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CONDÉSSA DE SÉGUR

a CASA do
ANJO da GUARDA

Dizem que livro é presente


de amigo.
Como amigos,trabalhemos
juntos pela nossa região.
CARLOS MAGNO
R TORA
SUPLENTE DE DEPUTAD0 FEDERAL
ERA
CONDESSA DE SÉGUR

A CASA
DO
ANJO DA GUARDA
Adaptação
de
VIRGÍNIA LEFÈVRE

EDITORA DO BRASIL S. A.
Rua Conselheiro Nébias, 887
São Paulo
I
Fazia frio. Estava escuro. A chuva ninha caía
insistentemente. Duas crianças dormiam à beira do
caminho, debaixo dum velho carvalho, muito copado.
Um menino, de três anos, estava deitado num monte
de folhas. O outro, de uns seis anos, acomodara-se ao
lado do pequenino para esquentar-lhe os pés. O
zinho yestia uma roupa de lã surrada, mas quentinha.
Seus ombros e seu peito estavam cobertos com o casaco
do menino de seis anos, que tremia de frio mesmo a
dormir. De vez em quando seu corpo se agitava todo,
num grande arrepio. Suas vestes constavam duma sim-
ples calça e duma camisa muito usada. A sionomia
do garoto exprimia sofrimento. Via-se-Ihe ainda uma
lágrima na cova do rosto emagrecido. Porém dormia
profundamente, segurando uma pequena medalha que
lhe pendia do pescoço, presa a uma ta preta. A outra
mão apertava a do garotinho mais novo, decerto com
a intenção de aquecê-la. Os dois meninos pareciam-se
muito. Deviam ser irmãos. A diferença estava em que
menorzinho tinha os lábios rosados e sorridentes.
Não deveria ter sofrido tanto frio e tanta fome quanto
seu irmão mais velho.
As duas crianças dormiam ainda quando, ao raiar
do dia, passou por ali um homem acompanhado de um
belo cão de São Bernardo.
O homem parecia militar. Passava marchando, a
assobiar, sem olhar nem para a direita nem para a es-
querda. O cão seguia-o rente aos seus calcanhares.
Quando se aproximavam das crianças adormecidas, o
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cão ergueu o focinho, empinou as orelhas e afastou-se


do dono, chegando-se à árvore, sem latir. Olhou para
os meninos, cheirou-os, lambeu-hes as mãos e rosnou
como se quisesse chamar a atenção do homem, sem
acordar os dois dorminhocos. O homem parou e cha-
mou o cão:
- Capitão!Venhaaqui!Capitão!
Capitão manteve-se imóvel. Rosnou novamente,
mais demoradamente e mais forte.
O viajante compreendeu que alguém precisava de
socorro. Aproximou-se do animal e, com grande sur-
presa, deu com os dois meninos abandonados. A prin-
cípio pensou que estivessem mortos, mas logo veri cou
que estavam respirando. Tocou levemente no rosto do
pequenino. Não estava muito frio. Fez o mesmo com
o maiorzinho, que estava completamente gelado.
Muito compadecido, o homemn pôs-se a falar bai-
xinho:
- Coitados! Vão morrer de frio e de fome.
Como é que se deixam duas crianças sozinhas numa
estrada? Que farei eu? Não posso largá-las aqui e não
posso levá-las comigo. Tenho muito que andar.
Enquanto o homem re etia, o cão se impacier
tava. Começou a latir. O menino mais velho abriu os
olhos tristes e tou-os no homem. Depois olhou para
o cão e acariciou-Ihe a cabeça pedindo:
Não faça barulho. Não acorde o Paulo que
está dormindo e não sofre. Eu o agasalhei bem.
O homem disse, muito comovido:
- Masvocêestátremendode frio.
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10 CONDÉSSA DE SÉGUR
O menino sorriu, palidamente, a tmando:
Sou grande. Não faz mal. Ele é pequeno.
Costuma chorar quando sente frio e fome.
O homem indagou:
Por que estão vocês sozinhos aqui?
O garoto contou, com simplicidade:
Mamãe morreu. Os soldados levaram papai.
Não temos mais casa. Não temnos mais ninguém.
Por que os soldados levaram seu pai?
Não sei. Acho que foi para lhe dar pão. Não
havia mnais nenhum em casa.
Quem dá de comer a vocês?
Quem quiser.
Dão o su ciente ?
Nem sempre. O Paulo sempre comne bastante.
E você?
Eu? Eu não preciso comer muito. Sou grande.
O homem tinha bom coração. Ficou muito im-
pressionado com a dedicação do menino pelo itmão-
zinho. Decidiu levar os dois até a aldeia próxima. Pen-
sou: Hei de encontrar uma boa alma que tome conta
destas crianças, pelo menos até eu voltar. Talvez que
o pai apareça". Indagou:
Como é que você se chama?
Eu me chamo Jacques. Meu irmão é Paulo.
Você quer vir comigo?
Eo Paulo?
Paulo também. Não vou separá-lo de você.
Acorde-o. Vamos seguir.
Jacques hesitou:
Mas Paulo está cansado. Não poderá andar
tão depressa quanto o senhor.
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 11

O homem a rmou:
- Você vai ver! VouacomodaroPaulonas
costas do Capitão.
O viajante ergueu nos braços o mnenino adorme-
cido e sentou-o à cavalo nas costas do animal, com a
cabecinha apoiada no pescoço do Capitão. Depois tirou
o casaco que vestia por cima do uniforme militar e com
este enrolou o garotinho, de modo a evitar que caísse
para o lado. Dirigiu-se a Jacques:
- Aqui tem o seu paletó. Vista-o. Você está
tremendo de frio. E agota toca a andar.
Jacques tentou levantar-se, mas não conseguiu.
Sentiu as pernas bambas. Compreendeu que não pode-
ria andar. Seus olhos encheram-se de lágrimas. O ho-
mem perguntou:
O que é que você tem? Por que está cho-
rando?
Jacques confessou:
Estou sem forças. Não posso mais andar.
Você estáá doente?
- Não. Estoucommuitafome. Desdeontem
que não como nada. Guardei o pão para o Paulo
O homem também cou com os olhos cheios
dágua. Tirou do alforje um bom pedaço de pão com
queijo e deu-o ao Jacques, enquanto ia desarrolhando
uma garrafa com cidra. Os olhos do menino brilharam.
la mordendo o pão, mas olhou para o irmão e parou.
Indagou:
E Paulo? Não come nada. Vou guardar isto
para ele.
O homem sossegou-o:
- TenhoumpedaçoparaoPaulo. Podecomer.
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Não precisou dizer duas vezes. O menino pôs-se


a devorar o pão, murmurando com a boca cheia:
Obrigado... muito obrigado... Comoose-
hor bom! Vou rezar à Virgem Maria pelo senhor.
Depois de comer, sentiu-se mais forte e capaz de
andar. Capitão estava imóvel. Paulo continuava dor-
mindo, aquecido pelo calor do corpo do animal. O
homem pegou Jacques pela mão e foram caminhando
seguidos por Capitão que andava com todo o cuidado
para não acordar o menino. Pelo caminho, Jacques
contou que sua mãe tinha morrido, depois de longa
doença. Tinha vendido tôda a bonita mobília da casa.
No m só comia pão e o pai andava sempre muito
triste, procurando trabalho. Terminou:
Um dia, os soldados vieram buscar meu pai.
Éle se despediu de nós chorando. Um dos soldados
deu-me um pedaço de pão e me disse que casse espe-
rando, que ele viria buscar-nos. Dei o pãc ao Paulo,
Esperei por algum tempo, mas ninguém apareceu. Então
eu sai com o Paulo. Andamos muito. Passamos por uma
casa onde nos deram um prato de sopa e nos zeram
dormir em cima da palha. No dia seguinte, deram-nos
pão e leite e disseram: Vão com Deus". E assim nós
camos andando, por muitos dias. Sempre havia quem
nos desse um pouco de comida e pousada por uma noite.
Mas ontem não encontramos nenhuma casa. Tivemos
que dormir embaixo do carvalho. Minha mãe ensinou-
me a rezar para a Virgem Maria nas horas de a ição.
Rezei muito e o senhor apareceu para nos ajudar.
O homem não disse nada. Contentou-se em apr.
tar mais fortemente a mãozinha de Jacques. Depois de
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A CASA DO ANJo DA GUARDA 13

algum tempo, ele percebeu que o menino arrastava os


pés com di culdade. Perguntou-lhe:
Está cansado, Jacques?
O garoto respondeu corajosamente:
Ainda consigo andar. Descansarei quando
chegarmos à aldeia.
O laomem tomou o pequeno nos braços e pô-lo nos
ombros, dizendo:
Assim nós chegaremos mais depressa.
Jacques protestou:
-O senhorvaicansar-se! Soumuitopesado.
O homem riu-se:
Não se preocupe, menino. Quando eu estava
em serviço, tinha que carregar coisas bem mais pesadas
que você.
O senhor era soldado? Mas, não da polícia!
O homem tornou a sorrir.
Nunca fui da polícia. Estou voltando da
guerra.
Como é seu nome?
- Chamo-me
Moutier.
Jacques murmurou agradecido:
Senhor Moutier, nunca hei de esquecer o seu
nome.
O homem comoveu-se:
E eu também sempre me lembrarei de você,
Jacques. E um bom irmão e um nenino muito cora-
joso.
Como andassem muito mais depressa, agora que
Jacques estava encarapitado nos ombros do soldado,
logo chegaram à aldeia. Moutier dirigiu-se a uma hos-
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14 CONDÉSSA DE SÉGUR

pedaria bem a entrada da povoação. Bateu à porta e


indagou:
Há alojamento pata mim, para estes garoti-
nhos e para o cão?
O hoteleiro respondeu:
- Posso receber os homens, mas não o cachorro.
Moutier despediu-se:
- Poisentãonãoreceberánenhumdenós.
O hoteleiro viu-o afastar-se com desagrado. Pen-
sou que talyez estivesse perdendo um bom freguês.
Resolveu correr atrás dele. Chamou-
Olá! Senhor viajante!
Moutier parou e virou-se.
O que deseja?
Pode vir para minha hospedaria. Tenho bons
alojamentos.
Moutier respondeu:
- Guarde-ospara si. Para mim, o quevale é a
primeira palavra.
O hoteleiro insistiu:
O senhot não encontrará hotel melhor que o
meu. Fui muito apressado. Venha que não se arrepen-
derá.
Moutier redargüiu:
Agradeço-Ihe a pressa que teve. Vou procutar
outra hospedaria.
E continuou a andar, deixando o homem furioso
por ter perdido um freguês e por ter-se humilhado inu-
tilmente. O soldado encaminhou-se para uma outra
hospedaria, noutro lugar da aldeia e com aspecto muito
mais modesto.
A CASA DO ANJO DA GUARDA 15

II
Moutier repetiu, ao bater à porta do albergue:
- Há lugarparamim, parameusgarotose meu
cão?
Uma voz simpática e animada respondeu:
Pode entrar. Aqui há lugar para todos.
A porta, apareceu uma senhora ainda moça, to-
da sorridente e amável. Pediu:
Deixe-mne desembaraçá-lo de sua carga.
E com um gesto ligeiro tirou Jacques dos ombros
de Moutier. Olhou para o lado e suspirou:
Coitadinho do menino! Dormindo nas cos-
tas do cão! Que criança bonita! E que cachorro inteli-
gente! Nem se mexe, para não acordar o garotinho.
Paulinho acordou com a conversa. Abriu os gran-
des olhos, muito admirado. Sonolento ainda, não viu
o irmão. Choramingou:
- Jacques!QuerooJacques!
Jacques cotreu para ele.
- Estou aqui, Paulo. Tudo vai bem. Este se-
nhor nos trouxe. Vamos tomar uma boa sopa.
Jacques voltou-se para Moutier, perguntando:
- Não éverdadeque vai dar um prato desopa
ao Paulo?
O soldado aquiesceu:
- É, sim. Vão tomar sopa e tudo o mais que
quiserem.
A hoteleira olhava para eles, muito admirada.
Moutier explicou-lhe:
Encontrei estes dois garotinhos perdidos e
trouxe-os comigo. Jacques é um menino extraordinário.
1f CONDÉSSA DE SÉG UR

Depois lhe cøntarei toda a história. Por enguanto, peço-


lhe que dê de comer a ëles. Estāo com o estömago nas
costas. Eu cuidarei do cão. É meu velho amigo. Não é
mesmo, Capitão?
O animal remexia-se sacudindo a cauda e lamben-
do afetuosamente a mão de seu dono. Moutier desatou
o casaco e tirou Paulo do lombo do cão. A primeira
coisa que o menino fez foi dar um grande abraço em
Capitão.
A hoteleira foi apressar a copa que já estava no
fogo. Dali a pouco, tudo estava pronto e as crianças
sentadas à mesa, saboreando não apenas um suculen-
to caldo, mas ainda boa porção de salada, rabanetes e
queijo. Moutier, sentado perto de seus protegidos, não
se cansava de admirar os cuidados de Jacques para com
o irmãozinho. Pensava: Coitadinhos! O que teria sido
dėles, se Capitão não os tivesse encontrado!O pequeno
Jacques é um menino extraordinátio. Meus Deus! Que
hei de azer comn estas crianças?"
A hoteleira também estava muito impressionada
com seus novos hóspedes. Enquanto lhes servia os
melhores bocados, sentia-se ansiosa por uma explicaçāo.
As crianças acabaram de comer. Recostaram-se
no espaldar da cadeira e começaram a bocejar. Moutier
ainda mastigava. Aconselihou aos pequenos:
- Vãobrincar,
meninos.
Jacques levantou-se e ajudou Paulo a sair da ca-
deira. Indagou:
Onde podemos ir, Sr. Moutier?
O soldado olhou para a hoteleira, dizendo:
Não sei. A senhora hoteleira é que pode di-
7er-lhes.
A CASA DO ANJO DA GUA RDA 17

