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a CASA do
ANJO da GUARDA
A CASA
DO
ANJO DA GUARDA
Adaptação
de
VIRGÍNIA LEFÈVRE
EDITORA DO BRASIL S. A.
Rua Conselheiro Nébias, 887
São Paulo
I
Fazia frio. Estava escuro. A chuva ninha caía
insistentemente. Duas crianças dormiam à beira do
caminho, debaixo dum velho carvalho, muito copado.
Um menino, de três anos, estava deitado num monte
de folhas. O outro, de uns seis anos, acomodara-se ao
lado do pequenino para esquentar-lhe os pés. O
zinho yestia uma roupa de lã surrada, mas quentinha.
Seus ombros e seu peito estavam cobertos com o casaco
do menino de seis anos, que tremia de frio mesmo a
dormir. De vez em quando seu corpo se agitava todo,
num grande arrepio. Suas vestes constavam duma sim-
ples calça e duma camisa muito usada. A sionomia
do garoto exprimia sofrimento. Via-se-Ihe ainda uma
lágrima na cova do rosto emagrecido. Porém dormia
profundamente, segurando uma pequena medalha que
lhe pendia do pescoço, presa a uma ta preta. A outra
mão apertava a do garotinho mais novo, decerto com
a intenção de aquecê-la. Os dois meninos pareciam-se
muito. Deviam ser irmãos. A diferença estava em que
menorzinho tinha os lábios rosados e sorridentes.
Não deveria ter sofrido tanto frio e tanta fome quanto
seu irmão mais velho.
As duas crianças dormiam ainda quando, ao raiar
do dia, passou por ali um homem acompanhado de um
belo cão de São Bernardo.
O homem parecia militar. Passava marchando, a
assobiar, sem olhar nem para a direita nem para a es-
querda. O cão seguia-o rente aos seus calcanhares.
Quando se aproximavam das crianças adormecidas, o
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8 CONDÉSS A DE SLGUR
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10 CONDÉSSA DE SÉGUR
O menino sorriu, palidamente, a tmando:
Sou grande. Não faz mal. Ele é pequeno.
Costuma chorar quando sente frio e fome.
O homem indagou:
Por que estão vocês sozinhos aqui?
O garoto contou, com simplicidade:
Mamãe morreu. Os soldados levaram papai.
Não temos mais casa. Não temnos mais ninguém.
Por que os soldados levaram seu pai?
Não sei. Acho que foi para lhe dar pão. Não
havia mnais nenhum em casa.
Quem dá de comer a vocês?
Quem quiser.
Dão o su ciente ?
Nem sempre. O Paulo sempre comne bastante.
E você?
Eu? Eu não preciso comer muito. Sou grande.
O homem tinha bom coração. Ficou muito im-
pressionado com a dedicação do menino pelo itmão-
zinho. Decidiu levar os dois até a aldeia próxima. Pen-
sou: Hei de encontrar uma boa alma que tome conta
destas crianças, pelo menos até eu voltar. Talvez que
o pai apareça". Indagou:
Como é que você se chama?
Eu me chamo Jacques. Meu irmão é Paulo.
Você quer vir comigo?
Eo Paulo?
Paulo também. Não vou separá-lo de você.
Acorde-o. Vamos seguir.
Jacques hesitou:
Mas Paulo está cansado. Não poderá andar
tão depressa quanto o senhor.
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 11
O homem a rmou:
- Você vai ver! VouacomodaroPaulonas
costas do Capitão.
O viajante ergueu nos braços o mnenino adorme-
cido e sentou-o à cavalo nas costas do animal, com a
cabecinha apoiada no pescoço do Capitão. Depois tirou
o casaco que vestia por cima do uniforme militar e com
este enrolou o garotinho, de modo a evitar que caísse
para o lado. Dirigiu-se a Jacques:
- Aqui tem o seu paletó. Vista-o. Você está
tremendo de frio. E agota toca a andar.
Jacques tentou levantar-se, mas não conseguiu.
Sentiu as pernas bambas. Compreendeu que não pode-
ria andar. Seus olhos encheram-se de lágrimas. O ho-
mem perguntou:
O que é que você tem? Por que está cho-
rando?
Jacques confessou:
Estou sem forças. Não posso mais andar.
Você estáá doente?
- Não. Estoucommuitafome. Desdeontem
que não como nada. Guardei o pão para o Paulo
O homem também cou com os olhos cheios
dágua. Tirou do alforje um bom pedaço de pão com
queijo e deu-o ao Jacques, enquanto ia desarrolhando
uma garrafa com cidra. Os olhos do menino brilharam.
la mordendo o pão, mas olhou para o irmão e parou.
Indagou:
E Paulo? Não come nada. Vou guardar isto
para ele.
O homem sossegou-o:
- TenhoumpedaçoparaoPaulo. Podecomer.
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12 COND£SS A DE SÉGU R
II
Moutier repetiu, ao bater à porta do albergue:
- Há lugarparamim, parameusgarotose meu
cão?
Uma voz simpática e animada respondeu:
Pode entrar. Aqui há lugar para todos.
