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O General Dourakine

Condessa de Ségur.
Editorial Publica, Lisboa, 1984.
Juvenil.
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Avenida Poeta Mistral, 6-B -1000 Lisboa
Dezembro de 1984
Depósito Legal 404484
Ilustrações de JOBBÉ-DUVAL Capa de MARCEL MARLIER

À MINHA NETA
JEANNE DE PITRAY
Minha querida Joaninha: ofereço-te a minha décima obra porque tu
és a minha décima neta, o que não quer dizer também que tenhas o
décimo lugar no meu coração. Quanto a isso, vocês estão todas em
primeiro lugar, porque são todas umas meninas muito boas e
amáveis.
Os teus irmãos Tiago e Paulo serviram-me de modelo na Pousada do
Anjo da Guarda para Tiago e Paulo Derigny. As circunstâncias da
sua vida são diferentes, mas as qualidades morais que possuem são
as mesmas. Quando fores mais crescida, talvez me sirvas também de
modelo para um novo livro, em que encontrarás uma encantadora
Joaninha.
Tua avó,
CONDESSA DE SÉGUR
(Rosto pchine )

1. De Loumigny a Gromiline
O general Dourakine partira para a Rússia, acompanhado por
Derigny, sua mulher e filhos, como vimos na Pousada do Anjo da
Guarda.
Passados os primeiros momentos, em que o desgosto de se separarem
de Elfy e Moutier lhes causara sincera tristeza, todos se sentiam
en cantados com aquela viagem, até mesmo a Sr.a Derigny, que
viajava com as crianças noutra carruagem.
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Por seu lado, Dourakine, embora levasse saudades dos seus jovens
amigos, a quem tão generosamente protegera, estava contentíssimo
com a ideia de voltar à sua terra.
Já não era um prisioneiro, regressava à Rússia, sua querida
Pátria, levava consigo uma família simpática que lhe devia a
felicidade, que mais poderia desejar?
A sua alegria era tal, que chegava a divertir os pequenos.
Demoraram-se pouco em Paris; na Alemanha nem pararam; tiveram de
ficar uma semana em Sampetersburgo, cujo aspecto majestoso,
regular e severo não agradou a nenhum dos companheiros do velho
general. Estiveram dois dias em Moscovo, que lhes despertou
curiosidade e admiração. Gostariam até de se demorar mais nesta
cidade, mas o general estava impaciente por chegar antes dos
grandes frios a Gromiline, sua terra, que ficava perto de
Smolensko. Como não havia caminho-de-ferro, viajaram todos na
carruagem, cómoda e espaçosa, que Dourakine trouxera de Loumigny.
Derigny tivera o cuidado de encher a carruagem de provisões e
garrafas de vinho de várias qualidades. Desta maneira, estava
assegurado o bom humor do general.
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Logo que o casal Derigny lhe via a testa enrugada, a boca
contraída ou a cara mais vermelha, oferecia-lhe uma pequena
refeição, enquanto não chegavam à estalagem mais próxima.
Esta inocente habilidade dava sempre resultado. Apesar disso, os
acessos de cólera iam-se tornando mais frequentes; o general
começava a aborrecer-se.
Tinham-se posto a caminho às seis horas da manhã; eram cinco da
tarde e deviam jantar e dormir em Gjatsk, que ficava a meia
distância de Gromiline, onde só chegariam no outro dia entre as
sete e as oito horas da noite.
A Sra Derigny bem tentou distraí-lo, mas, desta vez, não o
conseguiu. O marido fez reflexões agradáveis sobre a Rússia, mas
o general continuou de má catadura.
Por fim, fechou os olhos e adormeceu, com grande satisfação de
todos. As horas iam passando lentamente; o general continuava a
dormir. A Sra Derigny, que ia sentada a seu lado, conservava-se
imóvel, para o não acordar. Em frente deles iam Tiago e Paulo,
que continuavam acordados e. muito aborrecidos. Paulo começou a
bocejar ruidosamente; Tiago, por sua vez, tentava abafar os ah ah
prolongados
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que o irmão soltava, pondo-lhe a mão em frente da boca. A Sr.a
Derigny não pôde deixar de sorrir, mas recomendou-lhes, em voz
baixa, que estivessem quietos e calados. Paulo quis falar o irmão
não deixou por fim, as gargalhadas de Tiago e as próprias
recomendações da Sr. a Derigny acabaram por acordar o general.
- Que vem a ser isto? - exclamou ele. Por que motivo não deixam
este pequeno falar e mexer-se à vontade?
SR DERIGNY - O senhor General estava a dormir, tive receio de que
o acordasse.
GENERAL - E se me acordasse, que mal tinha? Julgam que sou algum
tigre, ou algum papão? Ainda que eu me torne mansinho como um
cordeiro, hão-de estar sempre a tremer com medo de mim! Medo de
quê? Sou algum monstro, algum diabo?
A Sra Derigny olhava, a sorrir, para o general, cujos olhos
brilhavam de cólera mal contida.
SR DERIGNY - Meu bom General, é justo que o incomodemos o menos
possível e que respeitemos o seu sono.
GENERAL - Deixemo-nos dessas coisas! Isso não me interessa. Dize-
me tu, Tiago, porque impedias o teu irmão de falar?
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TIAGO - Porque tinha medo de que o senhor General se zangasse.
Paulo é pequeno e assusta-se quando o vê zangado. E como aqui, na
carruagem, não tem onde se esconder nem pode fugir, tive pena
dele.
Ao ouvir isto, o general fez-se vermelho; as veias incharam-lhe;
os olhos pareciam soltar faíscas. A Sra Derigny esperava já uma
explosão terrível, quando Paulo, que o olhava inquieto, lhe
disse, juntando as mãos:
- Senhor General, não se faça assim tão encarnado, nem ponha lume
nos olhos, que me assusta. Um homem colérico é muito perigoso:
grita, bate, pragueja! Lembra-se de quando bateu ao Torchonet?
Depois até teve vergonha. Quer que lhe dêem alguma coisa para o
distrair? Uma fatia de presunto, ou um pastel, ou um cálice de
vinho? O papá trouxe bastantes provisões.
À medida que Paulo falava, o general ia acalmando; acabou por
sorrir e até rir com vontade. Sentou Paulo nos joelhos, beijou-o
e afagou-lhe a cabeça.
- Pobre pequeno! Tens razão. Sim, meu amigo, é tal qual como tu
dizes; não quero tornar a zangar-me dessa maneira!
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- Como estou contente! - exclamou Paulo. - Isso que o senhor
General diz é verdade? Nunca mais me fará ter medo de si?
Poderemos rir, conversar, mexer as pernas?
GENERAL - Podes, sim, meu rapaz, à vontade. Mas quando me maçares
muito, passarás para o banco do cocheiro, ao pé de teu
paI.
PAULO - Obrigado, senhor General. Foi muito bom dizer-me isso.
Nunca mais terei medo.
GENERAL - Ora aqui está! Ficamos todos contentes. Agora, a única
coisa que me aborrece, é irmos tão devagar. Hé! Derigny, faça
andar esses izvochtchiks; vamos a passo de tartaruga.
DERIGNY - Já lhes disse isso mesmo, meu General mas não me
compreendem.
GENERAL - Chame-lhes dourak, skarei ('). Derigny repetiu com toda
a força as palavras russas que o general acabara de pronunciar; o
cocheiro olhou para ele, surpreendido, levou a mão ao chapéu e
chicoteou os cavalos, que partiram a galope.
() Imbecil, animal, mais depressa!
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- Skarei Skarei - repetia Derigny, quando os cavalos abrandavam a
corrida.
O general esfregava as mãos de contentamento. Com a boa
disposição voltou-lhe o apetite, e Derigny passou a Tiago, pela
janela descida, empadas, presunto, pernas de galinha, bolos,
fruta, uma garrafa de vinho, enfim, uma abundante refeição.
- Obrigado, meu amigo - disse o general, recebendo os petiscos. -
Não se esqueceu de nada! Este pequeno aperitivo já nos permite
esperar pelo jantar.
Entretanto, Derigny de tal forma conseguiu animar o cocheiro, que
chegaram a Gjatsk às sete horas. A estalagem era má canapés
estreitos e duros a servir de camas; dois quartos para cinco
pessoas; um jantar ordinário e, por única iluminação, velas de
sebo.
O general andava de um lado para o outro, com as mãos atrás das
costas. Soprava, furioso, e lançava em redor olhares terríveis.
Derigny nem se atrevia a falar com receio de lhe provocar um
ataque de fúria; mas, para ver se o distraía, começou a conversar
com a mulher.
- O general não pode dormir num canapé
- dizia ela. - E se nós juntássemos dois para lhe arranjar um
leito mais largo?
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O general voltou-se, num acesso de cólera. Derigny, então,
apressou-se a responder:
- Que loucura, Helena! O general, que é um valoroso militar, está
habituado a dormir em camas muito mais estreitas e duras. O
general tem idade e coragem para suportar ainda coisas piores.
O general mudou como por encanto. Tornou-se sorridente e bem
disposto, concordando imediatamente.
- Tem razão, meu caro amigo! As mulheres não fazem ideia do que é
a vida de um militar.
DERIGNY - E, principalmente, a sua, meu General. Mas Helena
preocupa-se tanto com o seu conforto porque é muito sua amiga e
tem pena de o ver mal instalado.
GENERAL - Não se atormente por minha causa, querida amiga. Fico
muito bem assim. Optimamente! Derigny dormirá ao pé de mim,
noutro canapé, e a senhora e os pequenos ficarão no quarto ao
lado. Vamos jantar. Comeremos do que houver. Derigny, mande-me o
meu criado.
Efectivamente, Stépane não tardou a aparecer. O general deu-lhe
ordens em russo e recomendou-lhe que servisse Derigny, a mulher e
os
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filhos, o melhor possível, adivinhando-lhes os desejos se
necessário fosse. E acrescentou:
- Se lhes faltar alguma coisa por culpa tua, mandar-te-ei dar
cinquenta chicotadas quando chegarmos a Gromiline.
- Está muito bem, excelência! - respondeu o criado.
Imediatamente, procurou cumprir as ordens que recebera e preparou
de tal maneira a refeição e tudo quanto dizia respeito a Derigny
e à família, que eles ficaram, afinal, mais comodamente
instalados que o próprio general. Este deu-se por satisfeito com
o modesto jantar e com a cama estreita e rija. Deitou-se vestido
e dormiu, de um sono, até às sete da manhã seguinte.
Como sempre, Derigny foi o primeiro a levantar-se, fazendo
pontualmente tudo o que lhe competia.
A primeira coisa que o general Lhe perguntou, logo que acabou de
tomar o pequeno almoço, foi se Helena e os pequenos já estavam
acordados.
DERIGNY - Estão prontos!
GENERAL - Vão todos tomar o pequeno almoço, e partiremos em
seguida.
DERIGNY - Já comemos. Stépane serviu-nos ainda antes de o meu
General acordar.
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GENERAL - Ah ah ah As cinquenta chicotadas deram bom resultado,
pelo que vejo!
DERIGNY - Quais chicotadas, meu General? Ninguém lhe bateu.
GENERAL - Bem sei, mas prometi-lhas eu, se ele não tratasse bem
de vocês.
DERIGNY - Oh, meu General!
GENERAL - Sim, meu amigo; é assim que nós "ensinamos" os criados.
DERIGNY - Dá-me licença que lhe faça uma pergunta, meu General?
São mais bem servidos assim?
GENERAL - Pelo contrário! Somos pessimamente servidos. Só
conseguimos qualquer coisa à força de pancada.
DERIGNY - Se o meu General me permite falar-lhe com franqueza,
vou dizer-lhe o que penso: eles são maus criados porque não se
dedicam aos patrões, e não se dedicam porque são maltratados.
GENERAL - Ora! Ora! São uns brutos! não compreendem nada!
DERIGNY - Pelo menos compreendem as ameaças e os castigos que
recebem.
GENERAL - O que os faz perceber é o medo.
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DERIGNY - Pois eu tenho a certeza de que compreenderiam também as
boas palavras e as boas maneiras, e acabariam por estimar os
patrões como eu o estimo a si, meu General.
GENERAL - Não faça comparações, meu amigo. Há tanta diferença
como entre o dia e a noite!
DERIGNY - Apenas aparentemente, porque no fundo não somos assim
tão diferentes como o meu General imagina.
GENERAL - É possível. Falaremos nisso mais tarde. Agora o que
interessa é partir depressa. Chame a Helena e os pequenos.
Encontrava-se tudo pronto. Estava um tempo esplêndido e a viagem
prosseguiu o mais agradavelmente possível. Stépane foi à frente,
para preparar tudo. O general ia bem disposto, mas adivinhava-se
que qualquer coisa o preocupava.
Como tinha bom coração, apesar do seu génio terrível, as palavras
de Derigny haviam-no impressionado e, por mais que quisesse, não
podia deixar de pensar nelas. Decidiu voltar a falar sobre o
assunto logo que chegassem a Gromiline. Entretanto, para não
perder a boa disposição, comeu uma asa de galinha e bebeu meia
garrafa de Bordéus.

2. A chegada a Gromiline
Depois de um dia fatigante e aborrecido, chegaram a Gromiline,
eram sete horas da noite.
Apareceram logo muitos homens de grandes barbas, que se
precipitaram para a carruagem e ajudaram o general a descer;
beijaram-lhe as mãos, chamando-Lhe Batiouchka (pai); aproximaram-
se também muitas mulheres e crianças, soltando exclamações de
respeito e alegria. O general agradeceu-Lhes, saudando-as com a
mão e sorrindo-lhes.
Helena Derigny e os pequenos seguiram-no de perto. Quando Derigny
quis tirar da carruagem a bagagem do general, não lho permitiram,
e logo se estenderam muitas mãos para fazerem
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esse trabalho. Derigny não os contrariou, e foi juntar-se ao
pequeno grupo que caminhava por entre mulheres e crianças, que
repetiam em voz baixa: - Frantsousse (franceses) - examinando com
curiosidade a família Derigny.
O general disse-lhes algumas palavras, e logo duas mulheres
correram ao longo de um corredor para onde davam os quartos de
dormir; outras duas dirigiram-se para a cozinha e para a copa.
- Meu amigo - disse o general a Derigny -, acompanhe a sua mulher
e os seus filhos aos quartos que lhes mandei preparar; lá lhes
levarão a ceia. Logo que estejam completamente instalados, diga
que o acompanhem aos meus aposentos, para combinarmos o que
devemos fazer amanhã e nos dias seguintes.
- Às suas ordens, meu General - respondeu Derigny.
As crianças que, à chegada, estavam meio adormecidas, despertaram
ao ouvir tanto ruído e ao ver aquelas caras e aqueles trajos, que
nunca tinham visto.
- É esquisito que todos os homens, aqui, sejam porta-machados! -
disse Paulo.
TIAGO - Não são porta-machados, são os criados do general.
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PAULO - Mas porque andam eles de roupão?
TIAGO - É a sua maneira de vestir. Não viste os camponeses que
encontrámos no caminho? Todos usavam roupão azul, com cintos
vermelhos. É bem mais bonito do que as camisas que se usam em
França.
Quando chegaram aos quartos que Vassili, o intendente, lhes
arranjara o melhor que pudera, os pequenos ficaram encantados.
Apenas estranharam que, em vez de leitos, tivessem sofás.
- Onde nos havemos de deitar? - perguntaram eles ao pai.
DERIGNY - Transformaremos os sofás em camas. Devemos habituar-nos
a contentar-nos com o que temos.
Derigny e Helena começaram imediatamente a pôr as coisas em ordem
e, dentro de poucos minutos, estava tudo pronto para se deitarem.
Os pequenos não se fizeram rogados, porque estavam a cair de
sono.
Derigny, antes de se deitar, procurou ainda o general, como ele
lhe recomendara, mas esteve quase a perder-se, tantos eram os
corredores e quartos por onde passou. Por fim, lá conseguiu
chegar aos aposentos do general, que passeava
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de um lado para outro, no seu grande quarto de dormir, com todo o
ar de quem está muito zangado. Quando viu aparecer Derigny,
deteve-se e exclamou, cruzando os braços:
- Estou furioso e arrependido de ter vindo para aqui. Toda a
gente não percebe nada do que eu quero. Precipitam-se, como
loucos ou imbecis, para executar as minhas ordens, mas, afinal,
não compreendem nada do que desejo! Não encontro nada do que me é
preciso. A Pousada do Anjo da Guarda era cem vezes mais
confortável. No entanto, eu tenho seiscentos mil rublos de
rendimento. Para que me serve todo este dinheiro?
DERIGNY - Mas, meu General, quando se regressa, depois de uma
longa ausência, sucede sempre assim. Nós arranjaremos tudo.
Dentro de poucos dias estará instalado como um príncipe.
GENERAL - Só se você e a sua mulher se encarregarem disso,
porque, com esta gentinha, não conseguiremos nada.
DERIGNY - Estão tão contentes por o tornarem a ver, meu general!
Naturalmente só há pouco tempo é que tiveram conhecimento do seu
regresso.
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GENERAL - Pois é claro! Eu não avisei ninguém. Mandei apenas o
Stépane à frente.
DERIGNY - Nesse caso, meu general, eles não são culpados! Não
tiveram tempo de preparar as coisas.
GENERAL - Nem ao menos a minha ceia. Há-de concordar que é forte!
DERIGNY - Se demora um bocado é, com certeza, para que fique mais
bem cozinhada.
GENERAL (sorrindo) - Você tem resposta para tudo. E eu agradeço-
lhe, meu amigo, porque, afinal, fez-me acalmar. E como estão
vocês instalados?
DERIGNY - Muito bem, meu General. Não nos falta coisa alguma.
- Sua Excelência está servida - disse Vassili, abrindo as portas
de par em par.
O general dirigiu-se imediatamente à sala de jantar, acompanhado
por Derigny que o serviu à mesa, com a maior solicitude. Em volta
havia cinco ou seis criados para ajudar no que fosse preciso.
GENERAL - Ah, ah! ah Repare, Derigny, no espanto destes homens,
só porque você me serve o vinho!
DERIGNY - Porquê? É naturalíssimo que eu lhe evite a maçada de
pegar na garrafa e encher o copo.
GENERAL - Eles consideram isso como uma familiaridade chocante, e
admiraram a minha bondade por lhe permitir, a si, que o faça.
A ceia durou bastante tempo, porque o general tinha, como sempre,
bom apetite. Serviram-Lhe uma dúzia de pratos. O general reatava
as suas relações com a cozinha russa e parecia satisfeito.
Enquanto Derigny se conservava junto do general, Helena, depois
de deitar os pequenos, examinou o mobiliário e ficou desolada ao
verificar que lhe faltavam coisas indispensáveis: uma bacia para
lavar as mãos e a cara, um jarro, um copo. Apenas havia, a um
canto, um velho balde. Desolada, sentou-se numa cadeira e teve
saudades da Pousada do Anjo da Guarda, mobilada com tanto
conforto e sempre tão asseada. Pensou em sua irmã Elfy, em
Moutier, no bom pároco, no seu país, enfim. Calculou as privações
que iriam passar ali, e sentiu-se desanimada.
Quando Derigny voltou, depois de o general já estar deitado,
encontrou Helena a chorar. Ao saber a causa do seu desgosto,
consolou-a, encorajou-a; prometeu-lhe que, no dia seguinte, teria
as coisas mais urgentes e, dentro de pouco tempo, não haveria
razão para sentir saudades da Pousada do Anjo da Guarda.
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Além disso, testemunhou-lhe tanta gratidão pelo carinho com que
ela tratava as crianças, mostrou-se tão alegre, tão confiante no
futuro, que ela acabou por ficar bem disposta e cheia de coragem.
Como estavam todos satisfeitos, dormiram até tarde, na manhã
seguinte, excepto Derigny que conservava os seus hábitos
militares e se apresentou à hora costumada junto do general, que
se mostrou satisfeitíssimo com aquela pon tualidade.
- Logo que eu tenha comido o pequeno almoço, vou mostrar-lhe o
palácio, o parque, a aldeia, a floresta, tudo! - disse ele.
DERIGNY - Agradeço-lhe muito, meu General, porque desejo imenso
conhecer Gromiline, que me parece uma esplêndida propriedade.
GENERAL (com ar despreocupado) - Não é má: vinte mil hectares de
floresta, dez mil de terra cultivável, vinte mil de pastagens.
Sim, é uma bela terra; quatro mil camponeses, duzentos cavalos,
trezentas vacas, vinte mil carneiros e uma quantidade de outros
animais. Sim, não émá...
Derigny ouviu-o, sorrindo.
GENERAL - De que se ri você? Julga que minto ou exagero?
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DERIGNY - Oh, meu General! De forma alguma. Eu sorria, ao ouvi-lo
falar das suas riquezas com o ar mais despreocupado deste mundo.
GENERAL - Então como queria que eu falasse? Queria que me pusesse
a rir como um doido, e desse cambalhotas como os seus filhos, ou
então que me fingisse pobre?
DERIGNY - De forma alguma. O meu General fez como devia; eu é que
fui parvo por ter sorrido.
GENERAL - Olhem que ideia! Você não é parvo, e sabe isso muito
bem. Fala assim só para me acalmar os nervos, como se acalma um
louco furioso ou uma criança amimada. Pois saiba que eu não sou
louco nem criança. Tenho sessenta e três anos e não gosto que me
lisonjeiem. Sou um parvo, sou eu que o digo, e proíbo-o, a si, de
me contradizer; mais ainda, ordeno-lhe que me acredite. Você é um
homem de espírito, de coração e dedicação. E continuo a ordenar-
lhe que me acredite e que não me tome por um imbecil que não sabe
julgar os outros e julgar-se a si próprio.
- Meu General - disse Derigny, com voz comovida -, se não lhe
digo todo o reconhecimento e a respeitosa afeição que tenho por
si, é
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porque sei muito bem como o meu General detesta os agradecimentos
e as expansões.
GENERAL - Sim, sim, meu amigo, eu sei. Ordene que me sirvam aqui
mesmo o pequeno almoço, e vá também comer alguma coisa.
Derigny cumpriu as ordens recebidas, e entrando no seu quarto e
encontrando a mulher e os filhos ainda a dormir profundamente,
voltou para junto do general, para que ele não se aborrecesse por
estar só.

