e
O índios da Baía eram uma raça feroz e belicosa.
A guerra que fizeram aos colonos foi implacável e
(I) Relação das inform~ções e frag~entos históricos, de Anchieta, terrível; o seu número elevava-se a milhares, e o dos
cit. in-Hisl, da Co/. Port. do Bras1l tomo lll, pag. 250.
brancos não chegava a duzentos. E ainda viviam espa-

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182 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 183

lha dos aqui e além à volta da baía. Não era fácil reuni- barcou; e deu-se público conhecimento dum papel que
-los nem agrupá-los para a defesa comum, nem parece causou impressão, pois perante todos os funcionários
que Francisco Pereira possuísse grandes qualidades de da colônia se declarou ser uma ordem real para pren-
chefe. Muitos dos colonos tinham sido anL1uilados derem Francisco Pereira Coutinho! Não sabemos sob
antes de o capitão poder reunir os sobreviventes na que acusação.
torre-fortaleza junto da entrada da baía, e ali encon- Fosse qual fosse, uma ordem de El-Rei Nosso
traram-se cercados. As próprias reservas de água Senhor não devia ser desobedecida. Espantado, o velho
acabaram por ser cortadas, tendo de mandar-se barcos capitão deixou-se levar preso para bordo. A maior parte ...
à costa oposta para a obter. dos homens da guarnição deviam de estar no segredo
O pior de tudo isto era que muitos dos que se da conjura. Também eles embarcaram na caravela e
li
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mandavam ali não voltavam, com ou sem água. assim se abandonou a fortaleza.
Fugiam sorrateiramente para a vizinha capitania dos Quando e como teve Francisco Pereira conhe-
Ilhéus e ali se deixavam ticar. Francisco Pereira tam- cimento do miserável estratagema de que se servi-
bém devia ir! diziam eles. De que servia agarrar-se a ram contra ele? A caravela vinha dos Ilhéus, não de
uma defesa sem esperança até serem todos mortos? Portugal, e a ordem era falsa-forjada propositadamente t:
!I Era melhor abandonar a fortaleza e assim pôr termo às por João Bezerra! Esta história não tem sido contada
.i suas perdas! por completo. Tudo o que sabemos é através de refe-
Estava a trabalhar um espírito de insubordina- rências indirectas em documentos e cartas que dizem
ção- o espírito de João Bezerra. Naturalmente ele respeito a outros assuntos. O que é certo é que a fraude
passara em segurança para os llhéus e ali trabalhava se descobriu muito tarde para salvar a colônia- se é
aqueles que vinham. Visto que o capitão recusava que ela podia salvar-se. Os colonos da Baía dispersa-
abandonar a defesa e os homens eram bastante tolos ram-se e o capitão passou dos Ilhéus para Porto Seguro,
para ficarem com ele, tinha de fazer-se qualquer coisa onde permaneceu um ano ou mais - exilado da sua
para o obrigar a ceder. Então os fugitivos começaram capitania, criticado pelo activo Duarte Coelho, e espi-
a estudar em conjunto um plano, tendo o Padre Bezerra caçad? pelo enérgico Pero do Campo Tourinho, capitão
ideias brilhantes. donatano de Porto Seguro, que lhe dava hospitalidade.
O pobre Francisco Pereira, sentindo-se envelhecer, Era verdade, escreveu Duarte Coelho ao rei que
agarrando-se desesperadamente à sua fortaleza e à sua F!ancisco Pereira estava doente e velho, mas a~esar
capitania, apesar da insubordinação nas suas fileiras e dtsso a culpa era dele: c não sabia husar com a jemte
de as hordas selvagens apertarem o seu ataque do como bom capytão e ser mole pera resistir ás doudyces
exterior, deve ter ficado agradàvelmente surpreendido e des_mandos dos doudos e mall ensynados que fazem e
um dia com a chegada duma caravela, que lhe disseram -causao levantamentos e ouniões de que elle se não pode
vir de Portugal. escuzar de cullpa>> (1). Apesar disso, continua a dizer
De Portugal ! A grande satisfação de Francisco
Pereira aumentou. Talvez não reparasse que os seus C (')Carta de Duarte Coelho para d -Rei, de 20 de Dezembro de ~ 546
~rpo Cron . Parte I, maço 78, no 105. Publ. in- ob. cit. Tomo III
· informadores tinham um ar estranho. Alguém desem- pag Jl5. '

,,

...... ...;.
184 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 185>

o veterano disciplinador, os culpados «cumpre e he escreveu ele ao rei, não seria de serviço para Deus
necessario. . . serem muy bem castyguados. . . e o nem de proveito para Sua ~ltez~! Francisc~ Pereira
clerygo que foy o princypyo daquelle dano e mall deve devia partir para Portugal 1medtatamente e mformar-
V. A. de o mandar yr preso pera Portugall e que nunca D. João III do que se passava. .
torne ao Brasyll porque tenho sabydo ser hum grão Mas Francisco Pereira recusou fazer aqullo.
riballdo». Voltar à pátria derrotado e dizer ao rei que a Baía
Francisco Pereira não fazia nada pela sua capita- estava abandonada aos franceses, era demasiada
nia- declarava Pero do Campo na sua carta ao rei, humilhação. O orgulho do velho guerreiro acordou.
escrita de Porto Seguro em 28 de Julho de 1 S46: Seria preferível voltar à sua capitania para desafiar os.
«averá hum anno e ele se veyo aquy onde está sem intrusos e resistir ao gentio. Talvez tivesse melhor
nunqua pôr nenhua deligencia acerqua de a povuar»(i). sorte desta vez e se o pior se seguisse ao pior, podia
Entretanto os índios, tendo expulsado os brancos morrer a combater.
das suas costas, sentiram-se como o homem da história Portanto, Francisco Pereira fez-se de vela, com
que matou a galinha dos ovos de ouro. Por ali não volta- dois navios e Diogo Alvares Caramuru, em direcção à
riam a vir tesouras, nem facas, nem instrumentos de Baía, a recuperar o seu posto. Navegando com vento
aço, nem lindos barretes escarlates ou encantadoras propício, chegaram à baía- à sua encantadora baía t
contas de cor, ou deliciosos cascavéis! Parece Viu o sítio onde estivera a sua fortaleza deserta e
que se mandaram alguns recados aos portugueses a comprida ilha de Itaparica, que se estendia do lado.
para regressarem. O que é certo é que Diogo oposto, com as suas grandes árvores a ondularem ao.
Alvares Caramuru embarcou numa caravela de cabo- vento que se levantara.
tagem e se dirigiu para a Baía para fazer investigações A tempestade que se formara, tempestade que
acerca da situação. soprava com violência do sueste, avançava sobre o.
As notícias que obteve eram pouco tranquiliza- mar com toda a força, e os navios faziam esforços.
doras. Informaram-no de que recentemente um navio baldados por penetrar na baía, quando o vento os
francês chegara e ancorara na baía, e os franceses apanhou e atirou com força indomável de encontro às.
tinham feito oferecimentos aos índios. Viram tudo costas da ilha. Acima do rugido da tormenta, ergue-
e gostaram do que viram e partiram prometendo ram-se gritos que gelavam o sangue nas veias. E dos.
voltar dentro de meses, trazendo mais três navios bem seus esconderijos na floresta, os selvagens Tupinambás
armados e colonos para se fix~rem na terra, colherem caíram como um enxame de abelhas sobre os náutragos.
algodão e derrubarem pau- brasil e reerguerem os aban- que lutavam com as ondas para alcançarem a praia.
donados engenhos. A luta foi feroz, mas não podia durar muito.
Mas aquilo seria a ruína do Brasil! exclamou Francisco Pereira foi morto e feito em pedaços pelos.
Pero do Campo. Um estabelecimento francês na Baía, índios. Naquela noite a floresta iluminou-se com as.
fogueiras e ecoou ao ritmo das danças e cantos selva-
(1) Carta de Pero do Campo Tourinho pata el-Rci, de 28 de Julho- gens, enquanto se preparava e, depois, devorava o.
de 1546. Corpo Cron Parte r. maço 78, n.o 45. Publ. in-ob. cit. Tomo Hl,
pág 266. pavoroso banquete.
186 CAPITAES DO BRASIL

Que aconteceu a Diogo Álvares Caramuru?


Deixaram-no ir embora. Dizem uns qce ele deveu a
liberdade à sua mulher índia, outros atribuem-na à sua
eloquência pessoal. O mais certo é ele ter-se entendido
com os índios, que nunca lhe fizeram mal, mesmo antes
de adquirir perfeito conhecimento da sua língua e
-costumes. f: facto que voltou ao seu lar, em qualquer
ponto do interior, e aí continuou a residir rodeado
pelos seus genros e descendentes mamelucos.
Ali ficaram sozinhos, A Baía, tão bela e enigmática
-como dantes, ficou deserta- as suas margens sem XIII
serem lavradas, as suas águas sem serem perturbadas
as suas florestas invioladas- enquanto na extens~
ilha verde de Itaparica, restos do naufrágio se viam A lingua rebelde de Pero do Campo
espalhados pela praia, e nas choças dos índios a carne
humana estava dependurada a secar.
((Tanto que os engenhos se acabarem, eu esp~ro
em Deus, V. A. ter aquy um novo Reyno e mUlta
renda em breve tempo)) (1) . .
Assim escrevia Pera do Campo Tounnho ao re1
em 1 S46. Olhando para as vastas léguas da sua capi-
tania, ele podia sentir satisfação com a obra constru-
tiva e bem feita.
A sorte caíra-lhe num lugar agradável- aquelas
mesmas praias verdes q!!e Cabral primeiro avistara
estendendo-se aos pés do monte Pascoal, tinham-lhe
sido concedidas, e Porto Seguro, a pequenina cidade
prometedora que ele fundara, ficava a algumas léguas
do porto que primeiro tomara aquele nome. Porto
Seguro devia ser a capital, mas havia também Santa
Cruz e Santo Amaro, ambas cidadezinhas prósperas,
além de quatro ou cinco outros estabelecimentos.

(I) Carta de Pero do Campo Tourinho para el-Rei, escrita de Porto


Seguro, 28 de Julho de 1546. Corpo Cron. Parte I, maço 78, n.o 45. Publ.
in·Hist . da Cal. Port, do Brasil, Tom . 111, pág 266-7.
CAPITAES DO BRASIL 189
lfl8 CAPITAES DO BRASIL

Pero do Campo Tourinho era minhoto, nascido e


~uitas pessoas viviam na capitania, as searas cres- baptizado em Viana do Castelo, o porto mais adorável
cta,m, exportava-se belo pau brasil e os engenhos de duma adorável costa, na foz do rio Lima -Viana, que
açucar estavam a começar a trabalhar. Pero do Campo durante séculos mandou marinheiros para os mares do
esperava que dentro em breve houvesse muitos mais Ocidente e emigrantes para lavrarem as terras virgens
porque não tinha falta de água.
Nem tudo correra bem desde o princípio. Os índios que estão do outro lado.
A juventude de Pero passara-se no mar. Ele des-
causaram perturbação durante alguns anos ; Pero do cera as costas do novo continente até ao rio da Prata,
c.ampo e os s.eus colonos, no seu campo entrincheirado e era navegador e~perimentado. E tanto assim
vtver~m a vtda dos assediados durante longo tempo' que o Conselho das Indias de Castela esperava que
e muttos deles .tinham s~do mortos. Mas o tacto e ~ «pudesse ser pessoa de proveito para o serviço de Sua
?~m. senso. haVIam, por hm, firmado a paz. Os antigos Majestade» o imperador Carlos V, e portanto procurou
mtmtgos aJuda:vam agora a tirar o mato e a lavrar atraí-lo, afastando-o da sua obediência natural. Tais
os ca~pos., acettando em troca as fazendas dos brancos. blandícias foram baldadas. Pero do Campo era por-
A capt.tama pro9redi;a muito durante os últimos doze tuguês leal e assim continuou.
anos, tsso era megavel, mas apesar disso Pero do Talvez tosse em recompensa da sua fidelidade que
Campo não estava satisfeito. Havia ainda muitíssimo o rei lhe concedeu terras no Brasil. Sabemos que
q~e tazer: O que era preciso, era trabalhar trabalhar vivia em Viana quando a capitania de Porto Seguro
amda mats! ' lhe coube em sorte, e depois não perdeu tempo. O resul-
A Pero do Campo parecia que os domingos esta- tado dos seus preparativos rápidos e enérgicos causou
vam ~empre a chegar para fazerem parar tudo. E quanto certo pânico no reino vizinho, quando em 1534
ao.s dtas de ob.servância não andavam os padres sempre chegaram notícias a Castela de que uma armada por-
a mventa~ mats? É claro que o povo gostava, demónio tuguesa de duas caravelas e dois navios redondos
de pregut.çosos que eles eram! Mas num país novo, passara nas ilhas Canárias, comandada pelo conhecido
onde havta tanto que fazer, uma pessoa não podia piloto Pero do Campo, levando sob as suas ordens
andar co.nstantemente a guardar dias santos. Pero do «Cerca de seiscentos homens, muitos deles acompanha-
Campo tln~a-se na conta de homem piedoso. Achava dos das mulheres>> ! Era evidentemente uma expedição
~ue cumpn~. os seus deveres para com o céu. Não para colonização em larga escala ! Quereriam eles
tmh~ ele edthcado uma igreja em cada uma das suas fixar-se junto do rio da Prata?
a~detas? E duas em Porto Seguro? Não mantinha ele Os castelhanos não precisavam de se preocupar
~m~o padres e dois frades à sua custa? E que grande tanto. D. João UI, naquela época, concentrava as
mcomodo que eles causavam com todos os seus santos! atenções em territórios menos controvertidos, Mas
P.or exemplo, a.quele seu Vigário Geral- o P.e Bernard com certeza a expedição era uma aventura importante.
d Aurea~- tena ele insistido na observância do dia de Pero do Campo Tourinho re.unira toda a sua família,
S. ~arttnho, se este santo não fosse francês como ele? parentes e amigos para parttr com eles para o novo
O dta de S. Martinho nunca fora considerado dia santo mundo.
de guarda no reino !
19 t
190 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL

Pertenciam a uma aristocracia rural habituada a a Porto Seguro na Baía com Francisco Pereira, ficou lá.
cultivar as suas terras. Cheios de esperança, deixaram para vir a ser um espinho na carn~ de. Pero ?~ ~ampo.
os seus pequenos solares ancestrais, os seus pequenos Tourinho: a hum grão riballdo » () fot a dehmçao que
campos e vinhedos limitados por montes cobertos de Duarte Coelho deu do homem. ~ero do Camp? concor-
pinheiros, e, com as mulheres, os filhos e os criados, as dou plenamente com este !eredtcto, tanto mat~ q~e um
vacas, os carneiros, os porcos e as aves de criação, dia deu uma boa sova no Ilustre reverendo. Nao e para.
embarcaram para o Grande Desconhecido. Quanto a surpreender, portanto, que o P .e Bezerra se t?rn?sse-
Pero do Campo, vendeu todos os seus bens e comprou cabeça e organizador duma campanha de mtngas.
quatro navios, que carregou com instrumentos agríco- contra o capitão. Pero do Campo era um grande hen~ge!
las, gado, sementes e outras coisas. Levando a mulher, Não eram blasfêmias algumas das suas observaçoes?
Inês Fernandes Pinto, e os filhos, Fernão, André e E repetiam-se, faziam-se circular e exag:ravam-se
Leonor, partiu a comandar a pequena armada que pala vr as proferidas em momentos de exaltaçao.
provocou tanto alvoroço nas ilhas Canárias. Não andava o capitão sempre a resmungar c~ntra .
No Brasil toda a gente teve de trabalhar, galvani- os dias-santos? Deus, dit.ia ele, santificara o dommgo,.
zada pela energia comunicativa do seu capitão e pela e com certeza esse bastava! Tinha até proposto a um,
linguagem violenta que aprendera no mar. O cuidado padre que se celebrasse a festa do ~orpo _de Deus num
de Pero do Campo pelo trabalho reforçado era inesgo- domingo, em vez de ser numa qumta-feua, como era
tável, mas a sua paciência era exactamente o contrário. de uso, para se não interrompe.rem os tr?balhos da.
Quando se exaltava- e isto dava-se com muita fre- semana. Só o papa poderia autonzar tal cotsa, respon-
quência- dizia tudo o que lhe vinha à cabeça. deram-lhe.
Enquanto apenas se encontrava rodeado de seus -«Papa, papa, papa agora» I (2 ) resmun~ara Pero -
minhotos, é provável que ninguém prestasse atenção a do Campo, com um gesto de desprezo. Muttas vezes
estas cenas de exaltação. Eles conheciam Pero do falava dos cardeais em termos ultrajantes. Disse que eles.
Campo! Não se devia tomar muito à letra o que e os bispos inventaram novos santos para agradarem.
dizia - Pero fora sempre assim, no fundo homem são às amantes. Quanto aos santos, chamava-lhes.
mas de língua sempre afiada! Quando estava exaltado: c<santinhos))! E mostrava pouca devoção em servi-_los.
ele próprio mal sabia o que dizia. Deitava as palavras Uma vez, quando andava, afadigado _e aborrect~o,
à procura duns escravos que tinham tugtdo, um amtgo .
pela boca fora, e depois es .tuecia-as, o que também
faziam os amigos. Os aborrecimentos devem ter surgido lembrou-lhe que acendesse umas velas a S~nto A~tónio.
A resposta fora uma torrente de linguagem mcontmente.
quando outros colonos se lhes juntaram.
Da última vez que lhe fugiram escravos, berrou
Porque muitos outros vieram para a capitania que
Pero do Campo, Santo António ?ão lhos restituíra!
parecia oferecer bom futuro. Uns eram homens hon~stos
.e trabalhadores, outros não queriam esforço exagerado.
(I) Carta de Ou u te Coelho para El· Rei, de 2J de Dezembro de
E havia os intriguistas e pretendentes aos lugares e
1545, cit. d L- b o 88.,1
gente que jogava com pau de dois bicos ... e havia o (2) Processo d a Inquisic;ão e 15 oa n. • Torre do Tombo.
P.e João Bezerra. Este pescador de águas turvas, que veio Publ. in·ob. cit., pág, 271 -283.
1.92 CAPIT AES DO l'!RASIL CAPITAES DO BR 1\SIL 193

De futuro não havia de lhe acender mais velas! E houve Outras vezes, em lugar de destemperar contra a
mais quem declarasse ter ouvido o capitão falar de Divindade, fingia familiaridade com os seus desígnios.
•modo ofensivo da benta Santa Luzia, por ela o não Quando a gente se mostrava receosa das tribos
curar duma doença dos olhos, índias das circunvizinhanças, o capitão dízia, ao que
As vezes dizia que os santos Jevaram vida constava, que Deus o informara de que não haveria
regalada em comparação com a que tinha de suportar guerra durante trinta anos!
no seu tempo um homem para sustentar mulher e Estas histórias e outras piores circulavam na
filhos. Ele próprio trab~llhava mais do que os capitania. Não é fácil conjecturar até que ponto eram
santos, e pagava dízimos, o que eles não pagavam ! verdadeiras, quanto as exageravam ou deturpavam, ou
'Üs santos sofreram tormentos e martírio? Sem dúvida, se eram pura e simplesmente mentiras. Parece certo
mas eram ajudados pela graça de Deus. Ele, Pero do que Pero do Campo tinha uma língua sem freio e
Campo, tinha de enfrentar as suas própdas dificuldades irreverente, e que as suas opiniões eram anticlericais
sem o auxílio do favor divino. Etectivamente parecia para dizer o mínimo. Se, como afirmavam realment~
sentir que o Céu não o favorecia em nada! Trabalhava disse que queria pegar num machado e cort~r as coroas
·e mourejava, e tudo ia mal! Todos os seus melhores de todos os padres, entendemos que não seria muito
trabalhadores adoeciam e morriam. Só os judeus pas- popul_ar entre ele~. E e~stes eram inimigos perigosos,
savam bem, pelo que via. Deus mostrava-lhes mais especialmente o duo Joao Bezerra, que tinha sentido a
favor do que aos bons cristãos! mão pesada do capitão. O vigário geral também trocara
E uma manhã, depois de chuvas torrenciais, um várias palavr~s azedas co~ Pero do Campo, que lhe
certo P.e João Camelo, ao passar em frente da casa do saltara aos pes dentro da tgreja e protestara em altas
capitão, ficou estarrecido ao ouvir grandes berros que vozes quando o vigário anunciara como dia-santo 0
vinham de lá. Entrou e encontrou Pero do Campo a de ?· .~artinho. O capitão disse que havia de enforcar
bater para um lado e para o outro com um rosário o v1gano se ele decretasse mais dias-santos, chamando-
-lhe «francês bebadon !
de contas que tinha na mão.
Que era? O quê? Pero tinha precisamente acabado . O clero juntou-se todo e t1 abalhou o povo. Não
de rezar, quando recebeu a má nova. Como de costume, devtam ~~portar .que um blasfemo e um herege como 0
s~u capttao ~ontmuasse no seu posto! Todos os ue
Deus deixara-o fazer sozinho todo o seu trabalho com
ttnham expenmentado o mau gênio de Pero do c q
toda a força de que dispunha desajudado da graça
divina- e «ora me derrubou ho engenho e tamque»! tod~s os. que ele castigara por irregularidades (ea~~~
muitos), JUntos a todos os que punham ob' ~
As águas tinham-lhos levado. «Nam se emgane Deus · , · ao tra b a Ih o vwlenfo
pnnc1p1o . foram f' ·1
Jecçoes em
·Comygo porque hagora ey de ser mays rroim e maao»! C) 'd . ,
venci os a a 1tarem-se, seguidos pelas al
act mente con-
. d
E gritou que viesse Deus cá abaixo para colonizar ele horrorizadas com a acusação d h . mas ~te osas,
próprio a terra, ou · Pero do Campo a entregaria aos pelo vigário geral, constituíram uema ere~tai O:tentados
·pagãos ! E atirou com fúria o rosário para cima da cama. tamente que o capitão não fazia id ~a :a, tao secre-
parava. Apesar da má sorte que el t:Iaf o que se pre-
( 1) Lcc. cit, e ao requenternente
13
CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 19.')
194

maldizia, Pero do Campo tinha fé no futuro. E tanto dytos padres» nomeasse as pessoas competentes para
assim era, que a 28 de Julho daquele mes~o ~n? escre- efectuarem a devassa.
via as palavras de esperança citadas no pnnc1p10 deste Então escolheram-se Manuel Colaço, «Pesoa vir-
capítulo. , tuosa e de muyta autorydade e saber», e João Camelo,
Deve ter tido portanto, uma hornvel surpresa ao «de muyta comfyamça e saber». Depois o P.• Bernardo
encontrar-se, quat;o meses mais tarde, rodeado pelos d' Aureac traçou uma lista de todas as coisas pavorosas
seus inimigos, que lhe lançaram algemas e o meteram que o capitão dissera, e chamou testemunhas para as
numa prisão. comprovarem.
A 24 de Novembro, em Porto Seguro, o:ho rreve- Certamente apresentaram um número formidável.
remdo padre Bernardo de Aureajac, vigairo que.hora he Vinte e cinco cidadãos de Porto Seguro, de várias
nesta vylla e ho virtuoso frey Jorge capuchmho da proveniências e categorias, desde Duarte Sequeira,
ordem de Sam Framcysquo frade barão de aprovada cavaleiro da Casa Real, o dito juiz Drummond, vários
e santa vyda e com Manuell ~olaço capelão do duqu.e notários, padres e vereadores, até simples artífices
dAveiro e Joham Camelo Pereua e Pero Ryquo beneh· depuseram por sua vez o que tinham ouvido acerca dos
çiado da Igreja desta dyta villa e Joham Bezerra padre ditos de Pero do Campo, ou o que tinham ouvido ao
de mysa e todo ho mays nobre e homrrado pouoo desta povo que ele dizia. João Camelo Pereira, padre de
villa e capytanya e pesoas de mays autoryd':de e sa~er missa e escrivão público, além de testemunha também,
que nesta vylla e capytanya avya prend~rao ao d~to escreveu tudo.
Pero do Campo Tourinho capitão por mmtas heres1as Seguiu-se o resumo do vigário:
e blasfemias e abominações que nesta vylla dyzya e « Vysto h os casos blasfemea~ h e heresias polos
fazya contra Deus noso Senhor e comtra a samta Madr~ quaes hos padres e rreligiosos desta capytanya jumta-
Igreja sem nenhum temor como pesoa que na terra na mente todos com ho povo prenderam a Pero do Campo
Tourinho ho rremeto vysto a calydade de seus casos
tinha sopryou e) .
Perante os juízes, Pero Escórc10 Drumm~nd e com estes autos e Inquysição asi preso em ferros como
Pero Anes Vicente, o vigário requereu que se fizesse está a meu perlado ou a quem ho caso no Reyno per-
devassa a estas blasfémias, pa ra serem levadas à temçer» (1).
A s si~ Pero do Campo voltou a Portugal preso,
Santa Inquisição. . . p~ra ser JUlgado pela Santa Inquisição. Parece que em
A Santa Inquisição não funct?na~a. no Brasth e
tal devassa devia ser feita por um ,u~ qmstdor ecles~a~­ Ltsboa lhe c?ncederam . a liberdade sob fiança, dando
tico e um escrivão. Não havendo ohctos desses, o vtga- com~ garantia os rendtmentos da sua capitania no
Brastl.
rio insistiu por que <eda parte de Deus e do Samto Padre
e de sua Alteza que elles como justiça del Rey que A engrenagem do Santo Ofício, como era seu
costu~e, moveu-se devagar e com firmeza, desfibrando
heram emlegessem com elle vigairo jumtamente dos
e esmiUçando os mais leves indícios de prova e multi-

{I) Loc. cít .. pág., 281.


(1) Loc. cit. , pág. 271
CAPITAES DO BRASIL C ,-\PITAES DO BRASIL 197
196

plicando os interrogatórios. Bem podia Pero do Camp? goria quem multiplicava os dias santos para agradarem
impacientar-se e irritar-se preocupado com a sua .c~pl- às amantes que tinham o mesmo nome? Pero do
.
tanta; que m na-o tt'nha pressa eram os seus JUizes Campo confessou que- por brincadeira, unicamente!
-podia ter dito uma ~ois a dessas referindo-se a san-
eclesiásticos. · L' b
Em Setembro de 1 S47 achamo-lo amd~ em ts ~a, tos que não estavam no calendário. Só por chalaça ele
e idir na Rua do Poço e a responder as acusaçoes diria que o prelado santificara o dia em honra da
:u: ~he faziam. Não se considerava culpado, mas, amante- e _«quem era priguiçoso por jogar e folgar
como ele disse vítima duma conj~ra preparada por buscava mmtos samtos e que ysto tudo dyzia pera
«certos morad~res seus imigos capttães e por ho lan~ anymar os homens que trabalhasem pera que a terra
çarem da terra o prenderam em ferros e mandara~ a se povoase e se fizese o que era necesario e se aumen-
este Reino com autos de testemun~as falsas e fabnca- tase a fee catolycal),
das e subornadas afim de me destrmrem sendo tudo ~o Todavia, duvidamos muito que o inquisidor apro-
comtrairo do que elles de mim dizem por eu ser mutto vasse tal brincadeira!
bom catholico cristaom» ! Mais adiante perguntaram-lhe se ele escarnecera
Pero do Campo teve de responde-r, durante todo o de Santa Luzia. Longe disso! foi a resposta. O capitão
Setembro e Outubro, em pormenor às acusações perante mandava dizer uma missa em honra dela todas as
João de Melo, o inquisidor. semanas. Chamara nomes feios aos bispos? Pero do
Perguntaram-lhe se tinha algum_a vez .declarado Campo respondeu com altivez que tinha muito em que
na sua capitania que dias-santos nao dev1am guar- pensar para se preocupar com os bispos!
dar-se respondendo ele que nada disso at~rmara, sendo _ Decl~rara alguma vez que Deus lhe afirmara que
ele prÓprio observante! Apenas às ve_zes tmha repreen- n~o havena gu~rra na terra enquanto ele fosse capitão,
dido 0 vigário francês que determmara ~ue tossem nao sendo prectsas defesas? Nada disso! disse Pero do
dias-santos o de S. Martinho, de S. Gmlherme, de Campo. Quando a gente se deixava tomar de pânico e
s. Jorge e de outros santos cujos dias a Santa Madre falava em guerra, ele dizia ccque não ouvesem medo que
Igreja não considera de festa- «por quamto a terra Noso Senor tynha cuydado delles e que tosem trabalhar
era nova e era necesaryo trabalhar per~ se povoar a e fazer o que avya de fazer e nam ouvesem medo>>!
terra e fazeremse algúas causas de servtço de Deus>>. E assim sucessivamente. Perguntado finalmente se
Perguntaram-lhe se dissera ~lguma vez que e}e estava de acordo com a lista das acusações levanta-
merecia mais do que os santos apostolos, e que se nao ~as contr~ ele no Brasil, declarou que era tudo men-
lhe dessem um lugar mais elevado do que o dos pro- ~tras, fabncadas pelos seus inimigos, de que citou
fetas então Deus que guardasse o seu paraíso. Nunca! Tomes, compreendendo estes muitas das testemunhas.
resp~ndeu Pero do Campo Tourinho. Tudo o que ele odas estas pessoas lhe queriam mal cpor elle bradar
dizia às vezes era que «Vemdo que trabalh~va de noyte ~~m el.les que nam queryam trabalhar e lhe rrepremdya
e de dya com muitos cuydados que mats trabalhos n.s vtços e os castigava e premdya quando era nece-
podia ter Sam Pedro que elle»? . , . sano pollos. malles que fazyam aos ymdios».
E dissera ele que eram os eclestasttcos de alta cate- E pedm aos Senhores do Santo Ofício que o
198 CAPITAES DO BRASIL

mandassem outra vez para o Brasil sem demora, com


receio de que na sua ausência a capitania chegasse à
ruína. Podia dar-se o caso «de se levantarem c~mtra
ella os yndios da terra como fizeram a capitama de
Pero de Goes e a capitania de Vasco Fernandes C~u­
tinho>>. Cada homem devia estar a fazer o que mutto
bem lhe apetecia, agora que se tinham visto livres
dele!
Esta súplica fervorosa é a última que conhecemos
de Pera do Campo Tourinho. Qual foi o tim de toda
esta trama? Nenhum relato no-lo conta. Supõe-se que XIV
conseguiu desenvencilhar-se dela, porque qua~do ~orreu
em I 556 em Portugal, o filho herdou a capttama, que
não podia ter passado para ele se o pai fosse um
herege condenado.
Proprietários absentistas
Mas até onde podemos saber, o pobre Pero do
Campo nunca mais foi autorizado a voltar a Porto
A história dos capitães do Brasil não é uma histó-
Seguro, sendo para ali mandado Duarte d~ Lemos ria ~e êxitos. Quinze anos depois do plano colonial
em I 549, na qualidade de lugar-tenente. ~tu ~u~ a ter stdo esboçado, apenas a Nova Lusitânia de Duarte
terra não progredia muito, sendo o pau brastl a umca
exportação.
Co~elho apresentava. o aspecto duma empresa realmente
prospera e progressiva, avançando com firmeza sob um
Porto Seguro, escreve Gabriel Soares, prosperou
governo paternal. Duarte Coelho estava convencido de
sob o governo de Pera do Campo Tourin~10. Lo_go ~ue que isso se devia à presença constante do pastor junto
ele saiu, o progresso parou ; os seus herdeuos nao hze-
do seu rebanho. Também podia atribuir-se aos seus
ram muito e os habitantes tornaram-se um bando de
desordeiro;, Já em I 55o eram descritos como «povo
do~es própr!os. Como se viu, nem todos os pastores
residentes ttnham sido tão felizes nas suas empresas.
revolto e uns com outros mui alborotados'' ('). Quanto Pero do Campo Tourinho fora preso pelas suas ovelhas
aos engenhos de açúcar em que Pero do Campo pusera Vasco Fernan.des Coutinho, vencido pela sua pobrez~
tanta esperança, parece que poucos chegaram a pro- hes.soal e pela Insubordinação dos seus súbditos Pero de
6Is ~ombatera com insucesso contra selv~gens, e
duzir alguma coisa.
A gente precisava que ele a importunasse para estes tinham devorado Francisco Pereira.
trabalhar!
d Ta!vez os mais avisados da sua geração fossem os
onatános que ficavam no reino, deixando outros culti-
v~r os seus vastos domínios. Jorge de Figueiredo perten-
(I) Carta do P.e Leonardo Nunes, do ano de 1550. PabL in- Cartas ~~ a este número. Possuía uma faixa da costa entre a
Jesuíticas, Vol. li, Cartas Avulsas, pág. 57.
a a e Porto Seguro, conhecida por capitania dos Ilhéus,
100 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL

nome que vinha do grupo de ilhotas que protegiam o Lucas Giraldes lia as suas cartas todos os anos
seu melhor porto. mas um dia não pôde suportar mais. Agarrou num~·
Jorge de Figueiredo era um homem opulento, que pena e traçou apenas estas linhas: ccThomaso, quere
desempenhara o cargo importante de escrivão da que te diga, manda lo asucre deixa la parolle !)) (!) Só.
Fazenda. Com certeza não tinha intenção de transpor- isto,. por cima. da sua assi~atura. O eloquente Tomás
tar-se com a família para uma terra selvagem. E mandou contmuou a vtver no Brasil, mas não como feitor de-
o castelhano Francisco Romero representá-lo no Brasil. Locas Giraldes. Um português, Henrique Luís, ticou
Francisco Romero teve todos os aborrecimentos em seu lugar-homem de menos palavras talvez mas.
costumados - questões com colonos insubordinados, de realizações mais concretas. '
indígenas hostis e tudo o mais. Mas pelo menos havia Outro proprietário absentista foi nada menos que
capitais a apoiá-lo, e uma constante remessa de abas- a pessoa do historiador João de Barros- João de
tecimentos ida do reino. Em honra do donatário fun- Barros feitor e tesoureiro da Casa da Índia e da Mina e
dou-se uma agradável cidadezinha chamada São Jorge, cronista das proezas de Portugal na Ásia.
e visto não haver falta de dinheiro para se adquirirem as O autor. das. Décadas, espírito inquieto e investiga-
máquinas necessárias, puseram a trabalhar ali mais d.or, verda~euo hlho do Renascimento- filólogo, histo-
engenhos de açúcar em menos tempo do que em nador e geografo-, estava apaixonadamente interessado.
qualquer outra parte; , . pelas maravilhas do mundo. Ele própio, homem sos.,.
Dizer que os Ilheus se tornaram uma coloma sosse- segado e casado, de hábitos estudiosos e vida seden-
gada e obediente às leis, não seria verdade. Francisco tária, não aspirava a rivalizar com os heróis cujas.
Romero, simples agente, para mais castelhano, era o faç~~has narrava com tão grande talento, nem
menos indicado para exigir obediência. Tanto assim a. v!sttar .a~ terras que descreveu na sua Geografia; a
que finalmente foi preso e acusado pelos seus subor- Vtsao esptrttual.bastava-lhe. Mas fascinava-o o alarga-
dinados e obrigado a voltar a Portugal, tomando o seu mento dos honzontes da Terra. O grande continente
lugar Sebastiã0 Martins, homem da terra. . . no.vo que seus pais jamais haviam conhecido, não podia
Apesar de tudo, supomos que a capttama dava deixar de atraí-lo. Que destino mais interessante podia
bom rendimento, aliás não teria parecido um bom ele encontrar para as suas economias?
emprego de capital a Lucas Giraldes, o eminente finan- João de Barros e o seu amigo Fernand'Alvares de
ceiro de Lisboa. Este sagaz florentino comprou os Ilhéus Andr?de, também funcionário da Coroa, tesoureiro-mor
ao filho de Jorge de Figueiredo, e continuou a investir do remo, resolveram investir todo o seu capital no Brasil.
nessa capitania mais capital para o seu desenvolvimento. Fernand' Alvares tão-pouco esta va disposto a emigrar-
Sabemos que instalou grande núme.ro ~e engen~os,
mas é duvidoso que eles o fizessem mats nco. O fettor dpa~a o Ultramar, mas havia Aires da Cunha amigo dos.
OIS, qu e se prontt'f'tcou a representá-los. Era
' este um
que nomeou- um seu compatriota de nome Tomás ~ete~ano da Índia e das ilhas do Extremo Oriente.
Alegre- mandava· lhe pouco açúcar, n:_as ~screvia-lhe abttuado aos perigos do mar e às surpresas dos
lindas cartas, a expor com grande eloquencta e encanto
as razões por que não podia haver mais. (I) Frei Vicente do Salvador. Pág 100 e 101.
CAPlTAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 203
'202

terrenos exóticos, apesar de ser coxo du~a perna quem sabe que maravilhas de ouro poderiam ainda
-em virtude duma ferida de azagaia malata, estava revelar-se?
·p ronto a embarcar para novas aventuras. . . João de Barros, Fernand'Álvares e Aires da Cunha
Os três amigos iam ficar com as capttamas ao estavam prontos a fazer o que fosse possível. Fez-se a
norte do cabo de Santo Agostinho- costa solitária doação em nome dos três amigos. Iam ficar com
quase por visitar, e~tensas léguas de desertos de areia, 2:1S léguas de costa, para explorarem \lcomo milhor
ao longo dos quais desciam impenetráveis florestas até podem por espaço de vynte anos e que no fim delles
-ao mar- vastas florestas negras e ciclópicas, de árvo- as repartam entre sy como lhes bem parecer», (1)
res gigantescas que cobriam a linha eq~inocial, ond; Entretanto, Aires da Cunha, em nome de todos os
um grande rio lançava o seu volume de agua doce ate três, preparava-se para <ecom ajuda de Nosso Senhor
-6o léguas dentro do mar. Eram estas as ú~timas terras hir as ditas capitanyas e terras e tomar pose delas
que o rei distribuíra, e esta região .a mats quente, a pera omde leva navios darmada com muyta gemte asy de
mais feroz , a mais selvática do Brastl. . cavalo como de pee e artilharia armas e munições de
gl ~ A empresa que estes três sócios ti?~am em vtsta guerra tudo a propria custa despesa delles ditos Ayres
-diferia um tanto das dos outros capttaes. Os seus da Cunha e Fernamd Alvares e Joham de Barros pera
-colegas visavam principalmente a exploração agrí- descobrirem e segurarem e apecificarem a terra e asy
cola: João de Barros, Aires da Cunha e Fernand'Al- pera buscarem e descobrirem quaesquer minas douro
vares iam lançar-se na busca de tesouros. Assim o e prata que la ouver», minas que o rei havia por bem
queriam e assim propôs o rei que deviam fazer. conceder-lhes e aos seus herdeiros, reservando para
Estava-se então na época em que se contava ele apenas o quinto real.
-como os exércitos de Castela tinham chegado à fabulosa Este documento demonstra claramente que se
cidade de Cuzco no Peru, e visto o templo de ouro do estava a preparar qualquer coisa como a conquista do
Sol · chispante sob a luz da manhã. Estas coisas faziam Peru e do México. Nenhum dos outros donatários
'
cismar D. João UI. Estariam, de certeza, to das as mmas
. parece ter feito preparativos militares em tal escala.
de ouro e de prata na metade ocidental do grande con- Equiparam-se dez na vios e encheram-se com as muni-
tinente< Realmente seria muito má sorte não haver ções, a artilharia e os c a valos acima referidos forne-
'd
CI os pela Coroa aos donatários, a crédito.
,
nenhuma no Brasil! Evidentemente, não junto da costa.
As cidades dos tesouros dos Incas ficavam muito no inte- Se a expedição de Pero do Campo, muito mais
rior, para lá das margens mais remota~ dos gr~ndes rios ~odesta, preocupara Castela, pode imaginar-se o que
que desciam do ?cidente para o One_n~e. ate. ao ~ar. ouve com esta. O embaixador castelhano em Portugal
\ A expedição do no da Prata, que se dmgtra as mmas, andava consumido. A sua primeira suposição foi desti-
nar-se ao no· d a Prata, que sempre pareceu ser a causa
talhara além de que o rio da Prata - seria melhor
consid;rar o caso de frente! -não era fácil de ajeitar
dentro do meridiano português. O gigantesco rio ~o Atvar!!)d Carta de merc~ e doação das minas de ouro e de prata que Fernão
nas suas e ~n~rade, Aue.s da Cunha e João de Barros venham a descobrir
norte entrava nele com certeza. Se essa vasta vta fl. 73 Pucb{'!ama~ do Brasil. Torre do Tombo. Cbanc. de D. João lll. Liv. 21.
pudesse seguir-se até à sua nascente desconhecida, · · ln·Hut. da Colon Port . do Bralil. Tomo III, pág. 269.
CAPITAES DO BRASIL 205
CA.PITAES DO B ~ ASIL
204
a que cha.mara~ Trindade, que se julga ser a que hoje se
principal da agitação. Quando, porém, se tornou chama Sao L01s do Maranhão, na toz do rio Mearim
conhecido que a armada se destinava ao norde~te do Há. certa confusão a respeito do nome de Maranhã~
Brasil então os segundos pensamentos do embatxador aphcado pelos Castelhanos ao Amazonas, enquanto os
torna;am-se ainda mais perturbados. Pensariam subir Portugueses o dera~ a um rio ~ais pequeno que desa-
o rio até ao Peru e aparec.erem como rivais no reino gua numa ampla bata algumas leguas mais ao sul. Isto
dos Incas? Claro que nenhum protesto diplomático se tem causado dores de cabeça aos historiadores
podia àpresentar sem primeiro se ver o que os portu- ~esta ilha da Trindade (ou São Luís),· no rio
gueses realmente pensavam fazer. M...eanm (ou ~ar,anhão), a expedição acampou durante
O que eles fizeram foi ir a Pernambuco, onde tres anos. Os mdtgenas, pacíficos, mostraram-se amigos
Duarte Coelho, que já vivia ali havia um ano, os rece- os portugueses l:vantaram uma espécie de forte qu~
beu com grande alegria. Um aparato de navios como chamaram Nazare e exploraram a região circunvizinha
aquele não podia deixar de impressionar os índios com . Encontraram ali um emaranhado de rios qu~
um efeito muitíssimo salutar ! vmham de longe, e de árvores gigantescas que cobriám
Duarte Coelho prestou muita ajuda e bons conse- a terra até ao mar - árvores das mais variadas
lhos. Disse ele que os índios lhe tinham dito que a bel~s e de n;tadeira muito dura - e havia vege~
montante do rio Maranhão havia uma montanha toda taçao du?"Ia nqueza e exuberância jamais sonhadas
de ouro! Ele podia fornecer intérpretes à expedição que cobna a v~sta pla~ície ~e aluvi~o, virgem de agri~
para os ajudar a encontrar caminho, e deu também um cultura. Tambem havia alt abundancia de frutos
pequeno barco a remos para a exploração ao longo da caça, e o pei::ce P?d~a ser apanhado sem grande tra~
vasta costa desconhecida. balho-os mdws hmttavam-se a pôr as suas pirogas
Os dez navios fizeram-se de vela. Lentamente e num certo âng~lo face à maré, que, à medida que 1a
sondando com cautela, dobraram o cabo de São Roque enchendo_, enchta também o barco de peixe.
e seguiram a curva do continente para nordeste. Era Havta tudo isto, mas nem rastos de ouro.
uma costa solitária, de rochedos e cachopos e dunas d Não há noticias dos anos que eles passaram neste
que se estendiam a perder de vista, praias inóspitas eserto, dos longos dias monótonos sem que a
onde os bravios índios Potiguares estavam à espreita, ~udança das . estações os moditicas;em, as noites
prontos a disparar as tlechas contra o estrangeiro que aporosas destilando odores aromáticos da terra as
desembarcasse. explorações pelos misteriosos rios acima o silênci~ de
Os ventos e as correntes eram indomáveis, ten- morte sob o bater compassado dos remds na água e o
do-se perdido o barco a remos. Pior do que isso, a nau vozear ~das cigarras na verdura espessa e imóvel com
de Aires da Cunha encalhou nos traiçoeiros bancos de excfpçao do movimento rápido do beija-flor ou o 'bater
areia. Não se sabe ~e houve sobreviventes, tudo o que ~zu ado das asas das grandes borboletas. A prospecção
se sabe é que Aires da Cunha, que tinha quase dado ;> ouro parecia ser coisa a pôr de parte neste país
a volta ao mundo de leste para oeste, terminou a vida t aoh longe d e1e como to d as as empresas humanas.'
junto do novo continente. · 0 ornem, com as suas preocupações e impaciências,
Os outros desembarcaram num estuário numa ilha
2('6 CAPITAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL
201"
apenas por acaso passava por ali; inexorável e
suprema, a Natureza reinava sem entraves. O homem Ontro documento dá-nos a entend er que o fra
tinha de viver como ser da floresta ou morrer. casso se d eveu a certos homens que tinh .d . -
e indispuseram os índios. Talvez este as~·~ ~ ad~ante:
Não sabemos exactamente como os europeus Melo acima referido- aventureiro ind J d Luts de
passaram aqueles anos, ou quando chegaram ao ponto partiu de Lisboa em I 554 com cinco ep:n ente que
em que já não podiam suportar mais. Apenas se sabe quantidade de homens, mas naufragoun~~I~s e .g~ande­
que resolveram voltar à pátria, mas na viagem de da foz do Amazonas, escapando com ara, JUnto.
regresso metade da armada naufragou. Três dos navios, um pequ~n~ ?arco. para S. Domingos. uma caravela e
impelidos pela tempestade, chegaram às Antilhas, onde
os castelhamos meteram os sobreviventes na prisão. . ~ htstona pnmitiva destas ca it . .
na1s e tão escassa e t• 1 . P amas setentno-
Oticialmente os soberanos de Castela e de Portugal ao ma regtstad h·
fusão entre as várias expedições lá en:? da tanta co_n-
eram irmãos muito amados -no alto mar e nas ilhas se pode fazer avultar uma ideia ci d Ia as,A qu.e nao.
do Oriente e do Ocidente, os seus leais súbditos eram factos. João de Barros com a ara a sequencta dos.
apenas rivais acérrimos. fàcilmente ter-nos d~ixado sua pena elo9uente, podia
Escrevendo em 1 542, Duarte Coelho declara que interessante de todas esta un:a narrativa lúcida e
700 homens se perderam na expedição do Maranhão. _ s cotsas mas t
re Iato nao chegou até nós A ', . se o ez, tal,
Apesar disso, João de Barros repetiu a experiência para o assunto parece se~ a =~l~t .?X:Ica bcontrib~ição.
15 anos depois, mandando desta. vez seus filhos Jerô- que sempre recordará as ex . _ana o servaçao de
nimo e João. quão morto me deixou p~dtçoes ao Brasil ccpor
«Meu irmam João de Barros e eu- declarou sem truito algum I» Tal v~ gran e. custo desta armada.
Jerônimo em época posterior- em tempo dei Rei Dom desalentado para .dizer m z. se senl hsse de.masiadamente
João o 3.0 tomos por seu mandado ao Rio Maranham E ats qua quer cotsa
que se passava com · · ·
com húa armada a descobrir o dito Rio e costa pelas de Sousa, o pioneiro das te~r capttama de Pe:o Lopes.
esperanças que avia de grande resgate de ouro e des- fundar a colônia de S- v· as d~ so!, .que aJudara a.
cobrimos mais de quinhentas legoas de costa e entra- como sabemos no Oao tcenite e Ptrattnmga? Morreu
D· [sabe! de Gamboa ' ceano ndico 5 . ,.
mos assi o dito rio Maranham como outros muitos ., em I 39, deixando
grandes e notaveis e resgatamos alguns homens que•nella propriedades. ' sua vmva, a dirigir as suas.
andaram dos que se perderam com Luis de Mello no Era uma heranç d
que passamos muitos trabalhos de guerra com os partes. A faixa do t a esastrada dividida em três.
franceses e com o gentio da terra e fomos e povoamos como lhe cbam ex remo sul -capitania de Sant'Ana
em tres partes no que gastamos perto de ci nquo anos d t'd as além da avam- ilha de C
compr d d
e:n en o. as terras per-
,.
sostentando tudo sempre a custa de meu pay até gastar parece que nt"ng , ananeta, varndas da chuva
. uem se preo ,..
quanto tinha e fizemos muito serviço a el Rei». (1) muno longe dem . d cupou com ela. Ficava
terra para e~ta·o asta o afastada de qualquer outra.
(I) Arquivo da Torre do Tombo. Cod. 2664, publ. in • Boletim da za - se pensar em 1
Segunda Classt, da Academia, vol XI, cit. in· Hist , da Colon . Port. do Brasil ,
çao. Essas costas · um P ano de coloni-
"oi. III, pág. 210. para o futuro. Isoladas deviam ficar de reserva
CAPlTAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 209
.108

ltamaracá, ao norte, nos co?tins d~ Pernambuc~, A ter~eira faixa estreita de ~ero Lopes, compreen-
deixava-se seguir sem governo. Tmha ah estado a rest- dendo a Ilha de Santo Amaro JUnto de São Vicente
dir um Francisco Braga, deixado pela armada de Pero estava em condições diferentes. Passava pelo meio da~
Lopes de Sousa em 1532. Francisco Brasa falava a terras do <<Capitão Irmão», por isso foi administrada
língua dos índios e vivia em boas relaçoes com os quase em comum.
indígenas. Procedia como capitão de um pun.hado de ~artim Afonso de Sousa- também proprietário
·brancos estabelecidos nas redondezas. lnfehzmente, absenttsta- encontrava-se em ~elhor situação do que
porém, quando Duarte Coelho chegou, ele e o dona- os seus colegas. Pelo menos a mstalação não se fizera
-tário de Pernambuco zangaram-se um com o ?utro. ao princípio à sua própria custa. A colônia existente
Ignoram-se as razões ~o caso. O certo ~ que na sua capitania fora criada pela Coroa antes de as
Duarte Coelho não esta va dtsposto a tolerar mas res- doações serem feitas. O trabalho de Martim Afonso
postas dum homem de categoria inferior, fazendo cas- ti~~a s~do o de representante do rei, e o capital origi-
tigar Francisco Braga com um golpe de cutelo na face. nano nao era seu.
Então Braga, desgostoso, não podendo vingar-,se, pegou . Em Sã? Yicente deixara 3oo pioneiros resolutos e
em tudo o que era seu e partiu para as Indias de a vtda mumctpal bem organizada. Havia uma igreja e
Castela. . d uma fortaleza, um pelourinho- então considerado
Itamaracá tornou-se assim uma capitama « es- indispensável à vida urbana- situado mesmo defronte
baratada, perdida, como corpo se_m cabeça» e). D. Isabel ~o edifício d~ Câmara onde os administradores do
de Gamboa tentou mandar para la lugares-tenentes, m~s JOVem burgo tmham as suas reuniões.
0 primeiro a partir naufragou e nunca chegou a? Brasil,
. • Martim Afonso tomou assim posse duma empresa
e 0 segundo escolhido da pobre s.enhora tem stdo des- Ja lançada, que ajudou de tempos a tempos mandan-
crito como um capitão «que mats era para governar do-lhe va~as e carne_ir.?s de Portugal e canas de açúcar
uma barca» (2). Não pôde aguentar-se e em breve aban- da Ma_detra. O capttao era home!D de tina intuição
·donou Itamaracá. comer~tal, . como demonstrou na India onde traficou
Mas era um porto de fácil acesso e rico em pau co!D _dmhc:tro. e realizou negócios financeiros com os
brasil. A capitania tornou-se, como estava condenada bnn~tpes tndtanos. Para impulsionar o comércio no
a ser um foco de contrabandistas, paraíso para todos ra:ti parece que fundou uma companhia de impor-
os ne~ociantes ilegais, porto de retúg~o para os colonos ~açao e exportação, à cujos sócios chamou «armadores
.da capitania vizinha que se senttam c~actos pelo
0
trato» (1). Mandavam vir mercadorias da Europa
governo enérgico de Duarte Coelho., Por tsso, ayesar para os portugueses venderem aos índios, e exportavam
·de tudo, a população aumentou em nu mero, se nao em pa~a Portugal os produtos da terra, principalmente
virtude. ~çuc.~r, que chegou a substituir o uso da moeda no
rast colonial. Dizem que o primeiro engenho que

(1) Frei Vicente do Salvador, Hist. da província du Brasil pág. 126. Vicente~ltágM;:re de Deos, Memórias para a história da capitania de São
(2) Ibid.
14
210 CAPITAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL

funcionou foi na ilha de São Vic~nte, . ao, la~o ~a


capela dedicada a São Jorge. Todav1a a mdustna nao. ~uja influência em Tibiriça, seu sogro, contribuía
se desenvolveu na mesma escala que em Pernambuco, Imenso para a conservação das boas relações.
ou mesmo mais tarde, na Baía. . O próprio João Ramalho era sogro de quase metade
Os c~lonos de Martim Afonso eram, sob m~1tos ~a colônia. Ninguém ,sabe ao certo quantas mulheres
aspectos, privilegiados. Ali, a Natureza, embor~ amda tinha, ou qual o numero dos filhos mas é certo
de exuberância subtropical, era menos opresstva do que era pai duma tribo de ccmamelu~os>> como cha-
que no norte, e o clima não muito di~er~nte daque~e mavam aos. índios mestiços, havendo muÍtas filhas a·
a que eles estavam habituados na .patna. Na capi- colocar. Evtdentemente, não havia uma para cada
tania de São Vicente eram os «ares fnos,_ e temperados colono solteiro, alguns tinham de casar com índias de
como em Hespanha, cuja terra he m~t~ sadia e de puro sangue; outros, mais felizes foram casados de
frescas e delgadas aguas» (1). Ao contr~no das terr~s Portugal, indo as mulheres depois te'r com eles ao Brasil.
6 etentrionais em que reinava um verao eterno, Sao
Todos eles em breve deram origem a uma nova geração
de jovens brasileiros.
Vicente mostrava distintamente um inverno, du~ante o
qual as temperaturas variavam do fresco agradavel ao . Os. pais- alguns deles homens escolhidos, que
frio razoáveJ ou mesmo intenso. Mas- é estranho tmham tdo na armada de Martim Afonso- eram, geral-
'
dizê-lo observa um autor- por razoes ~ que so' El e mente falando, de tipo melhor que os que se encon-
conhede, o Autor da Natureza inverteu aqui as esta- tra.va.m nas capitanias entre São Vicente e Pernambuco.
ções e estava frio de Março a Novembro e quente Extstta mesmo um grupo de homens de boa família e
sem mancha. ;
dura'nte o tempo que os Europeus consideram meses
de inverno! . H a via Bel~h_!.or de Azevedo, mais tarde lugar-
Nas encostas das montanhas podiam culttvar-se -tenente do capttao do Espírito Santo Rui Pinto que
todos os vegetais e frutas da Eur?pa, a vinha florescia ~om _Pero de G~is, tinha comandado ~ma expediÇão a;
e produzia-se vinho em abundâncta. Achavam eles que mtenor; ~ havta o irmão de Pero, Luís de Góis, que
não se conservava como na Europa, pelo que o levavam mandara tr a mulher e os filhos de Portugal· quando
ao lume para ferver, a fim de evitar q?e se torn.asse P.ero voltou ao reino, ele ficou em São Vicente, admi-
mstr~ndo a ccsesmaria~ do irmão. Havia também Jorge·
vinagre. Não sabemos que paladar tena esse vmho
depois de submetido a tal tratamento. .
~erretra -~um dos mats nobres, dizem, que, com Joana,.
f1lha de .Joao Ramalho, veio a ser o antepassado duma
O elemento humano, no geral, parece ter stdo
menos difícil em São Vicente do que em algumas outra~
da~ ~ats orgulhosas famílias do Brasil colonial- e
Cnstovão de. Aguiar de Altero, além dum grupo de
capitanias. Por qualquer razão os índios eram aqu1 genoveses acttvos, como a família Adorno e acima de
mais amigos do que os encontrados em outros todos, havia Brás Cubas. ' '
pontos, além de que lá estava sempre João Ramalho. Este valoroso cidadão do Porto era só por si uma
~:ste, ~ lev~ra ~om ele os irmãos Antó~io e Go~çalo.
flhu
1 pat, Joao Pues Cubas, foi mais tarde juntar-se aos
(I ) Gabriel Soares de Sousa, Notí cias do Bra!il, cap. XLII. os, levando consigo os seus bens.
212 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 213

Brás Cubas era um genuíno portuense- tenaz, porque o primeiro sítio a pouco e pouco desapareceu
trabalhador honesto e inteligente, tipo do colono que sob as ondas.
as terras ndvas desejam mais vezes do q~e encontra~. Depois, quando o porto ficou destruído, Brás Cubas
Desde a época em que chegou a? ~rastl com Mar.tl~ teve uma boa ideia. A enseada que fica entre as
Afonso tornou-se um pilar da coloma nascente. VIvia ilhas de São Vicente e Santo Amaro podia proporcionar
com 0 pai e os irmãos numa pequena i~ha em frente de esplêndido ancoradouro para qualquer armada. Aí
São Vicente, fabricando açúcar e cu,ltlvando os .vastos resolveu ele fundar em I 543 uma cidade numas
terrenos da «sesmaria» que possma no contmen.t~. terras que possuía e que iria ser o porto de
Encontramo-lo a desempenhar cargos de responsabili- São Vicente.
dade e confiança, sendo por diversas vezes prov~d~r Brás Cubas era um daqueles homens cujas iniciati-
da Fazenda real e alcaide-mor, e agente do capitao vas prosperam semprr: A sua aldeia cresceu, a popu-
ausente, Martim Afonso de Sousa. . . lação multiplicou-se. Em 1 545, nomeado lugar-tenente
Todavia não deve supor-se que tudo havta stdo da colónia, por Martim Afonso, serviu-se dos seus
um mar de r~sas para a colónia nascente. Ela teve os poderes para conceder foral à cidade do futuro.
seus percalços e atribulações como as outras. Em I 536 Como verdadeiro portuense, Brás Cubas era
houvera uma luta violenta com um ba~do de ~s~al­ profundamente caritativo. Uma das primeiras vanta-
tantes castelhanos e portugueses, que tmham VIVIdo gens que ele proporcionou ao novo burgo foi a fundação
como· sei vagens na costa em anos pas~ados e eram duma Misericórdia- para socorrer os pobres e os
contra todas as lormas de governo orgamza~o. ~om os doentes, irmandade a que o coração compassivo duma
seus aliados índios, fizeram incursões em Sa~ VIcente, grande rainha dera corpo 5o anos antes em todas as
causaram ruínas em todas as redondezas e fuguam com cidades de Portugal. Junto da igreja dedicada a Nossa
os arquivos da Câmara. Teve de se chamar o. valente Senhora da Misericórdia, a Misericórdia de Brás Cubas
Tibiriça das alturas de Piratininga para aJudar a teria um hospital, chamado de Todos os Santos como
expulsar os invasores. o grande hospital de Lisboa. E é do nome deste
Também teve São Vicente de lutar com o m~r, hospital que o porto de Santos tira o seu.
como Jutara com os assaltos do home~: Martim Assim a capitania de São Vicente progrediu, se não
Afonso, quando escolheu o loc.al para edthcar, nada a passos d;. gi?ante, ao menos aos poucos. Em I 5.48,
sabia acerca da ressâca, que mmta.s vez~s varre aquel.as Luis de Gots mformava o rei de que a população-
costas. São Vicente ficava nas batxas, JUnto da praia. ~omens, mulheres e crianças- contava 6oo almas, que
Um dia levantou-se uma vaga e ar~astou a ca~a ~a tinham ao seu serviço 3.ooo escravos havendo já seis
Câmara juntamente com o Pelourmho e a IgreJa engenhos de açúcar. '
paroquial. · , 'd p Apesar da ausência do dono, esta era, depois de
Os cidadãos de São Vicente eram mtrep1 os. ernambuco? a capitania que parecia apresentar melho-
Reconstruíram a sua igreja noutro lugar e arrancaram res perspectivas; entre estes dois faróis brilhantes ao
os sinos do fundo do mar. Toda a cida~e se mudou norte e ao sul, o quadro era menos animador. De todos
um pouco mais para o interior, o que t01 uma sorte, os barcos que tinham partido tão auspiciosamente à
~14 CAPIT AES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 215

