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São João Crisóstomo

Sobre a educação dos filhos

(Fonte: http://www.cristianismo.org.br/vangloriaeducacao0.htm#discurso38 )
  

A decência não consiste na beleza da casa, nem no luxo dos


empregados, nem no quarto com tapetes e cama bem enfeitada, nem
no grande número de criados. Tudo isso são coisas que estão fora de
nós e nada têm a ver conosco. O que nos corresponde é a modéstia,
o desprezo pelas riquezas, o desprezo pela glória, zombarmos da
honra vinda do povo, transcender a natureza através da virtude da
vida. Esta é a decência, esta é a glória, esta é a honra.

Mas a causa de todos os males vem do princípio, e eu vos direi


como.

Apenas nascido o menino, o pai busca todos os meios imagináveis,


não para educá-lo, mas para adorná-lo e vesti-lo com roupas de
ouro. Homem, por que motivo fazes isso? Basta que te vistas dessa
forma; para que ensinar também isso para um filho que ainda não
conhece tamanha loucura? Para que fim colocas-lhe um enfeite no
pescoço? O que a criança precisa é de um pajem escrupuloso para
educá-lo, e não de adornos de ouro. Além disso, lhe deixas o cabelo
comprido com o que, desde o início fazes o menino aparentar ser
uma menina e amoleces o lado rígido da sua natureza, infundindo-
lhe desde o nascimento o amor supérfluo das riquezas e
persuadindo-o a que se iluda com coisas inúteis. Que necessidade
tem de preparar-lhe maior ataque? Por que fazes com que se interesse
pelo corporal?

"Para o varão", diz o Apóstolo, "deixar crescer a cabeleira é uma


desonra". (I Cor. 11, 14)

A natureza não quer isso. Deus não permitiu isso. É uma coisa
proibida. É obra de superstição gentílica. Muitos lhes penduram
enfeites de ouro nas orelhas. Oxalá não os usassem nem as próprias
meninas. E vós ainda estimulais essa peste entre os homens.


 
  

Talvez muitos riam do que estou dizendo, considerando-o ninharia.


Não são ninharias, mas coisas muito relevantes. A menina que
aprende já no quarto materno a encantar-se com as roupas
femininas, quando sair da casa paterna, será ingovernável e um fardo
para seu marido e mais insuportável que os cobradores de impostos.
Eu já vos disse outras vezes que a causa de que a maldade seja difícil
de extrair está em que ninguém lhes fala sobre a virgindade,
ninguém lhes diz uma palavra sobre a castidade, ninguém sobre o
desprezo pelas riquezas e pela glória, ninguém lhes recorda as
promessas que temos nas Escrituras.

Pois bem, se desde a primeira infância carecem as crianças de


mestres, que será delas? Se alguns, educados e instruídos desde o
ventre materno até a velhice, não conseguem triunfar, que males
serão capazes de cometer aqueles que desde o começo da vida se
acostumaram a ouvir semelhantes palavras? O certo é que todas as
pessoas se esforçam para que seus filhos se instruam nas artes, nas
letras e na eloquência; mas a ninguém ocorre pensar em como
exercitar sua alma.

Eu não cesso de vos exortar, rogando-vos e suplicando-vos que, antes


de qualquer coisa, eduqueis bem os vossos filhos. Se tendes
consideração por vossos filhos, aqui o haveis de mostrar. Ademais,
tampouco vos faltará a recompensa. Escuta o que te diz São Paulo:

"Salvar-se-á pela educação dos filhos, se permanecerem na fé, na


caridade e na santidade com castidade". (I Tim. 2, 15)

Se a tua consciência te acusa de mil pecados, busca algum consolo


para eles. Educa um atleta para Cristo. Não te digo que o afastes do
matrimônio e o envies ao deserto e o faças abraçar a vida monástica.
Não é isso o que digo. Quero-o, certamente, e faria promessa a Deus


 
  

para que todos a abraçassem; mas como isso parece muito pesado,
não aponto como obrigação para ninguém. Educa um atleta para
Cristo, e mesmo permanecendo no mundo, ensina-o a ser piedoso
desde os primeiros anos.

Se os bons ensinamentos se imprimem na alma quando esta ainda é


terna, logo, quando se tiverem endurecido como uma imagem,
ninguém será capaz de os arrancar. É o que acontece com a cera.
Agora o tens em tuas mãos quando ainda teme, treme e se espanta
com teu olhar, com uma palavra, com qualquer gesto teu. Usa o teu
poder para o que convém. Se tens um filho bom, tu serás o primeiro
a gozar desse bem; em breve Deus. Para ti trabalhas.

Dizem que as pérolas, no momento de se colher, são apenas água.


Pois bem, se aquele que a colhe é esperto, põe em sua mão aquela
gota de água e, fazendo-a girar sobre o vazio da mesma, a torneia de
modo perfeito e a torna completamente redonda. E uma vez que
tenha tomado uma forma, já não é possível dar-lhe outra. E é assim
que, em geral, o tenro, como ainda não recebeu sua própria forma,
presta-se a adotar qualquer uma que se lhe dê. Daí a facilidade com
que se faz dele o que se quer. Mas o duro, como se da dureza tivesse
recebido uma disposição peculiar, já não é fácil fazer perdê-la e
passar para outra estrutura.