3. Derigny marceneiro e decorador


Quando Helena acordou, ainda os pequenos dormiam. Como o marido
já se havia levantado e estava junto do general, teve de se
desembaraçar sozinha, utilizando o velho balde à falta de outros
objectos de toilette.
Animava-a a confiança em Derigny, que ela sabia inteligente e
cheio de boa vontade.
Efectivamente, quando ele regressou do passeio que dera com o
general, trouxe à mulher uma quantidade de coisas necessárias.
- Como conseguiste arranjar tudo isto? perguntou Helena,
maravilhada.
DERIGNY - Fiz tantos sinais, que acabaram por me compreender. São
inteligentes e parecem bons.
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Os pequenos, ao acordarem, encontraram o almoço pronto, o que
lhes agradou imenso, pois estavam cheios de apetite.
Assim passaram algumas semanas; Tiago e Paulo começaram a
aprender o russo com bastante facilidade; os filhos dos criados
seguiam-nos para toda a parte, cheios de curiosidade. Um dia, os
dois irmãos apareceram vestidos à maneira russa; foi uma alegria
para os outros petizes, que chamaram aqueles que não estavam
presentes, para virem admirá-los: Mishka, Vaska, Pétroùska,
Annoushka, Stépane, Mashinèka, Sónushka, Càtineka, Anìcia (').
Acorreram todos e rodearam Paulo e Tiago com grandes
manifestações de entusiasmo. Foi enorme a surpresa de Paulo, ao
ver as crianças russas virem, uma a uma, beijar-lhes a mão. Os
dois irmãos franceses, protegidos e estimados pelo general, eram
considerados por aquela pobre gente muito superiores a eles, e
sentiam-se reconhecidos pelo facto de os verem vestidos com o
traje nacional russo.
() Diminutivos de Miguel, Basílio, Pedro, André, Estêvão, Maria,
Sofia e Inês. Os acentos indicam que essa sílaba se pronuncia com
força.
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PAULO - Porque nos beijam eles a mão?
TIAGO - Para nos agradecerem o termo-nos vestido como eles.
Julgam que também
queremos ser russos.
PAULO (vivamente) - Mas eu não quero
ser russo! Quero ser francês como o papá, a
mamã, a tia Elfy e o nosso amigo Moutier.
TIAGO - Podes estar tranquilo Lá por estarmos vestidos como os
russos não deixamos
de ser franceses.
PAULO - Nesse caso, está muito bem. Se
não fosse assim, ia já vestir o fato que trouxe
de França.
Enquanto eles conversavam, deu-se no pátio
uma grande agitação: acabava de chegar um
correio a cavalo. Os criados rodearam-no logo,
as crianças corriam de um lado para o outro,
cheias de curiosidade. Tiago e Paulo foram
também ver do que se tratava e compreenderam
que aquele homem vinha anunciar a visita da
Sra Papofski, sobrinha do general Dourakine
que devia chegar uma hora depois.
Esta notícia pareceu contrariar bastante o
general, que mandou chamar logo Derigny.
- Meu amigo: tem de ir, com Vassili, preparar quartos para toda
essa gente. Oito crianças! Se já alguém viu uma coisa assim!
Aparecer de surpresa, com uma tropa destas! Que quererá ela que
eu lhe faça! Vão partir tudo, sujar tudo! Diabos os levem! Estava
aqui tão tranquilo, consigo, com sua mulher e os pequenos, e vem
agora esta invasão de selvagens perturbar a minha vida! Mas não
tenho outro remédio senão recebê-los. Vá, meu amigo, e prepare
tudo o mais depressa que puder.
DERIGNY - O meu General não quererá indicar-me os quartos que
lhes devo destinar?
GENERAL - Isso é indiferente! Escolha os que quiser. Olhe, abra a
primeira porta que encontrar.
DERIGNY - Perdão, meu General, mas esta senhora é sua sobrinha e
tem direito à minha maior consideração. Ficarei desolado se não
lhe preparar os melhores aposentos. Ora eu não conheço ainda o
palácio todo.
GENERAL - Visto que assim o quer, irei consigo. Vá andando à
frente, para abrir as portas!
Vassili, muito admirado com a condescendência do general,
acompanhou-os. Chegaram em frente de uma porta de dois batentes,
que era logo a primeira do corredor que dava para a sala de
jantar.
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GENERAL - Aqui está um quarto; tanto faz este como outro. Pode
abrir, Derigny. Deve haver mais três ou quatro quartos a seguir,
todos com a porta para o corredor.
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Derigny abriu, apesar da viva oposição de Vassili a quem o patrão
ordenou energicamente que estivesse calado. O general entrou, deu
alguns passos, olhou em volta, com um olhar brilhante de cólera,
e perguntou a Vassili:
- Não querias que eu entrasse, gatuno, para que não visse que tu
e a tua família sois uns ladrões! Onde estão os móveis deste
quarto? Onde estão os reposteiros e os cortinados? Porque estão
as paredes cheias de nódoas, como se aqui se houvesse alojado um
regimento de cossacos? Porque estão os sobrados esburacados?
VASSILI - V. Exa bem sabe. o frio. a humidade. o sol.
GENERAL -. levam os móveis, arrancam os reposteiros, sujam as
paredes, arrancam bocados ao sobrado? Ah, maroto! Tu estás a
troçar de mim! Julgas que eu sou parvo? Espera aí; vou fazer-te
compreender que sou mais esperto do que tu imaginas. Derigny -
continuou o general, voltando-se para ele -, vá dizer que dêem
cem chicotadas neste patife, que se atreveu a roubar-me os móveis
e habitar os meus quartos com a sua quadrilha de criados-
ladrões, e que ainda por cima se atreve a mentir com o maior
descaramento.
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DERIGNY - Perdão, meu General, mas não posso obedecer-lhe
imediatamente, porque precisamos de Vassili para nos ajudar a
preparar os quartos. A Sra Papofski deve estar a
chegar.
GENERAL - Tem razão, meu amigo; mas, logo que tudo esteja pronto,
leve-o ao intendente e recomende-lhe que lhe dêem cem chicotadas
valentes.
- Está muito bem, meu General - respondeu Derigny, resolvido a
não dizer nada e a conseguir que a sentença fosse revogada.
Continuaram a percorrer os quartos, que encontraram na mesma,
sujos e desguarnecidos de móveis. Derigny teve dificuldade em
acalmar o furor do general, prometendo-lhe remediar tudo, o
melhor possível.
- Só lhe peço que me mande pessoal para me ajudar, meu General -
disse ele. - Dentro de meia hora estará tudo arranjado.
O general voltou-se para Vassili e ordenou:
- Vai buscar todos os criados e que executem as ordens de
Derigny. Quanto a ti, vai esperando, que não perdes com a demora,
meu ladrão! Derigny se encarregará de te mandar dar as cem
chicotadas.
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Vassili, pálido como um defunto, e tremendo como varas verdes,
correu a executar as ordens recebidas. Pouco depois voltou,
acompanhado por vinte e dois homens. Derigny, que se fazia
compreender razoavelmente em russo, começou por tranquilizar
Vassili quanto ao castigo prometido. Por seu lado, Vassili jurou
que fora o intendente quem se instalara naqueles belos quartos,
levando, além disso, os móveis para mobilar a sua casa de
habitação.
- Quanto a mim, senhor, juro-lhe que só fiquei com os móveis
velhos, que o intendente não quis. Pergunte-lhe, mesmo a ele, se
isto não é verdade!
DERIGNY - Está bem, está bem! Isso não é comigo. Farei o possível
para que o general lhe perdoe. Quanto ao resto, arranje-se como
quiser, lá com o intendente.
Começaram a transportar os poucos móveis que acharam; em menos de
meia hora tudo se encontrava transformado: as janelas tinham
cortinas, as camas estavam feitas, os lavatórios completos e tudo
nos seus lugares. Havia um quarto para a Sra Papofski e dois para
as crianças e as respectivas criadas. Os minutos iam passando e a
Sr á Papofski não havia maneira de chegar. O general ia e vinha,
admirando
33
a actividade e inteligência de Derigny e de sua mulher, que
haviam conseguido dar aos quartos um aspecto confortável e limpo.
Tiago e Paulo ajudavam-nos alegremente. Ao ver as colchas,
travesseiros, almofadas e um belo leito de madeira, largo e
cómodo, o general não compreendia como tudo aquilo tinha
aparecido e perguntava:
- Que é isto? Onde estava isto? Quem fez isto?
CRIADO - Foram os franceses, Excelência. Tudo isto estava no
quarto deles.
GENERAL - Oiça cá, Derigny, foi você quem fez este leito? Foi a
sua mulher quem fez toda esta roupa de cama à moda francesa? Mas
é esplêndido! Vou ter inveja da minha sobrinha. Fica muito mais
bem instalada do que eu!
DERIGNY - Se o meu General deseja um leito igual a este, eu e
minha mulher temos muito gosto em lhe arranjar um. E como é para
o meu General, ainda o faremos melhor e mais bonito.
GENERAL - Aceito, meu amigo, aceito com prazer. Fornecer-lhe-ão
tudo de que precisar e terá as pessoas que quiser para o ajudar.
Mas. que terá sucedido a minha sobrinha? Já devia ter chegado. -
E, dirigindo-se a um criado,
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o general ordenou: - Nikita, manda montar a cavalo um postilhão,
para ir ao encontro da minha sobrinha, saber o que sucedeu.
Nikita partiu como um relâmpago. O general continuou a sua
inspecção, cada vez mais satisfeito e admirado com as invenções
de Derigny, que desguarnecera o seu próprio quarto para mobilar e
decorar o da Sr. a Papofski.

4. A Senhora Papofski e os seus filhos


Quando o general terminou a revista minuciosa que estava passando
aos aposentos destinados aos seus hóspedes, ouviram-se gritos e
ralhos no pátio.
GENERAL - Que sucedeu? Derigny, você, que pode correr, vá ver do
que se trata. Com certeza que aconteceu alguma coisa à minha
sobrinha, ou aos pequenos. Eu vou mais devagar.
Derigny partiu. Os criados russos já tinham desaparecido; ouviam-
se os seus gritos juntarem-se aos dos colegas. O general apressou
o passo quanto pôde, mas o palácio era grande e a distância a
percorrer longa. Ninguém regressava, e o general começava a
irritar-se e a respirar com dificuldade, quando Derigny apareceu.
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- Não se assuste, meu General; não é nada de grave. Foi a
carruagem da Sr á Papofski que chegou, puxada por seis cavalos, a
galope, mas sem trazer ninguém dentro.
GENERAL - E parece-Lhe que isso não é grave? Que mais queria?
Morreram todos, com certeza.
DERIGNY - Perdão, meu General; a carruagem não vem partida; coisa
alguma indica um acidente. O postilhão está convencido de que
desceram todos em qualquer parte, e os cavalos partiram antes que
os pudessem segurar.
GENERAL - O postilhão é um imbecil. Mande-o vir aqui, para eu lhe
falar.
Enquanto o general continuava a dirigir-se para o pátio da
entrada, Derigny foi buscar o postilhão. Todo o pessoal estava
reunido junto da carruagem e ninguém respondeu ao chamamento de
Derigny, que teve dificuldade em chegar junto da portinhola
aberta, ao pé da qual estava o homem que procurava. Com grande
surpresa viu que, afinal, a carruagem não estava vazia. Lá dentro
havia uma criança de três ou quatro anos, dormindo profundamente
sobre um dos assentos. Derigny voltou imediatamente para junto do
general, a dar-lhe conta do que se passava.
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- Que o Diabo me leve se eu compreendo alguma coisa disto! -
exclamou o general.
Desceu, aproximou-se da carruagem, falou ao postilhão, afastou os
criados à bengalada - não com muita força, diga-se a verdade,
apenas o suficiente para os manter à distância. A miudagem, essa
então tratou de fugir para longe.
GENERAL - É verdade! Aqui está um petiz dormindo tranquilamente!
Começo a crer que o postilhão acertou. Deixaram o pequenito na
carruagem porque estava a dormir. A minha sobrinha deve estar na
estrada com os outros filhos e as criadas.
Sem perder tempo, o general ordenou que atrelassem os melhores
cavalos à sua grande carruagem, visto aqueles estarem estafados,
e que partissem imediatamente ao encontro da Sra Papofski.
Tranquilizado já, quanto à sobrinha, começou a rir às
gargalhadas, pensando na figura que ela devia fazer, a pé, ao
longo da estrada, com sete crianças e a criadagem.
-Gostava de presenciar aquele espectáculo - exclamava ele. - Que
bela história A carruagem a desaparecer e eles todos a gritar! A
minha sobrinha deve estar furiosa. Conheço-a muito bem e estou a
vê-la a puxar pelos filhos, a ralhar às criadas.
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No momento em que a carruagem ia partir, ouviram-se novos gritos.
- Que vem a ser isto - perguntou o general, com impaciência. -
Não oiço senão gritar!
O intendente, de vara na mão, preparava-se para pôr os criados
dali para fora, quando um novo incidente veio explicar a gritaria
que tanto irritara o general. Numa curva da estrada apareceu uma
grande carroça, tão cheia de gente, que os cavalos mal podiam
avançar. Dentro, no banco do cocheiro, nos estribos, havia
homens, mulheres, crianças. O general olhava espantado,
adivinhando que a carroça transportava, além da bagagem, todos os
viajantes da carruagem.
GENERAL - Que entrada triunfal! Vêm todos empilhados na carroça
da bagagem e dos criados. Ah ah ah Os cavalos estão quase a
rebentar! E a cabeça da minha sobrinha a espreitar no meio de
tudo aquilo! Como ela grita! Está furiosa! Fula!
O general esfregava as mãos, de contentamento, e ria a mais não
poder ser. Deixou-se ficar no patamar, para ver esvaziar-se
aquela Arca de Noé. A princípio, a Sra Papofski não viu o tio.
Atirava para a direita e para a esquerda tudo quanto lhe servia
de obstáculo, até que
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conseguiu descer da carroça com a ajuda do postilhão, que viera
anunciar a sua chegada.
Logo que se viu no chão, deu duas tremendas bofetadas no
desgraçado, exclamando:
- Parvo! Animal! Eu te ensinarei a não me abandonares assim,
correndo como um doido,
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sem olhar para trás! Hei-de pedir ao meu tio que te mande dar cem
chibatadas.
POSTILHÃO - Perdoai-me, Maria Pétrovna: eu parti, a correr, para
cumprir as vossas ordens, que eram "correr sem parar, tão
depressa quanto o cavalo pudesse aguentar".
SRa PAPOFSKI - Cala-te, insolente, imbecil! Verás! O meu tio vai
fazer-te em postas.
GENERAL (rindo) - Nada disso! Estás enganada, minha sobrinha! Não
farei coisa alguma, pois compreendo perfeitamente como as coisas
se passaram. Não, não é bem assim; ordeno que levem o postilhão à
cozinha e Lhe dêem um bom jantar, kvas (') e cerveja.
SRa PAPOFSKI (embaraçada) - Ah! O tio estava aí? Não o tinha
visto! Estou tão contente, tão feliz por tornar a vê-lo, que nem
sei o que digo! Contrariava-me tanto chegar atrasada! Tinha tanto
desejo de o abraçar!
Ao dizer isto, a Sr á Papofski lançou-se nos braços do general,
que a recebeu friamente e mal lhe retribuiu os numerosos beijos
que ela Lhe dava na fronte, nas faces, nas orelhas, no pescoço,
onde calhava.
() Bebida russa, semelhante à sidra
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SRa PAPOFSKI - Venham, meus filhos, venham beijar a mão do vosso
tio, o vosso bom tio, que é tão bom, tão corajoso, tão querido de
todos nós!
E, pegando na mão dos filhos, um a um, encaminhava-os para o
general, de quem eles se aproximavam com pavor. O mais novito,
que acabava de acordar, principiou a gritar e a espernear com
toda a força, gritando:
- Não quero! Ele vai bater-me, não quero beijá-lo!
A mãe chegou ao pé da criança, deu-lhe um beliscão no braço, ao
mesmo tempo que lhe dizia, em voz baixa, junto da orelha:
- Se não dás um beijo ao tio, chicoteio-te até te desfazer.
O pobre Ivane reprimiu os soluços e estendeu ao general as faces
banhadas de lágrimas. O tio pegou-lhe ao colo, beijou-o e disse-
lhe, sorrindo:
- Não, meu filho, não te baterei. Quem te disse isso?
IVANE - Foi a mamã e Sonushka. É verdade que não me dará
chicotadas?
GENERAL - Não, meu amiguinho; pelo contrário, dar-te-ei mimo.
IVANE - E não deixa a mamã bater-me?
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GENERAL - Podes estar sossegado. O general pôs o pequenito no
chão, afastou as outras crianças que se lhe penduravam nos
braços, nas pernas, e saltavam à sua volta, para o abraçar.
Depois, oferecendo o braço à sobrinha, disse:
- Vem, Maria Pétrovna; o teu quarto foi arranjado à francesa,
pelo meu bravo Derigny, que está aqui - acrescentou ele,
apresentando-o à Sra Papofski. - Sua mulher e seus filhos também
o ajudaram. Têm belas ideias e são habilidosos, como todos os
franceses. É uma boa e honesta família, a quem eu espero que
tratarás com bondade.
SRa PAPOFSKI - Com certeza! Basta o tio gostar tanto deles, para
eu os estimar também - e, voltando-se para Derigny, cumprimentou-
o com um sorriso forçado e um olhar desconfiado: - Muito prazer
em conhecê-lo, Derigny! Seremos bons amigos, não é verdade?
Derigny saudou-a respeitosamente, sem lhe responder.
SRa PAPOFSKI (com modo desagradável)Venham, meus filhos, não
façam esperar o tio. Tu, Sonushka, vai ao lado do tio para o
amparar.
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GENERAL - Muito obrigado! Eu ando bem sozinho; ainda não estou na
segunda infância. Derigny não costuma pôr-me cueiros nem
touquinha.
SRa PAPOFSKI - Que engraçado que o tio é! Que espírito!
GENERAL - Realmente? O que eu digo tem graça? Não sabia que era
assim tão espirituoso.
SRa PAPOFSKI (beijando-o) - Ah! meu tio, que modéstia! Não sabe a
metade, um quarto das suas próprias virtudes e qualidades.
GENERAL (friamente) - É natural, porque não me conheço bem. Mas
deixemo-nos de disparates. Explica-me como deixaram fugir a
carruagem e por que razão se meteram todos na carroça, como uma
companhia de saltim bancos.
Os olhos da Sr á Papofski brilharam de raiva, mas conteve-se e
respondeu, a rir:
- Não é verdade que fizemos uma figura ridícula? O tio, com
certeza, fartou-se de rir ao ver-nos chegar assim?
GENERAL - Ah ah ah Não há dúvida, ri com gosto e continuarei a
rir Principalmente da tua cólera contra o pobre postilhão. A cara
de espanto com que ele recebeu as bofetadas
que lhe deste! Foram dadas com "mão de mestre". Vê-se bem que
estás habituada.
SRa PAPOFSKI - Que quer, meu tio, não há outro remédio: oito
crianças, uma multidão de criadas e criados! Que há-de fazer uma
pobre mulher como eu, a quem o marido abandonou, deixando-a sem
protecção, sem fortuna? Sou muito feliz em tê-lo a si, meu tio,
pois certamente vai ajudar-me a sair de embaraços.
GENERAL (com frieza) - Afinal, não respondeste à minha pergunta.
Porque chegou a carruagem primeiro que tu e os pequenos?
SRa PAPOFSKI - Perdão, meu bom tio. sinto-me tão feliz por vê-lo
e ouvi-lo, que esqueço tudo o mais. Nós tínhamos descido para
desentorpecermos as pernas e andar um bocado. Ordenei ao cocheiro
e ao postilhão que se apeassem também. O meu segundo filho, o
Yégor, lembrou-se, então, de apanhar um ramo de árvore na
floresta e bater com ele nos cavalos. É claro que os animais
partiram à desfilada. Mandei o cocheiro e o postilhão correr
quanto pudessem, mas não conseguiram alcançar os malditos
cavalos. Castiguei o Yégor e su bimos todos para a carroça da
bagagem e dos criados, que nunca mais avançava, porque os
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cavalos mal podiam com tanta carga. Mandei os criados empurrar;
mas aqueles estúpidos, dez minutos depois, estavam cansados e
caíam na estrada. Creio mesmo que um ficou estendido não sei
onde. Chegará mais tarde.
Ao ouvir isto, o general, voltando-se para os criados, ordenou
que fossem imediatamente, com uma charrette, à procura do
desgraçado.
SRa PAPOFSKI - Ah, meu querido tio! Como é bom! Mais do que bom,
admirável!
GENERAL (deixando o braço da sobrinha)
- Basta, Maria Pétrovna; não gosto dos aduladores e detesto as
lisonjas. Aqui tens o teu quarto.
A Sra Papofski corou; ao entrar, encontrou-se em frente da Sra
Derigny e dos filhos, que acabavam de arrumar e embelezar o
quarto. Helena cumprimentou a recém-chegada; Tiago e Paulo
fizeram uma reverência. A Sra Papofski olhou para eles com
altivez, fez uma ligeira inclinação de cabeça e passou. O
general, descontente com a atitude da sobrinha, voltou-lhe as
costas, sem pronunciar uma palavra, fez sinal a Helena e aos
pequenos para que o acompanhassem, e saiu, fechando a porta.
Encontrou no corredor os oito filhos da Sr á Papofski, encostados
à parede.
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GENERAL - Que fazem os meninos aqui?
SONUSHKA - Estamos à espera de que a mamã nos deixe entrar.
GENERAL - O quê? São parvos? Então não podem entrar sem licença?
MITINEKA - Não, meu tio! A mamã ficaria furiosa.
GENERAL - E que faz ela quando se zanga?
YÉGOR - Bate-nos e puxa-nos os cabelos. GENERAL - Esperem aí; vou
já fazê-los entrar. Venham atrás de mim e não tenham medo. Tiago,
Paulo! Façam de guarda avançada, e depois ajudem estas crianças a
instalar-se nos seus quartos.
O general dirigiu-se à porta que dava para os quartos dos
pequenos e mandou-os entrar. Depois abriu a porta que comunicava
com o quarto da sobrinha e disse em voz muito alta:
-Minha sobrinha: trouxe os pequenos para o quarto; vou mandar
chamar as criadas e fecho esta porta, para que só possas vir aqui
passando pelo corredor.
SRa PAPOFSKI - Não, não, meu tio. Deixe a porta aberta! Preciso
de entrar quando ouvir ruído, para os corrigir. Imagine o que
sofro, uma pobre mulher sem amparo, sem fortuna. Não tenho mais
ninguém para os educar.
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GENERAL - Tenho muita pena, mas será como eu disse. De contrário,
não te ajudarei em coisa alguma. E se durante a tua estada aqui,
eu souber que maltratas os teus filhos ou as tuas criadas,
provar-te-ei o meu desagrado. no meu testamento.
SRa PAPOFSKI - Faça como quiser, meu bom tio. tenha a certeza de
que.
Tre-tre-tre, a chave deu a volta na fechadura. A porta ficou
fechada. A Sra Papofski sentiu o coração cheio de fel, mas pensou
nos seiscentos mil rublos de rendimento do tio, na sua
generosidade que todos conheciam, na sua idade avançada, nos
ferimentos que ele tinha recebido. Estes pensamentos acalmaram-se
e restituíram-lhe o bom humor. Dispôs-se a fazer a sua
"toilette", e como o tio somente lhe proíbira que batesse, achou
que podia arreliar, à vontade, as duas criadas que estavam
naquele momento junto dela. A verdade, porém, é que as pobres
criaturas, embora ela lhes falasse com mau modo e achasse
defeitos em tudo quanto faziam, sentiam-se felizes e
surpreendidas por não apanharem os costumados sopapos e
beliscões.