~onquista de reinos no deserto, a lavrar, semear, edifi- «queira a Deus não se atrevão a dobrar o Cabo da Boa
car e defender, qual havia sido o resultado ao fim de Esperança)) ! Ou seriam capazes de levantar um forte em
I 6 anos? Uma meia dúzia de estabelecimentos espalha- Santa He~ena. Se Sua ~lteza quisesse agir a tempo,
~os ao longo de mais de 200 léguas de costa, algumas ainda podta expulsar os mtrusos «com pequeno custo e
aldeias bisonhas onde os homens viviam uma vida pouco trabalho, porque em tanto que estas capitanias
'l'Ude, cultivando o solo de espada na mão e mosquete estão em pee com a gente dellas e ajuda e favor de
pronto a usar ante a ameaça das tribos selvagens que Vosa Alteza se alimpará a costa e o mar delles e lhe
vagueavam pelos arredores. tirarão a ocasião de mais)),
Os piratas franceses voltaram. O seu objectivo O próprio Luís de Góis teria expulsado dois navios
não era agora Pernambuco -Duarte Coelho podia vistos recentemente no Rio de Janeiro se não lhe
.cuidar desse - , mas toda a longa costa ao sul; tão faltassem meios por completo para o fàzer. À falta
~scassamente povoada e tão pouco defendida, era destes muito mal já se fizera. E pedia ao rei que
presa fácil, onde os índios tinham razão de queixa salvasse o que restava- fruto dos trabalhos «por nós
dos colonos, ou mesmo unicamente pela sua natural que a povoamos como per muitos que ajudarom a povoar
instabilidade; alguns presentes· de ferramentas e armas que de mim diguo qu~ des ho dia que vosa Alteza me
<le fogo podiam comprar-lhes a aliança. São Vicente mandou que a ella viesse com Martim Afonso de Sousa
·e ncontrava-se detendida firmemente; era uma forte alem de gastar ho milhor da minha vida ategora não fiz
posição. Assim o podia ter sido a bela baía de Guana- senão gastar ate mais não ter e ate mais não poder e
bara, mas estava completamente deserta e não havia o que me fica pera guastar he a minha vida e a de
defesa em cabo Frio. De I 544 a 1546 sete ou oito navios minha molher e meus filhos das quaes a Deus e a
franceses tinham ido àquela baía, e destes pontos Vosa Alteza farei sacrifício ementes nos durar» !
Jlaviam assaltado os estabelecimentos mais fracos, inter- I), João 111 ponderou tudo isto. Certamente não
-ceptando a navegação, fazendo incursões e saqueando: desejava perder o Brasil, por isso parecia ter chegado
:«Se com tempo e brevidade Vosa Alteza não socorre o tempo para novas resoluções. O sistema de capitães
a estas capitanias e costa do Brazil- escrevia Luís d~natários servira a seu tempo, mas era evidente que
<le Góis- que ainda que nos percamos as vidas nao dava os resultados esperados. Requeria-se da
e fazendas vosa Alteza perderá a terra!» (1) E se o rei metrópole intervenção e apoio mais directos.
não prestasse atenção àquilo, podia acontecer ainda E devia fazer-se alguma coisa dos índios.
pior. Uma vez que os franceses tivessem «Hum pée no
Brasil ey medo adonde quererão e podem ter ho outro».
O Brasil ficava no caminho marítimo para a Índia-
o que poderia levá-los a pensar em novas empresas:

(I) Carta de Luís de Góis para D. João 111, escrita da vila de Santos
em 12 de Março de 1548. Corpo CrontJI. Parte I. Maço 80. Doc. 110. Publ.
i n · Hist. da Colon . PtJrt . do Brasil, tomo JIJ, pág, :259.
XV

Os Índios

Não há dúvida de que eles eram o principal pro-


blema- problema tal como Portugal ainda não defron-
tara em parte nenhuma.
As ilhas do Oceano - Madeira, Açores, Cabo
Verde, São Tomé- não tinham aborígenes. Os colonos
podiam estender-se à vontade por toda a terra, onde
apenas havia a vencer a Natureza, onde as disputas
eram unicamente entre eles, e a falta de mão de obra
se podia suprir com a importação de escravos da Guiné
e da Costa do Ouro.
Os entrepost9s e as fortalezas no continente afri-
cano não tinham qualquer semelhança com as capita-
nias do Brasil. Os brancos não iam ali fixar-se para
toda a vida, possuir vastas plantações ou cultivar o
solo. Iam para lá em serviço, geralmente não exce-
dendo três anos, trocar produtos europeus por ouro,
especiarias e escravos, e, embora os Africanos fossem
bastante bárbaros, não eram totalmente ignorantes e
não viviam isolados do mundo como os Índios do Brasil.
Mesmo à Africa equatorial haviam chegado ecos do
CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 219

-mundo antigo, os reis negros, durante séculos, tinham todos os pesos e medidas lhe eram desconhecidos, a
1ido contactos distantes e raros com a Arábia e Marro- sua única ciência era a da floresta, o seu objectivo na
cos. Entre estas gentes havia certa organização polí- vida era caçar, combater e matar, comer e beber com
1ica, um ponto de compreensão mútua sobre que se abundância.
podia editicar alguma coisa. Os reis de Portugal e os Parecia não ter qualquer religião, além de um
reis da África comunicavam entre si como de soberano desejo de propiciar as forças da Natureza, os espíritos
para soberano, e chefes categorizados trocavam cum- malignos que espiam nos bosques. Tupã, o trovão, pare-
-p rimentos com os fidalgos. cia ser a Voz Suprema, mas ele não fazia qualquer
Pelo qu~ tespeitava às feitorias e conquistas por- outra ideia de Deus.
·tuguesas na Asia- Goa, Malaca, Cochim, Di o e o resto O seu sistema social era o da mais si~r.ples forma
-também constituíam um caso totalmente dife- de nomadismo: cada tribo constituía uma unidade que
·rente. A situação era a de uma potência protectora entre se bastava a si própria, percorrendo a tloresta dum acam-
1erras civilizadas. No Oriente, era necessário diplo- pamento para o out ro. Onde se resolvia parar, aí se
macia política e estratégia- o contacto -psicológico queimava o mato, se levantavam quatro ou cinco cho-
'fazia-se com um tipo completamente diferente. ças alongadas de barro e bambu e cobertas de folhas
Os fndios nus do Brasil não pertenciam ao mesmo de palmeira, o solo era esgaravatado, semeando-se
-mundo. Eram produto duma época muito anterior, da milho e mãndioca para dar a farinha que era a sua
manhã da Criação. Adão antes da Queda I tinha excla- comida de todos os dias, os arcos e as flechas dos
mado Caminha com satisfação. Esta gente amável, caçadores asseguravam o abastecimento de carne
'Simples e inocente só precisava da doutrina cristã ele- e o peixe matava-se à seta ou à lançada quando
mentar que um degredado ensinasse, para se voltar nadava na água. Ao fim de 4 ou 5 meses, quando as
'p ara a luz como as flores ! choças começavam a cair, a tribo mudava-se para
Que não era assim- que pena! -logo se tornou outro sítio.
evidente. Homem primitivo, sim, mas muito longe do Não havia rebanhos nem manadas nem animais
Homem antes da queda. Nem amáveis, nem simples, domésticos. As artes manuais eram poucas; as mulheres
nem inoc~ntes, nem ansiosos por serem instruídos. fiavam fio de algodão para fazerem as malhas das redes
Se o Indio não era o que Pero Vaz de Caminha em que eles dormiam; sabiam fabricar vasos de barro,
-sonhara, tão-pouco era o nobre guerreiro e o perfeito embora não conhecessem a roda do oleiro, e coziam-
-cavalheiro popularizado por Fenimore Cooper e José -nos num buraco feito no chão com uma togueira acesa
de Alencar nos romances modernos. por cima. Fabrica va- se uma espécie de cestos com
Era um ser completamente rudimentar: feroz, erva ; faziam colares com enfiadas de dentes, ossos,
valente, astuto, traiçoeiro e mentiroso, não conhecendo gr~os, ou mesmo cerdas de porco espinho; das penas
rei, senhor ou forma de governo, excepto o do mais bnlhantes das aves da floresta faziam notáveis adornos
forte, à maneira dos animais selvagens que vivem em para si. Estes adornos, com as armas e as redes e os
-rebanhos. Nunca sentira necessidade de roupa para se utensílios de cozinha eram as únicas coisas que pos-
aquecer ou por pudor; não sabia contar senão até 4, suíam. Também não tinham muita ideia acerca da
220 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 22l

propriedade. Dentro das choças todas as coisas eram passava sem se alimentar, e não parecia ficar pior do
mais ou menos comuns. que se tivesse comido de mais.
Estas choças compridas e baixas, com uma pequena Toda a comida se partilhava fraternalmente. Não
abertura em cada extremidade, eram muito escuras e havia disputas dentro da choça. O Índio nunca se
cheias de fumo, e - visto que pelos hábitos pessoais zangava com os seus camaradas senão quando estava
estavam ao nível dos animais- exalavam os odores embriagado. Então, prudentemente, as mulheres escon-
desagradáveis do estábulo. diam-lhe as armas.
Em cada choça viviam 20 ou 3o famílias, cada Todos-homens e mulheres-gostavam de bebidas
qual com o seu espaço marcado para dependurar a fortes, e davam-se a elas sempre que podiam 1 mas
rede e acender uma fogueira no meio. Aqui, a todas as nun~a ~urante a~ refeições. Pelo contrário, quan do se
horas do dia e da noite, indiferentes à atmosfera fétida bebia nao se comia. Bebia-se e dançava-se durante todo
ou aos nervos dos outros, as mulheres conversavam, as o dia e toda a noite, até não haver gota para beber e
crianças brincavam e gritavam, os rapazes gracejavam todos os dançarinos terem caído.
e os mais velhos faziam longos discursos. O Índio esti- Orgias destas não se realizavam todos os dias.
mava muito os dotes de orador, e por muito estranho Exi~iam P.reparação. Como nunca ficava uma só gota
que pareça, dizem que estes selvagens, cuja cultura não de hcor, tmha-se de fazer de novo para cada ocasião.
ultrapassara a idade da pedra, possuíam uma bela A r.aiz chamada aipim era a principal produtora de
língua, com inflexões admiráveis e harmoniosas de bebi~as fermentadas, preparadas pelas mulheres idosas.
OUVIr. Ferviam a raiz e pisavam-na e depois davam-na
Enquanto comiam, ninguém falava; cada guerreiro às raparigas mais bonitas da tribo para as mastigarem
fazia-o confortàvelmente na sua rede, servido pelas as quais as cuspiam dentro de grandes vasos de barr~
mulheres, ou então todos se sentavam no chão com as onde fermentavam. Quanto mais bela fosse a mastiga-
costas para a fogueira. Com a refeição não se bebia dora,melhor seria a bebida!
qualquer espécie de bebida. A sede apagava-se depois Na noite anterior àquela em que a bebida estivesse
com a água que se pudesse arranjar, por muito suja ou pronta, toda a aldeia cantava e dançava até ao ama-
contaminada que estivesse. nhecer; ?epois as donzelas de todas as choças deita-
Tão-pouco sentia o Índio qualquer escrúpulo no vam o vmho em meias cabaças chamadas cuias para
· que comia. Devorava répteis e até insectos sem oferecerem aos dançarinos. Estes bebiam e danç~vam
repugnância. Para ele, comer os parasitas do homem as mulheres ~ebiam, dançavam, toda a gente cantava~
era acto de vingança dignificadora. Quando um amigo saltava, e assim continuava horas seguidas. Era motivo
estava a catar a cabeça de outro, dava-lhe o que apa- de .grande orgulh? para o homem que pudesse beber
nhava para esmagar entre os dentes. mais e f~zer as COisa~ mais disparatadas enquanto esti-
Não havia horas certas para as refeições. Havendo v~sse bebado. A. dtstinção para um índio consistia
comida, o Índio comia em grandes quantidades e ntsto, e em ter muitas mulheres em matar muitos inimi-
tantas vezes quantas a fantasia lhe pedia, até não gos e devorá-los com todo o ritual prescrito.
haver mais que comer. Se havia pouco que comer, Matar em combate era coisa gloriosa, mas glória
222 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 223.

ainda maior seria apanhar vivo o inimigo. Depois a erguiam as choças, escoltado por velhas horrendas,
operação era regulada por um ritual complicado . com os corpos enrugados pintados de vermelho e·
O prisioneiro era levado à aldeia, com uma corda amarelo vivo, e sem qualquer vestuário à excepção de.
ao pescoço, escoltado por uma multidão que dançava colares de dentes humanos, todas a cantar enquanto.
ao seu lado, dizendo zombarias, dando bofetões e belis- faziam um barulho infernal batt-ndo em tigelas vazias,..
cando-o. Preparava-se uma choça para ele perto que levavam para receber o sangue da vítima.
daquela em que vivia o seu captor, com uma rede Obrigavam-no depois a ficar de pé entre dois postes.
prontamente armada em que o prisioneiro era deposi- com buracos, através dos quais passavam as extremi-
tado-daquele momento em diante cessavam os maus dades das cordas que o prendiam. Olhe para o sol pela
tratos. última vez! cantavam as velhas. Que lhe importava a.
Porque ele tinha de engordar para o festim, e não morte? respondia o prisioneiro com altivez. Não-
há nada como a angústia para fazer um homem perder devorara ele muitos dos parentes deles no passado r
o peso! Durante meses a tio, alimentavam-no como Os seus matariam e devorariam ainda mais quando,
a um galo de combate; punham-se caçadores ao seu viessem vingá-lo!
serviço para o abastecerem de caça e de peixe; davam- Entretanto, o carrasco preparava-se para o acto-
-lhe para mulher uma bela rapariga, e ela tinha de o final. Todo pintado de arabescos negros, com pulseiras.
servir duránte todo o dia e dar-lhe tudo o que ele quisesse. nos braços e nas pernas, um diadema de penas verme--
Quando ela julgava que o seu protegido estava bas- lhas ou amarelas na cabeça, tufos de penas e contas.
tante suculento, comunicava-o aos anciães e fixava-se pendentes do corpo, saía devagar da sua choça, e sole-
o dia para o banquete. nemente precedido de um homem com uma grande,
Então faziam-se formidáveis preparativos; convi- maça numa bacia, todo enfeitado com ornatos de·
davam-se todos os parentes e amigos de perto e de penas e com desenhos feitos em casca de ovo colada.
longe. Fabricavam-se enormes recipientes para leva- com cera.
rem muitos litros de vinho, e quando tudo estava A família e os amigos seguiam atrás dele, a bater ·
pronto, o dia anterior ao sacrifício era dedicado a em tambores e a tocar buzinas feitas de ossos humanos.
danças, a beber e a cantar, no que se esperava que a Oh, abençoado! cantavam eles, que teve a honra de
vítima tomasse parte. A tribo cantava as proezas do vingar as mortes dos seus parentes e dos antepassados.
vencedor, vituperando o cativo que respondia com a da tribo l
epopeia dos seus próprios feitos e a vingança futura. A vítima, presa pela cintura com cordas, esperava,
Enfeitavam-no para as últimas cerimónias. Pinta- ameaçando com a maça. Deixem-no defender-se, gri-
vam-lhe todo o corpo com sumo de genipapo; a seguir tava o carrasco, porque ele deve morrer! O prisioneiro
untavam-no de mel e colocavam-lhe penas de cor dos respondia com imprecações cheias de altivez. Deixa-
pés à cabeça. Os pés eram pintados de vermelho e vam-lhe os braços de propósito livres, ele lutava para o
metiam-lhe na mão uma maça; tiravam-lhe a corda do afugentar, enquanto o carrasco se dirigia para ele com
pescoço e passavam-lha à volta da cinta. Assim amar- a maça, ma& os que seguravam as cordas puxavam
rado, levavam-no para o terreiro à volta do qual se com toda a força de cada vez que ele tentava evitar o,
:224 CAPITAE5 DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 225

golpe. As vezes uma vítima robusta e activa conseguia apaixonava pela vítima e ajudava-a. a fugir, e se tivesse
ferir o executor, mas o fim era sempre o mesmo. Rápido um filho dele, tinha de o ocultar para o subtrair à
e inexorável, o pau-ferro caía esmigalhando-lhe o vingança da tribo.
crânio; semelhantes a harpias, as velhas lançavam-se Independentemente destas excepções romanescas,
sobre o cadáver. Nesse momento os membros eram qualquer filho do inimigo seria deixado com vida até
cortados, as entranhas tiradas e fervidas, a carne assada ter 7 ou 8 anos, sendo então o desgraçadinho abatido e
para ser devorada imediatamente, excepto um braço devorado, participando da cerimônia, a própria mãe.
ou uma perna, que ficava de parte para pôr a secar e Apesar de tais enormidades, os Indios eram pais
guardar de conserva para oferecer aos hóspedes de honra, dedicados. Amavam os filhos profundamente, mas não
ou para figurar em futuros banquetes. Todavia, se não faziam qualquer tentativa para os educarem. Nem lhes
havia bastante para se comer primeiro, então corta- exigiam obediência, nem procuravam incutir-lhes quais-
vam-se e coziam-se os dedos dos pés e das mãos, fazen- quer preceitos, nem mesmo os castigavam. A autori-
do-se um caldo par~ toda a gente provar e partilhar do dade era uma concepção com que nunca tinham sonhado.
triunfo. Parece que a vingança constituía o motivo Os seus chefes eram seguidos da mesma maneira que
primário destas orgias de canibais, mas a carne humana as crianças nos seus jogos se submetem às ordens do
era considerada em si a comida mais deliciosa e mais forte dos seus companheiros. A posição dum chefe
estimulante. não passava disso. Era um homem forte, um grande
Tendo cumprido a sua horrível missão, o caçador e um valente guerreiro, que matara muitos dos
carrasco retirava-se para a choça, onde lhe faziam seus inimigos e que tinha muitas mulheres ; por isso os
incisões em todo o corpo, senão a alma do morto seus seguidores o admiravam e ouviam o que ele dizia.
poderia matá-lo. Quando reaparecia alguns dias mais Mas ninguém esperava que lhe obedecessem se não
tarde, anunciava que tomara novo nome, que seria quisessem. A obediência não se considerava virtude.
divulgado em data futura, no auge dum banquete. Não havia virtudes no seu código moral, excepto a
Um herói era um homem de muitos nomes, porque coragem, tal como a cobardia era o único pecado.
tomava um por cada inimigo morto, quer tosse em .. Nem fé, nem rei, nem lei! Como era significativo,
combate, quer morto à paulada na presença da tribo d1z1am os portugueses, que faltassem na fonética dos
antes do festim. Em qualquer dos casos, era honroso índios as três letras F, L, R,! A um homem civilizado
matar e comer a carne dum inimigo, mas a maior do século XVI isto parecia um terrível estado de coisas.
glória estava em dispor dele com todo o cerimonial que De todos os povos da terra, exclamaram eles estes eram
acabamos de descrever. Tanto assim era que um pai os mais bestiais! '
capturava um prisioneiro, que engordava para o filho , . Que poderia fazer-se deles? Ao princípio parecera
matar, a fim de o jovem ter a honra de tomar novo fac~i. s>s hom~ns de Cabral cantaram e dançaram com
nome. os md10s, atrauam-nos a bordo do navio e fizeram-nos
Quanto à rapariga que consolara o prisioneiro d?r.~ir como. bons cri.stãos em camas' entre lençóis
durante os últimos meses, como a natureza humana é ClVlhzados; dtsseram m1ssa diante dos seus olhos espan-
humana até entre selvagens, às vezes acontecia que se tados e convenceram-se de que eles estavam profunda-
IS
226 CAPlTAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 227

mente impressionados. Era claro que apenas se necessi- com os índios, como se ficou a saber daí a pouco,
tava de leve orientação e ali estaria um rebanho pronto muitas vezes terminavam em chacinas públicas e no
para entrar no redil da Igreja, e com um pouco de ensino pavoroso festim.
estes mesmos catecúmenos tornar-se-iam lavradores Mas esta gente eram demónios com forma humana!
dóceis para ajudarem o agricultor a lavrar os seus bradaram os que pela primeira vez assistiram a tais
campos. espectáculos de horror. Isso dificultou o convencimento
Mas os Índios não procuraram essa orientação. de que o tndio é um homem e um irmão, e forneceu
Ainda menos desejavam lavrar os campos de quem quer uma desculpa àqueles que queriam apanhar índios
que tosse. Não aspiravam a um modo de vida diferente. como escravos.
A súbita e dramática irrupção dos brancos no meio E a escravidão era coisa que os Índios não podiam
deles- criaturas fantásticas do outro mundo, muito compreender. Nenhuns negociantes estrangeiros tinham
afastado e jamais ouvido- não foi saudada como o jamais aparecido nas suas costas, e o seu próprio sis-
advento de salvadores vindos de longe, mas como uma tema social não tinha problemas de trabalho. As suas
aparição espantosa para se estudar com grande cautela. necessidades elementares eram satisfeitas dia a dia com
Os índios vagueavam em redor, espreitavam e fugiam. pouco esforço. Não exigiam serviços dos seus prisionei-
Num minuto correspondiam às tentativas, para logo a ros. Comiam-nos.
seguir desaparecerem. A suspeição andava sempre abri- Com todas as florestas ínvias do vasto interior
gada no seu peito, pronta a saltar em chama. Ás vezes atrás de si, teria sido fácil aos índios desaparecerem e
rebentava sem provocação- pelo menos até onde os viverem sem serem vistos e independentes do branco
estrangeiros podiam compreender- e então as setas que vivia junto da costa. Mas eles sentiram-se fasci-
mortais cobriam o ar. nados pelos utensílios que os brancos traziam. As fer-
Estabelecer amizade duradoura com gente tão ra~entas de ferro e de aço que cortàvam a terra e
bravia e viver em harmonia com ela requeria infinita abnam a madeira tão fàcilmente comparadas com as
paciência, grande boa vontade e autodomínio, que, pederneiras e arcos aguçados que eram os únicos ins-
devemos confessar, muitos colonos não possuíam. Se os t~umentos cortantes que os índios conheciam, pare-
capitães, homens que tinham comandado na África e ctam-lhes maravilhosos, amavam as belas contas trans-
no Extremo Oriente, possuíam alguma prática no parentes e os espelhos em que a própria face dum
trato com as raças atrasadas (embora não tão primiti- homem ol.hava de modo tão estranho para ele; e os
vas como esta), os marinheiros e os degredados que brancos tt~ham animais jamais vistos- a vaca, que
eram duros, rudes e irresponsáveis, não faziam a lhes parecta uma grande anta com chifres-essa útil
mais leve ideia dos métodos suasórios. Uma coisa era ave, a galinha cacarejante e barulhenta, que vivia em
fraternizar com tolerância amiga e nquanto uma nau casa do homem e constantemente punha ovos- e o
carregava lenha e água junto duma costa selvagem, melhor de todos, 0 cão!
outra muito diferente era viver ano após ano em . Ao índio, caçador acima de tudo o cão parecia a
contacto contínuo com os homens do mato. Os embates mat~ b~la conquista da raça human~. Era o compa-
tinham de dar-se dentro de pouco tempo, e os embates nhetro Ideal, que auxiliava, hábil tarejador, cujos dotes
228 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 229

podiam tão ràpidamente devotar-se ao homem. Um cão · t o a poucas polegadas duma multidão e desapa-
tornou-se a posse mais apreciada que um índio podia ser vts
recer sem deixar rasto. ..
adquirir. Animal sem preço, queriam-lhe como a seus Um branco trabalhando sozinho na sua plantaç~o
próprios filhos. As mulheres levavam cães às costas a desbravar a t~rra nas proximid~des da floresta, cata
quando viajavam, como se eles fossem criancinhas, e do Po r uma seta atirada, parecta, de parte nenhuma
sebe-se até que criavam ao peito os pequeninos or mão oculta. E enquanto to d a a co l'oma
vara · se conse;-
cachorros. ~ava completamente desprevenida, uma hoste p~dta
Em troca desses presentes inestimáveis, os índios atravessar de rastos a paisagem~ sem se: ~ercebtda,
deitariam abaixo árvores de pau brasil, e ajudariam a ara se lançar de repente com gntos hornvets sobre a
carregá-los, e forneceriam abundância de caça e de fru- P.d de meio construída antes de os homens poderem
tas da floresta. Também se deu à venda de escravos, Cl a .. . per d'tam-se VI'd as va 1'tosas,
ara as armas. Entao
desde que se lhe apresentou um novo uso para a carne cor rer P 'd . . ·
ricas plantações ficavam destrUI as e os pnstonetros
humana. Sabendo que os brancos dariam em troca eram arrastados para uma morte ~orre~da. .
coisas de valor, · os índios frequentemente assaltavam Frequentemente tais a~remetldas ttnh~m stdo pr?-
os seus inimigos simplesmente para obterem merca- vocadas por homens descmdados ou atrevtdos, mas as
dorias de troca. vezes não tinham qualquer razão aparente. Todos os
Muitas vezes estavam prontos a entregar também relatos concordam em que nunca se podia contar co~
as filhas, mas manda a verdade que digamos que os os índios: se a sua inimizade era terrível, a sua ami-
brancos nem sempre esperavam pela oferta. As rapa- zade era incerta.
rigas índias eram muitíssimo acolhedoras, dizem, e Enquanto o problema dos tnd~os se n~o re~olvess7,
as mulheres brancas escasseavam. Escusado é dizer a colonização não podia progredtr. Havta d01,s ~amt­
que estava aqui outra fonte abundante de atritos. nhos a seguir: ou entrar na guerra de .ex!ermmto, ou
Despertar a hostilidade das tribos selvagens era civilizar o selvagem fazendo dele um cnstao.
coisa terrível. Embora os brancos tivessem a vantagem A primeira alte~nativa não parece ter s.i~o tomada
das suas armas de fogo, os índios tinham por si o em consideração. Independentemente da dthculdade e
número. . . e a floresta. O mato cerrado, sussurrante e despesas de tal campanha, não estava de a.cordo com
emaranhado, onde a vegetação bravia oculta a terra e a política de Portugal, firmemente convencidos, como
eclipsa o céu, não tinha para eles mais mistérios do estavam os seus chefes da missão da sua terra. A expan-
que uma estrada aberta. Podia-se levar um índio ao são ultramarina não ~e fizera para destruir mas para
longo da costa e afastá-lo 3oo léguas do lugar em que estender o triunfo da Cruz. Estes índios podiam parecer
a sua tribo vivia, que ele saberia encontrar o caminho animais selvagens, mas as suas almas imortais tinham
para casa sem errar. O seu sentido de orientação era de ser ganhas para o Senhor e para a Igreja. ,
tão infalível como o dum marinheiro, o seu oltacto tão Ao princípio supusera-se que por não possmrem
apurado que a muitas milhas de distância sentia o qualquer religião seria muito fácil convertê-los. Como
fomo duma aldeia; sabia rastejar por entre as plantas a realidade era diferente! O próprio facto de não terem
o silencioso como um jaguar à espreita, passar sem deuses nenhuns tornava-lhes difícil compreenderem um
230 CAPITAES DO BRASIL C \PITAES DO BRASIL 231

acto de adoração. Levar as suas almas rudimentares às em Direito canônico, considerado pelo sábio Dr. Mar-
luzes da revelação, explicar-lhes valores com que nem tim Azpilcueta Navarro como o seu aluno mais esperan-
mesmo haviam sonhado, pôr diante deles a honestidade, çoso, embora inibido por ser tartamudo, fosse Jonge no
a pureza e a verdade- tudo coisas de que não faziam caminho dos progressos no mundo. Mas aos 24 anos
qualquer ideia-, ensinar-lhes a recusar o mal e a renunciara ao mundo e pedira que o aceitassem como
escolher o bem, era missão que requeria uma vida noviço na recém-fundada Companhia de Jesus. Que
inteira de infinita p~ciência, compreensão e amor. esperava vir a ser na Ordem? O P.e Simão Rodrigues
Capitães da India e seus sequazes- soldados perguntara-lho e o jovem respondera que «quizera não
aventureiros, honestos agricultores, marinheiros- saber o que quero, mas em todo caso sômente querer
embora se considerassem colunas da Igreja e bons a Jesu Crucificado C)ll.
cristãos- não eram homens para tal missão. Tão-pouco Como verdadeiro soldado da milícia de Loiola,
o eram os padres leigos que tinham ido com eles para entregou aos superiores toda a sua obediência, e todo
o Brasil. Muitos deles eram Joões Bezerras. Esta voca- o seu ser aos progressos da Companhia, mas jamais
ção requeria o especialista. perdeu de vista uma lealdade superior. Assim, quando
O rei sabia aonde havia de obtê-lo. Inácio de lhe pediram a sua opinião de perito respeitante a certos
Loi~la, um coração ardente convertido a Deus pelo rendimentos que a Companhia podia pretender, não
sofnmento, tendo renunciado à carreira militar pela hesitou em demonstrar a fragilidade do seu ponto de
luta espiritual, chamara para si e organizara e vista legal. Apenas esperava estar enganado, termina
treinara uma nova milícia de missionários preparados por dizer, mas «posto que ame a Companhia depois de
para pregar o Evangelho com os lábios e com a vida Deus sobre todas as coisas, não queria, por amor dela,
em qualquer terra pagã do orbe. perder a Cristo (2))),
D. João lii chamou a Companhia de Jesus para Tal era o único intuito do homem que, quando
levar. a ~abo a missão no Brasil. O P.e Simão Rodrigues, chegou a hora, esta va preparado para dizer adeus à
Provtnctal de Portugal, e um dos primeiros companhei- terra natal e às mansões do saber onde se instruíra, e
ros de Inácio, estava ansioso por ir, mas os superiores dedicar-se com todas as forças do seu espírito de estu-
não o puderam dispensar, por isso teve de nomear dioso e dotes espirituais ao ensino do povo mais primi-
?utro. A hora revelou o homem: Manuel da Nóbrega, tivo da terra.
JOVem padre de 32 anos, que durante os cinco anos Para o acompanharem escolheram-se cinco com-
passados estivera a chamar toda a terra circunvizinha panheiros de espírito semelhante -- três padres e
de Coimbra à renovação da vida religiosa. dois irmãos leigos: o P.e Leonardo Nunes, cuja ener-
Conhecemos o perfil deste rosto magro o ascético: gia era uma chama ardente, o poliglota P.e João de
c.abelo curto, crescendo muito acima duns olhos pensa-
tivos, profundos e cavados pelas vigílias, nariz comprido . ( i ) Vida de Nóbrega pelo Padre Antônio Franco . Publ. in- Cartas do
e aquilino, lábios sensíveis. Era de ·e sperar que Manuel BraSil, ed. de Af1ânio Peixoto, pág. 23.
da Nóbrega, de sangue nobre e parentes influentes, (2) Carta do P.e Manuel da Nóbrep;~ . escrita de Sanfins do Minho
em f~8 de Junho de 1548 Publ. in- Nóbrega e a Fundação de S . Paulo, por
estudante brilhante em Salamanca e Coimbra, perito Sera tm Leite, pág. 103.
232 CAPITAE5 DO BRASIL

Azpilcueta Navarro, sobrinho do famoso mestre de


Nóbrega, o resoluto e bom P.e Antônio Pires, o bondoso
Irmão Jácome, e o Irmão Vicente Rodrigues, alma
cândida.
Todos eram jovens e entusiastas, prontos a traba-
lhar e a sofrer com o verdadeiro espírito do seu funda-
dor Inácio d_e Loiola, que lhes inspirara o desejo de
apenas ((servuem o Senhor como ele merece, dar e
não contar o preço, combater e não cuidar das feridas
tra~alhar e não procurar descanso, afadigar-se e nã~
pedtr outra recompensa senão a de saber que fizeram X VI
a Sua Vontade»,
. Tal era o grupo de missioi?ários que em r S49
partiram com o recém-nomeado governador geral O Governador
Tomé de Sousa.

O patriarca Diogo Alvares Caramuru, vivend()


junto da Baía de Todos os Santos, cercado pelos filhos
e filhas e prole mestiça, seus genros e outros brancos
extraviados que tinham voltado após a tragédia de
lS46, recebeu um dia a seguinte carta:
((Diogo Alvares. Eu el-rey vos envio muyto.
saudar.
cc Eu ora mando Thomé de Souza, fidalgo de minha
casa, a essa Bahya de Todos os Santos, por capitão e
governador della, para na dita capitania, e mais
outras desse Estado do Brazyl, prover de justiça della
e do mais que ao meu serviço cumprir; e mandei que
na dita Bahya faça húa povoação e assento grande e
outras cousas de meo serviço : e porque sou informãdo,
pela muita pratica e experiencia que tendes dessas
terras e da gente e costumes dellas, e sabereis bem
ajudar e conciliar, vos mando que tanto o dito Thomé
de Souza lá chegar, vos vades para elle, e o ajudeis no
que lhe deveis cumprir e vos elle encarregar; porque
tareis nisso muito serviço. E porque o cumprimento e
:.?34
CAPITAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL 235

1empo de sua chegada ache abas d .


a terra, para proviment d ta a de mantimentos retlectido cena tão variegada. O punha..do .de exilados q~e
-escrevo sobre isso a Pa~lo ~.gente que com eiie vay, observavam na praia derramaram lagnmas de alegna
.s e haverem e os va b Ias, vosso genro, procure ao verem um pouco do seu mundo perdido voltar até
nia de Jorg'e de FJ'g ~scdar pelos portos dessacapita- eles· os seus filhos mestiços olhavam espantados para
Ue1re o sendo .
-companhya e aJ'uda
. d
'
, encommendo-os qu
necessarw vossa
· d . as ~oisas estranhas que seus pais tinham descrito mas
que VH es que cumpre co e o aJu ets, no eles nunca tinham conhecid-o, enquanto os recém-~he­
cc Bartolomeu F ' mo creyo que o fareis gados arregalavam os olhos para a terra promettda.
novembro de I 54 8. ernandes a tez em L'tsboa a· I 9 de Toda verde c azul sob um sol doirado- Como eram
belas as obras do Criador 1 pensava o P.e Nóbrega.
Rei.>> (1) «Similham os montes grandes jardins e pomares, que
Não sabemos quem t · não me lembra ter visto panno de raz tão bello)), (1)
1ante mensagem nem 01 o portador desta impor- Tomé de Sousa o novo governador, activo, com-
.<festino. O navio' que a I quando. ela chegou ao seu petente, braço vigor~so e língua humorística, nã? ~eve
quando muito, por altura:v~~stena chegado ao ~rasiJ, tempo para se deliciar com a contemplação. Raptda-
I 54g, o que não deixava a n· meados de Jane1ro de mente, dispôs as suas torças em linha junto da costa e
para completar todos os wgo A~vares muito tempo fê-las marchar para o interior de bandeiras desfraldadas,
parece que já estav preparativos. Apesar disso indo os soldados com os seus arcabuzes e artilharia
·quando a 29 de Març~ ~~~nto ef no lugar indicado atrás do P.e Nóbrega e dos seu<> homens de paz, que
Era a esquadra mais im o: a rota d~ go~ernador. seguiam adiante, levando erguido o Símbolo da sua
-cera desde a expedição de ~ ne~te que Jamats apare- a c ti vida de espiritual. A Cruz foi levantada no monte
Das cinco naus redondas e arttm Afonso de Sousa. e as tropas acamparam em volta.
·ancoraram junto do fo t d ~as d.uas caravelas que Em baixo estendia-se a terra virgem- os topes
muito abandonado ; e ~ ranctsco Pereira, havia arredondados das árvores das florestas verdes que
homens- uma part~ rn eselmd arcaram mais de mil nunca haviam conhecido o machado, espessuras ema-
H av1a . f'd esc a a da popul açao
1 algos replandecentes - d o reino. ranhadas que nenhuma vereda dividia, aqui e além
-espada, letrados e escrivã nas suas capas e de cortadas por espaços de capim verde vivo e nos inter-
osso, camponeses e Iav ~s com os seus tinteiros de valos em toda a extensão do litoral recortado podiam
alfaias agrícolas 6oo raldodres transportando as suas ver-se espalhadas as choças dos índios, de que todos
·
1 erra a artilharia ' aJ. sod a os que t rouxeram para os dias saíam homens bronzeados e nus, que subiam
para o novo mo~do em ef 400 degredados, mandados ao monte para olharem admirados os recém-chegados
preto com grandes cruz a re azer a sua V1'd a, e padres de
-observadores, curiosos e na defensiva.
A .. es.
Perto ficava a Vila Pereira- daí a pouco cha-
___s_agoas transparentes da Baía nunca tinham
mou-se Vila Velha- conjunto de choupanas arrui-
( 1) Publicada por Varoh
:provemência, ageo 0 •1 sua História do Brasil •• · d. -
, ••ID ID rcaçao de (I) Nóbreg~. Cartas do Brasil, publ. por Valle Cabral, pág 89 ; carta
Ao Dr. Navarro, datada de 1549.
236 CAPITAES DO BRASIL 237
CAPITAES DO BRASIL

nadas em volta de «uma maneira de igreja», (1) onde quer ·


acontectme~ to inesperado ' e Tomé de Sousa não
o P.• Nóbrega disse missa. Esta era a primeira cidade . r açoes
da Baía, mas Tomé de Sousa tinha instruções para a quent comp I~teriza.va o homem. Seu primo Martim
reediticar noutro sítio onde houvesse um porto mais Afonsostod ecaSroausa observava, que entre as muitas quali-
· sa l'Ien t e er a uma
abrigado. Por isso, o governador mandou explorar a 'f cas de Tome a mais
baía a toda a volta . dadeJ ~agn~~ bom-senso. Ele inspirava a mesma con-
Entretanto procurou entrar em relações amigáveis ~ran e oset as pessoas: «farmea gramde merce em me
hança a ou r ) , d s a me
com os índios. Sem a sua boa vontade era evidente que d (Lourenço Pires e Tome e ousa par
nada podia ,fazer-se. Com a ajuda da língua persuasiva ~adn a(r ) a 0 servir por que comfio nele (s) que o
a1u ar em ' () · D J ~
de Diogo Alvares, uma impressionante exibição de tara (m) bem e verdadeiramente», i escrevia . o a 0
forças e o domínio firme dos seus ferrabrazes, Tomé de de Castro da Índia ao rei em I S47.
Sousa em breve alcançou as boas graças dos indígenas, Era também essa a opinião de D. João lll. De modo
tanto melhor que esta não era a mesma tribo que e quando por esta altura a carta citada ci:egou a
devorara Francisco Pereira. ~~rtugal Tomé de Sousa já fora nomeado, nao para
Faltava só resolver onde se edificaria a nova desempe~har qualquer carg~ às. ordens do governador
cidade. Nisto, escreve Nóbrega, «muito ainda obrou o da índia, mas para ele propno ser governador do
Senhor, deparando logo muito bom sitio sobre a praia Brasil. . ~ S d, 'd
em local de muitas fontes» C). Não ficava longe do pri- Estava talhado para tal missao. em uvi a na
mitivo estabelecimento, sobre um planalto que domi- Corte havia figuras mais brilhantes. do que .a deste
nava a baía e dava sobre um esplêndido porto, abri- sensato fidalgo minhoto, mas as qualidades bnlhantes
gado de todos os ventos, onde podia fundear uma não eram as mais requeridas nessa altura para .goye;-
frota completa. nar 0 Brasil. Muita firmeza de carácter e ractoctmo
Tomé de Sousa levava com ele a planta da cidade eram a necessidade primária, e Tomé de~ Sousa,
já traçada, de que Salvador seria o nome. Luís Dias, através duma carreira honrosa, demonstrara nao care-
mestre de obras, estava pronto para meter mãos à obra, cer de nenhum. . .
mas primeiro o governador mandou levantar uma forte Essencialmente um homem positlv~, doseava
paliçada a toda a volta do local da construção e reunir em justas proporções as qualidades requendas ~ara o
todas as suas forças dentro dela. Por detrás desta cargo. Para começar-como tinh~ de ~er naquela epoca
muralha improvisada podiam trabalhar em segurança, de jerarquias -a sua linhagem e hgaçoes eram basta~ te
protegidos de todas as surpresas. Os índios pareciam nobres. Não era o omnipotente conde de Ca.stan?eir,a
bastante pacíficos e amigos, e até prontos a prestarem seu primo? É verdade que Tomé de Sousa,_ hlho tlegt-
serviços, mas em qualquer ocasião podia surgir qual- timo do prior de Rates, não seria bastante fidalgo para

(1) lbid •• pág. 71. Carta ao Padre Mestre Simão Rodrigues de Aze-
vedo, 1549 (1) Fragmento de carta de O. João de Castro. para el-Rei. Co/, S. Lou-
unço, vo!. v, foi. 95, pub!. in· O Investigador Port.ugues em Inglaterra , vol. XVI,
(I) lbid., Carta ao Dr. Na varro, pág. 89. e Elaine Saoceau, Cartas de D. João de Castro, pag. 363
238 CAPITAES DO BRA5IL CAPITAES DO BRASIL 23~

ser esc~l?ido p~ra g.overnador da Índia, onde os filhos Segundo o rei observara, o sítio mais conveniente
das famlltas mats alttvas faziam o St'U tirocínio militar da costa do Brasil para este fim parecia ser a Baía de
ma~ estava .Perfeitamente indicado para governar ~ Todos os Santos, devido à sua situação central, belo.
soctedade mtsta do BrasiL clima e abastecimento de água. Por isso D. João lU
A acrescentar a isto havia a sua experiência no comprou ao herdeiro de Francisco Pereira a capi-
trato .dos homen,s, em terra e no mar, a qual era vasta tania abandonada. Tomé de Sousa seria ali capitão e,.
e vanada. To!De. de Sousa servira com distinção nas ao mesmo tempo, governador do Brasil, e devia cons-
fortalezas d.a Afnca, e comandara um navio na Índia. truir uma cidade muito bem fortificada; a terra cir-
~ sua tdade era exactamente a feliz meia idade- cunvizinha seria cultivada, instalar-se-iam engenhos.
~proxtmadament~ 40 e tal. Nem as leviandades da de açúcar e os proprietários d~ <<Sesmarias» seriam
JUVentud.e o atr~tam, nem sentia diminuído 0 vigor da obrigados a tornar o solo produtivo.
~ua moctdade. Ttnha em Portugal a mulher e uma filha O problema dos índios resol~er-se-ia .com ~ão­
JOV~m, mas. es_Perava voltar à pátria daí a três anos, e firme. Os que tinham matado Francisco Pereira s:nam
entao arra~J~rta ~ casar a pequena Helena. Até então, castigados. Ao mesmo tempo o governador devia de·
com o esptrtto ltvre, podia dedicar-se ao desempenho ter presente «O pouco entendimento que esa gemte-
do ~rograma que o rei lhe traçara num extenso ateeguora tem a qual cousa demenue muyto em suas.
ccregtmento».
culpas>> C). Os que se arrependessem dos seus erros e·
A .sua. missão definia-se aí <<Conservar enobrecer pedissem perdão ao rei, seriam perdoados - porque
as capttamas e. povoações das terras do Brasil e dar eco principal intento meu he que se convertão a nosa.
ordens~ e. manetra com que milho r e mais seguramente samta fee», e tudo se deve fazer com esse fim. Por-
se posao tr. povoando pera eixalçamento da nos a santa tanto os capitães e os seus subordinados deviam ser·
fee e provetto de meus reinos e senhorios e dos naturais obrigados a tratar bem os índios, evitando a guerra a
deles• C).
não ser em último recurso, porque a guerra interrompe
O rei r:solvera que uma era nova devia abrir-se as comunicações.
para o Brastl. Os donatários não voltariam mais a Sob pena de morte, a ninguém se consentia que-
governar : desgovernar os seus vastos domínios à sua fornecesse armas aos índios - nem arcabuzes, nem
~o~tade, l.tgados apenas pelo leve fio da vassalagem espingardas, nem bestas, nem lanças, nem punhais,.
a t..oroa dtstante. nem mesmo foices. Apenas artigos de cutelaria de
Da~ em diante . a Coroa estaria presente no lugar, menos importância, como tesouras, machadinhas e facas.
e. havena uma capttal que seria, como explica Frei poderiam dar-se, desde que se tivesse dispensa do papa
Vtcente do Salvador, cccomo coração no meio do corpo para isso.
d')nde todos Se SOCOrressem e fossem governadOS>> c/ Só às pessoas responsáveis se permitiria a visita
às aldeias índias, mas podiam realizar-se mercados.
semanais em todas as cidades, aos quais os indígenas.
(1) Regimento de Tomé de
BraJil, tomo m, pág. 3 .c5 .
sousa, pu
bl . H'
· 10- 1st. da Colon. Port . do
(2) Frei Vicente do Salvador, Hütória do Brasil, Liv. III, c~p. l• O) R~gimento de Tomé de Sousa, cit.
'240 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 241

podiam levar as suas frutas e caça para venderem. _veredicto com que nem todos concordam, mas parece
Nenhum navio particular seria autorizado a navegar certo que era homem capaz e com~etente.
ao longo da costa duma capitania para outra para Antônio Cardoso de Barros ta ser Provedor da
-capturar índios. A pacificação tinha de estar na F aze nd a e recebedor dos dízimos da
b
Coroa, e também
.
-ordem do dia. chefe da Alfândega que se esta e1ecena na nova
Uma cópia deste regimento seria enviada a cada
capital. . • d •·
-capitania aguardando que o próprio governador visi- Antônio Cardoso, como vtmos atras, era onatano
tasse cada uma delas em viagem de inspecção - do Ceará no extremo norte, concessão ~e que n~nca
promessa que foi recebida com muita frieza. Os capi- tomara posse, nem, P.elo que s.ab~mos, ten:-tonavafaze-!o.
tães nunca tinham esperado terem de ver um superior Ao que parece, sentia-se sattsfetto por vtver no Brasil ;
-a eles próprios. Vasco Fernandes disse que queria mas sendo homem de negócios esperto e prático, pre-
retirar-se, e Duarte Coelho deu publicidade a um feria agir como funcionário assalariado da Coroa, a
violento protesto. A sua Nova Lusitânia, declarou ele fazê-lo com a glória custosa de capitão.
ao rei, não precisava de qualquer interferência de fora, Alguém que tinha aprendido por ama:ga expe-
nem os colonos a desejavam. O rei reconheceu que riência como isso custava, voltou ao Brasil sob o
havia justiça na alegação. De todos os donatários, só comando do novo governador. Pero de Góis, que dera
Duarte Coelho conseguira pôr ordem no caos. D. João lll os melhores anos da sua vida a São Vicente e ao vale
escreveu a Tomé de Sousa aconselhando-o a não inter- de Paraíba, voltava atraído pelo encanto estranho da
vir em Pernambuco. terra, desta vez como capitão general da armada que
Para auxiliar o governador na sua espinhosa mis- devia cruzar ao largo da costa brasileira.
:São, o rei dera-lhe uma equipá muito útil. O P.e Nóbrega Tomé de Sousa apreciou calorosamente a sua
-e os seus missionários eram, evidentemente, os pri- colaboração leal. Em tudo, disse ele ao rei, Pero de
meiros e os melhores. Como enviados, cujo único Góis serviu com fidelidade, dando do seu com genero-
intuito era conseguir modificar o coração dos desor- sidade- «gasta mais do que tem e ftez húas casas
ileiros selvagens e civilizados, apenas com as suas nesta cidade por lhe parecer que nisso tambem servia
armas espirituais, seria de esperar que alcançassem V. A. tam boas e milhares que as que eu ffi:l..». (1)
resultados muito mais vastos do que os obtidos pela E também porque a isso o levara a sua visão do futuro.
-força material. Esta construção da capital absorveu as energias
Pelo lado secular também o governador tinha de toda a gente o ano inteiro. Desde o mais baixo ao
bons auxiliares. O Dr. Pero Borges, ouvidor, tinha já mais elevado, todos trabalhavam. Nóbrega e os seus

I
vasta experiência como corregedor no Algarve e tam- colegas edificaram a sua igreja com as próprias
bém em Elvas. Se satisfizesse no Brasil, o rei prome- mãos, os leigos fizeram eles mesmo casas para viver,
tera-lhe nomeá-lo Juiz do Supremo Tribunal do Reino.
Nóbrega descreve Pero Borges como «muito virtuoso» (I)
(l) Carta de Tomé de Sousa para el·Rei, datada de 18 de Julho de 1551.
Torre do Tombo . Corpo Cron. Parte I, ms. 86, doc. 96, Publ. in - Hist. da
(l) Ob . cít, pág. 87. Carta de 1549. Colon. Port. do Brasil, tomo III, pág. 361.
16
242 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 243

e o governador andava pelo meio deles todos de colher «Cidade do Salvador da _Baia de Tod?s os Sant~s»
de trolha na mão, misturando argamassa' e levando foi 0 nome da primeira captta~ do Brasil, conhecida
~os ombros made_ira~ para as casas. E para toda a gente hoje mais simplesmente por Bata. Em Agosto ~e I S49
tmha palavras de mcttamento. «Com isto folgavam todos tinha cem casas construídas e acabadas, ..havta uma
de trabalhar», (1) Até os índios se interessaram e vieram · · esperançosamente chamada d«a Se)) embora
ajudar. tgreJa, .
· da não houvesse btspo, e os mora ores mostravam
Tomé de.. ~ousa deu-se bem com eles, segundo o ::da um as habilidades que tinha» e). A I 3 de Junho
seu mod~ pra~tco. Tratar bem todos e nada de dispa- Corpo de Deus celebrara-se no Salvador com espe-
rates! foi a atttude que tomou. Nenhum branco devia ~ial contentamento. Ao troar da ar~ilharia, uma solene
andar pelas aldeias indígenas a provocar distúrbios
Oc issão atravessou as ruas dda cidade, que estavam
mas quando um que o fez foi morto, o governador nã~ probertas - me d.teva1
de verdura, e, segun o a tra d.tçao
teve compaixão do criminoso. Mandou-o amarrar ~m que a religião se misturava com a diversão, houvera
à boca do cano duma bombarda e fê-lo em pedaços. momos jogos e danças.
Os índios assistiram àquilo apavorados mas sem mos- A toda a volta do Salvador cresciam as plantações
trarem desacordo.
de açúcar e estavam a florescer outras culturas- «a
Sob a direcção do hábil mestre de obras Luís Dias · terra é f;rtil de tudo», (2) observa o P.e Nóbrega-
a cidade crescia a pouco e pouco. As casas particulare; demasiado rica mesmo para certas plantas euro-
eram provàvelmente de madeira e cobertas de colmo peias que davam folhas em profusão, mas não pro-
mas Luís Dias fala ao rei dos edifícios públicos qu~ duziam fruto.
ergueu de pedra e cal e cobertos de telha. Havia uma A saúde geral mantinha-se excelente. Apesar do
casa da Câmara com a sua sala de audiências no trabalho árduo e da alimentação desacostumada, poucos
rés-do-chão, a Tesouraria, a Alfândega um arsenal e homens adoeceram e os doentes depressa melhoraram.
arm~zens: T a_m b"em- porque se a terra
I ' parecia um
Aos portugueses que tinham conhecido as epidemias da
paratso, mfeltzmente os colonos não eram anjos- lndia e as febres da Costa do Ouro, a Baía parecia uma
«asy fazemos cadeya muito boa e bem acabada». (Z) estância de cura.
As muralhas que rodeavam a cidade eram fortes. Se a saúde pública era boa, o P.e Nóbrega confessa
Embora não fossem de pedra, Luís Dias confiava em com tristeza que não podia dizer o mesmo da saúde
que havia~ de durar indefinidamente. Flanquea- moral. Os pioneiros do ultramar têm tendência para
das por dots baluartes que dominavam a baía eram serem duros e bravos; 400 dos que Tomé de Sousa levara
defendidas por artilharia. Pelo menos durante 2~ anos eram criminosos de direito comum, e os colonos
de_viam ser boas - «por ser de paos de mange que se encontrados na terra tinham vivido durante Io, 20 ou
cnam nagoa c sam como fero». mesmo 3o anos à lei da Natureza e fazendo o que
muito bem queriam. Os Jesuítas acharam que estes
(I) Frei Vi::ente do Salvador, Db. cit. , li v. III, cap. I.
(2) Carta de Luis Dias, mestre de obras, datada de 15 de Agosto
d~ 1551. Torre do Tombo. Corpo Cron. Parte I, ms. 86, doc. 111. Publ. in- (1) Frei Vicente do Salvador, ob cit., liv. 3, cap I.
H1St. da Col. Port, do Brasil, tomo III, pág 362, 3, (2) Carta ao Dr. Navarro, ob. cit,, pág. 89.
244 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 245

homens de costumes soltos e de linguagem desenfreada t e coisas próprias para a agricultura:


lhes davam tanto trabalho como os pagãos. Não eram o na vi os mercan es ff ode
dou vacas <<a mayor nobreza e artura que P
praguejar e o questionar de mais difícil correcção. ma~ nestas partes» (1), escreveu o governador, man~ou
A disciplina do governador era severa, o ouvidor esta- ave da Guiné para trabalharem nas plantaçoes,
belecera sanções seculares contra a blasfêmia, e os =~~~~~s casais para po_voarem a cidade do Salvador, e
sermões causavam funda impressão nos homens que . , em 1 55 1 mandou n01 vas.
durante anos não tinham ouvido tais censuras. O pior la Não eram mulheres perdidas ou semi-mundanas,
problema era a faltá de mulheres europeias. mas donzelas virtuosas cuidadosam_ente educa~a~.
Para os homens solteiros prontos a tomar mulheres , t"s d'el-Rei» como são conhec1das, sob a vtgt-
índias, não havia falta, e sabe-se que as noivas não se As
lância«Orada rainha, 'tinham st'do mstrm
· 'd as n~s .artes
mostravam esquivas. Um homem podia fazer a sua domésticas e embarcadas para casarem na Indta ou
escolha e se conseguissem convencê-lo a ter só uma, podia
casar respeitàvelmente; mas havia muitos homens que no Brasil.
Assim a cidade prosperou e aumento~, prepa-
esperavam mulher branca qualquer dia, e por isso rando-se para ser o coração do corpo do Brastl, de on~e
preferiam arranjos temporários. Havia também o pro- o novo Estado iria ser governado politicamente, e sena
blema do homem casado com mulher em Portugal e também a sede espiritual, porque em r55z c?egou um
que procurava consolação local. E havia os proprietá- bispo para ser entronizado na catedral da Ba1a.

tornar-se o modelo para as outras capttamas ~ P 1


rios de terras vastas que podiam e queriam manter um Por essa ocasião parece que o Salv_ado~ estav~ ~
serralha de belezas índias.
Com exortações e com sermões, os bons dos padres menos segundo os padres Francisco Pire~ ~ Vtcente
procuraram trazer os transgressores à noção de pecado. Rodrigues. Todas as questões acabavam raptdamente,
Ao mesmo tempo Nóbrega escreveu ao rei a insistir por nunca se davam roubos, exceptuando entre os depor-
que mandasse mulheres para os colonos. As poucas que tados por esse crime e o praguejar tornara-se raro-
tinham ido com a armada de Tomé de Sousa foram se uma palavra suja ;scapava a um homem, ~le o~~v:
apanhadas num instante - até houve homens que se para os lados para ter a certeza de que mngue
bateram por uma mulher já velha. Que aquelas que ouvira! De facto, declara o P.• Pires, se houvesse
não tivessem encontrado marido no reino tossem para mais mulheres europeias para se c_a~~rem; «Se podera
o Brasil, diz Nóbrega, mesmo que o seu passado não bem chamar esta capitania uma reltgt~o~> ( ); ..
estivesse livre de mácula-e «casarão todas mui bem As outras capitanias, menos pn_v1legtadas, n?0
com tanto que não sejam taes que de todo tenham tinham sido abandonadas pelas autondades centrats.
perdido a vergonha de Deus e ao mundo» e). E a terra Em Novl!mbro de rS4g, Pero de Góis pa~ti!a, levando
abençoada ajudá-las-ia a todas. com ele Pero Borges, o ouvidor, e Antomo Cardoso,
D. João III esperava que sim. Ele tinha tomado a
peito a colonização do Brasil. Todos os anos mandava (1) Carta de Tomé de Sousa, para cl·Rei, datada de 18 de Julho de 1552.
Torre do Tombo. Corpo Cron. Partct I, ms . S6, doc. 96. . bl' d
(2) Carta do P. • Francisco Pires, escrita da Bau e~ 1557, pu tca a
(I) Carta ao Padre Mestre Simão, ob. cit., pág. 80. por Afrânio Peixoto in-Cartas ]uuíticas, 11, Cartas Avulsas, png. 12 8 •
247
C:APlT AES DO BRASIL
246 CAPITAES DO BRASIL

d mente Deixando Antônio Cardoso e o Dr. Pero


provedor da Fazenda, numa viagem de inspecção ao a e.m Sa""0 Vicente no exercício separado das suas
longo da costa. Escreveu Tomé de Sousa ao rei a dizer B orges h •
f nções cruzou em frente à costa roc osa a procura
que c~da um se desempenhou da sua missão o melhor : iratas. Todos os estabelecimentos fervilhavam com
que pode, e cada qual encontrou muito com que se be ;os a respeito de corsários franceses. Eles encon-
ocupar. trO:Vam-se no Rio de Janeiro, tendo vind~ em .grandes
Pero Borges relatou que nos Ilhéus e em Porto navios de 200 toneladas atulhados de artllhana pode-
S~guro ~ncontrara magistrados em funções, os quais rosa! Que forças tinham os colonos para lhes fazerem
nao sabtam ler nem escrever, e condenados fazendo
parte da Vereação municipal. Crimes recentes e anti- frente?Tão-pouco poderia considerar-se que a esqua-
gos aguardavam o jtdgamento, e havia muitas prisões dra de Pero de Góis pudesse inspirar terror. A sua
a. fazer. ;emos também notícias do nosso velho conhe- torça consistia em duas caravelas e ~m pequeno ber-
ct?o Joao Bezerra. Parece que fora para a selva e gantim. Ele disse ao rei que, s~ as umdad~s se c:,ncon-
ah se acolhera com um malfeitor fugido à justiça. trassem convenientemente equtpadas, aqutlo.. nao l~e
O Dr. Borges entregou este criminoso ao castigo diz parecia desproporcionado. Mas quase ~ao havta
ele, mas não se atrev~u a prender o padre- «p~rem homens para manobrarem as velas, ~utto . P.o~c~s
se V. A. ma?dar f~lo e~, porque elle nam vive bem» (1). homens de armas e os oito bombardeuos, dtvtdtdos
O ouvtdor nao fot autorizado a visitar Pernam- pelos três navios,' não sabiam como ~aviam de fazer
?uco, porque Duarte Coelho havia sido isentado da disparar as peças, nem tinham nunca td~ par~ o mar 1
tnte~v~nção dos magistrados da Coroa. Todavia, Em frente do cabo Frio, Pero de Gots avtstou um
A_?tomo .Cardoso, como recebedor da Fazenda Real, galeão -um grande barco de 200 tonelada:;, carre~ado
n~~ pod~a se.r excl~í?o, mas depreende-se que a sua de pau brasil. Uma das caravelas perdera-se de vtsta,
vtstta nao fot um extto, pois indispôs-se com Duarte mas Pero de Góis dentro da outra e auxiliado pelo
Coelho e com o cunhado, o que - comenta Tomé de bergantim, tentou 'atacar o gigante. Infelizmente, diz
Sous~, e~crevend~ ~o rei - fora uma coisa desastrada. ele, as descargas do seu navio foram uma desgraça!
Depois dtsto, Antomo Cardoso não podia voltar a Per- Durante todo o dia não houvera um único homem
nambuco, e o governador não podia ir lá em vez dele. que em 5o tiros acertasse uma só vez no alvo-
Com to~a a certeza, «OS capitães destas partes mere- asemdo ho galleão hua torre!>> (1) E o vento, soprando
cem mutta honra e merce de V. A. e mais que todos em sentido contrário, fez o resto ... os inimigos desa-
D~arte Coelho>> (2), acrescenta Tomé de Sousa, mas,
pareceram.
SeJa como for, ele pensa que é um erro grave isentar Pero de Góis rangeu os dentes de raiva. Se o rei
alguém de visitas de inspecção. mandasse navios maiores para guardar aquela costa,
Como de costume, Pero de Góis portou-se galhar-

d F(l) ~artda de Pedro Borges para D. João III, escrita de Porto St>guro 1 . (I) C~rta de Pero de Góis para el-Rei, datada de 29 de Abril de 1551,
7 bi _ever~Iro e 1550. Torre do Tombo. Corpo Cron. Parte I. Ms. ó7, doc. 8, e~cn~a d~ Bua. Torre do Tombo. Corpo Cron., Parte I, ms. 9], doc. 113, in-
,pu · In-Hut. da Colon. P?rt. de .8ralil, tomo lii, págs., 268, 269. ()p, "t., pag. 322, 323.
(2) Carta de Tome de Sousa, datada de 18 de Julho de 1551, já citada.
248 CAPITAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL 24!}

observou ele mais tarde ao governador, e artilheiros que lhante! «sole da tera>>, (') chamavam-~he eles,.mas não
soubessem disparar, os corsários franceses teriam que
fazer com ele! Tomé de Sousa encolheu os ombros. se a treviam a aproximar-se do. seu bnlho
d radtante. As
es pedaços do metal 1ummoso estacavam-s~ e
Também ele pedira bombardeiros para o reino, disse, ve Z , d'
alavam para o rio, mas os In tos nunca se servtam
e .resJ:onder~m-lhe que os preparasse no Brasil, porque ~eles para adorno pessoal - diziam eles que o homem
ah nao havta nenhum disponível. O facto é que o que usasse aquele metal enfeitiçado, adoecia e morria,
potencial humano estava a dar mostras de esgotamento mas deste metal faziam celhas para darem de comer
numa pequena nação cujos domínios .se espalhavam aos porcos. . . ou assim o compreendera Filipe
do Atlântico ocidental até aos extremos limites do Guilhem!
Oceano Índico.
E contavam-se histórias mais realistas de esme-
Uma presa útil que Pero de Góis trouxe do sul raldas e de outras pedras preciosas. Filipe Guilhem era
foram dois prisioneiros franceses encontrados junto da velho homem <<de muito siso e cuidado», e cosmógrafo
costa do Rio de Janeiro a viver com os índios: «nom habit~ado a calcular a latitude. Ofereceu-se para
os mandey enfforcar por que tinha muita necessidade comandar uma expedição à procura daquelas grandes
de gente que me nom custe dinheiro,>, C) escreve o gover- riquezas, mas «enganamdome a vontade no que a
~ador a? r.ei. Um dos cativos era um intérprete d~ ydade me tem desemganado>>, acrescenta com tnsteza.
hn~uas mdtas, o outro era armeiro- «O quall he o Lembrou-lhe a idade quando atacado duma doença da
mats abell homem que tenho visto porque ffaz bestas e vista, e assim a expedição nunca chegou a partir. .
espingardas e todas as armas>>. A história era estranha, mas por detrás dela podta
Homens que não custassem dinheiro ! Nesta frase haver qualquer coisa. Tomé de Sousa mandou um
Tomé de Sousa resumira não só a sua necessidade Miguel Henriques- <<homem honrado e pera todo care-
mais urgente, mas também a de seu amo, pois além da guo que lhe quisereem dar>> (2)-numa galé recém-cons-
falta de homens, o rei exigia urgentemente novas truída na Baía. Pero Rebelo, piloto com dez anos de
fo?tes ~e rece~ta. As grandes despesas das empresas experiência da costa, partiu com ele. Deviam subir os
one~ta.ts ex~edtam o que o comércio das especiarias rios até onde fosse possível chegar e descobrir tudo o que
podta !~mats pag~r- não. se poderia pedir um pouco pudessem das terras que ficavam para além. A 5 de
de auxtho ao Brasil? «deseJo eu muito saber o que vay Novembro de r55o partiram- e nunca mais se soube
por est~ terr~, escreve o governador, pera ver se poso nada deles até hoje: <<prazerá a Deos •.. que os levara
descobnr algua boaventura pera V. A. pois esta terra todos ao paraizon, escreve Tomé de Sousa, acrescen-
e ho Peruu he todo hum>>.
tando filosoficamente que <<quando a noso Senhor
Filipe Guilhem, mineralogista castelhano veio dos aprouver de dar outro Pernu a V. A. aqui, que a orde-
Ilhéus a contar uma história tentadora. Os' índios de nara quanto e como quiser e nos por muito que
Port? Seguro falavam dum .grande rio do interior que
nascta numa montanha encantada, toda de ouro bri- (1) Carta de Filipe Guilhem para el-Rei, escrita na cidade do Salva-
~or, a 20 de Julho de 1550 Corpo. Cron. Parte I, ms. 84, doc. 109, Publ.
ID' Ob. CÍt pág. 339,
(1) Carta de Tomé de Sousa, cit. 1

(2) Carta de Tomé de Sousa, cit.