Cada um, pois, de nós, pais e mães, pela maneira que vemos como
os pintores e escultores trabalham tão esmeradamente seus quadros e
estátuas, assim devemos cuidar destas maravilhosas esculturas, que
são os filhos. Os pintores, com efeito, pondo-se diante da tela cada
dia, a vão pintando convenientemente. E o mesmo fazem os que vão
polindo a pedra, ora tirando o supérfluo, ora colocando o que falta.
Assim, nem mais nem menos, fazei também vós: estais esculpindo


 
  

esculturas. Todo vosso tempo há de ser consagrado a preparar para


Deus estas maravilhosas estátuas. Cerceai o supérfluo e acrescentai o
que falta, e examinai diariamente quais os ganhos que já têm sobre
seu natural, a fim de aumentá-los, e que defeitos também lhes vêm
da natureza, para corrigi-los.

E, antes de tudo, e com todo rigor, afastai deles todas as palavras de


intemperança, pois esta paixão é a que mais prejudica a alma dos
jovens. Ou, melhor, antes que o jovem chegue a conhecê-la pela
experiência, ensinai-o a ser sóbrio, a vigiar, a velar pela oração e a pôr
o sinal da cruz em tudo que diga ou faça.

Imagina seres um rei e que uma cidade esteja submetida a ti, que é a
alma da criança; pois a alma é, efetivamente, uma cidade. E do
mesmo modo que em uma cidade uns roubam e outros agem
justamente; uns trabalham e outros fazem tudo pelo prazer, assim
acontece exatamente na alma com a inteligência e os pensamentos;
uns lutam contra os que cometem iniquidade, como fazem na cidade
os soldados; outros proveem ao conjunto, ao corpo e à casa, como os
que administram a cidade; outros ordenam e mandam, como fazem
os governantes; e há também os que narram coisas dissolutas, como
fazem os intemperantes; outros, coisas graves, como os castos ou
temperantes; há também os afeminados, como mulheres entre nós;
outros falam com pouca razão, como fazem os meninos; e uns são
mandados como os criados, como se faz com os escravos; outros são
nobres, como o são os cidadãos livres.

Necessitamos, pois, de leis, a fim de desterrar os maus e admitir os


bons e não consentir que os maus se revoltem contra os bons.
Porque do mesmo modo que se em uma cidade se fizessem leis
concedendo total impunidade aos ladrões, se transtornaria tudo; e se


 
  

os soldados não usassem devidamente da ira, se faria um dano


universal, e se cada um deixasse seu posto, se intrometesse no dos
outros, com tal intromissão se chegaria a perder toda a disciplina;
assim acontece exatamente na alma.

Cidade, pois, é a alma do menino, cidade recém fundada, habitada


por cidadãos forasteiros que ainda não têm experiência alguma. E
esses são justamente os que mais facilmente se educam. Aqueles que
têm tido má conduta, como os velhos, dificilmente mudam; não que
seja impossível, pois também os velhos, se quiserem, podem mudar;
mas os que ainda não têm nenhuma experiência, receberão mais
facilmente as leis que lhes imponham.

Portanto, estabelece, para esta cidade e seus cidadãos leis severas e


enérgicas e constitui-te o defensor das que forem transgredidas, pois
de nada serve fazer leis se não forem aplicadas as punições previstas.

Estabelece, pois, as leis para esta cidade e vigia escrupulosamente:


Estamos estabelecendo leis para a terra inteira e vamos hoje fundar
uma cidade. Tem que haver cercas e portas: os quatro sentidos. O
corpo em geral seja como a muralha; as portas desta, os olhos, a
língua, o ouvido, o olfato e, se queres, também o tato. Através destas
portas, efetivamente, entram e saem os cidadãos desta cidade. Ou
seja, através destas portas se corrompem ou se endireitam nossos
pensamentos.

Eis, pois, vamos primeiramente à porta da língua, pois esta é a que


mais se movimenta, e a devemos construir antes de qualquer outra,
porta e fechadura, não de madeira nem de ferro, mas de ouro.
Porque de ouro é verdadeiramente a cidade que assim se prepara. E é
verdade que nela, não um homem, mas o próprio rei do universo


 
  

deverá habitar, quando estiver preparada, e já verás, mais a frente,


onde lhe assinalaremos os palácios.

"Os oráculos de Deus são mais doces para minha boca que o mel e o
pão"; (Ps. 118,103)

"mais apetecíveis que o ouro e pedras preciosas em abundância" (Ps.