5. Primeira disputa
Os pequenos Papofski olhavam, surpreendidos, para Tiago e Paulo.
Nem um nem outro lhes beijavam as mãos, nem lhes faziam as
habituais reverências até ao chão. Conservavam-se direitos e
despreocupados, sorrindo, para eles.
MITINEKA - Quem são estes dois rapazes que não dizem nada, meu
tio?
GENERAL - São dois franceses, duas excelentes crianças. O mais
velho chama-se Tiago e o outro Paulo.
SONUSHKA - Porque é que eles nos não beijam as mãos?
GENERAL - Porque vocês são uns garotos e eles só beijam a mão aos
pais.
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TIAGO - E a sua, senhor General.
- Eles falam francês! Sabem francês! gritaram Sonushka, Mitineka
e mais dois ou três irmãos.
GENERAL - Pois com certeza! E falam melhor do que vocês ou do que
eu próprio.
PAVLOUSKA - Eu posso brincar com eles? GENERAL - À tua vontade.
Mas eu não quero que os atormentem. Vamos, tenham juízo! Aqui
estão as criadas e as malas. Eu, agora, vou-me embora. E preciso
que estejam prontos para o jantar daqui a uma hora.
O general saiu, depois de lhes ter acariciado as faces,
recomendando às criadas que conduzissem as crianças à sala de
jantar, à hora marcada.
- Brinquemos! - disse Mitineka. SONUSHKA - A que havemos de
brincar? MITINEKA - Ao cavalo. Vai-nos buscar uma corda, Tiago.
TIAGO - Para quê? Querem uma corda grande ou pequena? Fina ou
grossa?
MITINEKA - Muito grande e muito grossa. Despacha-te, vai
depressa.
Tiago foi buscar a corda, mas não correu, como a pequena queria.
Desagradava-lhe o tom imperioso de Mitineka, mas, como se tratava
50
dos sobrinhos do general, achou que devia obedecer sem protestar.
Enquanto ele procurava a corda, Yégor, que tinha oito anos,
aproximou-se de Paulo e disse-lhe:
- Põe-te de gatas para eu montar. Serás o meu cavalo.
Paulo era condescendente e pôs-se a "quatro pés". Yégor saltou
para cima dele e ordenou-lhe que andasse depressa, cada vez mais
depressa. Paulo fez o que pôde.
- Mais depressa! Mais depressa - gritava Yégor. - E, dirigindo-se
aos irmãos, ordenou:
- Nikalai, Mitineka, Pavlouska, chicoteiem o meu cavalo para ele
andar mais depressa.
Os três pequenos pegaram, cada um, na sua varinha e começaram a
bater em Paulo. O pobre pequeno quis levantar-se, mas lançaram-se
todos sobre ele e obrigaram-no a ficar de gatas. Paulo gritava
por Tiago, para que lhe acudisse, mas, por desgraça, o irmão
estava longe e não podia ouvi-lo.
- A galope! - gritava Yégor, sempre montado nas costas do
pequenito - Ah! Tu és um mau cavalo! não passas de uma pileca!
Dêem-lhe com o chicote! Força!
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Paulo gritou tanto que a Sra Derigny acabou por ouvir os seus
gritos. Correu, aflita, para o quarto das crianças, pôs Yégor no
chão, afastou os outros e tirou-lhes das mãos o pobre Paulo, que
estava verdadeiramente aterrorizado.
- Que crianças terríveis - exclamou ela, indignada. - O Paulo não
tornará a brincar com os meninos!
- A senhora é que é impertinente! - disse Sonushka. - Hei-de
dizer ao tio que a mande chicotear.
A Sra Derigny soltou uma gargalhada, que irritou mais ainda os
pequenos mais velhos, e saiu com Paulo, sem Lhes responder. Nesse
mo mento, chegava Tiago com a corda; admirado de ver o irmão a
chorar, julgou que Helena o levava para o castigar.
- Perdoe-lhe, mamã! - exclamou ele. O Paulo ainda é muito
pequeno, não sabe o que faz! Deixe-o brincar com os sobrinhos do
general.
Quando soube, porém, o motivo pelo qual a Sra Derigny levava
Paulo, indignou-se e quis ir queixar-se a Dourakine. Helena,
porém, não lho permitiu, e disse:
- Não devemos incomodar o nosso bom amigo. Vocês não brincarão
mais com esses endiabrados pequenos e estará tudo acabado.
- Não lhes darei a corda! - disse Tiago, beijando o irmãozinho e
seguindo a mãe adoptiva. - Fizeram- te mal, meu querido Paulo? -
perguntava ele, cheio de carinho.
A Sra Derigny dirigiu-se aos seus aposentos, que estavam em
grande desordem, pois tinham levado os móveis para os quartos da
sobrinha do general e dos filhos. Mandou então os pequenos
procurar o pai.
TIAGO - Vi agora mesmo o papá atravessar o pátio com uns
embrulhos enormes. Vamos ter com ele.
Assim fizeram. Foram os três ao encontro de Derigny. Logo que o
avistaram, Tiago perguntou:
- Que traz aí, papá?
DERIGNY - Almofadas e cobertores. Os nossos foram para a Sra
Papofski e para os filhos.
PAULO - Devemos tirar-lhos; eles são muito maus; bateram-me e
fizeram-me andar a galope! já nem podia respirar! Yégor é tão
pesado que me ia matando.
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DERIGNY - O quê? Já começaram? Não quero que tornem a brincar com
eles.
TIAGO - Foi o que a mamã disse. Se eu lá estivesse não os
deixaria bater no Paulo, porque me atiraria a eles com toda a
força!
DERIGNY (sorrindo) - Estavas servido! Bater nos sobrinhos do
general seria uma coisa grave. O próprio general ficaria
contrariado, e com razão.
TIAGO - Mas eu não posso consentir que maltratem o Paulo.
DERIGNY - Com certeza, meu rapaz! O que tinhas a fazer era vires-
te embora, com ele, antes que lhe fizessem mal. E como és forte e
valente, não terias dificuldade em te desembaraçares deles sem
lhes bater.
TIAGO - Está bem, papá; já sei como hei-de fazer para outra vez.
PAULO - Eu não quero brincar mais com aqueles malcriados!
SR" DERIGNY (beijando-o) - É o melhor que tens a fazer, meu amor!
Mas, com a conversa, esquecemo-nos de que o papá está carregado
de coisas enquanto nós temos as mãos vazias.
DERIGNY - Obrigado! Isto é pesado de mais para vocês.
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Helena fez sinal a Tiago e a Paulo, e os dois pequenos lá
conseguiram, depois de alguns esforços, tirar uns embrulhos ao
pai.
Seguiram depois, conversando alegremente, para os seus quartos,
procurando todos trabalhar o mais possível, para lhes dar
novamente um aspecto bonito e confortável.
Quando tudo já estava quase pronto, entrou o general. Vinha de má
catadura: congestionado, de olhos brilhantes, testa enrugada,
mãos atrás das costas.
- Derigny! - disse ele, com voz rouca.
DERIGNY - Meu General!
GENERAL - A sua mulher, e os seus filhos. Por que demónio
procuras tu esconder-te, Tiago? Deixa-te ficar! Porque tens medo?
TIAGO - Tenho medo porque adivinho o que o senhor General vai
dizer. Vejo que está zangado e não sei como hei-de justificar-me.
GENERAL - E que julgas tu que eu vou dizer?
TIAGO - Vai acusar-me, à mamã e ao Paulo, de ter faltado ao
respeito aos filhos da sua sobrinha.
GENERAL - Ah, Nesse caso é verdade! Por isso adivinhaste logo.
TIAGO - Não, meu General; é falso.
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GENERAL - É falso? Nesse caso sou um mentiroso, um caluniador?
TIAGO - De maneira nenhuma, meu querido e bom General. Mas. Eu
não quero dizer nada. O papá disse-me que não o devíamos
incomodar, contando-lhe as maldades dos seus sobrinhos.
O general voltou-se para Derigny. A sua expressão tornou-se mais
doce e o seu olhar afectuoso.
GENERAL-Obrigado, meu bravo Derigny. E tu, Tiago, obrigado também
pelo que me disseste e pelo que não me disseste. Mas peço-te que
me contes francamente o que se passou, explicando-me, assim, a
razão pela qual a minha sobrinha está tão furiosa.
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TIAGO (com hesitação) - Perdão, meu General. eu preferia não
dizer nada. Talvez se vá zangar. ou talvez não acredite. Nesse
caso, eu sou capaz de me zangar, e não devo.
GENERAL (sorridente) - Ah! És capaz de te zangar? E que farás tu!
Ralhas-me? Bates-me?
TIAGO - Não, Senhor General. Não faria semelhante coisa; mas, no
meu íntimo, zangar-me-ia consigo e não continuaria tão seu amigo.
Ora, isto é muito mal feito, porque o Sr. General tem sido tão
bom para o papá e a mamã, para o Paulo e para mim, que eu teria
vergonha de me zangar consigo, mesmo que fosse só durante alguns
minutos.
GENERAL (comovido e afagando-Lhe as faces) - Está bem, meu mau
rapazinho. Gostas, então, realmente de mim, apesar do meu génio,
das minhas cóleras e das minhas injustiças?
TIAGO (beijando-lhe a mão) - Oh! Meu General, gosto muito! Todos
nós gostamos muito de si.
GENERAL - Meus bons amigos! E eu também os estimo muito! Vós sois
os meus verdadeiros e únicos amigos, sem lisonjas nem sentido
interesseiro! Acredito em tudo quanto me disserem e quero que
sejam felizes!
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O general, cada vez mais comovido, enxugava as lágrimas com uma
das mãos e continuava a acariciar as faces de Tiago com a outra.
A porta abriu-se, devagar, e apareceu a cabeça de Yégor, que
disse, em tom autoritário:
- Meu tio, a mamã pede-lhe que lhe mande imediatamente o garoto
francês e a mãe, para os mandar chicotear na frente dela.
O general voltou-se; o rosto tomou-lhe uma expressão terrível.
- Entra! - ordenou ele, com voz de trovão. Yégor entrou.
GENERAL - Dize à tua mãe que, se ela se atreve a tocar em
qualquer dos "meus" franceses, que são meus amigos, meus filhos -
ouves bem? meus. filhos - mandá-la-ei chicotear diante de mim,
até lhe arrancarem a pele das costas. Vai, meu patife, mentiroso,
vai ter com os teus irmãos, que são tão bons como tu. E tenham
cuidado! Se eu sei que fizeram mal aos meus amiguinhos Tiago e
Paulo, comigo se hão-de haver.
Yégor retirou-se, trémulo e assustado. Correu para junto da mãe e
dos irmãos, e contou-lhes o que o tio acabara de dizer.
A Sra Papofski chorou de raiva; as crianças estremeceram de
pasmo. Depois de alguns instantes,
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a Sr á Papofski conseguiu dominar a sua cólera, pensando nos
seiscentos mil rublos de rendimento do general. Reflectiu e
acalmou-se. Depois, dirigindo-se aos filhos, disse-lhes:
-Escutem-me: quero que sejam agradáveis, condescendentes e até
meigos para os pequenos franceses. Se um de vocês lhes disser ou
fizer a mais pequena injúria, ou lhes causar a menor
contrariedade, será castigado sem piedade. E bem sabem como eu
sou capaz de os castigar, quando estou zangada.
As crianças tremeram e prometeram não aborrecer nunca os dois
irmãos franceses.
- E quando os encontrarem, hão-de pedir-lhes desculpa, ouviram?
- Sim, mamã! - responderam as crianças
em coro.

6. As habilidades da Sr á Papofski
Enquanto a Sr á Papofski aconselhava os filhos a serem
dissimulados e aparentemente condescendentes, conselhos que eles
não seguiram, como veremos mais adiante, o general acalmava
Derigny, que estava fora de si, com a ideia dos maus tratos que
sua mulher e seus filhos teriam sofrido, sem a intervenção do bom
general, a quem Tiago contou, por sua vez, tudo quanto se
passara.
GENERAL - Não se aflija, meu amigo. Conheço a minha sobrinha! Sei
muito bem a razão por que ela veio a Gromiline com os filhos. Sei
perfeitamente que não foi por mim, mas sim pelo meu dinheiro. Já
fiz o meu testamento. Não lhes deixo nem um rublo. Não sou tão
parvo como pareço. Conheço os amigos e os inimigos; os bons e os
maus. Até logo, minha boa Srá Derigny. Venha, Derigny; o jantar
deve estar servido; como você é o mordomo, não podemos dispensá-
lo. Virá depois jantar e conversar com a sua mulher e os seus
filhos.
O general saiu, seguido de Derigny, e dirigiu-se ao salão, onde
encontrou a sobrinha com os quatro filhos mais velhos, que o
esperavam. Os outros pequenos, que tinham apenas seis, cinco,
quatro e três anos, ainda comiam nos aposentos.
O general entrou, de testa franzida. Apesar disso, ofereceu o
braço à sobrinha e conduziu-a à sala de jantar. A Sr á Papofski
sentia-se embaraçada; não sabia que atitude devia tomar, e olhava
disfarçadamente para o tio. Depois da sopa, encheu-se de coragem
e começou a falar:
- Oh, meu tio! Achei imensa graça quando o Yégor me contou o que
o tio dissera. Que original que o tio é! Diz coisas tão
engraçadas!
GENERAL - Creio que o que disse era verdadeiro de mais para te
divertir, Maria Pétrovna. Depende de ti que eu faça, ou não, o
que Yégor te comunicou.
- Oh meu tio - continuou a Sr á Papofski, muito risonha, apesar
de estar quase a
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rebentar de raiva. - Como pôde acreditar o que lhe dissera o
pateta do Yégor! É estúpido e não compreendeu o que eu Lhe
expliquei.
GENERAL - Mas eu compreendi perfeitamente e repito agora o que
lhe disse a ele: desgraçado daquele que tocar num cabelo dos meus
franceses!
SRa PAPOFSKI - Mas, meu tio, o Yégor trocou tudo! Eu tinha-Lhe
dito que me mandasse os seus amigos franceses para verem
chicotear uma das minhas criadas, que foi atrevida. O tio, como é
muito bom, raramente manda castigar os criados. E eu pensei que
este espectáculo devia diverti-los.
O general olhou para ela com surpresa e desprezo. Aquela mentira
era tão grosseira, que ele chegava a sentir-se ferido com o juízo
que a sobrinha fazia da sua inteligência. Fitou-a durante um
instante com os olhos brilhantes de cólera, mas depois, vendo
Derigny com uma
expressão aflita e suplicante, conseguiu acalmar-se.
GENERAL - Falemos de outra coisa. Como está a tua irmã Natália
Pétrovna?
SRa PAPOFSKI - Muito bem, meu tio; sempre bem.
GENERAL - Julguei que estava doente desde a morte do marido.
62
SRa PAPOFSKI - Pelo contrário, está alegre, diverte-se, dança!
Não pensa noutra coisa.
GENERAL - Mas o seu vizinho Nassofkine escreveu-me, há dias, e
diz-me que ela chora constantemente e não vai a parte alguma.
SRa PAPOFSKI - Não acredite, meu tio. Esse Nassofkine é um
mentiroso, bem sabe.
GENERAL - E os filhos?
SRa PAPOFSKI - São insuportáveis, detestáveis.
GENERAL - Nassofkine disse- me que Natasha, a filha mais velha,
que tem quinze anos, é encantadora, e os dois rapazes, Alexandre
e Miguel, são também muito simpáticos.
SRa PAPOFSKI - Como esse homem mente! São os três feios e
terríveis!
GENERAL - É singular! Vou escrever a Natália Pétrovna, para que
venha visitar-me com os filhos. Quero vê-los.
SRa PAPOFSKI - Não vale a pena escrever, meu tio. Ela não virá.
GENERAL - Porquê? Quando era nova, gostava muito de mim.
SRa PAPOFSKI - Está convencido disso? Bem digo eu que o tio é
muito bom. Ela não virá, porque sabe que o tio vive muito
isolado, e tem medo de se aborrecer. Além disso, quer
63
casar a filha, e como não tem absolutamente nada, anda a ver se
arranja algum ricaço, velho e feio.
GENERAL - Exactamente. É o meu caso: rico, velho e feio! Natália
Pétrovna far-me-á a corte e eu darei um dote à filha.
A Sra Papofski empalideceu e sentiu um arrepio. Pensou na herança
e não foi capaz de esconder a sua preocupação. O general
observava-a disfarçadamente. Estava radiante com a ideia do susto
que acabava de causar àquela sobrinha, de quem não gostava, e com
o projecto da visita da outra, de quem conservava a melhor
recordação. Por fim, como a Sra Papofski continuasse a querer
dissuadi-lo de convidar a irmã para vir a Gromiline, o general
resolveu mostrar-se convencido, e chegaram à sobremesa na melhor
disposição.
No seu íntimo, o general estava contentíssimo com a "partida" que
preparava à sobrinha, que, por seu lado, procurava, com os seus
exageros, tornar-se agradável a Derigny.
- Como sabe trinchar bem! - dizia ela. É um chefe de mesa
perfeito! Como o Derigny serve bem! É um tesouro que o tio aqui
tem! Vê tudo, atende a todos, sem uma falha! Que feliz eu seria,
se o tivesse ao meu serviço!
GENERAL - É natural que não tenhas nunca essa felicidade.
SRa PAPOFSKI - Porquê, meu tio? Ele é tão novo, tão forte!
GENERAL (com ironia) - E eu sou tão velho! Estou tão acabado.
SRa PAPOFSKI - O tio agora foi mau! Como pôde supor?
GENERAL - Naturalmente, dizes que ainda podes vir a ter Derigny
ao teu serviço, porque ele é novo e forte. Nesse caso é porque
esperas que isso suceda depois da minha morte. Não, não, minha
amiga; o meu bravo Derigny não te servirá a ti, nem a mais
ninguém. Estará ao meu serviço até à minha morte; depois ficará
ao serviço de si próprio e viverá com a sua excelente mulher e os
seus filhos.
A Sra Papofski mordeu os lábios e não falou mais. Depois do
jantar, o general foi passear, e todo o grupo o seguiu. Sonushka,
a um sinal da mãe, colocou-se ao lado do tio, procurando animar a
conversa. Depois de várias tentativas inúteis, lembrou-se de
dizer:
- Ah, meu tio, gosto muito dos franceses! O general continuou
calado.
SONUSHKA - Meu tio, gosto muito dos dois irmãos franceses. Queria
poder brincar com eles.
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GENERAL - Mas eles é que não quererão brincar com vocês, porque
sois implicativos, maus e mentirosos.
SONUSHKA - O Yégor é que foi mau, mas nós não o deixaremos tornar
a ser.
GENERAL - Basta, basta, minha pobre Sonushka. Aprendeste bem a
lição. Falemos noutra coisa. Gostas da tua tia Natália Pétrovna?
SONUSHKA - Nem por isso. meu tio.
GENERAL - Porquê?
SONUSHKA - Porque ela está sempre triste; depois que o tio foi
morto em Sebastopol, ela não faz outra coisa senão chorar; como
não recebe visitas, a casa dela é muito aborrecida.
GENERAL - E os filhos?
SONUSHKA - Também são aborrecidos, porque estão sempre ao pé da
mãe.
GENERAL - Porque estão eles sempre ao pé da mãe? É ela que os
obriga?
SONUSHKA - Oh! não, meu tio, pelo contrário, ela quer que eles
saiam e se divirtam. Mas eles preferem ficar.
GENERAL - São feios?
SONUSHKA - Não. Natasha é muito bonita, mas anda sempre tão mal
vestida! A tia Natália é tão pobre! E os outros também são
bonitos.
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- Ah Ah - exclamou o general. E continuou o seu passeio.
À noite, quando se reuniram, o general perguntou à sobrinha se o
cheiro do tabaco lhe era desagradável.
SRa PAPOFSKI - Absolutamente nada, meu tio! Até gosto imenso!
Lembro-me perfeitamente de que o tio fumava muito, quando eu era
pequenita. E eu, só por sua causa, habituei-me também a gostar.
O general olhou para ela com ar trocista e principiou a fumar até
que, por fim, adormeceu, comodamente recostado na sua poltrona.
As crianças foram-se deitar. A Sr á Papofski foi bater à porta de
Derigny, que estava ainda à mesa, com a mulher e os filhos.
O general ordenara que as refeições lhes fossem servidas nos seus
aposentos.
- Pode entrar! - disse Helena.
Ao ver que era a Sra Papofski, a mulher de Derigny fez-se muito
corada. Derigny teve um momento de surpresa. Tiago e Paulo
exclamaram:
- Oh! - tal foi o espanto. Levantaram-se todos e receberam-na com
a maior cortesia.
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- Não se incomodem - exclamou a Sra Papofski - Venho apenas para
lhes dizer que os meus filhos estão muito apoquentados por terem
feito chorar, sem quererem, o vosso pequenito. Já ralhei com
eles; o caso não se repetirá. Como os vossos filhos são
encantadores Quero beijá-los.
A Sra Papofski aproximou-se de Tiago e Paulo, que recuaram,
evitando o contacto da sobrinha do general, mas Derigny fez-lhes
sinal para que se deixassem beijar.
- Encantadores! - repetiu ela, ao sair. Depois, voltando-se para
Derigny e Helena, acrescentou: - Até amanhã. Não se esqueçam de
dizer ao meu tio que eu acho os vossos filhos encantadores!
Retirou-se, sorrindo, deixando o casal Derigny espantado e
indignado.
HELENA DERIGNY - Que hipócrita! É incrível!
DERIGNY - Chega a ser estupidez. Como vê que o general é nosso
amigo, resolveu "fazer-nos a corte", em vez de nos maltratar.
PAULO - Eu não gosto desta senhora. Tem cara de má. Quando me
beijou, há bocadinho, julguei que ia morder-me.
Derigny sorriu, olhou para a mulher, que ria com vontade, e
beijou Paulo.
68
DERIGNY - Descansa. Não te morderá enquanto o general aqui
estiver.
PAULO - E se ele se fosse embora?
DERIGNY - Nesse caso, far-nos-ia todo o
mal que pudesse. Mas, se o general partir, levar-nos-á também.
TIAGO - E se o general morrer?
DERIGNY - Que Deus nos defenda dessa
desgraça! Nesse caso, vamo-nos embora imediatamente.
HELENA DERIGNY - Esperemos que tal
não aconteça tão cedo. Tenhamos confiança
em Deus!
- Toc toc Podemos entrar? - disseram
várias vozes infantis.
-Eis uma nova invasão do inimigo
- murmurou Derigny, a sorrir. Depois, disse
em voz alta - Podem entrar!
Os oito pequenos Papofski precipitaram-se
no quarto, rodearam Tiago e Paulo, beijando-os com a maior
ternura.
- Vimos pedir-lhes perdão! - gritaram os
quatro mais velhos, ao mesmo tempo.
Os mais novos gritaram também, numa
grande confusão, sem que se percebesse o que
diziam.
Tiago e Paulo, empurrados, meio sufocados
com tantos abraços, e aborrecidos com toda
69
aquela comédia, não responderam. O que eles queriam era
desembaraçar-se daqueles falsos amigos.
- Peço-lhes que nos perdoem, senão a mamã castiga-nos! - insistiu
Sonushka, com voz suplicante.
TIAGO - Por mim, perdoo-lhes de todo o coração. Paulo fará o
mesmo, com certeza.
PAULO - Não! Eu não lhes perdoarei nunca. MITINEKA - Peço-te que
nos perdoes, francesinho.
PAULO - Não, não quero.
TIAGO - Isso é mal feito, Paulo. Devemos perdoar aos nossos
inimigos. Bem vês que eu já perdoei.
PAULO - Está bem; perdoo-lhes o que eles me fizeram a mim. Mas
estes marotos quiseram que a mamã fosse chicoteada, e isso é que
eu não posso perdoar.
TIAGO - Mas como eles estão arrependidos...
PAULO - Estão mas é a fingir.
Ouviu-se, então, um concerto de soluços e gemidos. As oito
crianças choravam e lamentavam-se, exclamando:
- Vão chicotear-nos! Perdoa-nos, francesinho! Dar-te-emos o que
quiseres!
PAULO - Peçam perdão à mamã. Se ela perdoar, eu também perdoarei.
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O grupo voltou-se para Helena Derigny, pedindo perdão de mãos
postas.
HELENA DERIGNY - Que Deus vos perdoe, como eu já vos perdoei! E
tu, Paulo, não sejas rancoroso.
- Visto que a mamã perdoa, eu farei o mesmo - declarou Paulo, em
tom majestoso.
- Obrigado! Obrigado! Seremos muito vossos amigos! Foi a mamã
quem assim ordenou. Adeus, franceses, até amanhã.
Os oito filhos da Sr á Papofski fizeram uma reverência e saíram
tão precipitadamente como tinham entrado.
Derigny, que presenciara tudo sem falar, encolheu os ombros e
suspirou:
- Como estas pobres crianças são educadas! Não é por sua culpa
que são maus, mentirosos, cobardes e hipócritas! É a sua mãe que
os aterroriza.
TIAGO - Devemos brincar com eles quando nos pedirem?
DERIGNY - Não há outro remédio, meu filho, mas façam-no o mais
raramente possível. E tu, Paulo, nunca vás sem o Tiago.
PAULO - Pode estar descansado, papá. Tenho muito medo.
Como já era tarde foram deitar-se.

A conspiração
Uma noite, estava Derigny junto do general. Tinham passado já
vários dias desde a chegada da Sr á Papofski e dos filhos, e tudo
decorria o mais tranquilamente possível.
O general esfregava as mãos de contente, e sorria. Com certeza
pensava em qualquer "partida" que tencionava fazer.
- Derigny, meu bom amigo - disse ele, de repente - preparei-Lhe
um bom trabalho.
DERIGNY - Estou às suas ordens, meu General!
GENERAL - Obrigado É que. espero visitas. Preciso de leitos à
moda francesa, e um mobiliário completo. Só você é capaz de me
arranjar isto.
72
DERIGNY - Farei o que for preciso. Para quantas pessoas?
GENERAL - Uma senhora, uma menina e dois rapazes de doze anos.
DERIGNY - Quantos dias me dá para eu preparar tudo?
GENERAL - Quinze dias e todo o pessoal de que você precisar.
DERIGNY - Está muito bem. Pode contar com o que deseja.
GENERAL - Bravo! Admirável! Não faça economias. Quero que fique
ainda melhor do que os aposentos de Papofski.
DERIGNY - Posso ir à cidade comprar aquilo de que necessitar?
GENERAL - Vá onde quiser e compre o que quiser! Dou-lhe carta-
branca.
DERIGNY - Quais são os quartos que é preciso mobilar?
GENERAL - Os melhores. Aqueles que es tavam arruinados e que
mandei arranjar sob a sua direcção. Não me pergunta para que é
todo este trabalho que lhe vou dar?
DERIGNY - Não seria capaz de tal indiscri ção, meu General.
GENERAL - É para a minha sobrinha.
73
- A Sr á Papofski? - exclamou Derigny, dando um salto para trás.
GENERAL (rindo a bom rir) - Aí está! Era isso mesmo que eu
esperava! Ah ah ah! Admira-se? Não, meu amigo, não o obrigarei a
trabalhar para essa sobrinha má, hipócrita e manhosa. Não vá,
agora, dizer-lhe isso.
DERIGNY (rindo) - Não há perigo, meu General.
GENERAL - Bom! É para outra sobrinha que eu tenho, Natália
Pétrovna, que era boa e carinhosa quando a deixei, e que é, ainda
hoje, o verdadeiro tipo da mulher russa, cada vez mais raro. Tem
três filhos que devem ser adoráveis. Convidei-os para virem todos
passar um tempo comigo. É a maneira de eu estabelecer a
comparação entre as duas irmãs. Papofski vai ficar furiosa! Ela
não sabe deste convite. Arranje-se de maneira que ela não possa
perceber absolutamente nada. Que bela ideia que eu tive! Ah ah
ah! Que boa "partida" eu vou pregar a Papofski!
Derigny e a mulher principiaram a trabalhar logo na manhã
seguinte. Derigny foi a Smolensko comprar tudo o que era preciso,
e contratou marceneiros, serralheiros, enfim, os operários de que
necessitava para realizar a sua
74
tarefa. Trabalhavam na aldeia e só depois de
prontos os móveis seriam transportados para o
palácio. O general aparecia de vez em quando,
distribuindo gratificações e aguardente. Os operários e
camponeses trabalhavam assim com melhor vontade, e abençoavam o
francês que lhes
proporcionava trabalho e dispunha bem o patrão a favor deles. O
próprio Vassili estava reconhecidíssimo a Derigny, por ele ter
conseguido livrá-lo das cem chicotadas a que o general
o tinha condenado, e procurava ajudar o melhor que podia, com a
inteligência que caracteriza o povo russo.
Derigny e a mulher fizeram de decoradores,
encarregando-se dos reposteiros e cortinados.
Antes dos quinze dias tudo estava pronto e posto nos seus
lugares. Quando o general foi ver
os aposentos destinados à Sra Dabrovine, parecia uma criança,
tal a sua alegria e entusiasmo.
Admirou a beleza do conjunto, sentou-se em
cadafauteuil, examinou todos os objectos, deu
mãos-cheias de moedas a Vassili e aos operários. Depois,
voltando-se para Derigny e Helena, disse:
- Quanto a vós, meus amigos, não é com
ouro que eu posso mostrar o meu reconhecimento pelo vosso zelo,
actividade e talento;
75
seria fazer-vos uma injustiça. É com o meu coração que eu vos
recompenso, dando-vos a minha estima e o meu reconhecimento. Mil
vezes obrigado, meus bons amigos (Ao dizer isto o general apertou
as mãos de Derigny e sua mulher. ) Ah! Maria Pétrovna, vais ser
punida pela tua maldade! Quando chegará a minha querida Natália
com a sua Natasha e os seus dois rapazes? Daria dez mil, vinte
mil rublos para que chegassem ainda hoje!
O general saiu, quase a correr, dos aposentos destinados à Sra
Dabrovine, para ir ver se descobria alguém ao longe, no caminho.
Derigny e sua mulher sentiam-se felizes com a alegria do general.
Tiago e Paulo, que haviam presenciado esta cena, riam e pulavam
de contentamento. Tinham conseguido não brincar mais com os
pequenos Papofski, e estavam radiantes com a ideia da surpresa
que o general lhes preparava.
Quando queriam estudar ou ocupar-se em qualquer coisa
tranquilamente, fechavam-se no quarto com Helena, e se, por
acaso, os outros vinham bater-lhes à porta, riam baixinho e não
respondiam.
Por seu lado, a Sra Papofski aproveitava todas as ocasiões para
testemunhar a "sua amizade"
76
e admiração aos "excelentes franceses"
que seu tio tanto estimava. Mas, embora Derigny a tratasse com a
mais respeitosa delicadeza, ela sentia-se desmascarada... A
atitude do
tio inquietava-a: evitava-a, nunca a procurava,
dizia-lhe palavras irónicas, meio a brincar,
meio a sério. Duas ou três vezes tentou comovê-lo com lamentações
e choros. Como isso não
desse resultado, resolveu tomar por brincadeira
tudo quanto o tio lhe dizia, mesmo quando ele
a tratava bruscamente.
Entretanto, o general tinha, por vezes, verdadeiros ataques de
alegria, como se tivesse
enlouquecido: lamentava a sobrinha pela vida
aborrecida que lhe proporcionava; prometia-lhe
visitas e distracções, e ria, ria, a "bandeiras
despregadas", passeando de um lado para o
outro, como se tivesse absoluta necessidade de
movimento.