250 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 251

madruguemos não ha de amanhecer mais asinha» ! esboço da baía. O rei, dizia ele, devia fundar a!i uma
Como Duarte Coelho, promete continuar a espreitar as grande cidade. Esta terra encantadora. devia ~er
-oportunidades e esperanças para fazer futuras tenta- povoada pelos seus súbditos, nem que. foss~ so por razoes
tivas- mas isto deve fazer-se cccom muito tento e de ordem prática. A pimenta crescia ah- um ano os
pouca perda de gente e ffazenda». Entretanto, não dirá franceses tinham carregado 5o pipas- mas se um forte
nada mais a respeito do ouro, ccse não se o mandar português lá se construísse, os competidore~ não volta-
a V. A». riam Tomé de Sousa teria metido ombros a empresa e
Por fim, em I 55 3, o próprio governador saiu em com;çaria a construção naquele mesmo ano, se dispu-
viagem de inspecção com Pero de Góis e o P.e Nóbrega; sesse de homens.
-<<me pareçe que nisso fiz muito serviço a V, A. he bem O governador deixou com pena aquele .deserto ra-
a terra», escreveu ele ao rei no regresso, ccao menos dioso e continuou para São Vicente. O.que.ah en~ont.rou
fiz todo ho que pude e entendy e guastey tudo o que agradou-lhe muito. Aqui está uma capitama esplendtda,
tinha» (1). escreve ele, «de gramdes agoas e cerras e campos » •
Estivera em toda parte e cuidara da defef,a de A cidade de Martim Afonso na ilha estava florescent~,
todas as pequenas vilas, mandando levantar mura- orgulhando-se de ccHúa igreja muito honrrada e honrra-
lhas onde não as havia, proporcionando a artilharia das casas de pedra e c ali». Mas Santos, a meia lég-;:Ja
necessária e aperfeiçoando o plano das cidades. Todas de distância, tinha muito melhor porto- «todas as
as críticas e sugestões se faziam com modos agradáveis naus do mundo poderão estar nelle». . .
e tacto - porque, observa ele ao rei, não pensava São Vicente e Santos ambas eram pequemnas cida-
.governar despoticamente as pessoas. des de casas construídas dentro de grandes jardins, e
Navegando para o Sul, entrou na encantadora baía espalhadas por aqui e por ali, desprovidas de qualq.u~r
do Rio de Janeiro- a Guanabara dos índios- a tre- espécie de muralhas. Para as levantar agora, dtzta
mular ao calor do sol de verão sob os seus rochedos Tomé de Sousa, seria caro e difícil. O que cada um
·c or de púrpura. Aquelas enseadas azul ferrete a introduzi- devia fazer era levantar a sua própria torre onde lhe
rem-se em meandros por entre os bosques rescendentes a parecesse melhor, ccdesta maneira ficarão bem segundo
-orquídeas, aquelas ilhas fantásticas a pairar acima das a callidade da terra».
águas transparentes, só eram fojo de selvagens e piratas. Duas cidades, pensava o governador, numa ilha
Mas que belo sítio para construir uma cidade! tão pequena como São Vicente, eram de mais e das
Tomé de Sousa, que vira muitos sítios belos da Terra, duas ele preferiria Santos por causa do seu esplêndido
-olhava extasiado para este Paraíso revelado. Ali tudo porto. Martim Afonso não ficaria contente se a cidade
era graça, disse ele ao rei- «quem quiser como deseje que fundara fosse abandonada - ccaynda que lhe
hum Rio isso tem este de Janeiro»! E mandou um acrecentase tres»- pelo que a colónia primitiva ficou
em paz.
Mas Tomé de Sousa fundou duas novas vilas no con-
(l) Carta de Tomé de Sousa, datada de 1 de Junho de 1553, escrita da tinente, uma em Bertioga, a cinco léguas de São Vicente,
~idade do Salvador. Torre do Tombo. Gavetas, 18, maço 8, doc. n. 0 8, Publ,
3n • ob. cit., pág. 36- 46. onde pensava que seria útil um forte, e outra à beira
CAPIT AES DO BRASIL 253
252 CAPITAES DO BRASIL

de D. João Ill. Distava de São Vicente apenas. u':s


do planalto a que deu o nome de Santo André do três graus, e os castelhanos continuavam a mbl-
Campo. trar-se na capitania, levando as suas fazendas para
João Ramalho encontrou-se ali com o governador. vender junto da costa. Tomé de Sousa deu ordemyara
Direito como um pinheiro, com uma saúde de touro ao se interromperem as comuni~ações desta espé~te, e
fim de 40 anos passados no deserto, o formidável mon- mandou destmir as armas reats de Castela que tmha;n
tanhês velho chegou cercado da sua descendência. sido levantadas em vários ponto~ da. costa, ~e Sao
Tomé de Sousa respirou fundo. E fossem-lhe falar Vicente ao rio da Prata, «mandetas ttrar e dettar no
de Diogo Alvares Caramuru! Este grande velho tinha mar e por as de V. A.».
«tantos filhos e netos bisnetos e descendentes delle ho A 1 de Junho de I553, o governador estava de
nom ouso de dizer a V. A., não tem cãa na cabeça nem regresso ao Salvador, escrevendo o relatório para-~
no rosto e anda nove leguoas a pé amtes de yantar». rei aguardando a chegada do seu sucessor, que Ja
João Ramalho e a sua tribo eram por si só núcleo de~ia ter chegado havia um ano. .
de população bastante para qualquer cidade nova. Havia muito tempo que ele desejava esse
O governador nomeou-o capitão de Santo André do momento. Em I 55 I tivera o cuidado de recordar ao
Campo. rei que em Janeiro seguinte teria comple,tado o s:u
Em São Vicente um capitão castelhano apareceu mandato de três anos e esperáva que o penado se nao
diante de Tomé de Sousa. Chamava-se Juan de Sala- prolongasse: «Peço a V. A. por amor de Deus que. me
zar, segundo disse. Ele e 6o companheiros tinham nau- mande ir pera húa molher velha que tenho e hua hlha
fragado a certa distância no sul da costa quando se moça»! (1) O seu desejo era servir o rei em tudo, mas
dirigiam para o rio da Prata. Metade dos sobreviven- estava com grande desejo de tratar do casan;ento
tes eram mulheres, uma das quais viúva do capitão da filha e de voltar a ver a mulher-<< se forem v1 vas»
Fernando de Saraiva, e oito ou nove das restantes acrescenta ele ansiosamente (a tal distância como é
também eram fidalgas. que uma pessoa podia saber?) «que depois que cá estou
Mulheres! E casadoiras, ao que se supunha! me aconteceo escrever a quem está no outro mundo».
Fosse todo esse grupo de naufragados já para São E contudo- por entre esses as~altos de no.stalgia,
Vicente! exclamou o governador. E mandou logo um sentia a fascinação do Brasil, d~s~a ltnda terra vtrgem e
navio para os trazer imediatamente, enviando muitos bárbara, portentosa com a glon~ do futuro. F~l~n~o
presentes para suprir as necessidades deles. «E parti <:om o seu amigo Nóbrega, ~om~ de Sousa d1z1~ as
com elles desta pobreza minha que llevava», escreveu vezes sentir que podia ser feltz vtvendo no Brastl-
Tomé de Sousa ao rei, e que, acrescenta, constituía não como governador, nem com qualq~er c~rgo oficial,
as suas economias de 3o anos! mas como colono nas suas terras; «e mmto contente
Os castelhanos eram bem recebidos como colo- desta terra, escreveu Nóbrega ao Provincial de Portu-
nos, mas não como invasores dos domínios portugueses. gal, e acha-se muito bem nella». Se o rei quisesse casar
A cidade de Assunción que tinham edificado no inte-
rior, observa o governador, segundo o seu cômputo da (I) Carta de 18 de Julho de 1551, já cita:la.
latitude, devia ficar compreendida dentro do hemisfério
254 CAPITAES DO BRASIL

a filha dele honradamente e mandar a mulher ter com


ele ao Brasil, Tomé de Sousa quereria sem dúvida ficár,
e isso- acrescentou o padre- <<Será grande favor
da terra>~ C).
O P.• Nóbrega não escondia a sua apreensão
pensando que um novo governador iria desfazer a boa
obra de Tomé de Sousa. E disse ao rei que nenhum
homem faria melhor ou mesmo tão bem - c< Os meus
desejos em Nosso Senhor são que ou elle se não vá ou
façam outro por elle, porque o maior mal que lhe
achamos é ser um pouco mais amigo da Fazenda de XVII
Vossa Alteza do que deve» (1).
Boa recomendação, na verdade, para um rei!
Mas aconteceu que o novo governador já estava esco- Os Missionários
lhido. Uma manhã de Julho, Tomé de Sousa foi
cumprimentado pelo meirinho que lhe pediu alvíssaras
por lhe trazer boas novas. D. Duarte da Costa chegara «Esta terra é nossa empresa, e o mais Gentio
para o libertar do seu cargo oneroso. O navio estava a (sic) do mundo» (i)!
entrar na baía! O P.e Nóbrega olhava e via à sua volta o paraíso
Era a ocasião com que Tomé de Sousa sonhara verde e ouro, a tremeluzir à luz eterna, mas no seu espí...
tantas vezes durante os últimos quatro anos. Quantas rito pairava a sombra dum grande negrume. Aqui, nesta
vezes ele antegozara a emoção de receber tal notícia- terra matutina, as almas dos homens perdiam-se na
e contudo : «Vedes isso, meirinho? Verdade é que eu noite antiga. Poderia fazer-se ver olhos tão cegos?
desejava muito, e me crescia a agua na boca quando Nunca duvidou que se pudesse, mas o campo
cuidava em ir para Portugal; mas não sei porque agora era vast<;> e ?o~cos os trabalhadores, que ainda
se me seca a boca de tal modo que quero cuspir e eram ~a~s preJudtca~os do que ajudados pelo exemplo
não posso» ! (3). ~os~ c~tstaos de nasctmento. Pregar um Deus de mise-
nco.rdta e de amor e justiça àqueles que muitas vezes.
deviam ver deportados criminosos e de coração empe-
dernido e mãos maculadas de sangue professando-se
sequazes desse Deus, não era missão fácil. Os Jesuítas..
teriam gostado de vi-y-er longe da colónia e!!ropeia,
mas os brancos requenam também o seu ministério na
{1) Carta de Nóbrega para o Padre Provincial, datada da Baia de 1552, ausência de clero regular, além de que o governador-
já citada.
(2) Carta de Nóbrega para .C. João III, datada de 1552. Publ. ín- Cartas
do Brasil, pág. 134. (I) Nóbrega, Cartas do Brasil, pág. 82.
(3) Hisr. da Colon. Port. do Brasil, tomo III, Introdução, pág. LV.
::256 CAPITAES DO BRASIL

desejava que eles ficassem ao abrigo dos muros da


cidade. Deixou-os escolher o melhor sítio para edifica-
rem o seu colégio, mas dentro da cidade não havia
nenhum realmente ideal-« Não tem onde se possa fazer
horta, nem outra cousa», (1) disse Nóbrega, e era neces-
sário terreno para preparar a futura expansão.
Por fim encontraram o que procuravam, num
monte fora da cidade, sítio agradável, com uma linda
vista sobre o mar, bom abastecimento de água e amplo
~spaço à volta para a cultura. Ali o P.e Nóbrega estaria
bastante perto para exercer o ministério junto dos
cristãos do Salvador, enquanto o vigário geral não
chegasse de Portugal; e também estava muito perto
duma aldeia índia. O único inconveniente deste sítio,
.acentuou o governador, era não se encontrar dentro
das muralhas. Se rebentasse a luta com os índios,
que aconteceria? Não nos farão mal! respondeu o
P.e Nóbrega.- vimos e vamos, já comemos e dormimos
nas suas aldeias e sentimo-nos perfeitamente em segu-
rança «pela affeição que já nos começam a ter» (2).
E era verdade. Os índios gostavam dos padres.
Aqueles homens bondosos, que se esforçavam tanto por
lhes falar na sua própria língua, que censuravam qual-
quer branco que quisesse fazer-lhes mal, que nunca
pediam presentes como faziam os seus feiticeiros, mas
que andavam pelo meio deles a fazer o bem, tratando
dos doentes e ensinando aos seus filhos coisas maravi-
lhosas, em breve se tornaram amados.
Diogo Alvares Caramuru foi o primeiro interme-
diário. A sua família índia, a maior parte de cujos mem-
bros não falavam uma palavra de português, estava toda Padre Manuel da Nóbrega
preparada para meter mãos à obra . Claro que eles
trouxeram os seus amigos e ajudaram a estabelecer

(1) Ob. cit ., pág. 83.


(2) Ob. cít., pág 84.
CAPITAES DO BRASIL 257

os primeiros contacto~, mas ~esmo dentro e nas


circunvizinhanças da ctdade havta uma grande quan-
tidade de mestiços para catequizar, de mulheres
indígt>nas para baptiz é: r . e casar legalmente,, al~m de
que os brancos estábelectdos em volta da Ba1a tmham
muitos escravos índios para evangelizar.
Entre gente desta as conversões eram fáceis.
Senhores que não se preocupavam com ministrar reli-
gião aos seus escravos nem com praticá-la eles próprios,
aceitavam de boamente que os ensinassem a rezar e a
vestir-se para irem à missa. O problema era arranjar-
-lhes roupa !
No século XVI o nudismo considerava-se quase
um pecado, e na igreja seria, evidentemente, um sacri-
légio, mas na incipiente cidade do Salvador mal havia
roupas para todos. Os padres deram tudo quanto
tinham trazido, porque, escreve Nóbrega- seria atroz
«que por falta de algumas ceroulas deixa uma alma de
ser christã e conhecer a seu Creador e Senhor»! (1)
Assim arranjou-se qualquer coisa para toda a gente e
todos foram arrebanhados. Durante as primeiras sema-
nas desde a chegada dos missionários houve grande
quantidade de baptismos entre os índios que tinham
vivido em contacto com os brancos, e esses conversos
foram apartados para instrução e orientação.
Mais difícil era tratar com a população flutuante
da grande floresta, que ia e vinha, e olhava admirada
para os brancos e as suas obras antes de voltar para
a sua vida misteriosa. Pareciam todos interassadís-
sim~s por tudo Quando o sino tocava para a missa,
cornam para a porta da igreja; ouviam maravilhados
a música dos salmos; seguiam satisfeitíssimos atrás
das procissões religiosas ; pareciam beber os sermões
expostos pelo intérprete; quando lhes mostravam livros,
(I) Oh. cít, p.ig. 74.

17
258 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 259

ficavam admirados e queriam aprender a ler; alguns ·ros eram levados para cada um dos campos.
pediam mesmo para ser baptizados e começard a net
0 P.• Azpilcueta Navarro, ao atra!e!sar uma a ld et~, ·
receber instrução- mas um dia desapareciam na ficou horrorizado ao ver um caldetrao a ferver ~heto
floresta. de cabeças e pés e pernas humanas, enquanto se~s .ou
Os padres seguiam até às suas aldeias. Aí o feiti- sete mulheres dançavam em redor como demomos
ceiro- o pagé- perorava e trovejava, gesticulava e enlouquecidos. « Vis, .Domine, ut descend~t ignis de ccelo
batia com os pés, pedia oferendas para aplacar os et consumet íllos ?» fot a palavra da Escntura qut> logo
espíritos da selva e os índios ouviam-lhe as palavras ocorreu ao padre. Mas então lembrou-se da res-
com tanta curiosidade como tinham ouvido as dos posta do Senhor. ((Nom veni perdere animas sed sal-
sermões cristãos. Acreditavam eles nas coisas que o vare>> (1). E .o ,se~ cor.a~ão enchia-se de esperança de que
pagé lhes dizia? perguntavam os missionários. Os índios pela misencordta dtvma dentro em breve estes costu-
diziam que eles podiam falar verdade ou não. mes pavorosos seriam abandonados e as águas do
Sons mais temerosos se ouviam de noite dentro Santo Baptismo lavariam os seus pecados.
destas aldeias- cantos infernais desenfreados, o baru- Entretanto, ele fazia recriminações todas as vezes
lho do bater dos pés na dança, gritos de gelar o sangue que se lhe deparavam tais horrores, embora os seus
que se elevavam no ar, e a luz da manhã via a vítima ouvintes o ameaçassem de o atirar também para dentro
emplumada abatida a golpes da maça, o seu corpo do caldeirão se ele desse mais uma palavra! O intérprete
agarrado pelas harpias que aguardavam para o fazerem calou isto, ((Então quando isto vi, comecei-lhes a falar
em pedaços. do que sabia>>, (2) diz o P.e Navarro, e falou com tal efi-
Espectáculos destes eram impossiveis de suportar cácia, que eles prometeram suspender o festim e enterrar
pelo espectador cristão. Um dia, sem se importarem o pobre corpo humano.
com as consequências, os padres ãgarraram pelos pés Arrancar a vítima viva das garras dos captores
a vítima inerte e, antes de os abutres voltarem a si da raras vezes se conseguia, mas se o corpo não podia
surpresa, o trágico trofeu foi depositado em sepultura salvar-se, não haveria probabilidade de lhe salvar a
decente num lugar secreto. alma? Não poderiam os missionários ser autorizados a
As harpias, recobradas da surpresa, incitaram os pregar o Evangelho ao cativo que aguardava o
homens a vingar o ultraje que os privara do festim. sacrifício ?
Espicaçada pela fúria, toda a aldeia partiu à caça dos Os índios não puseram a isto qualquer objecção.
padres até aos muros da cidade. Teria havido um Assim foi que às vezes um prisioneiro, engordado e
assalto, se o governador não tivesse chamado as tropas. enfeitado com penas, enquanto aguardava o seu timt
Ante a ameaça das armas de fogo, os índios prome- ouvia boas novas de um Deus de amor que morreu
teram portar-se bem-o que simplesmente queria dizer duma morte horrível na Terra para salvar as almas do~
que a proeza não se repetiria tão perto da cidade do homens. E problemático que ele pudesse compreender
Salvador.
. (1) Queres, Senhor, que desça o fogo do céu para os consumir ? Ob cit··
No interior bravio em volta da baía, as tribos pag 52. · ,
rivais continuavam a guerrear-se de morte, e os prisio- (2) Ob. ~it . , pág. n
260 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 26l

em tão pouco tempo alguma coisa - provàvelmente Mesmo cristãos baptizados costumavam recair no
apenas compreendia que o estrangeiro lhe oferecia canibalismo e devorar os seus prisioneiros de guerra,
uma esperança radiosa. Queria então ser baptizado? como os missionários viam com desgosto. Na ocasião
perguntava o padre. A resposta era de costume afir- mais inesperada, esbarràvam com essa prática como
mativa. Derramava-se a água lustrai, fazia-se o sinal uma pessoa pode ir de repente de encontro a uma
sagrado na testa. A vítima era a seguir abatida à mâça, parede. Conta-se repetidamente a história dum bom
mas os padres rejubilavam- uma alma seguira para padre, que encontrou uma velha moribunda e lhe pregou
o Céu! o Evangelho na sua desolação. Tendo-lhe cuidado da
Parece que isto aconteceu di versas vezes, até que alma, o bom do homem disse-lhe:
alguém se queixou, o que foi repetido e confirmado por -«Minha avó, se eu vos déra agora hum pequeno
todos, de que o baptismo prejudicava o sabor da carne de açucar, ou outro bocado de conforto de lá das
humana ! A água sacramental tirava-lhe todo o pala- nossas partes do mar, não o comerieis»?
dar. De futuro os prisioneiros não seriam baptizados! - <tMeu neto! suspirou a doente, nenhuma cousa
Os padres, com uma piedosa fraude, ladearam a da vida desejo, tudo já me aborrece; só huma cousa me
dificuldade. Podia levar-se fàcilmente dentro da manga pudêra abrir agora o fastio: se eu tivêra huma maõsi-
um lenço ensopado em água. Algumas gotas espargidas nha de hum rapaz Tapuya de pouca idade tenrinha, e
sobre a testa do paciente quando ninguém estivesse a lhe chupara aquelles osinhos, então me parece tomára
olhar, enganariam o demônio. algum alento; porém eu (coitada de mim) não tenho
Os índios não nutriam hostilidade pelo Cristia- quem me vá frechar a hum destes» (1)!
nismo. Não havia lealdade a uma religião rival a vencer De vez em quando, fazia-se uma genuína conversão
como acontecia aos missionários da fndia. Como de alguém que renunciava, ~om sinceridade e do fundo
Nóbrega observou, os seus espíritos eram como o papel do coração, ao canibalismo, à poligamia e à guerra
branco em que nada se escrevera ainda. A pregação que de represálias ; mas eram muito poucas. Os costumes
eles ouviam parecia-lhes maravilhosa. Estavam prepa- anc~strais estavam profundamente enraizados, ao que
rados para adorar Deus da maneira que os missionários havta a acrescentar a vida irrequieta da tribo, que era
lhes ensinassem, mas não para reverem o seu próprio um grande obstáculo à contínua instrução. As suas
código moral, ou antes as normas dos costumes tribais. aldeias não eram permanentes, mas mais acampa-
De tudo o que o C~istianismo requeria dum homem, mentos do que lugares fixos, e às vezes desapareciam
o mais difícil para o Indio consistia na abstenção da durante uma noite. Um homem embriagado lançava fogo
carne humana. Para ele, esta era o melhor, o mais deli- num frenesi, à sua choça, e as chamas varriam ràpida~
cioso, o mais nutritivo dos alimentos; comê-lo simboli- mente todas as outras cabanas de palmeiras e vimes.
zava a mais nobre vingança que podia tirar do inimigo Outra dificuldade com que havia a contar eram
- a que havia a acrescentar o argumento de que os os pagés. Não eram membros dum sacerdócio, que não
seus antepassados sempre a tinham comido, pelo que
eles deviam fazê-lo também. Era o costume, e para os . I (!) 4V9:~seoncelos, CbroniC'a da Campanbia de Jesus do Estado do Brasil
1IV. o pag. . L
selvagens estava tudo dito.
262 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 263

pode existir onde não existe divindade. Eram feiticei- música em especial, e fàcilmente se podiam ensinar
ros poderosos. Um pagé vivia sozinho numa choça a cantar hinos com grande satisfação dos pais.
escura em que se não podia entrar senão de rastos. Os índios eram pais extremosos, e interessar-se
Estava em comunicação com os espíritos maus da pelos seus filhinhos era um meio. seguro de lhes. tocar
selva, e conhecia as ocasiões propícias para partir o coração. De boa vontade deixavam as cnanças
para a guerra ; como um vampiro, sugava o sangue dos seguir os bondosos estrangeiros para aprenderem com
doentes que era chamado a tratar. eles algumas das belas coisas que os brancos sabiam
Transmitia os seus oráculos pela boca de um fei- fazer.
tiço especial, que consistia numa cabeça pintada com o Neste trabalho, Nóbrega recebeu uma ajuda ines-
aspecto dum rosto humano e toda enfeitada com penas. perada. Quatro padres jesuítas foram juntar-se à
De vez em quando o objecto exibia-se publicamente, missão do Brasil em I55o e levaram com eles sete
e o pagé, que era ventríloquo, fazia-o falar enquanto se pequenos órfãos, mandados de Lisboa para evangeli-
erguia uma exaltação histérica, as mulheres caíam ao zarem as crianças índias!
chão e esperneavam a espumar, nas convulsões mais O autor desta ideia ousada era o P.e Domenech,
horríveis. catalão, pioneiro na obra de salvação dos jovens. Três
Os patjés odiavam os Jesuítas, considerando-os séculos antes do Dr. Barnardo e dos seus recolhimen-
seus rivais na prática da profecia e da medicina, e tos (I), quatro séculos antes do P. e Américo, este homem
sentiam-se ofendidos por eles prestarem os seus servi- notável tinha percorrido Lisboa à procura de rapazes
ços de graça. O P.e Nóbrega estava havia pouco tempo perdidos. Ali recolhera rapazinhos, vagabundos que
fia Baía quando teve um atrito com um pagé, na oca- viviam de expedientes, aprendendo a roubar e a come-
sião em que os dois discutiam em público perante a ter crimes, e tomara-os ao seu cuidado para os educar
aldeia reunida. O feiticeiro, parece, foi contundido e como cristãos e membros úteis da sociedade.
converteu-se realmente, mas tal milagre era raro. Embora A «Casa dos Meninos Órfãos» que fundou em Lis-
o selvagem adulto muitas vezes pedisse o baptismo, boa, prosperou extraordinàriamente, e os seus habitantes
quando chegava a ocasião de ter de mudar de vida, raras transtormaram-se de maneira admiráveL De tal modo
vezes ia por diante. Os missionários viram em breve que em I 5 5o sete foram escolhidos para se instruírem
que a sua principal esperança estava nas crianças. Se para as missões do Ultramar, entre os quais se encon-
os pequeninos pudessem ser atraídos para se educa- travam ~s primeiros quatro salvos pelo P.e Domenech.
rem na fé cristã, surgiria uma geração não contami- . Os JOV,e~s do século XVI tomavam-se a si próprios
nada pelo costume pagão. mutto a seno, e estes rapazes nunca duvidavam da
As crianças índias eram almazinhas comunica- sua vocação. Ninguém podia desanimá-los embora
tivas e espertas, como os Jesuítas observavam. Os
. o ~e~t_!lssem. Amigos e parentes, que eram
muttos ' autori-
pequenitos nus foram os seus primeiros mestres na zados a VISita-los de tempos a tempos, escarnerciam de
língua da terra. Brincando com eles, os padres apanha-
vam palavras índias, as crianças aprendiam o nome P> Filantropo inglês do século passada, fundador e director de asilos
de Jesus e a fazer o sinal da Cruz; eles amavam a para crianças desamparadas.
264 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 26.>

tal ideia: «Vos sois ainda meninos e sabeis pouco para produzido alimento, o governador, cccomo zeloso e
ensinar» (1) diziam-lhes, mas eles respondiam, cheios virtuoso que é», ofereceu-se para suprir a todas as
de esperança: «Deus é grande e nos esforçará e ensi- necessidades das crianças, aliás elas estariam bastante
nará aquilo que havemos de dizer.» Que ideia, irem mal porque embora também se recolhesse o produto
para o Brasil! exclamou alguém. A gente morria lá ou du~ peditório feito na colônia, as ofertas recolhidas
era comida pelos canibais! Também se morria em mal chegariam para uma única refeição.
Lisboa, retorquiam os pequenos missionários, e os Embora estes primeiros dias fossem difíceis,
vermes comiam as pessoas. Não era isso mau também? Nóbrega esperava grandes coisas no futuro. Contava
Foram todos em procissão até Belém a cantar, e a ter zoo estudantes no seu Colégio dos Meninos de
cantar embarcaram, depois duma despedida emocio- Jesus, a maior parte deles crianças índias. A sua man-
nante. Os seus camaradas, que tinham vindo com o tença já não seria um problema uma vez que a terra
P.e Domenech para se despedirem deles, 'estavam se cultivasse. Alguns escravos- ou talvez os pró-
banhados em lágrimas, e gemiam e soluçavam durante prios pais das crianças -iriam caçar ou pescar
o regresso a casa, enquanto o galeão descia o rio ao para eles, e plantar-se-ia algodão para se fazer
som de hinos. a roupa.
Temos a impressão de que o P.• Nóbrega ficou Entretanto as vacas que o rei mandara de Por-
um pouco desapontado quando viu os trabalhadores tugal dariam o leite. Nóbrega adquiriu a crédito doze
que lhe tinham mandado para a sua vinha. Soldados vacas e três escravos da Guiné que ajudariam no
para treinar para Cristo e estudantes para o seu trabalho das plantações, e esclareceu que tudo
Colégio - tudo isto estava muito bem. Mas, como o que existia na propriedade pertencia aos «Meninos»,
haviam eles de viver? As crianças índias podiam ser não a ele ou aos seus colegas. Para a sua própria
mantidas com pequena despesa, mas os rapazes euro- alimentação, os Jesuítas resolveram aceitar esmolas,
peus eram mais dispendiosos. E cc por razão da terra ser para que não se pudesse dizer que andavam a
nova, e pouca gente nella, que lhe pudesse dar esmolas juntar bens para si mesmos. Quando se encontravam
por serem os mais degradados e outra gente pobre e na cidade, podiam comer em casa do governador, onde
miseravel.» (2) havia mesa franca para toda a gente que necessitasse;
Nóbrega falou acerca do assunto com o governa- e aí- escreve Nóbrega- «agora uma vez ao dia
dor e resolveram que a única coisa a fazer era os comemos de maneira que é melhor que duas que antes
Jesuíias irem para a terra imediatamente, e edificarem comiam os em casa». (I)
e plantarem com as suas próprias mãos, ajudados por Apareceram alguns auxiliares para ajudarem à
alguém que se oferecesse, e até as sementeiras terem construção, e outros brancos emprestaram os seus
escravos. Com tal ajuda os padres ergueram editícios
de adobe e palha, e limparam o terreno à volta, e
(1) Carta que o abade Pero do meneque (Domenech) escreve de Lisboa aos
Irmãos da Comp.• de Jesus do Collegio de Coimbra aos 27 de Jandro de 1550.
Ms. da Biblioteca Pública de Evora, cód . VIII, 2/1, fls. 152 v.- 153 v.
publ por Serafim Leite, Broteria, Julho de 1933, pág 40 (1) Ibid , pág. 140
(2) Nóbrega, Cartas do Brasil, pág. 138.
'266 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 267

cavaram os campos, e cada um se encarregou da sua tristes coisas. Os dois foram também veriticar cca saber
missão especial. o fructo que na terra se pôde fazer>> (1) antes de des-
Artífices habilitados havia muito poucos, por isso, cerem a costa até São Vicente.
escreve o P.e Antônio Pires, cca necessidade nos faz Nóbrega tencionava partir logo, mas entretanto
aprender todos os officios; porque de mim vos digo estava muitíssimo ocupado, não só com a organização
que pelos officios que nesta terra tenho aprendido de todo o trabalho da missão, como com o sacerdócio
poderia já viver»! (1) Ele tornara-se em especial um entre a população branca. Só por si isto podia ter cons-
hábil carpinteiro, embora lhe faltassem ferramentas, e tituído fàcilmente trabalho para todo o tempo, do que ele
também um útil trolha juntamente com o P.e Manuel esperava ficar aliviado com a chegada de um vigário
de Paiva, um dos recém-chegados. O irmão Vicente geral. Os poucos padres leigos que havia entre os
Rodrigues era o principàl hortelão que pedià lhe man- colonos considera-os francamente ccescumalha», e não
dassem do reino muitas sementes. Tinha também voca- há razões para duvidar da sua palavra. Alguns deles
ção para ensinar crianças, e tornou-se o rnestre-escolà provàvelmente eram até degredados que serviam como
com quem os pequenos índios e os mestiços àprende- castigo por crimes seculares. Uma vez que o prometido
rãm com facilidáde a ler e a escrever. bispo chega~se com toda a hierarquia correspondente,
O P.• Navarro também ensinava a ler, a escrever e Nóbrega esperava ver-se livre para dedicar os seus
a rezar, e era o melhor linguista da missão. Ao fim de esforços inteiramente aos indios. Já estava a fazer
três meses já sabia pregar aos índios na sua própria muito por eles, embora com a sua gaguez não conse-
língua. Julgava-se que aprendera tão fàcilmente guisse nunca dominar a língua deles, mas pregava
porque a língua tupi se assemelhava ao seu vasconço ajudado por bons intérpretes.
natal! Não só a falavs, mas estudou corno reproduzir Os rapazinhos de Lisboa nisso levavam-lhe van-
por escrito a linguagem dos brasileiros. Traduziu par- tagem. Não levou muito tempo a poderem con-
tes da Escritura- a Criação do Mundo, a Incarnação, versar com os seus pequenos companheiros. No seu
e os Dez Mandamentos, além dos artigos de Fé e a papel de missionários, os rapazes fizeram grande
Oração Dominical. Devido ao seu dom especial, era sucesso. Onde quer que aparecessem, logo as crian-
principalmente empregado como professor itinerante e ças indias os rodeavam. Junto5 riam e brincavam
catequista, visitando as aldeias afastadas, onde pregava e faziam-se festas mutu_amente. Quando os rapazes
aos adultos e ensinava as crianças a cantar as orações brancos voltavam ao Colégio, os seus pequeninos ami-
que traduzira, em vez dos cantos «diabólicos e las- gos seguiam-nos e aprendiam com eles a rezar as ora-
civos>>, os únicos que eles sabiam. ções cristãs e a cantar cânticos sagrados.
O P.e Leonardo Nunes fora enviado para os Ilhéus Os .Pe~uenos índios gostavam daquilo tudo e os
com o P.e Diogo Jácome para exercer o ministério com seus pats hcaram encantados com a sabedoria das
os colonos de quem Nóbrega diz que ele ouvira contar crianças brancas. Com alegria deixavam os filhos ir

( .) Carta do Padre António Pires, de 2 de Agosto de 1551, pub!. in- (1) Ibid ., pág. 71.
Cartas Avulsas, pág. 84. ' . -
268 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 269

aumentar o número do «Colégio dos Meninos», extra- teriosas pegadas nos rochedos de Paripe, algumas
muros do Salvador. léguas ao sul .do Sa~vad?r, na costa. Os í}l~ios diz!am
Ali os pequenos alunos saboreavam a vida. Apren- que tinham stdo ah detxados pelo lendano Sume-
diam a ler, a escrever, a cantar e a tocar flauta. Os homem barbado que muitos anos antes viera de além
rapazes brancos sentiam vaidade em desempenharem o dos mares e ensinara aos seus pais tudo o que sabiam,
papel de guias e instrutores dos seus companheiros antes de desaparecer do meio deles. S. Tomé, eviden-
índios, que, por sua vez, ficavam contentíssimos em temente! disseram os portugueses quando pela primeira
transmitir conhecimentos à família. vez ouviram a história em I 5 I4. Os Jesuítas confirma-
Todos amavam em especial as excursões missio- ram que se tratava, obviamente, de S. Tomé; aquelas
nárias, quando nos dias santos um ou outro dos padres pegadas indicavam um lugar sagrado.
levava os pequenos a dar uma volta pelas aldeias cir- Metendo-se pelos pântanos e tropeçando nas
cunvizinhas. Iam em procissão dois a dois ou três a pedras à beira-mar, feri.nd~ as pernas nas conchas ~as
três, levando a cruz alçada «pregando Cristo a grandes ostras, os rapazinhos atmgtram as rochas .escorregadtas
vozes», (I) enquanto iam seguindo e cantando hinos. que a maré deixara a descoberto, e viram «quat~o
A recepção variava de aldeia para aldeia. Numas, pisadas mui signaladas com seus dedos>> (1). Parecia
onde os pagés tinham convencido o povo de que aquilo que um homem escorregara enquanto corria, observa-
era uma nova forma de feitiçaria, os pais escondiam ram os rapazes «e a pedra deu lugar a seus pés como
os filhos com medo do mau-olhado e atiravam sal e se fosse barro, assim se abaixou e humilhoU>>, (2) pensa-
pimenta ao lume, na esperança de afugentar os visi- mento muitíssimo edificante!
tantes com o fumo. Outros, pelo contrário, saíam ao A aldeia vizinha recebeu os peregrinos de braços
seu encontro com danças e canções. abertos, e em breve se esqueceram todas as dificul-
Um índio, conhecido pelo «Grilo», chete muito dades da jornada. Dançaram com os habitantes e can-
respeitado, insistiu para eles construírem uma casa taram canções na língua índia, a mulher do chefe
para si próprios próximo da sua e ficarem junto dele levantou-se e veio saltitar com eles e levou-os a um
para sempre. Este «Grilo» era um amigo dos brancos Iimoal onde se regalaram com limões.
e achava que sabia entretê-los. Não só tinha duas redes Cantando «cantares de Nosso Senhor•, levaram
prontas para hóspedes de passagem, mas também um toda a aldeia a ver as pegadas. De pé sobre as marcas
«livro muito bom» (2) -adquirido não sabemos como do santo, entoaram um hino ao Espírito Santo. Os
-que apresentava a quem quisesse ler, além de um indios, satisfeitíssimos, pediram aos seus hóspedes que
baralho de cartas para dar prazer aos de espírito mais ficassem e abrissem ali uma escola para ensinar-lhes
frívolo. os filhos. Por isso o irmão Vicente Rodrigues e dois
Em I 55 2 fez-se uma romagem memorável às mis- alunos ficaram. Deram-se as despedidas e os outros

(1) Carta dos Meninos do Colégio de Jesus ao Padre Domenech.


In-Novas Cartas Jesuíticas. publ. por Serafím Leite, pág. 143, (I) Nóbrega Cartas do Brasil, pág. 101.
(2) lbid. (i::) Carta dos Meninos, cit.
270 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 2'71.1

romeiros regressaram, todos contentes, ao que parece, vizinha vinham à cidade e misturavam-se pacifica--
embora mordidos pelos mosquitos. mente com os colonos. Nóbrega achou estes índios mais.
Quando chegaram a casa, Nóbrega fez cinco dos amáveis e mais próprios para ensinar do que em qual-
rapazes escreverem uma carta ao P.• Domenech a des- quer outra parte, por ccter a terra Capitão, que não con..
crever aquilo tudo, exercício que talvez lhes fosse sentiu fazerem-lhe aggravos como nas outras partes» (1).
menos agradável. Materialmente, Pernambuco era bastante agra-
Os «meninos» mostraram ser de tal utilidade para dável, mas moralmente não era melhor do que o resto
a missão, que onde quer que os padres abrissem novas -talvez ainda pior! Onde havia muita gente havia
missões ao longo da costa, levavam um ou dois dos muitos pecados, escreve Nóbrega. Os fazendeiros des-
seus pequenos alunos consigo para constituírem um preocupados tinham numerosas concubinas, havendo.
núcleo para cada colégio fundado por eles. cc Princi- poucos homens realmente casados. Alguns não se
palmente pretendemos ensinar bem os moços, escreve tinham confessado ou comungado durante 20 anos.
o P.• Nóbrega, porque estes bem doutrinados e acostu- Quanto aos padres locais, de que parece havia meia
mados em virtude, serão firmes e constantes, os quaes dúzia, Nóbrega, que nunca fez muito doces as suas.
seus paes deixam ensinar e folgam com isso, e por isso palavras, chama-lhes demônios.
nos repartiremos pelas capitanias, e com as línguas que Não censura o capitão nem a mulher por este
nos acompanham nos ocupamos nisto, aprendendo estado de coisas. Duarte Coelho e D. Brit;s são um
pouco a pouco a língua, para que entremos pelo sertão par virtuoso, diz ele, e quaisquer erros que praticassem
dentro, onde ainda não chegaram os Christãos» (1). praticaram-nos por ignorância. Ambos eles recebera~
Entretanto o P.• Nóbrega, levando consigo o os. Jesuítas entusiàsticamente. Todavia, não podemos.
P.• Antônio Pires e vários «meninos», aproveitou-se detxar de perguntar a nós próprios se Jerônimo de
da primeira oportunidade para visitar Pernambuco. Albuquerque- esse fácil coleccionador de noivas.
Depois da recém-fundada colônia da Baía, ainda índias- ficou muito satisfeito com vê-los.
muito rude e grosseira, Pernambuco deve ter parecido Os padres Nóbrega e Pires lançaram-se logo ao tra..
avançada e antiga. Era a mais populosa das capitanias b.a~ho, pregando e ensinando, ouvindo confissões, recon ...
e também a mais próspera. A pequena cidade de cthando os desavindos à porta da igreja, casando todos.
Olinda alargara-se, enquanto a de Iguaraçu progrediat os q~e queriam- e podiam- casar-se, separando os.
e a toda a volta havia fazendas onde o gado pastava e casats que não podiam, enquanto arranjavam a vinda.
floresciam as canas de açúcar e os colonos brancos ~as esposas ausentes no reino. Pernambuco, ao contrá-
criavam as suas famílias de pequenos brasileiros- uns no das outras capitanias, não precisava então de don ...
brancos, outros morenos, outros pardos. Os escravos ~elas casadoiras- «Por haverem muitas filhas de.
negros da Guiné faziam andar os engenhos; os caça- omens brancos e de Indias da terra, as quaes todas.
dores negros torn~ciam o peixe e a caça para os seus agora casarão com a ajuda do Senhor». (2) :·
amos brancos; as tribos de pagãos da floresta circun-
((~)) Obb cit, pág. 124. Carta para e!-rei D. João III .
(I) Nóbrega, Cartas do Brasil, pág. 115. I 1d, pág. 126.
272 Ct\PlTAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 273

Daí a pouco revelou-se uma enorme melhoria em Entretanto eram um punhado ante a estupenda
Pernambuco. Mesmo entre os padres locais, ao princí- missão. Centenas de léguas de costa, seis ou sete coló-
pio tão hostis aos recém-chegados como qualquer pagé nias brancas espalhadas pela sua extensão, tribos
indio, muitos reconheceram ter pecado e emendaram-se. selvagens indomáveis pelo meio, e milhas incontáveis
Os índios da colónia correspondiam muito ao que de terra pagã desconhecida para o Ocidente. Para
se lhes pedia, especialmente as mulheres. Uma mulher ocupar este vasto reino em nome do Senhor, em I 55z
idosa, que vivera durante anos na colónia, foi escolhida havia só dez missionários.
para vigiar as suas companheiras e levá-las à igreja, Eles fizeram o melhor que puderam. P.e Afonso
iunção que ela desempenhou com zelo excessivo. Saindo Brás batia-se no Espírito Santo; P.e Navarro fora man-
.com uma vara na mão, obrigava-as a levantar antes da dado para os Ilhéus onde trabalhava com toda a força;
alvorada e literalmente fazia-as entrar à vergastada. P.e Pires mourejava em Porto Seguro; desde I 5 5o,
Muitos dos filhos mestiços de índias e brancos - P.• Leonardo Nunes, com P.e Diogo Jácome, estivera
-os mamelucos, como lhes chamavam - haviam-se a trabalhar em São Vicente.
habituado à vida selvagem na selva. Nóbrega fez tudo Por toda a parte, com o seu ministério e as suas
quanto pôde para recuperar estas ovelhas perdidas. orações, trabalhavam dia e noite; jornadeavam a
Encontrou entre outros um jovem, filho dum branco pé ou de canoa durante milhas, através do deserto-
desconhecido, completamente selvagem, que comia uCánãobaos caminhos de Portugal>>·-passavam fome e
carne humana com os índios. Mandou este rapaz para sede; e davam constantemente tudo o que tinham, não
Portugal, para se reeducar na vida civilizada e encon- bens materiais que não possuíam, mas a si mesmos, o
·trar o pai, se fosse possível. seu amor, os seus dons intelectuais, a sua saúde.
Duarte Coelho deu aos Jesuítas um monte sobran- Mas tudo não passava duma gota no oceano da
ceiro ao mar para ali edificarem a sua residência junto imensidade: «Vin de Charissimos Irmãos. . . salvar-
da capelinha de Nossa Senhora da Graça já lá -se-ão muitas almas, e das mais perdidas que Deus
existente. Quando Nóbrega regressou à Baía em tem em todas as gerações>>, e) escreveu Nóbrega.
Janeiro de I55z, o P.e António Pires ficou durante
algum tempo em Pernambuco, trabalhando sozinho.
Pelas suas próprias mãos alisou o terreno no cume do
·monte e ali construiu casas onde as crianças podiam
-ser recebidas e ensinadas. Continuou a esforçar-se,
·figura de homem solitário e valoroso, dividindo os
:seus esforços o melhor que podia entre o ministério co~
os cristãos e a evangelização dos pagãos. Mas, uSabe1
·trmãos, que si esta terra se ouver de converter, que ha
de ser com muitos,. (')
(l) Carta de Antônio Pires, de Pernambuco de 1552. in-Cartas Avulsas (!) Nóbrega, Carta para os irmãos do Colégio de Coimbra, em 1551
1n- C artas
tpág. 122. do Brasil, pág 122. •

18
X VIII

A Fundação de São Paulo

Os índios tinham chamado ao P. • Leonardo Nunes


Abarê-Bébé- o Padre que voa- porque ele parecia
estar ao mesmo tempo em toda a parte. Junto da costa,
em São Vicente, nas montanhas, na planície de Pirati-
ninga> no interior, nunca se sabia onde o P.e Leonardo
Nunes podia aparecer.
Em Santos, aonde chegou primeiro em 1 55o, os
colonos tinham-no recebido como o ·anjo da luz. Ali e
em São Vicente pregou, casou e contessou, chamou os
pecadores à noção do pecado, edificou uma igreja~
fundou um colégio para crianças índias, plantou um
pomar. Subiu à muralha de montanhas e nas alturas
andou à procura de almas perdidas de brancos a vive-
rem como pagãos. Por ajudantes tinha o irmão Diog()
Jácome, que em breve ia ser ordenado, vários irmãos
leigos recrutados no local, e alguns «meninos» da Baía.
São Vicente tinha todos os pecados que floresciam
nas outras capitanias, mas, mais especialmente talvez
do que em qualquer outra parte, o principal vício dos
colonos era as incursões para a caça de escravos.
276 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 277

Temos de nos deter aqui para considerar as os seus costumes. E perseguira-os a ferro e fogo; a
opiniões da Cristandade do século XVI acerca da ques- roubar escravos enriquecera- só ele sabia o mal que
tão da escravatura. A atitude, mesmo entre as pessoas fizera.
de mentalidade mais elevada, era a de a aceitarem Enquanto o P.e Leonardo pregava, este homem
em parte. Todo o prisioneiro feito em guerra justa convencera-se do seu pecado. Pero Correia conver-
legalmente considerava-se escravo, e, a não ser que o teu-se e resolveu dedicar o resto da sua vida aos índios
resgatassem, podia passar de mão em mão, ser comprado a quem tanto mal fizera. Deu as terras e as proprie-
e vendido- mas era pecado assaltar e raptar. dades que possuía em São Vicente à Companhia de
O abuso a que tal teoria poderia levar é evidente, Jesus para construírem lá a igreja e o colégio; pediu
sendo a expressão <<guerra justa)) susceptível de inter- que o aceitassem como irmão da Companhia embora
pretações elásticas. No Brasil cobria muitas excursões não o pudessem ordenar por ter sangue na alma.
duvidosas, especialmente em São Vicente, sempre O irmão Pero Correia tornou-se desde então o
porto de escravos desde a época dos primeiros náufra- melhor pregador jesuíta na língua índia, o seu melhor
gos que ali se fixaram. Os índios que viviam nas intérprete, o seu guia mais seguro pelo interior, a sua
circunvizinhanças do estabelecimento nunca tinham mina de informação local. Para os índios ia ser um
estado em guerra com os brancos, nem estes se mostra- protector, conselheiro, professor e amigo, trabalhando
vam desejosos de os provocar. Procuravam então as incansàvelmente a seu favor, pregando o Evangelho às
suas vítimas mais para o interior, ajudados gentilmente tribos mais distantes até morrer como mártir às suas
pelos seus amigos índios. O governador mostrava com mãos. Quando esta notícia chegou a Piratininga, o
firmeza o seu desagrado contra todo o tráfico com os grande chefe Tibiriça pôs-se a andar à volta da sua
<dndios salteados>>, como essas presas eram chama- choça durante toda a noite, lamentando:
das; onde os encontrava, libertava-os, e, sempre que -«Já morreu o Senhor do falar, gemia ele, aquele
possível, repatriava-os. Quando o P.e Leonardo Nunes que sempre nos falava a verdade, aquele que com o
chegou a São Vicente, trouxe com ele um grande coração nos amava; já morreu nosso pai, nosso irmão,
número de índios Carijós do sul, que tinham sido nosso amigo»! e)
levados como escravos para a Baía, mas aí, a pedido Assim devia Pero Correia cumprir a sua expiação.
de Nóbrega, Tomé de Sousa ordenara que os levassem O P.e Nunes não tivera tanto êxito ' com João
para a sua terra. Ramal~o. Ao contrário de Diogo Álvares Caramuru, que
Em São Vicente, na sua campanha de defender os tanto BJudava os missionários, tão desejoso de voltar à
direitos humanos dos selvagens, o P.e Nunes encontrou vida civilizada, o patriarca das terras do sul parece ter
um inesperado colaborador. O mais inveterado de todos sido uma fonte de amargura e um tropeço. Durante
os esclavagistas veio juntar as suas forças às dele. ~uase meio século, João Ramalho gozara a existência
Pero Correia tinha a pesar-lhe na alma uma grande hvre dum chefe índio nos campos de Piratininga onde
carga de pecados. Fora um dos mais antigos colonos a sua palavra era lei. Além da filha do grande Tibiriça,
da capitania. Conhecia a costa, conhecia os rios que
(I) Cartas de Anchieta, pág. 76 77.
lá iam desaguar, falava a língua índia e compreendia
CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 279
278

sua primeira mulher, tinha ainda umas duas dezenas deitou água na fervura. Trouxe com ele o P.e Manuel
de concubinas, o mesmo sucedendo com os seus de Paiva, que reconhecei! João Ramalho como parente
filhos. Seguiam na senda da guerra com as tribos perdido havia muito. E evidente que isso ajudou
indias; capturavam escravos como qualquer tratante enormemente. Mais tarde Nóbrega pôde ganhar a
europeu; não é provável que comessem carne humana, confiança do velho e João Ramalho disse-lhe que gos-
mas todas as suas festas se faziam à moda índia, e taria de casar com a filha de Tibiriça, mãe de
raras vezes usavam roupas. tantos dos seus filhos. A dificuldade era que ele deixara
Era uma boa vida e João Ramalho não se pro- uma mulher em Vouzela e não sabia se ela ainda vivia.
punha alterá-la na sua velhice, nem regularizar a sua Após todos aqueles anos com certeza tinha morrido,
situação matrimonial a despeito do que qualquer padre ~crescentou ele esperançado, mas Nóbrega não queria
pudesse dizer do pecado mortal! Isto significava tncertezas. Escreveu para fazerem investigações no
excomunhão! Excomunhão, na verdade! chasqueavà reino, e João Ramalho ofereceu-se para pagar todas as
João Ramalho. Experimentemos! Ele era tão bom despesas que pudessem ocorrer, mandando açúcar.
cristão como qualquer outro, na sua família todos eram Os Vouzelenses são uma raça dura, que não morre
baptizados, e ele ia à igreja tantas vezes quantas fàcilmente, pelo que aconteceu que a mulher ainda era
quena. viva. E assim João Ramalho e a filha de Tibiriça não
E assim foi que, uma bela manhã, quando o puderam casar, mas como ambos eram de idade muito
P.e Leonardo Nunes se preparava para dizer missa em avançada, as suas relações deixaram de ser pecamino-
Piratininga, o velho régulo, rodeado por todos os seus sas. Viviam lado a lado perfeitamente inocentes e
jovens bárbaros, entrou na igreja de palha e cal. reconciliados com a igreja. Durante o resto dos
- cRua!» gritou o padre. Os santos mistérios não s~us dias- e , e~am muitos porque ele quase atin-
podiam ser celebrados na presença de pecadores exco- gtra o centenano quando morreu- João Ramalho
mungados! Alguma coisa das doutrinas aprendidas na le':ou vida ,mais ou menos digna, respeitado como o
juventude se agitou em João Ramalho, que saiu levando pat da colonia composta de tantos dos seus descen-
os filhos com ele, mas estes estavam furiosos- e <<são dentes.
uns homens como selvagens»! C) diz Diogo Jácome. Nóbrega ficou impressionado com São Vicente.
Queriam vingar-se do padre que insultara seu pai e os «Achei grande casa e muito boa igreja; ao menos
insultara a eles, por isso esperaram para lhe bater em Portuga~ não a temos tão boa», (1) O P.e Leonardo
quando ele saísse da igreja. O P.e Leonardo Nunes podia ~unes reumu grande número de rapazinhos órfãos,
ter sido morto se não fosse a intervenção da mulher de ft.lhos dos colonos, e muitos índios pequenos haviam
João Ramalho, que chamou os filhos. Frequentemente stdo levados pelos pais para os ensinarem.
as mulheres índias punham-se ao lado dos padres . O colégio era já uma iniciativa em marcha. As
cristãos, e parece que esta era devota em especial. cnanças pareciam contentes e aprendiam bem. Visita-
Nóbrega, quando veio com o governador em r55z,
In. N}vas1) CCarta de t:J?brega escrita de São Vicente, 12 de Fevereiro de 1553.
artas ]esu1tlcas, ed . por Serafim Leite, pág 34. ·
(I) Carta de Oiogo Jácome, de 1551, in· Cartas Avulsas , pág. 104.
280 CAPITAES DO BRASIL I CAPITAES DO BRASIL 28 1

vam-nos os pais ali? perguntou Nóbrega. Disseram~ Em São Vicente, assim como o P. • Manuel de
-lhe que vinham tantas vezes quantas podiam, mas Paiva, Nóbrega tinha já com ele vários novos irmãos
a viagem era longa e difícil. Porque havia poucos índios leigos. Além de Pero Correia, havia Manuel de Cha-
a viver junto da costa. Quase todos desciam das mon- ves, mancebo educado no Brasil e que falava fluente-
tanhas do interior, de onde vinham também os alimen- mente a língua índia, e Mateus Nogueira, alma já
tos para o colégio; a mandioca que servia para o pão idosa mas cândida, ex-soldado da Africa e hábil
diário das crianças tinha de ir buscar-se muito longe armeiro, que emigrara para o Brasil quando se des-
no interior. fez o seu casamento.
Nóbrega trepou à cordilheira íngreme e visitou os Havia também António Rodrigues, intérprete e
florescentes campos do planalto dt: Piratininga. Ficou músico, soldado e aventureiro, que com os conquista-
encantado. Ali encontrou o sítio ideal para a sede da dores castelhanos percorrera o continente desde o rio
missão, com índios a viverem a toda a volta; ali estava da Prata ao Amazonas, à procura de prata e ouro, até
a encruzilhada e o ponto de encontro de muitas tribos que, tomado de saudades de Portugal, partiu sozinho
no caminho do rio da Prata e do Paraguay. O ar era e atravessou os desertos do Paraguay a São Vicente,.
puro e fresco, o solo produzia tudo; aqueles Campos esperando encontrar um navio que o levasse ao reino.
Elísios, próximo dos índios e longe dos brancos, seriam Ou assim esperara um dia, mas nos longos dias soli-
um local esplêndido para fundar um colégio. A cidade tários de vagabundagem através da terra ínvia, sozinho
de Martim Afonso junto do rio de Piratininga parece contra os perigos do deserto, cercado pela indiferença
ter desaparecido -pelo menos ninguém fala mais dela opressiva da Natureza, António Rodrigues encontra-
-mas Nóbrega resolveu fixar-se a algumas léguas da ra-se frente a frente com Deus, achando que toda a
nova aldeia de Santo André do Campo, fundada por sua escala de valores se alterara e que ele não tinha
Tomé de Sousa. Esta era, achava ele, um ponto- , desejos de voltar ao mundo que deixara. Uma con-
-chave de que se podia sair para o interior. versa com o P.• Nóbrega fixou-lhe o destino; António
Enquanto o governador reunia os portugueses Rodrigues foi recebido como irmão da Companhia
espalhados pelo planalto em Santo André, Nóbrega de Jesus.
procurou os índios cristãos que havia no seu estabele- Homens como estes, conhecendo a terra profun-
cimento, onde a 29 de Agosto de 1 55 3 baptizou 5o damente, falando as línguas indígenas e perfeitamente
catecúmenos. familiarizados com os costumes, eram recrutas inapreciá-
Ele previa grandes coisas no futuro. «Desta Capi- veis para uma missão de pioneiros. Ainda precisavam de
tania se deve de fazer mais fundamento que de ~rientação, evidentemente, por parte daqueles que
nenhuma», (1) escreveu ele. Por isso, quando o gover- tmham sido educados nos processos da Companhia,.
nador voltou à Baía, Nóbrega ficou, mas mandou o mas o P.• Leonardo Nunes trouxe alguns desses ins-
P.• Leonardo Nunes a ver que reforços chegavam do trutores com ele. O P.• Afonso Brás, que tinha feito
reino e levá-los para o sul. muito bom trabalho no Espírito Santo, Vicente Rodri-
~ue~, agora ordenado, juntamente com dois jovens.
(I) OI>. cit., pág. 35 trmaos mandados ao Brasil por razões de saúde: Gre-
'28:2 CAPIT AES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 283