A boa mulher dirigiu-se à porta dos fundos e


chamou-0S:
- Venhamporaqui,meusmeninos.Podemir
brincar na horta. Lá está uma tina cheia de água. Podem
divertir-se regando as plantas.
Jacques perguntou:
Posso usar a água para lavar as mãos de Paulo?
Ela respondeu:
- Podesim. Cuidado para não molhar os pés.
Jacques e Paulo correram para o quintal. Daí a
pouco, ouviram-se suas risadas. Moutier mastigava
devagar, muito pensativo. A hoteleira sentara-se de-
fronte dele, esperando uma explicação, logo que ele
acabasse de comer. Depois que saboreou o último gole
de café, o soldado encostou os cotovelos na mesa e
disse:
– Vou-Ihe contar a história, como Ihe prometi.
Talvez a senhora consiga auxiiar-me a terminá-la.
Em poucas palavras narrou seu encontro com os
dois pequeninos abandonados, ressaltando a dedicação
de Jacques pelo irmão e sua fé na Virgem Maria.
Terminou:
Não seio que fazer com estas crianças. Não
posso abandoná-las. Mas não posso levá-las comigo.
Tenho que andar ainda bastante. Sou solteiro. Tenho
um irmão que é hoteleiro como a senhorae vive cheio
de ocupações. Minhas irmās estão casadas e são muito
pobres. Não seria justo sobrecarregá-las ainda mais.
O que faria a senhora em meu lugar?
A boa mulher estava perplexa. Murmurou:
O que faria eu? Francamente, não sei..
18 CON DÊ SSA D E SÉG UR
Moutier impacientou-se:
Estou-lhe pedindo um conselho!
Ela respondeu, pensativamente:
- Quepodereidizer-lhe? O que sei é quenão
é possível deixá-los a vaguear pelo mundo.
Também acho.
Eu não os entregaria à primeira pessoa que
aparecesse!
Nem eu!
Eu não os deixaria caminhar a pé para muito
longe.
A hoteleirahesitou:
Eu.
Eu... eu tenho um jeito. .. Mas o senhor
não há de querer!
Moutier tou-a, interessado.
Quem sabe? Fale.
Deixe os meninos comigo.
O soldado cou tão admirado com a súbita pro-
posta, que a mulher baixou os olhos, vermelha e en-
vergonhada, como se tivesse dito uma inconveniência.
Ela murmurou, constrangida:
Eu sabiaque o senhor não havia de querer. •

Não me conhece... Tem medo que eu maltrate os


meninos. ..
Moutier protestou:
- Nãodigaisto! Mas... defato, eunão aco-
nheço. ..
Ela interrompeu:
Pode tomar informações a meu respeito. Não
há nesta aldeia quem não conheça a Sra. Blidot, a hote-
leira do Anjo da Guarda! Pode ir falar como vigário,
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 19

com o açougueiro, com o homem que aluga carros, o


delegado, o mestre-escola, o padeiro e muitas outras
pessoas. Todos sabem que não sou má. Sou viúva.
Tenho vinte e seis anos. Não tenho lhos. Vivo sozinha
com minha irmã que tem dezessete anos. Ganhamos a
vida honestamente e, graças ao bom Deus, não nos falta
nada. Temos até algumas economias. Sinto falta de
crianças nesta casa. Prometo-Ihe que tratarei muito
bem dos meninos.
Moutier levantou-se, muito comovido e apertou
afetuosamente as mãos da bondosa senhora. Agradeceu:
Muito obrigado. Onde mora o vigário?
Aqui em frente. É bem perto.
Moutier tomou o boné e foi para a casa do vigá-
rio, disposto a tomar informações sobre a Sra. Blidot
e a pedir um conselho. Voltou daí a uns quinze mi-
nutos. Vinha satisfeito e sossegado. Disse:
- Sra. Blidot, voudeixar-Iheascrianças. Mas..
será somente amanhā. Pode hospedar-me por hoje?.
A boa mulher estava radiante. Respondeu:
Pois não! Poderá car aqui quanto tempo
quiser. Compreendo perfeitamente que queira ver seus
lhos adotivos bem instalados. Aliás... agora eles
são meus lhos!
Moutier obtemperou:
Também são um pouco meus! Pretendo vir
visitá-los de vez em quando.
Ela concordou:
Pode vir quantas vezes quiser. Sempre have-
rá um alojamentoe um bom jantar para o senhor.
Sorriu para ele e despediu-se:
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20 CONDESSA DE SEGUR
Com licença! Vou cuidar de meus lhos.
Tenho de acomodá-los perto de mime de minha irt
E preciso providenciar-Ihes roupas e calçados.
O soldado disse:
É mesmo! E eu que não pensei em nada disto!
Não sei se devo dar-Ihe tanto trabalho e tanta despesa!
Posso deixar-Ihe cinco francos. Farei economia de fumo
na minha jornada. E desisto de mandar consertar meus
sapatos. Há tanta gente que caminha descalça! Tambếm
posso fazer isto. Lavarei os pés nos regatos do canminho.
A hoteleira empurrou-Ihe a mão que Ihe dava a
moeda de cinco francos. A rmou:
- Nãoépreciso
deixar-medinheiro.Pode car
descansado que nada faltará aos meninos.
E ela saiu toda sorridente, muito apressada.

III
A Sra. Blidot chamou sua irmã Elfy, que estava
lavando roupa. Contou-Ihe o que acabava de suceder e
pediu-lhe que viesse ajudá-la a preparar acomodações
para as crianças num quarto vizinho a0 delas. Elfy cou
muito contente. Disse:
E Deus que nos mant res meninos. Crian-
ças era o que faltava nesta casa. Eles são bem educados?
A Sra. Blidot garantiu, com entusiasmo:
- Sãounsamores! Nãovãodar-nostrabalho.
- Onde estão eles? Quero vê-los e julgá-los
com meus próprios olhos.
Mandei-os brincar no quintal.
Elfy correu para o quintal. Lá encontrou Jacques
Ocupado em arrancar o matinho de um canteiro de
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ws
22 COND ÉSSA DE SÉGUR
cenouras. Paulo juntava cuidadosamente os tufos de
mato, procurando fazer um feixe.
Ao som dos passos de Elfy os dois meninos se vol-
taram, mostrando os rostinhos meigos e risonhos. A
moça cou parada, sem dar uma palavra. Jacques in-
terpretou mal aquele silêncio. Falou:
Acho que não estamos fazendo mal! A se-
nhora está zangada? A culpa é minha. Fui eu quem
disse para o Paulo fazer um feixe do matinho.
Elfy sossegou-o:
Não há mal nenhum, meu bem. Não estou
zangada. Até estou muito contente por vocês arranca-
rem o mato do meu quintal.
Paulo indagou:
Este quintal é seu?
Elfy a rmou:
– Ésim.
Paulo indignou-se:
Não acredito. Não é seu. É daquela senho
ra que estava na cozinha e que nos deu sopa. Não que-
ro que tomem o quintal dela.
Elfy deu uma boa risada.
- Quemenino
engraçado! O que fará você pa-
ra eu não tirar verduras da horta?
Paulo declarou, muito decidido:
Pego num pau e peço para Jacques me ajudar
a expulsar a senhora!
Elfy correu para a criança e beijou-a efusivamen-
te. Explicou:
- Soua irmã dasenhoraquelhes deusopa. Eu
moro com ela. O quintal dela também é meu.
Jacques alegrou-se:
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 23

Que bom! A senhora parece também muito


boazinha. Eu gostaria muito que o sr. Moutier também
casse aqui.
Elfy contou:
- Ele nãopode cat, masvai deixarvocêsdois
aqui conosco. Vamos ser muito amigos, se vocês forem
bonzinhos.
Por que está chorando, Jacques? Será que
não gosta de car aqui conosco?
Jacques protestou:
- Nãoéisto! Estoucompenaque o st. Moutier
váse embora. Ele foi muito bom para mim e para o
Paulo.
Elfy consolou-o:
- Elehádevoltar. Enãovaipartirhoje. Você
ainda se encontrará com ele.
Aquelas palavras trouxeram de novo um sorriso
ao rosto de Jacques, que recomeçou a brincar. Capitão
chegou e sentou-se bem em cima do monte de mato
arrancado. Paulo cou muito zangado. Tentou afastar
o cão, mas não conseguiu. Chamou:
Jacques! Mande o cachorro embora. Ele está
amassando o monte de feno!
Jacques veio em socorro do irmãozinho bem no
momento em que Capitão empurrava Paulo com o foci-
nho, fazendo-o rolar no chão. Jacques agarrou-se ao
pescoço do animal, tentando tirá-lo dali. Pedia-lhe:
- Capitão,saiadaí por favor! Deixe o Paulo
brincar sossegado. Eu também não posso com você.
Parece que Capitão entendeu, pois lambeu o ros-!
to de Paulo e as mãos de Jacques e voltou para dentro
de casa, à procura de seu dono.
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24 COND ÉSSA DE SEGUR

Moutier estava sozinho na sala, sentado à mesa,


com a cabeça entre as mãos, pensando. Sua responsa-
bilidade era muito grande. O vigário tinha dado ótimas
informaçÇões sobre a viúva Blidot, mas convinha falar
com outras pessoas. Levantou-se e chamou Capitão.
Saiu com ele. Foi primeiro procurar o açougueiro, que
morava ali perto.
Ao entrar, não sabia o que dizer. Começou:
Desculpe-me.. .. Vim tratar dum negócio.
Aliás não é bem um negócio. É coisa parecida. Mas
o senhor não tem nada com isto. .. E nemn eu tam-
pouco..
O açougueiro tava-o boquiaberto, sem com-
preender. Entre sorridente e inquieto, perguntou:
- Masoqueéa nal?
Moutier foi direto ao assunto:
- QueroumasinformaçõessôbreaSra. Blidot.
O açougueiro inquiriu:
Por quê?
- Quero saber se épossfvelcon at-lheumas
crianças.. se ela as fará felizes..
O homem a rmou:
Não pode haver alguém melhor que ela. Está
sempre de bom-humor, é muito delicada, trabalha-
dora e carinhosa. Todos aqui gostam dela. Além disto,
é muito piedosa. Ela e a irmã são duas pérolas. Pode ir
perguntar ao vigátio.
Moutier disse:
Não é preciso. Muito obrigado. Desculpe
me a indiscrição.
O açougueiro respondeu:
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A CASA DO A NJO DA GUA RDA 25

Não foi indiscrição. Ễ sempre um prazer para


mim, dar boas informações sobre a Sra. Blidot.
Dali, Moutier foi falar com o padeiro:
Não quero comprar pão. Vim pedir-Ihe uma
opinião. Acha que a Sra. Blidot é capaz de tomar conta
dumas crianças?
O padeiro declarou:
Pode con ar nela. Seus lhos não poderão
car em melhores mãos. E a irmā vale tanto quanto ela.
Moutier agradeceu:
- Muitoobrigado. Era o queeuqueriasaber.
Passe bem.
Ele ia voltar para a hospedaria quando Ihe veio
a idéia de ir falar com o hoteleiro que morava à en-
trada da povoação. Pensou: Aquele sujeito não é
boa coisa. Convém saber o que ele pensa sobre a Sra.
Blidot".
O hoteleiro estava à porta. Reconheceu logo o sol-
dado. Primeiro franziu os sobrolhos, muito contrariado.
Depois, ao vêlo aproximar-se, imaginou que era um
possível freguês e desfez-se em amabilidades. Disse:
- Queiraentrar. Estouinteiramenteàssuas
ordens.
Moutier tocou no boné e entrou. Capitão entrou
também. O animal começou a farejar o hoteleiro e
pôs a rosnar, com desagrado, arreganhando os dentes.
O dono teve muito trabalho para evitar que Capitão
mordesse o homem. Este se mexia daqui para ali, muito
inquieto, lançando olhares furiosos para o cachorro.
Moutier nalmente conseguiu acomodar o animal rente
à cadeira em que se senkou. Fixouo olhar no hotelei-
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26 COND É SSA DE SÉGUR

ro e perguntou-lhe, sem preâmbulos, se conhecia a Sra.


Blidot.
O homem declarou com ar desdenhoso:
Não me dou com essa espécie de gente.
Ela então não presta?
Não vale nada. Ela e a itmã são duas ranzin
zas com quem não se pode conversar. São duas tolei-
muito convencidas, que se julgam mellhores que
os outros. Quando saem à rua, tomam ares de princesas.
Costumam atrapalhar os negócios dos outros, fazendo
sempre preços mais baixos. A hospedaria delas não vale
nada. Não me admira que o senhor não tenha conse-
guido car lá. Vou-Ihe servir um jantar especial para
que veja a diferença.
Virou-se e chamou, com um berro
-Torchonnet!Malditopreguiçoso,onde se
tmeteu?
Surgiu na sala uma criaturinha magra, pálida,
coberta de farrapos. Cheio de medo, declarou:
Estou aqui.
O patrão ralhou, furioso:
Eo que está fazendo aqui? Seu lugar é na
cozinha. Como se atreve a vir escutaro que estamos
falando? Vamos, responda, malandro!
Estas palavras pouco amáveis eram acompanha-
das de safanões e pontapés. O pobre menino gemia e
em podia falar. Seus dentes batiam de medo. O ho-
mem prosseguiu :
- Vá jáparaacozinha!
Diga à minha mulher
que prepare um bom jantar para o cavalheiro. De-
pressa, senão.
Fez um gesto ameaçador. O garoto sumiu-se,
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A CASA DO ANJO DA GUAR DA 27

apavorado. Moutier estava trêmulo de indignação.


Levantou-se, dizendo:
- Chega! Não quero o seu jantar. Vim aqui
somente para obter informações sobre a Sra. Blidot.
Estou satisfeito. Pelo que me disse, quei sabendo
que posso con ar a ela a guarda do tesouro que eu
não tinha onde deixar.
O hoteleiro tornou-se rubro de raiva mas, quan-
do ouviu falar em tesouro, mudou logo de expressāo.
Sua cara de fuinha desfez-se num sorriso amável e
tentou segurar Moutier pela manga do casaco. O sol-
dado não pôde evitar um gesto de repulsa. Capitão
estava atento à cena. Pulou em cima do hoteleiro, dan-
do-lhe uma valente dentada na mão e outra na perna.
Preparava-separa he saltar ao pescoço quando Moutier
o segurou pela coleira e o levou dali à força. O homem
levantou para o viajante um punho ameaçador e colérico.
Entrou para o quarto precipitadamente, a m de fazer
um curativo em seus ferimentos que sangravam. Mou-
tier ralhou um pouco com Capitāo e voltou com ele
para o Anjo da Guarda.