A porta, apareceu uma senhora ainda moça, to-
da sorridente e amável. Pediu:
Deixe-mne desembaraçá-lo de sua carga.
E com um gesto ligeiro tirou Jacques dos ombros
de Moutier. Olhou para o lado e suspirou:
Coitadinho do menino! Dormindo nas cos-
tas do cão! Que criança bonita! E que cachorro inteli-
gente! Nem se mexe, para não acordar o garotinho.
Paulinho acordou com a conversa. Abriu os gran-
des olhos, muito admirado. Sonolento ainda, não viu
o irmão. Choramingou:
- Jacques!QuerooJacques!
Jacques cotreu para ele.
- Estou aqui, Paulo. Tudo vai bem. Este se-
nhor nos trouxe. Vamos tomar uma boa sopa.
Jacques voltou-se para Moutier, perguntando:
- Não éverdadeque vai dar um prato desopa
ao Paulo?
O soldado aquiesceu:
- É, sim. Vão tomar sopa e tudo o mais que
quiserem.
A hoteleira olhava para eles, muito admirada.
Moutier explicou-lhe:
Encontrei estes dois garotinhos perdidos e
trouxe-os comigo. Jacques é um menino extraordinário.
1f CONDÉSSA DE SÉG UR
III
A Sra. Blidot chamou sua irmã Elfy, que estava
lavando roupa. Contou-Ihe o que acabava de suceder e
pediu-lhe que viesse ajudá-la a preparar acomodações
para as crianças num quarto vizinho a0 delas. Elfy cou
muito contente. Disse:
E Deus que nos mant res meninos. Crian-
ças era o que faltava nesta casa. Eles são bem educados?
A Sra. Blidot garantiu, com entusiasmo:
- Sãounsamores! Nãovãodar-nostrabalho.
- Onde estão eles? Quero vê-los e julgá-los
com meus próprios olhos.
Mandei-os brincar no quintal.
Elfy correu para o quintal. Lá encontrou Jacques
Ocupado em arrancar o matinho de um canteiro de
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 21
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22 COND ÉSSA DE SÉGUR
cenouras. Paulo juntava cuidadosamente os tufos de
mato, procurando fazer um feixe.
Ao som dos passos de Elfy os dois meninos se vol-
taram, mostrando os rostinhos meigos e risonhos. A
moça cou parada, sem dar uma palavra. Jacques in-
terpretou mal aquele silêncio. Falou:
Acho que não estamos fazendo mal! A se-
nhora está zangada? A culpa é minha. Fui eu quem
disse para o Paulo fazer um feixe do matinho.
Elfy sossegou-o:
Não há mal nenhum, meu bem. Não estou
zangada. Até estou muito contente por vocês arranca-
rem o mato do meu quintal.
Paulo indagou:
Este quintal é seu?
Elfy a rmou:
– Ésim.
Paulo indignou-se:
Não acredito. Não é seu. É daquela senho
ra que estava na cozinha e que nos deu sopa. Não que-
ro que tomem o quintal dela.
Elfy deu uma boa risada.
- Quemenino
engraçado! O que fará você pa-
ra eu não tirar verduras da horta?
Paulo declarou, muito decidido:
Pego num pau e peço para Jacques me ajudar
a expulsar a senhora!
Elfy correu para a criança e beijou-a efusivamen-
te. Explicou:
- Soua irmã dasenhoraquelhes deusopa. Eu
moro com ela. O quintal dela também é meu.
Jacques alegrou-se:
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 23
IV
Não havia ninguém na sala quando Moutier entrou.
Examinou o aposento e foi para o quintal. Passeou por
ali, contemplando as ores e as hortaliças. Chegou a um
caramanchão de hera. Entrou. Lá havia um banco e
uma mesa rústica coberta de livros. Leu-Ihes os títulos:
Imitação de Cristo, Novo Testamento, 0 Cozinbeiro
Perfeito, Manual das Donas de Casa, Memórias dum
Soldado. Sorriu, pensando: “São estes exatamente os
ivros que eu gostaria de encontrar em casa duma hote-
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28 COND ÈSSA DE SÉGUR
leira. Inspiram con ança na pessoa que os lê. Bem sei
eu quanto vale um bom livro! No quartel, o pior inimigo
éo tédio. Uma boa leitura ajuda-nos a vencê-lo. Aben-
çoados sejam aqueles que escrevem livros'".
Assim re etindo, Moutier se pôs a folhear distrai-
damente as Memórias dum Soldado. Sua atenção xou-
-se numa página, depois em outra e em mais outra. De
pé, próximo à mesa, afundou-se na leitura, sem dar fé
no tempo que passava. Nem percebeu quando a Sra.
Blidot e Elfy chegaram à sua procura.
A Sra. Blidot exclamou, triunfante:
- Cáestáele! E imóvelcomoumaestátua!
Elfy deu uma risada, comentando:
- Teriamorrido? Ouestarádormindoempé?
A Sra. Blidot acrescentou:
- Êleestásurdo.
Elfy aconselhou:
Chame-o com voz mais alta.
A Sra. Blidot obedeceu, aproximando-se um
pouco mais:
- Sr.Moutier! Ojantarestápronto.