8. A chegada da outra sobrinha


No mesmo dia em que o general manifestara o seu desejo de ver
chegar a Sra Dabrovine indo pela estrada fora, para ver se,
realmente, avistava alguém, pareceu-Lhe descobrir, ao longe, uma
nuvem de poeira. Parou, ansioso e contente; a nuvem aproximava-se
cada vez mais; não tardou a distinguir uma carruagem puxada por
quatro cavalos, que avançavam a trote largo.
Logo que a carruagem chegou tão perto que os seus gestos podiam
ser distinguidos, começou a agitar o lenço, a bengala e o chapéu,
para que o cocheiro parasse. Assim aconteceu. Então, o general
aproximou-se da portinhola, viu uma mulher ainda nova e
encantadora, vestida
78
de luto; junto dela, uma jovem de notável beleza em frente, dois
rapazes. Ao lado do cocheiro vinha uma mulher com aparência de
criada de quarto.
- Natália Minha sobrinha - exclamou o
general, abrindo a portinhola.
- Meu tio! - respondeu a Sr á Dabrovine
(porque era ela), descendo imediatamente da
carruagem e abraçando o general. - Oh! Meu
tio! Meu bom tio! Como eu tenho sido infeliz!
depois que estivemos juntos pela última vez!
0meu pobre marido, o meu querido Dmitri
foi morto em Sebastopol!
A Sra Dabrovine encostou a cabeça ao ombro do general, sem poder
conter as lágrimas.
O general, comovido com a dor tão sincera da
sobrinha, apertou-a de encontro ao coração.
GENERAL - Minha filha! Minha Natália!
Chora à tua vontade, como se estivesses junto
de teu pai, do teu melhor amigo! Deves ter sofrido muito!
SRa DABROVINE - E sofrerei sempre!
Como poderei eu esquecer um marido tão bom
e carinhoso? E os meus filhos Perderam o melhor dos pais!
GENERAL - Deixa-me beijar os teus filhos. Eles, decerto, já se
esqueceram de mim,
mas eu tenho pensado muito neles.
79
SRa DABROVINE - Desce, Natasha; e vocês também, Alexandre e
Miguel. Venham cumprimentar o tio.
Natasha saltou da carruagem e veio beijar o velho tio que ela não
tinha esquecido, apesar da sua longa ausência.
-Deixa-me ver-te bem, minha filha! disse o general, depois de a
ter beijado repetidas vezes. - És o retrato de tua mãe! Parece-me
que a estou a ver com a tua idade. Dize-me, ainda gostas deste
tio velho e doente? Em pequenina eras muito minha amiga.
-Gosto muito e gostarei cada vez mais! - respondeu Natasha, com
um sorriso encantador. E, baixando a voz, acrescentou:
Principalmente se o tio puder consolar um pouco a mamã. Ela tem
sido tão infeliz.
- Farei o que puder, minha filha! E os outros
Alexandre e Miguel receberam, por sua vez, um beijo do general.
GENERAL - Há lugar para mim na vossa carruagem, meus filhos?
NATASHA - Certamente, meu tio; sentar-me-ei no banco da frente,
com o Alexandre e o Miguel, e o tio irá ao lado da mamã.
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Subiram todos para a carruagem. Pela primeira vez, em dois anos,
o rosto triste da Sr á Dabrovine animou-se um pouco. Natasha
ficou cheia de contentamento e, apertando nas suas mãos as do
general, disse-lhe baixinho:
- Ela sorriu!
O tio sorriu também e olhou enternecidamente para as duas, mãe e
filha. Debruçou-se na portinhola e ordenou ao cocheiro que fosse
o mais depressa possível.
Entretanto o general fez inúmeras perguntas à sobrinha e aos
filhos, compreendendo, apesar da delicadeza das respostas, que
viviam com as maiores dificuldades.
- Chegámos! - disse o general. - Aqui está Gromiline, onde nos
vimos a última vez.
SRa DABROVINE - Que tempo tão feliz eu passei aqui, junto do tio
e do meu pobre Dmitri.
GENERAL - Espero que fiques aqui vivendo comigo. Esta casa será
tua e todos te obedecerão como a mim próprio.
SRa DABROVINE - Não abusarei da sua bondade, meu tio.
GENERAL - Bem sei, e é por isso mesmo que quero que fiques. Não
admito réplicas!

9. O triunfo do General
A carruagem aproximava-se do portão.
Apareceram logo criados, e a Sra Papofski, a
quem os filhos haviam prevenido de que estavam a chegar visitas,
veio também, para dar as
boas-vindas aos convidados do tio.
"Até que enfim, aparece alguém! - pensava
ela. - Ao menos não estarei sozinha com esse
velho detestável, que já não posso suportar. "
Ao ver o general descer da carruagem, a
Sr á Papofski não pôde conter uma exclamação
de surpresa:
- O tio? Também vem na carruagem?
- Sim, Maria Pétrovna, sou eu - respondeu
o general, parando com o pé no estribo e encobrindo com a sua
avantajada figura os outros
82
viajantes. E continuou: - Trago-te visitas. Adivinha quem.
SRa PAPOFSKI - Como posso eu adivinhar, meu tio? Não conheço
nenhum dos seus vizinhos.
GENERAL - Não são vizinhos, são amigos,
velhos amigos. Porque tu também já não és
uma rapariga, Maria Pétrovna...
A Sr á Papofski corou violentamente e quis
responder, mas mordeu os lábios, calou-se e esperou.
- Ei-los! - disse o general, depois de olhar
um momento para ela com ar de triunfo. Aqui estão os teus amigos!
Desceu, voltou-se para a portinhola e ajudou a descer Natasha (a
Sr á Papofski abafou
um grito de raiva)... depois Natália Pétrovna...
(a Sr. a Papofsky soltou um longo gemido tornou-se pálida como um
cadáver, cambaleou e
apoiou-se ao ombro do tio).
GENERAL - Como tu estás contente! Eu
tinha razão em dizer velhos amigos! Gosto de
te ver assim comovida com a chegada da tua
irmã. Está muito bem. Era mesmo isto que eu
esperava. O general estava radiante; o seu triunfo era
completo. A Sr á Papofski fazia o possível para
83
não desmaiar; queria falar, mas da boca entreaberta não Lhe saiu
nenhum som; no entanto, percebeu, embora confusamente, que a sua
perturbação podia ser interpretada favoravelmente. Esta esperança
reanimou-a; voltaram-lhe as forças; aproximou-se da irmã, toda
trémula, e disse:
- Perdão, querida, fiquei tão surpreendida! GENERAL (com malícia)
- E tão feliz! SRa PAPOFSKI (com hesitação) - Sim, meu tio, é tal
qual como diz; tão feliz por ver esta pobre Natália!
GENERAL (sempre irónico) - E em minha casa, ainda para mais. Esta
circunstância deve ter aumentado a tua felicidade.
SRa PAPOFSKI (com voz sumida) - Certamente, meu tio. Eu estou. eu
sinto. a alegria.
GENERAL (rindo) - Abracem-se Beija a tua irmã e os teus
sobrinhos, Maria Pétrovna, acalma-te.
A Sr. a Papofski, excitadíssima, beijou a irmã e os sobrinhos.
- Vem, minha filha - disse o general, oferecendo o braço à Sra
Dabrovine. - Vou conduzir-te aos teus aposentos. Vem connosco,
Maria Pétrovna.
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As palavras afectuosas que o general dirigia a Natália irritaram
ainda mais a Sra Papofski, que afastou Natasha e os irmãos,
deixando-os para trás, seguindo maquinalmente o tio e a irmã. O
general apressou o passo. Ao chegar em frente do quarto destinado
a Natália, a porta abriu-se; Derigny, sua mulher e filhos
esperavam-nos logo à entrada.
GENERAL - Eis-te em tua casa, minha querida filha, e tenho a
certeza de que te sentirás bem aqui, graças ao meu bom Derigny e
à sua excelente mulher, que te apresento, e mesmo aos seus
filhos, os meus amiguinhos Tiago e Paulo, que trabalharam como
dois homens. Recomendo-os todos à tua amizade.
SRa DABROVINE - Depois desta recomendação do meu tio podem estar
certos de que os estimarei muito sinceramente, porque, para ele
falar como falou, é porque tem sobejas provas da vossa dedicação.
A Sra Dabrovine fez um gracioso cumprimento a Derigny e Helena, e
aproximou-se de Tiago e Paulo, a quem beijou na testa, dizendo-
lhes:
- Espero, meus meninos, que sereis bons amigos dos meus filhos,
que têm, pouco mais ou menos, a vossa idade. Ensinar-Lhes-eis o
85
francês e eles ensinar-vos-ão o russo. Será um serviço que
prestarão uns aos outros.
- Entrem, entrem todos - exclamou o general - e vejam o que
Derigny fez em quinze dias, deste aposento sujo e sem móveis.
A Sr á Papofski foi a primeira a entrar no bonito salão, que
podia servir também de sala de estudo. Coisa alguma tinha sido
esquecida; móveis simples mas confortáveis, uma grande mesa de
trabalho, um piano, lindos cortinados floridos davam ao aposento
um aspecto elegante e acolhedor.
A Sr á Papofski ficou imóvel, olhando para tudo, tão pálida como
um cadáver.
A Sra Dabrovine contemplou com olhar triste e doce todas aquelas
coisas tão agradáveis e depois, aproximando-se do tio com os
olhos cheios de lágrimas, beijou-lhe a mão, dizendo:
- Como o tio é bom! E como os meus amigos são gentis!
Natasha corria de um lado para o outro, tocando em tudo,
examinando tudo. Quando acabou a sua inspecção, veio lançar-se ao
pescoço do general, beijando-o e exclamando:
- Que lindo! Nunca vi nada mais bonito! Passarei aqui os dias com
a mamã, e o tio há-de vir ver-nos muitas vezes, sim? Fumará
sentado
86
naquela poltrona junto da janela, que tem uma vista tão bonita.
Eu sei que o tio gosta de fumar! O Alexandre, o Miguel e eu
trabalharemos em volta desta mesa; tocaremos piano, e a mamã
estará ao pé do tio.
SRa PAPOFSKI (com um sorriso forçado)
- E eu, Natasha? Onde é o meu lugar? NATASHA (embaraçada) -
Perdão, minha tia, eu não sabia. se lhe seria agradável.
-. o cheiro do tabaco - exclamou o general, beijando a pequena e
rindo a bom rir.
- Obrigada, meu tio! - murmurou Natasha ao ouvido do general. -
Eu tinha-me esquecido.
GENERAL - Vamos ver os quartos de dormir. Aqui tens o teu, minha
filha.
Nova surpresa, novas exclamações e uma fúria ainda maior da Sra
Papofski, que comparava os seus aposentos com os da irmã, que ela
detestava. Natasha e os irmãos corriam de um quarto para o outro,
admiravam, agradeciam. Quando souberam que tudo aquilo era obra
da família Derigny, Natasha lançou-se ao pescoço de Helena,
enquanto os dois pequenos, doidos de alegria, abraçavam Tiago e
Paulo.
A satisfação do general não pode descrever-se. Ria, passeava de
um lado para outro, esfregava
87
as mãos e olhava, com enternecimento, para a Sra Dabrovine, que
sorria também ao ver os filhos tão contentes.
Natasha, com os olhos brilhantes, beijava a mão do tio e repetia:
- Meu tio! Meu tio! Como eu sou feliz! Como o tio é bom!
GENERAL - Também eu estou feliz por vos ver contentes. Há muito
tempo que não sentia uma satisfação tão grande à minha volta. Só
uma vez, em França, é que tornei, assim, pessoas felizes: os meus
bons Derigny, Elfy e Moutier (').
NATASHA - Oh! meu tio, conte-nos como foi! Eu gostava de saber o
que o tio fez!
- Mais tarde, minha filha - respondeu o general, sorrindo. -
Agora vão descansar um pouco. Derigny vai mandar-lhes a criada.
Jantaremos dentro de uma hora. Ficas com a tua irmã, Maria
Pétrovna?
SRa PAPOFSKI - Sim. Não. Quer dizer. eu gostaria de apresentar os
meus filhos a Natália.
GENERAL - Tens razão. Vai, vai. Eu e Derigny vamos ocupar-nos das
coisas necessárias.
(1) Referência a Pousada do Anjo da Guarda.
A Sra Papofski dirigiu-se para o seu quarto, olhou, com cólera, o
modesto mobiliário e, não podendo conter-se mais, caiu sobre o
leito, a soluçar.
"A herança! - pensava ela. - Seiscentos mil rublos de rendimento.
Não será para mim! Ele vai deixar tudo a Natália, que eu odeio, e
que se finge desolada e pobre, para o comover. E a estúpida da
filha? Pula como se tivesse dez anos, a abraçá- lo, a beijá-lo! E
ele, aquele imbecil, julga que é adorado e acha toda esta comédia
encantadora. Arranjou-lhes aposentos como se fossem uns príncipes
- para eles, que estão na miséria, que comem pão negro e leite
coalhado, que dormem em enxergas e só têm o fato que trazem
vestido! E a mim, que sou rica e estou habituada à elegância,
trata-me como se eu fosse igual a esses antipáticos Derigny! Sei
muito bem, pelas criadas, que me deram a cama e os móveis que
estavam no quarto deles "
Estes pensamentos absorveram- na de tal forma, que ainda não
estava arranjada quando vieram chamá-la para o jantar. Saltou do
leito, lavou o rosto com água fria para não se perceber que tinha
chorado, alisou os cabelos, escovou o vestido e dirigiu-se ao
salão, onde encontrou o general com Natália e os filhos, que
brincavam com os primos.
89
- Esperávamos por ti, Maria Pétrovnadisse o general, avançando
para ela e oferecendo-lhe o braço. Dirigindo-se a Natália, disse-
lhe: - Embora sejas tu a recém-chegada, ofereço o braço a tua
irmã porque é mais velha. Deve ter, pelo menos, mais dez ou doze
anos do que tu.
SRa DABROVINE (embaraÇada) - Oh! Não, meu tio, não fazemos tanta
diferença.
90
SRa PAPOFSKI (irritada) - Deixa falar o tio. Ele acha graça em
envelhecer-me e em rejuvenescer-te.
GENERAL (encantado) - Mesmo que eu me tenha enganado em dois ou
três anos, Natália tem trinta e dois, e tu deves ter quarenta e
dois.
SRa PAPOFSKI - Cinquenta, meu tio Ou sessenta, se prefere!
GENERAL (com malícia) - Lá chegaremos. Ah Ah Lá chegaremos.
Nasceste em mil oitocentos e.
SRa DABROVINE - Estamos na sala de jantar meu tio. Confesso-lhe
que tenho um certo apetite.
GENERAL - E eu também tenho fome e sede de verdade. Mas, ia
dizendo: foi em mil oitocentos.
SRa DABROVINE - A verdade é que o tio continua a ser arreliador,
como era dantes. Gosta de atormentar a pobre Maria. Veja como a
Natasha olha para si, surpreendida.
O general voltou-se, vivamente, deixou o braço da Sr á Papofski e
mandou que se sentassem todos.
- É verdade que estás espantada com a minha brincadeira, Natasha?
- perguntou ele. Achas que sou mau?
91
NATASHA - Meu tio.
Ao dizer isto, a pequena fez-se muito corada e calou-se.
GENERAL (sorridente) - Fala sem receio, minha filha. Já declarei
que tenho fome e sede de verdade.
NATASHA - Parece-me que o tio não está a ser bom para a tia Maria
Pétrovna. É isso que me espanta, porque sempre o conheci bondoso,
e a mamã, quando nos falava de si, afirmava que tinha muito bom
coração.
GENERAL - E agora, que pensas tu? NATASHA - Gosto muito do tio, e
queria que todos gostassem como eu.
GENERAL - Voltaremos, mais tarde, a falar neste assunto. E
enquanto esperamos que me corrija do meu feitio arreliador,
jantemos com alegria. Prometo-te não tornar a irritar a
tia.
NATASHA - Obrigada, meu tio. Perdoa-me o ter sido franca, não é
verdade? GENERAL (rindo) - Não só te perdoo, como te agradeço;
nomeio-te minha conselheira privada.
O general, cada vez mais seduzido pelos seus novos convivas, foi
encantador, durante o jantar, conseguindo distrair Natália que
sorriu,
92
mais de uma vez, dos seus ditos joviais. Ao serão, as crianças
brincaram na grande galeria contígua ao salão. Natasha dirigia os
jogos, fazendo sorrir a mãe e rir francamente o general, que a
achava adorável.
Passaram alguns dias; o general dedicava-se cada vez mais à Sra
Dabrovine, e detestava também cada vez mais os Papofski. Uma
noite, Natasha entrou no salão e disse:
- Meu tio, dá-me licença de ir chamar o Tiago e o Paulo para
virem brincar connosco? Já devem ter acabado de jantar.
GENERAL - Vai, minha filha; faze o que quiseres.
Natasha beijou o tio e saiu, a correr, não tardando a regressar,
seguida por Tiago e Paulo. Tiago aproximou-se do general e disse:
- A menina Natasha informou-nos que o senhor General nos
autorizara a vir brincar com os seus sobrinhos.
GENERAL - Com certeza! Natasha é o meu procurador; façam o que
ela lhes disser.
Os pequenos foram imediatamente com Natasha, para a galeria. No
salão ouviam-se todos rir e brincar. O general estava radiante; a
Sra Dabrovine olhava para ele com afectuosa satisfação; a Sr á
Papofski irritava-se com o barulho
93
que as crianças faziam, achando que tanto ruído devia fazer mal
ao "seu bom tio", como ela dizia.
GENERAL (impaciente) - Deixa-os lá, Maria Pétrovna! Ouvi mais
barulho na Circassia e na Crimeia. Que demónio. Os meus ouvidos
não são tão delicados que me façam ter convulsões lá porque oiço
rir e gritar um bando de crianças!
SRA PAPOFSKI - Mas assim nem sequer podemos conversar!
GENERAL - Olhem a grande desgraça! Não é indispensável conversar
durante todo o serão. Assim, tenho a ilusão de ser chefe de
família, e gozo com a felicidade que proporciono aos pequenos e a
tranquilidade da minha pobre Natália.
A Sr á Papofski mordeu os lábios, pegou no bordado e não disse
nem mais uma palavra, enquanto o general conversava com a Sr á
Dabrovine.
De repente, ouviu-se uma discussão violenta e gritos de furor.
GENERAL - Que aconteceu?
SRa DABROVINE - Eu vou ver, meu tio.
não se incomode.
94
A Sra Dabrovine entrou na galeria e encontrou Alexandre a lutar
com Mitineka e Yégor; Miguel segurava Sonushka com toda a força;
Tiago, com os olhos brilhantes e os punhos fechados, estava em
atitude de boxista. Natasha procurava, em vão, separar os
contendores. Os outros gritavam, cada qual com mais força.
A entrada da Sr á Dabrovine restabeleceu a calma como por
encanto. Ela aproximou-se de Alexandre e disse-lhe, severamente:
- Não tens vergonha de brigar assim com o teu primo? E tu,
Miguel, que quer dizer essa violência para com a tua prima?
As crianças começaram a falar todas ao mesmo tempo; Natasha
conservava-se calada. A Sra Dabrovine, que não conseguia
compreender as explicações das crianças, disse a Natasha que lhe
contasse tudo o que se passara.
A pequena corou e continuou calada.
- Porque não me respondes, Natasha?
- É porque terei de acusar. e eu não
queria.
- Mas eu preciso de saber a verdade, minha filha, e ordeno-te que
me expliques sinceramente o que aconteceu.
95
- Nesse caso, mamã, eu conto: Alexandre e Miguel quiseram
defender o pobre Paulo, tão pequenito, que Mitineka, Sonushka e
Yégor atormentavam já há imenso tempo. Tiago e eu fizemos o que
pudemos para o defender, mas eles juntaram-se todos contra nós e
começaram a bater-nos. Veja como o Miguel está arranhado, e como
o Alexandre tem os cabelos arrancados. Quanto a Tiago, não deu
nem um único soco, apesar de ter recebido bastantes.
- Venham para o salão, Alexandre e Miguel, e tragam Tiago e
Paulo. Deixem os primos questionar uns com os outros.
O general ouvira tudo quanto a Sra Dabrovine e Natasha tinham
dito. Levantou-se, sempre calado, deixou a sobrinha e os pequenos
entrar no salão, foi ele próprio à galeria, puxou, com força, as
orelhas dos três filhos mais velhos da Sr á Papofski, distribuiu
alguns sopapos pelos outros, voltou para o salão e sentou-se
novamente na sua poltrona. Depois chamou Natasha e perguntou-lhe:
- Dize, minha filha, que fizeram eles ao meu amiguinho Paulo?
NATASHA - Estávamos a brincar aos hospitais. Paulo era um doente;
Mitineka, Sonushka e Yégor, que eram os médicos, quiseram
96
obrigá-lo a engolir uma bola de teias de aranha; o pobre pequeno
não quis, e Tiago correu a defendê-lo. Eles, então, bateram no
Tiago, que não lhes deu um único soco. Atiraram com ele ao chão e
iam novamente agarrar o Paulo, apesar das súplicas de Tiago,
quando Alexandre e Miguel, indignados, correram em socorro de
Tiago e Paulo, vendo-se obrigados a lutar com Mitineka, Sonushka
e Yégor, que nem ao menos quiseram ouvir-nos. Foi então que a
mamã entrou e libertou o Paulo.
Enquanto Natasha contava animadamente a cena cujo final a Sra
Dabrovine presenciara, o general dava sinais, cada vez mais
fortes, de cólera. Levantando-se bruscamente e dirigindo-se à Sra
Papofski, disse:
- Minha senhora, os seus filhos são detestavelmente mal educados!
São maus, cruéis e hipócritas. Não quero gente assim em minha
casa, percebe? A senhora e os seus filhos perturbam a paz da
minha casa. Se não mudam de hábitos, teremos que nos separar. A
senhora veio sem que eu a chamasse - sei perfeitamente porquê.
Mas as contas sair-Lhe-ão erradas...
A Sra Papofski estava quase a ter um ataque de fúria, mas
conseguiu dominar-se e respondeu ao general num tom de vítima:
97
- Estou desolada, meu tio! Vou chicotear os meus filhos. Pode,
mesmo, chicoteá-los o tio, se preferir. Eles não voltarão a fazer
o que fizeram agora, prometo-lhe. Não nos afaste de si, meu
querido tio; eu não suportaria essa desgraça...
O general cruzou os braços e olhou para ela fixamente. O seu
rosto exprimia desprezo e cólera. Só disse uma palavra: -
Miserável! Ofereceu o braço a Natália, deu a mão a Natasha, e
chamando Alexandre, Miguel, Tiago e Paulo, dirigiu-se para os
aposentos da Sr á Dabrovine.
Entrou no salão, onde costumava passar uma parte dos dias,
passeou para trás e para diante durante alguns momentos, parou,
pegou nas mãos da sobrinha, contemplou-a em silên- cio e depois
disse:
- És tu, só, quem é e será minha filha! Doce, boa, carinhosa e
sincera, tu educaste os teus filhos à tua semelhança. A outra não
receberá nada, nada!
SRa DABROVINE - Ó meu tio! Peço-lhe!
GENERAL (apertando-lhe as mãos) - Cala-te! Vais fazer-me
enfurecer de novo! Deixa-me esquecer esta cena e a baixeza
revoltante da tua irmã. Junto de ti e dos teus filhos sinto-me
estimado, eu próprio vos estimo muito e sou feliz. Junto da outra
sinto revolta e desprezo. Brinquem, meus filhos - acrescentou
ele, voltando-se para Tiago, Paulo e para os seus dois sobrinhos.
- Eu não tenho medo do barulho. Divirtam-se.
TIAGO - Poderemos brincar às escondidas e correr no corredor?
GENERAL - Às escondidas, às guerras, ao assalto, a tudo quanto
quiserem. A minha única contrariedade é não poder correr com
vocês. Mas, primeiro, vão chamar Derigny. E agora, Natália, vou
instalar-me para o serão, como de costume. Posso fumar?
SRa DABROVINE - Precisa, por acaso, de fazer essa pergunta, meu
tio? Já se esqueceu de como eu gosto do cheiro do tabaco?
GENERAL - Não. mas receava. SR DABROVINE - Fazer-me pensar no meu
pobre Dmitri, que costumava fumar consigo? Eu nunca o esqueço em
circunstância alguma, e gosto de tudo o que me aviva a lembrança
dele.
O general não respondeu; aproximou a sua poltrona daquela em que
a sobrinha estava sentada, pegou-lhe na mão e ficou pensativo.