:gôrio Sen·ão era um e- o mais notável de todos os ouviu que fora · escolhido para a missão do Brasil.
recém-chegados naquele ano, embora ainda se não Como podia ele agradecer ao Senhor tão grande mercê?
suspeitasse do facto -o outro era José de Anchieta. A viagem foi toda uma alegria para ele. Com a satisfa-
Este rapaz, de 20 anos, alma ardente no frágil ção e o ar do mar sentia-se cada dia melhor. Havia tanto
corpo dum doente, era um sonhador, um poeta, um que fazer a bordo, que nunca se aborrecia. José aju-
sábio. Embora filho dum fidalgo biscainho e duma dava toda a gente: cozinhava para os companheiros e
senhora das Ilhas Canárias, fora educado em Portugal, auxiliava-os em todos os seus trabalhos; ele e os mári-
ignora-se exactamente por que razão. Ali fez brilhantes nheiros eram como irmãos; mantinha aulas de ins-
estudos na Universidade de Coimbra, em latim e filo- trução religiosa no convés e falava aos homens na sua
sofia, e a sua oratória era muito admirada. Tudo isto salvação e nos seus deveres para com Deus. Toda a
aos I 7 anos, mas José não ambicionava nenhuma dis- gente recebia muito bem os seus ensinamentos. Este
tinção mundana. Visões celestiais e duma santidade jovem entusiasta tinha uns modos a que ninguém podia
perfeita abrasavam de entusiasmo este jovem. Pediu resistir. Havia algo na sua simpatia irradiante, que
que o recebessem na Companhia de Jesus e depois, fazia que todos confiassem nele, e a sua intuição rápida
arrebatado pelo seu fervor, lançou-se em austeridades do pensamento alheio torná-lo-ia mais tarde um leitor
que lhe minaram a saúde, a que há a acrescentar a tão seguro do coração humano que o creram dotado
queda duma escada que um dia lhe aleijou a espinha duma segunda visão ou inspiração divina.
vertebral. Parecia inutilizado para toda a vida. No Brasil o P.e Nóbrega amou-o imediatamente,
José passara três anos no hospital com o coração reconhecendo no seu jovem colega um espírito afim.
amargurado pelo receio. A sua longa doença parecia Entre os dois desenvolveu-se uma amizade que duraria
incurável. Despedi-lo-iam da Companhia por fisica- até à morte.
mente incapaz? Não poderia ele servir ao Senhor? José de Anchieta começou a sua longa carreira
-«Filho José, perdei esse cuidado com que andais- missionária nas alturas arejadas do planalto meri-
disse o P.e Simão Rodrigues, o Provincial-porque Deus dional. Ali, a 25 de Janeiro de 1554, festa da conversão
vos não quer com mais saude» (1). de São Paulo, Nóbrega fundou o seu novo colégio de
Estas palavras caíram como bálsamo na alma tur- São Paulo de Piratininga.
bada do rapaz. Deus queria-o tal como ele era, por O «colégio» não passava dum casebre feito de
isso podia esperar com paciência. E a paciência rece- canas e adobe com telhado de colmo, com I 3 passos
'beu no final a recompensa. Embora estivesse longe de de comprimento por 1 o de largura, que serviu imedia-
estar curado, os seus superiores resolveram mandá-lo tamente «ao mesmo tempo a escola, a enfermaria, o
para o Brasil, porque o Brasil era considerado u m a d<:»rmitório, o refeitório, a cozinha, a despensa» (1).
'bela estância de cura. Vmte pessoas dormiam às vezes ali e as crianças iam
José mal podia crer na sua boa fortuna quando lá para ãs ensinarem. As aulas davam-se frequente~
mente ao ar livre, mesmo quando estava muito frio
(1) Simão de Vasconcelos, Vida do Ven erável Padre José de Anchieta
~Porto, 1953. Pág 11. (I) Cutas de Anchieta, pág 43.
284 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 285

como naquelas alturas às vezes está- porque, diz de mostarda fervidas. E trabalhava-se muito ; José
Anchieta, «preferimos sofrer o incomodo do frio de ensinava gramática latina aos irmãos durante todo o
fora, do que o do fumo de dentro» (1). dia e «Às vezes, estando dormindo, me iam despertar
Como o seu patrono São Paulo, trabalharam com par~ me perguntarem». Todavia, com tudo isto parecia
as mãos para satisfação das suas necessidades. O irmão que ele passava bem e <<podereis ver minha disposição
Diogo Já come aprendera por si só a arte de torneiro, e pelas cartas que lá escrevo, as quais parecia impos-
com uma roda feita à mão fabricou rosários e grinaldas sível eu poder escrever estando lá!»
que deliciavam os índios, e o irmão Mateus Nogueira O seu companheiro, o irmão Gregório Serrão,
levantou uma forja e fez-lhes ferramentas de ferro e estava no mesmo caso feliz, embora <<ainda que não é
anzóis de pesca. Todas estas coisas eram oferecidas, tão valente como eu, por ser de mais fraca compreição,
mas em troca os índios davam-lhes vegetais ou caça. todavia ele não me quer dar aventagem e tem para si
Os alimentos em S. Paulo consistiam em man- que é tão bem disposto como eu». E este mesmo irmão
dioca, feijões, abóboras ou ervas cozidas, às vezes carne Gregório, apesar da sua saúde precária, fora o portador
de veado, macacos, ou lagartos, outras - - mas mais dum recado urgente de São Vicente para Piratininga,
raramente - um pouco de peixe. Em vez de vinho, apesar de o caminho ser longo e árduo, <<e creio que o
bebiam a água do milho cozido adoçada com mel pior que há em muita parte do mundo, de atoleiros,
das abelhas bravas que enxameavam nos bosques dos subidas e matos. . . E assim foi, dormindo de noite
arredores, e havia plantas medicinais para curar os com a camisa empapada em água e sem fogo entre
doentes. Com tudo isto, Anchieta escreve, «O Senhor a matos, et vivit et vivimus !)) Na verdade era um bom
cujo cuidado nos entregamos, nos provê de todas as clima. O conselho de Anchieta aos doentes do reino
cousas de que carecemos, até de onde menos espe- é - deitem fora todos os remédios e venham para
ramos» (2). E sentiam-se muito felizes. o Brasil!
Apesar de toda a falta de conforto, naquelas alturas Em Piratininga, além de ensinar, fazia toda a
levava-se vida saudável no ar puro. José sentiu que ela espécie de coisas- mesmo de cirurgião da aldeia, san-
lhe convinha:- «nenhuma diferença se faz de mi a um grando doentes, aplicando cataplasmas e tratando
são»(~), escreveu ele aos amigos que deixara no hospital, muitas mazelas com êxito. E acrescenta triunfante-
«ainda que as vezes não deixão de haver algumas reli- mente que <<Alem disto aprendi cá um oficio, que me
quias das doenças passadas, e porem não faço mais ensinou a necessidade». Aprendera a fazer sandálias
caso dellas como se não fossem in rerum natura>> (4). de fibra e «sou já bom mestre; e tenho feitos muitos
Ali não havia nenhum conforto como no hospital- pera os Irmãos, porque não se pode cá andar polos
uma refeição consistia muitas vezes apenas em folhas matos com sapatos de coiro».
Quanto à língua índia, Anchieta aprendeu-a ràpi-
11) Ibid.
damente, e daí a pouco lançou-se a compor uma gra-
(2) Ibid., pág. 44. mática. Entre os irmãos então ali residentes «não há
(3) Carta de José de Anchieta aos irmãos enfermos, publ in- Nóbrega cá a quem aproveite», mas serviria de ajuda aos que
e a fundação de S. Paulo, por Serafim Leite. Pág. 55 e ss
( 4\ Ibid., pág. 61. chegassem de novo.
286 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 287t

O colégio de Piratininga floresceu. Em 1 55 5 rasse porque ele queria matar o prisioneiro em frente
Anchieta já podia escrever: «Temos uma grande escola da aldeia!
de meninos Indios, bem instruidos em leitura, escrita e A proposta foi ouvida com brados de alegria
bons costumes» (1). Eles também tinham aprendido a pelos índios do exterior e até os catecúmenos não
cantar. O irmão António Rodrigues era o mestre das esconderam e sua grande satisfação. Em vão Nóbrega
crianças; as classes de Latim para os estudantes mais procurou trazê-los à razão, dizendo «brandas palavras.
adiantados- irmãos que se preparavam para tomar de Deus>> - todos eles bradavam pelo sangue como
ordens, ou possíveis recrutas para a Companhia- tigres esfaimados.
continuavam a ser mantidas por Anchieta. Então os missionários agarraram nas cordas que
As crianças «são elas a consolação nossa». diz deviam segurar a vítima e esconderam-nas em sua
José, porque a geração mais velha era um problema própri~ casa. Tal era o seu prestígio que conseguiram
difícil. Mesmo entre estes, contudo. se tinha verificado fazer Isto e de qualquer modo impediram a clava de
alguma melhoria. Os que viviam nos arredores da ser ent!egue ao chefe. Inibido, Tibiriça berrou por
missão de São Paulo, declara ele, ccjá parecem mui dife- uma foice, porque queria matar o inimigo, e todos
rentes nos costumes dos de outras terras ; pois não aqueles padres estrangeiros tinham de ir-se embora!.
matam, não comem os inimigos, nem bebem da Novame~te foram as mulheres que se puseram do
maneira porque dantes o faziam». De facto, após uma lado dos anJOS. A mulher de Tibiriça e a sua velha.
batalha, enterravam os que tinham matado- era o ini- sogra conseguiram, com palavras brandas acalmá-lo e
migo que, ao voltar do campo de batalha, desenterrava persu~di-lo a a_diar a execução. Ele afast~u-se jurando
os cadáveres e os devorava, julgando que aqueles que nao o havtam de enganar: o seu prisioneiro seria.
corpos eram os dos seus ri vais ! m~rto. ~outra alde_ia: ~rovejava e espumava, falando
Todavia, havia recidivas infelizes, mesmo entre «~tabohcamente>>, InJUriando os cristãos, Queria renun-
os conversos de estirpe tão antiga como a de Tibiriça, ctar ao seu nome e fé cristã e voltar a ser pagão, e
sogro de João Ramalho e o primeiro amigo dos brancos. combater e matar e devorar os seus inimigos como nos,
O grande chefe Martim Afonso Tibiriça, afilhado belos tempos cta sua mocidade!
do donatário de São Vicente, que fora cristão baptizado Os J_e~uítas esta!am gra~emente preocupados, mas
durante mais de 20 anos, tinha momentos de saudàde toda a furta dele veto a extinguir-se. Os catecúmenos
nostálgica dos costumes da sua juventude. Um dia, chamados à razão, pediram humildemente perdão:
tendo capturado um inimigo muito perigoso , achou Pouco depois, o próprio Tibiriça, tendo sido fortemente.
que a honra exigia a celebração do triunfo à moda censurado pelas m~lheres, la_nçou-se aos pés de Nóbrega.
dos velhos tempos. Manaou buscar as cordas ~unca, nunca mais voltana a fazer tal coisa! E Tibi-
sacramentais para amarrar a vítima, e a clava n~a _cumpriu a palavra, dizem, até que morreu como
para lhe esmagar a cabeça, ordenou às velhas que reti- cnstao uns 7 anos depois.
rassem as sertãs para o festim- que tudo se prepa- Apesar de tais desapontamentos e atrasos a missão.
aumentou e progrediu. E a jovem cidade de São Paulo.
(1) Ibid., pág. 79, cresceu com ela, A pouco e pouco edificações.
'288 CAPITAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL 289

permanentes se levantaram para substituir as de sempre acontece onde há grande riqueza material. Os
adobe e colmo. Foi o P .e Afonso Brás que, embora ambiciosos de fortuna emigraram em grande número
n unca o ensinassem se mostrou um hábil carpinteiro e
-
preparou todo o trab'a ~~o de_ madeira para a construçao.
para São Paulo; os que procuravam posição e lugar
ultrapassaram em muito os pesquisadores de almas que
Superintendeu na edthcaçao e trabalhou ne~a com as Nóbrega esperava ver. Apesar disso, aqueles que, entre
próprias mãos, t~anspo.rtando cest~s de terra as ~ostas, os seus cidadãos, sabem compreender, podem sentir-se
e indo buscar agua a fonte. Asstm se construm um orgulhosos com saber que não foi num solo de caça ao
colégio com dormitórios e salas de aula e todas as
ouro que a sua cidade nasceu mas como uma luz acesa
acomodações necessárias, levantando-se ao lado uma num lugar tenebroso.
pequena igreja atraente. O P: Afonso Brás, com os
seus companheiros e discípulo~, tr~balhando ur:s como
pedreiros e outros como carpmteuos, construm casas
para as famílias índias que viviam nos arredores,
metodicamente dispostas ao longo das ruas como
numa aldeia portuguesa.
Plantaram-se terras e produziram-se frutos-limões
e laranjas e figos e marmelos- a horta deu cebo-
las e ervilhas e hortaliças e plantas de Portugal;
também se cultivaram flores, rosas e cravos vermelhos.
O gado proliferou e multiplicou-se.. Pero ~orreia
dotara a missão com vacas da sua anttga propnedade,
e Nóbrega tratara-as com o maior cuidado. Por muito
que estivessem faltos de carne nos primeiros anos, ~ão
-d eixara matar gado. Devia-se pensar no futuro, dtsse
.ele «porque ha de haver grande multidão de Padres
e !~mãos no Brasil que ajudem as almas.» (1)
Assim trabalhavam com os olhos no futuro,
sonhando ~om traz er o reino dos Céus à terra. Como
sempre fazem os sonhadores, trabalharam para o que
-este mundo não pode ver realizado, mas acenderam
uma tocha.
Na vasta cidade que desde então cresceu sobre a
humilde choça onde eles tiveram primeiro a sua visão,
o mundo, a carne e o diabo também cresceram, como

(I) Ihid ., pág. 475.

19
XIX

O Bispo da Baía

Foi talvez por se considerar o Brasil uma estância


de cura que D. João Ill propôs à Santa Sé o nome do
padre-mestre Pedro Fernandes Sardinha para primeiro
bispo do seu novo domínio.
Pedro Fernandes Sardinha era mestre de Teologia,
•pessoa de boas letras e doutrina» (1). Ensinara em Paris.
e em Salamanca e exercera as funções de capelão e
pregador da Casa Real. Em I 545, quando partira para
a fndia com o governador D. João de Castro, parece
que ia um pouco doente. O rei insiste com cuidado por
que dêem ao bom homem todo o conforto na nau do.
governador, •porque he mal desposto» (2). Em Goa,
onde mestre Pedro serviu sucessivamente como Deão
da Catedral e Vigário Geral da Índia, a sua saúde
naturalmente não melhorou. Em I 549, quando voltou
à pátria, dizem-no outra vez «mal desposto»: «Não he

(I~ Cart~ de D. João 111, ao papa Júlio III, de 31 de Julho de 1550, cit.
por Serafim Le1te.
(2) Carta do mesmo para D. João de Castro, publ. por Saraiva Obra.s
Com,letas, tom. VI, pág. 219. '
292 CAPlTAES DO BRASIL CAPlTAES DO BR ASIL 293

pera esta terra-informou o secretário Cosme A:nes o rei-; de S. João, o Rev. 0 Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha,
omem he que viveo vertuosamente como dtgo a Vosa activo e benévolo, desembarcou e se instalou proviso-
Alteza em outra, pera quaa não serve» e); . riamente na casa dos Jesuítas.
É duvidoso se Cosme Anes pensava umca.mente no Pregou os mais belos sermões e toda a gente ficou
clima índio ou era sugestão quanto a outras mcompa- satisfeitíssima: «é muito zeloso da gloria e honra de
tibilidades. 'A dúvida surge no nosso espírito depo!s de Nosso Senhor, e tal qual esta terra havia mister, porque
se ler a carta escrita ao rei pelo governador Garcta de a vir um Bispo passeiro, fleugmático e negligente, como
Sá: «Mestre Pedro vigayro-jeral-escreve o sucessor de tenho visto outros, eu morrera de triste, e por ventura
D. João de Castro-se vay pera o reyno. Parec~-me que fora ao Interno com ter pouca paciencia» (1), escreveu
não vay muito comtemte de mym, e a razão he porque Nóbrega no primeiro impulso de entusiasmo.
lhe fuy a mão em allgumas cousas que ele fazia, que 2
Realmente assim poderia suceder, mas em breve
não erão muyto de seu carguo nem de seu a?yto» ( )- se tornou evidente que o mesmo risco lhe corria a
Ele oprimia os cristãos indígenas, declara Garcta de Sa, alma com este dinâmico bispo.
impondo pesadas multas monetárias por peql1:_enos deli- D. Pedro Fernandes instalou-se no seu trono epis-
tos e ameaçava os pagãos- «Se de mym hzer quey- copal, olhou à sua volta- e desaprovou. Desaprovou
xu~e a V. A., sayba que estas são as rezões que tem tudo o que viu, a começar pelo próprio P.e Nóbrega.
pera o fazer». • . O bispo disse que estava penalizado e chocado
O rei estava habituado a dar desconto as quetxas com os processos missionários usados pelos Jesuítas.
- todos os anos recebia muitas e contraditórias. Igno- Tinham eles esquecido o decoro e a decência? Eles
ramos se ele prestou atenção ao gue estes diziam um pendia!D sem vergonha para os costumes pagãos! Os
do outro. Garcia de Sá morreu na fndia naquele mesmo seus dtscípulos cantavam os hinos cristãos com árias
ano e mestre Pedro Fernandes, em I 55 2, partiu para o pagãs, acompanhados por instrumentos pagãos ; os
' como primeiro bispo da Baía.
Brasil seus pregadores adoptavam o estilo pagão de oratória,
Foi recebido com alegria geral. Quer Tomé de berrando, batendo com os pés e no peito à maneira dos
Sousa, quer N~breg~ tinham suspi!ad~ por um bispo. pagés para ~hamarem !1 a~enção dos índios. Os pagãos
Ambos haviam tmagmado como sena dtferente quando eram autonzados a vtr a missa embora alguns deles
à colónia dessem um Pai em Deus para impor a sua aparecessem despidos, e - por~enor revoltante - os
autoridade aos padres indisciplinados, para reformar a pequenos índios que frequentavam a escola dos Jesuítas
moral dos leigos, para receber os pagãos no rebanho da usavam o cabelo cortado à moda india!
Igreja e em toda a parte restabelecer a paz e a ordem. . M~s, respondeu Nóbrega em defesa, isso não dife-
Portanto, o P.e Nóbrega achou que alvorecera um ria m~no do corte de cabelo dum europeu, e os pais
grande dia para o Brasil, quando na véspera da festa prefenam aq~ela m_aneira. Quanto ao càntar, eles
gostavam ~utto mats dos hinos com a música que
compreendtam e que atraía outros por evangelizar.
(l) Carta de Cosme Anes, d~tada de Cochi~, 30 de D~ze.~bro de ~5~9,
publ. por António da Silva Rego, tn- Documentaçao para a JrliStona deu MISSoes
do Padroadó Português do Oriente, 4. 0 vol, pág, 472, (1) Cartas do Brasil, pág. 140, 14 1.
(2) 011. cit,, pág. 218
294 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 295

.f\. mesma consideração orientava os sermões pregados Que alguêm tão obstinado nos seus preconc.ei~~s
no estilo dramático da oratória índia. Nenhuma destas como o bispo não pudesse ser chamado a uma ~p~mao
coisas, disse Nóbrega, era em si idólatra, ou prejudi- tão realista não nos surpreende, mas numa duzta de
cial à fé cristã, e «atraíam os corações dos índios» C). outros assuntos parece ter intervindo apenas pelo pra-
Mas, ao contrário de S. Paulo, o bispo não queria zer de contradizer as decisões de outrem, como quando
que se fizesse «tudo para todos», menos ainda para estes aboliu a missa do domingo dita na igreja dos Jesuítas
selvagens. E pregou um sermão muito a propósito sobre para escravos, seguida de instrução rel}giosa para e~es
o assunto. à tarde. crSou eu tão mau, escreveu Nobre~a com tn!-
A confissão por meio de intérpretes também arre- teza ao Provincial de Portugal, que suspetto que nao
liou D. Pedro. Nem todos os padres tinham o dom das ha por bem feito senão o que êle ordena e faz, e tudo o
línguas, nem podiam todos os índios cristãos falar mais despreza!» (1)
português, pelo que alguns dos mais devotos mestiços, Não levou muito tempo que o bispo perdesse todo
que eram de confiança, recebiam instrução para servi- o interesse pelos {ndios. Pareciam-lhe animais estúpidos,
rem de intermediários e ajudarem nas confissões. incapazes de serem ensinados; <<nem as tinha por ove-
Nóbrega consultara os livros e encontrou esta prática lhas de seu curral, nem que Christo Nosso Senhor se
autorizada por vários doutores da Igreja, incluindo dignaria de as ter por taes !» (Z)
Caetano e o seu próprio ex-mestre Dr. Navarro, de Continuou a mostrar muito zelo pela reforma dos
Coimbra. O bispo respondeu irritado que não queria colonos brancos- sob todos os aspectos, menos na sua
saber do que diziam trezentos Navarros e seiscentos condição matrimonial. Não parecia chocado por encon-
Caetanos. Em Paris o Grande Inácio de Loiola e o trar homens a viver com as suas escravas índias-
provincial Simão Rodrigues tinham ambos aprendido achava os Jesuítas muito esquisitos por negarem a
aos seus pés, e ele sabia mais! As confissões por meio absolvição a tais pecados-; o que muito mais o hor-
de intérpretes eram más e tinham de acabar. O remédio r rorizou foi verificar que certos brancos se tinham dado
No futuro os índios cristãos deviam falar português. a fumar a planta profana usada pelos índios ! Vimos
Com respeito à debatida questão da nudez, parece em capítulo anterior como o pobre e velho Vasco Fer-
que ao fim de três anos no Brasil, Nóbrega começava nandes fora censurado por este hábito, e os de condição
a sentir que a sua primeira concepção de um par de humilde que se davam ao uso do tabaco eram tão
calções para toda a gente era um conselho de perfeição; perseguidos e castigados, que um deles pelo menos
«eu não sei quando tanto Gentio se poderá vestir, pois refugiou-se na floresta com os índios.
tantos mil annos andou sempre nú, não negando ser O bispo não gostava da Baía, com tudo aquilo.
bom persuadir-lhes, e pregar-lhes, que se vistam e Não havia dinheiro ainda na terra, o estipêndio do
mettel-os nisto quando puder ser.» (~) bispo era muito pequeno, os desconfortos grandes,

(1) Carta de Nóbrega ao P,e Simão Rodrig\les, datada de Julho de 155:>. (l) Novas cartas Jesu íticas, publ. por Serafim Leite, pág. 32.
ln • Novas Cartas jesuíticas, pág. 32. (2) Carta de Nóbrega para Tomé de Sousa, escrita da Baía, a 5 de
( l) Carta de N óbrega, da Baia, de I 552. in. Cartas do Bra$i/, pág. 14:.>. Julho de 1559. in- Cartas do Brasil, pág . 193.
296 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL

ele já não era novo, e a «sua edade-diz: Nóbrega- tinham-se tornado piores com a chegada do novo-
não sofre já os desamparos desta terra» (1). O rei governador em 1 55 3. .
devia fixar rendimentos para a Sé para vencer estes D. Duarte da Costa, homem com ma1~ de 5o anos,.
primeiros dias em que a terra tinha <<pouco mais de e pai de dez filhos, não che~ara ao Brasil, acentuava
matos e boas aguas, e bons ares». ele, «por cobiça nem por vatdade de hon;a, n..em em·
Entretanto o bispo e o seu clero arrancavam o idade pera folgar de ver mundo~ n_?VOS» ( ). So ? s~u.
que podiam à colônia, que achou com desgosto que amor pelo serviço real o levara ate tao longe da patnat
de futuro tudo aquilo que fora ministrado de graça disse ele-mas porque, pensamos nós, chegara ele. a
passaria a custar dinheiro. Os mais ricos talvez ficas- ser escolhido para o cargo de governador do Brastl?
sem contentes por agora poder resgatar-se a penitên- A sua carreira não parece justificar a nomeação.
cia por dinheiro, pelo que se podia pecar enquanto se D. Duarte da Costa, armeiro-mor do rei, como seu pai
pudesse pagar. tinha sido antes dele, levara vida tranquila na Corte
O pobre Nóbrega ficou desolado por ver a nova sem jamais pelo que sabemos, ter desempenhado qual-
desordem que surgiu e o seu trabalho missionário quer cargo' militar ou administrativo de importância.
pessoal embaraçado e apertado a cada passo. Procurou A explicação da nomeação talvez possa encontrar-se
responder ao bispo, «com a mais humildade (posto que na falta crescente de homens aptos no Portugal do
hipócrita) que eu pude>>, e)
acrescenta ele com a sua século XVI. A geração dos grandes chefes estava já a
costumada candidez. D. Pedro Fernandes «fez-se muito desaparecer. A Índia absorvera os melhores e a maior
agastado, de que fui muito triste.» parte deles não voltavam. D. João 111 estava com
Como este era dif~rente do bispo que ele e Tomé de grande cuidado acerca do Brasil, mas possivelmente
Sousa tinham sonhado! Foi com satisfação que Nóbrega não fazia ideia de como a colônia precisava de governo
se fez de vela para São Vicente com o governador, prudente e experiente. Talvez supusesse que após os
«encomendando a Deus a Bahia e a seu Prelado.>> (3) excelentes trabalhos de Tomé de Sousa tosse muito
O bispo ficou no Salvador a questionar vigorosa- fácil construir nos alicerces abertos por ele.
mente com toda a gente, em especial com os seus Não contava com a natureza humana... nem com o
cônegos e clero. Ao que parece, eles não lhe obedeciam bispo. D. Pedro Fernandes, questionador, inadaptável,
como deviam, mas, como Nóbrega observou, o bispo completamente desprovido de tacto, já tinha levantado-
parecia ignorar que às vezes podiam evitar-se as opor- tempestades entre os seus subordinados eclesiásticos.
tunidades para a desobediência. D. Duarte, sem dúvida bem intencionado, mas com
Se o Salvador não era uma cidade alegre durante ' pouca prática dos homens, provàvelmente não restabe-
o último ano do governo de Tomé de Sousa, as coisas leceria a paz, tanto mais que ele e o bispo se indis-
puseram um com o outro logo de princípio.

(I) Carta a? Padre Mestre Simão, da Baia 1552, in- ob. cit., pág. 14.t.
(l) Arquivo da Torre do Tombo, Corpo Crotl. Parte I, maço 95~
(2) Carta Cit., in - No'l'a3 Carta' Jesuíticas, pág, 31. doc. 70. Carta de D. Duarte da Costa para el·Rei, publ in• Hist. da Cot
(3) Carta para Tomé de Sousa, in- ob, cit, pág. 195. Port. do Brasil, vol. lll, págs. 375, 376.
298 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 299

Não é fácil determinar quais as razões ou sem- E ainda mais quando o prelado, em particular,
-razões do caso. A fazer fé pelas furiosas cartas escritas insistiu com ele para exercer certa repressão sobre o
por ambos os lados, sentimo-nos inclinados a crer que seu leviano filho e afastá-lo das más companhias
havia culpas de parte a parte. enquanto era tempo.
D. Duarte não era bulhento por natureza. «Senhores, D. Duarte disse que o bispo lhe dava vontade de
falem baixo, que os ouve o Governador» (1), era a sua rir. O seu filho tinha liberdade para se divertir com os
única e suave censura quando, ao passar por casa de amigos que quisesse, e os companheiros que ele esco-
alguém, ouvia o seu nome criticado em altas vozes; lhera eram cavalheiros briosos. Em Portugal todos
tão-pouco, dizem, mostrava depois má vontade para sabiam como o rapaz era virtuoso. As baixas insinua-
com os que falavam. Evidentemente bom homem- ções do bispo, disse o governador, faziam-no rir a
mas D. Duarte era pai e não queria ouvir uma palavra bandeiras despregadas!
contra o seu adorado primogénito D. Alvaro, que o O azeite caiu no lume e as chamas cresceram.
acompanhara ao Brasil. , Ainda hoje as ouvimos crepitar nas cartas que sobre-
Este alegre mancebo prestara serviço na India e viveram. A capitania da Baía dividiu-se e todos se
noutros pontos e sem dúvida achava a Baía muito denunciavam uns aos outros.
aborrecida. Nem as delícias e diversões de Goa ali se O deão e os cónegos uniram-se contra o bispo,
poderiam conseguir para encantar as horas vagas dum mas a Câmara do Salvador e António Cardoso, pro-
soldado, nem a agitação dos alarmes e das incursões vedor, aliaram-se ao prelado contra o governador e o
contra as forças do Islão para dar oportunidade para ouvidor, o tesoureiro Luís Garcês acusou António
feitos de cavalaria. Nesta pequena cidade do Salvador Car.doso de práticas ilegais, enquanto Rodrigo de
-conjunto de pardieiros levantados numa clareira Frettas, escrivão municipal, se lamentava de que
junto do sertão- um sujeito não tinha nada que fazer, D. Duarte e o seu magistrado tal como a aranha faz
a não ser que quisesse pôr o seu principal interesse em veneno daquilo que as abelhas' fazem mel arruinara o
plantar açúcar! O jovem Álvaro e um grupo de amigos melhor dos seus serviços! '
de igual mentalidade ocupavam as suas muitas horas O bispo queixava-se de que o seu chantre se
de lazer a passear pela cidade, pregando partidas aos revoltara contra ele. O chantre afirmava que o bispo
cidadãos, namorando as raparigas e geralmente irri- rachara a cabeça dum. homem pelas suas próprias mãos,
tando toda a gente. de tal modo que os mtolos lhe saíram como podia ser
O bispo -talvez com muita razão- sentiu-se confirmado pelo próprio físico Jorg~ Fernandes que
chocado, e, quando desaprovava alguma coisa, tudo tratara a ferida. Por sua vez, este Jorge Fernandes ~xpõe
vinha à luz no sermão seguinte. D. Pedro Fernandes os ágravos que tinha recebido de D. Duarte e do filho
não se preocupou com disfarçar as alusões. Toda a -eles não sabiam como devia tratar-se um homem da
gente soube de quem ele estava a falar e o governador ~ua profissão! D. Alvaro da Costa e os seus jovens e
ofendeu-se. urequiet.os amigos tinham deixado cair pedras pelo
telhado dentro de casa de Jorge Fernandes, caindo-
(1) Frei Vicente do Salvador, Livro lll, cap. V.
-lhe elas na cama enquanto ele dormia de noite, e
300 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 301

rtra-se quando o pobre médico protestara. Deviam severa do rei a ·manifestar-lhe f! seu desagrado pelo que
matar-se os homens nas suas camas como porcos? 0 prelado lhe contara de D. Alvaro. Só por conside-
tinham perguntado várias pessoas sérias, mas o gover- ração pessoal por D. Duarte, declarava o seu real amo,
nador recusara-se a tomar conhecimento do facto. Ele e pelo crédito das funções que desempenhava, evitava
era «ornem cheio de seus interesses e muito esquecido ele castigar o mancebo.
das mercês que Deos e Vosa Alteza tem feito» ('). Não D. Duarte respondeu que quase morrera de dor ao
que Jorge Fernandes fosse homem do bispo: «as quali- dizerem-lhe aquilo, porque «as culpas quando os filhos
dades do bispo, diz ele do prelado, bastam pera despo- tem toquem nalma os paes:. (1). Evidentemente o rei
voar hum reino, quanto mais húa cidade tão pobre aceitara como bom tudo o que o bispo escreveu I Quem
como esta 1:. havia de imaginar «que hum bispo de 6o anos nam
Pode fazer-se ideia de como o governador e o quereria infamar hum mancebo meu filho »?
bispo escreviam amargamente a respeito um do outro. Seu filho era um excelente rapaz I Queria que o
O bispo, diz D. Duarte, é ambicioso e duro. Aplica a rei mandasse fazer devassa quanto ao modo como
excomunhão pela mais leve falta, o seu temperamento D. Álvaro se comportara na Índia e outras partes.
é tão violento que ninguém se atreve a aproximar-se O seu procedimento em todos os tempos estava
dele. Tem por seu criado um padre homicida- cujas acima de toda a censura, e nunca fizera mal a ninguém.
«Orações sam falar em guerras e em omens que matou Na Baía fora o braço direito do pai; dava tudo aos
em desafios na Italia» (2). Por indicação do bispo, este pobres; o povo adorava-o e chorava ao pensar que
clérigo rufião espancara um homem pondo-o às portas ele ia embora.
da morte. Fora o filho do governador, D. Álvaro, que Porque o pai resolveu mandá-lo para o reino, para
viera em seu socorro. defender a sua inocência perante o rei e pedir que
O bispo, escreveu D. Duarte, «Se começou a desa- substituísse D. Duarte no seu cargo logo que termi-
contentar de mim e de meu filho e dahi em diante disse nassem os três anos, ou mesmo antes. D. Duarte veria
muitas cousas no pulpito e manda dizer nas estações com satisfação diminuído o tempo do seu governo-
contra mim» (3). D. Duarte declara que se sentiu tentado ao menos para ver-se livre do bispo! <<com todo homem
a mandar D. Pedro outra vez pàra Portugal, mas me concertara, ainda que fosse diabo!» Enquanto
receando que Sua Alteza pudesse tomar aquilo a mal, estivesse no Brasil, o governador ao menos procuraria
suportou com paciência, tratando sempre o bispo com ausentar-se da Baía, «por me escusar de tão terrível
cortesia e nunca faltando a nenhum dos seus sermões t conversação».
Quanto ao bispo, ele sabia bem que armas podia Que fizeram os Jesuítas no meio de todo este
manejar contra o governador, e explorou isso. D. Duarte barulho? Parece que se conservavam afastados. Para
ficou terrivelmente sobressaltado ao receber uma carta eles a posição era incômoda. O governador era o seu
bom amigo ! Vemo-lo muitas vezes pedir conselho ao
(I) Carta do físico Jorge da Costa. Torre do Tvmbo, Corpo Cron.
Parte J, maço 95, doc. 88, publ. in • ob. cit., pág . 379, 380,
(2) Carta de D, Duarte, cit. Ob. cit , pág. 373, I b(l) Carta de D. Duarte da Costa para el-Rei, d~ 20 de Maio de 1555.
0 ·o • cit, pág. 375.
(3) Ibid.
302 CAPlTAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 30~

P.e Luís da Grã, que viera de Portugal com ele, e que governador, que craro mostrav~ ser cousa cuidada de
continuava com o encargo da missão da Baía, enquanto dias e ser feita tam perto desta Ctdade, houve logo Con-
Nóbrega ainda se conservava em São Vicente. O P.• Grã selh~ com algúas pessoas, que pera isso chamei». (1}
deu-lhe a sua opinião quando lha pediu, mas ele e os E resolveu-se fazer e organizar uma expedição punitiva.
colegas tinham de manobrar com cautela. Eles não Parece depreender-se que se tez com bastante
gostavam do bispo e este censurava-os, mas eram relutância. Os colonos que já tinham começado a
demasiado disciplinados para tomarem parte em qual- colher os frutos do seu trabalho não sentiam vontade.
quer facção contra o seu superior eclesiástico. nenhuma de se arriscar às devastações da guerra.
No meio de todo este fervilhar, apareceram os Um movimento tendente a atrair os selvagens dos con-
índios de repente. D. Duarte diz que o ataque não foi fins remotos das tlorestas para cair em cima da colônia
motivado por provocação, o que talvez seja verdade. era coisa que devia evitar-se de qualquer maneira.
Mesmo Nóbrega, sempre disposto a opor-se aos colonos Mas não havia maneira nenhuma, disse o gover-
em defesa dos selvagens, admite que os índios muitas nador. Deixar tal ofensa sem castigo, ou tratar cada
vezes matavam «aos que nunca lhes fizeram mal, cléri- caso por meio de pequenas escaramuças individuais,
gos, frades, mulheres de tal parecer, que os brutos era convidar ao desastre final. Tinha de se organizar
animais se contentariam delas e lhes não fariam mal» (i). um exército para ir imediatamente contra os assaltan-
Os fazendeiros vizinhos da Baía não devem ter tes, e seria comandado por seu filho D. AI varo.
irradiado de si tal encanto, mas dedicavam-se pacifica- Deve ter sido neste momento, em face do perigo
mente aos seus negócios quando se tramavam maquina- ameaçador, que o P.e Antônio Pires, pacificador nato
ções nos acampamentos afastados dos chefes nómadas, de fala persuasiva, conseguiu congraçar as duas cabeças
que vieram a ter resultado perigoso. da colônia, a espiritual e a temporal, persuadindo o
Os Tupinambás que viviam junto da costa e os governado~ e o bispo a visitarem-se. Chegou mesmo a
Tapuias da floresta, após muitos anos de hostilidade,. levar. D. Alvaro a ~pre~entar desculpas ao prelado
fizeram as pazes entre si. Juntos resolveram expulsar os ultraJado- «O que nao fo1 pequena coisa pois o jovem
brancos e ocupar as boas terras que os portugueses fazia dis~o que~tão de .honra», e) ,
cultivavam. Portanto, um domingo, 5o índios fizeram Enhm, o JOVem Alvaro tinha um trabalho impor-
um assalto aos engenhos de Antônio Cardoso, decla- tante a fazer e fê-lo bem. Com setenta soldados de
rando que a terra era deles e que queriam reavê-la. Os infantaria e seis cavaleiros desceu de noite sobre uma
viajantes eram atacados nos caminhos entre as aldeias aldeia índia que encontro~ fortificada com trincheiras
e o Salvador, o gado roubado, os escravos mortos, as cheias de paus aguçados cobertos de tolhas. A batalha
mulheres, crianças e homens brancos aprisionados ou que se seguiu foi feroz, o chefe capturado e a aldeia
caíam debaixo das setas disparadas da floresta.
«Vendo eu tamanho desavergonhamento, escreveu o- (1) Carta de D. Duarte da Costa para el-Rei, de 10 de Junho de 1555.
Torre d? Tombo. Gaveta 18, maço 5, n. 0 13. Publ. in- Hist. da Colon. Port.
do Branl, tomo lll, pág 378.
(2) Carta de i\ntónio Pires, da Baía, 12 de Junhu de 1555. Cartas.
(l) Apontamento de coisas do Brasil, escrito por Nóbrega da Baía. A'Pidsas, pág 143.
a 8 de Maio de 1558 . In • Novas Cartas ]e5uíticas, pág. 76 .
304 CAPIT AES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 305

incendiada. Depois, evitando cuidadosamente as, casas Havia poucos dias que se encontravam no mar,
dos que não tinham tomado parte no assalto, D. Alvaro quando se levantou uma terrível tempestade que os
assaltou os acampamentos dos ladrões de gado e levou impeliu para a costa de Pernambuco. Com ondas
os prisioneiros e as vacas. alterosas e chuva diluviana, enquanto o trovão
Reforçado com 200 homens do Salvador, D. Alvaro ribombava e os relâmpagos cortavam o céu, o navio
marchou em socorro de Antônio Cardoso que estava desfez-se nos rochedos sombrios duma costa deserta .
.cercado no seu engenho e separado das su!ls plantações Deserta? Mas uma hoste de gente escondida
pelos índios de seis aldeias vizinhas. D. Alvaro incen- vigiava do alto dos montes. Enquanto os passageiros e
·diou cinco antes de se juntar a Antônio Cardoso para a tripulação, ensopados .até aos ossos, se esfo~çava~
~jantar, e depois marchou contra um milhar de homens por atingir a terra, a tr:bo, s~lv~ge~ dos Caetes cam
que se tinham entrincheirado na sexta. sobre os náufragos. Ao prmctpto hngtram oferecer hos-
Ali encontrou uma mensagem de desafio: avan- pitalidade aos brancos, mas logo que os atraíram para
çasse e combatesse, senão iriam buscá-lo! Até então o interior, trucidaram toda a gente.
;Combatera com guerreiros sem valor. Experimentasse O bispo, dentro dum barco, ia sendo levado para
:forças com eles e veria ! terra. Os índios meteram-se à água e agarraram-no.
· A batalha foi encarniçada, houve muitos mortos e Mãos no ar! Este era o grande padre dos brancos, gri-
'feridos, mas a vitória coube à minoria bem armada, a taram os companheiros, mas os selvagens nem se
despeito de toda a nuvem de setas atiradas com perícia importaram, nem prestaram atenção. Saltaram sobre a
mortal. Os selvagens foram postos em fuga e a impres· vítima e esmagaram-lhe a cabeça com uma clava.
·s ão causada foi tal que os outros mandaram dizer, Parece que morreu corajosamente.
preocupados, que não tinham feito mal nenhum, sendo E depois os índios devoraram o bispo da Baía.
os prisioneiros e os escravos logo entregues. Nóbrega invejou a D. Pedro Sardinha esta boa
D. Alvaro regressou triunfante do Salvador, diz o sorte. A oportunidade de ganhar a coroa do martírio
pai, e as gentes pediam que o não mandassem para o nunca tinha chegado para ele! Realmente, escreveu ele
reino, «porque o tem elles em outra conta do que o Bispo ao seu amigo Tomé de Sousa, para Portugal, os cami-
escrepveo a Vossa Alteza>>. (I) nhos do Senhor são imperscrutáveis. O bispo nunca
Todavia, quem voltou ao reino foi o bispo. O rei, gostara dos índios, contudo «fugindo elle dos Gentios e
.aborrecido com a série de queixas que choviam de da terra, tendo poucos desejos de morrer em suas mãos
.ambos os lados, chamou D. Pedro Fernandes a Portu- tosse comido d'elles, e a mim que sempre o desejei ~
·ial, para dar explicações. pedi a Nosso Senhor, e mettendo-me nas ocasiões
Em Junho de 1 55 6, o primeiro bispo da Baía deixou mais que elle, me foi negado>>(!)!
·O Brasil na nau Ajuda. Antônio Cardoso de Barros, pro· Talvez, reflecte ele, o Senhor quisesse recompensar
vedor da Fazenda real e donatário do Ceará, embarcou a virtude do bispo com a palma do martírio, ao mesmo
com ele, e muitos outros incluindo mulheres e crianças. tempo que castigá-lo por desprezar os pagãos!

(l) Carta de D. Duarte da Costa , cit. (l) Ca1ta de Nóbrega para Tomé de Sousa. Cartas do Brasil, pág. 193.
XX

A França antárctica

Enquanto na Baia D. Duarte se indispunha com o


bispo1 e Nóbrega trabalhava em São Vicente, coisas estra-
nhas estavam a passar-se na baia do Rio de Janeiro..
Tudo começou em 1 55 3, quando o cavaleiro de
Malta Nicolau Durand de Villegagnon olhou à sua volta
para o vasto mundo e se encontrou em disponibili-
dade. . . Tinha 45 anos; era instruido, belo e de bom
nascimento-produto caracteristico do seu século versá-
til. Tinha o seu lugar entre os latinistas e os helenistas.,
brilhava na Corte e distinguiu-se na guerra. Combatera
os mouros em Argel e os turcos na Hungria. Marinheiro
tão audaz como destemido soldado, escoltara Maria
Stuart, essa rainha romântica, de Dumbarton até
França, navegando pelos mares das Hébridas, então.
quase inacessiveis à navegação. O rei confiara-lhe as
obras defensivas de Brest e fê-lo vice-almirante da
Bretanha. Podia ter alcançado honras mais elevadas e
ainda mais favor, mas Nicolau de Villegagnon tinha
mau gênio e era turbulento. Zangou-se com um colega e
abandonou o cargo.
308 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 309

Que fazer depois? Villegagnon estàva pronto para Villegagnon declarou que renunciara ao mundo. Todo
seguir à procura de novas aventuras. Desta vez o seu 0 que ele agora queria era servir a Deus numa terra
pensamento voltou-se para as aventuras espirituais longínqua!
juntas com as de tipo mais sensacional, porque Nicolau Pela glória de Deus e à grandeza da França t
de Villegagnon, como todo o intelectual do seu tempo, Aquilo falava ao cora9ã~ do almirante, quer ,como
era um amador entusiasta da Teologia. patriota, quer como cnstao. Parece que nesta epoca
Católico ou huguenote? Parece que oscilava Gaspar de Coligny ainda não alinhara com os Hugue-
como um pêndulo. Nesta época entretinha-se com as notes, mas seu irmão pertencia já à igreja reformada,
doutrinas do seu amigo Calvino, e pendia decidida- e as suas inclinações pessoais seguiam essa via. Ville-
mente para a Reforma. gagnon prometeu que a sua colônia seria um refúgio
Para a Reforma ou para fundar uma nova religião · para os da perseguida religião, onde podiam servir o
sua, nem de Roma nem de Genebra? Essa, diziam os seu Deus como a consciência lhes ditava. Coligny ficou
seus inimigos, era a sua ideia, quando, com a bênção satisfeitíssimo e deu todo o apoio ao projecto.
do bom almirante Coligny, assim como a do cardeal de Uma concessão real de 100 libras ajudou a financiar
Lorena, o cavaleiro se propôs fundar uma colônia fran- o projecto, dois bons navios foram equipados e arma-
cesa no Brasil. dos, o sobrinho de Villegagnon, Bois-le-Comte, prepa-
Nos portos marítimos da Bretanha e da Norman- rou-se para pãrtir com ele, mas os colonos desejosos
dia, Villegagnon ouvira muitas histórias dessa terra de se estabelecerem no Brasil não eram fáceis de con-
encantada relatadas pelos atrevidos corsários que regres- vencer. Depreende-se daqui que o santuário para os
savam com os seus carregamentos de contrabando de Huguenotes não foi ao princípio declarado. Talvez
pau brasil. Eles contaram-lhe como a deliciosa baía de hou.vesse um entendimento secreto entre Villegagnon e
Guanabara estava aberta e por ocupar. Porque não C?hgny, porque certamente tornar isso público teria
tomar posse dela para o rei de França? feito perder o patrocínio do cardeal de Lorena e de
O rei Henrique li não punha a menor objecção - outros altamente colocados. Não sabemos de quaisquer
enquanto a tentativa se fizesse de modo tal que mais huguenotes que tivessem partido com Villegagnon
tarde pudesse repudiá-la ! Ele sabia que o seU irmão de quando ele deixou a França em 1 55 5. Levou com ele
Portugal, com quem oficialmente estava nas melhores um frade franciscano,. ~ndré Thévet, que relatou as
relações, reclamava essas terras, mas elas eram vastas suas aventuras; as pnsoes de Paris e de Ruão foram
e havia espaço para todos! Se a França pudesse fixar-se vas~ulhada~ à procura de possíveis colonos, e dois
fortemente no continente ocidental, seria difícil disputar navios, tnpulados pelos sempre aventurosos nor-
com o facto consumado. mandos, saíram para o Brasil.
Nicolau de Villegagnon, fogoso, dinâmico e de falas A 10 de Novembro chegaram à bela baía do Rio
persuasivas, expôs com honestidade a proposta. Igno- de ~aneiro. Ali, à beira das enseadas que se abriam no
ramos o que disse ao cardeal, mas parece que ao sope dos montes coberto,s. de florestas, o espaço
almirante fez uma descrição de uma Utopia do outro so~~va para acampar em s1ttos edénicos. Próximo não
lado do mar, onde não houvesse perseguições religiosas· ex1st1a nenhum forte português. Não havia navios por-
311
CAPITAES DO BRASIL
310 CAPITAES DO BRASIL

E ele tratou o seu grupo com dureza. A ilha era des-


tugueses à vista. Os Tamoios que viviam à beira destas
confortável, o clima quente e a comida pouca, a ch~va
praias eram inimigos ferozes das tribos de São Vicente a única água que tinham, exceptuando a que pod~am
e . por isso dispostos à amizade com os franceses: ir buscar à terra firme. Os condenados aventuretros
Vtvéndo com el~s havia vários normandos desgarrados que estavam esperançados numa vida à larga num
que alguns navtos de passagem ali tinham deixado, e
paraíso exótico encontraram-~e ancorados n~m rochedo
estes ~stavam prontos a servir de intérpretes. Parecia de alguns pés quadrados, obrtgados a moureJar durante
que Vtllegagnon escolhera bem. Estava ali o sítio ideal todo o dia para um capitão de màu gênio. Nem podiall'.
para fundar, a ~ua colónia, que se propunha chamar a escapar-se para terra para derriçarem com as belezas
-«França antarcttca».
índias, que sempre surgiam quando apareciam os ?ran-
Entretanto, ele só tinha uns 8o homens e sendo cos. Villegagnon era homem austero e casttgava
comandante ~ilitar experiente, a primeira ~oisa em tal delinquência com a morte. Ordenou até aos
9ue pensou f01 arranjar uma posição inexpugnável. Para seus intérpretes, havia muito habituados à vida livre
tsso escolheu uma ilha perto da entrada da baía- um da selva, que se modificassem e casassem respeitàvel-
rochedo de cerca de uma milha de circunferência em
frente do canal que liga com o mar, à sombra do gr~nde mente com as suas companheiras.
Casamento respeitável - ou qualquer coisa de
bloco ?e pedra a que os portugueses chamam o «Pão respeitável- era a última coisa que estes rebeldes à
de Açucar», mas que os franceses denominaram «Pote sociedade desejavam. Não é para surpreender que se
de Manteiga». preparasse uma conspiração por parte destes norman-
Numa baía cheia de ilhotas encantadoras -cada dos bravios dos bosques para assassinarem Villegagnon.
uma delas um pequenino paraíso-a escolha de Ville- Ele ouviu falar dela a tempo e estrangulou a revolta,
g.agnon não tinha a recomendá-la senão a sua bela condenando os conspiradores a trabalhos forçados com
sttua~ão estratégica. Nem possuía terra para lavrar,
grilheta.
nem agua b?~ para beber, mas era possível fortificá-la, Sentindo claramente que os seus colonos não
o que o capttao or?enou aos seus homens que fizessem. eram da boa espécie, Villegagnon resolveu mandar o
Com os Tamotos não teve incómodo nenhum. Deu sobrinho à pátria para recrutar novo grupo.Bois-le-Comte
armas e roupas e instrumentos úteis; os seus subordi- partiu e o frade André Thévet foi com ele. O bom do
nados foram con~erv.ados debaixo de vigilância rigo- homem já estava farto da França antárctica.
rosa, pelo que nao hzeram mal algum aos índios. Ao Desta vez Villt>gagnon queria um tipo muito dife-
tratar com os indígenas, Viltegagnon mostrou muito rente de colono, vendo-se guia e chefe duma comuni-
b~m senso. O mesr_no não podia dizer-se das suas rela- dade profundamente piedosa. A piedade de Villegagnon
çoes ~om a sua propria gente. neste período estava a tomar a forma protestante.
. E uma boa coisa para um comandante ser disci- Escreveu uma carta para Genebra a Calvino, a contar-
phnad?r, mas Villegagnon era um oficial de grande -lhe como, movido pelo fervoroso desejo de servir a
a.us,ter~dade, que raro temperava a justiça com a mise- Deus, estava a fundar uma colónia onde a Fé Refor-
ncordta. F~ltava-lhe por completo aquele tacto humano mada iria florescer. Pediu que lhe mandasse ministros,
que tem fetto adorar mesmo os chefes mais severos.
CAPITAES DO BRASIL
c•.PITAES DO BRASIL 3 13

homens de saber e boa doutrina, e leigos bem instruí-


dos ~a verdade religiosa. quais · senam
· dadas em casamento à chegada à França
E claro que Calvino ficou satisfeitíssimo. Escolheu antárctica. 'd f
dois pastores de Genebra, mestre Pierre . Richier e Os três navios foram ccbem forneci os c~m ~r 1-
mestre Guillaume Cartier, homens sensatos e piedosos, lharia e outras munições de guerra», e os mannhe~ros
ambos excelentes pregadores e profundos teólogos. Por ccs ,en tenant fi'ers et forts» mostraram-se
· · verdadeiros.
f
piratas. Assaltaram todos ~s. nadv10s md a1s rac~s que·
seu lado, o almirante Coligny escreveu ao seu velho
ami.go e vizinho Filipe du Pont de Corguilleray a encOn
1
traram no caminho, a tvian o-os os seus vtveres,.
. • · 1 .. d
pedtr-lhe que acompanhasse o grupo. A igreja de Gene- causando em especial mmta pena a tnpu açao . um
br~ ~poiava a peti~ão, e a alma corajosa, apesar de já navio espanhol por lhe roubarem a sua melhor g_al~nha
ccvzezl et caduc», detxou o lar e os filhos e todos os seus poedeira! Mas esta foi uma das suas proezas mats mo-
negócios na esperança de servir o Senhor na França centes. Jean de Léry, homem honesto e temente a Deu~,
antárctica de Villegagnon. sentiu-se chocado com muitos dos seus actos de bandi-
Outros homens cc bien instruits en la religion chré- tismo - mas então, diz ele, os marinheiros são sempre
tienne», reuniram-se sob o seu comando. Os seus nomes má gente! .
eram Pierre Bourdon, Mathieu Verneuil, Jean du Bour- Quer por causa dos sofrimentos com o enJOO e com
del, André Lafon, Nicolas Denis, Jean Gardien Martin o biscoito podre que tinham de comer, quer por causa
David, Nicolas Raviquet, Nicolas Carmeau, 'Jacques dos outros horrores da vida marítima no século XVI, os.
~ousseau. (talvez antepa~sado do famoso Jean-Jacques, viajantes que vinham do interior, em Genebra, d~vem
Ja a praticar o regresso a Natureza que o seu descen- ter-se regozijado realmente quando a 7 de Março vtram
dente iria pregar?) e Jean de Léry, que narrou a história. finalmente a baía do Rio de Janeiro.
Do grupo fazia parte também um indivíduo conhe- Villegagnon recebeu-os com expressões de
cido por Jean Cointa, que por qualquer razão queria grande satisfação. Ergueu os olhos ao céu e,
que lhe chamassem Monsieur Hector, embora em data juntando as mãos, agradeceu ao Senhor a sua feliz:
chegada.
posterior se assine Seigneur des Boules. Homem de
vasta cultura, t endo sido doutor da Sorbona, sabia ler - ccMeus filhos, disse ele, serei um pai para vós!:).
os Evangelhos em grego e estava familiarizado com Como Jesus Cristo na terra nada fez por st,.
a! Escrituras h~braicas. Sabia discutir todas as ques- mas tudo pelos outros, assim ele, Villegagnon, nada
toes de teologta, mas se era calvinista ou católico é queria de seu, mas tudo para bem deles. O seu único
coisa tão incerta como o seu nome . desejo era criar um refúgio para os ccpauvres jideles)>-
perseguidos em França, Espanha e outras partes. .
Estes pioneiros eruditos e de espírito fervoroso
embarcaram num navio chamado La grand' Roherge; Maitre Pierre Richier pregou e Villegagnon bebta-
-lhe as palavras. Soltava grandes suspiros, erguia os.
comandado pelo Sieur de Saintte-Marie de l'Espine.
olhos beatificamente para o céu, batia as palmas com.
Dois outros navios tinham sido equipados ao mesmo
devoção fervorosa. Ajoelhou e rezou em voz alta-
tempo, todos transportando colonos, incluindo cinco
lindas orações. Jean de Léry declara que jamais tinha
donzelas com uma mulher idosa para as guardar, as
ouvido falar melhor acerca de religião. Ali estava um
'314 CAPITAES DO BRASIL 315
CAPlTAES DO BRASIL