Moutier ergueu os olhos do livro e passou a mão
pela testa, com uma expressão de espanto. Desculpou-se:
Não ouvi quando chegaram. Estava tão entre-
tido com o meu livro... Aliás, seu livro. Como é
interessante!
A Sra. Blidot ofereceu:
- Pode car com o livro paraacabarde lê-lo.
O Vigário me dará outro exemplar.
Moutier alegrou-se.
- Aceitocommuitogosto. Vou lê-lo em sua
intenção e espero tornar-me melhor.
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 29
A hoteleiraobtemperou:
O senhor já parece ser muito bom. Mas o prin-
cipal é que o jantar está pronto há quase duas horas.
As crianças devem estar com fome. Eo senhor também
não achará mau mastigar alguma coisa, não é mesmo?
Moutier concordou:
E verdade. O almoço que comi já vai longe e
não poderá prejudicar o jantar.
Só então a Sra. Blidot apresentou Elfy a Moutier.
Os três dirigiram-se para o interior da casa, conversando.
Os meninos já os esperavam na sala de jantar. Jacques
esforçava-se por evitar que Paulo tocasse nos pratos.
Pedia:
Não mexa em nada, Paulo. Isto não ca bem.
O pequenito protestava:
Mas estou com fome! Quero comer!
Jacques insistia:
Espere mais um pouco. O st. Moutier não
tardará a chegar com as duas senhoras.
Falta muito?
Não! Olhe! Eles já vêm chegando.
Sentaram-se todos à mesa. Jacques, como sempre,
teve o cuidado de ajudar o irmãozinho e acomodou-se
ao lado dele, para servi-lo. Moutier elogiou efusivamente
a deliciosa sopa de repolho. Terminada a sopa, Elfy
dispôs-se a levantar-se para ir buscar o assado e o feijão.
Moutier não deixou:
Desculpe-me, senhorita, são os cavalheiros que
devem servir as damas.
Elfy hesitou. A Sra. Blidot concordou com um
sorriso:
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30 CONDÉSSA D SÉGUR
-
É como o Paulo e eu. Por que não pede à bon-
dosa Virgem Maria para ajudá-lo?
fazer.
Eo que costumo
O menino respondeu:
Não a conheço. Năo sei onde mora.
Jacques confessou:
Também não sei, mas isto não faz mal. Pode
pedir que ela o ouvirá.
O menino disse:
Seria muito bom, mas meu patrão pode ouvir:
Jacques explicou:
- Não é precisofalar alto. Digabaixinho:
Virgem Maria, venha ajudar-me, a senhora que é a
protetora dos a itos".
O outro repetiu palavra por palavra e cou espe-
rando um pouco. Depois decidiu:
É melhor eu cuidar do meu serviço. Não apa-
receu ninguém.
Jacques sugeriu:
Posso ajudar. Nós dois puxaremos o saco. A
Virgem Maria não costuma vir muito depressa, mas
nunca falha.
Jacques começou a arrastar o saco com quantas
forças tinha. O resultado foi que o pano se rasgou e os
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32 COND £SSA DE StGUR
pedaços de carvāo começaram a sair pelos buracos.
Os meninos pararam, muito consternados. Mas o Jac-
ques não perdia a cabeça por tão pouco. Lembrou-se:
Vou chamar o Sr. Moutier. Foi ele que apa-
teceu para nos ajudar, quando eu pedi auxílio à Vir-
gem Maria. Venha, Paulo. Vamos depressa. Você
que esperando aí.
Jacques e Paulo afastaram-se o mais depressa que
podiam. Quando chegaram à casa da Sra. Blidot, encon-
raram Moutier fumando, em companhia de outros via-
jantes.
Jecques pediu:
Venha conosco, Sr. Moutier. É para ajudar
um pobre menino que não consegue carregar um saco
de carvão. O patrão dele vai dar-lhe uma sutra, por
ausa disto. A Virgem Maria é quem manda o senhor
ir lá!
Moutier levantou-se, sorrindo. Perguntou:
- Onde foi que você viu a Virgem Maria para
me mandar seus recados?
Jacques não se atrapalhou:
Eu não a vi, mas sinto-a no meu coração.
senhor bem sabe que foi ela quem o mandou para socor-
rer-nos, a mim e ao Paulo. O senhor precisa ajudar tam-
bém aquele infeliz.
Pois então mostte-me o caminho. Vamos an-
dando.
Antes de sair, Moutier pediu a Elfy que casse com
Paulo que não podia andar depressa. Jacques e o solda-
do sairam correndo e num instante chegaram onde es-
tava Torchonnet. Moutier reconheceu-o emediatamente.
Era o bode-expiatório do malvado hoteleiro Bournier.
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 33
Moutier compadeceu-se:
Pobre pequeno! Vá ao albergue do Anjo da
Guarda. Lá a patroa lhe dará de comer.
O menino protestou, cheio de medo:
- Nãoposso! Meupatrãomemataria. Eleodeia
a Sra. Blidot.
Moutier concluiu:
Então só há um remédio! Eu lhe trarei co
mida hoje. O pequeno Jacques se encarregará disto nos
outros dias. Que tal, Jacques?