10. Conversas íntimas


As reflexões do general foram interrompidas pela entrada dos
pequenos, acompanhados por Derigny, que se mostrava tão contente
como eles. Porém, ao chegar em frente do general, apresentou-se
com toda a seriedade:
- Mandou-me chamar, meu General! Aqui
estou!
- Sim, meu amigo; traga-me a minha caixa de tabaco, o meu
cachimbo e os nossos livros de contas. De futuro, trabalharemos
aqui, à noite, visto que a minha sobrinha mo permite e acha que
não a incomodo.
- Obrigada, meu tio! como o tio é bom!
- exclamou Natasha, lançando-se-lhe ao pescoço. - Veja, veja como
a fisionomia da
100
mamã se transformou! Chega, quase, a parecer feliz.
A Sra Dabrovine sorriu, acarinhou a filha e beijou a mão do
general, que estava verdadeiramente radiante. Derigny parecia tão
contente como o general e foi, sem demora, cumprir as ordens que
recebera. Logo que viu, na sua frente, a mesa coberta de papéis e
cadernos, onde costumava trabalhar, o general exclamou:
- Bravo, meu amigo! Não quis falar na mesa para o não fatigar,
mas você adivinhou o meu pensamento. Vamos, pois, ao nosso
trabalho!
A certa altura, Derigny apresentou-lhe um papel, pedindo-lhe para
o ler.
GENERAL (depois de o ter lido) - Quem escreveu isto?
DERIGNY - A Sr á Papofski, meu General. GENERAL - E porque quis
você que eu o lesse?
DERIGNY - Porque a Sr á Papofski quer que tudo quanto aí está
mencionado seja comprado por conta do meu General, e eu entendi
que não o devia fazer sem o consultar.
GENERAL - Fez muito bem. Calcula tu, Natália, que a tua irmã
resolveu vestir de novo o cocheiro, o postilhão, os lacaios, os
criados
101
(seis, creio eu), obrigando-me a pagar tudo.
Mais ainda: ordenou que trocassem os doze
péssimos cavalos que ela trouxe, pelos melhores
das minhas cavalariças. Acho forte! Não terá
muito trabalho a cumprir as suas ordens. Aqui
tem a minha decisão.
Dizendo isto, o general rasgou em pedaços a
folha de papel escrita pela Sr á Papofski; depois levantou-se, a
rir, esfregou as mãos, despediu-se de Natália e dos filhos e
retirou-se para o
seu quarto, acompanhado por Derigny.
Os pequenos, que só excepcionalmente tinham ficado levantados até
tão tarde, foram
também deitar-se.
Enquanto ajudava a mãe a arrumar os livros
e cadernos espalhados, como costumava fazer
todas as noites, Natasha foi dizendo:
- Derigny e a mulher arranjaram-nos todos
estes armários, quando, afinal, só um chegava,
à vontade.
SRa DABROVINE - É porque supõem que
somos ricos.
NATASHA - O tio é tão bom para nós! SR.a DABROVINE - Sempre o
conheci assim bom, para mim e para o teu pobre pai.
NATASHA - Porque será que ele não é bom para a tia Maria
Pétrovna?
102
SRa DABROVINE - Não sei, minha filha! talvez tenha razões de
queixa dela. Como tu sabes, a tia nem sempre é amável.
NATASHA - Pelo menos para nós nunca o foi. Porque não gosta ela
da mamã, que é tão boa?
SRa DABROVINE - Talvez eu a tenha ofendido sem querer.
NATASHA - Isso não é possível! Tenho a certeza!
SRa DABROVINE - És ainda muito nova para compreender certas
coisas. Quem nos diz se, na realidade, a tia não estará
convencida de que nós também não gostamos dela?
NATASHA - Como pode ela imaginar semelhante coisa, sendo a mamã
tão boa, tão franca, tão prestável e carinhosa?
- Pensas tudo isso porque gostas muito de mim e julgas-me mais
perfeita do que sou, minha filha! - disse a Sra Dabrovine, a
sorrir, beijando Natasha e apertando-a de encontro ao coração.
Vendo a mãe sorridente, Natasha ficou cheia de alegria e parecia
querer sufocá-la com beijos e abraços, ao mesmo tempo que dizia:
- Até que enfim a vejo sorrir! É ao tio que devemos tal milagre.
Por isso gosto tanto dele!
103
Como nós vamos ser felizes aqui, sempre com
o tio! Nunca mais nos separaremos.
SRa DABROVINE - A morte separa as
mais ternas afeições, minha filha.
NATASHA - Ó mamã!
SRa DABROVINE - Entristeço-te, filha?
Desculpa. Vamos dormir, sim?
Mãe e filha abraçaram-se e beijaram-se ainda mais uma vez;
fizeram, em conjunto, a oração da noite e deitaram-se. Natasha,
porém, estava tão contente, que saltou do leito e veio
beijar novamente a mãe, exclamando:
- Como nós estamos bem aqui, mamã! O
meu quarto é tão bonito! Vivo aqui como uma
rainha!
- Também eu me sinto feliz por isso, minha filha. Mas volta
depressa para a cama;
podes constipar-te. Boa noite.
Enquanto isso se passava nos aposentos da
Sra Dabrovine e de Natasha, o general, por seu
lado, conversava com Derigny, que se tornava
de dia para dia, mais seu amigo e verdadeiro
confidente.
- É uma pérola, uma verdadeira pérola!
- dizia ele. - É hoje tal qual como quando a
deixei, a minha querida Natália, menos na felicidade. Mas havemos
de tratar de a fazer
104
feliz. Tenho um plano. Hei-de deixar-lhe toda a minha fortuna,
com excepção de um milhão, que reservo para o dote de Natasha.
Por que sorri você, Derigny? Julga que não tenho um milhão para
lhe dar?. Ou então pensa que mudarei de ideia, como sucedeu com o
Torchonet? (') Por acaso Natasha não é como minha neta?
DERIGNY - Eu sorrio, meu General, porque gosto de o ver contente
e porque pressinto, para si, uma nova vida de ternura e
felicidade. E também porque vejo que há uma boa obra a fazer, e
que será, ao mesmo tempo, proveitosa para o meu General.
GENERAL - Que boa obra vem a ser essa? DERIGNY - Meu General: eu
tive conheci mento, pela criada de quarto da Sr á Dabrovine, de
que ela é muito bondosa para os servos e que, tanto ela como os
filhos, são adorados pelos camponeses da vizinhança. Mas a Sra
Dabrovine é quase pobre; o marido gastou muito dinheiro e
contraiu dívidas com a campanha da Crimeia. Ela pagou tudo e
ficou apenas com mil e trezentos rublos de rendimento, dedicando-
se
() Ver a Pousada do Anjo da Guarda
105
à educação dos filhos. Para a menina, está bem; mas os rapazes
vão crescendo e necessitam de aprender outras coisas, que uma
senhora, por muito instruída que seja, não lhes pode ensinar. Por
isso.
GENERAL - Diga tudo. Quer ser você o preceptor dos pequenos? Por
mim, acho óptimo.
DERIGNY (rindo) - Eu, meu General? Mas eu ignoro o que devem
saber os jovens de família tão ilustre como os filhos da Sr á
Dabrovine. Não, não era isso que eu queria dizer. A minha ideia
era outra. Pensei que o meu General poderia conservar a Sra
Dabrovine e os filhos junto de si, e mandar vir um preceptor para
eles. Teria assim a família que lhe falta, e eles encontrariam o
pai e o protector que perderam.
GENERAL - Muito bem pensado e muito bem dito! Descubra-me um
preceptor o mais
depressa possível.
DERIGNY (espantado) - Eu, meu General? Como poderei?
GENERAL - Está claro que pode, meu amigo. Você pode tudo quanto
quer. Procure, procure. Boa noite. Vou deitar-me e adormeço hoje
muito satisfeito!
106
Derigny dirigiu-se ao seu quarto. As crianças dormiam, mas Helena
esperava por ele.
- O general incumbiu-me de uma delicada missão! - disse rindo. -
Tenho de descobrir um preceptor para os pequenos Dabrovine.
HELENA DERIGNY - E como vais tu arranjar um preceptor?
DERIGNY - De maneira nenhuma, porque certamente o general nunca
mais pensa no caso. Tenho pena, porque gostava de ser útil à Sra
Dabrovine, que me parece boa pessoa e é tão diferente da irmã.
HELENA DERIGNY - Os filhos também não se parecem nada com os
antipáticos Papofski. São bons e bem educados.
O casal Derigny conversou ainda durante algum tempo, recordando a
França, as pessoas queridas que lá tinha deixado. Depois, marido
e mulher adormeceram tranquilamente como sucede às pessoas que
têm a consciência
em paz.

11. O preceptor
Passaram-se mais alguns dias sem que se desse qualquer
acontecimento notável. A Sr. a Papofski lá ia dominando a sua
cólera conforme podia, sempre que se encontrava na presença do
tio, a quem procurava lisonjear cada vez mais. Evitava a irmã,
assim como os filhos fugiam dos primos, que faziam grupo à parte
com Tiago e Paulo.
Quando soube, por Derigny, que o general rasgara a sua lista de
compras, a Sr. a Papofski perguntou:
- Mostrou essa lista ao meu tio?
DERIGNY - Era o meu dever. Não faço despesa alguma que não seja
autorizada pelo
meu amo.
108
SRa PAPOFSKI - Mas não era necessário ele ter conhecimento disso.
O meu tio gasta à toa e o senhor podia, perfeitamente, incluir
essa despesa numa outra conta qualquer.
DERIGNY - Se fizesse isso tornava-me indigno da confiança do
general, e eu sou incapaz de tal desonestidade.
SRa PAPOFSKI - Bem sei que o Derigny é uma pessoa honestíssima.
Fiz isto de propósito para ter a prova de que o senhor é digno da
estima que o meu tio tem por si. Também eu o estimo muito, creia.
Sinto-me desamparada no mundo. Se o senhor soubesse como eu me
preocupo com o futuro dos meus filhos! Somos tão pobres!
Derigny não respondeu; mesmo sem querer, sorriu ironicamente,
cumprimentou a Sr. a Papofski e saiu, pensando, de si para si,
que aquela sobrinha do general era, realmente, uma intrigante,
interesseira e hipócrita.
Por seu lado, a Sr. a Papofski, no seu íntimo, prometeu a si
própria fazer tudo quanto pudesse para comprometer Derigny e
fazer-lhe perder a confiança do general. De tal forma se exaltou
que, sem dar por isso, começou a falar em voz alta:
109
"Eu te arranjarei! Finges-te honesto porque sabes que não gosto
de ti! E como vês o estúpido carinho do meu tio por Natália e os
filhos, procuras agradar-lhe, a ela! Querem expulsar-me daqui,
mas ficarei! Hei- de vigiá-los e inventar seja o que for para os
comprometer. Denunciá- los-ei como conspiradores polacos.
católicos. Farei com que sejam todos presos, condenados. Mas
preciso de tempo. Talvez um ano. Dentro de um ano serei senhora
de Gromiline, e hei-de chicoteá-los, a todos! "
Enquanto ela falava, Tiago passou no corredor. Ouvindo-lhe a voz,
julgou que a Sr. a Papofski estava a falar com o pai, e parou,
esperando vê-lo sair. Espantado com o que ouvia, o pequeno não
pôde dominar-se e, aproximando-se da porta entreaberta, espreitou
para dentro do quarto. Ao ver que a Sr. a Papofski estava só, o
seu pavor aumentou ainda mais e, trémulo, com o coração a querer
saltar-lhe do peito, retirou-se sem fazer ruído e foi ter com os
pais.
TIAGO - Papá! Mamã! É preciso prevenir o general! A Sr. a
Papofski quer tirar-lhe tudo! mandá-lo prender e a nós também.
Temos de fugir com o general e voltar para casa da tia
Elfy.
110
DERIGNY - Tu estás doido, Tiago! Quem te meteu isso na cabeça?
Não vês que a Sr. a Papofski, apesar de ser muito má, não pode
fazer mal algum ao general nem mesmo a nós?
TIAGO - Tenho a certeza, papá! Eu ouvi perfeitamente: "Querem
expulsar-me daqui, mas ficarei"
E o pequeno repetiu aos pais tudo quanto ouvira à Sr. a Papofski.
Derigny e Helena já não riam. Sem perder a serenidade, Derigny
pediu à mulher que não tivesse receio e recomendou ao filho que
não repetisse a ninguém uma única palavra do que tinha ouvido,
explicando-lhe:
- Se a Sr. a Papofski descobre que alguém a escutou, vingar-se-á,
e talvez não tivéssemos tempo para nos defendermos.
TIAGO - Está bem, papá; não direi nada a ninguém. Mas onde está
Paulo?
DERIGNY - Anda a brincar lá fora. TIAGO - Vou ter com ele. Tenho
sempre medo de que esteja sozinho com os terríveis Papofski.
Tiago foi encontrar o irmão junto de uma pequena floresta,
imóvel, falando com alguém que ele não via. Correu para ele e
chamou-o. Paulo voltou-se e fez-lhe sinal para que se
111
aproximasse. Tiago assim fez e ouviu o irmãozito dizer: - "Não
tenha medo, é o Tiago. Ele é bom e não dirá nada. "
TIAGO - Com quem falas tu?
PAULO - Com um pobre homem, tão pálido e tão fraco, que nem pode
andar.
Tiago olhou para a floresta e viu, por entre
os troncos, um homem meio deitado, com o
aspecto de quem está quase a morrer.
TIAGO - Quem é o senhor? Porque está
aí? Por onde entrou?
DESCONHECIDO - Perdi-me na floresta.
Morro de fome e de frio. Não comi nem bebi
nada desde anteontem à noite.
TIAGO - Coitado! Vou buscar qualquer
coisa para lhe dar e prevenir o papá.
DESCONHECIDO - Não, não; não lhe diga
que eu estou aqui. Se me denunciar, estou perdido.
TIAGO - O papá não o denunciará. Não tenha medo. Espere um
bocadinho. Vem comigo Paulo; vamos buscar de comer para este
pobre homem.
Antes que o desconhecido tivesse tempo de repetir as suas
súplicas, os dois irmãos desapareceram, correndo.
112
O desgraçado deixou-se cair por terra, fazendo um gesto de
desespero.
"Estou perdido! - murmurou ele. - Meu Deus, tende piedade de mim!
"
Ao dizer isto, apertou contra o peito uma pequena cruz de
madeira, depois levou-a aos lábios, e ficou a orar.
Minutos depois, os dois pequenos voltavam, correndo, acompanhados
pelo pai.
Ainda antes de lhe fazer qualquer pergunta, Derigny fez-lhe tomar
uma chávena de caldo quente, com um bocado de pão e um copo de
vinho. O desgraçado comia e bebia com avidez, mas Derigny
recomendou-lhe:
- Agora não coma mais. Como está muito fraco, pode fazer-Lhe mal.
Daqui a uma hora tornará a comer. Experimente, a ver se é capaz
de se levantar, e vamos para o palácio.
- Que palácio é este? Quem vive aqui? perguntou o desconhecido em
voz sumida.
DERIGNY - O general Conde Dourakine. DESCONHECIDO - Dourakine!
Dourakine! Será possível? E ainda é o mesmo homem valente e bom
que eu conheci?
DERIGNY - É sempre o melhor dos homens. Um pouco arrebatado, por
vezes, mas bondoso como nunca conheci outro.
113
DESCONHECIDO - Previna-o... Vá dizer-lhe... Mas não. vou ver se
posso andar. Sinto-me melhor.
O pobre homem quis levantar-se, mas não o
conseguiu.
- Não posso! - murmurou ele, abatido.
DERIGNY - Quer que eu vá prevenir o
general?
DESCONHECIDO - É preferível. Diga-Lhe
que venha aqui, por amor de Deus e de Romane.
Derigny, embora intrigado com as palavras
enigmáticas do desconhecido, afastou-se sem
fazer qualquer pergunta. Recomendou aos pequenos que voltassem
para o palácio, mas que,
a não ser à mãe, nada dissessem do sucedido.
Em seguida foi contar o estranho caso ao general.
GENERAL - Que demónio quer você que
eu faça? Se ele se perdeu, que se encontre...
DERIGNY - Mas, meu general, ele está
quase morto de fome, frio e fadiga.
GENERAL - Que lhe dêem roupas, que o
aqueçam e lhe dêem de comer. Leve os meus
próprios agasalhos, se quiser. Mas quem é esse
homem? Um camponês? Um negociante?
DERIGNY - Não sei, meu general. Mas esqueci-me de lhe dizer que
ele lhe mandou pedir
114
que fosse até junto dele - "por amor de Deus e de Romane".
GENERAL (dando um salto na poltrona) Romane! Romane! Não é
possível! Ele disse Romane? Tem a certeza disso?
DERIGNY - Absoluta certeza.
GENERAL - Meu pobre Romane! Não posso compreender. Quase morto de
fome e de fadiga! Ele, príncipe, rico! Ele, que eu julgava morto!
O general dirigiu-se imediatamente para o local indicado por
Derigny. Ia tão depressa, que dir-se-ia ter recuperado a
agilidade que os anos e os ferimentos lhe haviam feito perder.
Mal avistou o desconhecido, correu para ele, levantou-o, amparou-
o e contemplou-o com uma profunda piedade em que havia também
tristeza.
- Meu pobre amigo! Que mudança! Que aconteceu? - murmurou ele.
Romane não respondeu e designou Derigny com o olhar.
O general compreendeu e apressou-se a dizer:
- Fala sem receio. Derigny tem a minha inteira confiança e ser-
nos-á muito útil, se precisarmos dele:
115
ROMANE - Venho da Sibéria, onde estava condenado a trabalhos
forçados e donde consegui fugir quase milagrosamente.
A surpresa do general foi tão grande que, por pouco, deixava cair
o pobre Romane e caía ele próprio.
- Tu? Na Sibéria? Tu, forçado? É impossível! Vem descansar um
pouco em minha casa e depois talvez consigas pôr as ideias em
ordem. Deves estar um pouco desvairado com a fome e a fadiga.
ROMANE - Se alguém me vê entrar serei denunciado, preso e
conduzido novamente àquele inferno.
O general viu, pela maneira calma e triste como Romane falava,
que estava perfeitamente lúcido. Reflectiu um instante e,
voltando-se para Derigny, perguntou:
- Que lhe parece, amigo?
Derigny havia compreendido tudo e concebeu imediatamente um
plano, que expôs ao general:
- Eis o que me parece melhor. Vou dar o meu capote a este senhor
e vou buscar calçado e qualquer coisa bem quente para ele tomar.
Entretanto, o meu general volta para o palácio, como se tivesse
vindo dar um passeio. Depois
116
dá ordem para atrelarem um cavalo à carruagem mais pequena,
dizendo que é para eu ir a
Smolensko buscar um preceptor para os seus
sobrinhos. Em vez de ir à cidade, farei algumas
léguas na estrada, para fatigar o cavalo, a fim
de não levantar suspeitas, e virei depois aqui
buscar este senhor.
Os olhos do general brilhavam. Apertou a
mão de Derigny e disse-lhe:
- Você é muito mais inteligente do que eu!
Vês, meu pobre Romane, como fizemos bem
em falar diante dele? Embrulha-te no capote,
depressa, que estás a morrer de frio. Darei um
dos meus casacos a Derigny.
ROMANE - Mas, meu caro conde, o meu
vestuário esfarrapado revela perfeitamente que
eu sou um evadido da Siberia.
GENERAL - Derigny resolverá o problema.
Não te preocupes com coisa alguma.
Puseram imediatamente em prática o plano
de Derigny. No caminho o general e ele combinaram dizer que
Romane era um perceptor inglês, visto falar perfeitamente aquela
língua e
ter um tipo loiro. Chamar-se-ia Mister Jackson.
Preparada a refeição quente e as roupas que
devia levar a Romane, Derigny foi prevenir a
mulher de tudo o que se passava e partiu.
117
O general foi para junto da Sr. a Dabrovine e
de Natasha.
GENERAL - Vais ter uma pessoa para te
ajudar a instruir os teus filhos.
SRa DABROVINE - Não é necessário,
meu tio. Eu e Natasha damos-lhes lição, não
precisamos de mais ninguém.
GENERAL (sorrindo) - Também lhes ensinam latim e grego?
SRA DABROVINE (hesitante) - Não, meu
tio. Sabemos apenas russo e francês.
GENERAL - Mas é preciso que eles aprendam aquelas línguas.
118
NATASHA (rindo) - O tio sabe grego e latim?
GENERAL - Não sei. E é por isso mesmo que eu sou e serei sempre
um burro.
NATASHA - Oh! meu tio, não deve dizer isso. Como é que o
imperador o podia nomear general se o tio fosse um burro? Como é
que lhe daria um exército para comandar?
GENERAL (sorrindo) - Não sabes o que dizes. Um burro de dois pés
pode ser general e ficar burro da mesma maneira. Repito: é
preciso um preceptor para os teus irmãos, e esse preceptor não
tarda a chegar.
SRa DABROVINE - Mas, meu tio. eu não tenho. não posso. Um
preceptor é muito caro. e eu não sei.
GENERAL -. Não sabes onde irás buscar dinheiro para lhe pagar?
Não é isso que queres dizer? À minha algibeira! Para que quero eu
o dinheiro? Toma esta carteira, Natasha, entrega-a à tua mãe. E
quando estiver vazia tornarás a dar-ma, para eu a encher
novamente.
SRa DABROVINE - Não, meu tio. O tio é muito bom mas não quero
abusar da sua generosidade. Natasha, não aceites a carteira.
GENERAL - Ah! Ensinas a tua filha a ser desobediente! Tratas-me
como se eu fosse um
119
avarento? Dizes que és minha amiga e magoas-me, humilhas-me.
Pobre de mim Sentir-me-ei sempre só, sempre repelido! Ninguém me
quer.
O general sentou-se e apoiou tristemente a cabeça nas mãos.
Natasha olhou para a mãe com uma expressão de censura, aproximou-
se do tio, ajoelhou, pegou-lhe nas mãos e beijou-as muitas vezes.
O general sentiu uma lágrima cair-lhe nas mãos, levantou Natasha,
apertou-a nos braços e, sem falar, estendeu-lhe a carteira.
Natasha pegou-lhe e foi levá-la à mãe.
- Aqui tem, mamã - disse ela. - Para que serve encobrirmos ao tio
que somos pobres? Para que havemos de ferir o seu bondoso
coração, que nos oferece uma ternura verdadeiramente paternal? De
um pai aceita-se tudo!
A Sr. a Dabrovine pegou na carteira e foi abraçar o tio,
murmurando:
- Obrigada! Natasha tem razão! Aceitarei tudo o que queira dar-
me. Sou sua filha pelo coração e confesso, sem me envergonhar;
que, sem o seu auxílio, nunca poderia educar convenientemente os
meus filhos.
GENERAL -. Que serão, de hoje em diante, também meus, como tu és
igualmente a minha filha bem-amada!
120
Ao dizer isto, o general apertou as duas nos braços e beijou-as
ternamente.
- A tua boa acção não será inútil, minha querida Natasha! E a ti,
Natália, só te peço uma coisa: que me trates por pai sempre que
estivermos sós.
SRa DABROVINE - Entrego-me inteiramente nas suas mãos, meu pai.
Farei tudo o que desejar.
Demoraram-se ainda os três, a conversar. Algum tempo depois
bateram à porta. Era Derigny. Ao entrar, disse:
- Meu general: Mr. Jackson, o preceptor que me encarregou de ir
buscar, veio comigo. Está no seu gabinete e espera as suas
ordens.
O general sorriu da surpresa de Natália e Natasha e saiu com
Derigny.
Quando chegou a hora de jantar, a Sr. a Dabrovine e a Sr. a
Papofski entraram na sala acompanhadas pelos filhos. O general já
ali se encontrava com Mr. Jackson, que apresentou às sobrinhas.
GENERAL - Sr. a Dabrovine, contratei Mr. Jackson por cinco anos,
para completar a educação de Alexandre e Miguel. Estás de acordo
em confiar-lhe os teus filhos? Respondo por ele como por mim
próprio.
121
- Tudo o que o tio fizer será bem feito respondeu ela, sorrindo
graciosamente; e, pegando na mão dos filhos, apresentou-os a Mr.
Jackson.
A Sr. a Papofski examinava o recém-chegado com ar altivo. As
palavras do general haviam aumentado a sua irritação, mas notando
que Mr. Jackson tinha maneiras distintas, resolveu logo captar-
lhe as simpatias, com o fim de o afastar da Sr. a Dabrovine.
Vendo que o tio não se referia aos filhos dela, dirigiu-se ela
própria ao preceptor e apresentou-lhe Mitineka, Sonushka, Yégor,
Pavlouska e Nicolai, dizendo:
- Aqui estão os meus filhos, que lhe confio, Mr. Jackson. Os
outros são ainda muito novos; conhecê-los-á mais tarde. Estou
muito reconhecida ao meu tio por ter pensado na educação dos seus
"netos", como ele diz.
- Não tens nada que agradecer-me, Maria Pétrovna - respondeu o
general, surpreendido. - Eu não pensei nos teus filhos, que tu
sabes educar tão bem, e que têm pai. Contratei Mr. Jackson para
educar os filhos da tua irmã, e isso bastar-lhe-á, sem ter de
aturar os cinco demónios que o fariam de fel e vinagre de manhã à
noite.
122
SRA PAPOFSKI - Espero, Mr. Jackson, que se ocupará também dos
meus filhos, fazendo por gentileza o que meu tio quis impor-lhe
como obrigação.
MR. JACKSON - Farei quanto puder para lhe ser agradável, minha
senhora. A pronúncia inglesa do preceptor não era desagradável e
a Sr. a Papofski sentiu-se lisonjeada, olhando para a irmã com ar
de triunfo.
O general coçava a cabeça; estava embaraçado e descontente. Por
fim, disse:
- É impossível! Jackson não pode disciplinar e educar um bando de
crianças terríveis. Não quero! Proíbo-lhe que o faça, ouviu,
Jackson? E tu, Maria Pétrovna, ouviste bem?
Jackson inclinou-se; a Sr. a Papofski disse, num tom irónico, que
estava habituada a ser tratada como uma estranha, assim como os
filhos, mas que se submetia às ordens do tio.
O jantar decorreu serenamente; ao serão, as crianças brincavam na
galeria, como de costume. Tiago e Paulo também foram convidados.
Natasha e o preceptor tiveram de intervir várias vezes. Mr.
Jackson observava e fazia o seu juízo.
Quando as crianças se retiraram, o general acompanhou a Sr. a
Dabrovine aos seus aposentos; Mr. Jackson pediu licença para ir
repousar,
123
como tanto necessitava. A Sr á Papofski recolheu também ao seu
quarto.
Como habitualmente, o general demorou-se no salão da sobrinha, a
conversar.
NATASHA - O pobre Mr. Jackson é muito infeliz.
GENERAL (sobressaltado) - Como podes
saber isso? Ele contou-te alguma coisa? NATASHA - Não, meu tio,
não me contou
nada, mas eu compreendi que era assim, pelo seu ar triste,
pensativo e amargurado. Reparou no abatimento dele?
GENERAL - Foi porque enjoou na viagem de Inglaterra para cá. E
depois, sempre custa separar-se da família e dos amigos.
NATASHA - Farei tudo quanto puder para que ele se sinta feliz
entre nós.
GENERAL (sorrindo) - És um anjo! Conversaram ainda durante algum
tempo. Por fim, Natasha chamou Derigny para acompanhar o tio e
cada um recolheu ao seu quarto. Quando ficou só com Derigny, o
general
contou-lhe que, alguns anos antes, durante uma campanha na
Circassia, tivera como ajudante de campo um jovem polaco, o
príncipe Pajarski, um dos nomes mais ilustres da Polónia, a que
se dedicara muito, prestando um ao outro grandes serviços.
- Estimava-o como se fosse meu filho! exclamou ele, comovido.
E continuou a contar:
- Romane foi passar uma licença à Polónia
e nunca mais ouvi falar nele. Soube apenas que
tinha desaparecido.
Por fim, explicou:
- Antes de jantar, Romane disse-me que
o acusaram de ter conspirado para libertar a
Polónia. Foi por isso que o mandaram para a
Sibéria, onde sofreu horrivelmente. Conseguiu
escapar através de mil perigos. O que o salvou
foi ter encontrado os seus filhos e a si, meu
bravo Derigny.
DERIGNY - Meu general: antes de lhe perguntar qual o destino que
tenciona dar ao príncipe Pajarski, que não pode ficar eternamente
preceptor dos seus sobrinhos, devo dar-lhe conta
de uma descoberta feita pelo Tiago.
Então, Derigny contou tudo o que o pequenito ouvira à Sr. a
Papofski.
O general tornou-se quase roxo. Os olhos
pareciam querer saltar-lhe das órbitas. Só
depois de alguns minutos conseguiu dominar a
sua indignação. Por fim exclamou:
- A miserável! A infame! E o pior é que
podia conseguir o que desejava. E agora, com
125
o nosso pobre Romane aqui, ainda pior! Se ela descobre qualquer
coisa, estamos perdidos! Que havemos de fazer? Ajude-me, Derigny!
DERIGNY - Contra semelhante perigo, só vejo um meio: sairmos
daqui.
GENERAL - E como havemos de viver, sem dinheiro, num país
estranho? Somos seis pessoas.
DERIGNY - Porque não vende algumas das suas propriedades?
GENERAL - Sim, senhor! Bela ideia. Venderei a minha casa de
Sampetersburgo, a de Moscovo, as minhas terras da Crimeia, as de
Kiev, as de Orel. Tudo isto vale seis a sete milhões, pelo menos.
Vou tratar disso já amanhã. Mandarei o dinheiro para Londres e
não para França, porque poderia levantar suspeitas. Mas Gromiline
terá de ficar para ela, a malvada! Demónio! Como hei-de fazer
para impedir isto? E como havemos de partir sem que ela dê por
isso?
DERIGNY - Convém que ela saiba. GENERAL - Você está doido! Se ela
sabe,
é capaz de nos denunciar a todos.
DERIGNY - Não, meu general. É preciso, pelo contrário, interessá-
la pela nossa partida. Dirá que necessita de um clima mais suave
e
126
que a Sr. a Dabrovine precisa de fazer um tratamento de águas na
Alemanha. O meu general pedirá à Sr. a Papofski para dirigir os
seus negócios durante a sua ausência, que será apenas de alguns
meses.
GENERAL - Mas assim ela ficará senhora de Gromiline, que é
exactamente o que eu não quero. DERIGNY - Não ficará senhora de
coisa
alguma, porque este projecto só será realizado depois de o meu
general ter vendido Gromiline, combinando com o comprador só
tomar posse da propriedade alguns dias depois da nossa partida.
- Muito bem! Muito bem! - exclamou o general, esfregando as mãos.
- Bela vingança! Irei morrer a França como sempre desejei. Levo-o
de novo para a sua Pátria, meu caro
Derigny, asseguro o futuro da minha filha e deixo-os todos
contentes, felizes!
DERIGNY - O meu general esquece o pobre príncipe.
GENERAL - Quem lhe diz que o esqueço? Se até tenho projecto de o
casar! Mas não é ainda. Daqui a um ou dois anos. Você não me
compreende, mas compreendo-me eu.
Derigny não pôde deixar de sorrir. O general ria a bom rir, e
recomendou a Derigny que o
acordasse cedo na manhã seguinte.