IV
Não havia ninguém na sala quando Moutier entrou.
Examinou o aposento e foi para o quintal. Passeou por
ali, contemplando as ores e as hortaliças. Chegou a um
caramanchão de hera. Entrou. Lá havia um banco e
uma mesa rústica coberta de livros. Leu-Ihes os títulos:
Imitação de Cristo, Novo Testamento, 0 Cozinbeiro
Perfeito, Manual das Donas de Casa, Memórias dum
Soldado. Sorriu, pensando: “São estes exatamente os
ivros que eu gostaria de encontrar em casa duma hote-
fl
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28 COND ÈSSA DE SÉGUR
leira. Inspiram con ança na pessoa que os lê. Bem sei
eu quanto vale um bom livro! No quartel, o pior inimigo
éo tédio. Uma boa leitura ajuda-nos a vencê-lo. Aben-
çoados sejam aqueles que escrevem livros'".
Assim re etindo, Moutier se pôs a folhear distrai-
damente as Memórias dum Soldado. Sua atenção xou-
-se numa página, depois em outra e em mais outra. De
pé, próximo à mesa, afundou-se na leitura, sem dar fé
no tempo que passava. Nem percebeu quando a Sra.
Blidot e Elfy chegaram à sua procura.
A Sra. Blidot exclamou, triunfante:
- Cáestáele! E imóvelcomoumaestátua!
Elfy deu uma risada, comentando:
- Teriamorrido? Ouestarádormindoempé?
A Sra. Blidot acrescentou:
- Êleestásurdo.
Elfy aconselhou:
Chame-o com voz mais alta.
A Sra. Blidot obedeceu, aproximando-se um
pouco mais:
- Sr.Moutier! Ojantarestápronto.
Moutier ergueu os olhos do livro e passou a mão
pela testa, com uma expressão de espanto. Desculpou-se:
Não ouvi quando chegaram. Estava tão entre-
tido com o meu livro... Aliás, seu livro. Como é
interessante!
A Sra. Blidot ofereceu:
- Pode car com o livro paraacabarde lê-lo.
O Vigário me dará outro exemplar.
Moutier alegrou-se.
- Aceitocommuitogosto. Vou lê-lo em sua
intenção e espero tornar-me melhor.
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 29

A hoteleiraobtemperou:
O senhor já parece ser muito bom. Mas o prin-
cipal é que o jantar está pronto há quase duas horas.
As crianças devem estar com fome. Eo senhor também
não achará mau mastigar alguma coisa, não é mesmo?
Moutier concordou:
E verdade. O almoço que comi já vai longe e
não poderá prejudicar o jantar.
Só então a Sra. Blidot apresentou Elfy a Moutier.
Os três dirigiram-se para o interior da casa, conversando.
Os meninos já os esperavam na sala de jantar. Jacques
esforçava-se por evitar que Paulo tocasse nos pratos.
Pedia:
Não mexa em nada, Paulo. Isto não ca bem.
O pequenito protestava:
Mas estou com fome! Quero comer!
Jacques insistia:
Espere mais um pouco. O st. Moutier não
tardará a chegar com as duas senhoras.
Falta muito?
Não! Olhe! Eles já vêm chegando.
Sentaram-se todos à mesa. Jacques, como sempre,
teve o cuidado de ajudar o irmãozinho e acomodou-se
ao lado dele, para servi-lo. Moutier elogiou efusivamente
a deliciosa sopa de repolho. Terminada a sopa, Elfy
dispôs-se a levantar-se para ir buscar o assado e o feijão.
Moutier não deixou:
Desculpe-me, senhorita, são os cavalheiros que
devem servir as damas.
Elfy hesitou. A Sra. Blidot concordou com um
sorriso:
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30 CONDÉSSA D SÉGUR

De fato, agora o senhor é da casa, pois aqui nos


deixa estas crianças. Faça como quiser. Esteja à von-
tade.
Moutier movimentou-se com desembaraço, CO-
mentando:
- Everdade.Sinto-mecomoemminhacasa.
O jantar correu alegremente. Jacques estava en-
cantado ao ver o irmãozinho comer até sentir-se satis-
feito. Terminada a refeição, Moutier mandou as crianças
irem brincar no quintal. Ele se recostou na cadeira e se
pôs a fumar, enquanto as duas mulheres cuidavam dos
arranjos domésticos e serviam os outros hóspedes.
Quando o serviço apertava, Moutier levantava-se e ia
ajudá-las.
Jacques e Paulo foram dar uma voltinha na rua.
Distraím-se olhando os mostruários das casas de comér-
cio. Foram andando sem perceber e chegaram a uma
zona fora da cidade. Encontraram-se com um menino
de oito ou nove anos, muito magro, muito pálido, com
a roupa em farrapos, puxando com esforço um enorme
saco de carvão. O garoto enxugava com as costas da mão
o suor que lhe porejava na testa. O bondoso Jacques
cou muito impressionado com ele. Aproximnou-se e
indagou:
Por que está puxando um saco tão pesado?
O garoto choramingando:
Foi meu patrão quem mandou.
Por que não lhe disse que o saco é pesado de-
mais para você?
Não tive coragem. Tenho medo de apanhar.
Seu patrão é mau?
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 31

O menino arregalou os olhos, cheio de medo.


Pediu:
- Nãofalealto! Seeleouvir, medaráchicotadas.
Jacques baixou a voz:
Por que você ca em casa dum homem mau?
Não tenho para onde it. Sou sozinho no
mundo.
Jacques comentou:

-
É como o Paulo e eu. Por que não pede à bon-
dosa Virgem Maria para ajudá-lo?
fazer.
Eo que costumo

O menino respondeu:
Não a conheço. Năo sei onde mora.
Jacques confessou:
Também não sei, mas isto não faz mal. Pode
pedir que ela o ouvirá.
O menino disse:
Seria muito bom, mas meu patrão pode ouvir:
Jacques explicou:
- Não é precisofalar alto. Digabaixinho:
Virgem Maria, venha ajudar-me, a senhora que é a
protetora dos a itos".
O outro repetiu palavra por palavra e cou espe-
rando um pouco. Depois decidiu:
É melhor eu cuidar do meu serviço. Não apa-
receu ninguém.
Jacques sugeriu:
Posso ajudar. Nós dois puxaremos o saco. A
Virgem Maria não costuma vir muito depressa, mas
nunca falha.
Jacques começou a arrastar o saco com quantas
forças tinha. O resultado foi que o pano se rasgou e os
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32 COND £SSA DE StGUR
pedaços de carvāo começaram a sair pelos buracos.
Os meninos pararam, muito consternados. Mas o Jac-
ques não perdia a cabeça por tão pouco. Lembrou-se:
Vou chamar o Sr. Moutier. Foi ele que apa-
teceu para nos ajudar, quando eu pedi auxílio à Vir-
gem Maria. Venha, Paulo. Vamos depressa. Você
que esperando aí.
Jacques e Paulo afastaram-se o mais depressa que
podiam. Quando chegaram à casa da Sra. Blidot, encon-
raram Moutier fumando, em companhia de outros via-
jantes.
Jecques pediu:
Venha conosco, Sr. Moutier. É para ajudar
um pobre menino que não consegue carregar um saco
de carvão. O patrão dele vai dar-lhe uma sutra, por
ausa disto. A Virgem Maria é quem manda o senhor
ir lá!
Moutier levantou-se, sorrindo. Perguntou:
- Onde foi que você viu a Virgem Maria para
me mandar seus recados?
Jacques não se atrapalhou:
Eu não a vi, mas sinto-a no meu coração.
senhor bem sabe que foi ela quem o mandou para socor-
rer-nos, a mim e ao Paulo. O senhor precisa ajudar tam-
bém aquele infeliz.
Pois então mostte-me o caminho. Vamos an-
dando.
Antes de sair, Moutier pediu a Elfy que casse com
Paulo que não podia andar depressa. Jacques e o solda-
do sairam correndo e num instante chegaram onde es-
tava Torchonnet. Moutier reconheceu-o emediatamente.
Era o bode-expiatório do malvado hoteleiro Bournier.
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 33

Tudo se arrumou num instante, graças a uma agulha


um o de linha grossa que Moutier tirou do bolso
para costurar o saco de carvão. Os soldados costumam
trazer tais coisas consigo. Enquanto costurava, Moutier
ia conversando:
Não haverá um outro caminho para carregat o
carvão, sem precisar atravessar a aldeia? Eu é que
não quero encontrar-me com seu malvado patrão. Sou
capaz de perdera calma.
O menino respondeu:
- Há um caminho por trás dascasas. Podemos
deixar o saco no barracão do lado de fora.
Moutier pôs o saco de carvāo aos ombros, dizendo:
- Poisentãovamos por lá.
Torchonnet olhava para ele, cheio de admiração.
Pediu:
-O senhot, que é tão bondoso, diga à Virgem
Maria que lhe agradeço muito por ter-me mandado
SOcorro. Nunca pensei que a Virgem Maria fôsse tão
boazinha. Aquele menino tinha razão.
O pobrezinho olhava para Jacques, todo sorriden-
te e feliz. Quando ao soldado, não podia deixar de achar
graça na ingenuidade das crianças. A passos largos che-
garam ao barraco onde o soldado esvaziou o saco de
carvão, dobrando-o depois, cuidadosamente. Já ia sain-
do, quando o garoto lhe disse, tìmidamente:
- Eu queria que o senhorpedisse à Virgem
Maria que me mandasse o que comer.
Bateu com a mão no estomago, actescentando:
- Sintoumvazioaqui. Fico sem forças para
trabalhar.
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34 CONDESS A DE SÉG UR
A CASA DO ANJO DA GUARDA 35

Moutier compadeceu-se:
Pobre pequeno! Vá ao albergue do Anjo da
Guarda. Lá a patroa lhe dará de comer.
O menino protestou, cheio de medo:
- Nãoposso! Meupatrãomemataria. Eleodeia
a Sra. Blidot.
Moutier concluiu:
Então só há um remédio! Eu lhe trarei co
mida hoje. O pequeno Jacques se encarregará disto nos
outros dias. Que tal, Jacques?
Este concordou animadamente:
Otimo! Guardarei sempre um pouco do meu
almoçoparaele. Mas. . tenhomedodo patrãodele!
Como havemos de fazer?
Torchonnet sugeriu:
Podem deixar o embrulho com comida no oco
da árvore que ca perto do poço. Vou sempre lá, para
buscar água.
Moutier disse:
- Entãoestamos
combinados.Daqui aquinze
minutos, você pode ir até o poço. O pacote já estará na
árvore. Vamo-nos embora depressa, antes que Bournier
nos veja aqui.
Moutiere Jacques contaram a triste história para
a Sra. Blidot, que logo se interessou pelo caso. O solda-
do quis pagar à boa hoteleira mais esta despesa extraor-
dinária, mas a caridosa senhora não aceitou. Ela mesma
preparou um lanche de pão com carne e deu-o a Jacques,
recomendando:
- Vádepressalevar isto para o pobremenino.
Não quero que ele vá dormir com o estomago vazio.
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COND&SSA DI SEGU R
Jacques obedeceu prontamente. Ainda viu quan-
do o infeliz Torchonnet chegou com a vasilha para car-
regar água. Ficou a observálo de longe. Viu o coita-
dinho abrir sofregamente o embrulho e devorar o pão e
a carne em três tempos, enquanto a vasilha ia-se enchen-
do de água. De longe mesmo, Torchonnet fez um sinal
de amizade e agradecimento ao pequeno Jacques.

V
O tempo passou-se muito agradávelmente para
todos os habitantes do Anjo da Guarda. Os meninos
brincaram, comeram e foram dormir, bastante cansados.
Moutier cou na sala, ajudando as duas irmās a servir
os raros viajantes que ali paravam para um descanso.
Depois que as crianças já estavam dormindo, Moutier
foi conversar com as duas senhoras a propósito do que
convinha fazer com os dois pequenos abandonados.
Moutier contou-Ihes:
- Peloque medisseJacques,o pai delesainda
está vivo. Mas como podemos encontrá-lo? Nem se-
quer sabemos seu nome ou onde morava quando os sol-
dados foram buscá-lo. Talvez esteja preso. Talvez seja
melhor para as crianças não conheceremo pai. De qual-
quer maneira, amanhã irei fazer a minha declaração no
cartório, antes de continuar a viagem. Se o juiz de paz
vier interrogá-las, digam-Ihe simplesmente a verdade.
Vou deixar-Ihes meu endereço para o caso de precisa-
rem comunica-se comnigo.
A Sra. Blidot pediu:
- Nãodeixe de virvisitar-nos. Estascrianças
pertencem mais ao senhor do que a nós.
O soldado sorriu, confessando:
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 31

- Eu cariabematrapalhadoseconservasseos
garotinhos comigo. Aqui eles carão muito bem. E,
agora, se me dão licença, eu gostaria de ir repousar.
Preciso levantar-me muito cedo, amanhã.
A Sra. Blidot apressou-se em dizer:
Seu quarto já está preparado. É aqui perto
da cozinha e dá para o quintal. Minha irmã e eu dor-
mimos lá emcima. Ẽ maisseguro. Por aqui só h gente
boa, mas se aparecer algum malfeitor.
Moutier interrompeu-a, rindo-se:
- Ele quecaiana tolice deaparecer,enquanto
Capitãoe eu estivermos aqui.
A Sra. Bidot também sorriu. Acendeu uma velae
levou-a ao quarto preparado para Moutier. Logo que
cou sozinho, o soldado acendeu um charuto e se pôs a
fumar, perdido em profundos pensamentos. Depois fez
o sinal-da-cruz e deitou-se, dormindo quase no mesmo
instante, para só acordar no dia seguinte.
Parece que dormiu demais, pois quando despertou,
ouviu a algazarra alegre das crianças e o riso cristalino de
Elfy e da Sra. Blidot. Envergonhado, pulou da cama e
preparou-se à pressa, com a louvável intenção de ajudar
as donas da casa.
Deu com elas a pentear os garotos. Desculpou-se:
Perdoemo meu atraso. No exército a gente set
habitua a levantar cedo, mas, aqui, o alojamentoé bom
demais!
Jacques cumprimentou-o, perguntando:
- Dormiubem?
Moutier riu-se.
- Quepergunta! Vocênãoestávendoqueche
guei a perder a hora?
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38 COND £SS A DE SEGUR

Reparou, muito satisfeito:


E voce, Jacques, tem um ótimo aspecto. A sua
cama de hoje foi bem melhor que a de ontem, hem?
Jacques expandiu-se:
Muito melhor! Paulo estava tão quentinho!
Ele dormiu muito bem. Nem sei como lhe agradecer,
Sr. Moutier.
O soldado corrigiu:
Não é a mim que deve agradecer e sim, a estas
senhoras. Eu sou um pobre coitado, sem lat.
O menino teimou:
Mas foi o senhor que nos encontrou e nos trou-
xe para cá.
Moutier pegou o menino nos braços e beijou-o
carinhosamente. Depois dirigiu-se às duas irmãs:
- Possoajudá-lasemalgumacoisa?
Elfy aceitou:
- Jáquetemtãoboavontade,vábuscarumfeixe
de lenha no fundo do quintal, para acendermos o fogo.
Enquanto isto, irei cuidar do café.
A Sra. Blidot ralhou:
- Comotemcoragemde dar tantotrabalhoao
Sr. Moutier?
Este protestou:
- Deixe! AsenhoritaElfysabequetenhogran-
de prazer em servi-las. Então pensa que nunca eu carre-
guei um feixe de lenha? No exército, já z serviços mui-
to mais pesados do que este.
E saiu muito animado, para cumprir as ordens de
Elfy. Quando voltou, a moça recebeu-0 entre risos,
omentando:
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 39

Trouxe três vezes mais do que o necessário!