Este concordou animadamente:
Otimo! Guardarei sempre um pouco do meu
almoçoparaele. Mas. . tenhomedodo patrãodele!
Como havemos de fazer?
Torchonnet sugeriu:
Podem deixar o embrulho com comida no oco
da árvore que ca perto do poço. Vou sempre lá, para
buscar água.
Moutier disse:
- Entãoestamos
combinados.Daqui aquinze
minutos, você pode ir até o poço. O pacote já estará na
árvore. Vamo-nos embora depressa, antes que Bournier
nos veja aqui.
Moutiere Jacques contaram a triste história para
a Sra. Blidot, que logo se interessou pelo caso. O solda-
do quis pagar à boa hoteleira mais esta despesa extraor-
dinária, mas a caridosa senhora não aceitou. Ela mesma
preparou um lanche de pão com carne e deu-o a Jacques,
recomendando:
- Vádepressalevar isto para o pobremenino.
Não quero que ele vá dormir com o estomago vazio.
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COND&SSA DI SEGU R
Jacques obedeceu prontamente. Ainda viu quan-
do o infeliz Torchonnet chegou com a vasilha para car-
regar água. Ficou a observálo de longe. Viu o coita-
dinho abrir sofregamente o embrulho e devorar o pão e
a carne em três tempos, enquanto a vasilha ia-se enchen-
do de água. De longe mesmo, Torchonnet fez um sinal
de amizade e agradecimento ao pequeno Jacques.
V
O tempo passou-se muito agradávelmente para
todos os habitantes do Anjo da Guarda. Os meninos
brincaram, comeram e foram dormir, bastante cansados.
Moutier cou na sala, ajudando as duas irmās a servir
os raros viajantes que ali paravam para um descanso.
Depois que as crianças já estavam dormindo, Moutier
foi conversar com as duas senhoras a propósito do que
convinha fazer com os dois pequenos abandonados.
Moutier contou-Ihes:
- Peloque medisseJacques,o pai delesainda
está vivo. Mas como podemos encontrá-lo? Nem se-
quer sabemos seu nome ou onde morava quando os sol-
dados foram buscá-lo. Talvez esteja preso. Talvez seja
melhor para as crianças não conheceremo pai. De qual-
quer maneira, amanhã irei fazer a minha declaração no
cartório, antes de continuar a viagem. Se o juiz de paz
vier interrogá-las, digam-Ihe simplesmente a verdade.
Vou deixar-Ihes meu endereço para o caso de precisa-
rem comunica-se comnigo.
A Sra. Blidot pediu:
- Nãodeixe de virvisitar-nos. Estascrianças
pertencem mais ao senhor do que a nós.
O soldado sorriu, confessando:
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 31
- Eu cariabematrapalhadoseconservasseos
garotinhos comigo. Aqui eles carão muito bem. E,
agora, se me dão licença, eu gostaria de ir repousar.
Preciso levantar-me muito cedo, amanhã.
A Sra. Blidot apressou-se em dizer:
Seu quarto já está preparado. É aqui perto
da cozinha e dá para o quintal. Minha irmã e eu dor-
mimos lá emcima. Ẽ maisseguro. Por aqui só h gente
boa, mas se aparecer algum malfeitor.
Moutier interrompeu-a, rindo-se:
- Ele quecaiana tolice deaparecer,enquanto
Capitãoe eu estivermos aqui.
A Sra. Bidot também sorriu. Acendeu uma velae
levou-a ao quarto preparado para Moutier. Logo que
cou sozinho, o soldado acendeu um charuto e se pôs a
fumar, perdido em profundos pensamentos. Depois fez
o sinal-da-cruz e deitou-se, dormindo quase no mesmo
instante, para só acordar no dia seguinte.
Parece que dormiu demais, pois quando despertou,
ouviu a algazarra alegre das crianças e o riso cristalino de
Elfy e da Sra. Blidot. Envergonhado, pulou da cama e
preparou-se à pressa, com a louvável intenção de ajudar
as donas da casa.
Deu com elas a pentear os garotos. Desculpou-se:
Perdoemo meu atraso. No exército a gente set
habitua a levantar cedo, mas, aqui, o alojamentoé bom
demais!
Jacques cumprimentou-o, perguntando:
- Dormiubem?
Moutier riu-se.
- Quepergunta! Vocênãoestávendoqueche
guei a perder a hora?
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38 COND £SS A DE SEGUR
O soldado confessou:
Não sei de nada. Cheguei ontem a esta aldeia.
Despediu-se, deixando a leiteira a resmungar sozi-
nha, muito admirada por a Sra. Blidot tomar como em-
pregado um militar. Moutier ria-se muito, pensando no
ar espantado da boa mulher. Quando entregouo leite
a Elfy, preveniu-a:
Aposto como vão receber a visita da mulher
da leiteria.
Elfy admirou-se:
- Porquê?
Moutier explicou:
Ela cou muito admirada quando eu disse que
trabalhava aqui. Com toda a certeza virá saber outras
novidades.
Elfy indignou-se:
Como é que diz um absurdo destes?
Ele fez um ar inocente, revidando:
Mas é a pura verdade. Então não estou a seu
serviço?