-outro São Paulo! exclamou Pierre Richier. Toda a seu forte, a que chamou «Coligny)) do nome do almi-
0
gente ficou profundamente impressionad~. .
rante seu patrono. . .. .
Villegagnon continuou a. o:gam~ar a vtd~ Eles achavam horrível a comtda. Nao havta nada
religiosa da colónia. A nossa IgreJa, dtsse ele, sera que comer senão peixe e raízes assadas. nas cinz~s à
·a mais reformada de todas as igrejas reformadas! maneira dos índios, e uma pequena medtda de fannha
Todas as noites haveria orações, t:>dos os dias se de mandioca, fervida na água verde e fétida da ún~ca
pregaria um sermão de uma hora, e aos domingos dois cisterna que tinham para captar a chuva, e que De Le!y
sermões. diz se parecia mais com um cano de esg.oto; e n_ao
Os casamentos foram celebrados segundo o ritual havia outra água para beber. Com tal ahmentaçao,
'<ia fé reformada. Escusado é dizer que as cinco donze- tinham de trabalhar desde madrugada até ao escurecer,
las encontraram todas marido imediatamente. Dois dos embora não houvesse necessidade real para tal urgên-
criados de Villegagnon foram os primeiros a casar-se, cia. Depois de todas as promessas paternais de Ville-
depois dois intérpretes normandos agarraram-se à gagnon, parecia a Jean de Léry que ele os trata~a «um
oportunidade de apanharem uma mulher branca, e por pouco mais duramente do que um bom pa1 deve
tim o erudito Jean Cointa - Monsieur H ector ? -casou tratar os filhos»!
com a quinta, que era até certo ponto uma A principal distracção nesta ilha parece ter sido a
herdeira, porque o parente que a trouxera morrera controvérsia religiosa. Villegagnon e Cointa mal se
à chegada, deixando-lhe os seus bens terrenos que encontravam, logo cada qual relinchava como o corcel
-consistiam numa certa quantidade de facas, espelhos e de combate pela luta. Cada um fazia discursos sobre
pentes, anzóis .e outras <<petites besognes», tudo de valor Teologia para quem quisesse ouvir e, sem dúvida
para trocar com os índios. alguma, para muitos que o não queriam. Discutiam um
As tribos de Guanabara que não tinham estado com o outro horas e horas, e os teólogos de Genebra
em contacto com os estabelecimentos dos Portugueses entravam em campo com eles.
nunca tinham visto antes uma mulher vestida! Por isso Jean Cointa foi considerado deficiente. Instruído
olhavam com espanto para estas raparigas francesas- pelos ministros, exigiram-lhe pública contissão da sua
-e é tudo o que temos a dizer acerca das jovens noiv.as fé, abjurando os erros de Roma. Parece que Jean
da França antárctica. Seria interessante saber qual foi a Cointa não se fez rogar: sempre era uma ocasião
-sorte destas cinco valorosas pioneiras, mas não há de falar! Tendo-se assim posto ao lado da Reforma
relato nenhum que nos diga que vida levaram na ele e Villegagnon voltaram-se para os ministros e envol~
ilha de Villegagnon. veram-se em aceso debate acerca da Ceia do
Para os homens era bastante dura. Villegagnon Senhor.
não os levara para ali só para ouvirem sermões. Desde Em breve toda a ilha fervilhava de argumentos
o primeiro dia «embora estivéssemos muito fracos da dos que, sendo letrados, nele entravam. As questões
viagem», sem ~e importar com o calor que no Rio pode candentes que tinham separado a Europa e estavam a
·ser intenso em Março, obrigou-os a trabalhar com.o fazer correr rios de tinta e de sangue por um conti-
.cabouqueiros a transportar pedra e terra para construtr nente, abalavam agora um rochedo de alguns pés qua-
316 CAPITAES DO BRASIL 317
CAPITAES DO BRASIL

drados cercado da floresta virgem. Era de mais para semana -vermelho, amarelo, castan?o, branco, azul ~
uma ilha pequena. verde. Exactamente como os papag~tos daquela terra.
Villegagnon disse que mandaria propor o caso à escreve Jean de Léry irritado. Cotsa absolutame~lte
pátria. Guilherme Cartier ia voltar com uma lista de iiD rópria da sua idade e funç?es ! A cor . escolhtda
todos os pontos duvidosos para serem submetidos ao a~a cada dia dava aos subordmados de Vtllegagnon
veredicto dos doutores de Genebra . Carregou-se um ~ID indício do seu humor. V.erde OU amarelo, parece,
navio de pau brasil; nove pequenos índios, devida- eram os piores sinais de pengo. Ignoramos o que ele
mente abençoados, foram mandados de presente ao rei. vestia ao domingo. .
Villegagnon escreveu outra das suas belas cartas a UID a um os colonos fugiam do forte Cohgny e
João Calvino, e assim despediu o grupo. · viver como melhor podiam no continente. Mon-
Partiram. Villegagnon e Cointa ficaram- sempre tam ·
sieur du Pont de Corgmlleray •d'tsse a v·11
1 eg~~non q~e
a discutir. Parece que por esta época Villegagnon, à desde que ele renunciara à Fe Ref~rmada Ja lhe ~ao
força de falar, se convencera de ter errado por com- deviam obediência. Filipe de Corgullleray era amtgo
pleto. Anunciou que mudara de opinião. João Calvino do almirante, por isso Villegagn~n não s~ .. atrev~u a
era um mau homem e um herege! Pôs de parte a ássis- exercer pressão sobre ele. E assim o anctao e P1erre
têncja dos serviços de Pierre Richier e reduziu o ser- Richier levaram o seu rebanho a aguardar junto das
mão diário a meia hora. praias da baía que houvesse um navio a sair para
Ou por causa do seu conflito espiritual, ou porque França. .
o clima não se dava com ele, o gênio de Villegagnon Entretanto Villegagnon mandou um mensageiro a
piorava de dia para dia. Jurava por Sant'Iago que Pierre Richier. Que definisse com precisão as suas
havia de quebrar a cabeça, os braços e as pernas a crenças. Pierre Richier, homem verdadeiro e sem temor,
quem quer que o aborrecesse; bateu num dos seus confessou a sua fé livre e francamente. Villegagnon
homens deixando-o às portas da morte e castigou mandou escrever as respostas e meteu-as numa carta
outros com tal severidade que eles preferiram fugir selada confiada ao capitão do navio em que Pierre
para terra firme e ir viver com os índios. Richier ia partir. As autoridades que prendessem aquele
Com os Tamoios Villegagnon continuava humano homem, escreveu ele, por,lue era herege!
e justo- eles não podiam incomodá-lo com pontos Partiram no Jacques, velho navio que metia água
de doutrina! -mas quando estes amigos índios lhe como um crivo, de t~l modo que o capitão, preferindo
venderam os seus prisioneiros da tribo do Grande levar menos passageuos, ofereceu um barco para que
Gato, ele atormentou os desgraçados de tal forma qae aquele que quisesse voltasse a terra. Cinco dos amigos
eles prefeririam ter sido devorados! de Léry aproveitaram a oferta. Ele próprio esteve quase
Os momentos mais brandos de Villegagnon pare- para ir com eles, mas resolveu à última hora ficar a
cem ter sido dedicados ao vestuário. Tinha com ele bordo do Jacques. E assim chegou a França vivo após
grande sortido de sedas, fazendas de lã e chamalote de uma viagem horrível, camo Pierre Richier, que, todavia,
várias cores, e havia um alfaiate entre os colonos. não ficou detido ao desembarcar, como Villegagnon
Assim, mandou fazer seis trajos, um para cada dia da esperava. O porto em que eles entraram estava nas
318 CAPIT AES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL

mãos dos huguenotes e assim a carta não teve qual- ara avisar o capitão da fortaleza do assalto iminente,
quer efeito. . . · · com ext'to ·
pa que reststlu A

Os cinco que voltaram no barco foram mats mfe- O francês prestara um graude serviço, digno de
lizes. Villegagnon recebeu-os primeiro bem, autorizan- honras e recompensa. Jear: ~ointa, aliás. Monsieur
do-os a viver no continente, mas depois chamou-os ao Hector, que então passou a mtttular-se o Se;gne1:1r des
seu forte e condenou-os por hereges.- «Dize-me em Boules viveu durante algum tempo em Sao Vtcente
que crês !• pediu ele a Mathieu Verneuil.- «0 mesmo gozando de relativo pr~stígio. Fal~va. português fl~en­
que tu não há muito tempo!>> retorquiu o prisioneiro. temente C) tinha maneuas agradavets, e a sua Ins-
Villegagnon mandou-o afogar. trução de~lumbrava os si!Dples faze.n.deiros da cost_,a.
Pierre Bourdon também foi atirado dos rochedosao A vida podia ter-lhe corndo sem dtflculdades, se nao
mar, e o mesmo aconteceu a Du Bourdel. Todos enfren- fosse a sua paixão dominante.
taram o martírio corajosamente; Du Bourdel, a cami- Não havia ninguém em São Vicente capaz de dis-
nho da execução, gritava aos camaradas que se ale- putar com ele po;ttos de Teologia, e. '? escrever ~ra­
grassem, pois a miserável vida presente breve acabaria! tados em latim nao era desabafo suhctente. Por tsso
Cantando um salmo e chamando por Jesus Cristo, ele mandou uma carta para Piratininga onde ao tempo se
foi atirado para a morte. Os outros dois, considerados encontrava o P.e Luís da Grã. O Seigneur des Boules
menos perigosos, foram condenados a trabalhos força- dizia-lhe que desde a mocidade estudara na escola das
dos. Um deles era o alfaiate da colônia, e Villegagnon, Musas e bebera a doce linfa da ciência, que era pro-
como sabemos, tinha predilecção por roupas novas. fundamente versado em Teologia e na Sagrada Escri-
A França antárctica ficou assim reduzida a um tura, tendo aprendido hebreu com os rabinos que
punhado de homens irrequietos a discutirem numa melhor conheciam as Escrituras; que gostaria muito
ilha, e vários fugitivos a viver com os índios nas costas duma conversa com o P.e Luís da Grã sempre que tal
da baía. A estes foi-se juntar logo Jean Cointa, que se oportunidade se desse.
indispusera com Villegagnon- escusado é dizer que Entretanto, perorava aos cidadãos de São Vicente,.
por causa de pontos de doutrina. que o ouviam de boca aberta. Toda a gente lhe elo-
Fosse qual fosse a natureza da divergência, a giava a eloquência, e chegaram a Piratininga rumores
questão azedou-se até ao ponto de Jean Cointa procurar das coisas que ele dizia, e que obrigaram o P. • Luís da
vingar-se de Villegagnon. Grã a descer a costa a toda a pressa «a opor-se à
A oportunidade surgiu quando o cavaleiro de pestilencia•. e)
Malta, desejoso de alargar os limites do seu reino, Foi então que saltou a chispa e os argumentos
incitou os seus amigos tamoios a assaltarem a cidade ferveram. O P. • Luís da Grã aconselhou o seu rebanho
de São Vicente, mandando-lhes uma meia dúzia dos
seus homens para os comandar. n•. ()l) •Sabe ?em a lingua esp~nholu ~iz Anchieta . (Cartas ]e.<uíticas III,
Foi então que Jean Cotn\a se resolveu a juntar-se d 157• Basta porem ver as anotaçoes escntas por mão dele no documento
0
hseu proce~o da Inquisição (Torre do Tombo, 1556 ), para verificar qua
aos portugueses. Acompanhou o grupo de atacantes con eccu multo bem 0 português.
durante a maior parte do caminho, e depois desertou (2) Cartg de Anchieta supra citada, P• 158,
.320 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 321

.a acautelar-se dos hereges franceses, e «Monseor de aos Jesuítas em França pareceu uma ?lma a arder no
Bolés» compôs um libelo em latim contra o P.e Luís da amor de Deus. Todavia, de ~,orna velo a respos~a ~e
·Grã acusando-o de negar o Pão da Palavra às suas oe a Província de Portugal Ja empreendera a mtssao
-ovelhas. do Brasil e que haviam chegado à Santa Sé rum.ores
O Seigneur des Boules pertencia a Roma ou à de a fa~igerada colônia de Villegagnon ser um mnho
Reforma? Tudo o que sabemos é que ambos os lados de hereges.
o renegavam. Era um diletante em religião, intelec- Pelo lado secular as notícias do ultramar não
tuàl ecléctico, mais cérebro investigador do que alma eram animadoras.
desejosa de encontrar a salvação. O século XVI não Em 1 56o o governador português Mem de Sá
tinha qualquer tolerância por esta gente. A católicos e tomou e destruiu o forte Coligny .
.a huguenotes Monsieur des Boules· parecia um herege
perigoso. O P.e Luís da Grã acusou-o de corruptor da
Fé e ele foi levado à Baía para ser interrogado.
Homens do temperamento de Jean Cointa não
fazem mártires. Um homem não morre pela sua fé se o
seu espírito estiver demasiado aberto à objectividade.
Na Baía declarou que fora a sua atitude em defesa de
Roma que o obrigara a deixar a ilha de Villegagnon.
O caso foi levado perante o tribunal secular e afinal
remetido para Lisboa para ser tratado pela Inquisição.
Aí parece que o Seigneur des Boules abjurou e fez a
penitência imposta pelos seus erros. Ao fim de pouco
,m enos de três meses viu-se livre sem mais embaraços.
Depois, ou por livre !ontade, ou por sentença de bani-
mento, partiu para a India. É a última vez que ouvimos
falar desta personagem intrigante. Provàvelmente
.m udou outra vez de nome !
Quanto a Villegagnon, partiu do Brasil em 1558 à
·procura de reforços, deixando ao sobrinho o comando
da ilha. A seguir aparece em França, desta vez
católico ardente, orgulhando-se das 200 léguas que
afirma ter conquistado para a Coroa francesa do outro
lado do mar, e insistindo com o cardeal de Lorena
para alcançar de Roma um contingente de jesuítas fran-
ceses para pregarem o Evangelho na França antárctica.
Tal como parecera um novo S. Paulo a Pierre Richier,
:u
XXI

O Espelho dos Governadores

Quando o novo governador, Mem de ~á, dese_m-


barcou no Brasil, a primeira coisa que fez t01 um rettro
com os Jesuítas, passando uma semana com eles em
exercícios espirituais. .
Um contemplativo chamado ao governo, parecta!
Como os colonos podiam viver à vontade enquanto o
governador rezasse as suas orações! Se tal foi a espe-
rança de alguém, breve se desvaneceu. Oito dias depois,
completamente desanuviado, apareceu o governador,
tomando as rédeas da autoridade com mão firme e
todos sentiram a força com que ele as puxava.
Ao escolher o Dr. Mem de Sá por governador do
Brasil, o rei afastara-se dos precedentes. Não se tratava
dum capitão dos mares da Índia como Tomé de Sousa
e a maior parte dos donatários, nem dom funeionário
palaciano como D. Duarte da Costa. Este era homem
de leis, muito conhecido durante os últimos vjnte anos
como juiz do Desembargo do Paço em Lisboa. Até
onde sabemos, as experiências coloniais nunca o tinham
interessado, e embora, como todos os gentis-homens do
:324 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 32!P

:Seu tempo, Mem de Sá fosse adestrado nas armas, não Villegagnon tivesse durado ci~co anos antes de o.
há notícia de as suas proezas serem testemunhadas em overno da Baía prestar atençao. Esquecemo-nos de:
·c ampo. . ~omo se encontravam isolados e afastados uns d~s.
Podia chamar-se-lhe figura apagada- este irmão outros os pequenos estabelecimentos da costa brasi-
·do poeta Sá de Miranda, nascido no Entre-Douro-e- leira cada qual semelhante à cabeça dum altinete ~nru
-Minho. Homem consciencioso e sossegado, vi vera sua 'vasta capitania, dependendo as ~uas relaçoes.
1ranquilamente em Portugal, casara, educara um mútuas da passagem incerta de na;10s, que ul!s.
-rancho de filhos e cumprira os seus deveres judiciais anos podiam ser frequentes e noutros nao. As comum-
.até que D. João 111, nos fins de Abril de xSS7, o man- cações com a Europa, embora len!as e. ir~egular~st.
dou para o Brasil como governador. Foi o último dom eram realmente mais certas: ((É mats facll vu de Lts-·
que o rei fez à querida terra antes de morrer e, como boa recado a esta Capitania do que da Baía», (') escre-
se demonstrou, o melhor de todos. via Nóbrega de São Vicente, ~o Rio de Janeiro encon-
O monarca devia saber bem que escolhera o homem trava-se perdido de permeio. E objecto de conjectura 0>
à altura. Os governadores do Brasil, tal como os da determinar quanto tempo Villegagnon esteve ali estabe-·
Índia, eram nomeados por três anos, mas R João III tecido antes de mesmo a capitania vizinha dar por isso •.
disse a Mem de Sá que se preparasse para ficar no seu A Baia com certeza não foi completamente informada
posto muito mais tempo. A continuidade era o que a senão em 1 SS7.
colónia necessitava mais- continuidade dum governo Nem a Baía se preocupava com isso ou com qual-
firme mas justo. quer coisa mais. Segundo o P.e António Velasquez,,
O que Mem de Sá observou quando chegou não tudo o que preocupava os colonos da Baía era diver-·
era animador. As dissenções entre D. Duarte e o tir-se e jogar, em vez de trabalharem como a terréb
ex-bispo, seguidas pela rebelião dos índios, tinham requeria c com fouces e enxadas>>. (2) A sua preocupaçãO>
atrasado o progresso e deixado um ambiente de inse- mais séria eram os pleitos judiciais.
gurança. As tribos derrotadas, feita a paz com os Ninguém como o Dr. Mem de Sá para compreen•·
brancos, hostilizavam-se agora umas às outras. Não der que perda de tempo e de dinheiro causam os:
plantavam mandioca e não faziam farinha, e assim a litígios. Ele e o rei tinham discutido o assunto nO>
fome ameaçava a terra, enquanto por toda a parte fora reino e feito os seus planos. De futuro , anunciou ele ~

da cidade os selvagens combatiam e matavam e devo- nenhuma causa devia ser levada ao tribunal sem sua.
ravam os seus prisioneiros. li:en~a, e sem piedade recusava todos os casos que-
Do Espírito Santo chegavam cartas patéticas nao. J_nlgasse dignos de ir a juízo. E de tal modo que-
de Vasco Fernandes Coutinho a implorar auxílio os h~tgantes cansavam-se do seu trabalho, e com diplo-
contra as tribos que assolavam a sua capitania, macta e tacto o governador conseguia a reconciliação~
auxiliadas e incitadas pelos corsanos franceses.
E do sul vinham rumores de intrusões de franceses. (I) Carta de Nóbrega, de .Agosto de 1553. In • Nov;u Cartas J~suíticas..
pág 54.
Para os que estão habituados às comunicações (2) Caru de Antó:1b Velasquez, escrita da Baia, In- Cartas Avulsas.
pág. ISS. '
modernas pode parecer estranho que a aventura de
-'326 CAPlTAES DO BRASIL CAPlTAES DO BRASIL 327

!De vanas maneiras, diz ele, «tirei os odios fazendo poderiam comer carne humana. Também tinham de
.amizades» (1). Chegou a haver dias em que o magis- acabar as suas vagabundagens irrequietas. Juntassem-se
' trado vinha ao tribunal e nada tinha que fazer, por e construíssem aldeias permanentes - não acampa-
mão haver litigantes! mentos temporários- com a sua igreja e casas verda-
Mem . de Sá também pôs fim ao jogo e obrigou os deiras onde os missionários os pudessem ensinar.
rpreguiçosos a trabalhar, estimulados pelo preceito e Estas sugestões levantaram uma tempestade de
•pelo exemplo. Com mão firme cortava nos abusos, e protesto- não tanto dos índios como dos colonos
. contudo havia elasticidade no seu juízo. Não cometeu brancos. Não se podia fazer tal coisa! exclamaram eles .
-o erro d~ supor que nas condições rudes e confusas do Não é possível impedir-se \lm tigre de devorar a presa,
1pioneiro numa terra nova, a lei podia aplicar-se com nem o índio de comer os seus prisioneiros. E se eles se
.a mesma rigidez que no reino, e assim disse ao rei combatiam, se matavam e se comiam uns aos outros,
·«Se V. A. não for muito facil em perdoar não tera tanto melhor! Na sua inimizade mútuá assentava a
:gente no Brasil• (2) segurança da terra.
Todavia, tinha de haver certas regras básicas com Os índios não eram tigres, disse o governa-
~ as quais a colônia devia viver, e a respeito destas o dor, mas seres humanos que tinham de ensinar-se,
.governador era inflexível. Os índios não deviam serrou- e se não quisessem aprender, então era preciso obri- I
"bados pelos brancos! Alguém possuía escravo tomado à gá-los. I

' traição ou por astúcia? A vítima tinha de ser restituída E seguia por diante. Ao princípio os índios não r
<imediatamente. Um colono que possuía vários em seu tomaram a proibição a sério- ela já fora feita antes!
~ poder, recusou-se a entregá-los. Recusava? Muito bem! Mas daí a pouco aprenderam que a palavra deste homem •
:Mem de Sá ordenou que a casa dele fosse arrasada. tinha de tomar-se à letra. Não executou os infrac-
·O culpado veio às boas. Ficou a saber-se que o gover- tores, isso não ajudaria muito- um índio valente deve
i
·nador sabia o que queria. No entanto, este disciplina- desafiar a morte por amor da honra- mas prendeu-os
4ior que não gostava que lhe desobedecessem, via-se e isso impressionou-os muito mais. Se uma tribo deso-
.a pedir desculpa de barrete na mão quando lhe esca- bedecesse, ele não hesitava em incendiar-lhe os acam-
.: pavam palavras de cólera. pamentos, como eles vieram a verificar, mas também
Os índios também lhe sentiram a autoridade. sabiàm que este governador procedia com igual justiça
·O governador mandou chamar os seus chefes. Estes quer para com eles quer para com os brancos.
-eombates contínuos tinham de terminar! disse ele. E submeteram-se aos seus planos. Ajudado
~ se queriam a amizade e a protecção dos Portugueses, pelo~ Jesuítas, ~atisfeitíssimos, juntaram-se quatro
·não deviam ir para a guerra sem licença deles, e nunca aldeias numa umca à volta duma igreja edificada de
novo. Mem de Sá, com os principais cidadãos do Sal-
vador, vei? presidir à cerimônia inaugural da fundação
( ! ) Serviços de Mem de S:í. Torre do Tombo. Papéis dos Jesuítas,
·Maço ~0, n,o 6, pub!. in-.4nnaes da Bibliotbeca Na cional do Rio de janeiro,
quan.d';l fo1 dad.o um banq~ete aos índios. Naquele dia
•vol. ~7, pág. 129-218. ausptctoso bapttzaram-se Oitenta e quatro criancinhas.
(2) Carta de Mem de ~á para el-Rei, escrita do Rio de Janeiro 31 de O governador apadrinhou-as a todas: assistiu a
;:. Março d e 1560. Torre do Tombo. C orpo Cron, Parte I, Maço 104, Doc. 13.

i
.--_
- i'.:..;
328 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 329

toda a cerimónia junto da pia baptismal, olhando bravia de montanhas íngremes e tlorestas impenetráveis.
radiante para os seus afilhados. Se os selvagens ali se conservassem, ?em ~stava, mas
Mem de Sá nomeou um meirinho para manter a faziam incursões até à costa. Um dta catram sobre
ordem na nova povoação, e vestiu o índio contente três índios dos aldeamentos, que estavam numa canoa
com um esplêndido fato. Pela sua própria mão o a pescar, mataram-nos a todos e comeram-nos.
governador entregou-lhe a vara 'do ofício, e mais tarde À volta da Baía todos os olhos estavam pregados
mandou levantar um pelourinho e tronco «por lhes no governador. Que pensava fazer~? Não tin~a. ele
mostrar que tem tudo o que os cristãos tem»('). proibido comer a carn; hu.mana, e nao eram as vttlmas
Os índios ficaram encantados com aquelas novi- seus súbditos? Se nao hzesse nada, os seus paren-
dades. De muito longe chegavam a pedir para lhes tes vingar-se-iam, quer ele os autorizasse,. quer não.
darem normas e os aldearem. A volta do Salvador Mem de Sá sabia o que aquilo queria dizer-hos-
surgiram mais três aldeias, cada uma com a sua igreja tilidades prolongada& para sempre. Mandou condolên-
e escola onde os tilhos dos canibais aprendiam a ser cias aos doridos. Mas disse-lhes que descansassem o
bons cristãos. espírito: a injúria fora tanto a si como a eles; as suas
· Mas Cururupebá - o Sapo Bufador-lançou um armas vingá-los-iam.
desafio desde a sua ilha, onde se encontrava seguro. Mandou-se uma mensagem ao rio Paraguaçu. Os
Queria viver como seus pais tinham vivido desde culpados tinham de ser entregues imediatamente.
sempre, rugiu ele, e matar os seus inimigos e comê-los 1 O governador não desejava castigar os inocentes; mas
Assim, também comeria os portugueses, se eles oão tos- se a tribo insistia em esconder os criminosos, então
sem cobardes e se atrevessem a procurá-lo e descobri-lo. 1oda a gente sofreria por causa disso.- Venham buscá-
Que venham! berrou Cururupebá. Os seus archeiros -los! replicaram os chefes do Paraguaçu. Evidente-
estavam prontos para os receber! mentea quilo exigia uma expedição armada.
Eles chegaram ràpidamente durante a noite com Mas, queriam saber alguns, para que se havia de
fogo e tiros. A habitação de Sapo Butador foi arrasada, fazer tal despesa e ter tal maçada? Tratava-se de uma
e os seus valentes, postos em fuga, refugiaram-se na questão entre índios - deixassem-nos 1 A honra de
selva. O próprio Sapo, levado sob prisão para o Salva- Deus e a da Coroa, disse Mem de Sá, estavam ambas
dor,aí se conservou um ano inteiro. Foi um cativeiro em jogo. E organizou um exército.
educativo, sabe-se que a metamorfose chegou a ser . Levando com ele os parentes dos pescadores assas-
completa. Corurupebá veio a ser «O melhor e o mais smados ~ o P.• António Rodrigues, ex-soldado do
sujeito que ha na terra» (2), e o Boca Torta, outro cani- Par~guai, que fala va todas as línguas índias, abriram
bal impenitente, também foi chamado à ordem. cammho a machado e a foice através da tloresta ínvia.
Mais difíceis de alcançar eram as tribos ferozes Durante um dia e uma noite, por entre plantas rastei-
que viviam a montante do rio Paraguaçu- fortaleza ras e ervas da Uoresta, subindo montes elevados e des-
cendo_ v~les profundos, atravessando rios e pântanos, a
(I) Loc. cit.
expedtça~ P.rosseguiu com esforço até que à luz pálida
(2) Nóbrega, Carta~ do Brasil, pág. 208. da manha Vtram os postos avançados do inimigo forte-
:"330 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 331

mente entrincheirado na encosta do monte. Pintados sinarem Foi um dia feliz para o P.e Nóbrega, e toda
-com as cores da guerra e com toucados emplumados, en Baía enioou os louvores de Mem de Sá. «O Espelho
-com as setas mortíferas na mão, milhares de guerreiros ~os Governadores», chamou-lhe Fn;i Vicente do Salva-
·gritavam, assobiavam e diziam zombarias e sopravam dor. Um homem enviado pelo ceu, exclamaram os
'em buzinas feitas de ossos humanos em sinal de contemporâneos, para a paz do estado 1.
desafio. Mas esta paz estava ainda longe de se e~contrar
A batalha foi feroz e a carnificina terrível; houve garantida enquanto o sul se encontr~sse em pertgo ..Em
muitos feridos. Um Gil Falcão ficou com dez setas espe- 1 558 como se viu antes, Mem de Sa mandou seu hlho
tadas no corpo-era um espectáculo cruel, escreveu o Fernão em socorro do Espírito Santo. O jovem obrou
P.e Antônio Rodrigues, vê-lo a tirá-las com os dentes. grandes feitos na guerra d~ se~va e le~ou a vitória muit_?
Os índios de Mem de Sá lutaram como leões até o longe ao meio da tloresta ate catr debatxo das setas m~rtt­
mtmtgo fugir do campo de batalha, deixando os seus feras. «Dou muitas graças a Deos, escreveu seu pa1 ao
mortos espalhados pelo chão. Que apetite eles cau- rei, por acabar Fernão de Saa meu filho nes~a jornada
savam! Os guerreiros suspiraram, e um homem cedeu em seu serviço, e de V. A.,» (1) mas era endente que
à tentação. ele achava que o sacrifício podia ter-lhe sido poupado,
Por isso se encontrou um cadáver sem um braço porque quando os camaradas do mancebo voltaram,
no campo da refrega. Onde estava o membro que tal- diz Vicente do Salvador, «O Governador os não quis
tava àquele corpo? trovejou o governador. Qual era a ver, sabendo como haviam deixado matar seu filho>>.(l)
pessoa que se propunha jantar em segredo? Se o braço A capitania de Vasco Fernandes salvou-se, mas
não fosse tornado a pôr no seu lugar, jurava Mem de havia ainda o Rio de Janeiro. Para isso precisava-se
Sá, alguém havia de sofrer por causa disso! Felizmente de armamentos poderosos e só em 1 56o chegaram
ainda não era tarde, e o braço reapareceu, para tran- reforços da metrópole. Lisboa ouvira finalmente falar
quilidade de todos. dos feitos de Villegagnon. Evidentemente, apresenta-
As tribos do Paraguaçu foram expulsas para o ra-se o costumado protesto diplomático, e parecia que,
interior no meio de confusão ainda maior, efectuando-se como de costume, o rei de França encolhera os ombros.
a perseguição de rastos pelo chão, escalando uma Não havia nada a fazer, disse ele com brandura, se
montanha a pique enquanto pedras enormes ~ram pre- Villegagno~ se estabelecera no Rio de Janeiro. Os por-
-cipitadas de cima sobre os trepadores. Estes prosse- tugueses tmham liberdade plena para o desalojar!
.guiram incansàvelmente até à vitória, dispersaram o Isso era mais fácil de dizer do que de fazer pensa-
inimigo e voltaram em triunfo ao Salvador. vam alguns. A posição era forte, os franceses ;stavam
Três dias depois apareceu uma canoa em frente da bem a!mados e os seus auxiliares Tamoios contavam-se
por mtlhares.
'Costa fazendo sinais de paz. Os mensageiros declararam
.que tinham trazido os delinquentes à justiça e que os
restantes guerreiros de Paraguaçu desejavam subme- ( 1) C.rt.1 de Mem de Sá para el-Rei d d h
ter-se. Estavam prontos a aceitar as condições costuma- Tombo. Corpo Cron. Maço 102 doc. 103 p' e 1 e Juo o de 1558. Torre do
"')
(< F . v· d ' ' arte 1•
rc1 1cente o Salvador, HiJtória do BraJil,
das- viver em aldeias e ter missionários para os
332 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 333

Mas tinham de ser desalojãdos! disse Mem de Sá, ser muito. Nesta ocasião Mem de Sá tinha os dois
e o seu amigo P. e Nóbrega concordou. Este bondoso navios chegados do reino que estavam mais ou menos
e ascético coleccionador de almas, que parecia viver bem equipados; a estes acrescentou uns nove barcos e
mais no céu do que na terra, tinha apesar disso a com- barcas de vários tipos que pudera arranjar ao longo '
preensão dos negócios dos homens e o entendimento da costa brasileira. Assim, a I 6 de Janeiro, deixando a
dos seus problemas de governo, que o tornavam valioso Baía c<muito de paz e o gentio todo sogeito ~ mais
aos governantes. Mais ainda do que Tomé de Sousa, paci!ico que núca», e) o governador partiu para o Rio 11

Mem de Sá falava com ele acerca de todas as coisas, de Janeiro, visitando de passagem os llhéus, porto
e quando o governador resolveu dirigir-se para o sul, Seguro e o Espírito Santo.
levou o P.e Nóbrega. Independentemente do apoio Em todos estes lugares viu muitas coisas a
moral que a sua presença dava, os seus amigos espe- precisar de reforma, a começar por cima: se o rei
ravam que a mudança seria benéfica à saúde precária queria ter o Brasil habitado, escreveu ele, seria preciso
do padre. Nóbrega estava então muito doente, e deitava «meter nestas Capitanias Capitães onrrados e de boa
sangue quando tossia- sintoma que parecia embara- Conciencia». Os colonos dos Ilhéus queriam abando-
çoso ao médico. As vezes supunha que devia ter reben- • l,
nar as terras- e não se entendiam com o lugar-tenente.
tado uma veia, outras pensava que o sangue vinha da Os de Porto Seguro queriam assassinar o capitão. No
cabeça! «eu o que mais sinto é ver a febre ir-me gas- Espírito Santo o governador encontrou três filhos de
tando pouco a pouco» (I). No clima mais fresco de Vasco Fernandes Coutinho «moços sem barbai, e todos
São Vicente parecia provável que passasse melhor do são capitães))!
que na Baía, onde vivera durante os últimos três anos. O próprio Vasco Fernandes estava ausente na
Quando Bartolomeu de Vasconcelos chegou do costa, mas deixara uma carta a pedir ao governador
reino com uma armada, o governador discutiu o plano que tomasse posse da capitania em nome do rei.
de acção. Todos concordaram que não havia tempo a Por isso, «filo, escreveu Mem de Sá, que se não
perder, portanto- «Eu me fiz logo prestes o melhor que perdese húa tã boa capitania». O Espírito Santo, diz
pude, que foi o pior que hum Governador podia ir!».C) ele, é a melhor depois do Rio de Janeiro. Mas o belo
O facto era que o Brasil sentia sempre a falta de Rio de Janeiro não fora ainda salvo.
armamentos e munições, e artilheiros competentes, A 2 I de Fevereiro a armada aproximou-se da
homens de armas experientes e navios que pudessem baía de Guanabara. Tentaram ancorar da parte de
apoiar a luta. Era muito difícil manter a fndia abaste- fora e entrar a barra a coberto da escuridão. Todavia,
cida de tudo isto e equipar todos os anos armadas aconteceu que o guia que viera de São Vicente para
destinadas ao Oriente- o Brasil tinha que ficar com lhes indicar o caminho cometeu um erro. Ancorou a
o qu~ sobrasse depois desta prioridade, o que não podia armada tão afastada de terra que já era dia quando os
ba~cos se aproximaram da estreita entrada. Foram
avistados pela fortaleza e não se tornou possível um
( I) Nov.Js Cartas Jesuíticas, pag, 70,
(2) Carta de Mero de Sá, escrita de São Vicente, 17 de Junho de 1560~
publ. in· Frei Manuel d os Santos, História Sebástica, pág 36, 37. (I) Carta de Mero de Sá, de 31 d e Março de 1560, cit.

~.~ ., ~
334 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 335;

ataque de surpresa naquele dia. Tudo o que puderam cia a mais forte das duas, mas menos capaz de aguen....
fazer foi capturar um navio francês que estava a tar uma luta prolongada . .
carregar pau-brasil, cuja tripulação fugiu para a Todos os relatos são concordes. em dtzer que a ,
fortaleza. fortaleza parecia inexpugnável, proteg.tda por todos _os,
Bois-le-Comte, sobrinho de Villegagnon, ticara com lados por rochedos naturais de que Vtllegagno?, pento.
o comando. Conforme às regras da guerra cavalheiresca, m trabalhos de fortificação, tirara bom provetto. Não,
Mem de Sá mandou-o desafiar. ;ora em vão que ele forçara a sua equipa a trabalhar·
<<Requeiro da parte de Deus e do vosso rei e do durante o dia inteiro. Toda a ilha era uma fortaleza, e-
meu, que logo largueis a terra alheia a cujo é, e vos havia apenas uma pequena praia onde se podia fazerr
vades em paz sem querer experimentar os damnos que um desembarque, e essa era protegida por poderosas.
sucederão da guerra»! (') Mas o mancebo respondeu defesas.
que não se importava de quem a terra era. Seu tio Apesar disso os portugueses desembarcaram de.
contiara-lha com a defesa desta fortaleza, e defendê-la-ia, qualquer maneira e com as suas bombardas me~ral~a ...
à custa da sua vida e das de muitos outros! ram furiosamente as obras de defesa. Durante dots dtas.
O número de combatentes brancos de ambos os travou-se uma violentíssima batalha com pelouros de-
lados era quase igual. A guarnição de Bois-le-Comte canhão e de mosquete, havendo baixas de ambos os.
ascendia a 74 homens. A estes havia a acrescentar lados. No fim do segundo dia os portugueses sentiram.
40 homens fugidos do navio capturado, e vários outros falta de pólvora. Parecia provável terem de voltar para,
dos que se encontravam espalhados pelo interior e· bordo, levando a artilharia o melhor que pudessem--
se haviam refugiado no forte quando apareceu a armada. mas aconteceu algo de novo.
portuguesa. Precisamente como isso aconteceu não se enconP.
Os portugueses, que tinham sido reforçados com tra explicado com clareza, nem mesmo por .Mem de Sá::
um pequeno contingente vindo de São Vicente, eram «pelejamos sem descançar de dia nem de noite até que
120 homens, mas os seus aliados índios contavam Nosso Senhor foi servido de a entrarmos com muita
apenas 140 contra mais de 8oo tamoios exercitados no· vitoria• ('), é tudo quanto diz. Outros relatos dão-nos.
uso das armas de fogo, que serviam na ilha de Villega- a perceber qu~ ?s portugue~e~ formaram um só corpo .
gnon, apoiados por uma multidão de arqueiros indíge- para darem o ulttmo assalto umcamente à arma branca
nas na terra firme. e assim tomaram a fortaleza. A luta continuou durant~.'
Para contrabalançar esta disparidade, os portugue-· a noite, .a coberto da escuridão, abandonando os defen ..
ses tinham a vantagem dos seus navios e da proximi- sores a. Ilha um a um e escapando-se para a terra firme.
dade de São Vicente como base de abastecimento de· Era ~v~de~te que, não podendo abastecer-se de água, .
reforços. Pelo seu lado, os franceses estavam melhor· a reststencta prolongada seria inútil.
armados e melhor equipados com artilharia e pólvora. A P!lrte esse defeito, a fortaleza pareceu aMem de
Portanto, para a acção imediata, a sua posição pare- Sá a mats forte do mundo quando foi inspeccionar a sua,

(I) Carta de 17 de Junho, cit


(1) Frei Vicente do Salvador.
~36 CAPITAES DO BRASIL 337
CAPITAES DO BRASIL

conquista. Havia lá muito boa ~ artilharia de bronze e foram queimadas, homer:s! mulheres e crianças, senho-
de ferro e outro equipamento de grande valor, mas os
Jesuítas ficaram penalizados e escandalizados por encon- res. e escravos , foram apns10nados, mortos· e devorados.
, d'
Junto da costa e no alto dos mon.tes n;ng~em po. 1a
trarem uma colecção de livros heréticos e nem uma só estar em segurança. P~ra torna~ a sttuaçao amda ptor,
cruz ou imagem na ilha! Apenas um missal roto servia os Tupis, até ali amtgos e ahados dos portugu~ses,
para testemunhar a Igreja de Roma- «Socorra o Senhor vendo-os ameaçados por tal força, c?meçara~ a hes1~ar.
·as suas ovelhas !n, (1) suspirou Anchieta, que registou Alguns deles uniram-se aos T?m~1~s que tmham std~
este pormenor. seus inimigos, e assaltaram Pt,r?tmmga. O B:tB:q~e to1
Celebrou-se missaem acção de graças pela vitória, felizmente repelido com o auxl110 do leal ... Tt?mça -.
e realizou-se um conselho para resolver o que havia a agora completamente cur~do d~s ~uas tendenctas ca.m-
fazer- ocupar a fortaleza ou desmantelá-la. balescas - e outros tupts cnstaos. Mas o pengo
Evidentemente que o primeiro seria o mais continuava grave. Era o castigo dos colonos pelos seus
acertado. nParece muito necessario, escreveu Nóbrega, pecados! pregavam os Jesuítas. Mas Nóbrega apareceu
povoar-se o Rio de Janeiro e tazer nelle outra cidade com uma sugestão ousada.
como a da Bahia», (2) de outro modo seria de recear Porq!!e não propor a paz aos tamoios da costa?
que os intrusos voltassem e o forte então «facilmente Persuadi-los a fazer aliança com os tupis leais! A con-
se póde tornar a reedificar e fortalecer muito melhor. n federação hostil ficaria assim quebrada, São Vicente
Mas Mem de Sá não tinha homens para guarne- livre de futuras incursões, e seria menos difícil encon-
cer mais fortalezas nem moradores que chegassem para trar um lugar de fixação no Rio de Janeiro.
uma nova cidade. Portanto destruiu o torte de Estava tudo muito bem, concordaram os cidadãos.
Villegagnon e levou a artilharia para São Vicente antes Era uma boa ideia, mas quem iria pôr o cascavel ao
de voltar à Baía. gato? Alguém teria de negociar, e os índios não eram
Nóbrega ficou em São Vicente, e aí parece que a gente civilizada que reconhece as convenções diplomá-
sua saúde melhorou alguma coisa, embora ele ainda ticas. Quem quer que fosse discutir as condições com
parecesse muito magro e cansado, eles poderia acabar na caldeira.
Não sabemos para onde toi Bois-le-Comte. Os Nóbrega disse que iria ele e levaria por compa-
outros franceses que fugiram para terra, ficaram com nheiro o jovem José de Anchieta.
os índios incitando-os à guerra contra os portugueses.
Estavam muito esperançados na volta breve de
Villegagnon com outros navios, e então ele tornar-se-ia
um grande senhor no Brasil.
Entretanto os Tamoios assolavam as capitanias
vizinhas. Do Espírito Santo até São Vicente, herdades

Cartas de Anchieta, pág. 160.


Nóbrega, Cartas do Brasil, pág. 227.
22
XXII

A Paz de lperoig

A costa recortada que fica entre o Rio de Janeiro


e São Vicente, com as reintrâncias das suas praias de
areia branca no. sopé de montanhas bravias- essas
montanhas solitárias do Brasil que ainda hoje ninguém
trepa- isto era Iperoig, o campo entrincheirado e
lugar de retiro dos tamoios incursores.
Saíam em massa das profundezas da floresta
impenetrável, por caminhos que só eles e os animais
selvagens conheciam, para descerem a costa em canoas
rápidas e assaltarem os colonos de São Vicente e de
Santos.
Não ocorreu aos chefes tamoios que qualquer
branco pudesse tentar desembarcar nestas costas
excep~o .com grandes forças. Por isso houve surpresa
e cunostdade quando no dia I de Maio pe I 563 cons-
~ou que dois barcos de portugueses tinham ancorado
JUnto da praia. Mandaram-se algumas canoas para o
mar em reconhecimento a uma distância cautelosa.
~nt~s. de destruir os intrusos era bom saber o que
stgnthcava a visita.
CAPITAES DO BRASIL 34 ll
.340 CAPITAES DO BRASIL

Quando se encontravam ao alcance da voz foi-lhes dos nossos homens. Estavam ambos em igualdade de
.dito que era missão de paz. Os homens de São Vicente circunstâncias! Juntassem as suas cóleras contra os
vinham oferecer amizade. Prova da sua sinceridade? pérfidos Tupis.
Dois ccabarés» tinham vindo para negociar. Os «abarés» Mas, os enviados insistiram: não contra esses da
como toda a gente sabia, eram homens de paz e bon~ tribo que continuaram nossos amigos. Em princípio esta
amigos dos índios. cláusula foi admitida, e depois a discussão passou a
E~am realmente <cabarés»? Não seria aquilo uma referir-se a São Vicente e ao Rio de Janeiro. Uma
arma~tlha_? Uma m~lher que vivera com os portugueses delegação de tamoios acompanharia os portugueses.
de Sao Vicente fot mandada para verificar. Ela olhou para tratar com as autoridades e outros levariam <>
os pa~res Nóbrega e Anchieta dos pés à cabeça. Os caso perante os seus colegas de Guanabara, EntretantO>
olhos ftxaram.,.se-lhe em especial nas coroas da cabeça. Nóbrega e Anchieta ficariam em Iperoig como reféns.
A pequena tonsura redonda estava lá! Eram autênticos até o tratado ser confirmado por ambas as partes.
<cabarés», disse ela aos amigos, e aquele velho era o Então Nóbrega e Anchieta mandaram trazer para
chefe de todos eles . terra as suas pequenas trouxas. Os índios pareciam.
Tinham eles vindo para discutir as condições da satisfeitíssimos por tê-los como hóspedes, mas todos os
paz? Os Tamoios consideraram a proposta com inte- seus amigos brancos choravam, como ccque nos deixa-
re~se. Havia alguma coisa que dizer acerca da ideia!
vam entre dentes de lobos famintos» (1). Estes selva-
Nao era que eles vivessem no receio dos brancos gens eram tão caprichosos e inconstantes na sua
Muito pelo contrário- a última ofensiva estivera quas~ maneira de proceder, que todos esperavam que os.
totalmente na.s mãos dos índios. Tão-pouco precisavam reféns partilhariam a sorte do falecido bispo da Baía.
das mercadonas dos europeus- os seus aliados france- Por então os cclobos famintos» não estavam a
mo~trar os dentes. Caoquira, o chefe, tomou os dois
ses de Guanabara tinham-nos bem fornecidos de tudo o
que necessitavam: ferramentas, anzóis, arcabuzes, tacas, enviados sob a sua protecção. Sua mulher, que tora.
espadas e roupas, quando lhes vinha a vontade de as escrava no Salvador até ser libertada pelos Jesuítas
por gratidão deu-lhes de comer. ,.
usarem. Tinham que chegasse e sobejasse de tais coisas.
Esv~ziaram uma choça para uso exclusivo deles,.
O que eles.q?eriam era vingar-se dos Tupis, seus inimi-
e à manetra da hospitalidade ír.dia os seus hospedeiros
gos, q~e v~vtam à. volta de Piratininga. Até então os
Tamoto~ tmham stdo vencidos por estes inimigos que
oferec~ram aos hóspedes de honr~ os filhos e as irmãs.
eram ahados dos portugueses. Todavia a notícia da E!es hcaram espantadíssimos ao saber que tal oferta
nao po d'ta ser aceita sem ofenderem a Deus- «nã<>
rebelião dos Tupis já atravessara os ca~inhos da flo-
~r~~os casados, nem tínhamos mulheres>> (2). Os
resta. Agora parecia que os Tamoios, apoiados pelos
ln. tos ficaram de boca aberta. Como era possível uma
colonos brancos de Piratininga, podiam levar a melhor cotsa dessas ·? Com tsto.
. I d'tsse Nobrega,
,
sobre os seus inimigos, matá-los e comê-los. mostrando.
Não queremos ser vingados em vós, disseram eles
com amabilidade aos portuguese.s, nem precisais de (( 1))
2
C~rtas ~e Anchieta, pág. 200.
Ib1d., pag 475.
recordar o passado, porque vós tendes matado muitos
342 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 343

umas disciplinas que tirou do bolso. Todos ficaram dessas pensavam fazer guerra de guerrilhas contra
profundamente impressionados. Eles deviam de ser São Vicente com incursões incessantes ao largo da
super-homens ! costa enqu~nto por terra se lançariãm ataques da
Os jesuítas aspergiram a choça para a purificar da floresta sempre seguidos até a capitania ficar arrui-
contaminação do pecado passado. Levantaram um nada. Na verdade, a tentativa para estabelecer a paz
altar e Nóbrega disse ali missa todas as manhãs. não podia ter sido mais oportuna !
E todos os dias ele e José reuniam todas as crianças O primeiro aborrecimento que Nóbrega e Anc.hieta
das várias aldeias espalhadas ao longo da costa e todos experimentaram deu-se quando o velho chefe Pmdo-
os homens ou mulheres dispostos a ouvir também, e baçu- cca Grande Folha de Palmeira»- chegou do
pregavam o Evangelho, <<anunciimdo Nosso Senhor Rio de Janeiro. Com ele veio o proprietário da choça
Jesus Christo áquelle~ que dele nunca haviam ouvido»,(') ocupada pelos jesuítas, que ficou aborrecido por encon-
<<aos quaes em pubhco e em particular admoestava- trá-los ali. Saiam os estrangeiros imediatamente!
mos, especialmente que aborrecessem o comer da gritou ele. José de Anchieta, jantando as coisas que
carne humana porque não perdessem as almas no lhe pertenciam para levar a qualquer outro sítio,
inferno, ao qual vão todos os come dores dela. » viu uma figura à entrada da porta a brandir uma
Algumas das mulheres ficaram impressionadas, espada.
mas os homens encolheram os ombros. Eles deviam -«Quem é este indivíduo?» berrou o guerreiro
continuar a comer os seus inimigos, disseram, até esta- apontando.
rem completamente vingados- «devagar cairiam em -«O português)), informaram-no.
nossos costumes». - «Português!» exclamou o índio enfurecido.
Pregando e ensinando, os jesuítas andavam à Anchieta dirigiu-se-lhe com o seu sorriso mais
volta das aldeias de Iperoig. Parecia que os índios acolhedor:
gost~vam muito deles, diz Anchieta, a ponto de lhes -.«Eu sou vosso amigo que hei destar com vós
conharem os planos que tinham sido interrompidos com outros daqui em deante» (1).
a chegada dos pacificadores. -«Não quero sua companhia»! foi a resposta
Na baía de Guanabara, com a ajuda dos franceses, des~nimadora; mas felizmente a espada não entrou em
propuseram construir 200 canoas gigantescas, cada acçao.
uma feita do tronco duma só árvore, para transportar Todavia, o velho Pindobuçu, quando lhe falaram da
120 homens. Em embarcações como esta os índios paz, concordou. E ficou favoràvelmente impressionado
afoitavam-se aos mares mais bravos. Se a canoa fosse com os enviados. Teve longas conversas com Nóbrega
inundada pelas ondas, os remadores saltavam simples- e A~ch~eta. Amaneira como eles viviam espantou-o.
mente para a água e nadavam para terra. Depois, S~nt~a mteresse em ouvir falar dos seus jejuns e absti-
quando as ondas atiravam o barco à costa, recupera- nencta e do seu profundo desejo de evitarem ofender a
vam-no e faziam-se de novo ao mar. Com uma frota Deus.

(I) Ibid ., p.ig 201. (l) lbid., pág. 204.


34S
344 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL

-«E Deus que vos ha de fazer?» perguntou ele d do genro de Ambiré, persuadindo-o a pronun-
((Porque tendes medo dele?» e!lten er f or da paz quando todos tivessem desem-
ctar-se a av .
Por isso eles falaram-lhe do Céu e do Inferno, e barcado em Iperotg. , l d' .
ele «ficou maravilhado,. . ' alto , magro e de aspecto ternve, . , In-
Amb ue,
Chegou à conclusão de que estes homens, com · a a cabana onde se encontravam os Jesmtas.
gtu-se par os seus homens a• volta, com os arcos e
todo o seu conhecimento do outro mundo, deviam de t
Sen ou- Se Com . .. 0 · d
ser feiticeiros ainda maiores do que os pagés. Segredou as setas prontos e os pu~hais na mao. s tamoios e
cautela aos que o seguiam para que os tratassem com ·g estavam a discutir a paz com os brancos de
I pe rol 'dJ . .Isso na"
respeito, senão eles fariam cair uma dúzia de pragas S a"'o Vicente ? Aos do Rio e anetro o '1nteres-
sobre a cabeça dos que os ofendessem. Visitava os seus sava! Não podia ter-se em const'd eraçao " qua1quer esp_:-
'
hóspedes todas as manhãs para saber como passavam. cie de paz, disse ele, se o~ . po!tugueses n.ao
~les mostraram-lhe gravuras da Bíblia, e Pindobuçu entregassem os Tupis, todos sem dtstmçao, aos Tamoios
ftcou encantado, enchendo· os com toda a espécie de para serem mortos e dev~rados 1. . .
perguntas. Deus nos livre! repltcou Anchieta, que era stmul-
- «Vós outros sabeis todas as cousas, foi o seu tâneamente o orador e o intérprete. Uma condiçã()
veredicto definitivo, Deos a vós descobre tudo, rogai-lhe dessas não podia ser aceita. . .
que me dê longa vida, que eu me ponho por vós outros -«Pois que sois escaços dos contranos, rugiU•
contra os meus>> (l Ambiré, não tenhamos pazes uns com os outros>> (1).
Parecia que eles haviam de precisar dessa defesa. E parecia prestes a «logo as quebrar e com que-
Os do Rio de Janeiro tinham considerado de modo bramos a cabeça>>.
carrancudo as propostas de paz. Queriam o sangue José Adorno vendo-o tão bravo como lobo car-
dos reféns - não se importassem com o risco das niceiro:. (2), procu~ou deitar água na fer~ura, dizend()
represálias! Era melhor matar e comer aqueles brancos que nenhumas condições se poderiam hxar sem uma
e levar _POr diante a guerra de acordo com o plano! autoridade mais elevada. Voltaria a São Vicente para
Assim bradava o feroz Ambiré, homem que duma consultar o capitão e eles podiam ir com ele para
vez, encolerizado, esfolara viva uma das suas mulheres. tomarem parte nas discussões.
Este indivíduo agradável, com uma esquadrilha de dez E partiu com cartas de Nóbrega a insistir por que-
canoas, chegara a Iperoig, levando com ele um francês não se aceitassem aquelas condições. Nenhum prisio-
casado com a sua filha. neiro tupi, nem mesmo os que tivessem culpas, devia
Todavia, aconteceu que, no caminho, o grupo ser entregue aos Tamoios- ainda mesmo que ele e-
encontrara um barco de cabotagem comandado por Anchieta fossem mortos e comidos.
Jos.é Adorno, genovês, grande amigo dos Jesuítas e Em São Vicente o capitão leu e encolheu ~s.
r~sidente em São Vicente. José Adorno passara a infân- ombros. Evidentemente não se entregariam os tupis.
cia em França e por isso, em francês. flo.ente 1 fez-se
( 1) Ibid., pág. 207.
(I) Ibid , pág. 210 (2) lbid 1 pág., 208,
346 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 347

leais, mas com os culpados podia-se dar-lhe um jeito! te corria o rio, atrás a canoa aproximava-se
Por isso cumulou os tamoios de atenções quando eles Em fren p e Nóbrega nao.. tm
. h a tempo d e se d es-
d a cos t a. O · . 1 ... 1
foram ter com ele e entregou-lhes um ou dois dos prisio- calçar, pelo que o seu jovem amtgo pegou ne e e po- o
neiros tupis rebeldes para se regalarem. Os Tamoios às costas. .
elogiaram-no clamorosamente por isto, mas, quando Embora Nóbrega fosse magro, a carga era mutto
mais tarde souberam da transacção, os jesuítas fica- ode para as costas de José, que tinham sido sempre
ram horrorizados. fr~cas. A meio do caminho d:ixou cair ~ companheir?
Entretanto, as idas e vindas ao Rio de Janeiro à agua. Debatendo-se, os dots consegutram c~egar a
continuavam a animar a vida em Iperoig. Em espe- outra margem e trôpegamente procuraram abn.go nas
cial, o jovem filho de Pindobuçu - Paraná-puçu, o árvores. Nóbrega, completamente alagado, tuou a
Vasto Mar- queria a morte dos jesuítas e resolveu camisa e as botas e o hábito gotejante e pô-los às cos-
ser o homem que daria o golpe e ganharia as honras. tas, mas quando tentou trepar ao monte, viu que não
E falou das suas intenções aos que o seguiam em Gua- podia dar um passo.
nabara. Queria que eles agarrassem os <cabarés» A canoa estava já a ser puxada para terra. Por
enquanto ele daria cabo deles à clava e à faca. Natu- sorte passou pelos fugitivos um índio da alde~a.
ralmente os pais dos mancebos haviam de desaprovar, Anchieta insistiu com ele até que, com relutância,
mas isso teria realmente alguma importância? Podiam pegou em Nóbrega e o pôs às cos~as. Assim puder~~
castigá-los, mas não matariam os executores que chegar finalmente à cabana de Pmdobuçu - venh-
tinham alcançado tal glória. cando que o seu velho amigo não estava em casa!
E assim aconteceu que, um dia passeando juntos Nada havia a fazer, senão esperar pelo pior.
na praia, Nóbrega e Anchieta viram uma canoa a Os dois homens estavam ajoelhados a rezar Véspe-
aproximar-se ràpidamente, tripulada por guerreiros de ras, quando Paraná-puçu entrou brandindo uma espada
Guanabara. Os jesuítas sabiam que, encontrando-os brilhante. Sentou-se numa rede com o ar carregado,
ali sozinhos, aqueles poriam ràpidamente fim à sua mas não disse uma palavra. Atrás dele entrou outro
missão, tanto mais que a maior parte dos homens de que parecia mais disposto a falar.
Iperoig, que eram seus ·amigos, estavam ausentes em -O francês disse-nos, começou ele, que as vossas
excursão pela floresta. propostas de paz são falsas; «não pretendeis senão que
- Vamos à procura da casa de Pindobuçu, disse- vamos juntos a vossas terras e matar nos» (1).
ram eles. Se lá estiver, proteger-nos-á. Então José respondeu-lhe, e nós sabemos que o
A canoa aproximava-se ràpidamente, vinda do mancebo tinha falas persuasivas. A argumentação foi
mar. A aldeia de Pindobuçu ficava no alto dum longa e no final a sua eloquência e a brandura do
monte íngreme, no extremo afastado da praia, de que P.• Nóbrega amansaram os animais ferozes. Mais tarde
se encontrava separada por um rio largo. Se a qui- o índio confessou que não sabia o que se apossara
sessem alcançar, os jesuítas viam que tinham de correr, dele- <<Eu vinha a fazer isto e aquilo, mas quando
mas isso não é para um homem enfraquecido pela
tuberculose. Nóbrega chegou ao rio quase a abafar: ( 1) lbid, pág 213.
348 CAPITAES DO BRASIL
CAPITAES DO BRASIL 349

entrei a ver os padres caio-me o coração, e fiquei h ·am os jesuítas de continuar ali?
tudo mudado e fraco, e pois eu não os matei, que vinha tantoM, porqu~ d~vt na"o estavam dispostos a deixá-los
tão furioso, já nenhum os ha de matar>>! (1) as os m tos d
. b b ao mesmo tempo, «cren o a nossa
1r em ora am os
Os ausentes de Iperoig souberam da fuga dos • d d sua que e mm pouca>> (•) , escreve
, .
jesuítas e como por pouco escaparam, e ficaram cheios te e ver a e pe 1a - r h
Anchieta. Eles receavam que, _se nao .tcasseUne~. u:
de pena, porque já se lhes tinham afeiçoado. , brancos não mantenam a tregua. m m a
-Não devíamos tê-los deixado sós, disseram eles, re fem, os , f
de ficar, insistiam eles, ate se con udma~ a pazN. 'b
«0 Padre velho onde se irá agora por estes espinhos?>>
S e u m tinha de partir, esse'd evta- ser o rega.
Cunhambeba, um dos chefes, que estava ocupado
Era mats · velho tinha menos sau e, nao a ava a rm-
f 1
a construir uma canoa, deitou-a ao mar por acabar e '
m a fluência .
do seu JOVem co1ega, a1'em d e que
regressou, por entre as ondas agitadas, chegando já gua coresença se tornava necessária em São Vicente.
noite escura para salvar os seus amigos. Quando os a sua p . . · d
Ele não quena tr sem o companheiro, ten o e~pe-
encontrou sãos e salvos, celebrou o facto com um ban- ssem ambos embora, ou ambos «Ser comtdos
quete e danças. ra d o que fo _ . J • t' d
por amor do Senhor>>. ~ao que!Ia_que ose tvesse e
-Ninguém faça mal aos abarés! exclamou. Senão encarar sozinho aquela ctrcunstancta. . .
terá de se haver comigo! Mas José quis ficar de boa vontade e estava mtel•
Conhambeba era todo em favor do tratado de paz ramente preparado para o que pud~sse vir. N~br~ga
que se propunha, pelo que disse aos descontentes de abençoou-o, ordenou-lhe que ap_rovettasse a pnmeua
Guanabara: oportunidade para partir, e asstm se separaram com
-«Vós outros não me enojeis, que eu já matei muitas lágrimas. ,
um dos vossos e o comi ! >> José de Anchieta não estava completamente so
E para prova mandou uma mulher mostrar uma entre os selvaaens. De São Vicente viera António Dias,
perna que escondera na sua cabana. A vista do apeti- um honesto ;edreiro. A mulher e toda a família de~te
toso pedaço, alguns bradaram : pobre homem tinham sido capturados no ano antenor
-Visto que tu o mataste e comeste, comamos pelos incursores tamoios e levados para Guanabara.
nós também um bocado! Ora ele viera munido de coisas próprias para os re~­
Veio farinhà de mandioca e todos se sentaram gates, na esperança de os libertar onde quer que es~l­
amigàvelmente «a roer com ela como perros», diz vessem. Com este intuito ficou com José em Iperotg.
Anchieta. Era um bom homem, diz Anchieta, e o jovem jesuíta
Não era muito tranquilizador ter defensores destes. ficou-lhe grato pela sua companhia. Ao mesmo tempo,
A 20 de Junho chegou de São Vicente um bergan- António Dias ia demonstrar ser uma fonte constante de
tim. O capitão tinha-o mandado a buscar os reféns. Os preocupações para ele, porque não era um «abaré»
Tamoios, dizia ele, pareciam muito satisfeitos e con- tonsurado, e os Tamoios não tinham pela sua pessoa
tentes. Pensava que eles observariam a paz, por- o mesmo respeito.