Deixe aqui algumas achas e ponha as outras no depósito.
A Sra. Bidot interveio:
Elfy! Você está abusando!
A rapariga riu-se.
Qual o quê! Convém que ele faça o serviço
direito. E repare como está satisfeito!
Moutier concordou:
Para mim é um prazer. Considero as ordens
dela comno prova de amizade.
Elfy voltou-se para a irmã, com ar triunfante:
Não lhe disse?
A Sra. Blidot sacudiu a cabeça entre risonha e con-
trariada. Quando Moutier se afastou ela disse:
- Você se esquece de que o conhecemos há
muito pouco tempo. Não devemos fazer um hóspede
trabalhat.
Elfy protestou:
Mas ele não é um hóspede como os outros.
Eu, quando quero bem a uma pessoa, dou-Ihe serviço.
Detesto os preguiçosos que cam sentados olhando a
gente trabalhar
Moutier já estava de volta. Pegou uma vassoura
e começou a varrer a sala. Elfy ordenou:
Largue da vassoura! Pegue na escöva e num
pano e vá limpar a mesa e o fogão. Depois, se quiser,
poderá varrer.
Moutier obedeceusem discutir. Quando terminou,
postou-sediante de Elfy, fez-lhe uma continência militar
e disse:
Pronto, minha comandante. Está satisfeita?
O que mais devo fazer?
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0 COND ESSA DE 3 GUR

Elfy inspecionou o aposento com um olhar crítico


e elogiou:
Muito bem! Agora pode ir à leiteria aqui
perto. Quer fazer o favor de levar também os meninos?
Assim eles aprenderão o caminho e poderão ir buscar
o leite amanhā.
Moutier deu a mão a Jacques e este a Paulo. Saf-
ram os três muito alegres e animados. Quando chegou
à leiteria, Moutier dirigiu-se a uma mulher gorda que
enchia as garrafas com o leite de uma tina, Pediu:
- Porfavor,queroleite.
A mulher olhou-o, admirada diante de sua sio-
nomia estranha. Indagou:
-Quanto quer?
Moutier coçou o queixo, embaraçado. Respondeu:
Irra! Não é que me esqueci de perguntar?
Pode dar-me a quantidade do costume.
A leiteira tou-o impaciente.
Resta saber para quem é.
Moutier explicou:
E para a Sra. Blidot, do Anjo da Guarda.
A mulher indagou curiosa:
O senhor é empregado dela? Desde quando?
Estou como empregado dela, desde ontem.
A mulher resmungou, ao entregar-lhe três litros de
leite:
É esquisito.
Moutier escarafunchava os bolsos. Perguntou:
- Preciso
pagar?
A leiteira respondeu:
- Não. O senhor deve saber que fazemos con-
tas às terças-feiras.
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 41

O soldado confessou:
Não sei de nada. Cheguei ontem a esta aldeia.
Despediu-se, deixando a leiteira a resmungar sozi-
nha, muito admirada por a Sra. Blidot tomar como em-
pregado um militar. Moutier ria-se muito, pensando no
ar espantado da boa mulher. Quando entregouo leite
a Elfy, preveniu-a:
Aposto como vão receber a visita da mulher
da leiteria.
Elfy admirou-se:
- Porquê?
Moutier explicou:
Ela cou muito admirada quando eu disse que
trabalhava aqui. Com toda a certeza virá saber outras
novidades.
Elfy indignou-se:
Como é que diz um absurdo destes?
Ele fez um ar inocente, revidando:
Mas é a pura verdade. Então não estou a seu
serviço?
Ela deu um muxÔxO:
O senhor me confunde com suas brincadeiras.
Moutier protestou:
– Não há motivo para isto. Se estou brincando
é porque me sinto contente. E que sabendo que isto
não acontece sempre. Um pobre soldado que vive longe
da pátria, sozinho no mundo, bem merece umas horas
de alegriae boa amizade. Peço-lhe que me desculpe se a
contrariei. Não que zangada comigo.
Elfy sorriu para ele.
Eu que devo desculpar-me por ter ralhado
com o senhor. Mas é muito ridícula a idéia de o ter-
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42 COND £ SSA DE SÉGU R
mos como nosso empregado. Os outros decerto vão
caçoarde nós...•
Moutier interrompeu-a:
Tem razão. Quer que eu vá falar com a mulher
de leiteria?
ASra. Blidot interveio:
Não é preciso. Não dê importância às crian-
de Elfy. Ela estáabusandode sua gentileza.
Moutier protestou vivamente:
Não diga isto!
Virou-se para Elfy, perguntando:
Há mais serviço para mim?
A moça, risonha e muito corada, aquiesceu:
Venha ajudar-me a fazer o café e a ferver o
leite.
Terminada a primeira refeição, Moutier dirigiu-se
ao cartório, enquanto as crianças iam brincar no quintal
e as donas da casa se ocupavam dos serviços domésticos.
O tempo passou muito depressa. Moutier almoçou
os meninos e as duas irmās. Pediu o conta, pois era
chegada a hora de partir. A Sra. Blidot não lhe quis co-
brar coisa alguma. Separaram-se muito amigos, com
uma grande e antecipada saudade. Jacques não pôde
deixar de chorar quando abraçou seu protetor. Quanto
a Paulo, custou-Ihe desprender-se do pescoço de Capi-
tão, que he lambia o rosto, numa demonstração de
afeto. Os dois meninos sentiram-se muito gratos
valoroso animal que os tinha salvo.
Moutier estava sério e triste. Apressou as despe-
didas e afastou-se a passos largos, sem olhar para trás.
Os dois garotinhos não saíram da soleira da porta en-
quanto não o perderam de vista. Depois que Moutier
A CASA DO ANJO DA GUA RDA 43

desapareceu numa curva do caminho, Jacques entrou em


atirou-se, a chorar, nos braços carinhosos da Sra.
Blidot. Soluçava:
Agora que ele foi embora, a senhora não
expulsar-nos?
A bondosa senhora consolava-o com beijos e abra-
ços, dizendo:
- Ninguémpensaemexpulsá-los.Vamos
muito amigos. Quero que vocês me chamem de mamãe.
Está bem?
Jacques sorriu por entre lágrimas. Fitou-a e res-
pondeu:
Está bem. A senhora será nossa mãe, em lugar
da mamãe que foi para o cếu.
Voltou-se para o irmãozinho:
- Ouviu,Paulo?VocêdevechamaraSra.Blidot
de manmãe.
O garotinho negou-se:
Não quero! Quero ir com Moutier e Capitão.
Jacques indagou:
Então você não gosta de mamãe Blidot?
Paulo concedeu:
Gosto, sim, mas gosto mais do Capitão.
Elfy interveio:
- Não se incomode, Jacques. O Paulinho aca-
bará se habituando conosco e chamará minha irmā de
mamãe e a mim, de tia. Não se esqueça de me chamar
tia Elfy!
Jacques beijou-a e abraçou-a, repetindo:
Sim, tia Elfy.
Jacques, satisfeito e tranqüilo sobre a sorte do
irmãozinho, comneçou a brincar com muita animação
44 COND £SSA DE SEGU R
alegria. Inventou uma porção de btinquedos com pedri-
nhas, pauzinhos e pedaços de papel. Muito ajuizado,
procurava ajudar as donas da casa o mais que podia.
No m do dia, aproximou-se da Sra. Blidot. Estava meio
confusoe embaraçado, mas disse:
Mamãe, a senhora prometeu dar comida ao
pobre T'orchonnet. Eu o vi agora há pouco. Fêz-me um
sinal para dizer que ia buscar água no poço. A senhora
quer dar-me alguma coisa para eu deixar lá na ávore?
A Sra. Blidot concordou logo:
Leve-Ihe estes restos de carne com pão. Se
eu me esquecer, você me lembre de dar comida ao
Torchonnet.
Jacques beijou-Ihe a mão, num ímpeto de alegria.
Muito obrigado, mamãe. A senhora é tão boa
quanto o Sr. Moutier.
E levou o lanche de pão com carne, deixando-o no
Ôco da árvore, como tinham combinado. De longe viu
quando Torchonnet foi buscar o embrulho. O menino
andava devagar, enxugando os olhos e comendo o pão,
como quem tinha muita fome. Como sempre, deu um
adeusinho agradecido a Jacques e Paulo, que o olhavam
da porta da casa.
Muitos dias se passaram assim, serenos e felizes
os habitantes do Anjo da Guarda e tristes e cruếis
para o desgraçado Torchonnet, sempre muito maltratado
pelo perverso patrão. Foram muitas as vEzes em que
Jacques ajudou o pobre Torchonnet a executar tarefas
acima de suas forças. Muitas foram as vezes en que
Jacques, autorizado pela Sra. Blidot foi fazer compras
para o mísero menino, enquanto eSte descansava um
fi
A CASA D A N JO DA GUA RDA 45

pouco, embaixo da árvore, comendo os lanches que Ihe


dava a boa hoteleira.

VI
Já havia três anos que os meninos estavam em casa
da Sra. Blidot. A amizade que os unia era cada vez
maior. Todos os conhecidos admiravam a profunda
dedicação de Jacques pelo irmãozinho. Paulo, por sua
vez, retribuía com desvêlo tão grande afeição. Elfy tam-
bém era adorada por eles. Toda a família falava com
saudades do bondoso Moutier. Dele não havia notícias.
Durante os primeiros meses, tinha aparecido no Anjo da
Guarda, acompanhado pelo seu el Capitão. Também
escrevera algumas cartas. Depois avisou que ia para a
guerra, fora da pátria. Soube-se que fora para a Criméia,
mas não se soube se estava vivO ou morto. A guerra na
Criméia cobrira de glórias a França, mas também tinha
levado luto e lágrimas a muitos lares. O que teria
tecido a Moutier?
Un belo dia, quando Jacques e Paulo varriam
frente da casa e as duas senhoras estavam ocupadas pre
parandoo almoço, surgiu um homem, furtivamente e,
sem que Paulo percebesse, tirou-lhe a vassoura da mão.
Este gritou assustado:
Jacques! Tiraram minha vassoura!
Jacques voltou-se prontamente. Ao olhar para o
homem deu um grito de alegria e lançou-se-lhe nos bra-
Ços, berrando:
Mamãe! Tia Elfy! Chegou o Sr. Moutier!
As duas apareceram imediatamente para cumpri-
entar o querido amigo. Foi um momento de indescrití-
vel alegria. Todos alavam ao mesmo tempo, fazendo-se
fi
46 CONDÉSS A DE SÉGUR

mil perguntas, que cavam sem resposta. Depois de


passado o primeiro momento de rebuliço, Moutier expli-
cou porque tinha deixado de dar no tícias. Tinha-se
engajado para combater na guerra contra a Rússia, no
regimento dos zuavos. Quase morreu em Gallipoli, ten-
do cado doente. Logo que se viu restabelecido, come-
çaram as campanhas na Criméia. Foi uma epopéia de
glórias para os franceses. Numa das vezes, quase pren-
deram um príncipe russo, mas apenas conseguiram to-
mar-lhe a carruagem, a bagagem e os papéis. Estivera
em Malakoff onde fora condecorado, como muitos ou-
tros soldados franceses. Tinha levado duas balas, uma
no braço e outra no peito. Quase morreu. Por causa
daqueles ferimentos tinham-lhe dado baixa. Nem bem
se viu em condições de viajar, só pensou em chegar ao
Anjo da Guarda. E lá estava, pronto para ajudar a
senhorita Elfy que tão bem sabia dar ordens.
Elfy cou muito corada. Protestou:
Agora já tenho muito mais juízo que há três
anosatrás. Não lhe darei ordens, como antigamente.
Moutier suspirou, tristonho:
Que pena!
Virou-se para Jacques:
Você me reconheceu logo, hein?
O menino respondeu, emocionado:
Sepre estive pensando no senhor. Sua ima-
gem cou no meu coração.O vigário ensinou-me a rezar
e eu ensinei o Paulo. Nunca me deitei sem rezar a Deus
por sua felicidade.
Moutier acariciou-lhe a cabeça encaracolada, di-
zendo:
Eu também aprendi a rezar, meu menino.
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A CASA DO A NJO DA GUAR D A 47

Conheci o Padre Parabère, um jesuíta, que me ensinou


como deve viver o bom cristão. Que padre! Corajoso
como um zuavo, bondoso e meigo como uma irmã de
caridade, piedoso como um santo, incansável como um
Hércules.
Jacques interessou-se:
Onde está ele? Eu gostaria de conhecê-lo ou
de esctrever-lhe uma carta.
Moutier cou sérioe comovido. Respondeu:
Pode falar com ele, Jacques. Ele o ouvirá, pois
já estáperto do bomDeus.
Paulo reparou no casaco de Moutier:
O que é que está aí no seu casaco?
O soldado contou:
Ẽ a condecoração que ganhei em Malakoff.
E acrescentou, modestamente:
Tive sorte. Meus companheiros de regimento
foram ainda mais valentes do que eu.
Elfy comentou:
- Paraganharesta cruz, o senhordeve ter se
distinguido.
Moutier riu-se.
Aconteceu que consegui tomar uma bandeira
e aprisionar um general. Foi sorte.
Elfy admirou-se:
- PrendeuumgeneralP!
Moutier, contrafeito, relatou:
- Sim.Eraumgeneralrusso,já deidadeeferido.
Consegui retirá-lo do meio dos escombros. Quando eu
voltava para o nosso acampamento é que fui ferido tam-
bém. Não sei o que disse o general, o que sei é que me
fi
48 CONDÉSSA DE SÉGUR

condecoraram. Confesso que, no momento, quei muito


envaidecido, mas, graças a Deus, já passou.
A Sra. Blidot disse:
O senhor é muito modesto. Em vez de con-
tar vantagens, ainda procura diminuir-se.
O Paulinho cortou a longa conversa:
Mamãe, estou com fome. É hora do almoço.
Moutier riu-se e se desculpou:
Eu sou o responsável pelo atraso. Senhorita
Elfy, cá estou, inteiramente às suas ordens.
A moça respondeu, muito séria:
Não, Sr. Moutier, nós é que queremos servir
Jacques, ponha à mesa um talher para o nosso amigo.
Excusado é dizer que não foi preciso falar duas
vezes. Num instante, Jacques foi buscar um prato e um
talher. Moutier não cou parado. Cortou o pāo, en-
cheu o jarro de cidra e pôs a sopa na sopeira. Todos se
sentaram à mesa. Jacques fez questão de car perto de
Moutier. Este não se cansava de admirá-lo:
- Comovocêcresceu,
Jacques! OPaulotambém
está bem grande.
Elfy revelou, cheia de otrgulho:
- EoPaulinhojásabelercorretamente.
Moutier indagou:
- Evocê,Jacques,comovaideestudos?
Este respondeu alegre:
- Estoubemadiantado.Depoisqueroqueveja
meus cadernos. O professor está muito satisfeito comigo.
Paulo cortou o assunto:
- Sr.Moutier,aindaésoldado?.
Moutier respondeu:
--Agora sousargento.
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A CASA DO ANI DA GUARDA 49