Ela deu um muxÔxO:
O senhor me confunde com suas brincadeiras.
Moutier protestou:
– Não há motivo para isto. Se estou brincando
é porque me sinto contente. E que sabendo que isto
não acontece sempre. Um pobre soldado que vive longe
da pátria, sozinho no mundo, bem merece umas horas
de alegriae boa amizade. Peço-lhe que me desculpe se a
contrariei. Não que zangada comigo.
Elfy sorriu para ele.
Eu que devo desculpar-me por ter ralhado
com o senhor. Mas é muito ridícula a idéia de o ter-
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42 COND £ SSA DE SÉGU R
mos como nosso empregado. Os outros decerto vão
caçoarde nós...•
Moutier interrompeu-a:
Tem razão. Quer que eu vá falar com a mulher
de leiteria?
ASra. Blidot interveio:
Não é preciso. Não dê importância às crian-
de Elfy. Ela estáabusandode sua gentileza.
Moutier protestou vivamente:
Não diga isto!
Virou-se para Elfy, perguntando:
Há mais serviço para mim?
A moça, risonha e muito corada, aquiesceu:
Venha ajudar-me a fazer o café e a ferver o
leite.
Terminada a primeira refeição, Moutier dirigiu-se
ao cartório, enquanto as crianças iam brincar no quintal
e as donas da casa se ocupavam dos serviços domésticos.
O tempo passou muito depressa. Moutier almoçou
os meninos e as duas irmās. Pediu o conta, pois era
chegada a hora de partir. A Sra. Blidot não lhe quis co-
brar coisa alguma. Separaram-se muito amigos, com
uma grande e antecipada saudade. Jacques não pôde
deixar de chorar quando abraçou seu protetor. Quanto
a Paulo, custou-Ihe desprender-se do pescoço de Capi-
tão, que he lambia o rosto, numa demonstração de
afeto. Os dois meninos sentiram-se muito gratos
valoroso animal que os tinha salvo.
Moutier estava sério e triste. Apressou as despe-
didas e afastou-se a passos largos, sem olhar para trás.
Os dois garotinhos não saíram da soleira da porta en-
quanto não o perderam de vista. Depois que Moutier
A CASA DO ANJO DA GUA RDA 43
VI
Já havia três anos que os meninos estavam em casa
da Sra. Blidot. A amizade que os unia era cada vez
maior. Todos os conhecidos admiravam a profunda
dedicação de Jacques pelo irmãozinho. Paulo, por sua
vez, retribuía com desvêlo tão grande afeição. Elfy tam-
bém era adorada por eles. Toda a família falava com
saudades do bondoso Moutier. Dele não havia notícias.
Durante os primeiros meses, tinha aparecido no Anjo da
Guarda, acompanhado pelo seu el Capitão. Também
escrevera algumas cartas. Depois avisou que ia para a
guerra, fora da pátria. Soube-se que fora para a Criméia,
mas não se soube se estava vivO ou morto. A guerra na
Criméia cobrira de glórias a França, mas também tinha
levado luto e lágrimas a muitos lares. O que teria
tecido a Moutier?
Un belo dia, quando Jacques e Paulo varriam
frente da casa e as duas senhoras estavam ocupadas pre
parandoo almoço, surgiu um homem, furtivamente e,
sem que Paulo percebesse, tirou-lhe a vassoura da mão.
Este gritou assustado:
Jacques! Tiraram minha vassoura!
Jacques voltou-se prontamente. Ao olhar para o
homem deu um grito de alegria e lançou-se-lhe nos bra-
Ços, berrando:
Mamãe! Tia Elfy! Chegou o Sr. Moutier!
As duas apareceram imediatamente para cumpri-
entar o querido amigo. Foi um momento de indescrití-
vel alegria. Todos alavam ao mesmo tempo, fazendo-se
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46 CONDÉSS A DE SÉGUR
Elfy alegrou-se:
- Que bom! E quando foi promovido?
Jacques pediu:
Conte-nos por que foi promovido?
Moutier não gostava de falar de si mesmo. Re:
sumiu:
Apenas cumpri o meu dever, como tantos ou-
tros o zeram. Tive a felicidade de salvar a vida de meu
coronel, quanto tombou ferido. Lutei contra um bando
de russos. Estes fugiram gritando: "Tchiorte! Tchior-
te!"" que quer dizer diabo. Em Alma salvei o coronel e
fui promovido a cabo. Em Inkermann tomei um canhão
dos russos e passei a sargento. Em Traktir ganhei a me-
dalha. Aconteceu que o tenente morreue tomei o co-
mando, ainda com muita sorte. Mas... falemos de
outrascoisas. A senhorita Elfy está com os olhos cheios
de lágrimas.
Elfy explicou-se:
Sinto-me comovida diante de sua modéstia.
Jacques não quis que mudassem de assunto antes
de sabero que fora feito ảo general que Moutier tinha
aprisionado. Este contou:
-0general e eu estivemos às portas da morte.