( 1) Ibid. (I) lbid., pág 215.


350 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 35J.

Ainda menos respeitavam o escravo índio que atingir tal estado. Com a sinceridade dum valente, con-
Antônio Dias levara consigo. Os Tamoios decidiram fessa que «muito me afligia a carne com contínuos
que este homem podia muito bem ser comido. Portanto temores».
fabricaram muito vinho para prepararem a festa e toda E não sem razão. Dez dias depois de Nóbrega ter
a gente bebeu o mais que pôde todo o dia. Não con- partido, um contin~e~t~ chegou do Rio .de Janei_ro
fessaràm a Anchieta o que tencionavam fazer -pelo resolvido a um mortlctmo. Pelo menos asstm parecta.
menos enquanto se não embriagaram. Mas quando a José encontrou-se cercado de guerreiros completamente
noite veio e a todos a bebida subiu à cabeça, correram armados, cada um dos quais avançava pronunciando o
à casa onde o branco estava e apoderaram-se do seu nome, e dizendo quantos inimigos matara e comera.
escravo. Houve luta, mas em vão, para o defender, Mas, depois de se apresentar a si mesmo, cada um
como vã toi também a eloquência de José. deles desaparecia. Ficou só um homem agarrado à sua
Uma multidão de mulheres que gritavam reuniu-se clava, e a passear à volta de José como um cão que
em volta. Como tigres famintos, os homens arrastaram anda ao redor do seu rival antes da luta, a olhar impas-
a vítima para fora da cabana, quebraram-lhe a cabeça sível e completamente calado. José observa que não
e despedaçaram-lhe membro por membro, enquanto as é correcto pensar mal do vizinho, mas «todavia meus-
mulheres cantavam e dançavam como fúrias, espetando olhos estavam bem atentos nele» e dentro , no seu cora-
paus agudos na carne lacerada, untando as mãos e as ção, dizia «faze o que Deus te permitir, que aparelhado-
caras umas das outras com a gordura e apanhando sangue estou ! >> ('),
nas conchas das mãos para beberem. À luz vermelha das Sempre no mesmo silêncio, o homem voltou-se
chamas da fogueira, aquilo era uma visão infernal. vagarosamente e afastou-se, parando um momento.
A reflexão veio quando, de madrugada, a embria- «mui contemplativo>>, até que veio outro e chamou-o.
guez passou. Iriam os brancos de São Vicente vingar-se Houve outras ocasiões em Iperoig em que os índios.
por causa do escravo? Nesse caso, lembrou alguém, se se impacientaram. Não tinham chegado notícias
se considerasse quebrada a trégua, poderiam muito bem n~nhumas de São Vicente a confirmar a paz ! «José,
comer ainda Anchieta e Antônio Dias ! As faculdades dtsseram-lhe eles um dia, aparelha-te e farta-te de ver
persuasivas de José esgotaram-se para os convencer de o sol, porque tal dia temos assinalado para fazer ban-
que não era provável que se vingassem só por causa quete de ti» (2).
do escravo. José sorriu de modo cativante e disse:
Depois disto, diz Anchieta, ele compreendera -((Eu sei muito bem que me não haveis de matar>>,
melhor do que nunca como qualquer pretexto podia A sua confiança desarmou as ameaças deles. Todos.
servir-lhes para os matarem. Portanto, «determinei de estayam _convencidos de que tinha poderes sobrena-
me dar mais intimamente a Deus, procurando não só turais, Nao o haviam surpreendido muitas vezes a falar
achar-me aparelhado para recebe-la, mas tambem des~­
ja-la» e). Apesar de todas as suas orações, não era tácll
(1) Ibid., pág. 220.
. ( 2 ) Simão de Vasconcelos Vida do Venerável Padre José de Anchieta ,_
pag. 92, 93. '
(l) Ibid pág. 217.
.352 CAPITAES DO · BRASIL CAPITAES DO BRASIL 353

ccom Deus? Acreditavam que ele estava altamente xeram de comer ao doente nem levaram a José um
.cotado nos concílios divinos e assim traziam-lhe para bocado de mel que ele pedia para tratar o braço.
resolver todos os seus problemas- mesmo, ao que Anchieta fez o que pôde. Rasgou uma camisa para
parece, as suas desavenças conjugais. fazer ligaduras, e tratou o membro inflamado com
-Devo ou não devo matar a minha mulher? per- azeite. Deu de comer ao doente pelas suas próprias
guntou-lhe na incerteza um marido, que suspeitava mãos e com Antônio Dias partilhou o pouco que
que a mulher era adúltera. Tinha Deus dito alguma tinha~ com ele, tratando-o dia e noite com grande
coisa a José acerca daquilo? Num assunto tão delicado dedicação. Os índios observavam, espantados, e fala-
como a virtude conjugal, José teve o cuidado de não ram daquilo aos seus visitantes de outras tribos, mas
.:Se pronunciar, mas disse: nenhum deles se aproximou ou prestou auxílio.
- ccNão o faças que não quer Deus, antes se abor- Enquanto José tratava o corpo do doente, tez o
recerá muito com isso» (1). que pôde pela alma dele, esperando prepará-lo para o
O marido retirou-se satisfeito, dizendo: baptismo antes que morresse. Mas no fim de tudo
- <<Vim a te perguntar, poq_ue me parecia que o homem escapou, e embora lhe desse ccNosso Senhor
Deus te haveria dito», saude ao corpo», com grande pena de Anchieta não
Pediam a Anchieta as suas orações para afugen- mostrou interesse pela sua salvação espiritual.
tarem os seus inimigos, ou mesmo para obrigarem a Ainda mais estranho incidente foi o da criança
caça a cair-lhes nas redes, enquanto lhe levavam todas enterrada. Uma manhã, enquanto rezava matinas de
as enfermidades físicas para serem tratadas por ele. joelhos, José ouviu vozes e um trabalho de pá fora da
A habilidade de José em medicina e primeiros socorros cabana. Como muitas vezes mulheres índias costu-
de enfermagem, que em Piratininga tão úteis tinham mavam sentar-se ali a fazer vasos, ao princípio não
·sido, prestaram bons serviços em Iperoig onde os seus fez caso. Desta vez, porém, parecia haver algo mais do
serviços em geral tiveram êxito. que a costumada tagarelice; por isso quando acabou
Um ca~o foi melindroso. Um homem de Guana- as orações, perguntou o que houvera a uma mulher
bara veio ter com ele com uma mão doente, inchada e que passava. Tinham estado a enterrar uma criança,
com uma inflamação terrível. Apesar de José a lancetar respondeu ela, e contou-lhe tudo o que sabia do caso.
-em dois pontos, a infecção espalhou-se por todo o braço. Uma mulher acabara de dar à luz um lindo rapaz
O pobre homem tinha um aspecto horripilante com e a sogra enterrara-o vivo! Mas porque se fizera coisa
·O braço aparentemente na última fase de decompo- tã~ horrível? Porque a criança era ccmarabá»-filho de
.sição. Nenhum dos seus companheiros queria aproxi- do1s homens! O pai do pequeno abandonara a mãe,
mar-se dele; de longe chamaram José para cuidar dele e enquanto ela estava grávida dele casara com outro
se para tal se sentisse inclinado, mas especialmente pa~a homem. Filhos desses eram malditos e era desonra
não permitir que a pestilência se lhes pegasse! Depots deixá-los viver. Enterravam-se simplesmente ao nascer.
desapareceram todos, e nem mesmo os parentes trou- Salvasse·se ao menos a alma 1 Anchieta molhou um
pano. :m água e correu a desenterrar a criança e a
bapt1za-la se ainda estivesse vi va. Ela ainda mexia ao
(1) Cartas de Anchieta, pág. 2.26.
23
354 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 355>

de leve, pelo que José executou o rito sagrado, pensando V


azio. Para ocupar o espírito e evitar as tenta-
deixar ali a criança porque parecia a ponto de morrer. o..seu nascidas das horas de 1. azer, J ose, compos uma
A

çoes
As mulheres disseram com indiferença que podia vi ver Vida da Virgem em ~ersos latmos. .
ainda todo o dia. As vezes vi viam! Não tinha constgo papel, nem pena, nem tmta.
Com grande espanto dos circunstantes de coraçã<> Para a sua obra sobreviver teria de a trazer na cabeça.~
empedernido, o horrorizado José começou a desenterrar Por isso compôs a sua magnum opus a passear na
o corpinho ainda meio enterrado. As mulheres reuni- ra ia deserta. Os índios, à distância, observavam e
ram-se à volta de boca aberta. Um homem apareceu p
admiiavam-se, enquanto a f'tgura sol'1tana passeava,
# •

com uma clava para esmagar a cabeça do menino e com um pássaro manso empoleirado nos seus
acabar com ele, mas Anchieta desviou-o, dizendo que ombros. À medida que os hexâmetros se formavam na
àdoptaria a criancinha por filho! sua cabeça, ele. curvava-se e escrevia-o~ com o dedo
Ao ouvirem isto, as mulheres ficaram perdidas de na areia. A escnta era apagada pela mare, mas o acto
riso, «dizendo que já o Padre tinha filhonW) E sacudiam fixara-lhe os versos na memória. Assim nasceu e se
o corpo de alegria. Em vão José implorou que lavassem salvou um pcean de extensão extraordinária que mais
a frágil criaturinha. Nenhuma delas lhe quis tocar. tarde encheu de admiração os contemporâneos.
Por isso José pegou na criança com as suas mãos A 6 de Julho deu-se o regresso do grupo que
desabituadas, deitou-o num pano e «Comecei a limpar levara Nóbrega a São Vicente, o qual caiu como uma
e lavar o melhor que puden. O cordão umbilical estava bomba. Chegaram nas suas canoas a toda a velo-
ainda por cortar, e «como quer que eu soubesse pouco cidade e com grande agitação. Tinham fugido, grita-
do ofício de parteira)>, cortá-lo-ia demasiado curto se ram eles, senão teriam sido trucidados pelos portu-
uma velha não lhe detivesse a mão, dizendo-lhe que gueses! Que acontecera? Eis a históriB que contavam.
não cortasse por aquele sítio senão a criança morreria, Tinham estado à espera em Beriquioca, perto de
e «me ensinou a cortar finalmente». Santos, prontos a juntar-se aos cristãos numa expedi-
Embrulhou a criancinha no pano e entregou-a a ção contra os Tupis, quando chegou um escravo
uma das mulheres do seu hospedeiro que consentiu em tamoio a dizer que fugira de São Vicente. Depois
criá-la para ele, e durante algum tempo várias mulhe- revelou todo o plano nefando!
res a alimentaram ao seu peito; mas quando a brinca- -«Venho a vos dar aviso, meus parentes, disse
deira começou a tornar-se insípida, aborreceram-se do ele, porque lhes quero bem e não queria que vos
ofício, ao que parece, pois a criança vi veu só um mês. matassem. Sabei que logo de manhã vos hão de
Anchieta diz que morreu de fome. «Na verdade, conclui matar os Christãos todosn (1). E já tinham começado a
ele, teve siso em fugir de gente tão má e ir-se ao ceu fazê-lo. Um jovem tamoio que desaparecera do mei<>
gozar de seu Criador» ! deles havia algum tempo tinha sido apanhado pelos
Tais foram os incidentes que vieram animar os portugueses, que lhe esmigalharam a cabeça!
longos dias monótonos, mas não podiam encher tod<> E aqui estava o que lhe acontecera! Os seus

(1) Ibid., pág. 218. (1) lbid., pái:· 2:0


CAPITAES DO BRASIL 357
~56 CAPITAES DO BRASIL

ais perturbação na sua aldeia! berrava ele~


amigos já se perguntavam onde estava ele. Mas, estava causasse m com a paz e respe1ta- · ~ 1a-1a.
· Quant o a
dava
lá o refém de Iperoig? Concor. t _ c< Este e~ o que trata as co usas d e D eus e <>
-«Como nos hão de matar se está o padre?)) Aoc h te a·ro mestre d os C nstaos;
. .. se Ih e fazem a1gum
d el
verd alogo
Aquilo não tinha qualquer importância, declarou
ma,I nos ha Deus e estruu a to d os)) (1) .
d d .
o informador. Os padres não se preocupam com as E acrescentou : .. .
vidas. É seu costume arriscar-se a coisas destas. _«Filho José, não tenhas medo, que eu nao het
Os índios, sempre suspeitosos como um cavalo de consentir que te matem porque bem sei que falas.
esquivo, tinham ouvido o bastante. Saltaram para as verdade». ·
canoas e afastaram~ se. Só o velho e robusto chefe Em recompensa por ele tomar a seu cargo a defesa
Cunham beba ficou. Ele não acreditava na história do do seu servo, Pindobuçu esperava que Deus lhe pro-:
tugitivo.
longaria a vida.
Os outros dirigiram-se ràpidamente para Iperoig A atitude decidida do velho chefe parece ter:
-«Mandavas-nos a tua terra para que nos aterrado os homens de Guanabara. Desde que José nãO:
matassem a todos?)), gritaram eles para Anchieta. podia considerar-se comestível, consolaram-se banque-,
-«Eu não costumo dizer mentiras, respondeu teando-se com um inimigo que tinham preso numa
José com toda a calma, mas trato verdade com vos aldeia vizinha. Com grande risco seu e preocupação ~e
outros; se os meus por ventura vos quiseram fazer Pindobuçu, José seguiu-os até lá para ver se podena.
traição, para isto estou aqui eu só morrerei» ! oonverter a vítima.
Havia sempre qualquer coisa na sua serenidade Todavia este homem desprezou o baptismo. Pro-
que os hipnotizava. Durante vários dias Iperoig ferveu clamou que desejava morrer duma esplêndida morte
como uma panela ao lume, mas contudo ninguém pôs em frente dos seus inimigos.
mão no refém ou no seu companheiro. - «Matai-me, gritou ele enquanto avançava preso-
Depois, um dia, inesperadamente no meio do por quatro cordas compridas, que bem tendes de que
drama, o rapaz desaparecido, e que diziam assassinado, vos vingar em mim, que eu comi fulano vosso pai, a
apareceu cheio de saúde e contente como se nada tal vosso irmão, e a tal vosso filho ! ))
lhe tivesse acontecido. Onde estivera ele ? Simples- E continuou a enumerar todos os que tinha devo-·
mente a caminho da sua terrá. Em São Vicente nin- rado, como se fosse ele o matador e não o que havia
guém lhe pusera mão. Fora tomado daquele súbito de morrer. No final enfurecera de tal modo os seus.
mal-estar que às vezes ataca os índios que se encon- inimigos, que se pr~cipitaram ao mesmo tempo sobre
tram entre os brancos. Por isso fugira e se dirigira a ele e o mataram. Assim morreu como queria -
Iperoig através da floresta e pela costa. Demorara um guerreiro pagão até ao fim, e isso, diz José com tris-
mês no caminho. teza, era o que ele preferia à salvação da sua alma~
O velho Pindobuçu pegou na sua clava e desatou Para complicar ainda as coisas, António Dias.
a dar pancada para todos os lados. Basta va de dispa-
rates! E batia no peito e com os pés no chão e berrava (1) lbid' pilg. 223.
contra os descontentes do Rio de Janeiro. Que ninguém
358 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 359

adoeceu. Durante vários dias esteve completamente Pindobuçu; se lhe faz:m algum mal, tantof. se hma dae
inutilizado, impossibilitado de servir-se das mãos ou · Deus contra vos outros como se tzesse
dos pés; «fiz-lhe eu os remédios que pude», diz Anchieta enOJar
mas não tinha à mão nada que servisse, e a comida er~ mim•. .
Seria realmente asstm? perguntou p·tn dobuçu,. que
um problema. Sempre fora difícil, porque os índios · · um respeito total pelo Deus de Anchteta.
umas vezes traziam-lhe comida, outras não. José andou a d qutrtra
_«Assim? Dize-lhe que nao - ten h a me do que se
pelas aldeias a pedir um frango para o doente, e assim. venha sempre á minha casa comer:.. . . .
viveram dia a dia, umas vezes bem, outras mal, até que E concedeu-se assim a Antomo Dtas o dtretto
Antônio Dias melhorou. de existir mas direito precário, mesmo para Anchieta,
José apreciava muito a sua companhia, ~r.as a sua apesar d~ o suporem muito inf~ue~te ~as esfe~as
presença era uma grave fonte de preocupações. Os índios celestes. Era de esperar que um tndto nao embna-
não lhe atribuíam poderes sobrenaturais, e ele possuía .gado tivesse isto em consideração, mas frequer:-
coisas materiais que eles cobiçavam. As ferramentas e temente ·os índios embriagavam-se. Esta gente, dtz
as contas e outros objectos que trouxera na esperança Anchieta ccquasi sempre anda quente de vinho>>. Durante
de resgatar a família eram disputados energicamente. dias e n~ites a fio os homens e as mulheres bebiam,
Todos os que tinham perdido um parente em qualquer .cantando e rugindo como gente dementada. Nessas
combate com os brancos apareciam a reclamar a ocasiões os brancos não sabiam para onde ir. José diz
compensação. Antônio Dias foi obrigado a distribuir os que passou a maior parte doma noite fria de pé e a
seus bens por completo, e cada homem ainda pediu tiritar à chuva fora da cabana, à espera que se acal-
mais. masse a orgia de bêbados que ia lá dentro. Quando já
-«À mim não deram foice>>, queixava-se um. não podia suportar aquilo por mais tempo, dirigiu-se
«Nem a mim tal», berrava logo outro. «Nem a mim de rastos para a fogueira e viu que os festeiros, cegos
tal» ! pela embriaguez, não deram fé. É realmente para admi-
. Em geral era Pindobuçu a única pessoa que abas- rar que ele e Antônio Dias escapassem sem a cabeça
tecla os brancos de alimentos, e fazia-o por considera- partida durante qualquer dessas bacanais.
ção para com Anchieta. O regresso de Cunhambeba de São Vicente veio
-ccNão quero que façam mal a este>>, C) dizia ele aliviar a tensão de tantos dias. Sim, disse ele, a
com todo o cuidado aos seus homens. Aparentemente paz com os portugueses estava finalmente firmada!
n~o se importava com o que acontecesse a Antônio P.• Nóbrega conseguira-o, reunindo os tamoios com
Dtas,. eco que me era causa de grande angústia», escreve os tupis cristãos na igreja e fazendo-os abraçar-se uns
Anchteta. E resolveu que não matariam o seu amigo aos outros e esquecer o passado. Agora eram irmãos e
sem o matarem a ele primeiro, fazendo tudo o que pôde juntos podiam atacar os rebeldes!
para elevar o prestígio do pedreiro : A notícia foi recebida com grande alegria e todos
- «Este é o que faz as igrejas de Deus, disse ele a os homens se prepararam para partir para São Vicente.
Pindobuçu ià seguir numa esplêndida barca que um
(I ) Ibíd, pág. 2: 9. francês dera a um amigo seu recentemente regressado
360 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 361

do Rio de Janeiro. José pediu-lhe para levar Antônio por 0 deixar ~r, - ao que parece, porque se habituara a
Dias com ele.
amá-lo como filho.
Mas José não devia ir! gritaram as mulheres. A 22 de Setembro José de Anchieta partiu final-
Por afeição? Não era isso. Elas não queriam que não mente deixando aquela ~osta b_ravia e pedregosa ~~de
ficasse ninguém sobre que pudessem vingar-se se os assara seis meses que nao podta esquecer, e adqm~tra
seus maridos tivessem luta em São Vicente. ~xperiência dos costun:es í~di?s ~r~e lhe servinam
José afirmou-lhes que por então ficava. Era refém durante toda a sua carreua m1ss10nana.
e não abandonaria o seu posto se o não deixassem ir A viagem ao longo da costa foi agita~a, porque se
de boa vontade. levantaram fortes ventanias e a canoa quase se afundou.
Antônio Dias partiu- não sabemos sê alguma vez José diz que nunca sentira tão perto a morte, nem em
resgatou a mulher e os filhos- José ficou em lperoig, todos os momentos de alarme que tivera no passado;
«encomendando a Deus seu caminho, diz ele e espe- mas Cunhambeba e os seus homens eram remadores
rando que endireitasse o meu». e> ' experimentados e levaram o barco a ~~lvamento,
O P.• Nóbrega obrigara Cunhambeba a prometer embora cca água nos dava pela cara e boca Ja coalhada
levar Anchieta. Quando lho recordavam, o chefe disse: e feita de sal» (1).
-«Verdade é que prometi, se os mancebos cá Desta maneira se negociou e confirmou a paz de-
fossem contentes disso». Iperoig- paz que os tamoios da região observaram
Ao contrário das outras mulheres, a mulher de fielmente, ambora nunca fosse aceita pelos de Gua-
Cunhambeba não pôs qualquer objecção. nabara.
-«Leva-o», disse ela, aliás os do Rio podiam O ajuste de contas ia chegar com o regresso de,
voltar e matá-lo-iam. Mem de Sá ao Rio de Janeiro.
Cunhambeba teve conselho com os homens que
tinha~ ficado, e José retirou-se para outra aldeia para
os detxar deliberar à vontade, dizendo-lhes que lhe
mandassem recado se resolvessem que ele devia
embarcar.
Dois dias depois chegou a almejada ordem de
libe~taç?o. Os homens tinham concordado em que não
havta nsco; a paz parecia tirme e estável, e o refém
podia voltar a casa.
José prometeu à mulher de Pindobuçu que volta-
ria um dia, para garantia do que lhe deixou alguns
livros e pequenas coisas guardadas numa caixa, e
fechando-a entregou-lhe a chave. Ela ficou muito triste

(1) Ibid., pág . 231. (1) Ibid., pág. 233.

I -----
XX li I

A Fundação do Rio de Janeiro

Se Villegagnon tinha um sobrinho, também Mem


de Sá tinha um. Diziam que o jovem Estácio era
homem de valor e prudência, pelo que a rainha
regente o mandou chamar depois de receber informa-
ções do Brasil.
Ela disse-lhe que o tio procedera muito bem.
Estava muitíssimo satisfeita por saber que a fortaleza de
Villegagnon fora destruída. Mas Mem de Sá não explo-
rara bastante a vitória. Nunca devia ter deixado o Rio
de Janeiro desocupado. O governador tinha de voltar e
fundar uma cidade junto daquela costa, expulsando
primeiro todos os franceses que ainda restavam.
Assim se conservaram ainda as relações franco-
-portuguesas com o seu paradoxo. Ao mesmo tempo
que a rainha D. Catarina felicitava Mem de Sá por ter
arrasado a fortaleza de Villegagnon, este anda va a
r~clamar uma indemnização pelas costumadas vias
dtplomáticas. E o governo português estava inclinado
a dar-lha de boa vontade! Não porque a reclamação
se baseasse em qualquer fundamento sério, escreveu de
364 CAPITAES DO BRASIL
cAPITAES DO BRASIL 365
Paris João Pereira d' Antas, mas seria para lamentar
que a «Y ndignação e hodyo» (1) pudessem surgir entre ..
S ao Vicente q~e só por si, valia uma hoste. Mem de
as duas nações, ou «menos amor e amizade» a dirigi- s, convenceu o ' so b nn
. h o a d etxar-se
. . em t u do
gutar
rem as suas relações. Além disso- «Monseor de Villa- :los conselhos de Nóbrega.
ganhão» era tão bom católico (!), e «zelloso da Relli- p o plano de acção. consistia em entrar ~m som de
gião como he», um favor desses podia fazer-se-lhe. guerra no Rio de Janetro! fazer o reconheci ~ent~ dos
De nenhum dos lados parece que alguém se arredores e atrair os navios franceses que ali esttves-
importasse com que a indignação e o ódio pudessem sem para o mar ~om o f_im de destruí-l~s. Todavia era
nascer entre os seus respectivos súbditos do Brasil. necessário o maior cutdado para nao molestar os
Para se precaver de toda e qualquer repetição da Tamoios que, ao que se supunha, se conservavam em paz.
escapada do estimável Villegagnon, a rainha mandou No Espírito Santo receberam-se reforços. O lugar-
equipar dois galeões de guerra, e o jovem Estácio -tenente do capitão, Belchior de Azevedo, chegou tra-
de Sá com eles para ir ter com o tio no Brasil e zendo com ele o valente chefe índio Araribóia. Este
tomarem posse da baía do Rio de Janeiro. homem, um dos refugiados que subira a costa com
Estácio chegou à Baía nos fins de 1563 . Seu Maracajá- o Grande Gato- sentia-se contente por
tio ~ecebeu-o com alegria e preparou-se logo para obter a oportunidade de voltar à sua antiga terra.
reumr todas as forças que pudesse para a expedição. Martim Afonso Araribóia - para lhe darmos o seu
Aos galeões juntaram-se seis ou sete navios que nome de baptismo, porque ele fizera-se cristão-, tal
a~davam na cost~ b~asileira, mas a questão do poten- como o sou homônimo Martim Afonso Tibiriça de
cial humano constitUJa um problema. Era preciso man- Piratininga, tornou-se conhecido como guerreiro valo-
dar soldados a combater na baía de Guanabara, mas roso ao lado dos portugueses, sendo mais tarde recom-
os que havia não chegavam. Também se precisava pensado pelo rei com o ambicionado hábito de Cristo.
de colonos, porque não podia haver uma cidade sem Da entrada de Guanabara Estácio mandou um
habitantes. No Brasil não existiam regiões superpo.. batel a São Vicente a buscar o P.e Nóbrega. Entre-
voadas aonde se pudessem ir buscar, pelo que Estácio tanto, convencido de que a paz havia sido aceita por
rece~e.u _instruções para visitar outras capitanias quando todos os tamoios, alguns homens désembarcaram den-
se dmgisse para o sul e recolher os que quisessem ir, tro da baía para irem à procura de água do delicioso
ou quaisquer índios amigos que desejassem seguir rio Carioca, sendo ali assaltados por canoas dos ini-
para ali. migos, que os mataram.
Mem de Sá também devia ter partido, mas toda a E havia outros à espreita. Navegando à volta da
gente do Salvador implorou ao governador que não a baía, os portugueses puderam ver todas as ilhotas
deixasse. Estácio era muitíssimo competente; o ouvidor cobertas de canoas, armadas e prontas a atacar,
Brás Fragoso iria com ele, e havia o P.e Nóbrega em en_quanto todas as praias estavam coalhadas de guer-
reuos índios pintados e emplumados, brandindo arcos,
(I) Carta de João Pereira d' Antas p.ara el Rei, escrita de Paris, 1O de
batendo com os pés, disparando setas para o ar, ber-
Janeiro de 1563. Corpo Cron. Part.: I Maço 1C6, doc. 45 . rando em ar de desafio.
Deram-se algumas escaramuças, mas nem o ini-
366 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 36?

migo se deixou atrair para longe da costa, nem Estácio não tinham qualquer experiência da arte da guerra dos
conseguiu que os seus batéis desembarcassem as suas índios ! E os índios tamoios eram os inimigos mais
tropas em grande número. Pensou em ir a São perigosos de todos, os mais ferozes e os mais
Vicente para reunir pequenas embarcações -mas São bravos, e tinham com eles grande número de franceses
Vicente estava em guerra, conforme o informou um que os haviam ensinado a manejar as armas dos bran-
c a ti vo tamoio ! cos. Muitos sabiam disparar uma espingarda com tanta
Era por isso que o P.e Nóbrega se demorava? perícia como um mosqueteiro europeu.
Mais uma razão para seguirem para o sul para o Pensara ele nos abastecimentos de comestíveis?
socorrerem. A esquadra pôs-se a caminho, mas uma Santos e São Vicente sentiam a falta de provisões. As que
tempestade obrigou-a a voltar para trás. Tornaram a tinham vindo na armada eram insuficientes para qual-
entrar na baía e ali encontraram o P! Nóbrega que quer campanha prolongada . Não fossem eles imaginar
acabara de chegar com o irmão José de Anchieta. que podiam viver do que produzia o país! Não se podia
Era a manhã de Páscoa; Desembarcaram todos obter mandioca e caça daquelas florestas hostis. Que
juntos na ilha abandonada de Villegagnon. O P.e Nóbrega perspectiva seria de esperar de um punhado de homens
disse ali missa e depois ele e o càpitão consideraram a nas margens hostis da baía de Guanabara, senão um
situação . morticínio geral ou a morte lenta pela fome? Provà-
As notícias que tinham vindo de São Vicente, velmente as duas coisas!
disse Nóbrega, eram absolutamente falsas. A colônia Estácio contradisse estes argumentos o melhor que
sofrera algumas incursões índias, mas não se estava pôd~, mas havia ocasiões em que eles o faziam pensar.
em guerra, e os índios de Iperoig tinham sido leais No hm de contas, também ele era novo no Brasil e os
para com a paz.
. .
pessimistas eram antigos residentes. '
Mas os do Rio de Janeiro? Era perfeitamente . -Padre Nóbrega, disse ele um dia ao seu conse-
evidente que eles queriam que os considerassem de lheiro. «Que conta darei a Deus e a El-Rei, se deitar a
fora! Nóbrega deu de conselho que toda a armada fosse perder esta armada?» (').
primeiro a São Vicente, onde a campanha podia ser . -Senhor, respondeu Nóbrega, com serenidade e
preparada com mais cuidado, se poderia abastecer firmeza. «Eu darei conta a Deus de tudo e se for neces-
e obter-se mais embarcações para se efectuar o desem- sario, irei deante d'El-Rei a responder por vós>>,
barque, e ainda recrutar-se mais homens. . C! P.e Nóbrega não tinha dúvidas. Mais do que
Em Santos e em São Vicente a gente sensata aba- mnguem, ele tinha feito sua a empresa. Pensara muito
nou a cabeça. Que é que o jovem Estácio pensava nela e rezara, estando absolutamente convencido de
fazer? Como podia fundar-se uma cidade com algumas ~~e 0 Senhor queria que se edificasse uma cidade no
dezenas de homens, quando todas as florestas e as mon- •
10
d~e Janeiro- cidade de onde o Evangelho podia
tanhas circunvizinhas estavam eriçadas de inimigos à tr~a Iar para as bravias tribos de tamoios até então
espreita? Trazia consigo homens de armas experimen- nao tocadas, o que poderia libertar os homens de
tados vindos de Portugal? Ora! ora! Para que serviam
eles? Não conheciam a terra, o clima era-lhes estranho, {1) Antônio Franco, Vida de Nóbrega , in- •Cartas do Brasil•, pág. 52'~
'368 CAPlTAES DO BRASIL

São Vicente do espectro sangrento que lhes assaltava


as costas.
Ninguém trabalhou tanto como Nóbrega para des-
pertar o entusiasmo pela campanha. Ele disse que esta
devia empreender-se para glória de Deus e honra de Por-
tugal. Entre Santos e São Vicente, distante duas léguas, a
subir os caminhos íngremes que levavam às alturas de
Piratininga, este homem esquelético e de aspecto alque-
brado andava dum lado para o outro a pé, recrutando
homens, arranjando abastecimentos, aconselhando e
animando o capitão. Indivíduos enfadados maldiziam
entre dentes esta figura espectral, consumida pela
energia que levava tudo adiante do seu dinamismo:
-«Cá vem o tyrano, resmungavam eles, demônio,
Pharaó, que nos tem quasi captivos !» P.c Nóbrega pas-
sava e fingia não ouvir, não afrouxando em nada os
seus esforços.
Procurava aliciar todos os homens capazes.
Aos que alegavam pobreza e encargos de família,
-emprestava dinheiro das quantias que a magnificência
real concedera ao Colégio dos Jesuítas. Convenceu os
conversos índios a alistarem-se e também foram levados
muitos mancebos valentes, uns para auxiliarem na luta,
outros para se fixarem na terra a conquistar.
Nóbrega também tomou ao seu cuidado os solda-
dos que Estácio de Sá trouxera com ele de Portugal e
que estranhavam o meio. Com palavras vivas deu-lhes
coragem; a casa dos Jesuítas de São Vicente tornou-se
para eles um lar fora da pátria, e Nóbrega levou-os à
vez com o seu capitão até aos belos campos de Pirati-
ninga. Aí nas alturas arejadas, gozaram dias dum
ambiente diferente e descansaram no Colégio já rodeado
de jardins e de pomares cheios de frutos. Aí viram os
índios das aldeias próximas, amigos e convertidos e
quase civilizados e adestrados no uso dos armamentos . . A baía do Rio de janeiro e a cidade de S. Sebastião
0 0 codice quinhentista da Biblioteca da Ajuda, "Roteiro de todos os sinais, conhecimentos,
da Europa. Tudo aquilo era reanimador. fundos, baixos, alturas, que há na costa do Brasil " .
CAPITAES DO BRASIL 369

Enquanto esteve em Piratininga, Nóbrega mandou


os seus emissários às tribos tupis que dantes tinham
causado preocupações, dizendo-lhes que o principal
capitão chegara e daria salvo-conduto a quem quisesse
a paz. Os chefes, já cansados da guerra, ficaram con-
tentes por se submeterem. Assim reinou a tranquilidade
mais uma vez e os catecúmenos vieram à instrução.
Com o moral completamente reanimado por esta
digressão pela montanha, Estácio e os seus homens des-
ceram à planície, trazendo para a armada. provisões de
Piratininga. Da Baía e do Espírito Santo mandaram-se
vir mais mantimentos. Muitas canoas tripuladas pelos
mamelucos preparavam-se para sair para o mar; mas
todos estes preparativos levaram forçosamente meses.
Foi em Janeiro de x565 que a armada saiu final-
mente de São Vicente, levando 200 homens e abaste-
cimentos para três meses, «que era bem pouco para
se poder povoar o Rio» (1), escreve Anchieta, mas tal
como estava tinha de servir.
O próprio irmão José seguiu na armada encarre-
gado dos índios, quer de Piratininga, quer do contin-
gente de Araribóia do Espírito Santo. Ninguém sabia
melhor como se havia de tratar com eles, ou tinha mais
possibilidades de se lhes dirigir na sua própria língua.
Mas José não estava ainda ordenado e tinha de haver
um capelão junto das tropas e também para os índios.
Por isso, Nóbrega escolheu o P. • Gonçalo de Oliveira,
que fora criado no Brasil e ensinado por José em latim,
para receber a sua ordenação, recente. A situação de
um professor, com um antigo aluno agora seu superior
eclesiástico, seria embaraçosa entre homens menos
~evotados do que aqueles dois, mas cada um deles
hcou satisfeito por obedecer às determinações de
Nóbrega- que José obedecesse às ordens do P.e Gon-
'·· .
(I) Cartas de Anchieta pág . 246·
24
370 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL

çalo, enquanto este deveria respeitar o mestre que o Com isto os espíritos desanimados reanimaram-se •.
ensmara. A esquadra reunida entrou na encantadora baía, e as.
A esquadra partiu no dia 20 de Janeiro-festa do tropas desembarcaram «como quem entrava em sua.
mártir S. Sebastião. A todos pareceu um dia auspicioso: terra>> (').
não era também o nome do seu jovem rei? S. Sebastião O local escolhido por Estácio foi o que é hoje
seria o patrono desta empresa! conhecido pela Praia Vermelha, por detrás do Pão de
Até onde podemos chegar-·porque os relatos não Açúcar, no sopé do rochedo denominado Urca. A situa-
são muito claros-as forças constavam dos dois galeões ção era a de uma fortaleza natural -uma língua de
atrás citados, um na vi o francês capturado ao largo da terra entre as ondas do Atlântico que vinham que-
costa, cinco embarcações mais pequenas, três das quais brar-se na pequena praia limitada por rochedos inaces-
a remos, e cerca de oito canoas. síveis, e as águas tranquilas duma pequena enseada
Parece que houve certa diticuldade em aprontar a fechada- o moderno Botafogo. Do outro lado, cor de
partida ao mesmo tempo e em os conservar juntos púrpura, lisas e perpendiculares, erguiam-se muralhas
enquanto subiam a costa. Os ventos eram contrários de granito que nem mesmo uma cabra podia escalar
a capitaina era um barco vagaroso e ficava para trás: para alcançar os jardins de verdura que ondulavam
Quando a terra dos Tamoios se aproximava, tornou-se lá em cima. Estácio propôs-se fundar ali a sua cidade
necessário que os barcos maiores escoltassem as canoas de São Sebastião do Rio de Janeiro.
e estas tinham de varar em qualquer ilha todas as noites: Foi no dia I de Março de I 565 que toda a gente
Além da Ilha Grande- em frente da actual Angra começou a trabalhar. Com grande fervor cada homem
dos Reis- parte da armada teve de aguardar muitos pegou na sua enxada e começou a limpar mato e a
dias a capitania que mal podia lutar com o tempo. abater árvores para construírem uma paliçada a toda a
Os índios e os mamelucos estavam a ficar aborrecidos volta. Uns serravam madeira, outros transportavam-na,
e também tinham fome. Assaltaram uma aldeia dos outros acarretavám terra e pedras. Desde o capitão até
Tamoios à procur.a de comida, na ilha caçavam maca- ao mais pequeno, todos trabalhavam com as suas mãos
cos ~ c:otias e pescavam; arranjaram as!!>im com que «sem haver nenhum que a isso repugnasse>>,
subststtr, mas os barcos que esperavam em outras ilhas O abastecimento de água parecia um problema,
tiveram menos sorte e viveram cinco ou seis dias de porque o cristalino ribeiro Carioca ficava longe. Ali
peixe e de palmitos. apenas havia um charco de água salobra, mas por feli-
Os índios vindos do Espírito Santos já protesta- cidade choveu todos os dias- a chuva abundante do
vam e diziam que voltavam à sua terra, sendo precisa mês de Março- e recolheu-se água fresca em toda a
toda a eloquência de José para impedir que fugissem. Ele parte, em poças, e assim todos beberam.
incitou-os a terem fé em Deus, que os havia de ajudar. Era difícil haver saúde com água dessa, mas o
Felizmente, para confirmar as suas palavras, chegaram ~~eros? José Adorno, que viera da sua .casa de
três barcos da Baía carregados de provisões e no dia :Sao Vtcente, e Pedro Martins Namorado, abnram um
seguinte apareceu a capitaina com outro navio que
vinha juntar-se-lhes. (L) Ibid., pág . 24?.
CAPITAES DO BRASIL 373
372 CAPITAES DO BRASIL
Quanto ao navio francês, rendeu-se sem disparar
grande poço. Melhor ·a inda do que isso, mais tarde um tiro. O câpitão disse que eram apenas pobres mer-
. descobnu-se uma pequena nascente de água pura bro- cadores que tinham vindo ganhar a sua vida. Os portu-
ta.ndo du?l _rochedo e «todos se alegraram muito». gueses prometeram deixá-los ir em paz se abando-
Dtz An.chieta que. ~les achavam-se <<particularmente nassem a artilharia e pólvora. Eles consentiram nisso,
favorecidos da Dtvma Providencia» (1). Mais do que sendo exactamente o que Estácio queria para completar
n~n~a, todos estavam resolvidos a levar a sua tarefa a sua defesa. Nesta ocasião franceses e portugueses
ate hnal. parece terem-se despedido à boa paz; o capitão deixou
Enquanto os tamoios andavam pelos arredores mesmo cartas para os seus compatriotas que estavam
em escaramuça~ e fazendo emboscadas, levantaram-se em terra, a insistir por que abandonassem os tamoios
trabalhos defen~Ivos e construíram-se algumas barracas e se aliassem aos cristãos.
de palha. No d1~ ~de ~arço um índio desgarrado dos Esta sugestão encontrou pouco apoio entre os
recru~as de Estacto foi surpreendido pelo inimigo à aventureiros da floresta. Alguns eram huguenotes de
espreita e levado. Os portugueses lançaram as suas Villegagnon que, naturalmente, não queriam entregar-se
canoas em perseguição e expulsaram os tamoios afu- para serem queimados como hereges. Outros, e sem
gentando-os p~~a a. floresta. Os índios fugiram aban- dúvida a maioria, tinham regressado à vida pri-
dona~do o pnsi.oneuo, as canoas e as armas. As tro- mitiva havia muitos anos. Usavam penas e tatua-
pas hca.ram mu~o c?ntente~ com este primeiro êxito, gens como os guerreiros índios, vestiam o mínimo de
e a P?rtlr de entao, dtz Anchteta, os tamoios tiveram roupas ou mesmo nenhumas, matavam os seus inimi-
o c~udado de se conservar longe, excepto quando gos segundo os ritos índios, embora ainda não
podtam atacar em grande força. comessem carne humana. Parece que havia uns trinta
Quatro dias mais tarde um navio francês foi avis- homens destes entre os índios de Guanabara, sendo
tado dentro d~ ~aía, a cerca de légua e meia do acam- estes os mentores da ofensiva.
pamento. Estac10 l. .evou. quatro das suas embarcações Todos os dias havia recontros e emboscadas mas
e os homens que pode tirar sem prejuízo à muralha que raras vezes uma batalha geral. Era uma guerra de atri-
se levantava!. e ?v~nçou para o combat~. Os tamoios, tos em que de nenhum dos lados se tirava qualquer van-
de observaçao a distância, mal viram o capitão partir ~agem. Os recrutas de outras capitanias começaram a
saltaram logo sobre o acampamento com 4 s ' I~pacientar-se: havia mais 'de um ano que alguns deles
D b · d canoas. tip?am deixado as suas casas e a ausência do proprie-
e a1xo uma nuvem de setas, os defensores com-
bateram desesperadamente. As muralhas estavam ainda ~a~Io no Brasil primitivo geralmente terminava em pre-
por acaba.r e eles não tinham baluartes nem torres JUIZ? ou desastre. Mas ninguém podia ser dispensado
onde refugiar-se. Mas «Ajudou-nos Nosso Senhor» (2) na JOVem cidade de São Sebastião, ainda a lutar pela
escreve José. ~ inimigo foi expulso do acampame;to su~ existência. Apesar disso, os seus defensores teriam
e as canoas fuguam em desordem. fugtdo um a um se não fosse Estácio de Sá.
O mancebo mostrou reais dotes de comando.
(I) Ibid., pág. 249.
Amigo afável para com toda a gente, incansável dia e
(2) Ibid., pág. 250.
374 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 375

noite, se~pre nos lugares onde era preciso, sempre enchendo os ares com nuvens de setas emplumadas de
pronto
. ha dtzer a palavra necessária de incitamento , ele cores alegres .
mantm a os seus homens unidos e animava-os com a Os portugueses responderam com a artilharia tro-
-esperanç~ certa do auxílio que viria de Portugal logo vejante e os navios franceses responderam. Travou-se
que .o ret soubesse que se tinha posto o pé no Rio de uma batalha violenta e demorada, mas Estácio de Sá
J~~etro. O govern~dor enviaria para o reino um reta- repeliu o ataqu~ ~o seu refúgio. e depois tornou à
tono . de tudo a9u1lo qu;. eles tinham feito, porque o ofensiva. A capttama francesa fm empurrada para os
:Sabena por Anchteta. Jose ta partir do Rio para a Baía rochedos; mas salvou-se com a volta da maré. Os três
no. ~ia 3 r ?e Março para ser ordenado por D. Pedro navios bombardearam a cidade durante todo o dia,
Lettao, o btspo que sucedera ao infeliz D. Pedro Fer- mas à noite fizeram-se ao mar. Na manhã seguinte
nandes Sardinha.
Estácio partiu em sua perseguição, mas todos três
José diz que na ocasião em que partiu a cccidade» fugiram porque tinham tido pesadas baixas e o capitão
.e_ncontrava-se completamente cercada por muros de havia sido morto.
n_pado e cal com torres de madeira e cobertas com telhas A vitória era completa- atribuída aos bons ofí-
vm~as de São Vicente. À volta destas mpralhas já cios de São Sebastião- mas não ainda definitiva.
havta plantações de feijões e de inhame e estavam O inimigo aguardava ainda outra oportunidade, cons-
a planear-se incursões nas aldeias d~s tamoios tando que Bois-le-Comte, sobrinho de Villegagnon, vol-
para se roubar mandioca para plantar e comer tava com reforços. Entretanto os dias passavam-se
porque o abastecimento de víveres continuava a se; com incursões e contra-incursões. Muitas vezes os
um problema.
índios procuravam atrair os seus antagonistas a uma
Entretanto o inimigo andava evidentemente a pre- cilada. As reintrâncias e saliências da baía do Rio de
parar um ataque em larga escala. Tinham-se visto Janeiro prestavam-se a essa espécie de manobra.
.canoas e mais canoas a reunir-se na baía -Anchieta Um dia- véspera de São Sebastião!- um homem
contou. Bo antes ,de partir e constava que viriam mui- saiu num pequeno barco à procura de lenha. Os tamoios
ta.s mais. Tambem se esperavam navios franceses. estavam à espreita por detrás duma língua de terra
Tmham mandado recado para o cabo Frio, constante- com r 8o canoas, à espera duma oportunidade de obri-
m:nt~ frequentado por navios franceses, para que os garem os portugueses a sair das suas defesas. Alguns
pnmetros a chegar fossem áo Rio. deles avançaram e atacaram o barco isolado. Os homens
E foram. Um dia, em Junho, três navios à vela de Estácio, lançando-se em socorro dele, repeliram-nos.
chegaram, num grande espavento com bandeiras de As canoas índias viraram, aparentemente em fuga, os
seda desfraldadas, tambores a rufar, e pífaros a tocar portugueses deram-lhes caça até que, de repente,
~l~grement_e a bordo. Ao mesmo tempo toda a super- encontraram-se cercados. Todos estavam preparados
ftcte da bata ferv}lh?u com mais ~e r oo canoas tripula- para vender cara a vida e bateram-se desesperadamente,
das por um exerctto de guerreiros nus, pintados e lll.as a superioridade dos inimigos era esmagadora.
emplumados, todos aos berros, aos urros e aos gritos Os índios já estavam certos da vitória, quando
a tocarem nas suas buzinas de ossos humanos, uma chispa casual a bordo duma canoa portuguesa
376
CAPITAES DO BR ASIL 37/l'
C APITAES DO BR ASIL

· lançou fogo à pólvora. Houve uma pavorosa detonação, Outros tinham a mesma noção de urg~nc~a.
ergueram-se chamas altas- a mulher dum chefe tamoio o P.e Quirício Caxa escreveu da Baía ao Provmcial1
que estava com ele mesmo à beira, assustou-se e de Portugal a implorar-lhe que influísse em Suas Alte-
começou a gritar, e berrava de tal forma, que o pânico zas a Rainha Regente e o Cardeal, para socorrerem O·
se apode:ou de todas as fileiras de índios, a começar Rid o mais breve possível, «porque se não perca por
pelo .~ando. Todos fugiram tão depressa quanto o negligência e descuido o que com tant.Js traba1_hos
permitiam os remos. Os portugueses regressaram sãos como se cá sabe, se ganhou». E acrescenta que <<SI os
~ salvo~ e agradecera~ a Deus. Em lembrança desta merecimentos dos Capitães fazem alguma cousa para
hber~açao durante muitos anos realizou-se no Rio de serem ajudados e favorecidos nas cousas arduas e gra~­
Janeiro a «Festa das Canoas>> no dia de São Sebastião des que emprehendem em serviço de seu Senhor e ~~~,
Estes episódios eram animadores mas não da va~ os de Estácio de Sá são taes quaes convem a um. Capttao
gran_d: resultado. Os portugueses, na sua fortaleza ãfamado por sua prudência e sizo pera detremmar-se e
adn::uavelmente de!ensível junto do Pão de Açúcar, não quando ha de accometter, e seu _animo e esfor~o e con~­
podt~m ser desalOJados, e os Tamoios tinham-se esta- tancia pera acometter e levar adiante o detremmado» ( ).
bel~ctdo fortemente aos milhares à volta da baía De São Vicente também o P: Leonardo do Vale
A situação não tinha saída. ·
insiste nas necessidades do Rio de Janeiro e nas priva-
Estácio pude!a, d.urante todo o tempo, manter o ções que os soldados estavam ali a passar! «faltas ~e
cont~cto com Sao VIcente, porque os tamoios de muitas cousas necessarias a quem de contmuo pelela
lperotg conservavam-se leais à paz e assim as comunica- contra Fràncezes Lutheranos e tamoios em sua porpna
ções continuavam livres. Por isso iam e vinham canoas ao terra sendo tantos em numero que parece haver cento
longo da costa. O P.e Nóbrega estava em constante con- para cada um dos nossos, e amda claramente se ve,ser
' • A

tacto com Está cio de Sá e o P. eGonçalo de Oliveira. Man- Deus o que peleja por nós, todavia parece tenta-lo
dou. capelãe~ ~ssistentes para substituir uns aos outros, estar esperando por sua grossa armada d~ França, s~m
envio~ provisoes p~ra o exé_;cit~ o mais frequentemente ter munições nem outras cousas necessanas para re~Is­
que pode~ voluntanos de Sao Vtcente para substituir os
tir a quem ha de vir bem apercebido pera otf~n~er». \)
que precisavam de voltar à sua terra recrutou mais
O padre também ·dá uma i~eia. dos ~:cnfíctos _fel-
índios e reuniu mais canoas, e deu ad jovem capitão
tos por São Vicente. Não havia cuu:gwes-barbet~os
os seus conselhos e o seu apoio moral. Durante toda
na terra, diz ele, porque todos tinham td? com o ~xe._r­
esta campanha, Nóbrega foi o poder por detrás da cena.
cito do Rio de Janeiro. Os discípulos índios da mt~s.ao
. Entretanto, no Salvador, o governador e Anchieta de Piratininga tinham deixado as suas terras e famllias
t~nham ambos escrito para o reino a insistir pela neces- para irem com Estácio de Sá, e estavam <<sofrendo
sidade de reforços- «se agora se não leva a cabo esta
mui grandes trabalhos de dia e de noite por amor de
obra, e se abre mão dela, dizia Anchieta, tàrde ou
nunca se tornará a cometer», (')
(I) Carta de Quirício Caxa, da Baía 13 de Julho de 1565 Cartas.
Avulsas, pág. 454. d 1 65 Ob ·
(I) lbid, pág 253. (2) Carta de Leonardo do Vale, de 23 de Junho e 5 • · "t · ~
pág . 448, 9.
379
378 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL

~OS» (1), e . os brancos de Santos e de São Vicente Desta vez 0 governador viera em pessoa com três
tmham deixado as suas propriedades desprotegidas .. dos acabados de chegar de Portugal e
galeoesd armados por Cristóvão Cardoso d e Barros, aos
contra as incursões hostis.
. . Este estado de coisas não poderia manter-se inde-
qua
s:
comi~n tinha juntado toda a força naval do Brasil e
homens de armas que se puderam recrutar.
flmdamente. São Vicente não devia ficar arruinado por todos os 'm ali vinham reforços espmtuats · · · para
causa do Rio de Janeiro. Lisboa reagiu perante as T am b e . · t
notícias. Quando souberam o que se passava por Mem p • Gonçalo de Oliveira, que estivera mntto empo
de Sá e por Nóbrega, os Regentes prepararam-se para : · ho incansável com as suas orações e trabalhos
soztn , . Al' · h p e José de
fazerem tudo o que pudessem para levarem o caso a em todas as horas de pengo. 1 vm a. o .
bom termo. Anchieta recém-ordenado, e com ele o btspo D. Pedro
.Mas tinha ainda de passar muito tempo. As dis· L •t .. o homem tão estimado quanto o seu antece~s?r
tâncias eram enormes e as comunicações lentas. A luta toe:a ~~testado. Com eles também tinha vindo o P. e I.nacto
para conservar a recém-fundada cidade de São Sebas- de Azevedo, nomeado visitador da Companhia de
tião do Rio de Janeiro prolongou·se por dois anos. Jesus, e mais quatro padres. .
A fome e as privações caíram em sorte aos sitiados Confessadas abençoadas e fortalecidas por exor-
.
que as aceitaram com coragem, Sob o perigo, os' tações espirituai~ de homens tão santos, as tropas ~o
homens semeavam e recolhiam as colheitas· com perigo governador e as de Estácio de Sá prepararam-s.e ..con~l~­
d~s, .vidas lançavam _as suas redes para ~escarem; a damente para o assalto final a todas as P?stçoes tm-
migas. Por feliz coincidência, Mem de Sa ch~gara _a
vigiha durante a noite e as guardas durante o dia
nunca podiam afrouxar em frente dum inimigo que Guanabara na véspera de São Sebastião. Que d~a mats
pod~a estar à espreita em qualquer moita, homens
auspicioso podia ser marcado para a batalha senao o do
habituados a furar por qualquer caminho e para quem santo que já tinha mostrado tanto favor pela em_p_resa?
Dum monte que os portugueses tinham fortthcado
as em~ranhadas plantas da floresta que revestiam todas
as colmas se mostravam tão fáceis de atravessar como fora das muralhas eles dominavam um panorama sobre
uma estr_ada larga, remadores para quem toda a enseada a baía com todas 'as suas pequenas reintrâncias, ~nsea­
-e toda a t!hota da baía eram familiares desde a juventude. das e ilhas. Daqui eles podiam observar as evoluço~s d_o
Q,u~Imados pelo sol dos trópicos, duma magreza
inimigo, que nesta ocasião possuía três fortalezas pnnct-
-esqueletlca, extenuados pelo trabalho incessante, os pais defendidas por torres e baluartes que os fra~ceses lhes
homens do exército de Estácio ainda se aguentavam, tinham ensinado a construir. Uma destas c~h?as,, cha-
qua.ndo a I 8 de Jan~iro de I S67 apareceu uma vela no mada Biroaçumirim (o actual Morro da Glona) ~1cava
honzonte logo segutda por outra e outra! Seria aquela a certa distância da costa onde os portugueses tmham
a armada de Bois-le-Comte? Mas estas velas traziam a o seu campo. Outra era a grande ilha de Paranaguaçu
·cruz vermelha da Ordem de Cristo. Era finalmente a (que havia de chamar-se ilha do Governador); a t;r-
esquadra de Mem de Sá. ceira parece não ter sido identificada, mas era tambem
muito forte. . ..
Mem de Sá resolveu começar as operaçoes em
(1) Ibidem , pág 250.
380
C APITAES DO BRASIL