Elfy alegrou-se:
- Que bom! E quando foi promovido?
Jacques pediu:
Conte-nos por que foi promovido?
Moutier não gostava de falar de si mesmo. Re:
sumiu:
Apenas cumpri o meu dever, como tantos ou-
tros o zeram. Tive a felicidade de salvar a vida de meu
coronel, quanto tombou ferido. Lutei contra um bando
de russos. Estes fugiram gritando: "Tchiorte! Tchior-
te!"" que quer dizer diabo. Em Alma salvei o coronel e
fui promovido a cabo. Em Inkermann tomei um canhão
dos russos e passei a sargento. Em Traktir ganhei a me-
dalha. Aconteceu que o tenente morreue tomei o co-
mando, ainda com muita sorte. Mas... falemos de
outrascoisas. A senhorita Elfy está com os olhos cheios
de lágrimas.
Elfy explicou-se:
Sinto-me comovida diante de sua modéstia.
Jacques não quis que mudassem de assunto antes
de sabero que fora feito ảo general que Moutier tinha
aprisionado. Este contou:
-0general e eu estivemos às portas da morte.
Ele cou muito meu amigo. Estivemos juntos no Hos-
pital, em Marselha, e éle fez questão que eu casse no
mesmo quarto, com todas as regalias. O médico prescre-
veu-nos uma estaçāo de águas. O general cou em Paris,
tratando duns negócios. Eu preferi fazer a jornada a pé
até aqui, em vez de esperar por ele. Queria vê-los antes
de imos para a estação de águas, onde deverei encon-
trar-me com o general. Vocês são a minha família. Não
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50 CONDÉSSA DE SÉGUR
tenho vontade de sair desta casa, onde me sinto tão
estimado.
A Sra. Blidot a rmou, sorridente:
Nós também não queremos que saia daqui:
Não €, Elfy?
A môça assentiu:
-É Éverdade. Nós todosansiávamospor sua
volta.
Moutier agradeceu, muito comovidoe perguntou:
- la-me
esquecendodoTorchonnet.Que foi
feito dele?
Jacques respondeu:
- Coitado! Continuafazendoa vidadecachor:
to. Há três dias que não o vejo. Não sei que lhe acon-
Soubemos que chegou um hóspede muito rico ao
Hotel do Bournier. Eu vi a carruagem do homem! E
mesmo de luxo. Com certeza Torchonnet anda muito
ocupado.
Moutier sugeriu:
- Iremosláparasaberqueaconteceu. Tomare
mos cuidado a m de que o inimigo não nos surpreenda.
-O hoteleiroaindanãovoltou.Soubemosque o
hóspede rico já partiu. Vimos a carruagem sair.
Paulo lembrou-se:
- QuefoifeitodeCapitão?
O militar entristeceu-se:
-Capitão morreu como herói, no cerco de Se
bastopol. Uma granada arrancou-Ihea cabeça, enquanto
fazia sentinela comigo, numa temperatura de vinte graus
abaixo de zero.
fi
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 51

Os dois meninos caram muito tristes. Jacques


murmurou:
Coitado? E eu que queria tanto tornar a
vêlo. . .

VII
A tarde passou-se em conversas e passeios. Evi
taram cuidadadosamente passar pelo hotel do malvado
Bournier. Depois do jantar, quando já estava escure-
cendo, Moutier e Jacques dirigiram-se para aqueles la-
dos, como propósito de obter notícias de Torchonnet.
Deram uma volta bem grande e foram sair nos fundos
do hotel. Tudo era silêncio e escuridão. As portas es-
tavam fechadas. Não havia possibilidade de entrar.
Moutiere Jacques estavam estudando um meio de che-
gar até Torchonnet quando uma porta se abriu. Um
homem saía de lá furtivamente, sem fazer barulho. A
luz da lanterna furta-fogo, Moutier reconheceu o hote-
leiro. Dirigia-se para o depósito de carvão. Abriu a
porta com muita precaução e entrou. O soldado e Jac-
ques aproximaram-se na sombra e ouviramo que ele
dizia lá dentro, em voz rude, porém velada:
- Está aqui o seu jantar. O estrangeiro já se
foi. Amanhã você recomeçará a trabalhar. Se abrir a
boca para contar alguma coisa do que viu e ouviu, que-
bro-lhe os ossos. Compreendeu, animal?
A voz trêmula de Torchonnet respondeu:
- Sim,patrão.
O hoteleiro tornou a sair, fechou a porta e voltou
para dentro de casa.
Moutier deixou passar algum tempo. Depois falou
a, Jacques em voz baixa:
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52 CONDESSA DE SÉGUR

Chege perto daquela janelinha e chame


Torchonnet.
Jacques obedeceu. Chamou, discretamente:
Torchon:net! O que está fazendo aí dentro?
Ouviram Torchonnet responder:
- Ah! Évocê,Jacques!Comosoubequeaquë
le malvado me prendeu aqui? Não sei por que me
prendeu!
Jacques indagou:
Desde quando está af?
Desde o dia em que chegou no hotel um se-
nhor muito bem vestido, com uma linda carruagem e
uma arca cheia de coisas de ouro. O estrangeiro teve
pena de mim. Disse ao patrão que eu tinha ar de doen-
te. Propôs colocar-me em outra casa. O patrão recusou.
Então o bondoso senhor me deu uma moeda de ouro,
dizendo que eu fôsse lhe conprar fumo e que podia car
com o troco. O patrão saiu atrás de mim, arrancou-me
o dinheiro da mão, agarrou-me pelo pescoço e me arras-
u até aqui, onde me deixou prêso. Ameaçou de matar-
me se eu gritasse. Toda a noite êle me traz um pedaço
de pão e uma vasilha dágua.
Moutier exclamou:
Coitado!
Ao ouvir a voz de Moutier, Torchonnet teve um
acesso de terror. Falou:
Meu Deus! Há alguém com você! Quando
o patrão souber, me matará.
Moutier tranqüilizou-o:
- Sossegue,menino! Quem está aqui é o mes-
mo soldado que o ajudou a carregar aquele saco de
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 53
54 CONDÉSS A DE SÉGUR
carvão, há três anos atrás. Sou seu amigo. Diga-me,
quando foi que o estrangeiro partiu?
Torchonnet disse:
O patrão contou que ele partiu, mas não acre-
dito. Hoje mesmo ouvi a voz do homem lá dentro. Ele
gritava, o patrão gritava, como se estivessem brigando.
Houve barulho de luta. Também ouvi a voz do irmão
e da mulher do patrão.
Moutier tremia de indignação. Pensava: Se- "Se-
tá quecometeramalgumcrime? Ou irãocomet&-lo?
E preciso agir! Mas não posso entrar sem fazer
barulho. Medo não tenho! Bom Deus, inspirai-me para
entrar neste covil de salteadores! Os minutos são pre-
ciosos! Talvezque o estrangeiroaindaesteja vivo!". i

Depois de re etir profundamente, Moutier vi'


tou-se para Jacques:
- Meu lho, váparacasa. Tenhoqueagir so
zinho. Você me atrapalharia.
O menino suplicou:
Deixe-me car com o senhor!
O soldado foi in exível:
Não! Você me atrapalharia, em vez de aju-
dar-me. Vá para casa. Não discuta.
O pobre Jacques beijou-lhe a mão e foi-se em-
bora, muito contra a vontade. Quando percebeu que
o garoto já estava longe, Moutier dirigiu-se à porta por
onde o hoteleiro tinha passado. Teve que esconder-se
num canto escuro. A porta abriu-se de novo e Bournier
reapareceu, espreitando o silêncio e a escuridão. Mur-
murou para alguém lá dentro:
- Acho què meenganei! Não seouve barulho
fi
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fl
A CASA DO ANJO DA GUA RDA 55

algum. Temos que andar depressa. Daqui a pouco


haverá luar e não poderemos agir.
Tornou a entrat e deixar a porta entreaberta:
Moutier não perdeu tempo. Entrou atrás dele, sem fa-
zer ruído. Parou à entrada dum aposento. O hoteleiro
escancarou a porta. À luz trêmula de uma vela, Mou-
tier pôde ver um homem estendido no chão, bem amar'
rado e amordaçado. O irmãoea mulher de Bournier
levantaram o prisioneiro pelos ombtros enquanto o ho-
teleiro Ihe suspendia as pernas.
Moutier entrou em ação. Deu um tiro na coxa
de Bournier e uma coronhada na cabeça do outro ko-
mem. A mulher foi posta fora de combate con
valente murro no crânio. Os três meliantes caram
estendidos no chão. S6 Bournier gritava. O militar
arrastou-o para um canto, sem se incomodar com seus
berros. Correu para o prisioneiro e, com o punhal, cor-
tou a corda que o amarrava. Tirou-lhe a mordaça e sem
perder tempo, amarrou o hoteleiro. Feito isto, foi
depressa até a porta da rua, abriu-a e pôs-se a gritar,
com quanta fôrça tinha:
– Socorro! Ladrões!Assassinos!Socorro!
Num instante apareceu uma dúzia de pessoas, com
ares de grande susto. Moutier berrava:
Aproximem-se! É aqui! Podem chegar! Não
há mais perigo!
Alguns críaram coragem. Aproximatam-se, arma-
dos de facas e de cacetes. Foram entrando, ainda na
dúvida. Ninguém estava disposto a arriscar a pele.
Enquanto os homens hesitavam, Elfy abriu cami'
nho pelo meio dles e entrou precipitadamente na sala
da cena do crime. Tinha ouvido o tiroe os gritos de
fi
55 COND £SSA D: SEGU R
alarma de Moutier. Veio correndo e chamando gente
pelo caminho. Também chamava por Jacques, que ela
pensava estar com Moutier.
Elfy ia abrindo caminho entre o povo aglomerado
em frente à casa de Bournier. Dizia:
O que estão fazendo aqui? Onde está o St.
Moutier? Por que não entram?
Um dos tais valentes respondeu:
Não se sabe o que pode acontecer. Não é pru-
dente ir lá antes qıue se saiba o que sucedeu. Ésse
Bournieré um sujeito de mau caráter.
Elfy protestou, indignada:
- Commedodelevarum tiro,vocês camaqui
parados deixando que matem gente lá dentro! Pois eu,
que sou mulher, não tenho medo!
E assim chegou ela à sala do crime. Chamava,
a ita:
- St.Moutier! Ondeestá? OndeestáJacques?
Que aconteceu?
Viu o hoteleiro amordaçado, o irmão dele sem
sentidos e a mulher inerte. Moutier jogava água no
rosto ensanguentado do estrangeiro ainda estirado no
chão. Não sabia ainda se o homem estava gravemente
ferido ou se o sangue era devido a alguma hemorragia
nasal. Quando ouviu a voz de Elfy, Moutier levantou-se
e caminhou para ela:
- MinhaqueridaElfy! Não queaquidentro.
Vá chamar gente. Por que veio?
Ela explicou:
- Ouvi um tiro. Penseiquelhetivesseacon
tecido algum acidente. Lá na sala da frente há bem uma
dúzia de homens, mas estão com mêdo de eutrar.
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 57

Moutier apertou-lhe as mãos afetuosamente:


E você não teve medo! Nunca mais me esque-
cerei! Nunca mais! Por favor, vá chamar gente. Pre-
cisamos socorrer este senhor que quiseram matar, decer-
to para roubá-lo. Jacques não está comigo. Mandei-o
para casa, antes de entrar aqui.
Elfy, sem dizer mais nada, voltou à sala e falou
com os homens que ali se encontravam. Depois correu
ao Anjo da Guarda para sossegar o espírito de sua irmā
que lá cara com Paulo. Perto da porta do hotel de
Bournier encontrou-se com Jacques, pálido de medo.
O menino tambénm ouvira o tiro e voltara depressa para
perto do amigo. Elfy contou-Ihe rapidamente o que
acontecera e levou-o consigo, pensando que Jacques
poderia estorvar Moutier.
Os homens curiosos encheram-se de coragem ao
saberemn que não havia perigo. Puseram-se todos à dis-
posição de Moutier, alardeando grande valentia. O
soldado disse-lhes:
Não há mais o que fazer. Os três criminosos
estão fora de combate. Quero apenas que me ajudem
a levá-los para a prisão. Sou um estranho na cidade e
não conheço ninguém aqui. Também quero que me
ajudem a levar este estrangeiro para uma cama. Está
precisando de um médico.
Os valentes logo obedeceram a Moutier, que se
impunha pelo uniforme de militar e pelas condecora-
ções. Dois dos homens foram buscar a polícia. Quatro
caram de guarda aos malfeitores. Um foi perguntar
à Sra. Blidot se podia receber o estrangeiro em sua hos-
pedaria. Os outros caram para ajudá-lo a fazer a víti-
má voltara sie para soltarem Torchonnet. A Sra. Blidot
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58 COND £SSA DE SÉGU B

logo mandou sua resposta. Estava disposta a receber o


estrangeiro e a cuidar dele.
Com o auxílio de três homens vigorosos o desco-
nhecido foi transportado por Moutier para a casa da
Sra. Blidot. Ela mesma cuidou do ferido. Lavou-Ihe
cuidadosamente o rosto irreconhecível devido ao san-
gue coagulado. Quando Moutier olhou para éle, depois
de limpo, deu um grito de surprësa. Exclamou:
Sra. Blidot! Que sorte! Sabe quem foi que
acabei de salvar das garras daqueles meliantes? Meu
pobre general prisioneiro! Em pessoa! Não sei como
foi parar lá. Olbe! Está-se mexendo! Vai abrir os
olhos.
Efetivamente, o general estava voltando a si.
Olhou primeiro para a Sra. Blidot. Perguntou ainda
meio atordoado:
Onde estou? O que aconteceu?
Moutier surgiu e tomou-lhe as mãos dizendo:
Meu general, está em casa de gente de bem.
O malfeitor que o hospedou está com a perna inutili-
zada por um tiro, seu irmão tem o crânio rachado e
a mulher tão cedo não se restabelecerá do golpe que
levou.
O general logo reconheceu Moutier. Exclamou:
- Você por aqui, meuvalente! Foi por suacau-
sa que me meti naquele vespeiro. E foi você quem me
tirou de lá. Mais uma vez lhe devo a vida!
O sargento regozijou-se:
Sinto-me feliz, por lhe ter prestado ëste ser,
viçinho, meu general. Mas por que disse que foi por
ninha causa que se meteu naquele antro?
A CASA DO ANJO DA GUARDA 59