Ele cou muito meu amigo. Estivemos juntos no Hos-
pital, em Marselha, e éle fez questão que eu casse no
mesmo quarto, com todas as regalias. O médico prescre-
veu-nos uma estaçāo de águas. O general cou em Paris,
tratando duns negócios. Eu preferi fazer a jornada a pé
até aqui, em vez de esperar por ele. Queria vê-los antes
de imos para a estação de águas, onde deverei encon-
trar-me com o general. Vocês são a minha família. Não
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50 CONDÉSSA DE SÉGUR
tenho vontade de sair desta casa, onde me sinto tão
estimado.
A Sra. Blidot a rmou, sorridente:
Nós também não queremos que saia daqui:
Não €, Elfy?
A môça assentiu:
-É Éverdade. Nós todosansiávamospor sua
volta.
Moutier agradeceu, muito comovidoe perguntou:
- la-me
esquecendodoTorchonnet.Que foi
feito dele?
Jacques respondeu:
- Coitado! Continuafazendoa vidadecachor:
to. Há três dias que não o vejo. Não sei que lhe acon-
Soubemos que chegou um hóspede muito rico ao
Hotel do Bournier. Eu vi a carruagem do homem! E
mesmo de luxo. Com certeza Torchonnet anda muito
ocupado.
Moutier sugeriu:
- Iremosláparasaberqueaconteceu. Tomare
mos cuidado a m de que o inimigo não nos surpreenda.
-O hoteleiroaindanãovoltou.Soubemosque o
hóspede rico já partiu. Vimos a carruagem sair.
Paulo lembrou-se:
- QuefoifeitodeCapitão?
O militar entristeceu-se:
-Capitão morreu como herói, no cerco de Se
bastopol. Uma granada arrancou-Ihea cabeça, enquanto
fazia sentinela comigo, numa temperatura de vinte graus
abaixo de zero.
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 51
VII
A tarde passou-se em conversas e passeios. Evi
taram cuidadadosamente passar pelo hotel do malvado
Bournier. Depois do jantar, quando já estava escure-
cendo, Moutier e Jacques dirigiram-se para aqueles la-
dos, como propósito de obter notícias de Torchonnet.
Deram uma volta bem grande e foram sair nos fundos
do hotel. Tudo era silêncio e escuridão. As portas es-
tavam fechadas. Não havia possibilidade de entrar.
Moutiere Jacques estavam estudando um meio de che-
gar até Torchonnet quando uma porta se abriu. Um
homem saía de lá furtivamente, sem fazer barulho. A
luz da lanterna furta-fogo, Moutier reconheceu o hote-
leiro. Dirigia-se para o depósito de carvão. Abriu a
porta com muita precaução e entrou. O soldado e Jac-
ques aproximaram-se na sombra e ouviramo que ele
dizia lá dentro, em voz rude, porém velada:
- Está aqui o seu jantar. O estrangeiro já se
foi. Amanhã você recomeçará a trabalhar. Se abrir a
boca para contar alguma coisa do que viu e ouviu, que-
bro-lhe os ossos. Compreendeu, animal?
A voz trêmula de Torchonnet respondeu:
- Sim,patrão.
O hoteleiro tornou a sair, fechou a porta e voltou
para dentro de casa.
Moutier deixou passar algum tempo. Depois falou
a, Jacques em voz baixa:
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52 CONDESSA DE SÉGUR
Jacques interveio:
-E eu? Estou vivo e vou diariamente à casa
do vigário.
Torchonnet tou-o com surpresa:
- Será
possível?
Moutier explicou:
O caso é que seu patrão tinha todo o interesse
em que você se afastasse do padre. Deixe-se de tolices
e acompanhe-me.
Torchonnet obedeceu de má vontade, andando
atrás de Moutier e Jacques. Quando passaram pela por-
ta do hotel pôde ver o patrão e a mulher bem amarrados.
Seguiram diretamente para a casa do padre. O portão
estava fechado, pois já era tarde. Foi o vigário em pes-
soa quem veio abrir. Reconheceu Moutier.
Boa noite, meu caro Moutier. Quando voltou?
Cheguei hoje de manhã, senhor vigário. Ve-
nho dar-lhe um trabalho de caridade.
– Podedispordemim.
Moutier apontou para Torchonnet e disse:
- Trata-sededarabrigoaestepobremeninopor
algum tempo.
Torchonnet tremia dos pés à cabeça. O padre sor-
tiu, dizendo:
- Até que en m o patrãodeu-lheliberdade.
Deve ser a primeira boa ação que pratica na vida. Nun-
ca consegui aproximar-me deste menino.
Tentou pegar na mão de Torchonnet. Este a reti-
rou bruscamente, com um grito de susto. O sacerdote,
admirou-se:
Que é isto?
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64 COND ÉSSA E SÉGU R
Moutier contou:
- Este tolinho estápensandoque o senhorquer
devorá-lo. Foi o malvado hoteleiro que lhe en ou esta
idéia na cabeça.
O vigário deu uma gostosa gargalhada e observou:
Você daria um mau bocado, magro como
está.
está. ...• Todas as crianças da aldeia freqüentam minha
casa.
Jacques interveio:
Foi exatamente o que lhe disse. Veja, Tor:
chonnet, como não tenho medo do senhor vigário.