12. A esperteza do general


Os dias seguintes decorreram sem incidentes. Mr. Jackson revelava
conhecimentos muito vastos e era delicadíssimo para todos. A Sr.
a Da brovine e o general estavam encantados, bem como Natasha.
Tiago fora convidado, com grande alegria sua, a assistir às
lições.
Entretanto o general ia pondo em prática o seu plano, vendendo
propriedades e colocando o dinheiro em Inglaterra. Finalmente, um
dia recebeu uma proposta para a compra de Gromiline, feita por um
ajudante de campo do imperador. Oferecia cinco milhões, pagos
imediatamente. O general aceitou, com a condição de a venda não
ser revelada a ninguém até ao dia 10 de Maio, data em que o novo
proprietário
128
viria tomar posse da propriedade. As condições
foram aceites. A Sr. a Papofski continuava a
ignorar tudo o que se passava.
Nessa altura já a Sr. a Dabrovine conhecia a
verdadeira identidade de Mr. Jackson. Fora
ele próprio quem pedira ao general para dizer a
verdade à sobrinha. O príncipe Pajarski quis
assim provar a grande confiança que tinha nos
nobres sentimentos da mãe dos seus discípulos.
No fim do Inverno, o general, estando presente a Sr. a Papofski,
propôs a Natália uma
viagem à Alemanha, para fazer uma cura de
águas. A Sr. a Dabrovine fez algumas observações sobre as maçadas
que essa viagem lhe traria, principalmente por serem muitas
pessoas.
GENERAL - E podes juntar ainda ao gru po a família Derigny.
SRa PAPOFSKI - Que ideia, meu tio,
levar toda a gente!
GENERAL - É verdade, Maria Pétrovna!
Como tenciono deixar-te em Gromiline e encarregar-te de olhar
pelos meus negócios durante a
minha ausência, acho preferível desembaraçar-te de pessoas de
que não gostas. Além disso,
eles desejam regressar a França, onde têm família e bens.
A Sr. a Papofski abriu muito os olhos como
se não pudesse acreditar no que ouvia.
129
SRa PAPOFSKI - Vai deixar-me. aqui. no palácio. encarregada de
dirigir tudo?
GENERAL - Exactamente. Farás o que quiseres e gastarás o que
quiseres, enquanto aqui te conservares.
SRa PAPOFSKI - E quanto tempo durará a sua ausência, meu bom tio?
GENERAL - Um ano, ou talvez dois, minha querida sobrinha.
A Sr. a Papofski não podia ocultar a sua alegria. Lançou-se nos
braços do general, que a repeliu, alegando não querer desmanchar-
lhe o penteado.
SRa PAPOFSKI - Meu bom tio! Como eu
gosto de si!
GENERAL - Eu sei, minha sobrinha, eu sei! E acredita que eu
também gosto de ti, tanto como tu gostas de mim!
A Sr. a Papofski mordeu os lábios. Percebeu a ironia mas pareceu-
lhe que aquele momento não era oportuno para se mostrar zangada.
Não queria perder Gromiline. Também tinha a sua ideia. Logo que o
tio e os "outros" partissem, denunciá-los-ia como conspiradores.
Desde que Mr. Jackson ali chegara, ela observara muita coisa
suspeita: a familiaridade do tio com o preceptor, conversas em
voz baixa, sobressaltos.
130
A família francesa devia ter sido enviada para ali pelos
revolucionários. Também colhera informações sobre Mr. Jackson.
Ninguém, na aldeia, o vira chegar; ninguém o conhecia. Natália e
Natasha também deviam estar no segredo. Tudo se juntava para
tornar mais fácil a denúncia.
Enquanto ela revia, em pensamento, todo aquele plano, o seu olhar
fixo e mau, o seu sorriso de triunfo e o seu prolongado silêncio
chamaram a atenção do general, da Sr. a Dabrovine e de Romane.
Olharam uns para os outros sem falar e, a certa altura, o
preceptor levantou-se e saiu com o pretexto de vigiar as
crianças.
O general fez o mesmo, anunciou que ia trabalhar, e disse:
- Estou a pôr as minhas coisas em ordem, para te tornar mais
fácil a administração dos meus bens, Maria Pétrovna. Creio que
gostarás de saber a quanto monta a minha fortuna.
A Sr. a Papofski corou e não se atreveu a falar, com receio de
deixar transparecer o seu contentamento.
- Não és curiosa, Maria Pétrovna - disse o general, depois de uns
minutos de silêncio. Deves saber que, se fores minha herdeira,
receberás doze ou treze milhões.
131
SRa PAPOFSKI - Oh, meu tio! Bem sabe que não espero ser sua
herdeira.
GENERAL - Quem sabe? Julgas que te deserdei, pelo facto de
questionarmos algumas vezes? Ninguém sabe o que pode suceder.
132
A Sr. a Papofski transfigurou-se; de tão corada que se fez,
parecia que ia ter uma congestão. O general adivinhou tudo o que
se passava na sua alma.
Enquanto ela procurava dominar a excitação em que se encontrava,
o general ofereceu o braço à Sr. a Dabrovine e saiu discretamente
do salão. Logo que chegou aos aposentos de Natália, deu, então,
largas à sua alegria.
Pouco depois, entrou Romane. Vendo-os rir, ficou surpreendido.
Mas o general recomendou-lhe, por entre gargalhadas:
- Fecha a porta, fecha a porta!
ROMANE - Perdoem-me a indiscrição, mas porque riem assim?
GENERAL - Rimo-nos de Maria Pétrovna, das suas esperanças, da sua
satisfação.
ROMANE - Perdão, meu caro conde, mas eu não partilho da vossa
alegria. Confesso que os olhares triunfantes e maus da Sr. a
Papofski me assustaram.
A Sr. Dabrovine contou, então, a Romane, a breve conversa do
general com a Sr. a Papofski, e ele acabou por achar imensa
graça, dizendo:
- A verdade é que o meu caro General nos salvou a todos de um
plano infernal, que poderia ter os mais terríveis resultados,
principalmente para mim.
133
GENERAL - E para mim também, tenho a certeza!
SRa DABROVINE - Pela minha parte o perigo seria o mesmo, visto
ter- me convertido ao catolicismo, graças a um bom padre que
vivia perto de mim.
Romane escutou a Sr. a Dabrovine com simpatia e respeito. Depois
de uma breve hesitação, perguntou:
- E os seus filhos?
SRa DABROVINE - São católicos como eu, e desejam vivamente
praticar a sua religião. Mas, como sabe, na Rússia, os católicos
são quase tão perseguidos como os polacos.
Romane beijou-lhe respeitosamente a mão, e, dirigindo-se ao
general, disse:
- Creio que faríamos bem em apressar a nossa partida.
GENERAL - Tem razão. Vou tratar disso. Partiremos no dia 1 de
Maio. Négrinski, o novo proprietário de Gromiline, chegará a 10.
Nessa data já nós teremos passado a fronteira. Ela terá assim dez
dias de glória e triunfo!
SRa DABROVINE - Mas, meu pai, não receia que, durante esses dez
dias, ela seja cruel para os criados e para os pobres camponeses?
GENERAL - Não, minha filha, por que antes de partir, darei a
liberdade a todos os meus
134
servos e farei, por escrito, uma declaração, determinando que, se
ela mandar chicotear ou maltratar uma única pessoa que seja,
perderá todos os seus direitos e será obrigada a deixar as minhas
terras dentro de vinte e quatro horas.
SRa DABROVINE - Abençoado seja, meu tio!
Nesse mesmo dia, o general procurou uma maneira de conversar
novamente com a Sr. a Papofski, que não se cansava de dizer
amabilidades ao tio, elogiando a irmã e os sobrinhos e
concordando com a ideia de partirem mais cedo, para abreviarem o
tratamento das águas. Quando chegou a altura de se referir ao
preceptor, a Sr. a Papofski exclamou:
- E Mr. Jackson! Que homem admirável! Como ele fala bem francês!
Ninguém dirá que é inglês.
Ao dizer isto, olhou fixamente para o tio, que corou um pouco.
Então ela atreveu-se a continuar:
- Parece um francês. (O general não se moveu. ) Ou. mesmo. um
polaco. (O general deu um pulo. )
GENERAL - Polaco! Um polaco em minha casa? Que ideia! Mr. Jackson
parece-se tanto com um polaco como eu me pareço com um chinês.
135
A animação do general era forçada. A Sr. a Papofski compreendeu-o
perfeitamente, dizendo de si para si:
"É um polaco, tenho a certeza. E o tio sabe-o. Se ele não me
tivesse deixado a direcção dos seus negócios, iria a Smolensko e
denunciaria o polaco, e todos, antes de uma semana. Era só o
tempo de descobrir o fio da meada. Mas assim é inútil: ficarei
senhora da sua fortuna, venderei o que me apetecer e guardarei o
dinheiro para mim. "
O general, ao deixar a Sr. a Papofski, dirigiu-se logo aos
aposentos de Natália, contou-lhe tudo o que se passara e
resolveram chamar imediatamente Derigny, para o porem ao corrente
do sucedido.
Derigny concordou que a situação se ia tornando grave e que
deviam partir o mais depressa possível, avisando a Sr. a Papofski
somente na véspera.
SRa DABROVINE - Faltam-nos os passaportes.
GENERAL (sorrindo) - Estão no meu escritório há oito dias. Vá
chamar Romane, meu caro Derigny.
Derigny encontrou Romane na galeria. Parecia agitado. Natasha
acompanhava-o, falando-lhe
136 GUR
com vivacidade. Estranhando a atitude do preceptor, Derigny
perguntou-Lhe o que sucedera.
Foi Natasha quem lhe respondeu:
-Mr. Jackson está irritado e zangou-se
com os meus primos Mitineka e Yégor, porque eles principiaram a
chamar-lhe polaco.
Mr. Jackson tomou isso como uma injúria e
eu tenho estado a dizer-lhe que não tem razão,
porque os polacos são muito bons e muito infelizes. Mas, em vez
de me escutar, ele mostra-se
cada vez mais contrariado e parece que vai chorar; apertou-me a
mão de tal maneira, que por
pouco me não fez estalar os dedos. Nem parece
o mesmo!
Derigny não respondeu. Romane também se
conservou calado. Natasha afastou-se um pouco,
a ralhar com os primos. Entretanto, Derigny e
Romane saíram.
De repente, apareceu a Sr. a Papofski e perguntou:
- Mr. Jackson não está aqui?
MITINEKA - Não, mamã. Foi- se embora furioso porque lhe chamámos
polaco, como a mamã mandou.
NATASHA - Por mais que eu lhe dissesse que não devia tomar como
ofensa chamarem- lhe polaco, ele encolerizou- se e saiu.
137
- Ah! - exclamou a Sr. a Papofski.
E saiu também, desapontada, pensando:
"Se ele não é polaco, quem será ele
afinal? "
Romane foi encontrar o general nos aposentos da Sr. a Dabrovine.
Depois de trocarem impressões, ficou resolvido que ele voltasse
para junto das crianças, aparentando a maior calma possível.
Quando chegou à galeria estavam os pequenos todos agrupados em
volta de Natasha, que
exclamou, ao vê-lo:
- Ah! sempre voltou, Mr. Jackson? Peço-lhe que desculpe os meus
primos. E, já agora,
sempre lhe quero pedir a si, também, que não
deteste os pobres polacos. Pense que não têm
pátria nem lhes deixam, ao menos, praticar a
sua santa religião! Devemos admirá-los e querer-lhes bem.
Romane olhava para ela sem lhe responder,
mas a sua alma de polaco vibrava de alegria.
NATASHA - Mas diga qualquer coisa! É
assim tão difícil ter piedade dos que sofrem,
daqueles a quem separam das suas famílias e a
quem mandam para a Sibéria?
- Basta, basta! - murmurou Romane. Também eu tenho piedade desses
infelizes, mas
não falemos mais em tal assunto.
138
NATASHA - Está bem! Ficará para mais tarde. Mas fique sabendo que
converso muitas vezes sobre isto com a mamã.
E Natasha, risonha e ligeira, escapou-se a correr, para contar à
mamã e ao tio aquele inci dente.
GENERAL - Sabes que partimos dentro de oito ou dez dias?
NATASHA - Ainda bem!
GENERAL - Não gostas de aqui estar? Natasha corou e não
respondeu. GENERAL - Diz o que pensas.
NATASHA - Meu tio. será mal eu sentir-me encantada com a ideia de
me afastar da tia e dos primos?
GENERAL - E porque estás tu encantada com a ideia de os deixar?
NATASHA - Pois bem, visto que o tio quer saber, vou ser franca: é
porque a tia é má para os meus irmãos, a quem chama burros e
pelintras; e também é má para Tiago e Paulo, a quem ralha
constantemente, chamando-lhes lacaios e ameaçando-os de os mandar
chicotear; nem Mr. Jackson ela poupa, fazendo troça dele e
obrigando-o a levar-lhe os abafos e o chapéu, como se fosse um
criado. Tudo isto faz-me muita pena, porque compreendo muito bem
139
que Mr. Jackson não está habituado a ser tratado assim. Os pobres
Derigny choram muitas
vezes, principalmente o Tiago. Quanto aos primos, implicam
constantemente com os meus
irmãos, atormentam o Tiago e o Paulo e dizem
disparates a Mr. Jackson, quando ele protege
os pobres pequenos. O tio deve calcular que
tudo isto é muito desagradável.
GENERAL (rindo) - É mesmo muito desagradável. vem dar-me um
beijo... São apenas
mais oito dias de paciência... e ficaremos todos
livres desses demónios. Mas sempre te vou dizendo que estamos
todos tão encantados como tu.
NATASHA - Deveras? O tio também está
contente? Que bom!
Natasha quis ir dar a boa nova aos pequenos Derigny. O general
concordou, mas recomendou-lhe que guardassem segredo, todos, até
ao dia seguinte.