Antes de responder, o general pediu um copo de


vinho. Engoliu-o de um trago. Sentiu-se melhor. Diri-
giu-se a Moutier:
Você me disse que passaria por esta aldeia
para visitar suas amigas e os meninos. Eu vim com a
carruagem para poupar-lhe uma caminhada a pé até a
estação de águas. Resolvi esperar por você na casa da-
quele bandido que quase deu cabo de
Moutier indagou:
Como foi que conseguiram aprisioná-lo? Por
que queriam matá-lo?
O general explicou:
Tivemos uma discussão, por causa de um po-
bre menino que parecia doente, infeliz e morto de medo.
Dei uma moeda de vinte francos ao garoto e mandei-o
fazer uma compra, com ordem de car com o trôco.
O gatuno do hoteleiro deve ter roubado a moeda, pois
não vi mais o menino. No dia seguinte interroguei o
homem. Soube que o coitadinho era lho duma mer
diga que lá o deixara para prestar serviços no hotel.
Reparei que a criança era muito maltratada. Ofereci-me
para pagar-Ihe uma escola, onde aprendesse um ofício
qualquer. O bandido recusou. Ameacei-o de ir falar
com o juiz de paz. Ele enfureceu-se e respondeu-me comn
brutalidade. £le viu que eu tinha dinheiro e objetos de
valor. Eu lhe disse que, por sua brutalidade, ele per-
dera a ocasião de ganhar alguns milhares de francos. O
sujeito amansou imediatamente. Disse que aceitava a
oferta. Respondi-lhe que era tarde demais. O diabo
saiu furioso. Daí a uma hora, a mulher levou-me para
uma sala nos fundos da casa, com o pretexto de servir-
me a reifeição. Entrei sem descon at. Fecharam-me
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60 COND ÉSSA DE SÉGUR
por fora. Cansei-me de bater e de gritar. Ninguếm veio
acudir-me. Na janela havia barras de ferro. Eu estava
como um rato na ratoeira. Decidi esperar. Pensei que,
quando me trouxessem o alimento, eu poderia escapulir
pela porta. Enganei-me. Passaram-me um pedaço de
pão pela bandeira da porta e avisaram-me que havia
água na moringa. Passei lá dois dias. Fiquei exausto.
Só tinha uma cadeira para descansar e pão e água como
alimento. Quando eu pensava que você devia estar bem
perto e sem saber do que acontecia, cava mais furioso
ainda. No terceiro dia, a porta abriu-se. Pulei em cima
da pessoa que entrava. Recebi um tremnendo soco no
nariz. O sangue jorrou e cegou-me. Senti que me ba-
tiam na cabeça e nascostas. Gritei por socorro. Um
dêles pulou-me no peito e amordaçou-me. Depois me
amarraram os pés e as mãos. Perdi os sentidos e não vi
mais nada. Não sei como foi que você me salvou.
Moutier prometeu:
- Hei decontar-Ihetudoquandoosenhoresti-
ver descansado. Está precisando de um médico.
O general protestou energicamente:
Não preciso de mnédico! O que quero é re
pousar. Um bom sono há de curar-me de tudo. É mui-
to agradável estar entre amigos. Até amanhā, caro
Moutier.
Depois de tomar um segundo copo de vinho, o
general virou-se para o lado e pouco tempo depois ador-
mecia profundamente.
VIII
A Sra. Blidot e Moutier caram um pouco junto
do general, mas quando viram que dormia calmamente,
sugeriu a dona do hotel:
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A CASA DO ANJO DA GUAR DA 61

Eu posso car por aqui, para ver se o general


precisa de alguma coisa. Convém que o senhor vá ver
o que sucedeu aos malfeitores.
Moutier respondeu:
É uma boa idéia. Onde está Jacques?
- DeveestarcomElfy.
Moutier dirigiu-se à sala, onde Jacques o recebeu
com um abraço e palavras efusivas:
Tive tanto medo que lhe zessem mal, meu
querido amigo! Quando ouvi o tiro, pensei que o tives-
sem matado. Moutier apertou Jacques nos braços e
estendeu a mão para a bondosa Elfy, que confessou:
Eu também tive tanto medo!
Moutier comoveu-se:
Teve tanto medo que não hesitou em afron-
tar o perigo! Nem sei como agradecer-Ihe, senhorita
Elfy.
Acrescentou:
Preciso sair para saber o que se está passando.
Também quero ver que foi feito do pobre Torchonnet.
Jacques perguntou:
Quer que eu vá com o senhor?
Quero. Para onde levaremos Torchonnet?
A generosa Elfy propôs:
Traga o menino para cá.
Moutier protestou:
- Isto aquinão é umasilo! Alémdistonãosa-
bemos se Torchonnet será boa companhia para os nossos
eninos. Se o vigário quiser car com ele, será melhor.
Talvez consiga fazer dele um homem honesto.
Elfy concordou. Moutier saiu, prometendo que
demoraria o menos possível.
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62 COND £SSA DE SÉGU R

Quando Moutier e Jacques entraram no hotel de


Bournier ouviram um concerto de gemidos, imprecações
e pragas. Os feridos tinham voltado a si. Já estavam
bem amarrados e reagiam com palavrões. Moutier ve-
ri cou que Torchonnet não estava lá. Foram ao depó.
sito de carvão para libertá-lo. Foi preciso arrombar a
porta. Torchonnet estava quase mnorto de medo. En-
ara-se num canto escuto, como um animal acuado. Só
depois que Jacques lhe explicou a situaçāo resolveu
mexer-se dali. Quando soube que seu patrāo estava
preso, Torchonnet teve um acesso de alegria, atirando-
aos pés de Moutier e de Jacques, abraçando-he os
joelhos, a dizer:
-0 senhormelibertou! Jacquesajudoua li-
bertar-me!
Moutier observou:
- Vocêdeveagradecerao bomDeus.Venha
comigo. Vou levá-lo à casa do vigário.
Torchonnet juntou as mãos num gesto dedeses
pero, suplicando:
- Não! Não! Nãoquero ir para acasado vi-
gário!
Moutier espantou-se:
Mas que é isto?! Que mal lhe fez o bom pa-
dre?
O menino explicou:
Nunca me fez nada, porque sempre fugi dele:
Aquele padre gosta de comer crianças.
Moutier indignou-se:
Quem Ilhe contou um absurdo destes?
Foi o patrão. Proibiu-mne de chegar perto do
padre.
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 63

Jacques interveio:
-E eu? Estou vivo e vou diariamente à casa
do vigário.
Torchonnet tou-o com surpresa:
- Será
possível?
Moutier explicou:
O caso é que seu patrão tinha todo o interesse
em que você se afastasse do padre. Deixe-se de tolices
e acompanhe-me.
Torchonnet obedeceu de má vontade, andando
atrás de Moutier e Jacques. Quando passaram pela por-
ta do hotel pôde ver o patrão e a mulher bem amarrados.
Seguiram diretamente para a casa do padre. O portão
estava fechado, pois já era tarde. Foi o vigário em pes-
soa quem veio abrir. Reconheceu Moutier.
Boa noite, meu caro Moutier. Quando voltou?
Cheguei hoje de manhã, senhor vigário. Ve-
nho dar-lhe um trabalho de caridade.
– Podedispordemim.
Moutier apontou para Torchonnet e disse:
- Trata-sededarabrigoaestepobremeninopor
algum tempo.
Torchonnet tremia dos pés à cabeça. O padre sor-
tiu, dizendo:
- Até que en m o patrãodeu-lheliberdade.
Deve ser a primeira boa ação que pratica na vida. Nun-
ca consegui aproximar-me deste menino.
Tentou pegar na mão de Torchonnet. Este a reti-
rou bruscamente, com um grito de susto. O sacerdote,
admirou-se:
Que é isto?
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64 COND ÉSSA E SÉGU R

Moutier contou:
- Este tolinho estápensandoque o senhorquer
devorá-lo. Foi o malvado hoteleiro que lhe en ou esta
idéia na cabeça.
O vigário deu uma gostosa gargalhada e observou:
Você daria um mau bocado, magro como
está.
está. ...• Todas as crianças da aldeia freqüentam minha
casa.
Jacques interveio:
Foi exatamente o que lhe disse. Veja, Tor:
chonnet, como não tenho medo do senhor vigário.
Assim dizendo, Jacques tomou a mão do san
homem e beijou-a respeitosamente. Torchonnet olhava
com ávido interesse. Ainda estava com medo, mas já
não tentava fugir.
O sacerdote dirigiu-se a Moutier:
Posso tomar conta do menino, maso que dirá
o patrão dele?
Moutier, em poucas palavras, contou tudo o que
acontecera naquele dia. O vigátio não mais se furtou a
tomar conta de Torchonnet. Chamou sua velha criada
e entregou-Ihe o garôto para que Ihe desse um jantar e
Ihe aprontasse uma boa cama. Depois disse:
- Vou até o hoteldeBournier. Queroconver-
sar um pouco com aquêles infelizes. Até amanhã, Sr.
Moutier. Irei fazer-lhe uma visita no Anjo da Guarda.
Moutier e Jacques, ao chegarem a casa, encontra-
ram a Stra. Blidote Elfy já a itas com a sua demora. A
boa senhora repreendeu-os:
Já é tão tarde! Jacques devia estar dormindo
há muito tempo. Vá depressa, Jacques.
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A CASA DO AN JO DA GUARDA 65

O menino despediu-se de todos e saiu, sem um


protesto. A Sra. Blidot comentou:
Como são boas estas crianças que o senhor me
deu! Trouxeram alegria e felicidade para esta casa.
Moutier acrescentou:
-E aqui têm alegriaefelicidade! Nestacasa
não há quem não se sinta bem.
A Sra. Blidot perguntou:
Então por que não ca morando aqui?
Moutier suspirou:
- Nãoposso car inativo.Precisotrabalhar.
Por enquanto, o que preciso fazer é ir à estação de,
águas, acabar de curar os meus ferimentos.
Elfy insistiu:
E depois? Que pretende fazer?
Moutier confessou:
- Nãoseiainda. Seráo queDeusquiser.
Elfy indagou curiosa:
Não vai voltar para a guerra! Assim o es-
pero.
Ele sorriu:
Quem sabe? Pode ser.
A moça respondeu:
Antes de tornar a engajar-se, avise-me.
quero ver se terá coragem de dar-me este desgosto.
Moutier garantiu, com ênfase:
- Nuncaheidedesgostála!
Elfy concluiu, triunfan
Então não voltará para o exército!
As duas irmās e Moutier ainda caram conver:!
sando durante algum tempo. De vez em quando iam ao
quarto do general, que continuava a dormir pesada-
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66 COND ÉSSA DE SEGU R

mente. Moutier fez questão de passar a noite ao lado


do general. Dispunha-se a dormir sentado numa cadei-
ra, mas Elfy não consentiu. Com seus movimentos ligei-
tos e gtaciosos, num instante arrumou uma cama para
seu amigo, que protestava em vão. Quando terminou o
trabalho, Elfy perguntou:
- Então?Está
contente?
Moutier sorriu-lhe e gracejou:
Para umn soldado é demais uma cama arrunma
da como para um príncipe!
E foram todos dormir.

IX
Moutier pôde dormir como um justo, durante a
noite toda, pois o general nem se mexeu. Levantou-se
quando o relógio batia seis horas. O general continuava
ressonando calmamente.
Moutier arrumou sua cama e foi para a cozinha
acendero fogo. Depois varreu a sala e sentou-se numa
cadeira, à espera de que os outros se levantassem. A
primeira que desceu foi a gentil Elfy que lhe deu un
bom dia jovial, dizendo:
Pensei que ainda estivesse dormindo. Ontem
parecia tão cansado!
Moutier respondeu:
O cansaço desapareceu. Estou às suas ordens:
Elfy sorriu:
Quem o ouvir, pensatá que sou uma tỉrana.
Moutier disse:
- Meudesejo€ajudá-la o maispossívela m
de que não se canse.
A môça reparou:
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 67

Já arrumou a cama, mas falta uma coisa!


O que é?
Tirar a cama de lá. Está bem na passagem.
Onde quer que a ponha?
Aqui ao lado, neste quarto. De noite, torna
remos a armá-la, para o senhor poder car perto do
general.
Moutier obedeceu prontamente. Não pôde deixar
de admirar aquele aposento. Exclamou:
Que quarto bonito! Com móveis novos! E
uns livros!
Elfy confessou:
Arrumamos este quarto para o senhor. Es-
tëve sempre pronto, para o dia em que voltasse. Jacques
fez questão de tomar conta da limpeza do quarto de
seu amigo Moutier" como ile diz.
Antes que Moutier tivesse tempo de agradecer a
Elfy, houve um alvorôço com a repentina chegada de
Jacquese Paulo. Cada um queria ser o primeiro a abra-
çá-lo. Jacques batia palmas:
Que bom! O Sr. Moutier já está no quarto
dele! Agora vai car conosco!
Moutier protestou, tristemente:
Impossível! Eu số serviria de incomodo pa-
ra sua mãe e sua tia, Jacques.
O menino indignou-se:
Incômodo? Qual o quê! As duas vivem re
petindo que o senhor as ajuda muito e que gostariam
muito que casse aqui.
Moutier acariciou-lhe os cabelos, a rmando:
Suas palavras alegram-me muito, Jacques.
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68 COND ESSA DE SÉGUR
Quando eu tiver algum dinheiro virei morar aqui. Por
enquanto, sou pobre e preciso trabalhar para viver.
Moutier foi para junto do general enquanto Elfy
preparava o café. O general já estava acordado. Sentia-
se muito bem, apesar de algumas dores no nariz e nos
olhos. Pedia comida, dizendo:
Passei três dias a pão e água. Estou com mui-
ta fome. Queria uma xícara de café com leite.
Moutier saiu para ir buscá-la. Reparou que Elfy
estava com ar de tristeza. Perguntou:
O que houve, Elfy? Por que está triste?
Ela respondeu:
E porque o senhor não se incomoda com os
meninos e nem conosCo. Pouco se importa com o des-
gosto de Jacques e . .omeu!
Moutier não compreendeu:
Desgosto? Jacques é feliz como um príncipe!
E você.
Ela o interrompeu:
Bem sabe que queremos que que aqui.
Elfy, este é o meu maior desejo também! Mas
não quero car aqui, vivendo à custa de sua irmā, você
compreende. Ainda se houvesse algum laço de paren-
tesco Ou.. ou casamento.. •
Elfy tou-o sorridente. Disse:
Não ousa falar em casamento porque é pobre
e eu sou rica. E só esta a razão?
Moutier confessou:
É a única razão. Se eu tivessealgumaseco-
nomias, minha maior felicidade seria unir sua vida à
minha. Nãơ tenho amigos. Você seria tudo para min,
minha querida Elfy.
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 69

Por que rejeita esta felicidade se nós a ofere-


cemos? Poderá partilhar de nossa fortuna, para bem
de todos. Fique, meu amigo. Nós todos queremos que
não nos deixe, nunca mais.
Moutier, muito emocionado, hesitava. Neste mo
mento, surgiu o general. Tinha escutado a conversa.
Impaciente pela demora do café, viera para a sala atrás
de Moutier.
Com um gesto inesperado, empurrou Elfy para os
braços do soldado, dizendo:
Eu os casarei! Que diabo! Também presto
para alguma coisa. Tenho direito de dar um dote ao
meu amigo que me salvou a vida por duas vezes. Vou
dar-lhe vinte mil francos! Com este dinheiro, há de
esquecer os escrúpulos!
Moutier protestou:
Meu general, não posso aceitar. Não tenho
direito algum à sua fortuna.
O homem indignou-se:
- Como não tem direito? Semesalvou a vida!
Então acha que não valho vinte mil francos? Está-me
ofendendo?
Elfy não podia conter o riso. Moutier concordou:
- Aceito,meugeneral.Senãotôssepor Elły...
O general interrompeu-0 com um suspiro:
Ah! Ainda bem que você acha que valho
vinte mil francos!
Moutier quis agradecer-Ihe.O general não o per-
mitiu, dizendo:
O que quero é a amizade do jovem casal. Vou
começar por dar um beijo na noiva...
70 CONDÉSSA DE SÉGUR
Sem cerimônia, beijou Elfy em ambas as faces.
A moça murmurou muito comovida:
- Muitoobrigadaporter-meajudadoaconven-
cermeu noivo, o ... Comoé seunome?
Moutier sorriu e respondeu:
José.
Elfy riu-se e repetiu:
José, então. Oh! Preciso falar com minha
irmā. Fiquei noiva semn consultá-la!
Ela saiu ligeira e graciosa. O general estava bo-
quiaberto. Murmutava:
- Serápossível? Então a irmā nãosabiade
nada?... E ela nem sabia que Moutier sechama José...
Moutier ria-se com gosto. A rmou:
- Nãosea ija,meugeneral. Tudosearranjará.
O homem continuava pasmado, a murmurar:
Não compreendo... não compreendo...
Concluiu com um suspiro de satisfação:
-A noivaéencantadora!
Moutier reforçou:
- Além deboníta,ela ébondosa,sensata,pie
dosa,meiga. ..•

O general interrompeu-o com uma risada:


Etc. .. etc. . . Conheço estas coisas, meu
amigo. Não nasci ontem. Eu também fui noivo duma
mộça encantadora, bondosa, etc... etc... E era um
demônio! No m de um ano de casamento eu estava an-
sioso pelo divórcio!
Moutier não gostou:
Será queo senhor tem esta opinião da Elfy?
O general deu outra risada.
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A CASA DO AN JO DA GUARDA 71

Não, meu amigo. Falei só para contrariá-lo.