Assim dizendo, Jacques tomou a mão do san
homem e beijou-a respeitosamente. Torchonnet olhava
com ávido interesse. Ainda estava com medo, mas já
não tentava fugir.
O sacerdote dirigiu-se a Moutier:
Posso tomar conta do menino, maso que dirá
o patrão dele?
Moutier, em poucas palavras, contou tudo o que
acontecera naquele dia. O vigátio não mais se furtou a
tomar conta de Torchonnet. Chamou sua velha criada
e entregou-Ihe o garôto para que Ihe desse um jantar e
Ihe aprontasse uma boa cama. Depois disse:
- Vou até o hoteldeBournier. Queroconver-
sar um pouco com aquêles infelizes. Até amanhã, Sr.
Moutier. Irei fazer-lhe uma visita no Anjo da Guarda.
Moutier e Jacques, ao chegarem a casa, encontra-
ram a Stra. Blidote Elfy já a itas com a sua demora. A
boa senhora repreendeu-os:
Já é tão tarde! Jacques devia estar dormindo
há muito tempo. Vá depressa, Jacques.
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A CASA DO AN JO DA GUARDA 65
IX
Moutier pôde dormir como um justo, durante a
noite toda, pois o general nem se mexeu. Levantou-se
quando o relógio batia seis horas. O general continuava
ressonando calmamente.
Moutier arrumou sua cama e foi para a cozinha
acendero fogo. Depois varreu a sala e sentou-se numa
cadeira, à espera de que os outros se levantassem. A
primeira que desceu foi a gentil Elfy que lhe deu un
bom dia jovial, dizendo:
Pensei que ainda estivesse dormindo. Ontem
parecia tão cansado!
Moutier respondeu:
O cansaço desapareceu. Estou às suas ordens:
Elfy sorriu:
Quem o ouvir, pensatá que sou uma tỉrana.
Moutier disse:
- Meudesejo€ajudá-la o maispossívela m
de que não se canse.
A môça reparou:
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 67
O general lembrou:
- Nósaindanãotomanoscafé! Estoumortode
fome. Não se esqueçam de que passei dois dias a pão e
água. E não arranjei noiva! Estou com o estômago nas
costas.
A Sra. Blidot respondeu, rindo-se muito:
Sente-se à mesa, general. Está tudo pronto.
Quando Elfy quis servir o café, Moutier não dei-
xou. A moça sorriu para ele, dizendo:
Faça como quiser. Agora você é o senhor.
Ele respondeu meigamente:
Sou um senhor que é escravo.
0 general, atacando uma enormne fatia de pão,
COmentou:
Como eu! Sou um general prisioneiro.
Moutier consolou-o:
Não o será por muito tempo. Logo assinarão
a paz. O senhor poderá voltar para sua terra.
O russo confessou:
- Francamente,nãotenhopressaalguma!
Moutier disse:
Precisa assistir ao nosso casamento.
O general animou-se:
Quero um banquete de arromba! Pagarei to-
das as despesas. E tudo do bom e do melhor! Encomen-
darei as iguarias em Paris. Sou entendido no assunto.
X
Depois de satisfazer o apetite, o general estabele:
ceu grande camaradagem com os meninos. Jacques
levou-o à casa do vigário, para visitar Torchonnet. O
garoto estava transformado. A criada do padre tinha-o
A CASA DO AN JO DA GUA RDA 73
- QueméDourakine?
Sou eu, em pessoa. Em russo, dourake
quer dizer tolo. Que belo nome tenho eu, hem?
Os dois riram-se com gôsto. O general propôs que
fössem ao Anjo da Guarda, fazer uma visita às duas
irmās. Jacques pediu licença para car conversando
com Torchonnet.
Soube que o menino não tỉnha pai nem mãe:
Estava com oito anos quando a mendiga, antes de mor-
rer, o entregou ao malvado Bournier. A mulher contou
que não era mãe de Torchonnet. Tinha-o roubado, por
vingança. Bournier sabia o nome e o endereço dos pais
de Torchonnet. Jacques insistiu em que o menino falas-
se com o vigário. Quem sabe se não poderiam encon-
trar sua família?
Enquanto os meninos conversavam em casa do
pároco, Elfy e a Sra. Blidot recebiam sua visita com
grande prazer. O bondoso sacerdote abençoou a noiva:
Seja feliz, minha lha. Fez uma boa escolha.
Moutier pediu:
- Queroquemeabençoetambém.
Ajoelhou-se respeitosamente para receber a bên-
ção. Antes de levantar-se, pegou na mão de Elfy, bei-
jou-a e jurou que havia de fazer muito feliz a sua meiga
e querida companheira. Foi uma cena comovente.
general protestou:
Arre! Estamos todos quase chorando! O mo'
mento nāo é para lágrimas!
Moutier falou, comovido:
Também se chora de alegria, meu general. E
é ao senhor que devo esta grande felicidade.
Os dois se abraçaram. O general, comovidíssimo,
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A CASA DO ANJO DA GUAR DA 75
XI
O general concordou. Foi para um canto da sala
com Jacques e Paulo e começou a fazer planos para
banquete. Só mesmo as crianças poderiam dar atenção
à descrição dos pratos complicados e saborosos que ele
pretendia encomendar. Faziam-he mil perguntas a que
ele respondia ora com entusiasmo, ora com impaciência.