13. A caminho da liberdade


No dia seguinte, um pouco antes do almoço, o general mandou
chamar a Sr. a Papofski. Ela chegou, um pouco inquieta, e
encontrou o tio instalado numa poltrona. Depois de lhe fazer uma
saudação majestosa com a mão, o general disse-lhe:
- Senta-te Maria Pétrovna, e escuta-me: Vieste a Gromiline com a
intenção de receber parte da minha fortuna. Finges-te pobre,
sabendo eu que és rica. Silêncio! Não me interrompas. Não ligo
importância alguma à minha fortuna e entrego-te, voluntariamente,
o domínio de Gromiline e outros bens que tu cobiças, e que possuo
na Rússia. Em vez de te dar a gerência da minha fortuna enquanto
estou ausente,
141
resolvi fazer-te doação de tudo, guardando apenas os capitais que
me permitam viver desafogadamente com tua irmã e os filhos, que
tu detestas e de quem eu gosto muito. Eles não pensam no que lhes
hei-de deixar. Como sabes, a saúde de tua irmã exige que façamos
uma viagem. Fixei a partida para o dia 1 de Maio, daqui a uma
semana. Levo comigo as pessoas que estimo. Deixo-te todos os meus
servos. Proíbo-te que os maltrates, e farei uma declaração que os
defenderá da tua maldade e das tuas cóleras. Não te contraries.
não dissimules mais. conheço-te muito bem; adivinho tudo quanto
tu pensas e que tu julgas poder esconder-me. Não disfarces a tua
alegria e, principalmente, nada de hipocrisias.
A Sr. a Papofski tentara, por várias vezes interromper o tio, mas
ele não lho consentira. Na sua alma havia, ao mesmo tempo,
satisfação e cólera. A expressão do seu rosto era horrível.
Quando acabou de falar, o general olhou-a com um desprezo
misturado de cólera. Vendo que ela continuava calada, dispôs-se a
sair.
- Meu tio. - disse ela, com voz sufocada. O general parou e
voltou-se.
- Meu tio. não sei. como agradecer-lhe.
142
O general abriu a porta, saiu e tornou a fechá-la violentamente,
dirigindo-se à sala de jantar, onde o esperavam, por ordem sua, a
Sr. a Dabrovine, os filhos, Romane e os pequenos Papofski.
- Almocemos! - disse ele, com grande calma, sentando-se à mesa. -
Tu, Natasha, senta-te à minha esquerda.
NATASHA - Mas, meu tio. é o lugar da tia...
GENERAL (sorrindo) - A tua tia está no salão, a dirigir a sua
nova fortuna, temperada com algumas verdades duras de engolir.
Natasha não compreendia e olhava, com ar interrogador, para o
tio, a mãe e Romane, que riam, todos três.
- Saberás tudo dentro de quinze dias, minha filha. Come o teu
almoço e não te preocupes com os ausentes.
Natasha seguiu o conselho do tio e ouviu-o, com prazer, anunciar
a todos a sua próxima partida.
Durante os últimos dias passados em Gromiline houve grande
agitação, por causa dos preparativos de partida. A Sr. a Papofski
aparecia somente às refeições, não fazendo a mais leve alusão à
conversa que tivera com o tio.
143
Os filhos, porém, continuavam a fazer toda a espécie de
"partidas" aos primos e aos pequenos Derigny, forçando o general
a castigá-los severamente. Sonushka foi chicoteada por ter
atirado um frasco de tinta sobre Natasha que ficou num estado
lastimoso, com o vestido completamente estragado.
Na véspera da partida, o general entregou à Sr. a Papofski uma
pasta cheia de papéis, que ela recebeu e guardou apressadamente,
sem dizer uma palavra.
Para evitar despedidas, o general anunciou que partiriam ao meio-
dia, depois do almoço, mas a partida efectuou-se às nove horas da
manhã.
Antes de subir para a carruagem, o general reuniu todos os
servos, anunciando-lhes que lhes concedera, a todos, a liberdade,
dando a cada um quinhentos rublos. A alegria daquela pobre gente
foi tal, que o general sentiu-se largamente recompensado.
Partiram, finalmente: o general foi numa carruagem com a Sr. a
Dabrovine, Natasha e Romane; Helena Derigny seguiu noutra, com os
filhos e Alexandre e Miguel, que tinham pedido, com insistência,
para viajar com os pequenos Derigny.
144
Junto do cocheiro da primeira carruagem ia um agente da polícia e
um criado; na segunda ia Derigny. Levavam abundantes provisões e
tudo quanto poderia ser-lhes necessário durante a viagem.
A partida foi triste. O próprio general não ocultava o desgosto
que sentia ao deixar, para sempre, as suas terras e o seu país. A
Sr. a Dabrovine também sofria. Romane temia ser reconhecido antes
de passar a fronteira.
- Em que pensas? - perguntou-lhe o general adivinhando as graves
preocupações do seu amigo.
ROMANE - Penso no agente que nos acompanha e na vantagem de ter
um homem da polícia às nossas ordens durante a viagem.
GENERAL - E tens razão, meu amigo; é uma protecção, sob todos os
aspectos, principalmente porque sabe que será largamente
recompensado.
O general acentuou muito as palavras, olhando fixamente para
Romane, a fim de o tranquilizar. Ele compreendeu a intenção do
general e recuperou a habitual serenidade.
A viagem decorreu sem incidentes. As crianças sentiam-se
felicíssimas; riam e cantavam de tal forma, que se ouvia na outra
carruagem, o que divertia Natasha e o próprio general.
145
Pararam duas vezes para comer e passaram a noite numa aldeia. A
Sr. a Dabrovine, Natasha e Helena Derigny ocuparam-se da
distribuição dos quartos, tendo especial cuidado no arranjo
daquele que foi destinado ao general.
A noite foi triste para todos. Cada um tinha as suas preocupações
e as suas saudades. Só as crianças dormiram profundamente,
fatigadas com o dia de jornada e contentes com a ideia da longa
viagem que iam fazer.

14. A passagem da fronteira


Na manhã seguinte prepararam-se para con tinuar a viagem. O
general estava apreensivo. Beijou a sobrinha e os filhos, apertou
a mão a Romane, mas não pronunciou uma única palavra.
- Avô. - disse Natasha, sorrindo. O general pareceu ficar
surpreendido e, ao mesmo tempo, comovido.
- Avô. - repetia ela -, quer vir comigo para a outra carruagem?
Trocará o lugar com a Sr. a Derigny.
GENERAL - Não cabemos lá todos; somos seis.
NATASHA - Eu arranjarei tudo. O avô vai comigo no banco de trás.
147
GENERAL - E os quatro pequenos?
NATASHA - Vão na nossa frente. Será muito divertido! Cantaremos
todos e o avô cantará também connosco, sim?
O general mudou logo de disposição. Soltou uma gargalhada e
declarou-se encantado com a ideia de Natasha. Terminado o pequeno
almoço, cada um dispôs-se a tomar o seu lugar na carruagem que
lhe era destinada. Romane tinha ficado um pouco para trás. De
repente, sentiu que lhe tocavam no braço. Voltou-se e viu uma
mulher com um pão na mão, que lhe disse em polaco:
- Quando aqui passaste há três anos, a caminho da Sibéria, dei-te
um pão igual a este. Que Deus te proteja e te faça passar a
fronteira sem perigo. Admiras-te do que te digo? É por que te
reconheci. Lembro-me perfeitamente de ti, quando aqui passaste
com os teus companheiros de infortúnio. Mas não tenhas receio. Ì
Não te trairei. Também sou polaca.
ROMANE - Como te chamas tu?
MULHER - Chamo-me Maria Fenizka. E tu?
ROMANE - Príncipe Romane Pajarski.
MULHER - Deus te abençoe. Já ouvi o teu
nome. Deixa-me beijar a tua mão por teres lutado pela libertação
da Pátria.
148
Romane levantou a pobre mulher, que ajoelhara diante dele, e
abraçou-a, dizendo:
- Adeus, Maria Fenizka. Não me esquecerei de ti. Silêncio. Vem
gente.
A mulher afastou-se rapidamente. Entretanto ultimavam-se os
preparativos da partida. A ideia de Natasha, embora graciosa, não
foi posta em prática, e o general subiu novamente para a
carruagem da Sr. a Dabrovine. Natasha, porém, foi obrigada a ir
para junto dos irmãos, porque o general achava que, para ela,
seria muito mais divertida a companhia dos pequenos.
Natasha acedeu, mas quis despedir-se da mãe, do general e de
Jackson. Ao olhar para ele ficou espantada e perguntou.
- Tem alguma coisa, senhor Jackson? Repare, avô veja como está
pálido!
- Cale-se, por amor de Deus! - murmurou Romane, apertando-lhe a
mão a ponto de a magoar.
Natasha afastou-se, admirada e pensativa, enquanto Romane se
instalava no seu lugar.
Depois de a carruagem partir, aproveitando os gritos do cocheiro,
que animava os cavalos, e o ruído das rodas, o príncipe Pajarski
contou, por meias palavras, o que se passara. O general ficou
inquieto pelo facto de a mulher
149
ter reconhecido Romane, e resolveu não pernoitar em mais parte
alguma, andando noite e dia, até alcançar a fronteira. Era,
porém, necessário arranjar qualquer justificação para isso, por
causa do agente que os acompanhava. Combi naram, então, que a Sr.
a Dabrovine se queixaria de ter passado uma noite horrível na
estalagem, dizendo também sentir-se cada vez pior de
150
saúde. Romane protestaria contra a precipitação da viagem, mas o
general diria que a saúde da sobrinha estava acima de tudo e
resolveria viajar mesmo de noite, mudando os cavalos tantas vezes
quantas fossem necessárias.
Efectivamente tudo se passou assim. Ao chegar a noite, Romane
passou para a carruagem dos discípulos, a fim de dar o seu lugar
à Sr. a Derigny; Natasha voltou para junto da mãe e do tio,
procurando todos instalar-se o melhor possível para dormir. Houve
ainda uma pequena discussão entre Natasha e o general, que não
queria aceitar uma almofada que ela colocou para ele encostar,
confortavelmente, a cabeça.
- Se não aceita - disse ela -, nunca mais lhe chamo avô. Ficará
sendo sempre meu tio.
Esta ameaça convenceu o general e tudo
serenou.
Quando o Sol despontou, na manhã seguinte, Natasha baixou a
vidraça e viu que estavam à porta de uma pensão. O agente
encontrava-se junto da portinhola, esperando ordens.
-Onde estamos nós? O que deseja o senhor?
AGENTE - Desejo saber se paramos aqui para tomar café e repousar
um instante.
151
NATASHA - Por mim, acho óptimo. Tenho fome e sinto as pernas
dormentes. Mas todos dormem ainda. Ah! Ali vem Mr. Jackson.
MR. JACKSON -É preferível acordar o general.
Assim fizeram. O general, ao saber que Natasha declarara estar
com fome, concordou logo em descerem e confessou que ele próprio
comeria alguma coisa com prazer.
Reuniram-se todos na sala da pensão, tomaram bebidas quentes e
trocaram impressões, e a
viagem continuou com a maior felicidade até à fronteira, onde
todas as formalidades foram rápidas. Nessa altura, o general
gratificou o agente com tal generosidade, que o deixou admirado.
E o passaporte inglês de Jackson foi visado, apesar de certas
deficiências.
Nos primeiros momentos, depois de transposta a fronteira,
ninguém, na carruagem do
general, se atreveu a pronunciar uma só palavra. Mas quando se
certificou de que já não havia o menor perigo, o general
exclamou, cheio de comoção:
- Estás salvo, meu filho!
Romane, comovidíssimo, abraçou aquele amigo incomparável, sem
poder conter as lágrimas.
152
A Sr. a Dabrovine apertou também a mão de Romane, a chorar.
Natasha, espantada, olhava, ouvia e não compreendia nada.
- Mamã, que aconteceu a Mr. Jackson? perguntou ela.
- Estou livre! Livre - respondeu ele. Acabou-se a comédia de Mr.
Jackson e da Inglaterra. Só me interessa a Polónia, a minha santa
Pátria! Compreende agora a minha alegria?
A surpresa de Natasha aumentava. Os seus grandes olhos azuis,
muito abertos, fixavam-se ora em Romane, ora em sua mãe, ora no
general.
- Polaco! - disse ela, por fim. - O senhor é polaco! E zangava-se
quando lho chamavam!
O general, então, explicou tudo a Natasha, que não podia
despregar os olhos de Romane, impressionadíssima. Por fim,
escondeu o rosto entre as mãos e chorou convulsivamente. A mãe
procurou acalmá-la, e o general disse-lhe:
- Não chores mais, minha Natasha. Ele agora é feliz; e nós
também. Somos todos felizes e livres!

15. As primeiras surpresas


Depois da partida do general, a Sr. a Papofski sentia-se
enlouquecer de alegria, e resolveu logo "meter toda aquela gente
na ordem", como ela dizia.
Mandou chamar Vassili e, entretanto, ia pensando que os filhos
aprenderiam a chicotear, para castigar os servos sempre que fosse
preciso. "O meu tio estragava esta gente com mimo. Meu marido é
que sabe chicotear! Tenho que pôr isto na ordem. "
Como lhe vieram dizer que Vassili havia saído, ficou furiosa e
gritou.
- Saiu sem minha autorização? É impossível! Veio, porém, o criado
de mesa, Nikita, e confirmou a saída de Vassili.
154
SRa PAPOFSKI - Aonde foi ele? NIKITA - Foi à cidade procurar
colocação. A Sr. a Papofski ficou muda de surpresa e cólera.
O criado continuou, olhando para ela com maliciosa alegria:
- Como o senhor Conde nos deu a liberdade
a todos, fazemos tenção de nos irmos embora. Alguns vão para
Smolensko. Eu prefiro ir para Moscovo, e os cocheiros e lacaios
também; ficamos ao serviço do senhor general Négrinski.
SRa PAPOFSKI - A liberdade! Meu tio Sem dizer nada! Mas tu estás
doido. É impossível! Quem manda em Gromiline sou eu; tenho todo o
poder sobre vós, posso mandar-vos chicotear até vos fazer cair
mortos.
NIKITA - O senhor Conde deu-nos a liberdade! Ninguém tem direitos
sobre nós, a não ser o imperador, o governador e o capitão
ispravnik ().
A cólera da Sr. a Papofski redobrou. Não via maneira de se fazer
obedecer. Nikita saiu.
() Espécie de juiz de paz, ou comissário de polícia, que tinha
poderes muito vastos.
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Mashka, a criada de quarto, retirou-se também. A Sr. a Papofski
ficou sozinha, a ruminar o seu desapontamento. Acabou por se
consolar, pensando nas contribuições que faria pagar aos
camponeses de Gromiline e de todas as suas novas propriedades.
Serviram-lhe o almoço como de costume. Apesar de estar furiosa
não ralhou a ninguém, receando que os cozinheiros e demais
criados a abandonassem imediatamente. No dia seguinte, deu um
grande passeio através dos domínios de Gromiline e percorreu
aldeias, fazendo cálculos sobre as árvores que mandaria cortar
para vender, e falando aos aldeões com uma dureza, que os deixou
apavorados. A notícia da doação de Gromiline à Sr. a Papofski
espalhou-se depressa, e toda aquela pobre gente lamentava a
partida do antigo senhor, que sempre fora tão bom.
Como alguns camponeses ousassem fazer-lhe pedidos, irritou-se e
mandou-os chicotear, preparando-se ela própria, com os três
filhos mais velhos, para assistir ao suplício daqueles
desgraçados. Mas quando chegou a hora marcada, os camponeses
apareceram acompanhados por um staroste('), que lhe apresentou um
documento
() Homem respeitável, nomeado pelos camponeses para defender os
seusinteresses.
156
proibindo absolutamente a Sr. a Papofski de aplicar qualquer
castigo corporal aos habitantes de Gromiline: nem chicote, nem
vara, nem privação de comida ou bebida, sob pena de anular a
doação que o general lhe fizera.
Raivosa, a Sr. a Papofski quis rasgar o papel, mas não o
conseguiu porque os camponeses fizeram-no passar de mão em mão,
acabando por desaparecer, sem se saber onde.
Além disso, o staroste declarou, com um sorriso irónico, que o
documento assinado pelo Sr. Conde estava em poder do capitão
ispravnik; o que ela vira era apenas a cópia.
Saíram todos e a Sr. a Papofski ficou só com os filhos. Sentia-se
enlouquecer. Tudo aquilo lhe parecia um pesadelo. Resolveu ir a
Smolensko, falar com o capitão ispravnik e convencê-lo a tomar o
seu partido, ainda que fosse necessário dar-lhe uma quantia
elevada. Regressou ao palácio um pouco mais calma.
Efectivamente, uma hora depois partia para Smolensko, ordenando
ao cocheiro que levasse os cavalos a galope.

16. Visita que acaba mal


O capitão ispravnik não se mostrou surpreendido com a visita da
Sr. a Papofski. Era um homem de aspecto severo, em quem o
governador depositava a maior confiança. O seu próprio aspecto -
alto, muito forte e ruivoaumentava a impressão de terror que ele
causava. A Sr. a Papofski nunca o tinha visto e, ao entrar,
perguntou-lhe com ar altivo:
- Yéfime Vassiliévitche, foi a ti que o meu tio entregou o
documento que concede a liberdade a todos os seus servos e aos
camponeses dos seus domínios?
CAPITÃO - Sim, Maria Pétrovna, esse documento está em meu poder.
SRa PAPOFSKI - E não pode passar para as minhas mãos?
158
CAPITÃO - É impossível.
SRa PAPOFSKI - É muito aborrecido para mim, porque essa gente é
tão má e impertinente, que não há maneira de os fazer obedecer
quando se sentem livres.
CAPITÃO - Não digo o contrário, mas que hei-de fazer, se o seu
tio resolveu assim?
SR A PAPOFSKI - Mas. sabes que o meu tio me fez doação das suas
terras?
CAPITÃO - É possível, mas isso não impede que tenha dado a
liberdade aos camponeses.
SRa PAPOFSKI - Essas terras valem milhões. Vivem nelas seis mil
camponeses.
O capitão inclinou-se e ficou silencioso, olhando para a Sr. a
Papofski com um sorriso
mau.
SRa PAPOFSKI - Não preciso de tudo para mim. Daria de boa vontade
algumas dezenas de milhar de rublos para possuir esse documento e
também um outro em que o meu tio me proíbe de chicotear os
camponeses.
O capitão conservou-se calado.
SRa PAPOFSKI - Darei cinquenta mil rublos por esses documentos.
CAPITÃO - É muito fácil. Vou chamar o meu escrivão para que faça
uma cópia. Isso custar-lhe-á apenas vinte e cinco rublos.
159
A Sr. a Papofski mordeu os lábios e, depois de uns momentos de
hesitação, declarou:
- Não é uma cópia que eu desejo. mas o próprio documento.
CAPITÃO - É impossível, Maria Pétrovna. SRa PAPOFSKI - Darei
sessenta mil. oitenta mil. cem mil rublos. Compreendes-me, Yéfime
Vassiliévitche? Cem mil rublos!
CAPITÃO - Compreendo muito bem! Oferece-me cem mil rublos para
destruir os documentos que o seu tio me confiou. Não é isto?
A Sr. a Papofski respondeu com uma inclinação de cabeça.
CAPITÃO - De que me servirão esses cem mil rublos se me mandarem
para a Sibéria?
SRa PAPOFSKI - Como poderiam mandar-te para a Sibéria, se os
documentos seriam queimados?
CAPITÃO - E as cópias que eu mandei ao staroste e aos próprios
camponeses?
A Sr. a Papofski ficou petrificada.
CAPITÃO - Está provado que deseja anular esses documentos, e se
eu me prestar a isso dar-me-á cem mil rublos, não é assim?
SRa PAPOFSKI - Cem mil rublos. ou mais ainda, se for necessário.
160
CAPITÃO - Nesse caso, resta- me cumprir o meu dever: comunicar ao
governador a sua desonesta proposta. Creio que afinal será a
senhora quem irá para a Sibéria.
SRa PAPOFSKI (horrorizada) - Por amor de Deus não faças uma coisa
dessas meu caro Yéfime Vassiliévitche. Estás a brincar?
CAPITÃO - Falo muito a sério E se quer que eu me cale, tem de
dar-me uma quantia maior.
SRa PAPOFSKI - Mais de cem mil rublos É horrível! Exigir-me tanto
dinheiro só para não apresentar queixa contra mim!
CAPITÃO - Mas, ainda há pouco, a senhora queria dar-me a mesma
soma só para ter o prazer de chicotear os seus criados e
camponeses. Não é de mais que pague o dobro para não ser a
senhora própria chicoteada todos os dias, durante dois ou três
meses, pelo menos.
SRa PAPOFSKI - Isso é infame! Abominável!
CAPITÃO - Abominável e infame era o que a senhora queria fazer.
Não sairá daqui antes de assinar uma declaração, comprometendo-se
a pagar-me duzentos mil rublos, em dois anos, metade em cada ano.
senão vou imediatamente apresentar a minha queixa ao príncipe
governador.
161
- Não, não Por amor de Deus Tem piedade de mim! - gritou a Sr.a
Papofski, lançando-se de joelhos aos pés do capitão. - Só te peço
que diminuas um pouco a quantia. Dar-te-ei cem mil rublos. cento
e vinte mil. cento e cinquenta mil!
O capitão levantou-se e disse:
- Adeus, Maria Pétrovna; até daqui a algumas horas. Voltarei
acompanhado por dois soldados, que a conduzirão à prisão.
- Piedade! Piedade! - gritou a Sr. a Papofski. - Dar-te-ei os
duzentos mil rublos.
- Sente-se, Maria Pétrovna! - disse o capitão indicando-lhe uma
cadeira. - Assine o documento que eu vou escrever.
A Sr. a Papofski assinou com a mão trémula. CAPITÃO - Agora, pode
partir. E se disser uma palavra acerca destes duzentos mil
rublos, faço- a desaparecer sem que pessoa alguma consiga saber o
que foi feito de si. Travará, então, relações com o chicote e com
a Sibéria.
O capitão abriu a porta; no momento de sair, a Sr. a Papofski
voltou-se e olhou-o com ódio, dizendo:
- Miserável!
- A senhora ultrajou a autoridade! - exclamou o capitão, e,
chamando dois homens
162
que estavam perfilados ao fundo da sala, sem que a Sr. a Papofski
os tivesse visto, ordenou:
- Levem esta mulher e conduzam-na ao salão privado.
Apesar da sua resistência, a Sr. a Papofski foi levada por
aqueles homens robustos, que a chicotearam sem piedade. O
suplício foi curto, mas terrível. Por fim, o capitão disse,
oferecendo-lhe o braço com um sorriso irónico:
- Pode sair, Maria Pétrovna!
O desejo dela era esbofeteá-lo, estrangulá- lo, insultá-lo, mas
dominou-se e saiu, sem lhe aceitar o braço.
Quando se encontrou novamente dentro da carruagem, as forças
faltaram-lhe e desmaiou. Só perto de Gromiline recuperou os
sentidos, mas estava tão magoada, que ficou vários dias de cama.
Passado esse tempo, ao levantar-se, sentiu um movimento
extraordinário em toda a casa. Que se estaria passando?

17. Castigo dos maus


A Sr. a Papofski chamou os criados, que não lhe responderam. Os
filhos também não apareceram, e ela, então, resolveu-se a ir ver
o que significava tudo aquilo. Encontrou, numa das salas, uma
quantidade enorme de malas e caixotes; no antigo escritório do
tio estavam muitos homens, entre os quais reconheceu o capitão
ispravnik. Conversavam todos animadamente. Ao reconhecer o
capitão, a Sr. a Papofski não pôde conter um grito de pavor.
Todos se voltaram, e um desses homens, aproximando-se e saudando-
a, perguntou-lhe se era Maria Pétrovna Papofski.
- Sim - respondeu ela com voz sumida -, sou a sobrinha do general
Dourakine.
164
- E eu sou o general príncipe Négrinski; venho tomar posse das
terras de Gromiline, hoje, 10 de Maio, conforme o desejo de seu
tio.
SRa PAPOFSKI (apavorada) - As terras de Gromilin! Mas. eu sou.
GENERAL NÉGRINSKI - Adquiri todo o domínio de Gromiline. Esta
notícia parece surpreendê-la, mas a verdade é que o comprei, há
já dois meses, e dei por ele cinco milhões. A escritura de venda
está nas mãos do capitão ispravnik, que se comprometeu a guardar
segredo até à minha chegada.
A Sr. a Papofski quis falar mas não pôde. Fez-se pálida como um
cadáver e depois vermelha como um pimentão; os olhos pareciam
querer saltar-lhe das órbitas. Por fim, soltou um grito e caiu em
convulsões, sobre o tapete.
O general Négrinski ordenou que a levassem para o quarto e lhe
dispensassem os cuidados necessários, continuando, em seguida, a
tratar da sua instalação e dos seus negócios com o capitão
ispravnik.
No estado em que a Sr. a Papofski se encontrava, era impossível
fazê-la partir de Gromiline. O príncipe deu ordem para que não
lhe faltasse coisa alguma, nem aos filhos. O estado da Sr. a
Papofski agravava-se de dia para dia, até que se tornou
desesperado.
165
Antes de morrer, a sobrinha do general Dourakine pediu para falar
ao príncipe Négrinski e confessou-lhe tudo quanto projectava
fazer, e contou-lhe a sua ida a casa do capitão ispravnik e o que
ali se passara, pedindo-lhe que a vingasse.
O general Négrinski dirigiu-se imediatamente ao palácio do
governador, que se mostrou indignado e o acompanhou a Gromiline,
aonde chegou ainda a tempo de ouvir, da boca da moribunda, a
confirmação de tudo.
O capitão ispravnik foi preso; encontraram entre os seus papéis a
declaração de dívida de duzentos mil rublos, e ele foi condenado
em dez anos de degredo na Sibéria.
Assim acabou a Sr. a Papofski. Um acto de vingança foi o seu
último sinal de vida.
Os filhos foram levados para junto do pai. Ninguém lamentou a
morte de Maria Pétrovna Papofski, e até para os próprios filhos
foi de algum modo uma libertação.