Biroaçumirim. No d ia 20 de Janeiro avançaram com CAPITAES DO BRASIL 38 1


fé e esperança. São Sebastião havia de os ajudar!
A sua confiança justificou-se, A luta travou-se vio- Ali oderia levantar-se uma cidadela perfeita,
lenta, mas os índios acabaram por ser postos em deban- p te dominando o melhor ancoradouro de toda
dada, e os seus aliados franceses - cinco ou seis- exac~~m1~i fundou Mem de Sá a cidade de Sã? Sebas-
foram capturados e enforcados para que todos viss~m ~ ..bad; Rio de Janeiro. «Morro do Castelo» fo1 o nome
o castigo, enquanto a perseguição se levava até ao ~aâ0 por uma geração posterior a este monte, em que
a u uma das maiores capitais do mund~, mas que
interior da ilha.
A cidadela era, de certo modo, mais difícil de nasct mpos recentes os filhos dessa mesma cidade, em
tomar. Meteram artilharia nos barcos e puseram-na em emmee do urbanismo, arrasaram ~mpiedosam.e~te... .
bateria na praia. A posição foi violentamente disputada, no Nesta elevação airosa, começou a edihc~çao. do
mas também aqui as tropas de Mem de Sá saíram R'10 de Janeiro a I de Março de I 56]. Aqueles ptone~~os
vitoriosas e a grande ilha caiu nas suas mãos. Depois d há 400 anos foram homens de visão larga. C?ns1 e-
disto o terceiro combate tomou-se uma espécie de e um monte coberto de mato denso e de arvores
passeio e a vitória completou-se. raram . dum deserto de enseadas e bpântanos,
enormes, actma
Assim a longa campanha de Estácio de Sá termi- é de montanhas jamais escaladas e que arravam
nou gloriosamente, mas também terminou a carreira ~oc~~inho para um interior desconhecido! e enquant~
prometedora do jovem capitão. Uma seta tinha-lhe cortavam o mato e levantavam cabanas fettas de m~te
atravessado a face no primeiro combate de Biroaçumi- . l que tinham à. . mão,
na . já pensavam em Catedrais e
rim. Um cirurgião competente talvez pudesse tê-lo em Câmaras Mumc1pa1s. . .
salvado, porque ele ainda viveu um mês, mas os O Rio de Janeiro havia de ser uma ctda~e epis-
recursos eram poucos e as feridas graves não saravam co al Ao mesmo tempo que se construíam as pnmet~as
fàcilmente no Rio de Janeiro, com o calor do verão. cal:a~as 0 governador lançou os fundamentod ~-• «Se•,
Com exéquias solenes e muitas lágrimas, porque ele era cu'as ~redes deviam de ser de greda, m~s e meou-a
profundamente amado de todos, o jovem Estácio de Sá
foi sepultado à sombra do Pão de Açúcar na capela de
co~ t~ês naves, telhados de telha e «mutto bem con-
certada» por dentro. ., .
colmo da colônia que ele defendera com tanta valentia Rà idamente ergueram-se os edthc!~s secu1ares.
e que já começava a ser chamada <eVita Velha.» Umas r~o pessoas, com mulheres e .tamihas. (supomos)
Mem de Sá resolvera edificar a cidade num local que as mulheres eram índ~as na su.a m;;or ~:r~eá
mais espaçoso, mais para o interior da baía. Não longe dis useram-se a vi ver no Rto de Janeiro: em .
de Biroaçumirim havia uma colina encantadora, coberta
de arvoredo e junto da praia, que dava para as águas da
no!'.eou a Vereação com os seus tesouretr~s e mag~:ê
trados e concedeu «sesmarias» para se cultivarem
ampla baía de Guanabara, desde a estreita boca do Atlân- légua e' meia à volta do morro. d
tico entre imponentes rochedos até grande distância lá Com a armada tinham vindo alguns merca ores,
para o interior, onde elas se perdiam no meio de pân- q ue trouxeram as suas merca d on·as para vender, entre
d
tanos sob a silhueta azul da fantástica serra dos Orgãos. , . p1pos
as quais havia vanos . d e vinho que o governa
. or
mandou vender a retaIho· Q uanto, quenam por .
cada canada? Eles apresentaram um numero demasta-
382
CAPITAES DO BRA~IL
CAPITAES DO BRASIL 383

damente elevado, porque o bom vinho de Portugal era


raro como sua senhoria devia compreender, e tinha de Velhice? Nóbrega não era muito velho, não
ser pago como tal! f ha mais de 5o anos, mas estava gasto por doenças
tn ves trabalhos e canseiras. Não era provável que
g[a ne~tas últimas funções que lhe deram para desem-
Tinha, realmente? O governador, indignado, tirou
o capacete.
e e, har encontrasse o c< doce remanso» com tanta
. -Muito bem! exclamou. A cana da seria ven- pen , . t ... s
dtd~ ao preço que eles pediam- mas aquele capacete b 0 dade preparado para st. 0 s seus res anos pa -
devia ser a medtda para cada quartilho! ~0 s no Rio de Janeiro não foram um peno do
E_ levou. -~ sua avante. Aquele capacete veio a ser ~~ digna ociosidade -como podiam eles ser, _?Uma
a medtda oftctal para o quartilho de vinho no Rio de povoação nova com todas as suas perturbaçoes e
Janeiro. Ignoramos como é que os mercadores ganan- problemas?
ciosos obtiveram o lucro que esperavam ter. Talvez As mãos de Nóbrega estavam ocupadas, como
lhe juntassem água! sempre tinham estado, a organizar o C_olégi_?, a acon-
Iria haver um colégio de Jesuítas no Rio de lha r 0 J·ovem capitão a orientar os ctdadaos na sua
seida religiosa a ensinar' e a cut'd ar d os 1n
, d'tos. O.s que
Janeiro. Em Agosto, o visitador, P.e Inácio de Azevedo
que tinha ido a São Vicente, voltou trazendo com ele ~ :inham vindo 'do Espírito Santo não tinham deseJOS de
P.• Nóbrega. O governador deixou à sua escolha o voltar. Eram índios Temiminós do «Grande G~to», que
local da construção, no cimo do monte com belas vistas haviam sido obrigados a exilar-se pelos tamotos. ~ara
para o mar. Em ~o?le d_o re~ concedeu-lhes fundos para não poder haver tut~uas q~es~ões entre. os anttgos
manter~m ~o rehgtoso~ restdentes e daqui irradiar a rivais Nóbrega reumu os mdtos repatnados numa
evange~tzaçao dos tamoiOs. Muitos destes já se haviam grand~ aldeia nas terras do Colégio e aí lhes deu
submetido ao governador e estavam a ser instalados instrução. . . d C , .
em aldeias em volta da cidade como já se fizera na Baía. Todos os dias pregava na tgreJa o o1egto, ou
Em Novembro, quando Mem de Sá teve de na Sé, e toda a gente da colónia ia ter c~m el7 P?r causa
emb?rcar para o norte, deixou na nova capitania outro dos seus problemas pessoais. Verdadeuo dtsctpulo de
sobnnho, Salvador Correia de Sá, aconselhando-o Inácio de Loiola esforçava-se e não procurava des-
como antes aconselhara Estácio, a deixar-se guiar eO:: canso, enquanto deperecia lenta.~en~e numa ~erra
tudo pelos conselhos do P.e Nóbrega. encantadora- terra bárbara e fettlcetra onde amda
An~h~eta foi mandado ,outra vez para Piratininga, não podia achar-se ne~hum sosse~o de corpo, apenas
m_as o vtstt?dor no!Deou Nobrega reitor do Colégio do uma beleza irreal ao por do Sol e a ai vorada para dar
Rto de Janetro, ccpois era pae daquela Província o fosse à alma uma visão do Paraíso.
do novo Coll~gio, e alli em doce remanso, gra~geando Chegou o dia em_ que o P.e Nóbrega _deu uma
com suas fadtgas e orações passasse o restante da sua volta à cidade, procurando todos os seus amtgos para
cansada velhice», (I) lhes dizer adeus, abraçando-os, agradecendo-lhes todas
as bondades passadas e encomend~ndo-o_s a Deus.
(I) António Franco, Vida de Nóbrega . In - •Cartas do Brasil•, pág. 54'.
Porquê? perguntavam eles. Não haVIa navio nenhum
no porto. Aonde poderia ele ir ?
384 Cf\PITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 385

-«A nossa patria celestial>> ('). de Sá e Nóbrega, mas ainda havia muito que fazer, e
Ao outro dia de manhã disse missa no Colégio e Mem de Sá estava muito cansado. Amava o Brasil, a
-depois falou longo tempo dos mistérios divinos com os terra que ele servira durante tantos anos, à qual sacri-
seus colegas; à tarde deitou-se e esperou na cama ficara um filho e um sobrinho, mas servir tornava-se
pela morte. cada vez mais uma pesada carga sem apoio certo da
Na manhã seguinte chegou o fim- triunfal e metrópole.
-sereno. A 10 de Outubro de I S7o deram o P.e Nóbrega Os tempos tinham mudado desde a morte de
it sepultura na igreja do Colégio e todos os colonos da D. João Ill, o rei que amara estremecidamente o
jovem cidade que tanto lhe deviam choraram no seu Brasil. Para a imaginação do rei-criança D. Sebastião,
funeral como se estivessem a enferrar um pai. intlamado por sonhos de cruzada contra os mouros da
Ali, no cimo do monte, enquanto à volta a cidade África, o trabalho dt: criar, lenta mas seguramente,
crescia, os ossos de Nóbrega,-diz Simão de Vasconce- um grande domínio numa terra de promissão além
los, estão «esperando a última Ressurreição da dos mares, parecia coisa muito demorada e sem atrac-
carnen. (2) Esperaram de facto ali quase quatro tivos. Por cada três cartas mandadas para o reino por
~éculos; mas onde param eles hoje? Ninguém sabe. Mem dt: Sá, escrf?viam-lhe uma em resposta, mas não
A igreja desapareceu, o monte em que ela se erguia foi lhe respondiam às perguntas e não faziam qualquer
arrasado. O homem, a quem duas grandes cidades observação acerca das suas sugestões - vagas a~ser­
devem a sua origem, não teve sequer uma sepultura çõ~s de grande confiança nele era o mais que o gover-
-em qualquer delas. nador obtinha de Lisboa acerca dos seus despachos.
Ao menos Mem de Sá, v~lho amigo de Nóbrega e Era desanimador. «Eu sou um homem só, escreve
seu cooperador, jaz tranquilo na sua, na velha igreja ele ao Secretário de Estado, e quanto tenho feito em
1~suítica .do Salvador. Ele sobreviveu ao seu pai espi- todo o tempo que estou no Brasil, desfaz um filho da
ntual dOis anos, e, como ele, trabalhoa até final terra em uma hora. S . A. dá as capitanias e os oficios
-continuando a sua missão de construir, consolidar' a quem lhe pede, sem exame se os merecem>> . (') Num
estabilizar e pacificar. ' acesso de pessimismo, acrescenta que nenhum dos
Chegou a ver o fim do canabílismo nas proxi- seus capitães ou oficiais presta va absolutamente para
midades da Baía e a alvorada dum novo dia para o nada! Os anos passavam, ele envelhecia. Queria muito
·B rasil; viu os índios ensinados pelos Jesuítas estabele- voltar à pátria e ver o5 filhos que deixara em Portugal.
~idos em aldeias à volta de todas as cidades; viu os Nunca mais o substituiriam? Pediu ao secretário que
colonos turbulentos obrigados a respeitar a lei; viu os intercedesse por ele, por ccque não parece justo que,
<iomínios portugueses no Brasil libertos de invasores por servir bem, a paga seja terem-me degredado em
·estrangeiros. terra de que tão pouco fundamento fazem!»
Estas coisas tinham sido l~vadas a cabo por Mem Em I S7o, devia ser chamado ao reino. D. Luís de

(1) Ibid., pág. 55. (ll Carta de Mem de ~ á para o Secretário de Estado Pero de Alcá-
(2) Chronica da Companhia de Jesus do EJtado do Brasil, Li v. IV, pág. 456. ÇOva Carneiro, publicada por Varnhag!n, História G eral do Br.ui/ , vol I.
25
38<'í CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 387

Vasconcelos fora nomeado governador do Brasil e par- havia ataques de piratas- os perigos antigos subsis-
tiu para o Salvador- mas nunca chegou ao seu des- tiam mas a maré já começava a mudar. Os males
tino. No decurso de uma viagem prolongada e infeliz, era~ ainda grandes, mas tinham entrado no caminho
foi morto em combate com piratas, e Mem de Sá teve da correcção, a civilização já estava em marcha
de continuar no seu posto, no qual morreu a 2 de embora o seu avanço fosse ainda lento. Os alicerces
Março de 1 S72, sendo sepultado no Salvador. estavam feitos para, sobre eles, se edificar no futuro e
Seria difícil calcular a dívida que o Brasil con- com firmeza; a semente fora lançada à terra e devia
traiu para com Nóbrega e Mem de Sá. Eles ambos germinar.
puseram fim, cada um por seu lado, ao período de O trabalho dera origem a uma nação.
incerteza, qoando era duvidoso que aquela vasta terra .
selvagem pudesse algum dia vir a ser colónia, quanto
mais uma nação.
Parecia que as poucas centenas de colonos, longe
da terra do seu berço, esmagados por forças da natu-
reza muito mais poderosas do que o homem, ameaça-
dos por selvagens, eles próprios quase uma força da
natureza, acossados por piratas europeus bem munidos
de armamento- sucumbiriam tàcilmente debaixo das
circunst_â ncias esmagadoras e seriam aniquilados pela
solidão selvática. De coragem tísica e de tenacidade,
não havia falta, mas só isso não chegava. Precisava-se
de homens como Nóbrega e Mem de Sá para darem a
força moral necessária para se sobreviver.
Nóbrega e o seu grupo de missionários trouxeram o
amor que ~ózinho pode vencer a selvageria, e Mem de
Sá estabeleceu a ordem e a disciplina, sem as quais
não há progresso. Trabalharam juntos tão harmonio-
samente que as suas políticas se fundiram numa só.
Nóbrega aplaudia a disciplina que o governador impu-
nha, Mem de Sá dava todo o apoio da sua autoridade
à missão dos Jesuítas.
Qaando eles morreram havia ainda muita coisa
para levar a cabo. Tudo o que tinham feito estava
ainda na fase inicial, com falhas e retrocessos. Os índios
recaíam às vezes na selvageria, os colonos tinham aces-
sos de desobediência às leis, de vez em quando ainda
XXIV

Terra amada

Se os que lutaram em Portugal com diticuldades


soubessem alguma coisa acerca do Brasil, procurariam
ali a libertação das suas preocupações, «porque a
mesma terra he tam natural e tavoravel aos estranhos
que a todos agasalha e convida com reme di o por
pobres e desamparados que sejão» (1).
Tal é a opinião de Pero de Magalhães Gandavo,
expressa numa obra dedicada ao cardeal-infante
D. Henrique. O Brasil, continua ele a explicar,.
torna-se cada dia mais próspero, e quando se encon-
trarem colonizadas as ricas terras até agora desabita·
das por falta de gente, far-se-ão grandes fortunas,
como já foram feitas pelas pessoas que vivem nesta
terra.
Gandavo escreveu em I S7o- dois anos antes
da morte de Mem de Sá, quarenta anos depois
d~ D. João 111 ter posto em prática o seu plano colo-
ntal dividindo a terra em capitanias, e vinte e um anos

(I) Pero de Magalhães Gandavo, Tratado da Terra do Brasil, pág. 25.


::.91
CAPlTAES DO BRASIL
390 CAPITAES DO BRASIL
.d actualidade tinham nas-
depois de essas capitanias terem sido reunidas sob um cidades mais conheci as n~r10 da e o Salvador fossem
. do embora talvez apenas .
JPOder central.
Vejamos o que se realizara neste intervalo e qual ~a ;erdade mais do qu~ aldel~:· a mais antiga de todas,
•era a vida no Brasil do século XVJ, de cujo futuro cor- Olinda de Perna~ ':co .e . Salvador da Baía con-
-de-rosa Gandavo parece tão convencido. já com 40 anos de e~tsten:~ito mais pequena e mais
Nenhuma daquelas <tgrandes fortunas» adquiridas ta v a 21.; Santos, e~ S ~~aPaulo de Piratininga tinha I6;
<e ainda por ganhar, de que ele fala com tanta convic- pobre, tmha 27.. anods' R~10 d Janeiro a mais nova de
e São Sebast1ao o e '
\ção, proveio da riqueza mineral. O ouro e as minas de
diamantes ainda estavam por vir à luz do dia. Entre- todas, tinha 5. d tas cidades se tornavam mais
rtanto sabe-se que havia cinco maneiras por que os Sabe-se que to .as es b as de barro e cobertas
lhomens ganhavam a vida no Brasil. belas de dia para d.ta. As ca ti~~am sido as primeiras
Havia os embarcadiços, que iam e vinham entre de tolhas de pal~etr~, que elas costas, eram ràpi-
habitações earopetas JUnto daqu de pedra e cimento
•os vários portos de todas as capitanias, descarregando · 'd as por
mercadorias de Portugal e carregando açúcar, algodão damente su b stltul d casas . , podiam v~r-se ruas
com telhados de telha, e que la
-e madeiras de tinturaria. Havia os mercadores, que
instalavam o seu negócio no local, importando pro- inteiras. . linda ia muito à trente- a Olinda
-dutos para venderem ou trocarem por açúcar. Os artí- É claro que O 't . de Pernambuco, como
tfices e também os mecânicos tinham a certeza de dos reis do açúcar. A ca~l ama lhores do Brasil e onde
.encontrar colocação no Brasil e podiam levar quan- diz Gandavo, era uma as me Os índios tinham sido
os colonos mats · prosperavam. ual uer outra parte,
tias fabulosas pelos seus serviços num país onde se
ali melhores auxiliares d~ que et~bqu·tu qpara o rápido
necessitava muito de técnicos de todas as espécies. . que mats con n
Outros homens ganhavam salários elevados como fei- dtz e1e, mas o d t . por residir continuamente
desenvolvimento a· terra .. 01 «
a conqUis • tou>> (')
·
tores nas plantações de açúcar, ou a superintender no
.embarque de mercadorias para exportação, como nelle o mesmo C aptta~ qu~ d Duarte Coelho morrera
Esse belo velho plOne~ro e lher a acapitôa»
vaqueiros nas fazendas ou até como criados superiores. ua ammosa mu '
Os senhores da terra eram os agricultores e estes em I5 54, mas a s continuara com alguma
podiam fazer fortunas fabulosas. O maior proveito D. Brites de. Al~uque~q~e, até os tilhos regressarem
0
aJ"uda de seu umao Jeromm
d f h m ' tdo
. a ed ucar.
resultava do açúcar para exportação, mas também se
ganhava muito dinheiro cultivando produtos agrícolas de Portugal para on e tn a o noiva a uma cabana
D. Brites, que cheg~ra, co~ mang~es vivera até
para serem consumidos localmente. Com a falta de de barro erguida num pantano e "d hu~a das mais
braços, esse trabalho seria impossível sem os escravos 0 1. d do seu man o, «
da Guiné e de Angola, que eram importados em número ver a formosa tn a . ue ha nestas partes».
nobres e populosas v!llas dq a morte_ calculou-se
cada vez maior, o que também constituía um negócio Em I587- três anos antes a su
lucrativo.
Os campos cultivados abasteciam as cidades. . . ·a da Pro'llíncia de Santa Cruz, pág. 87.
(1) Gan d avo , H utorl
Já havia certa vida urbana no Brasil, porque todas as
392 CAPIT AES DO BR .>\SIL C APITAES DO BRASIL 39,3.

que tivesse 700 habitantes, e nos fins do século vemo-Ia no seu engenho em que trabalhavam multidões de
comparada a uma «pequena Lisboa~. escravos, rodeados de rebanhos e manadas, em compa-
Já em r 56t Olinda estava fornecida de quase tudo nhia da família e a viverem do rendimento da terra,
o que se obtinha em Portugal, porque iam ali mais vestindo roupas ricas e usando jóias de ouro, e
navios de que a qualquer outro porto brasileiro. Não andando pela cidade em cavalos marchadores esplên-
que fosse o melhor de todos; longe disso; as ondas do dido!', ajaezados de prata chocalhante, apesar de des-
Atlântico, vindo quebrar-se no recife de coral, tornavam terrados.
difícil o acesso, e obrigavam os navios maiores a anco- Olinda era a cidade dos milionários, e também
rarem a larga distância. Mas Olinda, junto do cabo de a colônia mais antiga, mas o Salvador da Baía de
Santo Agostinho, era o ponto de chegada mais próximo Todos os Santos era a cabeça eclesiástica e política,
da Europa e no caminho das armadas das Índias orien- sede do Governo, o centro administrativo. Aqui resi-
tais. Todos os anos chegavam uns trinta ou quarenta diam constantemente o governador, o bispo, o juiz da
navios para carregar açúcar, algodão e pau brasil. Em terra e todos os funcionários investidos de autoridade
troca traziam toda a espécie de produtos europeus e real. Embora de fundação muito mais recente, não é para
artigos de luxo, que faziam de Olinda o melhor cen- surpreender que o Salvador alcançasse depressa a sua
tro de abastecimento do Brasil, ainQa melhor talvez irmã do norte em vaidade de edifícios e em população.
do que o Salvador. Em Olinda quem quisesse podia Sabe-se que viviam mais portugueses na Baía do
comer pão de trigo europeo, cozinhar com azeite e que em qualquer outra capitania do Brasil. Todavia,
beber vinhos portugueses. . . desde que fosse rico. Anchieta, escrevendo em r 584, diz que a cidade era
Porque essas coisas custavam muito dinheiro. A vida pequena, porque muita gente gostava de viver nas
era cara em Olinda, dizem, e havia pouco dinheiro suas plantações à volta da baía. Todos tinham barcos
amoedado ali como em todos os pontos do Brasil. como meio fácil de transporte entre as enseadas das
Pagavam-se as mercadorias com açúcar. costas verdejantes, ou para irem até às ilhas esmeral-
Deste não se sentia falta . A indústria açucareira já dinas, ou até para os levarem à capital, a cerca de
se desenvolvera. Em I 57o havia 23 engenhos e mais uma légua de distância da barra .
3 ou 4 estavam a aprontar-se para a produção. Em Sob o céu luminoso da Baía, onde as chuvas tro-
I 587 o seu número subira a 6o, e 20 anos depois é picais tingiam as nuvens pesadas com as cores do arco-
calculado «infinito>>. Cada engenho produzia 3ooo arro- ·íris, a pequena cidade oferecia uma vista encantadora,
bas em média, e já no tempo de Gandavo houvera situada numa eminência acima do mar, com os telha-
anos em que se embarcaram 5oooo arrobas. dos vermelhos aninhados entre palmares fragrantes
Assim faziam-se grandes fortunas em Pernambuco. com o perfume das laranjeiras.
Em J 587, dizem que em Olinda havia mais de cem Desde a praia de desembarque ao lado, com três
plutocratas com o rendimento de mais de 5ooo cru- fontes de água límpida que abasteciam todas as arma-
zados por ano. Muitos homens chegavam ali pobres e das, o caminho subia íngreme até a praça da cidade.
voltavam ricos à pátria, ou- ainda mais provàvel- Era -am lugar espaçoso e arejado, com belos edifícios à
mente- ficavam na capitania fazendo vida senhorial volta, ao norte e ao sul, e do lado ocidental uma vista
394 CAPITAES DO BRASIL CA PITAES DO BRASIL 395

sobre a baía espelhante. Ficav~ ali o palácio ,do Go~er­ Tal como em Olinda, também no Salvador havia
nador e a Câmara a Tesourana e os Armazens. Ah se lojas onde se exibiam objectos de luxo. Podiam
realizavam jogos ~ touradas para distrair os cidadãos comprar-se ali tecidos, drogas e toda a espécie de
nos dias santos, e aqui, debaixo do pelourinho lev~~ta~o mercadorias estrangeiras. As casas dos cidadãos ricos
ao meio da praça, faziam os malfeitores pemtencta do Salvador. estavam belamente mobiladas e fornecidas·,
pelos seus pecados. eles comtam em baixelas de prata e as suas mulheres
Já se contava uma dúzia de igrejas na cidade vestiam sedas e andavam carregadas de jóias.
do Salvador. Uma Misericórdia auxiliava os pobres, O esplêndido porto da Baía era frequentádo por
havendo também um hospital mantido pelas esmolas muitos navios. As mercadorias que eles carregavam ali
voluntárias dos moradores da terra. eram mais ou menos as mesmas das exportações de
A catedral, por concluir, tazia frente ao mar, acima Olinda, mas o açúcar da Baía era ainda inferior em
ai
-do porto. Em I S87 a torre ainda não estava pronta, produçã? ao d~ Pernambuco. Em I S7o, diz Gandavo,
nem a torre sineira, porque a dotação era pequena e o algodao constderava-se melhor colheita e florescia ~1

por isso o trabalho ia devagar. 9-uanto .ao Colégio .d~s especialmente nas ilhas, mas já em volta da baía havia ia
Jesuítas, o mais belo do Brasil, servta de semma- dezoito engenhos de açúcar, e durante os 14 anos ime-
rio. Tinha dezanove salas com vistas para o mar, uma diatos o seu número elevou-se a 40. Outra fonte de e
espaçosa enfermaria, um claustro de pedra rec~m-~on~- riqueza eram os grandes rebanhos de gado que se ali-
1ruído em I S84, além de <<huma formosa e alegre tgreJa»( ). mentavam do capim verde brilhante da selva.
As casas dos cidadãos do Salvador irradiavam da Assim a capitania da Baía cresceu e floresceu.
praça. Cada qual tinha o seu lindo jardim, onde, além Em I S87 dizia-se que o Salvador tinha uma popu-
<las palmeiras e tamarindos, as tlores de Portugal-rosas, lação de 8oo almas e calculava-se que cerca de mais
-cravos, goivos, jasmins e madressilvas-mist?ravam o de mil vi viam tora da cidade, nas propriedades cam-
seu perfume familiar com a fragrância capttosa .dos pestres.
:arbustos floridos e trepadeiras do Brasil, que enchtam O pobre e pequeno Rio de Janeiro estava ainda
a noite de perfumes estranhos. ~ui to. ,at:ás de tudo isto, mas nos poucos anos da sua
Nos arredores da cidade estendiam-se campos de Vtda Ja hzera bons progressos. São Sebastião do Rio
culturas, onde se cultivavam frutas e vegetais para vender de Janeiro fora fundado deliberadamente para ser um
no mercado. Ao contrário dos de outras jovens cidades grande centro do futuro, e desde então nunca mais
brasileiras, o mercado do Salvador era muito. bem olhou para trás. Apesar disso, não podemos deixar de
abastecido. Ali podia-se encontrar o que se qm~e~se a~har que Gandavo em I S7o parecia um pouco opti-
dos produtos da terra, assim como certas provtsoes mtsta ao considerar o Rio uma «Cidade mui nobre»(!).
·europeias, como várias espécies de farinha de ~ortugal n· . Empregar então o futuro teria sido mais exacto.
-ou então vinhos da Madeira e das Canárias, cuJO sabor t JZtam que naquela época a população era de I 5o por-
-se dizia que a viagem marítima tornava muito melhor. ogueses, mas já se podia prever uma expansão grande
~----
( 1) Soares de Sousa , Notícia do Brasil. Segunda Parte, cap . IX. (I) Ob. cit., cap. III, pág. 90.
396 CAPITAES DO BRMIL
CAPITAES DO BRASIL 397

e rápida. As terras dos arredores eram das mais férteis


da costa. Engenhos de açúcar estavam a instalar-se 0 de água e muitas mulheres, diz Frei Vicente do Salva-
pau brasil era infinito, produzia-se farinha de mandio'ca dor, tinham demasiada preguiça para subirem ao
com abundância e da melhor qualidade, e a baía abun- IDonte excepto para ouvirem missa de festa na
dava em todas as espécies de peixe. A água para beber Catedral.
era deliciosa e constante, o clima magnífico, porque, O Rio de Janeiro era defendido por espessos
embora o verão fosse quente, o inverno parecia-se com IDuros de cimento sobre que assentava a artilharia, e o
a primavera da Europa meridional. Terra de promis- belo forte levantado à estreita entrada da barra tornava
são, diz Gandavo, aqueles que ali se estabelecessem a baía quase inexpugnável.
não ficariam desiludidos. E ao s'Ql? Que se passava· em São Vicente -a
Falou profeticamente. Pelos tins do século o Rio primeira de todas as colônias? Ali não h a via riqueza
de Janeiro negociava bastante com o Rio da Prata nem luxo. A cidade que Martim Atonso de Sousa
cujos mercadores pagavam as mercadorias a dinheir~ primeiro fundara, em 1S 84 encontrava-se em declí-
- a.inda tão escasso no. ~rasil-, sendo visitado por nio. Calculava-se que ainda tivesse 5o fogos, mas o
n~vios de ~ngola que ah Iam buscar diferentes espé- porto estava já assoreado- São Vicente nunca havia
cies de fannha e levar escravos. O Rio tinha já a de ser uma cidade. Santos era a cidade do futuro com
~ua, Misericórdia e o seu hospital; havia um colégio o seu esplêndido porto que podia abrigar qual-1uer
Jesmta onde se ensinava a Teologia e a Gramática e número de navios. Mas mesmo Santos não tinha então
onde as crianças aprendiam a ler e a escrever. O Coié- mais de 100 habitantes, e Gandavo calcula em Soo a
gio era um belo edifício, todo guarnecido interiormente população da capitania, dizendo que na sua maior
de madeira de cedro, rodeado de vastos jardins fragran- parte eram mamelucos. Uns viviam em «fazendas
tes de laranjas, limas e limões, sombreados por latadas muito frescas>> (1) à volta da baía de Santos, outros no
de vides e grandes folhas de bananeiras e refrescados interior, e outros nos montes em São Paulo de Pirati-
por um tanque e uma fontc.-. ~inga. Havia ainda alguns bons engenhos de açúcar
A catedral de São Sebastião tora concluída em )Unto do mar, mas a expansão daquela indústria, em
1583 pelo capitão Salvador Correia de Sá. Para lá que se havia posto tanta esperança nos primeiros
mandou ele trasladar os restos mortais de seu primo tempos, não chegara a etectuar-se. Não valia a pena
Estácio, da igreja, então arruinada, da Vila Velha. competir com a produção de Pernambuco e da Baía,
Durante várias décadas a cidade este v e fortemente que se encontravam muito mais fàcilmente ao alcance
agarrada à colina para se proteger das incursões dos dos navios europeus.
índios, mas, à medida que o perigo se ia tornando d Por isso a capitania era pobre. Não havia vestidos
menos frequente, a pouco e pouco começou a espalhar-se e seda nem jóias para as mulheres e as filhas. Os
pela encosta e chegou até à praia. Os proprietários ho~ens usavam antigas túnicas castanhas ou azuis, de
tiravam os seus produtos das fazendas que se espalha- tectdos caseiros; o que tinham de melhor reservavam-no
vam pelos arredores da baía e levavam-nos em canoas para o domingo. A única riqueza era agrícola- abun-
até às suas casas. A rua principal ficava junto da linha
(1) Soares de Sousa, Notícias do Brasil, cap. LXX.
39S CAPITAES DO BRASIL CAP!TAES DO BRASIL 399

dância de frutos, cereais, vinho e carne. Era possível das. As suas andanças pelo deserto, suportando todas
cultivar todos os produtos europeus nas encosta~ as espécies de dificuldades e lutando com tribos hostis,
daquelas montanhas, que brilhavam sob a geada levaram-lhes mais de um ano. Não é para surpreender
branca nas manhãs de inverno. Os marmelos de Pirati- que os primeiros colonos junto da costa, poucos como
ninga tinham fama em particular, sendo a marmelada eram e com tanta coisa para tratar, deixassem a busca
a principal exportação da capitania. dos metais preciosos para o século imediato.
Todavia, apesar de estas colônias serem pobres e Não havia necessidade urgente de ouro, porque
se encontrarem isoladas, e as do norte as haverem neste país toda a gente podia viver. Não existiam mendi-
então ultrapassado, pulsavam de vida e vigor e prome- gos no Brasil. Porque deveria havê-los? Havia pouco
tiam grandes coisas para o futuro. Naquelas alturas dinheiro para se pedir e ninguém tinha falta de comida.
saudáveis, naquele ar puro e sol brilhante, estava a A terra produzia com abundância todas as espécies de
formar-se uma raça resistente, preparando-se para ir vegetais e frutas- chegavam mesmo a encontrar-se
para diante e tomar posse da sua herança. Os filhos dos muitos bravos, que só se teria o trabalho de colher- e
aventureiros vindos de Portugal e de mães índias das a caça e o peixe ilimitados. Conselho de Gandavo
selvas, duras como ferro, sem conhecerem o medo, cheios ao colono recém-chegado: compre um par de escra-
de confiança, estavam no limiar da sua vasta terra, pre- vos índios; encontram-se baratos e caçarão e pescarão
parados para a dominarem aos poucos. Estes eram os para si e ainda arranjarão de comer para eles. Assim
pais dos caçadores de esmeraldas, os «bandeirantes» do pode viver com pouca despesa.
século imediato, que abriram o caminho através do Ern cidades como Olinda e o Salvador, imagina-
mato, exploradores da selva, cujas expedições penetra- mos que tal conselho não podia ter aplicação. Havia
ram no vasto interior e revelaram as minas ocultas. um mercado onde se podia comprar tudo o que se
Muitas vezes em São Vicente os colonos ouviam quisesse para comer. Em cidades mais pequenas- se
falar de minas. Boatos a respeito de ouro e prata para elas na verdade podiam chamar-se cidades -o caso
ocidente chegavam do Paraguai. Em todas as capita- era diferente. O bispo de Tucumá, quando veio do
nias se falava de esmeraldas e ametistas e pedras precio- Rio da Prata à Baía ~ . procurou comprar provisões no
sas, e em diferentes épocas haviam-se organizado várias c~minho, queixou-se de não poder encontrar nada à
expedições à procura delas, muito para o interior, mas venda, embora tudo o que ele queria fosse uma galinha,
não se tinha descoberto ainda nenhuma veia autêntica quatro ovos e um peixe! Todavia, quan ·io apelou para
de tesouros. Sempre o ElDorado ficava lá mais para as casas particulares, foram-lhe oferecidas grandes
diante até as pequisas terminarem no deserto vazio. quantidades de todas as coisas e de graça. Todas as
Em I S74 um neto do Caramuru comandou um grupo f~zendas e engenhos eram unidades que se bastavam a
desde a Baía, subindo o rio Caravelas e passando SI próprias. Cultivavam os seus cereais e hortaliças,
além; supõe-se que chegaram até onde é hoje o estado os seus rebanhos e manadas forneciam-lhes leite e
de Minas Gerais. Não encontraram o ouro que eles carne, cultivavam e teciam o algodão com que os
procuravam, mas voltaram com topázios e turmalinas seus criados se vestiam.
e algumas pedras que se supôs serem safiras e esmerai- A sua mesa hospitaleira serviam-se os produtos de
CAPITA ES DO BRASIL 401
400 CAPITAES DO BRASIL
novos rebentos. · Plantando-se estes, cresciam ràpida-
1rês continentes. Pelos fins do século XVI os portu- 'roente, por isso não se precisava de sementes.
gueses já tinham aclimatado grande quantidade de Os pepinos eram magníficos, as alfaces grandes e
trutãs e hortaliças de Portugal e introduzido outras de muito saborosas; a mostarda e os agriões davam-se
Atrica e da fndia. bem, assim como as cenouras; cultivavam-se rabanetes
De São Vicente a Pernambuco cresciam com enormes e havia nabos como os de Entre-Douro-e-
exuberância laranjas, limões, cidras e limas, e davam -Minho. Todavia dizem que nenhum destes dava
todo o ano os frutos mais saborosos, os melhores da sua -semente. Tinha de importar-se.
espécie jamais provados. Os figos eram tão bons como O quintal também produzia com êxito; florescia o
os de Portugal, as uvas amadureciam duas vezes por funcho, e a salsa conservava-se verde todo o ano, e a
ano nas ramadas, e embora as formigas destruíssem as hortelã crescia como o joio. O cebolinha produzia-se
videiras no norte, fabricava-se mui to vinho em e reproduzia-se, m as quem quisesse comer alhos tinha
São Vicente. Nas montanhas das cercanias do Rio de de ir a São Vicente.
Janeiro e São Paulo multiplicavam-se os marmelos- Tudo isto e muitas outras espécies de vegetais eram
alguns cultivadores colhiam doze mil num ano- romãs .cultivados juntamente com as produções indíge-
cresciam em toda a parte, as abóboras eram enormes e nas do Brasil, consideradas dignas dos Campos Elísios,
excelentes, assim como os melões. tão úteis e deliciosas plantas e frutas se haviam encon-
Os tamarindos tinham sido importados da Índia· trado no país.
?aq?i e de São Tomé tinham vindo os coqueiros qu~ O ananás era o orgulho da terra. Todos os
mchna vam as suas folhas por cima dos muros de c aJa .autores são acordes em dizer que nada na Europa
jar~im e erguiam os seus topos empenachados junto da se lhe podia comparar. Quando se parte um ananás,
prata, com tal despreocupação e felicidade como se esta escreve Gabriel Soares deliciado, todo o prato nada
tosse a sua terra natal, e produziam esplêndidos cocos. ,em sumo! Muito mais sumarento do que uma laranja
A jaca de C<!ilão dava-se perfeitamente no Brasil· ~esta fruta esplêndida- ''Nenhuma fruta de Hespanha
ainda se não fala nas mangas, mas no século imediato vã~ lhe chega na formosura, no sabor e no cheiro~' e).
aparecer; as bananas tinham sido levadas de São Tomé Quanto ao perfume, não pode descrever-se- uns
par~ juntar outra espécie à planta indígena a que os ananases cheiram a melões, outros a pêras, e outros
mdtos chamavam pacovas. Os escravos da Guiné a nada senão deliciosamente a si mesmos. Os índios
vivi~m. em espe.cial desta fruta de que a variedade fabricavam vinho do sumo do ananás, que era muito
brastletra se constderava mais nutritiva. Dava-se assada forte e capitoso. Os portugueses, que gostavam muito
aos doentes em vez de maçãs; cozida com canela e desta fruta, faziam com ela excelentes conservas e
açúcar era um doce delicioso. ·saborosa marmelada.
As hortas estavam bem fornecidas. Nenhum por· Embora muito longe de se comparar aos ananases,
tu?u.ês se sentia bem sem as suas couves, e por o caju refrescante era também muito apreciado. Tudo
tehctdade acharam que no Brasil a couve tronchuda
se dava muito bem, É verdade que não produzia {I) Notícias do Brasil., cap LVII.
semente, mas quando a cortavam do caule b·rotavam 26
41>2 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 403

nesta fruta era bom : o sumo, o miolo, até a amêndoat • - delas considerada em especial muito boa.
a noz-de-caju que de modo tão estranho crescia por mvença 0 , , d d' d
Cuscuz era outra, feita de ratzes e man 10ca, e que
fora do fruto. A goiaba era excelente, assim como o se extraía a tapioca. .
seu pequeno primo, o araçá; o mamão (ou papaia), Claro que o açúcar ~anca faltava nas... c~zmhas
levado de Pernambuco para o sul, era perfumado,
b rast·teiras , mas havia tambem
d meld em
. .abundancta. para
mole e doce; o fruto-da-paixão (maracujá) tinha um t dos quantos gostassem ele - e1tctoso me 1 st1vestre
belo sabor e aroma, e havia mangabas e sapotis. foito por meia dúzia de espécies de abelhas da floresta,
pitangas e jaboticabas, A lista podia aumentar-se :ue não tinham ferrão, mas podiam morder como
indefinidamente com as frutas da floresta conhecidas fúrias. . . .
apenas pelos seus nomes índios. Não se precisava de 1r buscar as espectanas e as
Todas as espécies de feijão indígena aumentavam a drogas à índia e ao Oriente. A pir:nenta cre~cia brava e
lista das variedades levadas da Europa e da África, e livremente nas tio restas do Brastl; o gengtbre, levado
os palmitos eram muito saborosos estufados; as batatas para a Baía floresceu e espalhou-se sem cultura; culti-
doces eram muito apreciadas, assadas ou cozidas, e vou-se a n~z moscada e a baunilha, havendo óleos
podiam fazer-se delas doces excelentes. medicinais indígenas, assim como ervas bastantes para
Quanto aos cereais, trigo e cevada, davam-se encherem uma farmácia.
bem em São Vicente, mas ninguém se interessava Entre esses remédios figurava a discutida pJanta
muito pela sua cultura. A mandioca era o alimento chamada tabaco- «erva santa)) era o nome que lhe
corrente do país e usada para fazer pão do norte ao deram os portugueses, porque se supunha que curava
sul, em toda a extensão da costa brasileira. Os pluto- muitos males. Os índios enrolavam-no em forma de
cratas de Olinda e do Salvador podiam importar cigarros feitos de folha de palmeira e aspiravam-nos
farinha de trigo de Portugal para seu uso pessoal, mas com delícia. Deles tomaram alguns colonos o hábito de
até os governadores Tomé de Sousa, D. Duarte da •beber fumo», que, como vimos, tanto escandalizou o
Costa e Mem de Sá preferiam o pão de· mandioca bispo D. Pedro Fernandes. .
para comer porque gostavam mais dele e achavam-no Nóbrega, sempre inclinado à tolerância, pa!ece te;
mais sadio. visto a prática com espírito livre. Esta erva, dtz ele, e
A mandioca crescia em toda a parte, e desde que boa para os órgãos digestivos e para vários males.
a tratassem e lhe extraíssem o suco venenoso, podia Pensa ele que talvez a pudesse usar com vantagem,
preparar-se de muitas maneiras. Havia a farinha seca mas prefere abster-se com receio de tal exemplo
assada ao fogo, que os índios faziam para levarem poder vir a ser um embaraço. -
consigo quando iam para a guerrà, e esta durava Com tudo isto o Brasil não era um paraíso unica-
muitos meses, e havia a farinha moída de fresco que se mente vegetariano. Talvez o fosse durante os primeiros
fazia em cada casa todos os dias. Dizem que qualquer anos da colonização, antes de se criarem anima.i~
delas era excelente, e com a farinha de mandioca as domésticos. Em 15 70 ou por essa altura, o colono JB
donas de casa portuguesas faziam toda a espécie de não precisava de estar dependente unicamente da caça
bolos e pastéis. Beijos- espécie de filhós- era uma para ter a sua ração de carne. Grandes manadas de
404 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL

gado andavam e multiplicavam-se nas pastagens per- ia febres terçás e quartás, mas quando a Europa
petuamente verdes. Em alguns lugares parece até que haV . d infestada pelas febres palustres, ataques.
as pastagens eram muitíssimo ricas. Em Porto Seguro, era am ~o punham medo a ninguém. A febre amarela·~
diz Gandavo, as vacas não duravam mais dum ano. desses nalharia a morte e o terror, so• aparecena· v á n?s
·
Morriam porque engordavam muito! que elspadepois e as doenças do interior ainda se na(}
Abundavam as cabras, como elas sempre abundam, sécu os· ' h b' d os
e pariam três cabritos de cada vez. Os carneiros talvez conh ectam. Quanto ao, calor-, a um povo a ttua d o fa
,. caldantes da Atrica, as temperaturas oen tas
sots es I d f d·
:não fossem tantos- esta terra não era a ideal para a do Golfo Pérsico e do Mar Vermelho, a~ c~ or a ~ ta,.
lá- mas os porcos multiplicavam-se espantosamente "'o falar no verão ardente do patno Alente)o, o-
em todas as regiões. O toucinho não tinha muita gor- para na d ~
Brasil parecia temperado em to as as estaçoes.
dura, mas a carne podia comer-se todo o ano, e no Brasil Encontramos todos os testemunhos concordes co~
-consideravam a carne de porco boa para os doentes! res eito à salubridade da terra: «he esta terra mu1'.
Galinhas, gansos e patos e pombos cacarejavam e sal~tifera e de bons ares, onde as pessoas se acha~.
grasnavam e enchiam a cesta dos ovos em todas as b tn e vivem muitos annos>>, escreve Gandavo ( )..
-cidades e aldeias. Na Baía, diz Gabriel Soares, as E~ta terra, diz Nóbrega ao Pro~incial .de Portugal,
galinhas eram maiores, mais gordas e mais belas do o:é muito sã para habitar-se e asstm avengu;mos, que
que as de Portugal. Punham mais .ovos e as frangas me parece a melhor que se possa ~char» (). As pe!-
~omeça vam a pôr mais cedo. soas morrem idosas no Brastl, co~tmua ele, mas na(}
Toda esta abundância se atribuía ao belo clima. de febre. Aqui as doenças são mutto leves e curam-se
Toda a gente estava convencida de que ele era 'O fàcilmente declara Fernandes Brandão nos seus famo-
melhor do mundo. Prova? Não morriam os índios sos Diáloios: «tem tão bom céo e goza de tão bons.
brasileiros em Portugal? Como não h a via de ser assim ares toda a terra do Brasil, que nenhuma das causas
se eles estavam habituados a um melhor clima? Ora os que costumam fazer damno por outras reg10es ·~
o faz em
africanos e os indígenas da fndia, muito pelo contrário, nella» e). E «quanto mais me ponho no modo d;
davam-se admiràvelmente no clima português porque viver de cá, tanto parece que melhor me acho», ( )
'P país era muito mais saudável do que as terras em escreveu o P." Rui Pereira.
que eles haviam nascido. Mas no Brasil podiam viver Admitia-se que o clima não despertava as ene;-
~odas as raças e gozar de boa saúde, e os que chega- gias- sobretudo nas capitanias do norte. Os qu~ sa(}
yam doentes melhoravam logo. Isto demonstrava novos na terra, di:r. Gandavo, sentem-se bastante mdo-
.claramente que o clima bràsileiro era o melhor de lentes e cansados ao princípio, mas isso passa e ~les
todos! encontrar-se-áo tão bem e resistentes como no remo.
. Que houvesse qualquer doença tropical que
pudesse contrair-se no Brasil, não lembrou aos portu-
( 1)Tratado, cap 3.
gueses do século XVI. Conheciam as epid~mias (21 Cartas do Brasil, pág. 111. _ D " . d G•andtzas do Brasil.
devastadoras do Oriente, as febres mortais da Africa (3) Ambrósio Fernandes Brandao, ta 1ogos as ·
pág 116.
ocidental-.encontrava-se disso no Brasil? Com certeza (4) Cartas Avulsas, pág. 2S7.
406 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRASIL 407

Tão resistentes sim, mas talvez não tão dinâmicos. encantadoras. Seja como fo.r, q~ando nos lembramos
Uma indolência comodista considerava-se caracterís-
tica dos brasileiros do Norte. Eram gente simpática d os va lent óes de 1549 ', cuJa~ linguagem desenfreada
· estremecer os JesUltas, e bastante para espantar
f azla
hospitaleira e generosa, amiga dos pobres e dos seme~ · f marem-nos de que nos t'ms d o. secu 1o o B rasi'l c h e-
I

lhantes. Reputavam-nos de viverem muito bem ves- tn or


a considerar-se uma aca d emia . . de compos t ura
tindo dispendiosamente e comendo do melhor. Parece gara l'd
social e de linguagem po 1 a. ' .
que Gabriel Soares achava que se vestiam demasiado Lendo os brilhantes relatos das maravilhas do
- a Beleza e a Moda de Lisboa não podiam competir Brasil escritos pelos que ali viveram, quase vemos o
com eles! Em Olinda e no Salvador, mesmo as mulheres quadro dum povo de lotófagos a viver num paraís.o
~e cond~ção humilde só usavam sedas, e qualquer rús- terreal. Sentimo-nos tentados a esquecer a crua reah-
ttco podta pavonear-se com um gibão de cetim. Contra dade. No fim de contas estes homens e mulheres eram
isto, diz Anc~ieta que mesmo os ricos se não importa- pioneiros e toda a colónia uma cidade fronteiriça à
vam que os vtssem descalços! Era muito mais fresco e beira do deserto.
conto ·tável, mas devia parecer esquisito com as roupas A segurança da vida mal se conseguira ainda.
esplêndidas. Aqueles elegantes fidalgos de trajos tão imponentes,
l':f~smo os índios est~vam a ad.:tuirir o gosto pelo que tala vam tão bem e cumprimentavam com tanta
vestuano, embora pretenssem ainda o à vontade da graça quando vadiavam pelas ruas pacatas do Salv~­
nudez !otal. ~odavia, já se preocupavam com aquelas dor tinham conhecido as marchas forçadas atraves
pe.':(uenmas cotsas que achavam dar b:>m aspecto a um das' florestas duma terra ínvia, onde cada passo tinha
homem -um ba rrete, ou um capuz ou um chapéu por de se talhar a golpe de machado na mata feroz, e
.e.xemplo, dariam elegância a uns ombros nus, ou ~ode­ longas vigílias durante noites sussurrantes, quando. a
na uma pessoa passear elegantemente com um par de aproximação traiçoeira do inimigo à espreita não podta
b.otas, ou usar uma túnica até à cinta. As roupas distinguir-se das miríades de murmúrios do negrume
tmham chegado a considerar-se de rigor nos casa- ambiente. Tinham combatido e podiam voltar a com-
~entos índio~, embora no banquete, passada a cerimó- bater em batalhas cruéis com hordas ferozes de sei vagens
ma, os convtvas pudessem pôr-se à vontade tirando vagabundos, que só desejavam os prisioneiros para os
parte das roupas ou mesmo todas. matar e comer.
Estava a formar-se uma curiosa sociedade de Aquelas mulheres e filhas, vestidas de seda, cheias
inclassificados de raça mista, em que os .fidalgos de de jóias, servidas por muitos escravos, ~mimadas. e
Portugal se acotovelavam com o mameluco e o mulato queridas como a mulher branca sempre sera onde esteJa
o campones do Minho com o ex-forçado. E uns eram'
A
em minoria, não tinham assegurada a salvação das suas
casados com finas damas, outros com .filhas de canibais, vidas. O que podia acontecer a quem se encontrasse
outros com órfãs vindas de Lisboa. Podemos imaginar nas plantações afastadas é contado pelo P.• Leonardo
que toda essa gente eram rudes pioneiros ou vulgares do Vale numa carta escrita de São Vicente em r 565.
novos-ricos, mas consta-nos não ter sido assim. Há algo Co~ta ele como, quando os ho~ens esta~am todos
no ar brasileiro que parece favorecer as maneiras ausentes na guerra, um grupo de índios tamotos assal-
4C8 CAPITAES DO BRASIL

tou uma herdade onde apenas se encontravam mulhe- ·


res e crianças. Quando no silêncio da noite elas ouviram ·
bater à porta, barricaram-se dentro dum quarto.
- ((Mãi, disse uma rapariguinha de 5 anos, lem- ·
brai ·vos de Deus, resai, rogai-lhe que nos não levem
estes contrarias!» (').
A mãe rezou e pôs os ombros à porta, enquanto as
companheiras saltavam pela janela. Uma rapariga,
recém-casada de 14 anos, quando saltava viu-se agar-
rada pelos cabelos.
-<<Solta-me, porque ali está o meu escravo que
me h a logo de acudir!» gritou.
Fdizmente aquilo era verdade, embora ela o não
soubesse. Os escravos, que dormiam em casas à parte,
tinham ouvido o bater da porta e iam mesmo a correr
para o local. O índio largou a rapariga e voltou-se
para lhes fazer frente, enquanto, mais rápida que o
relâmpago, ela se escondia no mato. Entretanto o seu
irmãozinho ocultou-se por detrás dum arbusto. Um
índio encontrou-o ali, mas ele deu-lhe um murro com
o se'!! pequeno punho.
-((Vai-te tora, cão!» gritou ele, e dizem que o
homem obedeceu. A criança fugiu com a avó enquanto
os fiéis servos punham os assaltantes em fuga.
Este é apenas um caso a apontar- um incidente
que aconteceu ficar registado. Podemos ter a certeza
de que se multiplicou muitas vezes em todas as capita-
nias e que nem todos acabaram tão bem. Sabemos que
Pernambuco, depois da morte de Duarte Coelho, foi
assolado pelas ferozes tribos dos Caetés. Só ao fim de
cinco anos de luta, levada até muito longe no interior Baltasar Ferreira atacando a hipupiara.
pelo filho mais novo de Coelho, é que a terra ticou livre Gravura da ''História da Província de Santa Cruz" por Pêro de
daquele perigo. Na Baía, não muito longe do Salvador, Magalhães Gandavo, edição de 1575.
fica v a a região indomada de Camami ocupada pelos

(1) Cartas Avulsas, pág. 447.


CAPITAES DO BRASIL 409

selvagens Aimorés, que viviam como animais bravios


no mato sem cabana ou abrigo, e eram considerados
selvagen~ mesmo p;los outr~s índios. O Rio de Janei:o,
até nos fins do seculo, fot ameaçado pelos tamotos
de cabo Frio; cada fazenda podia ser nm dia uma
cidadela cercada.
O inimigo humano à espreita, embora com certeza
0 mais perigoso, não era o único receio que preocupava
a imaginação. Daquela terra e daquele mar desconhe-
cidos ninguém sabia o que podia vir, ou que história
era demasiado estranha para ser verdadeira. Ouvimos
falar dos monstros do rio Pernambuco descritos pelos
primeiros colonos dali, mas estes não eram nada com-
parados à aparição vista em 1 S64, junto da praia de·
São Vicente.
A noite estâva escuríssima, a aldeia dormia, só-
uma mulher índia velava, quando por entre a escuridão
se viu uma forma horrenda diferente de tudo o que até:
então se vira. Aquele ser avançava às apalpadelas com
passos incertos, soltando de vez em quando rugidos
horríveis. ·
Tremendo toda, convencida de ter visto um demô-
nio, a mulher foi a correr acordar o filho do capitão, <>
jovem Baltazar Ferreira. Este levantou-se da cama e
pegou na espada. Descalço e em camisa, saiu corajo-
samente como São Jorge para matar o dragão .
O monstro sentiu-o aproximar-se e olhou em redor,.
depois deu uma volta e dirigiu-se para o mar. O jovem
correu e pôs-se-lhe à frente, depois do que o bicho-
se ergueu sobre a cauda semelhante à dum peixe e
a.vançou para Baltàzar, que enterrou a espada na bar-·
nga do monstro. Ao mesmo tempo saltou para o lado.
para não ser esmagado pelo pâvoroso corpo, mas não
sem ter recebido na face, em cheio, um jorro de sangue
que quase o cegou. O animal ferido voltou-se e lutou
com unhas e dentes até Baltazar o atordoar com nm
-110 CAPIT AES DO BRASIL CAPIT AES DO BRASIL 411

,golpe na cabeça. Na mesma ocasião os homens da que não mordia, ~.as esmagava um homem ou um
.aldeia, despertados pel0s gritos da mulher, vieram a animal nos seus anets.
-correr em socorro e acabaram o monstro. Que vinha a E havia menores horrores na forma de insectos-
:ser tudo aquilo? perguntou o capitão ao filho. Que escorpiões e centopeias, aranhas venenosas de tamanho
.acontecera ? Mas o mancebo tinha perdido a fala horrendo. Maior que todos eram as tormigas de várias
-com o abalo e durante algum tempo não pôde dizer espécies - grandes e pequenas, enormes formigas pre-
11ma só palavra. tas, frágeis formigas vermelhas, formigas castanhas de
A manhã ·revelou a carcaça estendida na praia - tamanho médio, as devastadoras formigas brancas,
"forma como nunca se tinha visto, ser que nem era formigas volantes e formigas que cortam, formigas que
.animal nem peixe. Media 1 5 palmos de comprido, tinha picam e formigas que despojavam uma árvore de todas
·cabelo em todo o corpo, cauda de peixe braços e as folhas em poucas horas .
.garras, bigodes eriçados e orelhas pontiag~das. Que Comparados com as formigas, os mosquitos mal
podia realmente ser, não podemos saber. Os índios pareciam um flagelo- ou assim parecia quando nin-
<iiziam que era Hipupiara, o demônio das águas. guém os supunha transmissores de doenças. Eram
Fez-se um desenho do monstro, que ficou para a incômodos, mas não mais do que o percevejo ou a
posteridade ver- acredite nele ou não! pulga saltitante do Velho Mundo, tão comuns nascida-
Horrores com certeza mais genuínos e mais mor- des europeias daquele século, mas que não parecem
tíferos do que este fantasma dos abismos, eram as ser- indígenas do Brasil.
pentes venenosas da terra, especialmente a jararaca, Evidentemente havia grande quantidade de carra-
-cujo dente oco produzia morte certa. Esta serpente, a patos e outros tais insectos e moscas para tormento do
mais comum, abundava na floresta e nos campos e gado e dos seres humanos. Aquele de que mais se ouve
descia pelos telhados das casas para as camas. Conta- tala r é o cc bicho de pé» - esse odioso insectozinho que
va-se a história lúgubre dum homem mordido na bar- depõe os ovos debaixo das unhas dos pés do homem
riga da perna, e cujas botas, depois da morte dele, para incubarem mais tarde numa bola de gusanos.
foram vendidas em leilão. O comprador calçou-as, Certas pessoas não detestavam o <c bicho de pé»,
mas logo a perna lhe inchou e também ele morreu sem informa Fernandes Brandão, com surpresa nossa, ccpor
eausa aparente, até que o exame da bota revelou um uma gostosa comichão que nelles fazem>> e). .
pequenino dente, aguçado como uma agulha, que Um desses não é Gabriel Soares de Sousa. ccBtcho
estava atravessado no cabedal. de pé», observa ele severamente, é admitido apenas
A grande serpente branca sururucucu era outro pela gente deplorável que nunca lava os pés!
perigo dos bosques. Enrolava-se à volta das árvores e O bicho é apanhado por qualquer pessoa que ande
<ieixava-se ficar pendente com perigo dos que pas- descalça em quartos por varrer ou em terra solta, mas
savam. O ruído sinistro da cobra cascavel enchia pode ser retirado com um alfinete no momento em que
toda a gente de pavor; havia a linda cobra coral, se lhe descubra a presença.
pequena mas mortífera, e muitas mais, outros tantos
cépteis inoculadores de veneno, além da grande jibóia ( 1) Diálogos, pág. 126.
412 CAPITAES DO BRASIL CAPITAES DO BRA~IL 413

Apesar de tudo- os terrores que espreitavam de mentos eu os tenho por melhores, ao menos para mim,
tod~s os lados da floresta, e as pragas e perigos meno- que os de lá e de verdade que nenhuma lembrança
res JUnt? das gentes, apesar de todos os problemas de tenho delles pera os desejar. Se tem em Portugal galli-
adaptaçao, os portugueses no Brasil multiplicaram- se e· nhas, cá ha muitas e mui baratas; se tem carneitos,
prosperaram. cá ha tantos animaes que caçam nos mattos, e de
Po~que eles amavam a terra. O facto é evidente, tão boa carne, que me rio muito de Portugal em
a ~espetto de todas as queixas e murmurações citadas essa parte. Se tem vinho, ha tantas aguas que a olhos
mmtas veze~ p~r~ provar o contrário. Nóbrega lamenta vistos me acho melhor com ellas que com os vinhos de
que os funct~nanos ~a?dados pela Coroa para desem-. lá; se tem pão, cá o tive eu por vezes e fresco, e comia
penhar funçoes admtmstrativas não se importassem antes do mantimento da terra que delle, e está claro
realmente ~com ? Brasil- evidentemente que estes· ser mais sã a fàrinha da terra que o pão de lá: pois as
homens nao se tmportav~m! .o funcionalismo, hoje trutas, coma quem quizer as de lá, das quaes cá temos
como ontem, geralmente nao cna raízes. Vão 1-~ara fora muitas 1 que eu com as de cá me quero. E além disto
da terra p_orq~: a sua carreira os leva, como magistra- ha cá causas em tanta abundancia, que, alem de se
dos, f~n~IOnanos. do tesouro, escrivães. Cumprem a darem em todo o anno, dão-se tão facilmente e sem as
sua. mtssao conscienciosamente ou não, segundo 0 seu plantarem que não ha pobre que não seja farto com
caracter,~ esp~rando voltar à pátria ao fim de alguns mui pouco trabalho. Pois se fallarem de recreações, com-
anos. Nao fot ge~te des~a qu~m colonizou 0 Brasil. parando as de cá com as de lá, não se podem comparar,
Tem-se tambem sahentado muito a indiferença e estas deixo eu pera os que cá quizerem vir a experi-
para com a sua maior colónia, . do que se tem às ve es mentar. Finalmente, quanto ao de dentro e de fora não
acusado o .governo de Lisboa- e primeiro que todos se pode viver senão no Brasil quem quiser viver no
Mem de~ Sa. Devemos lembrar-nos de que o governo paraíso terreal; ao menos eu são desta opinião. E quem
se ':_ompoe de alpuns indivíduos. Um governo não é a me não quiser crer, venha experimentar»! e)
naçao, nem na epoca do absolutismo se podia dizer Este rapto de entusiasmo é característico. Nenhuma
que a representasse. parte do seu vasto império do século XVI Portugal
, .A v.erda~e é que Portugal se apaixonou pelo Brasil amou tanto como esta. Os contemporâneos escreveram
a pr~meua vtsta. Prova, a carta lírica de Pero Vaz de da ' Ásia e da África de modo interessante, pitoresco e,
Camtnha; prova, os relatos entusiastas dos vários muitas vezes, apreciativo; nunca com o sentimento
autores qu; .se lhe seguiram- Gandavo, s ~ ares de que inspirou o Brasil.
Sousa, ~n~omo Fernandes Brandão, nenhum dos quais Ia-se à África para ganhar renome a combater os
era brastletro nato. ~nfiéis de Marrocos, ou para enriquecer a neg,oci.ar
Também ,o não era Rui Pereira, padre jesuíta que JUnto dos rios da Guiné ou da Costa do Ouro. A Indta,
escreve da Bata em r56o: a feiticeira- cheia de jóias, rescendente de especiarias,
''~e houvess.e paraíso na terra, eu diria que agora cintilante, junto de cujas costas inacreditáveis feitos de
o havta no Brastl. .. saude não ha mais no mundo·
ares frescos, terra alegre, não se viu outra; os manti: (I) Carta$ .A\'ulsas, pág. 263, 4.
414 CAPITAES DO BRASIL

valor foram obrados e fortunas incríveis se fizeram ou


perderam- atraiu todos os espíritos romanescos ou
aventurosos que sempre voltavam chamados pelo seu
apelo poderoso; mas foi só para a segunda geração lá
nascida que a Índia se tornou uma pátria.
O Brasil, amado desde o princípio, fora amado por
si só. A terra não tinha sido povoada por uma multidão
ávida de pesquisadores de tesouros. A prata e o ouro
para os primeiros colonos não passavam duma probabi-
lidade, um sonho para os que quisessem entregar-se a
essa ideia de ambição. Era possível que tais coisas ·ai,
pudessem encontrar-se um dia, mas não fora para
LI'
aquilo que eles tinham atravessado o Oceano.
Foram e ficaram, porque para eles o Brasil era ia,
uma terra para viver e morrer, e assim perseveraram a ·e-
despeito de todos os impedimentos, mesmo no caso de CRONOLOGIA UI
ficarem arruinados. Os primeiros capitãe·s tinham des- li,
pendido tudo o que possuíam e só Duarte Coelho vira es
o seu labor recompensado, mas nenhum perdera a fé -a
no futuro. E alguns começaram a pensar de si para si se ,,.
I&

fazer o Brasil não seria talvez a coisa mais importante


que Portugal podia fazer. 'O
à
O rei terá «hum novo Reyno e muita renda em '1.
breve tempo»('), dissera Pero do Campo Tourinho em
1 S46, e cinquenta anos depois Ambrósio Fernandes
Brandão saiu a demonstrar que só o Brasil valia muito
mais do que todas as índias orientais. '·
Mais profética era ainda a nota que Gabriel Soares e
já tocara quando declarou; <<este novo Reino ... está
capaz para se edificar nelle hum grande Imperio, o
qual com pouca despeza destes reinos se fará tão sobe-
rano, que seja hum dos estados do mundo>> (2).