A nal, os meninos se cansaram do assunto e foramn brin-
car no jardim.
Aquele dia se passou muito agradavelmente.
Váios viajantes passaram pela hospedaria, uns para
almoçar, outros apenas para tomar um refresco. Jacques,
sempre ativo e atencioso, ajudava a servir comn muita
perfeição. O general divertia-se apreciando o movimen-
to. Os viajantes tomavam-no por um criador de gado.
O general achava muita graça naquilo e conversava com
les como se fôsse realmente um negociante de bois e
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 77
-0 senhorbemsabeque sósentireifalta de
José.
Em vez de zangar-se com a, rude franqueza, o mi-
litar aprovou:
Muito bem! Sua franqueza merece uma re-
compensa. Vou dar-lhe um relógio com uma corrente
e mais um broche e um par de brincos.
Elfy protestou contra tamanha generosidade, mas
o general não admitia réplicas. Dirigiu-se a Moutier:
Meu amigo, acho conveniente irmos até o
hotel buscar a minha bagagem.
E os dois saíram imediatanmente.
No hotel só
XII
encontraram o escrivão da polícia:
Moutier explicou-lbhe porque o general lá estava. O es-
crivão opộs certas di culdades, dizendo que não conhe-
cia o general. O russo cou furioso, esbravejando:
Por quem me toma o senhor? Pensa que sou
algum ladrão? Tenho o direito de yir buscar o
pertence.
Tudo se harmonizou quando o general apresentou
uma lista de suas coisas e deu uma gorjeta ao escrupu-
loso escrivão. Daí a pouco, os dois amigos chegaram ao
Anjo da Guarda com a bagagem do general. Este cha-
mou Jacques e Paulo a seu guarto a m de mostrar-Ihes
as belas coisas que trazia na arca. Não era para admirar
que Bournier tivesse tentado roubá-lo.
Jacques e Paulo batiam palmas e davam gritinhos
de alegria diante de tantas preciosidades. Extasiaram-se
especialmente diante dos relógios. O general separou
um, colocou-o num estôjo e disse:
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 79
80 CONDESSA DE SEGUR
- Esteéparatia Elfy.
Separou mais dois menores e, baixando a voz,
Contou:
Estes são para vocês. Moutier vai dá-los.
Jacques interrompeu-o:
Mas é o senhor quem nos dá os relógios!
O general ralhou:
- Não me interrompa! Quem Ihe dá osrelógios
é Moutier. É feio contradizer os mais velhos.
Jacques sorriu para ele, dizendo:
- Mas é mais feio ainda nãoagtadecerum pre-
sente tão bonito.
E antes que o general pudesse defender-se, os dois
gatotos beijaram-lhe as mãos, cheios de gratidão. Ele
chamou:
- Moutier!Venhacá!
Moutier entrou muito assustado. O general,fu
tioso, desabafou:
Estes garotos fazem-se de bobos! Duvidamn
de mim!
Jacques, todo risonho, agradeceu irónicamente:
Prezado amigo Moutier, muito obrigado pelo
rclógio de ouro.
Moutier estava estupefato. Balbuciou:
Relógio de ouro! Não entendo!
O general esbravejou:
Saiam do quarto, insolentes! Quero car
sozinho com Moutier.
Empurrou os meninos para fora e fechou a porta
com (estrondo. Moutier não conseguia compreender o
que se passava. O general tou-o com ar severo e disse:
Sou seu superior! T'em que me obedecer. Aqui
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A CASA DO ANJO DA GUARDA 81
XIV
Quando se reuniram à mesa, para o almöço, Elfy
notou que o general tinha um olhar malicioso. Estava
tramando alguma coisa.
No m da refeição, ele disse:
Amanhã vai ser um dia triste para você, Elfy.
Ela perguntou meio assustada:
Por quê?
Moutier e eu vamos partir.
Amanhā? Por que tanta pressa?
Já zemos o nosso depoimnento. Chegou o
tempo de irmos para a estação de águas.
Elfy calou-se, muito triste. Moutier consolou-a:
Já que temos que i, o melhor é ir logo.
O general insinuou:
Por que não vem conosco, Elfy?
- Queidéiaabsurda,
general!
Elfy levantou-se da mesa e saiu meio zangada.
O general ria-se a valer. Disse a Moutier:
- VáchamarElfy. Estouvingandodapeçaque
ne pregou. Diga-Ihe que partiremos quando ela quiser.
Moutier obedeceu e daí a pouco voltava com
noivinha, agora, alegre e satisfeita. Num ímpeto de
ternura abraçou o general. Chegou a vez deste levantar-
se da mesa, muito comnovido, com os olhos rasos de
pranto. Paulo perguntou, espantado:
Por que o pobre general está chorando?
Jacques explicou:
Ele não quer deixar-nos.
Quando o general reapareceu, Paulo correu para
ele. Pediu:
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88 CONDÉSSA DE SÉGUR
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A CASA DO ANJO DA GUA RDA 89