Elfy parece-me um anjo.
Moutier continuava meio chocado. A rmou:
O senhor há de ver-nos daqui a dez anos.
Havemos de ser tão felizes quanto hoje.
O velho concordou, muito emocionado:
Isto mesmo! Que Deus o ouça! Elfy é mesmo
uma criatura muito boazinha. Quanto a você, meu caro
Moutier, quanto mais o conheço, mais o estimo.
Neste momento, chegaram a Sra. Blidot, Elfye os
meninos. Moutier correu para a Sra. Blidot e beijou-a
afetuosamente. Desculpou-se:
Perdoe-me, querida amiga, por ter cado noi-
vo de Elfy sem a prevenir. O general precipitou os
acontecimentos:
A Sra. Blidot respondeu:
Sei que é para a felicidade de Elfy. Desde o
omeço percebi que vocês dois se gostavam e pareciam
teitos um para o outro.
Moutier confessou:
É verdade. Eu nunca teria coragen pata me
declarar. Meu general arranjou tudo.
Jacques estava radiante de contentamento. Re-
petiu:
Meu amigo vai car conosco! Vai car mo-
rando naquele quarto bonito que tia Elfy he preparou!
E tia Elfy não há de chorar mais!
Elfy tapou-Ihe a boca, com um gesto de susto:
Cuidado, Jacques! Não seja indiscreto.
Jacques bateu palmnas, cantarolando:
Não é mais segrêdo! Que bom! Que bom!
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72 CONDÉSSA DE SEGUR

O general lembrou:
- Nósaindanãotomanoscafé! Estoumortode
fome. Não se esqueçam de que passei dois dias a pão e
água. E não arranjei noiva! Estou com o estômago nas
costas.
A Sra. Blidot respondeu, rindo-se muito:
Sente-se à mesa, general. Está tudo pronto.
Quando Elfy quis servir o café, Moutier não dei-
xou. A moça sorriu para ele, dizendo:
Faça como quiser. Agora você é o senhor.
Ele respondeu meigamente:
Sou um senhor que é escravo.
0 general, atacando uma enormne fatia de pão,
COmentou:
Como eu! Sou um general prisioneiro.
Moutier consolou-o:
Não o será por muito tempo. Logo assinarão
a paz. O senhor poderá voltar para sua terra.
O russo confessou:
- Francamente,nãotenhopressaalguma!
Moutier disse:
Precisa assistir ao nosso casamento.
O general animou-se:
Quero um banquete de arromba! Pagarei to-
das as despesas. E tudo do bom e do melhor! Encomen-
darei as iguarias em Paris. Sou entendido no assunto.

X
Depois de satisfazer o apetite, o general estabele:
ceu grande camaradagem com os meninos. Jacques
levou-o à casa do vigário, para visitar Torchonnet. O
garoto estava transformado. A criada do padre tinha-o
A CASA DO AN JO DA GUA RDA 73

lavado e penteado. Já não estava vestido com farrapos.


Parecia outro. O bondoso pároco tinha-o batizado com
o nome de Pedro. Pedro Torchonnet recebeu suas visi-
tas comn ar encantado e feliz. O general cou sabendo
como Jacques fora bondoso com o infeliz menino. Não
se fartava de fazer perguntas. Estava entusiasmado.
Expandia-se:
- Senhorvigário,suabondadeéenorme. Pou-
ca gente faria o que está fazendo pelo Torchonnet.
Mudou de assunto de repente:
Sabe que vou casar a irmā da bondosa Sra.
Blidot?
- Elfy! Nãoépossível!
Sim, senhor! Dei um dote de vinte mil francos
ao noivo.
O vigário indagou, a sorrir:
Queméo felizardo? Elfy recusava todos os
partidos que Ihe apareciam.
O general anunciou, com ênfase:
Ela vai desposar Moutier, o homem que me
salvou, valente entre os valentes, um coração de ouro.
O velho sacerdote regozijou-se:
Que bomn! Aprovo inteiramente a escolha de
Elfy.
O general acentuou:
E minha escolha também, se me faz favot.
Moutier sempre me falava de Elfy e da irmā, quando
estivemos juntos no Hospital. Percebi que queria ca-
sar-se com Elfy, mas se achava pobre demais. Vim a
esta aldeia especialmente para arranjar o negócio. Eu só
queria saber comno Moutier conseguiria um dote sem
Dourakine.
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74 CONDÉSSA DE SEGU R

- QueméDourakine?
Sou eu, em pessoa. Em russo, dourake
quer dizer tolo. Que belo nome tenho eu, hem?
Os dois riram-se com gôsto. O general propôs que
fössem ao Anjo da Guarda, fazer uma visita às duas
irmās. Jacques pediu licença para car conversando
com Torchonnet.
Soube que o menino não tỉnha pai nem mãe:
Estava com oito anos quando a mendiga, antes de mor-
rer, o entregou ao malvado Bournier. A mulher contou
que não era mãe de Torchonnet. Tinha-o roubado, por
vingança. Bournier sabia o nome e o endereço dos pais
de Torchonnet. Jacques insistiu em que o menino falas-
se com o vigário. Quem sabe se não poderiam encon-
trar sua família?
Enquanto os meninos conversavam em casa do
pároco, Elfy e a Sra. Blidot recebiam sua visita com
grande prazer. O bondoso sacerdote abençoou a noiva:
Seja feliz, minha lha. Fez uma boa escolha.
Moutier pediu:
- Queroquemeabençoetambém.
Ajoelhou-se respeitosamente para receber a bên-
ção. Antes de levantar-se, pegou na mão de Elfy, bei-
jou-a e jurou que havia de fazer muito feliz a sua meiga
e querida companheira. Foi uma cena comovente.
general protestou:
Arre! Estamos todos quase chorando! O mo'
mento nāo é para lágrimas!
Moutier falou, comovido:
Também se chora de alegria, meu general. E
é ao senhor que devo esta grande felicidade.
Os dois se abraçaram. O general, comovidíssimo,
fi
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A CASA DO ANJO DA GUAR DA 75

deu um abraço no vigário, largou-o bruscamente e di-


rigiu-se apressadamente para seu quarto, onde se fechou.
O padre, as duas senhoras e Moutier sentaram-se
para conversar. Neste momento, O general abriu a por-
ta e indagou com a cabeça para fora:
- Quandoseráocasamento?Precisosaberpara
encomendar o banquete em Paris.
Moutier respondeu:
Calma, meu general. Já se esqueceu de que
temos que fazer uma estação de águas?
- Não meesqueci! Mas pode car para depois
do casório.
Elfy protestou:
Não é conveniente. O José tem razão. Pri
meiro irão à estação de águas. José cuidará do senhor.
Moutier agradeceu à noiva com um sorriso e disse:
- Depoiscaremos
juntos.
Ela acrescentou:
Para nunca mais nos separarmos.
O general zangou-se:
Mas vocês o que pensam que eu sou? Dis-
põem de mim como de um imbecil! Tenho sessenta e
três anos! Já sei pensar pot mim mesmo! E se eu não
quiser ir antes do casamento?
Elfy decidiu:
José irá sozinho. E preciso que se cure com-
pletamente de seus feriment
O russo cedeu:
Tem razão, menina. Partirenmos amanhã.
Elfy deu um grito:
Não! Assim tão depressa não quero!
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76 COND ÈSSA DE SÉGUR
O general deu uma gargalhada gostosa e teimnou:
Ganhei a partida! Marquemos o casamento!
A noivazangou-se:
O senhor deixa-mne confusa. Precisamos ter
calma. José não pode partir antes de prestar declara-
ções no processo dos Bournier. O senhor tambếm pre-
cisará ser interrogado. Nãoé1mesmo, senhor vigário?
Moutier ouvia calado, com um sorriso nos lábios.
O padre respondeu:
- Elfy tem razão. Será preciso esperar pelo
interrogatóio.
A Sra. Blidot concluiu:
Em seguida irão à estação de águas e depois
será o casamento. Tudo cará em boa ordem.

XI
O general concordou. Foi para um canto da sala
com Jacques e Paulo e começou a fazer planos para
banquete. Só mesmo as crianças poderiam dar atenção
à descrição dos pratos complicados e saborosos que ele
pretendia encomendar. Faziam-he mil perguntas a que
ele respondia ora com entusiasmo, ora com impaciência.
A nal, os meninos se cansaram do assunto e foramn brin-
car no jardim.
Aquele dia se passou muito agradavelmente.
Váios viajantes passaram pela hospedaria, uns para
almoçar, outros apenas para tomar um refresco. Jacques,
sempre ativo e atencioso, ajudava a servir comn muita
perfeição. O general divertia-se apreciando o movimen-
to. Os viajantes tomavam-no por um criador de gado.
O general achava muita graça naquilo e conversava com
les como se fôsse realmente um negociante de bois e
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 77

carneiros. Mas como não entendia nada do assunto, da-


va umas respostas absurdas que deixavam os homens
descon ados. Quando via que estavam zangados, o
russo contava que era general e tudo voltava às boas,
para grande divertimento de todos.
Jacques entretinha-se ouvindo as conversas dos
viajantes. Comentou:
Como deve ser bom viajar!
Perguntou o general:
Quer que eu o leve comigo?
O menino respondeu:
- Iria commuitogosto,seMoutier,Paulo,ma-
mãe e titia fossem também.
O general protestou:
- É gentedemais. Ondearranjariaeu lugar
para todos? E, por falar em lugar, onde estão minha
carruagem e minhas coisas?
Jacques informou:
Bournier levou a carruagem, garantindo a
todos que o senhor estava lá dentro.
Mas que malandro!
Moutier disse:
Os três bandidos deverão entrar em julga-
mento amanhã de manhã.
Elfy suspirou:
-Já?
Moutier consolou-a:
Ficaremos na estação de águas durante umas
três semanas. Nossa ausência não chegará a um mês.
O genetal gracejou:
Voltarei logo. Não precisa car triste.
Elfy respondeu:
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78 CONDESSA DE SÉGUR

-0 senhorbemsabeque sósentireifalta de
José.
Em vez de zangar-se com a, rude franqueza, o mi-
litar aprovou:
Muito bem! Sua franqueza merece uma re-
compensa. Vou dar-lhe um relógio com uma corrente
e mais um broche e um par de brincos.
Elfy protestou contra tamanha generosidade, mas
o general não admitia réplicas. Dirigiu-se a Moutier:
Meu amigo, acho conveniente irmos até o
hotel buscar a minha bagagem.
E os dois saíram imediatanmente.

No hotel só
XII
encontraram o escrivão da polícia:
Moutier explicou-lbhe porque o general lá estava. O es-
crivão opộs certas di culdades, dizendo que não conhe-
cia o general. O russo cou furioso, esbravejando:
Por quem me toma o senhor? Pensa que sou
algum ladrão? Tenho o direito de yir buscar o
pertence.
Tudo se harmonizou quando o general apresentou
uma lista de suas coisas e deu uma gorjeta ao escrupu-
loso escrivão. Daí a pouco, os dois amigos chegaram ao
Anjo da Guarda com a bagagem do general. Este cha-
mou Jacques e Paulo a seu guarto a m de mostrar-Ihes
as belas coisas que trazia na arca. Não era para admirar
que Bournier tivesse tentado roubá-lo.
Jacques e Paulo batiam palmas e davam gritinhos
de alegria diante de tantas preciosidades. Extasiaram-se
especialmente diante dos relógios. O general separou
um, colocou-o num estôjo e disse:
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 79
80 CONDESSA DE SEGUR