(I) Carta de Per o do Campo Tourinho para el-Rei, dt: 28 de Junho de


1546. Publ. in- Hist. da Co I. Port. do Brasil, tomo 111, pág. '2 67 .
(2) Soares de Sousa, Notí cia do Brasil. Declaração e Resolução do que
se centa neste Caderno.
. 150 o
Partida da Armada de Cabral de Lisboa ... 9 de Março
Avista-se pela primeira vez a costa brasileira 22 de Abril
Nicolau Coelho desembarca . . .. 23 •
A armada lança ferro em Porto Seguro 24 •
Missa dominical celebrada em terra ••• 26 •
Lennta•se a Cruz ... . .. . •• 1 de Maio
A armada parte para a Índia . 2 •

15 OI
Viagem de exploração empreendida por três
navios ao longo da costa brasileira, relatada
por Américo Vespúcio ••• .•• ••• ..• •••

15 o2
Mapa de Cantino, mostrando já o contorno da
costa brasileira ... .•• ••• ••• ••• •.. . ..

1503
Viagem de Gonçalves Coelho ao Brasil, também
relarada por Américo Vespúcio .•• •.. •••

1504
Primeira chegada dos Normandos ao Brasil na
nt.u Espoír de Honf/eur, guiados pelos pilo-
tos portugueses Sebastião de Moura e Diogo
do Couto •.• .•• -· ••• ••• . .• ·- •••

1508
Diogo Alvares (Caramuru) naufraga na Baia .~.
'rf
418 ~RONOLOGIA CRONOLOGIA 419

1510 s. Vicente . 10 de Agosto


12 de ~gosto
- 26 de Setembr()
Cananeia ...
João Ramalho chega a São Vicente em circuns- 26 de Setembro
Partem ··· ..
tâncias ignoradas Tempestade que qu~s~ fez na~.1fragar a capltama
próximo do estuano do. Rto da Prata ..• 6 de Nove!I'bro
1511 Pero Lopes junta-se a Martu~ Afonso ... 6 •
Pera Lopes parte de berganttm para explorar o
Viagem da nau Bretoa a cabo Frio e5tuário · ·· •·• · ·· ··· ··· ·· · ••• ·· · ?3 de Novembro
Ern frente de Montevideu. (Monte de São Pedro) 24 •
1514 Chega à terra dos Carandms . ··· · ·· . .• . ·. 11 de Dezembro
Levanta o padrão com as armas de Portugal 12 de Dezembro
Expedição de Cristóvão de Haro e D. Nuno 13 •
Regressa ... ··· ··· ···
Manuel com o piloto João de Lisboa ao Em frente de Montevideu 21 •
Rio da Prata Terrível tempestade ••• 24/5 • •
Junta-se a Martim Afonso 27
1516 . Parum para São Vicente 1 de Janeiro de 1532
Chegam a São Vicente : . . 20 de Janeiro
Viagem de Cristóvão Jaques e fundação duma Colónia fundada em Sao Vtcente e em Ptra·
feitoria em Pernambuco 21 de Junho de 1516 tininga Janeiro - Maio
Maio de 1519 Pcro Lop~s parte para o reino ::?2 de Maio
1519-1527 Avista a Baía ... 17 de Julho
Na Baía ... 18-29 de Julho
Viagens comercuts e disputas com os franceses Parte para o Norte • ... .. . ... . .. ... . .. 30 de Julho
intrusos Em frente da ilha de Santo Aleixo, próximo de
Pernambuco, avista um navio francês .•. 6 de Agosto
1528 Partida de Pernambuco 4 de Novembro
No meio do Oceano a 42 léguas de Cabo Verde 22 de Novembro
Expedição pumtlva comandada por Cristóvão Último registo do Diário de Pera Lopes .•• 24 •
Jaques . Fim do ano Chega a Portug~l Fim de 1532
Chegada de Diego Garcia de ~oguer a São
Vicente 1533
158 o Regresso de Martim Afonso de São Vicente 1 de Agosto
P .. ssagem de Sebastião Caboto e Alonso Garcia
de Santa Cruz por São Vicente .•. ... . •• 153 4
Cartas de marca passadas pelo rei de França a
João Ango ••. ••• ••. .•. .•. ... . •• Distribuição de capitanias a Duarte Coelho,
Martim .-. fonso de Sousa e seu irmão Pero Vasc.o Fernandes Coutinho, Francisco Pereira,
Lopes de Sousa partem de Lisboa . 3 de Dezembro Martim Afonso de Sou•a, Perq Lopes de
Sousa c Pcro do Campo Tourinho
1581-1532 Pcro do Campo chega a Porto ::.eguro Fim do ano?

Viagem de Martim Afonso e Pera Lopes de Sousa 15 3 5


Cab.> de Santo Agostinho ••• .•. ••• ..• ••• 1 de Fevereiro
Pernambuco ... 17 de Fevereiro - 1 de Doação de capitanias a Antónío Cardoso de
Março Barros, Aires da Cunha, 1oão de Barros e
Seguem para o Sul . ..• ••• lO de Março Fcrnand' ~!vares de ,Andrade... •.. ... . .•
Chegada à Baía de Todos os Santos ••. 13 de Março Duarte Coelho chega a Pernambuco . Março
Partem ..• 17 de Março Vasco Fernandes Coutinho chega ao Espírito
Voltam à Baía 25 de Março Santo... ... . . .•. ... ..• ... . .. 23 de Maio
Seguem para o Sul . 27 de Março Fr~nci.sco Pereira· chega à Baia ... ... · ·· ••• no fim do ano?
Pnmctra exp~dição ao Maranhão sob o comando
Rio de Janeiro .
Seguem para o Sul , ... 30 de Abril - 1 de Agosto.
1 de AgOJto de Aires da Cunha .•• Novembro

.. - I' • - - ___ ,
CRONOLOGIA
CRONOLOGIA 42~

1536
Francisco Pereira levanta uma fortaleza na Baía Pero do Campo Tourinho é preso pela sua pró-
pria gente ... 4 de Novembro
Peco ?e Góis r~gre~sa de São ~IJcente a Portugal
Doaçao da capltama de Paratba do Sul a Peco
1547
de Góis ••• .•. .•• ..• ••• ••• ••• . .•
Pera de Góis volta ao Brasíl . 1 de Janeire
Pera do Campo Tourinho, em Portug~l! r~sponde
a acusações feitas, perante a InquJsJçao . ••• Setembro ld
1517 ll

J Duarte Coelho concede fora! à nova cidade


de Olínda . ••• ••• .•. ... ... ••• •••
12 de Muço
1548
0 rei resolve nomear um governador geral
!U
to
Vasco Fernandc:os Coutinho dá a ilha de Santo
Antônio a Duarte de Lemos ... Nomeação de Tomé de Sousa .•• ••. ••• Novembro
15 de Julho Regimento de Tomé de Sousa •.• 17 de Dezembro
1519 1549
Fixação de limites estabelecida entre Pera de
Góis e Vasco Fernandes Coutinho Chegada à Baía do primeiro governador g~ral
Morte de Pera Lopes de Sousa no O~ea~·~ 14 dc:o Agosto do Brasil, Tomé de Sousa, acompanhado de
Pera de Góis, P." Nóbuga e de outros li
Índico.
jesuítas missionários 29 de Março
Edificação da cidade do Salvador da Baía de ia
1540 1 odos os Santos •.. i\ bril a i\ gosto
Duarte Coelho visita a Europa ••• . .. Vasco Fernandes Coutinho deixa o Espírito ·e
Vasco Fernandes vai também à Europa Santo)...
Pera de Góis parte para o Sul com o ouvidor !1,
Pera Borges Novc:ombro
1541
es
Duarte Coelho regressa ao Brasil 1550 ·a
Setembro
Rapazes órfãos embarcam em Belém para o IA
1542 Brasil ... ... .•• ... •.. .. Janeiro? Ir'
Miguel Henriques e Pedro Rebelo são manda-
A cidade de São Vicente é varrida pelo mu e dos a explorar rios ao longo da costa, mas
a igreja arrastada por· ele • ••• ••• ... •.• ro
desaparec ~ m ... ••• •.. •.• 5 de Novembro à
Pera de Góis visita a Europa
Abril Pera de Gó's volta ao Salvad"r ••. depc.is de Setembro ~.

1543 15 51
Pera de Góis regressa à Vila da Rainha ·- ••• Primeiro grupo de rapang~s órfãs mandadas
Vasco Fernandes volta ao Espírito Santo • ., .•• ?·
? pelo rei para casar ... ••.
Fundação da cidade de Santos por Brás Cubas
-' Os P. P. Nóbrega e Antônio Pires chegam a
Pernambuco e
1545
1552 ,.
Perturbaçõ~s na capitania de Vasco Fernandes ·
Francisco Pereira, expulso da Baía, rdugia-se '• O P.• Nóbrega volta à Baía ... •.. ... ••• . .. Janeiro
em Porto Seguro ••• •.. O bispo D. Pt'dro Fernandes Sardinha chega
à Baia 25 de Junho
1548 Tomé de Sousa e o P.• Nóbrega partem para
o ~ul ... Agosto
Ruína da capitania d.e Pero de Gó is •••
Regresso de Francisco Pereira à Bdía onde é antes de 29 de Abril 1551
devorado pelos índios ... •.• -·
depois de Junho Tomé de S ) usa entra na baía do Rio de
Janeiro Janeiro
422
-
MA
iros
CRONOLOGIA CRONOLOGIA 423
rtu-
dos
Chega com Nóbrega a São Vicente .. . JR·
Regressa à Búa . .. ... . ..
Fevereiro No .,_ . 't o Santo toma posse da capitania
.... pm 21 de Fevereiro
Junho em llome do rc:i ••• ··: - ..• .•• . ..
Chegada do novo governador O. Duarte da No no . de Janeiro • destrmçao do forte de
Costa!... .•. .•. ••• ... ... ••• . •.. 13 de Julho Villegagnon 15 de Março
Chegada de Anchieta ao Brasil .. . 13 de Mera de Sá em São Vicente Junho
Regresso à Baia 29 de Agosto
1554 tde
15 61 llil
Fundação de São Paulo por Nóbrega .•. 25 de Janeiro 1ue
Chegada de Anchieta a São Vicente ... tos
Morte de Vasco Fernandes Coutinho
Expedição ao Maranhão mandada por Luis
de Melo ... ... ... ... .•. ... ••. . •• ''"J
1563
Morte de Duarte Coelho ..•

1555
Anchieta e Nóbrega são deixados como reféns
1 de Maio
!io-
,.
em Iperoig ... .•• ••· ·•· ··· ··· ···
O bispo e D. Duarte indispõem-se violen- Nóbrega parte pa~a São Yicente... . 21 de Junho
14 de Setembro :ai,
tamente ..• . .. Anchieta é autonzado fu~al_men.te a parttr
Rebelião dos índios da Baia vencida por Chegada :le Estácio de Sa a Bata ... ... ·:· Fim do ano
O . Duarte ... Estácio de ~á parte com a esquadra para o Rto
depois da Páscoa de Janeiro ... Fim do ano
:Segunda expedição ao Maranhão fmanciada por
João de Barros e comandada por seus dois ia,
filhos... ... ... ... ... ... ..• ... . .. 15 64
Chegada de Villeg•gnon ao Rio de Janeiro •e-
10 de Novembro Chegada ao Rio de Janeiro .•• Fevereiro zu
1556 Parte para São Vicente . ... 2 de Abril 11.1,
Preparativos em São Vtcente para a próxima
V asco Fernandes de regresso ao Espírito Sa ato campanha .. Abril até aos fins do ano
O bispo parte para Portugal, naufraga e é es
devorado ... 15 6 5 ~a

Junho
!Nóbrega regressa à Baía
30 de Junho
Estácio regressa ao Rio de Janeiro .20 de Taneiro
••,r
1557 Desembarque na Praia ~ermelha I de Março
•Chegada de Jean de Léry, Guillaume Cartier e Anchieta parte pa•a a Fata ... Fim de Março ro
Pterre Richier à ilha de Víllegagaon à
7 de Março 1565-1567 '1.
Mem de Sá parte para o Brasil ..• Fins de Abril
Guillaume ...:artier é mandado a França por Defesa da colónia fortificada de São Sebastião
Villegagnon . .oi de Junho 11
Chegada de Mem de Sá à Baía .•• do Rio de Janeiro ...
Dezembro
1567 e,
1558
Jean de Léry e os companheiros partem do Rõo Chegada de Mem de Sá com a armada coman-
dada por Cristóvão de Barros . 18 de Janeiro
de Janeiro.. . ... ... •.• ... ... . •. 4 de Janeiro 20 • •
Libertação do Espírito Santo e morte de Fer- Batalha pela posse do Rio ~e Janerro . •• · ...
nando de Sà ... . .. Morte de Estácio de Sá devtdo aos fenmentos Fevereiro
Fundação da cidade ào Rio de Ja_neirc;' ... 1 de Março
Villegagnon parte para França ... Fim do ano Agosto
::hegada de Nóbrega vinrio de Sao Vtcente
1559
157 o
Guerra de Paraguaçu ... Outubro
Morte de Nóbrega no Rio de Janeiro 18 de Outubro
15 6 o
15 7 2
Mem de Sá parte para o sul com uma armada,
levmdo Nóbrega Morte de Mem de Sá no Salvador :.2 de Março
16 de Janeiro
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BIBLIOGRAFIA 'e-
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A lista s~guinte não pretende ser examtiva. Há imenso material-artigos
e estudos de várias espécies - que têm aparecido de tempos a tempos em
periódicos erudttos, quc.r em Portugal, quer no Brasil, e novas obras de valor
nriável estão constantemente a ser publicadas no Rio de Janeiro e em
!:lâo Paulo, Aqui indico as obras principais comultadas para escrever este livro.

FONTES ORIGINARIAS

Carta dt Pero Vaz de Caminha, a D. Manuel, escrita de Porto Seguro a


1 de Maio de 1500.
Cart.:J de Mestre João a D . Manuel, também escrita de Porto Seguro •
.Ambas as cartas, que se encontram no Arquivo Nacional da Torre do T~mbo
em Lisboa, foram publicadas em grande número de obras por Malheiro Dias,
Fontoura da Costa, Jaime Cortesão e outros.
Carta do Rei D. Manuel aos Reis de Castela. Existem desta carta várias
cópias coevas, O que parece constituir o original português, exist::nte nos
t\Iquivos do Estado em Veneze, está datado de 29 de .Agosto de 1501, mas o
castelhano tem a data de 29 de Julho.

. Relato Anónimo da Viagem de Pedro Alvares Cabral, parece que dum


Piloto ou outro individuo pouuguês. Esta obra apenas sobreviveu na tradução
italtana de Ramúsio. Uma versão portuguesa foi feita por Mendo Trigoso no
Vo!, 11 da Colecção para a História e Geografia das Nações Ultramarinas, 1812,
e uma nova versão toi publicada por 1'1. Dóría na sua tradução portuguesa da
Vayage of Pedro Alvares Cabral, de William B. Greenlee.

Alguns Documentos da Torre do Tombo . Algumas das instruções de Cabral


foram aqui publicadas; História do Descobrimento e Conquista da lndia pelos
Portugueses, de Fernão Lopes de Castanheda. 3.• ed. Coimbra, 1924, Liv. I,
cap . XXXI refere-se ao descobrimento do Brastl.
Lendas da lndia, por Gaspar Correia. Tomo I, pág. 150-152,

Asia, primeira década, por João de Barros. Liv. V, cap. H.


428
BIBLIOGRAFlA BIBLIOGRAFI o\ 429
-
MA

iros
rtu-
Lettera di Amuigo Vesp · d li . l dos
viaggi, Florença, 1505-1508. e UCCI e a ISO a nuovamente trovate in quatro suo·i História do Brasil, por Frei Vicente do Salvador, escrita em 1627 ;
última edição, São Paulo, 1918 ::>R-
. Mundus Novus, pelo mesmo autor Toda•
con f lança. · , obras que merec em pouca Diálogos das Grandtzas do Brasil, por Ambrósio Fernandes Bran-
dão, 1618; editado por Rodolfo Garcia e Jaime Cortesão, Rio de Janeiro, 1943.
Cartas de Mem de' Sá Duarte C Ih
c~>n~e~vadas na Torre do T~mbo e fe o, D . bol.uarte da Cmta, e outros Chronica da C c-mpanhia de Jesus na Província de Portugal, por Baltazar 1de
h1stonas. ' a gumas pu 1cadas em várias ob ras e' Teles. Livro Terceiro. Lisboa, 1645. 1/ú
1ue
Cartas Jesuíticas, publicadas por Afra' Ol·o p Vida do Vmeravel Padre José de Anchieta, por Simão de Vascon- tos
1931-33. 3 vols incluindo : eixoto. Rio de Janeiro,
celos, 1672; edição recente, Porto. 1953. •nd
Cartas do Brasil, por Manuel da Nóbrega;
Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, por Simão de lo-
Cartas Avulsas, diferentes cartas de missiona· r· . . Vasconcelos, Lisboa, 1691. !rd
lOS jeSUitas;
Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões por Jos. A h ' Memorias para a história da Capitania do São Vicente, por Frei Gaspar :ai,
' e nc leta. da Madre de Deos. Lisboa, 1797.
Novas Cartas jesuíticas, publicadas por Serafim Leite. 1940. li,
. . Diário da Navegação de Pero Lo d S ia,
:Euge!Ito ~e Castro e Capristano de Ab~es e. ousa 153~ ·1532, publicado por OBRAS MODERNAS
tnc!UJ valiosos mapas e apêndices I' deu. RI<~ de Janeiro. 1940. Esta edição
' a em e muitas notas elucidativas. •e-
História da Colonização Portuguesa no Brasil. 3 vols. Publicada sob a lU
J!ova Gazeta da Terra do Brasil (N direcção de Malheiro Dias, Porto, 1921. Esta obra, verdadeiramente monu-
Tr~~uçao I;'Ortuguesa de Rodolfo R. , h ften Zeytung auss Presillg Landt). mental, compreende capítulos por Malheiro Dias, Duarte Leite, Jaime Corte•
ai,
ongmal. Iüo de Janeiro, 1914. ·c u er acompanhada do fac-símile do
aio, Pereira da Silva, Lopes de Mendonça, Esteves Pereira, Antônio Baião,
Jordão de Freita~, Pedro de Azevedo, Oliveira Lima e Paulo Mereia, e publica es
d . J:lans Stade. Suas Viagens e cativeir · . grande número de documentos importantíssimos e cartas dos governadores ~a

o ongmal alemão que foi publicad ~ tnbtre os md10s do Brasil, traduzido


o em ar urgo em 1557, São Paulo, 1Y45. e capitães.
Histoire d' un voyage f ·t l
l\ochelle, 1578. wl en a terre du Brésil, por Jean de Léry. La História da Expansão Portuguesa no Mundo, vols. 11 e 111, com capítulos
por Fontoura da Costa, Jaime Cortesão, Pedro Calmon, Serafim Leite, Basilio ro
de Magalhães, Manuel Múrias, publicada sob a direcção de Antônio Baião, à
Tratado da Terra do Brasil e Históri d . .
Peco de Magalhães Gandavo · . a a ProvmCJa Je SanttJ Cruz por Hernini Cidade e Manuel Múrias. Lisboa, 1937. '1.
só publicada em !826, a s~~:::l:e~r\Í~cr~a em 15~0 ou m('smo antes,' mas
moderna de ambJs, num só volume Ru10 dicaJa ~m Ltsboa em 1576. Edição Históri-a de Portugal, edição monumental, Barcelos, 1928. O Voi. III tem
• e aneuo. 1924. capítulos acerca do Brasil, por Jaime Cortesão •
. Noticia do Brasil. Descrição Verdad . d
Gabnel Soares de Sousa publ . d I tira a c;osta Daquele Estado, por
•Colecção de Notícias pa~a a H:~: . ~
..
1
PJ
Aca:Jemla Real das Ciências in -
ona as Naçoes Ultramarinas•, Lisboa, 18~6. OBRAS DE AUTORES INDIVIDUAIS
De Alguas Causas mais notaveis d 0 B ·r
mente escrita cerca de 1591 bl' d . rasJ · . Oh r a anônima, provável- Jaime CortesAo- A Carta de Pero Vaz d1 Caminha. Rio de Janeiro, 1943. r
Universidade de Coimbra• '1 P~ . Ical a 10 ~ •InedJtos da Biblioteca Geral da É um estudo cuidadoso da famosa carta com o facsimile e
· • 1sce anea . Pag. 62 e ss.
copiosas notas.
. Inquisição de Lisboa . H.o 1586 p .A Expedição de Pedro Alvares Cabral e o Descobrimento do
Nacwnal da Torre do Tombo. Lisboa. rousso de João des Boules. Arquivo Brasil, Lisboa, 1922.
Serviços de Mem Sá Torre d T <lago Coutloho- O Descobrimento do Brasil (Visto do mar), Lisboa, 1947.
n.o 6, Publicado in- •Anais da Bobl'ombo. Pa~éis dos Jesuítas Maço 20•
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portuguesa, que toi a língua original da maior parte deles.
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e das Primeiras Explorações portuguesas de Litoral Brasileiro. In -
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nário do Brasil. Vol. li. Associação do Centenário do Brasil.
Rio de Janeiro, 1901.

Robert Southey- Histo1y of Brazil, Vót. I.

F. Adolfo Varnhagen- História Geral do Brasil. Esteop~roso historiador


publica grande número de documentos valiosos, cuja origem,
todavia, não indica
ÍNDICE ONOMASTICO

ADORNO (José), genovéJ: procura con· tica latina no colégio de São


vencer o cacique Ambiré a fazer Paulo : 285; apreade a língua
a paz com os portugueses : 3~4; índia e compõe uma gramática :
ajuda às obras da fundação do Rio : 28): parte com o P.e Nóbrega
37.2. para Iperoig : 339; chega a Jperoig:
ALBUQUERQUE (D. Brites de), mulher 34 ' ; fica como refém entre os
de Duarte Coelho : parte com o Tamoios : 349 ; é ameaçado pelos
marido para Pernambuco : 124 ; índios : 350 ; cuida dum homem es
sua energia : 126.
ALBUQUERQUE (Jorge d e) : parte para
chagado : 352 ; manda desenterrar
?m~ criança enterrada viva pelos
. ..
o Brasil com o cunhado Duarte mdws : 353 ; parte definitiva·
Coelho: 124 mente de Iperoig : 361 ; é man·
ALEGRE (Tomás) : feitor dos Ilhéus dado por Nóbrega para Pirati·
em nome de Lucas Giraldes : 200. oinga: 382. ro
ALVARES, o •Caramuru• !Diogo ): ANES (Pero) : segue como intérprete à
naufraga junto à costa de Pernam· na armada de Martim Afonso de !1.
buco e fixa-se entre os índios : Sousa : 55; na Cananeia é man•
64 • 5 ; recebe Frmcisco Pereira dado por Martim Afonso a procu · u
Coutinho, capitão donatário da rar estabelecer contacto com os
Baia : 180 ; volta à Baia depois índios : 72; encontra o •Bacharelo : e,
da derrota dos colonos de Pereira 72.
Coutinho : 186; D. João I 11 ANGO (João) : recebe de Francisco I,
envia-lhe uma carta a ordenar-lhe de França, uma •carta de marca•
que auxilie o governador Tomé contra a navegação portuguesa :
de Sousa na sua missão : 233 ; 41. r
serve de intermediário entre os A RARIBÓIA (Martim /' fonso), índio :
Jesuítas e os índios : 256. acompanha a expedição de Estácio
ALVARES DE ANDRADE (Fornand') ·
de Sá contra Guanabara : 365.
ATAIDE (D. António de): Vd. CONDE
recebe uma capitania no Brasil
DA CASTANHEIRA.
juntamente com o historiador
AZEVEDO (Belchior de) : auxilia Vasco
João de Barros: 201.
ANCHIETA (José de): é mandado para
Fernandes Coutinho na adminis-
a missão do Brasil: 282; sua vida tração : 156.
AZPILCUETA NAVARRO (P.e João de) :
p.té professar : 282 ; ensina gramá-
28
434 ÍNDICE ONOMASTICO

INDICE ONOMASTICO
companheiro do P.• Manuel da CABRAL (Pedro Alvares) : é mandado do
Nóbrega 232; horroriza-se com o à Índia para concertar pazes com :>R
canibalismo dos índios : 259; en- o Samorim : 8 ; descobre a costa hOS AÇores : 112: ped~ ao R7i prega em líng_ua ~adia: '277 ; morre
sina a ler e a escrever no colégio brasileira : 9 ; recebe os primeiros ma capitania : 122; obtem a capt· às mãos dos mdtos: 277.
da missão : ~66 ; traduz em língua indígenas do Brasil & bordo da ~ania de Pernambuco: 123 ; parte CORREIA DE ~Á (Salvador), so~rin~o de
tupi parte da Escritura : 266. sua nau: 12·14, ara 0 Brasil : 124 i lançe os fun- Mem de Sá : fica na capttama do
CAMINHA (Pero Vaz de): relata o que ~amentos da colónia : 126 ; funda Rio de Janeiro em substituic;ão do
•BACHAREL• (O): é encontrado pela se passou no Brasil desde a che- Olinda: 126; concede-lhe for~I.: Governador: 382 ; conclui a cons-
gente de Martim Afonso de gada da armada de Cabral : 9 ; 127 . distribui terras : 127 ; vai a trução da catedral do Rio : 396,
Sousa: 72. descreve a cena decorrida por Eur~pa : 128; instai~ engenhos ~e COSTA (D. Alvaro da), filho. do G~;;er­
BAFROS (Jerónimo de) : parte com ocasião da vinda dos primeiros açúcar: 128; contrai um empres- nador D. Duarte da Costa : .i98 ;
seu irmão João a explorar o rio indígenas a bordo : 12- I 4 ; acom- timo em Lisboa_: .129; desenvol- comanda uma expedição punitiva
Maranhão : 206. panha Bartolomeu Dias a terra : vimento da colo ma: 129 i. ataque contra Tupinambás e Tapuias: 303.
BARROS (João de), historiador: sua J 4; sua descrição da terra: 21·22-; dos índios: 130-4; manda 1r nov'?s COSTA (D Duarte): é escolhido para
opinião acl"rca da mudança do é trucidado em Calicute: 23. colonos: 135; des~n.~olve a colo· suceder a Tomé de Sousa no go-
nome da Terra de Vera Cruz: 26; CANTINO (Alberto), tmbaixador de Fer- ni~ : 135-9 ; sua op1mao acerc~ ~as verno do Brasil : ; 54 ; atritos com
recl"be uma capitania no Brasil : rara em Lisboa: compra um magní- razões da prosperidade ~a col'?m~: o Bispo da Baia: 297-9; queixa-se ~ai,
201 ; manda Sl"US filhos Jerónimo fico planisfério com o munJo 138 i protesta contu a 1ntrom1s~ao a D. João lll : 300·4; ugr~ssa
e João a explorar o rio Mara- conhecido no seu tempo e ofere- da autoridade real na sua ca.ptta- triunfante ao Salvador: 304.
nhãJ: 206. l1,
ce-o ao Duque Hércules d'Este: 2h nia: J40; nega-se a consentir na COSTA (Gonçalo da): relata a~- João 1.11
BARROS (João), f,/ho : explora, por CAPICO (Pero) : é nomeado capitão de entrada do Ouvidor real na sua as viagens d os espanhóis no R10
mandado de seu pai, o rio Mara- cmar e terra» : 45; segue na ar- colónia : 246; indispõe -se com o da Prata: 52. ia,
nhão: :;o6. recebedor da Fazenda Real : 2~6. i
mada de Martim t'.fonso de CUBAS ( Bl ás) : sua vida no Brasil : 212;
BEZERRA (P.e João): provoca o assalto Sousa: 55. dá terreno aos Jesuítas para edth- re-
dos índios à BJia: 181; fixa-se na funda a vila do Santos: 213.
CARDOSO DE BARROS (António): é carem a sua residência: L72. CUNHA ("'ires): lugar-tenente de João ~
capitania de Pero do Campo Tou - nomeado Provedor da Fazenda no
rinho : 191 ; conspira contra o COELHO (Gonçalo): presum~v~l capi· de BHros e de Fernand' Alvares de ai,
Brasil: 241 ; vai com o Dr. Pero tão duma nau de Vespuc10: 32. t'.ndrade : 201 ; organiza uma ex-
capitão donatári a: 191. Borges em viagem de inspecção
BOIS-LE-COMTE, sobrinho de Vil/tga - COELHO ( Nicolau) companbtiro de pedição ao nordeste." do Brasil : es
gnon: acompanha o tio ao Bra-
ao longo da costa: 245 ; indi - Vasco da Gama: segue na armada :..!03 ; explora a costa : 203 4 ; sua .....
põe·se com Dua1te Coelho: 246; de Cabral: lO i desembarca para morte: 204.
sil : 309 ; volta a França a buscar embarca para Portugal na compa- sa
entrar em contacto com os indí- CUNHAMBEBA, cacique tamoio : impede
novos colonos : 31 I ; é desafiado nhia do Bispo da Baíd: 304; nau• genas : 11 i volta a desembarcar
~r

pelo governador Mero de Sá : que os Tamoios .trucidem o P.e


fraga e é devorado pelos índios : acompanhado de Bartolomeu Dias
334 ; sua derrota : 335 30.5. Nóbrega e Anchieta: 348 i _volta ro
BORGES (Dr Pero): é nomeado Ouvi- e de Pero Vaz d~ Caminha: 14; de ~ão Vicente com a notlcta de
CARLOS V: sua opinião acerca de oferece crucifixos aos indígenas : à
dor do Brasil por O. João Ill: Martim Afonso de Sousa: 49 . estar firmada a paz com os por· ~.
21.
240; vai em viagem de inspecção CARTIER (Mestre Guillaume), pastor tugueses: 359: . . .
ao longo da costa : 245; D uarte COINTA (Jean), doutor da Sorbona: vai CURURUPEBÁ, cac1que md10 : desafta a
evangélico de Genebra: é escolhido para o Brasil com o segundo
Coelho nega·se a consentir que por Calvino para ir para a coló· autoridade portuguesa : 328.
entre em Pernambuco : 246. grupo de colonos franceses : 312 ;
nia de Vill~gagnon : ,1 I 2 ; é man- suas controvérsias com Villega· D' AUREAC (P.e Bernardo) : manda pren- e,
BRAGA (Francisco ): é deixado em dado a G~nebra por Villegagnon
Pernambuco pela armada de Pero gnon : 315 i indispõ~-se com este: der Pero do Campo Tourinho sob
para e~clarecer pontoJ de dou - 318; ioge para S. V1cente: 319; a acusação de heresia : I 94·5.
Lopl"s de Sousa : 208; indispõ~-se trina : 316 te
com o don atário e é castigado : compõe um libelo ~m latim con- DIAS ( António), pedreir~: serve de
CASTELO BRANCO (D. Simão de) : vai tra o P.• Luis da Grã: 320; é man-
208; retira se para as Índias de para o Brasil com Vasco Fernandes companheiro a A~ch~eta entre os
Castela : :os. dado a Portugal para responder Tamoios: 349 ; os mdws devoram~ r
Co utinho: 145 ; é morto ~m perante a Inquisição : 320.
BRANDÃQ (Fl"rnandes) : sua opinião combate pelos índios: 120. -l he um escravo: 350; adoece e e
acerca do Brasil : 405 CASTRO (D. João de) : sua opinião CONDE DA CASTANHEIRA : companheiro tratado por Anchieta: 358.
BR,.\S (P.e Afonso) : sua ~cção no acerca de Perg Lopes de Sousa : 54. da mocidade de D João lll e de DIAS (Bartolomeu) : comanda urna
Espírito Santo: ' 55; na missão de €:HAV.Ii:S (Francisco de): vai, com Pero Martim Afonsc. de Sousa: 49; caravela na armada de Ca~ral :
São Paulo constrói casas para as Lobo Pinh~iro, à procura de torna-se favorito e ministro de 10 ; vai a terra na companhia de
famílias índias: ~ 88 tesouros no sul do Brasil : 73 D. João lii: 50; sua opinião Nicolau Coelho e Pero Vaz. de
CABOTO (.Sebastião): chega ao Hio da COELHO (Duarte) : sua origem : I 21 ; acerca de Pera Lopes de Sousa : 53. Caminha : 14; morre engoh_do
fratíl i ~~ · ~nç;optra M~Ui!P Afon~o ge SouH CORREIA (Pero): antigo colono escla- pelo mar : 23.
vagista: 276; converte-se e entra DIAS (Ciogo), irmão de !Jartolomeu:
para a Companhia de Jesus : 277; dança e folga com os tndws : I 7 ;
..,..
ro9
íNDICE ONOMASTICO 437 1U•

4)6 i os
ÍNDICE ONOMASTICO
Espírito Santo coro alguns colonos: )R-
aconselha 0 Rei a colonizar o 14~ · recebe de Vasco Fernandes
IJ acompanha Afonso Ribeiro a uma o Mundo entre Portugueses e Es· Brasil : 113. . d Cou'tinho a ilha de Santo Antônio:
GRÃ (P.e Luís da) : conselheuo o 148 · vai com Vasco Coutinho a
aldeia de índios: 18. panhóis : 38-40 ; protesta contra 0 governador o. Duarte da C_osta ;
DIAS DE SOLIS (João): descobre o Rio apresamento duma nau francesa : Port'ugal : 149 ; coroen~ários desa•

I da Prata: 48 ; é morto e devorado


pelos índios: 51.

ESCOLAR {Pero): segue na armsda de


Cabral: 10.
41 ; concede autorização a Ber-
trand dê Saint-Blancard para fun-
dar uma colônia no Brasil : 105,

GAMBÔA (O . Isabel), mulher de Pero


Lopes de Sousa : abandona a capi-
302 ; procura con!bate_r a ac~ao d~
J n Cointa em Sao V1cente. 319.
a~~sa-o de corruptor da fé : 320.
HENRIQUE DE COIMBRA . (Frei), capelã_o
da nau de Cabral: cdebra a pn·
meira missa no Brastl : 15 ; dtz a
gradáveis acercada acçao de Vasco
Fernandes Coutinho : 152; escreve
ao Rei a acusá-lo: 152; padrinho
dum filho do cacique nGrande
Gato• : 159; toma posse da capita-
nia de Pero do Campo Tourinho,
tde

1ue
tos
•nd
FERNANDES COUTINHO (Vasco): serve tania de Itamaracá : 208. segunda missa: 20 ; prega um como lugar-tenente: 198.
na índia com Afonso de Albu· GIRALDES (Lucas) : compra a capita- eloquente sermao: 21. LEMOS (Gaspar), capitão d:' nau dos io-
querque : 141 ; desavença com nia dos Ilhéus ao filho de Jorge HENRIQUE Luís:. pro":o~a um ataque mantimentos, de Cabral: e mandado :rd
D. Garcia de Noronha : 142; de Figueiredo Correia : 200. dos índios a coloma de Pero de ao reino com cartas a relatar a
volta a Portugal e re-gressa à Índia : GÓIS (Damião de) : sua referência à Góis: 172. descoberta: 16; parte para Portu- ;al,
142 ; compra uma quinta em viagem de GonçaÍo Coelho: 32. HENRIQUES (Miguel) : é mandado por gal: 22.
Alenquer: 143; pede uma capita· GóiS (Luís de): estabelece•se na capi- Tomé de Sousa à procura de LÉRY (Jean de): cronista da co~ó~_ia
de Vílleg lgnon: 312; sua optmao ll,
nia ao Rei : 143 ; contrata colo- tania de seu irmão Pera: 167 ; tesouros no interior do Brastl : 249.
nos : 144; parte para o Brasil : parte com o irmão para o reino : acerca de Villegagnon: 315.
145; instala-se na sua capitania, 168; regressa ao Brasil com a JÁCOME (P.e Diogo): missionário dos LORONHA (Fernão de): D. Manuel ia,
que denomina •Espírito Santo• : mulher: 168. Ilhéus: 266; ajuda o P.e Leonardo concede-lhe o comércio do Brasil
146; faz a delimitação das fron- IS (Pero de) : vai ao Brasil pela Nunes na missão de São Vicente: por três anos: 3 2! o contrato é re-
teiras da sua capitania com a de primeira vez coro Martim Afonso 275; aceita a colaboração de Pera prorrogado por roa1s dez: 32. au
Pero de Góis : 147 ; volta a Por- de Sousa : 55 ; são-lhe concedidas Correia, antigo colono : 276 LO!.!RENÇO (Vicente): piloto na armada ai,
tugal : 149; regressa ao Brasil e terras por este em São Vicente : JAQUES (Cristóvão): é mandado por de Martím Afonso de Sousa : 55.
encontra a colônia destruída : L50 ; 100; comanda urna expedição à D. João Illlimpar de franceses os
mares do Brasil: 40: pretende MAGALHÃES GANDAVO (Pero de): Sua •eS
transfere 11 capital para a ilha de procura de Pera Lobo: 112; ajuda ra
Duarte de Lemos : 150; procura Vasco Fernandes Coutinho a deli· colonizar o Brasil, roas o Rei não opinião acerca do Brasil : 389-404 ..
restaurar a colônia: 151; parte mitar as fronteiras das respectivas 0 autoriza : 46 ; explora o Rio MANUEL 1 (D.) : manda à lndia uma sa
para Pernambuco : 153; desilu- capitanias: 148; toma posse da da Prata : 51. esquadra comandada por Pedro or
dido: 153; suas difer~nças com o sua capitania: 167; funda a Vila JoÃO 111 (0.): envia Cristóvão Jaques Alvares Cabral: 7; escreve aos
Bispo : 154 ; socorrido pelo gover• da Hainha: 167; parte para a contra os piratas franceses : 40 ; Reis Católicos a relatar o desco- ro
nador D. Duarte da Costa: 15~; Metrópole coro seu irmão Luís : resolve colonizar o Brasil: 41 ; brimento de Cabral: 25; concede à
suas relações com os Jesuítas: 156; 168 ; regressa ao Brasil : 168 ; ins: envia Martim Afonso de Sousa ao a Fernão de Loronha o comércio B.
o •Grande Gato• vai viver para o tala os seus engenhos: 169-171; Brasil: 42; manda-o regressar: do pau brasíl: 3'L ; proib~ a impor-
Espírito Santo: !57; seu baptismo: são destruídos pelos índios : 173 ; 102; decide dividir o Brasil em tação de madeiras do Onente: 33;
159; últimos anos: 160-3. refugia-se com os seus colonos na capitanias: 102; 115·119; resolve tenta separar o ptíncipe D. João
FERNANDES DE LUCENA (Vasco): parte capitania de Vasco Fernandes Cou- nomear um governador geral: 151. do seu companheiro Martim Afonso re,
para o Brasil Co)m Duarte Coelho : tinho : 174 ; regressa a Portugal : JOÃO ( Mestre), físico; escreve a de Sousa : 49. .
124; incidente com um chefe 174; volta ao Brasil no comando D. Manuel acerca da situação da MANUEL (O. Nuno): regressa do Rto
índio: 133. duma esquadra: 175; opinião de nova terra descoberta por Cabral : da !'rata com um machado de :te
FERNANDES SARDINHA (O. Pedro): é Tomé de Sousa a seu respeito : 9; faz observações em terra com prata: 48.
escolhido para Bispo da Baía : 241 ; parte em viagem de ins- o astrolábio : 19, MELO DA CÂMARA (João de):_o_ferece-se
291 ; seu desagrado pela acção dos pecção ao longo da costa brasileira : para ir colonizar o Brastl : 45.
LA MoTTE (Senhor De) : fica coro o MENESES (O. Jorge de): va1 para o
Jesuítas: 29.3-4 ; é chamado ao 24'i; ataca sem resultado um comando da fortaleza de Pernam·
rein:~ por D. João Ili: 304; nau- galeão francês : 247. Brasil com Vasco Fernandes Co~­
buco na ausência de Saint-Blan- tinho : 145; fica a comandar a cap1·
fraga e é devorado pelos índios : GONÇALVES (Baltasar): comanda uma card: 108; ataca:io por Pera
305. caravela na armada de Martim tania do Espírito Santo na sua
Lopes, capitula: 109 ~ é enforc1do ausência : 149 ; é morto pelos
FERREIRA (Baltasar), filho do capitão Afonso de Sousa : 54. com vinte companheuos: 110.
de São Vicente: sua aventura com GOUVEIA (Diogo de) : assiste à recep- índios em combate: 150. . .
LEITE (Diogo): comanda _uma cara· MOGUER (Diogo Garcia de) : va1 ao R10
um monstro marinho : 4G9. ção ao embaixador de Francisco 1, vela na armada de Martlm Afonso
FIGUEIREDO CORREIA (Jorge de): capi- que fora protestar contra o apre- da Prata : 52.
de Sousã : 54- MONTES (Henrique) : suas aventuras
tão donatário dos Ilhéus: ::;oo. samento duma nau francesa no LEMOS (Duarte de): instala-se no
FRANCISCO 1, rei de França: sua atitude Brasil: 41; sua opinião acerca de *
perante a bula papal que dividiu João de Melo da Câmara : 47;

-
- --· ----
íNDICE ONOMASTICO 439
438 ÍNDICE ONOMASTICO

genas à sua aUeia para conhecer o SAINT-BLANCARD (Bertrand de): propõe


no Rio da Prata : 52 ; é convidado PARANÁPUÇU, filho do cacique Pindo- a Francisco I o estabelecimento
a 3Cornpanhar a armada de "viartim buçu : propõ:-se matar por suas seu modo de viver: 14·15; volta
a tentar ficar numa aldeia de duma colónia francesa no Brasil :
Af<ilnso de Sousa : 52. mãos o P.• Nóbrega e Anchieta: 105; equipa La Pellerine: 105-6;
346. índios: 17-18.
RicHER (Mestre Pierre), pastor evangé- desembarca em Pernambuco : 106;
NóBREGA (P.e Manuel da): é escolhido PASQUÁLIGO (Pietro), embaixador de La Pcllerin1 carrega pau brasil e
pelo P.• Simão Rodrigues, previa· Veneza em Lisboa: relata à Senho- lico de Gen~bra : é escolhido por
Calvino para ir para a colónia de parte: 107; é apresada por nam
cial dos Jesuítas, para evangeliz~r ria de Veneza os descobrimentos portuguesas e segue para Lis·
o Brasil: 230; opinião do Dr. Mar- de Cabral e de Corte-Real: 26-7. Villegagnon: 312; separa-se deste:
tiro de Azpilcueta Navarro a seu PEREIRA (P.e Rui) : sua opinião acerca 317 · volta a França: 371, boa: 108.
RODRIGUES ( António ), aventureiro: SALAZAR (Juan de) : náufrago caste-
uspeito : 231 ; chega à Baia : 235; do Brasil: 412.
começa a sua acção missionária : PEREIRA COUTINHO (Francisco): sua converte-se e entra na Compa- lhano: 252.
nhia de Jesus: 281 ; mestre das SOUSA (Heitor de) : comanda uma
255 ; funda a missão : 256 ; sua acção na Índia: 178; requere ao nau da armaàa de Martim Afonso
acção entre os índios : 258 ; seus Rei uma capitania no Brasil: 179; , crianças no Colégio de São
atritos com um pagé: 262; che- é-lhe doada a Baía de Tcdos os Paulo: 286. de Sousa : 54.
SOUSA (Martim Afonso de): é en•
gam novos padres com sete rapa· Santos: 179; chega à Baía: 180!
SÁ (Estácic de), sobrinho de_ f.:1em de viado por D . João lll para lan- ·a i
zes órfãos para missionarem: 263; editica a Vila Pereira : 181 · os çar as bases da colonizaçã<l do
vai a Pernambuw : 271 ; sua opi- índios assaltam a vila: 181 ; c~ns­ Sá: comanda uma exped1çao con-
Bras'! : 48; é banido da Corte por
nião a respeito do donatário e da piração contra a sua autoridade : tra os franceses do Rio de Janeiro :
364 ; desembarca na ilha de Ville- D. Manuel 1: 49; acompanha a
mulher: 271 ; sua missão em Per- 182-3; é preso falsamente em Castela a infanta D. Isabel, noiva
nambuco: 271 ; Duarte C:oelho nome do Rei : 183; dispersão da gagnon : 366; volta a São Vicente ia
à procura de reforços : 367 ; parte de Carlos V : 49 ; é chamado a
dá lhe terreno para o edifício da colónia : 183 ; queixas contra ele :
r, sidência: 272; regressa ao Sal v a· de nevo para Guanabara: 370 ; Portugal por D. João lll: 50;
184 ; volta à Baía, é assaltado por •regimento• que levou para o Bra- re
dor: 272; ganha a confiança de uma tempestade, naufraga e é de- desembarca na Praia Vermelha:
371 ; lança os fundamentos do sil: 53; parte para o Brasil: 55;
João Ramalho : 279; visita Pirati- vorado pelos índios : 185. sua viagem: 57-70; chega à Guiné; ai
nínga: 280; funda São Paulo: 283; PIMENTEL (D. Ana): casa com Mar- Rio de Janeiro: 371 ; os índios
assaltam o acampamento e são 58 ; a Cabo Verde : 58 i encontra
o colégio dos Jesuítas: :.283-4 ; atri· tiro Afonso de Sousa : 49. ali dois navios castelhanos : 58 ;
tos com o Bispo da Baía : 293 ; sua PINDOBUÇU, cacique índio : salva An- repelidos : 372 ; três navios fran· es
desolação perante a acção do chieta da morte : 356. ceses assaltam o Rio e são repeli- avista o Brasil : 59 ; perseguem ,-a
um navio francês : 59 i vai em
Bispo da Baía : 296 ; sugere que
se proponha a paz aos Tamoios :
PINHEIRO (Pero Lobo) : comanda um
galeão na armada de Martim
dos : 375; origem da •Festa das
Canoas• : 376 ; chegada de Mem demanda de Pernambuco: 61;
reorganiza a sua frota em Pernam·
,,.
sa

337; parte com José de Anchieta Afonso de Soma : 54 ; vai com de Sá em socorro do sobrinho :
379; começam as operações: 380; buco : 62 ; manda duas caravelas
para Iperoig: 3J9; chega a Jpe- Francisco de Chaves, à procura de a explorar o rio Maranhão: 63; ro
roig: 341 ; sua estadia em Ipe· tesouros no interior : 73, é ferido em combate e morre : à
380. chega à Baía de Todos os Santos:
roig : : 344-9 ; parte para São PINTO (Rui) : comanda, com Pero de 63 · encontra o cCaramuru• : 64 ; B.
Vicente: 349; reconcilia os Tupis Góis, uma expedição à procura SÁ (Fernão de), filho do governador
Mem de Sá: morre em combate pa;te pa•a o Sul : 66 ; volta à
e Tamoios: 339; acompanha Está- de Pero Lobo : 112. Baía : 66 ; volta a partir: 67; é assai·
cio de Sá ao Rio : 366 ; sua acção PIRES (P.• António): companheiro do com os índios : 331.
SÁ (Mem de): toma posse, para a tado por uma tormenta : 67 ; avista
durante a fundação da cidade: P.• Manuel da Nóbrega: 232. a entrada da baía de Guanabara: 68;
371)-82 ; é nomeado reitor do colé· PIRES (Cristóvão): cowanda a nau Coroa, da capitania do Espírito
Santo : 163 ; sua nomeação para desembarca: 69; levanta ali um forte:
gio do Rio de Janeiro: 382; sua Bretôa: 35. 69 ; manda exploradores para o
morte : 384; dívida do Brasil ao Governador do Brasil : 321-7 ; .to
convence o sobrinho Estácio a interior e entra em contacto com
P.• Manuel da Nóbrega: 386. RAMALHO (João) : é consultado por um cacique índio: 70; continua ~
NUNES (P.e Leonardo): vai para u Tibiriça ao saber do desembar- d~ixar-se guiar pelo P.• Nóbrega:
.j65 ; escreve à Rainha Regente a viagem para o sul: 70; chega a
Brasil na companhia do p,• Manuel que dos portugueses em São Vi· ilha de Cananeía: 71 ; naufraga:
da Nóbrega: 231; é mandado p,Jo cente: 95; recebe de Martim pedir rdorços para o Rio: 377 ; 77 · volta ao norte na companhia
parte da Baía com três galeões em
P" Nóbrega para os Ilhéus: 266;
missiona em São Vicente : 275 ;
Afonso de Sousa a chefia da coló-
nia de Piratininga : 99 ; seu encon- socorro do Rio : 379 ; começam
do 'irmão: 89; chega a São Vicente:
93 · lança ali os fundamentos
..
expulsa João Ramalho da igreja à tro com Tomé de Sousa: 252; as operações contra os índios : du~a colónia : 94 ; recebe Tibiriça
hora da missa : 278. atritos com o; J esuitas : 277-8 ; 380; resolve edificar a cidade do e João Ramalho_: Y7 _; vai a Pir~­
é expulso da igreja pelo P.• Nunes: Rio de Janeiro em local diferente tininga; 98 ; cna ah uma colo-
PACHECO (Duarte) : sua opinião acerca 278 ; procurl legalizar a sua man• do anteriormente escolhido : 380 ; aia: 98 ; consulta o seu conselho e
do Brasil: 27. cebia com a filha de Tibiriça : 279. é chamado ao reino : 385 ; morre resolve mandar o irmão voltar a
PAIVA (P.• Manuel): jesuíta missioná- RIBEIRO (Afonso), degredado : recebe no Salvador: 386; divida do Portugal: 99; organiza a colóoia de
rio em São Vicente : 279. ordem de acompanhar os indí- Brasil a Mem de Sá : 386,
440 íNDICE ONOMASTICO

Piratininga: 100; adquire máqui- acompanha Víllegagnon ao Bra-


nas para os primeiros engenhos sil : 309 ; volta a França na compa-
de açúcar em São Vicente: 101; nhia de Bois•le-Comte: 311.
regresso a Portugal : 112 ; parte TlBIRIÇA, cacique índio senhor de Píra-
para a Índia : 112; recebe uma tininga: 95 ; é recebido por Mar-
capitania no Brasil : 209. tim Afonso de Sousa : 97 ; recaí no
SOUSA (Pero Lopes de): acompanha canibalismo e arrepende-se: 286-7.
seu irmão Martim Afonso : 53 ; TOURINHO (Peco do Campo): é·lhe
opinião do Conde da Castanheira dada a capitania de Porto Seguro:
a seu respeito : 53 ; escreve o diá- 189 ; parte para o Brasil com a
rio de viagem: 57-111; é man- família: 190 ; acusam-no de he-
dado à procura de dois navios rege: 191-4; é preso e enviado
franceses : 60; avista um, perse- para Lisboa : 195 ; responde pe·
gue-o e ataca-o, obrigando-o a rante a Inquisição : 196-8.
render-se: 60; chega a Pernam· TOVAR (Sancho de), coma'ldante duma ;ai,

íNDICE DAS GRAVURAS


buco : 62 ; sua opinião a resp~ito das naus de Cabral: recc be e ban-
dos índios : 65 ; descreve um queteia dois índios a bordo: 19. ll,
combate entre os ínrlios: 66; sua
opinião acerca dos índios de Gua- VEt.ASQUEZ (P.e António): sua opi- ia,
PÁ<l$.
nabara : 69; encontra o ·Bacha- nião acerca dos colonos da Bdia:
rel»: 72; prossegue a v ia gem : 73; 3 25. 16
VESPÚCIO (Américo): suas viagens à _ . l que presidiu .à primeira missa no Brasil ... re-
chega ao Rio da Prata: 74; é 1 ruz process1ona 32 IUI
apanhado por grossa tormenta : América do Sul: 29-32; teste-
0 Brasil no Planisfério de Cantlno ••• ... ... "'. ... ••• 64 a1,
Exploração das Cmtas do Brasil (Do Atlas de .o Sé~ulo•) ...
7 4-5 ; encontra-se de novo com munha pda primeira vez o cani-
o irmão : 77 ; entra no Rio da balismo dos índios brasileiros : 112
Prata e explora o estuário : 78-85 ; 33-4; publicam-se as suas car- 1\ repartição das capitanias no fim do século de Qumhentos
176 >CS
é apanhado por um furacão e
naufraga: 85; regressa à Baia: 88;
tas: 371.
VH LEGAGNON (Nicolau Durand de) :
A Baía de Todos os Santos e a cidade do Salvador ... ...
256 ,."
Padre Manuel da Nóbrega ... ... ... '" ... .:" 368 sa
segue de novo para o norte : 89 ; entusiasta pela Teologia: 308; 11,.
ploneia apossar-se da baía de Gua- 1\ baía do Rio de Janeiro e a cidade de S. Sebastuo 408
chega a São Vicente : 93 ; parte
para Portugal : 99 ; sua opinião nabara: 308; recebe o apoio do Baltasar Ferreira atacando a bipupiara
.r o
sobre o caso de La Pellerine: 107 ; Almirante de Coligny: 309; pa1te
à
ataca Pernambuco: 109; manda para o Brasil : 309 ; fixa-se na
B.
enforcar o senhor De la Motte e b aía de Guanablra: 310; sua ati-
vinte companheiros : 110; parte tude para com os índios: 310;
para Marrocos : 111 ; toma p arte sua atitude com os campa nhei-
na conquista de Túnis: 111 ; parte ros: 311 ; pede a Calvino o envio
para a Índia : 111 ; desaparece no de ministros evangélicos: 311; 1e,
Oceano Índico: 111. regozija-se com a chegada de
SOUSA (Tomé de): é escolhido por novos colonos: 313; a vida reli- I te
D. João III para governador do giosa na colónía : 314 ; const•ói
Brasil: 233; chega à Baia: 234; um forte a que chama •Coligny~:
funda a cidade do Salvador: 236; 315; suas controvérsids com Jean
sua actuaçào para com os colo· Cointa: 315; escreve pela segunda
nos : 23'!l-240 ; a vida na cidade vez a Calvino: 316; exautora Cal-
do Salvador: 243; chega pela vino: 3 6; piora de temperamento:
primeira vez ao l<ío de Janeiro: 317 ; os colonos fogem do forte e
250 : visita Santos e São Vicente : refugiam-se entre os índios: 3 i 7 ;
251; funda duas n ovas vila;: 251 j manda matar alguns colonos dissi-
regressa ao Salvador: 253 ; en- dentes: 318; parte para França em
trega o governo a D. Du1rte da busca de reforços : 3:0 ; o forte
Costa 254. Coligny é tomado e arrasado por
Mem de Sá: 321; Víll~g,gnon
THifVET (André), frade franciscano: reclama uma indemnização : 363
-
MA

•iros
•rtu-
ldOS
OR-

nde
11lil
que
ttos
ond

rio-
ard
ÍNDICE GERAL gal,
PÁGS,
·ai,
I - Terra de Vera Cruz ••• 7
11 - Papagaios e pau brasil 25 :lia,
JII - A Missão de Martim Afonso .. . 42
57 .v e-
IV - De Lisboa ao Rio de Janeiro ...
~au
V - O remoto Sul 71
~ai,
VI - São Vicente e os belos campos de Piratininga 91
VII - A Aventura de •La Pellerine• 105 ões
VIII - Capitanias do Deserto 113 vra
IX - Nova Lusitânia ... 121 osa
141 ~Or'
X - Vasco Fernandes Coutinho e o seu • Vilão farto•
XI - Trabalho baldado 165
:lro
XII - Paraíso perdido ••• 177

XIII - A língua rebelde de Pero do Campo 187 B.
XIV - Proprietários ab,entistas 199
XV - Os lndios 217 ine
XVI - O Governador ... 233
XVII - Os Missionários ... 255 ue,
XVIIl - A Fundação de São Paulo 275
XIX - O Bispo da Baía ... 291 ste

·-
XX - A França antárctica 308
XXI - O Fspelho dos Governadores ... 323
XXII - A Paz de lperoig 339
XXIII - A Fundação do Rio de Janeiro 363
XXIV - Terra amada 389
Cronologia 415
Bibliografia .,. 425
lndice onomasttco 433
lndiçe das ~ravyr!!~ rn 441

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COLECÇÂO PEIIGIIN

Obras de autores estrangeiros


focando personagens portu-
guesas ou assuntos relacionados
com a HISTÓRIA DE POR
TUGAL.

Volumes publicados:
N. 0 I -Na Terra da Grande
Imagem, por Mauricio Co/lu
,. 2 - O Infante D. Henrique
e o Inicio dos Descobrimentos
Modernos, por C. Raymond
.Beassley
,. 3 - Os Jesuftss e o Grio-
-Mogol, por Sir Edward
Maclagan
,. 4 - O Ditador de Portugal,
por Marcus Cheke
,. 5- Cavalaria Medieval,
por Edgar Prestage
,. 6 - O C11minho da Índia,
por Elai1ze Sanceau
,. 7 - D. Henrique, o Nave-
gador, por Elalne Sanceau
,. 8 - Ingleses em Portugal,
por Rose Macaulay
,. 9 - Virgílio, Tasso, Camões
e Milton, por C. M . .Bowra
,. I O - A Viagem MaraYilhosa
- Femio Mendes Pinto, por
Mauricio Collis
,. I I -A Viagem de Pedro
Álvares Cabral ao Brasil e à
Índia, por William .B.
Greenlee
,. I 2 - D. João 11, por Elaine
Sanceau
,. I3 -Afonso de Albuquerque,
por Elaine Sanceau
,. I4- Em Demanda do Preste
João, por Elaine Sanceau
,. 15- Capitães do Brasil,por
Elaine Sanceau

Para a execuçio dests capa


foi aproveitada, depois de
reduzida às dimensões apro-
priadas, a carta onde "está
lançada toda a costa do Brasil,
do rio das Amazonas at6 o •
rio da Prata", uma das folhas
do famoso ATLAS DE
FERNÃO VAZ DOURADO,
desenhado em Goa em I 57 I e
publicado pela I.ivraria
Civilizaçio.

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