18. A revelação
Enquanto estes trágicos acontecimentos se passavam em Gromiline,
o general Dourakine e os seus companheiros continuavam,
tranquilamente, a sua agradável viagem.
O príncipe Romane contou a Natasha tudo quanto sofrera,
descrevendo-lhe os tormentos por que havia passado nas prisões e
nas minas da Sibéria, onde estivera dois anos. Contou-Lhe também
como conseguira fugir daquele inferno, os perigos que passara -
fome, sede, frio e, principalmente, o pavor de ser descoberto,
até ao momento em que a Providência o levou à floresta de
Gromiline.
O seu único crime era desejar a libertação da Polónia, sua Pátria
querida!
167
Natasha escutava profundamente comovida, e mais de uma vez os
olhos se lhe encheram de lágrimas. Por fim exclamou:
- Felizmente que tudo isso passou! Mas, agora, certamente, vai
deixar-nos. O príncipe Pajarski não pode continuar a ser
preceptor de meus irmãos.
GENERAL - Certamente! Serias capaz de continuar a tratá-lo como a
um Mr. Jackson qualquer?
PRÍNCIPE - Todo o meu desejo é que ela continue a ver em mim um
amigo dedicado, pronto a servi-la em todas as ocasiões. E espero
que nenhum de vós se esqueça de mim.
GENERAL - Quem fala aqui em esquecer? Agora o mais importante é
irmos comer qualquer coisa, porque estou cheio de fome.
Sorriram todos, contentes, com a despreocupação de quem sabe que
o perigo passou. Romane era quem mais alegre se mostrava.
GENERAL - Bem se vê que passaste a fronteira, meu rapaz. Até que
enfim te vejo rir.
A refeição foi abundante para o general, e agradável para todos.
No fim do jantar resolveram revelar a Alexandre e Miguel a
verdadeira identidade de Mr. Jackson, que apertou afectuosamente
contra o coração os seus discípulos.
168
ALEXANDRE - Tenho muita pena. quero dizer, gosto muito que seja o
príncipe Pajarski, meu bom Mr. Jackson. O que me custa é não o
tornar a ver. Gosto tanto de si!
E o pobre Alexandre rompeu em soluços. PRÍNCIPE - Sereis sempre
os meus queridos discípulos, se vossa mãe e vosso tio quiserem
conservar-me junto de vós.
ALEXANDRE - Não se importaria. É verdade?
PRÍNCIPE - E porque havia de importar-me? De que me serve ser
príncipe se não tenho com que viver? Todo o meu desejo é
continuar entre os meus queridos amigos, se mo permitem.
A Sr. a Dabrovine apertou-lhe a mão afectuosamente. O general
abraçou-o a tal ponto, que quase o sufocou. Natasha agradeceu-
lhe, também, a alegria que dava aos irmãos. Quanto a Tiago e
Paulo, conservavam-se afastados, mas o príncipe disse- lhes,
abraçando-os:
- E vocês, meus bons pequenos, continuarão também a ser meus
discípulos e meus amigos. Foste tu, Paulo, quem me descobriu na
floresta.
PAULO - Lembro-me muito bem! O senhor parecia tão infeliz! Fez-me
tanta pena!
TIAGO - Eu pensei logo que tinha fugido de qualquer prisão.
Mostrava tanto receio de que o denunciassem.
169
PRÍNCIPE - E tu disseste a alguém? TIAGO - A ninguém! Nunca! Eu
bem sabia que era perigoso para o senhor.
GENERAL - És um belo rapaz! Hei-de recompensar-te.
TIAGO - Só quero a vossa amizade. O general calculou, então, que,
no dia seguinte, era a data marcada para o general príncipe
Négrinski tomar posse do domínio de Gromiline; divertiu-se a
pensar na raiva que a Sr. a Papofski devia sentir ao saber a
verdade.
Natasha, porém, lamentava a tia e achava o castigo muito severo.
GENERAL - Esqueces-te, minha filha, de que ela nos queria
denunciar a todos e fazer com que nos mandassem para a Sibéria? O
seu castigo será, afinal, voltar para as suas propriedades, donde
não devia ter saído, e ficar sem a minha fortuna, que não devia
pertencer-lhe.
NATASHA - É verdade, meu tio, mas nós somos tão felizes, que me
faz pena pensar no desgosto dela.
GENERAL - Desgosto Deves dizer antes raiva, furor! Ela tem a
sorte que merece. Oxalá que Deus não lhe envie um castigo maior
do que aquele que eu lhe preparei.

19. A excursão à montanha


A viagem prosseguia alegremente. Passaram alguns dias numa cidade
importante e chegaram, em fins de Junho a Ems, onde a Sr. a
Dabrovine devia fazer um tratamento de águas. Os mais novos
faziam belas excursões às montanhas e aos arredores de Ems. Um
dia, o general quis acompanhá-los, para escalar as montanhas que
dominavam a cidade.
DERIGNY - O meu general permite-me que o acompanhe?
GENERAL - Porquê? Julga que não posso andar sozinho?
DERIGNY - Não é isso, meu general; mas se precisar de alguém para
o ajudar a saltar de um rochedo para o outro, estarei eu lá, para
lhe oferecer o meu préstimo.
171
GENERAL - Espera, então, que eu fique encarrapitado nalgum
rochedo, sem poder sair de lá?
DERIGNY - Não, meu general, mas é sempre preferível sermos
muitos, em passeios deste género.
GENERAL - Acha que ainda somos poucos? DERIGNY - Tem razão, meu
general, mas. eu ficaria mais tranquilo se me autorizasse a ir
também.
GENERAL - Vejo perfeitamente aonde você quer chegar. Preferia que
eu ficasse em casa? Pois não Lhe faço a vontade. Aborreço-me na
cidade e quero respirar o ar puro das montanhas. Está decidido
que também vou! O ar inquieto de Derigny fez rir o general e
comoveu-o, ao mesmo tempo.
- Venha, venha connosco, meu amigo; subiremos juntos; vai ver
como eu sou mais ligeiro do que pareço.
O general fez uma pirueta, desequilibrou-se e veio cair nos
braços de Derigny, que não pôde deixar de sorrir.
GENERAL - Você triunfou porque o meu pé se prendeu a uma pedra
Mas. há-de ver-me na montanha!
172
Os quatro pequenos partiram, correndo. Natasha gostaria de fazer
o mesmo, mas os seus dezasseis anos obrigavam-na a ser mais
comedida. Suspirou e pôs-se ao lado do tio. O príncipe Romane e
Derigny caminhavam também junto dele. Quando chegaram ao caminho
estreito e pedregoso que subia pela montanha, o general obrigou
Natasha a passar-lhe à frente, dizendo:
- Vai juntar-te a teus irmãos, minha filha. Corre à tua vontade!
Eu irei mais devagar, com Romane e Derigny.
O general começou então a subir a montanha, lentamente e com uma
certa dificuldade. Ainda não tinham feito metade do caminho e já
ele perguntava se estavam perto do cimo. Natasha ia e vinha,
subia e descia, para saber se o tio se sentia fatigado. Romane ia
à frente do general, dando-lhe a mão nas passagens mais difíceis.
Derigny seguia-o de perto, amparando-o de vez em quando, com o
pretexto de se segurar, ele próprio.
- É isso mesmo que eu desejo! - dizia o general. - Apoie-se em
mim, meu caro Derigny, e segure-se bem, para não rolar de rochedo
em rochedo. Afinal ainda sou eu quem tem de o ajudar a si. Depois
diga que eu sou velho.
173
Os pequenos tinham já chegado ao píncaro mais alto e soltavam
gritos de alegria, chamando os retardatários. O pobre general,
ofegante, mal podia mexer-se. Fazia pena vê-lo.
- Não é para admirar! - dizia ele. - Estou cansado porque venho a
puxar pelo Derigny.
Depois de várias paragens, chegaram, enfim, ao alto da montanha,
donde se desfrutava uma vista deslumbrante, que todos admiraram,
encantados.
Sentado no chão, o general disse a Derigny que fizesse o mesmo.
Depois lamentou-se:
- Que pena não ter trazido cigarros. Não há nada que me
reconforte mais.
- Aqui tem os seus cigarros, meu generaldisse Derigny,
apresentando- lhe a cigarreira e a caixa de fósforos.
- Você é admirável! Pensa em tudo - exclamou o general.
Natasha, gentil como sempre, foi apanhar amoras, que havia por
ali com abundância, e veio oferecê-las ao general, que as
saboreou,
deliciado.
Os pequenos imitaram-na e trouxeram amoras para Romane e Derigny.
TIAGO - Vamos levar também amoras à mamã.
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DERIGNY - É uma bela ideia.
GENERAL - Derigny! Derigny! Temos de regressar ao vale. Tome
cuidado Não vá cair! Segure-se bem a mim!
DERIGNY - Está muito bem, meu general. Agradeço-Lhe imenso o
auxílio.
Natasha olhava para eles, surpreendida. DERIGNY (reprimindo o
riso) - Eu lhe explico, menina Natasha: foi o senhor general quem
me ajudou a subir a montanha.
NATASHA (cada vez mais surpreendida)O meu tio ajudou-o a subir?
Tem a certeza disso?
DERIGNY (rindo) - É melhor perguntar-lho, a ele.
GENERAL (esfregando as mãos) - Evidentemente, Natasha; sem mim,
Derigny não teria chegado cá acima. Vais ver: quando descermos,
será a mesma coisa.
Natasha continuava a olhar para Derigny como a pedir-lhe uma
explicação. Ele fez-Lhe sinal de que lhe explicaria mais tarde.
Natasha começou a adivinhar e sorriu.
- Vamos - ordenou o general. - As crianças à frente, e tu também,
Natasha. Romane vai adiante de mim, Derigny seguirá atrás, para
eu o poder segurar, se ele escorregar.
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A caravana seguiu. A descida era muito íngreme e escorregadia; de
um lado e de outro do caminho havia precipícios enormes. Cada um
apoiava-se a uma forte bengala e lá iam descendo cautelosamente.
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O general cairia a cada passo, se Derigny o não segurasse
fortemente, mas, apesar disso, tropeçava e gemia, amaldiçoando as
montanhas e os rochedos.
Ao meio da descida, a situação do general tornou-se de tal forma
difícil, e Derigny foi obrigado a segurá-lo com tanta força, que
lhe arrancou os botões e as próprias mangas do casaco, não
podendo, apesar de todos os seus es forços, impedir que ele
rolasse até ao fundo de uma cova, toda cheia de silvas.
Para cúmulo do infortúnio, dentro da cova estava uma raposa, que
mostrou logo os dentes ao general. O pobre homem, não percebendo,
nos primeiros momentos, de que animal se tratava, ficou
apavorado, e enterrou-se ainda mais nas silvas, que o feriram
todo.
Derigny, que se lançara imediatamente em socorro do general, a
primeira coisa que fez, ao chegar junto dele, foi agarrar
fortemente a raposa e atirá-la para fora da cova. Para o
conseguir, porém, teve de enfiar os braços por entre as silvas,
pois o animal também estava enredado nelas. Ficou, portanto,
muito arranhado. Sem se preocupar com isso, levantou o general,
dispensou-lhe todos os cuidados, tentando
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trazê-lo para fora do enorme buraco. Todos os esforços foram
inúteis: o general trepava um pouco, tornava a deixar-se cair,
sem poder agarrar a mão que Romane lhe estendia de cima. Vendo
que não conseguia coisa alguma, Derigny tentou pôr o general às
costas e colocá-lo na altura da cova. Tudo foi em vão. Só o facto
de Derigny ser muito vigoroso lhe permitiu fazer todas aquelas
tentativas e resistir ao peso enorme do general.
Convencendo-se de que não havia nada a fazer, o general disse, em
tom calmo:
- Romane, meu filho, não posso mais. Fico aqui. A raposa também
cá estava, porque não hei-de eu ficar também? Somente, como sou
menos sóbrio que a raposa, peço-te que vás num instante ao hotel
e dês ordem para trazerem um bom jantar, vinho, um colchão,
almofadas, cobertores, tanto para mim como para Derigny, que foi
o causador da minha mudança de domicílio.
DERIGNY - Se o meu general mo permite, irei ao hotel buscar uma
pequena refeição e tratar dos meios de o tirar daqui. Entretanto,
o príncipe Romane terá a bondade de lhe fazer companhia.
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GENERAL - Você está doido, meu prezado camarada de prisão. Como
poderá você sair daqui?
DERIGNY - Não é difícil. Dentro de uma hora estarei de regresso.
Ao dizer isto, Derigny, de rochedo em rochedo, de arbusto em
arbusto, saiu da cova antes que o general tivesse tempo de
manifestar o seu espanto.
Voando mais que correndo, Derigny chegou ao sopé da montanha,
onde encontrou Natasha e os rapazes, a quem explicou, em breves
palavras, a posição crítica do general. Depois continuou a
corrida até ao hotel onde arranjou prontamente cordas, escadas e
homens de boa vontade para fazerem sair o general do seu buraco.
Pediu uma empada de carne, uma garrafa de vinho e voltou para a
montanha seguido por numerosa escolta e uma multidão de curiosos
que se ofereceram para prestar qualquer ajuda. Quando chegaram ao
sítio onde se encontrava o infeliz turista, já lá estavam Natasha
e os quatro pequenos.
Enquanto preparavam as escadas e tudo o mais que era necessário,
Derigny fez descer, por meio de uma corda, as provisões que
trouxera e que o general recebeu com visível satisfação, comendo-
as avidamente.
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Romane dirigiu os trabalhos de salvamento, ao passo que Derigny
descia novamente à cova para auxiliar o general a subir as
escadas, amarrado pela cintura com uma corda. Custou bastante,
mas, enfim, lá conseguiram fazer sair o general do enorme buraco.
Derigny, previdente como sempre, mandara vir também uma cadeira
com varas, onde colocaram o general que, desta vez, não ofereceu
a menor resistência.
Os dentes da raposa tinham-lhe feito brechas consideráveis no
vestuário e estava realmente muito arranhado e magoado.
Ao ver a agilidade com que Derigny saiu da cova e a facilidade
com que fora e regressara ao hotel, o general compreendeu a
verdade, quanto ao auxílio que julgava ter-lhe prestado, tanto ao
subir como ao descer a montanha, e não falou mais em tal.
A partir desse dia nunca mais quis acompanhar a gente nova em
excursões à montanha. Helena Derigny continuou a acompanhar
Natasha, como fazia anteriormente, e o general acompanhava a Sr.
a Dabrovine nos seus tranquilos passeios de carruagem.

20. Terminam as viagens. Cada um em sua casa


A época do tratamento das termas passou sem qualquer outro
incidente digno de menção. No fim de Agosto dirigiram-se todos a
França, cuja recordação fazia bater com mais força o coração da
família Derigny e um pouco, também, o do general. Natasha e os
irmãos sentiam a mais viva curiosidade em conhecer essa terra de
que tanto ouviam falar. Quanto a Romane, estava absolutamente
calmo. Considerava-se feliz na situação em que se encontrava, e a
sua única preocupação era descobrir a maneira de ganhar a vida
quando terminasse a educação de Alexandre e Miguel.
O general quis demorar-se algum tempo em Paris, mas permitiu aos
Derigny que partissem
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para Loumigny, para junto de Elfy e Moutier, encarregando-os, ao
mesmo tempo, de lhe prepararem alojamentos.
Generoso, como sempre, o general comprou numerosos presentes para
Derigny e Helena levarem aos irmãos.
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É escusado dizer que os Derigny partiram, imediatamente, cheios
de alegria. Quando chegaram à entrada da aldeia, mandaram parar o
carro em que viajavam e seguiram, a pé, até à Pousada do Anjo da
Guarda. A porta estava aberta e eles entraram sem ninguém dar por
isso.
Elfy e Moutier estavam sentados no jardim. Elfy chorava e dizia:
- Há tanto tempo que não tenho notícias deles! Receio que lhes
tenha sucedido alguma desgraça!
- Tem confiança em Deus - respondeu Moutier.
- Estamos aqui! - exclamou Helena sem poder dominar mais a sua
comoção.
Não é fácil descrever a alegria daquelas excelentes criaturas,
que tão sinceramente se estimavam. Os beijos e abraços parecia
não terem fim. Foram depois a casa do pároco, cuja satisfação foi
enorme. A notícia de que o general resolvera fixar residência em
França, foi um contentamento para todos.
Tiago e Paulo quiseram visitar também os antigos condiscípulos e
amigos. Por fim dirigiram-se à estalagem O General Agradecido,
onde tudo se encontrava na mais perfeita ordem e asseio.
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Elfy manifestou o desejo de que, até à chegada do general,
ficassem todos juntos no Anjo da Guarda. Assim fizeram, levando,
durante um mês, uma vida verdadeiramente deliciosa.
Derigny e Moutier, conforme as instruções do general, procuraram,
nos arredores, uma boa propriedade que estivesse para vender.
Depois de muito procurarem, encontraram uma nas condições
desejadas, com um magnífico palácio luxuosamente mobilado.
Elfy escreveu então ao general a comunicar-lhe isto mesmo e,
simultaneamente, a manifestar-lhe o desejo de que ele viesse
depressa para junto deles.
Efectivamente, a resposta não se fez esperar. O general anunciou
que chegaria na quinta-feira seguinte e recomendava que não se
esquecessem do jantar. Três dias depois, uma grande carruagem,
puxada por oito cavalos e seguida de uma outra mais pequena,
parava em frente da Pousada do Anjo da Guarda. Natasha foi a
primeira a saltar para o chão, abraçando logo Elfy, como se a
conhecesse há muito tempo. Todos estavam comovidos. O próprio
general tinha lágrimas nos olhos.
Apresentando a Sr. a Dabrovine e os filhos disse:
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- Minha querida Elfy, aqui tens a filha que o meu coração
adoptou, e os netos que alegram os meus velhos anos.
Romane foi também apresentado com palavras de grande apreço,
estabelecendo-se imediatamente, entre todos, um ambiente de
verdadeira simpatia.
O general, porém, não esquecia o jantar, que decorreu com
animação. Os pratos estavam optimamente cozinhados, o vinho era
bom, o café esplêndido e a aguardente velhíssima. O general não
ocultava a sua satisfação nem regateava elogios.
Depois do jantar dirigiram- se ao General Agradecido, que
passaria a ser a habitação da família Derigny. A casa era grande
e todos ficaram esplendidamente instalados. No dia seguinte, o
general teve uma surpresa: Derigny mandara vir de Paris um óptimo
cozinheiro e o respectivo ajudante. Estavam, pois, asseguradas as
refeições saborosas e variadas.
Alguns dias depois, uma carta do príncipe Négrinski anunciava ao
general a morte da Sr. a Papofski. Esta notícia impressionou o
general, a sua família e os seus amigos. Mas a felicidade de que
gozavam fez-lhes esquecer depressa o triste acontecimento.
Natasha afeiçoou-se a
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Elfy; visitava-a muitas vezes, aprendendo com ela a cozinhar, a
coser a roupa, e a tratar dos arranjos domésticos.
No dia seguinte ao da sua chegada, o general, acompanhado pela
Sr. a Dabrovine, foi até ao palácio que estava à venda.
Ficaram encantados. Não só o palácio era magnífico, como as
terras e as florestas que o cercavam eram soberbas.
O general efectuou logo o negócio, comprando tudo por dois
milhões.
Duas semanas mais tarde instalou-se na sua nova propriedade, com
todos os seus. Derigny ficou sendo o seu administrador. Helena
encarregou-se das roupas e da direcção das criadas.

21. Todos felizes. Conclusão


No ano seguinte, no princípio do Verão, Moutier foi anunciar, ao
palácio, que Elfy dera à luz uma linda menina. O general ficou
contentíssimo e declarou logo que seria o padrinho.
- E eu a madrinha - disse a Sr. a Dabrovine.
Moutier, radiante, correu a comunicar o gentil oferecimento a
Elfy. O nome escolhido para a menina foi Maria, e os padrinhos
ofereceram-lhe um riquíssimo enxoval, além de vinte mil francos,
presente particular do general. No dia do baptizado, o general
chamou Natasha e disse-lhe:
- Estou velho, minha filha!
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NATASHA - Bem sei, avô; mas a sua saúde é magnífica e, se Deus
quiser, viverá ainda muito tempo.
GENERAL - Sabes, minha filha, gostaria muito que Romane nunca nos
deixasse.
NATASHA - E eu também, avôzinho! GENERAL - Se ele nos deixar será
uma tristeza.
NATASHA - É verdade! Será uma grande tristeza. É ele quem anima e
dirige tudo aqui. Os meus irmãos, e eu própria não fazemos nada
sem o consultar.
GENERAL - Gostas dele?
NATASHA - Gosto muito. Creio que gosto quase tanto dele como de
si, avô.
O general sorriu e beijou Natasha. Depois continuou:
- Pois bem, minha filha, depende de ti que Romane fique sempre
connosco.
NATASHA - De mim? Diga depressa, avô: que é preciso fazer?
GENERAL - Uma coisa muito simples: casar com ele.
NATASHA (rindo) - Eu? Casar com ele? Oh avô, está a brincar Ele
com certeza não quer casar comigo. Sou tão nova!
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GENERAL - Terás dezoito anos dentro de seis meses, Natasha. Ele
tem vinte e oito. A diferença não é tão grande.
NATASHA - Mas sofreu tanto, avô! É como se tivesse quarenta. Não,
com certeza não quer casar comigo.
GENERAL - Parece-te que ele não gosta de ti?
NATASHA-Pelo contrário, avô, gosta muito. Compreendo-o e sinto-o
perfeitamente. Faz tudo quanto pode para me ser agradável, acha
bem tudo o que eu faço. Sim. tenho a certeza de que gosta de mim.
GENERAL - Mas, então, porque não queres casar com ele?
NATASHA (vivamente) - Por mim, não desejo outra coisa. Ele é que
não deve querer.
- É isso que nós vamos ver - disse o general, rindo e esfregando
as mãos.
Mandou imediatamente chamar Romane.
NATASHA - Eu fujo.
GENERAL - Não; ficas aqui, ao pé de mim.
NATASHA - Se ele recusar, a minha presença deve contrariá-lo
ainda mais.
GENERAL - Será o seu castigo, se recusar. NATASHA - Avô. é que.
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GENERAL - Fala, minha filha.
NATASHA - Meu avôzinho. eu nunca tinha pensado nisso, mas agora,
se ele recusar, eu terei muita pena, e não quero que ele perceba.
Natasha encostou a cabeça ao ombro do general e chorou. Nesse
momento entrou o príncipe.
GENERAL - Vem cá, meu amigo, meu bom Romane. Vem ajudar-me a
consolar a minha pobre Natasha. É por tua causa que ela está a
chorar.
ROMANE - Por minha causa?
Ao dizer isto, o príncipe pegou na mão de Natasha, apertando-a
suavemente, e continuou:
- Como posso eu fazê-la chorar, Natasha, se daria a minha vida
para a fazer feliz!
Natasha ergueu o rosto, e sorriu apesar de ter os olhos cheios de
lágrimas.
- A culpa foi do avô - disse ela. GENERAL (rindo) - Ora, não
querem lá ver! Vou dizer-te tudo, Romane. Sei que ela gosta de ti
e tu gostas dela. Ela tem quase dezoito anos; tu tens vinte e
oito. Propus-lhe casar contigo.
- E ela não quer? - perguntou Romane, empalidecendo e deixando
cair a mão de Natasha.
GENERAL - Ela está encantada com essa ideia.
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- Mas então. porque?. - exclamou Romane, radiante de felicidade.
GENERAL - Porque diz que é muito nova, muito criança e, decerto,
tu não quererás.
Romane pegou novamente na mão de Natasha, ajoelhou junto do
general e disse, em voz comovida:
- Meu querido amigo, peço- lhe, de joelhos, a mão de Natasha, que
fará a minha felicidade! A não ser que o facto de eu ser pobre e
proscrito.
NATASHA - Diga que sim, avô! GENERAL - Que Deus vos abençoe, meus
filhos!
Ao dizer isto, o velho general tinha os olhos marejados de
lágrimas. Natasha e Romane beijaram-no ternamente e foram dar a
boa nova à Sr. a Dabrovine, que os abençoou, comovidíssima.
A notícia do casamento de Natasha e Romane espalhou-se
rapidamente entre os seus amigos. Para o bom cura não foi
novidade. Há muito tempo que ele sabia o que se passava
naqueles corações.
O general apressou a cerimónia.
- Não gosto de esperar - dizia ele. Combinaram, pois, que a
demora seria a indispensável para tratar dos respectivos
documentos.
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- E o enxoval de Natasha? - observou a Sr. a Dabrovine.
GENERAL - Romane dispensa o enxoval, não é verdade?
Romane concordou imediatamente com o general.
Derigny foi encarregado de anunciar a toda a gente da aldeia que
o casamento da sobrinha do general se realizaria dali a quinze
dias, e que estavam todos convidados para a boda.
Prepararam uma festa, conforme as tradições populares. Os
camponeses andavam entusiasmados.
O general mandou vir o tabelião e dotou os noivos em quatro
milhões.
- O restante da minha fortuna será para Natália e os filhos, à
parte alguns legados aos meus amigos - declarou ele.
No dia do casamento o Sol brilhava em todo o seu esplendor.
Espalharam mesas pelo prado, em frente do palácio, e serviram uma
refeição magnífica a toda a gente da aldeia e arredores.
Por lembrança de Natasha e Romane, cinquenta famílias, das mais
pobres, receberam uma quantia que os livrou da miséria. Depois do
jantar dançaram até de madrugada, como nas bodas de Elfy e
Moutier, mas o general, cada vez mais velho e pesado, não dançou.
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Ficaram vivendo sempre juntos, ternamente, unidos pelo mais
profundo afecto.
O general entretinha-se a projectar futuros casamentos.
- Tiago casará com a filha mais velha de Elfy; Paulo casará com a
segunda.
NATASHA - Mas Elfy só tem uma, avôzinho.
GENERAL - Isso não quer dizer nada. Há-de ter outra. Tiago
passará a ser também meu administrador, para ajudar o pai. Paulo
ficará com Moutier. Derigny e Helena ficarão comigo até ao fim.
Deixarei a todos com que viver desafogadamente. E quando, um dia,
eu morrer, quero ficar no cemitério da aldeia, para onde hão-de
ir todos quando chegar a sua vez.
Assim acabou a história do general Dourakine, que terminou os
seus dias rodeado pelo respeito e carinho dos seus, espalhando o
Bem e contribuindo para a felicidade daqueles que o estimavam.

FIM

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