- Esteéparatia Elfy.
Separou mais dois menores e, baixando a voz,
Contou:
Estes são para vocês. Moutier vai dá-los.
Jacques interrompeu-o:
Mas é o senhor quem nos dá os relógios!
O general ralhou:
- Não me interrompa! Quem Ihe dá osrelógios
é Moutier. É feio contradizer os mais velhos.
Jacques sorriu para ele, dizendo:
- Mas é mais feio ainda nãoagtadecerum pre-
sente tão bonito.
E antes que o general pudesse defender-se, os dois
gatotos beijaram-lhe as mãos, cheios de gratidão. Ele
chamou:
- Moutier!Venhacá!
Moutier entrou muito assustado. O general,fu
tioso, desabafou:
Estes garotos fazem-se de bobos! Duvidamn
de mim!
Jacques, todo risonho, agradeceu irónicamente:
Prezado amigo Moutier, muito obrigado pelo
rclógio de ouro.
Moutier estava estupefato. Balbuciou:
Relógio de ouro! Não entendo!
O general esbravejou:
Saiam do quarto, insolentes! Quero car
sozinho com Moutier.
Empurrou os meninos para fora e fechou a porta
com (estrondo. Moutier não conseguia compreender o
que se passava. O general tou-o com ar severo e disse:
Sou seu superior! T'em que me obedecer. Aqui
fi
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 81

está o seu dote com mais algum dinheiro para qualquer


imprevisto. (Meteu a carteira na mão de Moutier):
Aqui estão o relógioea corrente de ouro de Elfy. Este
é seu. (Moutier fez um movimento de recusa). Abre!
Você precisa ter um relógio! Não quero que vá pergun-
tar que horas são à sua mulher. E estes dois reloginhos
são para Jacques e Paulo. E que sabendo que estou
muito aborrecido por ser general, Conde Dourakine,
russo e velho. Se eu fôsse mais moço, casava-me com a
Sra. Blidot.
Moutier achou tão engraçada a idéia de ser cunha
do daquele imponente general, pançudo, vermelhão e
de cabeça branca, que rompeu numa estrondosa garga-
lhada. O russo contagiou-se e os dois puseram-se a rir
como doidos. A Sra. Blidot, Elfy e as crianças vieram
saber o que tinha acontecido. E quando souberam, ze-
ram coro às gargalhadas que estrondearam pela casa
tôda.
De repente, o general cou sério. Falou:
- A nal decontas,muitosrussostêmdesposa-
do francesas! Há muita gente que se casa ao sessenta
e quatro anos! E há muitos condes que se casam com
burguesas. Não sei por que estão achando tanta graça!
Moutier conseguiu acalmar o general. A Sra.
Blidot distraiu-lhe a atenção, perguntando:
General, por que esta exposição de jóias er
cima da mesa?
O bondoso velho procedeu à distribuição:
Esta é sua. .. Esta é de Elfy... Tôdas já
têm o nome gravado. Eu não nasci ontem! Quando vim
para esta aldeia já trouxe o dote e os presentes de casa-
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82 CONDESSA DE SÉGUR

mento. Compreendem agora por que viajei com uma


arca cheia de jóias?
Todos estavam muito comovidos, mas o general
não admitiu agradecimentos. Sugeriu:
- Émelhorquetratemdojantar. Estou
cansado
e com fome.
A Sra. Blidot correu para o fogão. Elfy e Moutier
foram pôt a mesa. Jacques e Paulo desceram à adega.
O general, de pé no meio da sala, aplaudia, satisfeito e
feliz.
XIII
No dia seguinte, quando a família se reuniu à hora
do café matinal, o velho militar contemplou, com indi-
zível satisfação as sionomias radiantes de seus amigos.
Enquanto os outros caram ocupados nos serviços da
casa, o general saiu. Estava um dia quente e bonito.
Quando chegou à rua, viu um carro onde iam os
Bourniers, escoltados por policiais. Na frente ia a car-
ruagem do juiz. Desceram todos à porta do hotel de
Bournier. O general dirigiu-se logo para lá. Entroue
oi direito ao hoteleiro, insultando-o:
Ladrão! Malandro! Bandido!
O juiz revoltou-se. Perguntou:
- Queméestehomem?Façam-nosair!
O general protestou:
Se entrei aqui é porque preciso car.
O juiz irritou-se:
Mais respeito à autoridade! Veja como fala!
Ordeno-Ihe que se retire.
O general cou rubro de raiva:
Số recebo ordens de meu soberano! E que
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 83
COND ÉSSA E SLGUR
sabendo que vai car muito atrapalhado se me expulsar
daqui! Não voltarei nem que me obriguem!
O juiz impacientou-se:
Não volte mesmo. Tanto melhor.
O general berrou:
Pois vai arrepender-se!
En ou o chapéu na cabeça e saiu pisando duro.
Encontrou-se com Moutier à porta da entrada, mas nem
parou. Moutier fêz-Ihe a continência de estilo e entrou
na sala. O juiz perguntou:
Que é senhor?
Sou Moutier, a principal testemunha do crime.
Quem é aquele gorducho que acaba de sair?
E o general Dourakine, meu prisioneiro.
Aqueles malandros tentaram assassiná-lo.
O juiz deu um pulo na cadeira:
Como! Aquele é o general? Por favot, tra-
ga-o de volta! Ele precisa depor.
Moutier obedeceu imediatamente. Foi alcançar o
general já em casa. Estava rubro de cólera. Deu as
tas a Moutier e teimou:
Não irei! Não há força humana que me tire
daqui! Não admito que me desacatem!
Moutier cansou-se de argumentar. Desistiu a nal.
Voltou à sala do julgamento e pediu ao juiz e ao escrivão
que o acompanhassem ao Anjo da Guarda. Recomen-
dou-Ihe töda a cautela para não serem vistos pelo gene-
ral teimoso. O juiz resolveu-se a acompanhar Moutier,
pois não havia outro remédio.
Elfy entrou em ação. Bateu suavemente à porta
do quarto do general que resmungou lá de dentro:
Quem bate?
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A CASA DO ANJOo DA GUARDA 85

Sou eu, Elfy.


-O quequercomigo?
Quero consultá-lo sobre meu casamento.
Pode entrar.
A porta abriu-se. O general aproveitou-se para
dar uma olhadela na sala. Não viu ninguém. Elfy entrou,
mas deixou a porta entreaberta. Sentou-se numa ca-
deira e suspirou:
Ah! Não sei o que seria de nós sem o senhor!
Quando penso que aqueles bandidos quase o mataram!
Eles queriam matá-lo, não é mesmno?
- Que dúvida! Iamdegolar-me,comose eu
fôsse um carneiro!
Elfy puxou a cadeira para mais perto dele. Disse:
Conte-me direitinho como foi. Até agora não
compreendo bem porque os miseráveis quiseram
matá-lo!
O general estava encantado com o interesse de
Elfy. Foi contando tudo, tim-tim por tim-tim. De vez
em quando a astuta moça fazia uma pergunta hábil ou
provocava um esclarecimento. Quando ouviu tudo,
levantou-se assustada:
Meu Deus! Preciso depenar o frango para o
almoço. Com licença, general!
Este lembrou-se:
Você não falou em seu casamento!
Fica para outra ocasião.
E saiu ligeira como um passarinho. O general saiu
atrás dela. Deu com o juiz, sentado à mesa, redigindo
o processo. Empertigou-se e perguntou:
Veio aqui para insultar-me?
86 COND É SS A DE SÉGUR

O juiz levantou-se, muito amável.


Ao contrário, st. general, venho pedir-lhe des:
culpas.
O general apertou-lhe a mão:
Tenho muito gosto em desculpá-lo, mas não
poderei depor. Jurei que não o faria.
O juiz sorriu:
- Não é preciso.
Num instante o general compreendeu tudo. Ficou
parado olhando para o juiz que se retirava solenemente.
De repente, explodiu:
Mas que menina sabida! Moutier! Onde está
você?
Moutier veio-se chegando, muito murcho, com
medo da cólera do general. Este o abraçou internecida-
mente:
Meu caro Moutier! Meu lho! Meu salvador!
Elfy apareceu com a intenção de defender o noivo, caso
fôsse preciso. O general abraçou-a também. Falava:
Quero adotá-los como lhos! Vou dar-lhes
seiscentos mil rublosde renda eo título de Condee
Condessa Dourakine. Vocês são eus verdadeiros,
meus únicos amigos neste mundo!
Elfy desprendeu-se-Ihe dos braços e riu-se, di-
zendo:
Meu caro general! Olhe bem para nốs dois!
Nem eu nem José temos vocação para aristocratas.
Moutier pôs-se a rir também. O general achou
melhor fazer-Ihes coro. Concordou:
- É
verdade! Eudigocadatolice!
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 87

XIV
Quando se reuniram à mesa, para o almöço, Elfy
notou que o general tinha um olhar malicioso. Estava
tramando alguma coisa.
No m da refeição, ele disse:
Amanhã vai ser um dia triste para você, Elfy.
Ela perguntou meio assustada:
Por quê?
Moutier e eu vamos partir.
Amanhā? Por que tanta pressa?
Já zemos o nosso depoimnento. Chegou o
tempo de irmos para a estação de águas.
Elfy calou-se, muito triste. Moutier consolou-a:
Já que temos que i, o melhor é ir logo.
O general insinuou:
Por que não vem conosco, Elfy?
- Queidéiaabsurda,
general!
Elfy levantou-se da mesa e saiu meio zangada.
O general ria-se a valer. Disse a Moutier:
- VáchamarElfy. Estouvingandodapeçaque
ne pregou. Diga-Ihe que partiremos quando ela quiser.
Moutier obedeceu e daí a pouco voltava com
noivinha, agora, alegre e satisfeita. Num ímpeto de
ternura abraçou o general. Chegou a vez deste levantar-
se da mesa, muito comnovido, com os olhos rasos de
pranto. Paulo perguntou, espantado:
Por que o pobre general está chorando?
Jacques explicou:
Ele não quer deixar-nos.
Quando o general reapareceu, Paulo correu para
ele. Pediu:
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88 CONDÉSSA DE SÉGUR

BPPblel

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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 89

- Fiqueconoscoparasempre. Assim não pre-


cisará chorar.
O general respondeu:
Não posso car, meu bem. Mas posso levar
você e Jacques comigo.
Paulo foi franco:
Pre ro car com mamãe e tia Elfy.
E você, Jacques?
Eu penso como Paulo.
O general calou-se. Contemplava os dois irmãos,
tấo bonitos e tão bem educados. Seria tão bom ter uns
lhos assim! Insistiu:
- Sevocêsvieremcomigo,dou-Ihestodo o meu
dinheiro. E poderão comer o que quiseremn e à hora
que bem entenderem.
Jacques respondeu, sem hesitação:
-Queremos caraqui!
O general pôs as mãos às costas e começou a an-
dar pela sala, monologando:
Pois é. .. Ninguém me quer. • Sou um
infeliz... Minha sinaé car sozinhono mundo. • •

Parou subitamente. Dando com a mão na testa,


berrou:
Como sou idiota! Vou adotar Torchonnet!
Assim também terei uma família! Moutier, vá buscar
Torchonnet!
Moutier balbuciou:
Eu!... Mas.. Meu general..
O homem decidiu:
Pois então irei eu mesmo!
E saiu como um pé de vento, sem mesmo por o
chapéu na cabeça. Todos caram mudos de surpresa
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90 CON D£SS A DE SÉG UR

Por m romperam na risada. A Sra. Blidot co-


mentou:
Tem bom coração, mas é meio maluco.
Daí a pouco chegava de volta o general. Esbra-
vejou:
O padre não quer deixar! Imaginem số! Disse
que sou católico ortodoxo. Não sirvo para tomar conta
de Torchonnet. Mas isto não ca assim! Vou queixar-
me ao juiz! Quero o meu Torchonnet, custe o que
custar!
Moutier deixou que ele se acalmasse um pouco.
Depois falou:
- Meugeneral,convémre etir. Torchonneté
um menino sem educação e, possivelmente, de mau
caráter, pois viveu no meio de gente muito ruim.
O general concordou:
É verdade! Imaginem só! Um conde Dou
rakine sem educação, dizendo palavrões e roubando!
Obrigado, Moutier! Você me abriu os olhos.
Moutier disse:
O senhor teria tido tempo para re etir. Aqui
na França, não é fácil adotar-se uma criança.
O general esfregou as mãos:
Melhor para mim! Vou avisar o vigário.
Moutier propôs:
- Euposso ir. Não éagradávelàgentedesdi-
zer-se.
Obrigado, meu caro Moutier. Mas pode dizer
ao padre que sou um doido, um insensato, um perfeito
idiota. Não me poupe!
Moutier protestou:
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 91

Nunca direi isto! Para mim, o senhor é o me-


lhor dos homens.
Tudo se arranjou facilmente, pois o bondoso pá-
roco não tinha levado a sério o rompante do general
russo.
XV
Quando Moutier voltou, Elfy disse-lhe:
Já que têm de ir para a estação de águas é me-
lhor que vão logo. Pode ser amanhã mesmu.
Moutier acedeu:
- Você é quemmanda,minhaquerida. Vou
avisar o general.
Moutier encontrou o general a escrever. Disse-Ihe:
Podemos partir amanhā, se não zer objeção.
O general concordou:
- Estou por tudo. Euestavaescrevendopara
um fabricante de carros, meu conhecido. Encomen-
dava-lhe uma carruagem. Bem sabe que os nalvados
Bourniers liquidaram com a minha.
Moutier obtemperou:
A carruagem só poderá chegar de Paris dentro
de dez ou quinze dias. Não deveríamos perder tanto
tempo.
O general coçou o queixo, pensativamente. Falou:
Émesmo. .. Mas eu não gosto de viajar sem
carruagem. .
Moutier sugeriu:
Posso perguntar aos viajantes se alguma dili-
gência passará por aqui.
- Boaidéia!
Moutier consultou os hóspedes e foi informado de
fi
92 COND ÊSS A E SÉGU R

que a diligência passaria por uma localidade a duas


léguas dali, diariamente, ao meio-dia.
O general disse:
- Poderemos
tomá-la
amanhã!
Moutier lembrou:
-0 senhorfaráasduasléguasapé?
Se você vai a pé, também posso ir!
Mas... meu general, lembre-se de seu feri
mento.
- Vocêtambémfoiferido.
Mas estou habituado a caminhar.
O general começou a zangar-se:
Já sei! Você me acha gordo, velho e pesado!
Fique sabendo que posso caminhar tão bem quanto
qualquer pessoa! Não levarei bagagem, apenas dinhei-
ro. Conm o dinheiro compraremos o que for preciso.
Moutier compreendeu que não adiantaria pro-
testar. O general estava encantado com a perspectiva
da aventura. Os dois foram para a sala a m de comu-
nicarem à Sra. Blidot sua resolução.
No salão achava-se um único viajante. Era um
soldado. Tinha acabado de comer. Meteu a mão:no
bolso para pagar a despesa. Perguntava à Sra. Blidot:
Quanto he devo?
A boa senhora reparou que o soldado tinha apenas
uma moeda de um franco. Calculou rapidamente e
respondeu:
- Deve-metrintacêntimos.
O viajante suspirou aliviado. Sorriu:
Que bom! Pensei que meu dinheiro não che
gasse.
Já ia-se levantando quando Elfy Ihe trouxe
fi
A CASA DO .ANJO DA GUARDA 93

xÁcara com café, por ordem do general. O soldado pro-


testou, assustado:
Não pedi café!
Elfy respondeu sorridente:
- Eu sei. É depraxenestacasa,servirgratuita-
mente cafezinho aos soldados.
O homem tou-a comovido e agradeceu:
Nunca me esquecerei do Anjo da Guarda que
ata tão bem a seus hóspedes.
O general aproximou-se, curioso:
Para onde vai, meu amigo?
Muito admirado, o viajante respondeu:
Vou a Bagnols, para uma estação de águas.
O general alegrou-se:
Que bom! Eu também devo ir lá. Talvez nos
enconttemos no trem. Pretendo tomar a diligência de
amanhã para chegar à estação da estrada de ferro ama-
nhã mesmo!
O soldado levantou-se respeitoso, porém reserva-
do. Despediu-se:
- Precisoir-me. Muitoobrigadopor suaaten-
ção. Espero ter o prazer de encontrá-lo em Bagnols.
Quando ia saindo, deu de encontro com Jacques
e Paulo que vinham entrando. Estremeceu e parou.
Seus olhos xaram-se em Jacques, que nem reparou
nêle. O menino dirigiu-se à Sra. Blidot.
Mamãe! Veja a boa nota que o vigário me deu!
O soldado suspirou e seguiu seu caminho, sem
olhar para trás. Ninguém pensava mais nele, dentro do
hotel Anjo da Guarda. Moutiere Elfy estavam muito
tristes com a perspectiva da partida próxima. O general
cuidava de arrumar suas coisas. A Sra. Blidot atendir
fi
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