18, 10-11)

Ensinemo-lhes a levar sempre nos seus lábios as palavras divinas,


inclusive nos seus passeios, não casualmente e superfluamente, nem
poucas vezes, mas continuamente. Sobre as portas não nos
contentemos em colocar lâminas de ouro, mas construamos as
mesmas inteiras e por dentro de ouro puro, densas e maciças, e
levando pedras preciosas ao invés de pedras incrustadas por fora. O
ferrolho destas portas há de ser a cruz do Senhor, que deverá ser
fabricado inteiramente de pedras preciosas e correr de ponta a ponta
nas portas. E assim quando tivermos construído estas portas maciças
e de ouro puro e sobreposto o ferrolho, preparemos também
cidadãos dignos. Como prepará-los? Ensinando as crianças a falar
palavras nobres e piedosas. E deveremos praticar uma rigorosa
expulsão de estrangeiros, afim de que não se misturem com estes
cidadãos gente em abundância e corruptoras; ou seja, havemos de
excluir as palavras insolentes e maledicentes, as insensatas, as torpes,
as seculares e mundanas. Importa banir todas essas palavras.
Ninguém, exceto o rei, deverá entrar por estas portas. Só a Ele e a
quantos com Ele vão, há de estar aberta a porta, para que dela
também se diga:

"Esta é a porta do Senhor, os justos entrarão por ela". (Ps. 117, 20)

E segundo o bem-aventurado Paulo:


 
  

"Se tens alguma palavra boa, seja para a edificação, de maneira que
faça bem aos ouvintes" (Ef. 4, 29)

As palavras sejam de ação de graças, cânticos sagrados, todas as suas


conversas sejam sobre Deus e sobre a filosofia do céu.

Como, pois, consegui-lo? E por quais meios educaremos?


Constituindo-nos juizes rigorosos de suas ações. A criança nos
oferece para isso, muita facilidade. Como? Não luta pelas riquezas,
nem pela glória. Ainda é um menino. Não luta pela mulher, nem
pelos filhos, nem pela casa. Dessa forma, poucos pretextos pode ter
para injuriar e nem para falar mal de alguém. Toda sua luta é com os
de sua idade.

Impõe a ele, imediatamente, a lei de que não insulte a ninguém nem


fale mal de ninguém, nem jure, nem procure desavenças. Se
perceberes que infringe a lei, castiga-o, algumas vezes com um olhar
severo, outras com palavras que o mortifiquem, outras com
impropérios. Às vezes também haverás de acariciá-lo e prometer-lhe
algo. Não bate nele assiduamente nem se acostume ele a esta
maneira de educação. Porque se aprender a ser continuamente
castigado, aprenderá também a desprezar o castigo; e se aprender a
depreciar, tudo estará perdido. Não. O filho deverá temer sempre
que for ameaçado, mas não se deverá bater nele. Deve se levantar a
correia, mas não baixá-la. As ameaças não devem se transformar em
ato. Porém, que não veja claramente que a ameaça reduz-se apenas a
palavras; pois a ameaça só é eficaz quando se pensa que ela poderá
ser realizada. Se o pecador se dá conta de que se trata apenas de uma
ameaça, a desprezará. Não. Que espere sempre o castigo, mas
procure que este não chegue. Não se extinga o temor; seja mais
como um fogo vivo que consome todos os espinhos próximos ou


 
  

como uma enxada ou uma picareta afiada e larga que cava até o
fundo. Mas se perceberes que só o medo produz efeito, afrouxa um
pouco a rédea, pois nossa natureza requer também um pouco de
rédea solta.

Ensina-o a ser modesto e caridoso. Se percebes que insulta seu


acompanhante, não consinta, mas castiga-o livremente. Aquele que
sabe que não lhe é lícito injuriar seu próprio escravo, com muito
mais razão se guardará de não injuriar ou maldizer o que é livre e
igual si. Costura sua boca para toda a maldade. Se notas que calunia
alguém, fecha-lhe a boca e força-o a voltar a língua para seus
próprios pecados.

Aconselha sua mãe, a pajem e o acompanhante que digam estas


mesmas coisas à criança, de forma que todos sejam guardiões e
vigiem para que não saia da boca do menino nenhum daqueles maus
pensamentos nem atravesse aquelas portas de ouro.

E não pensa, te suplico, que a isto requeira muito tempo. Se desde o


início o atacas e ameaças e colocas tantos guardiões, dois meses
bastam e tudo se consegue e endireita, e a coisa vem tomar a firmeza
do natural.

Desta forma, pois, pode esta porta fazer-se digna do Senhor. Através
dela não há de passar torpeza nem grosseria alguma, nem alguma
palavra insensata, nem coisa parecida, mas só as que são dignas do
Senhor. Se aqueles que instruem na milícia temporal, apenas entram
seus filhos nelas já os ensinam a manusear o arco e vestir a clâmide e
a montar a cavalo, e a idade não representa obstáculo algum, mais
justo é que aqueles que militam na milícia celeste vistam


 
  

imediatamente todo este magnífico adorno. Aprenda, portanto, a


criança a cantar a Deus, para que não se entregue às canções
medíocres e às histórias inconvenientes.

Assim esta porta será assegurada, e estes são os cidadãos que hão de
se inscrever no registro. Todos os demais deverão ser mortos dentro,
como fazem as abelhas com os zangões, e não deverão deixar que
saiam e zumbam fora.

Vamos agora a outra porta. Qual é esta? A que está próxima à da


boca e tem muito parentesco com ela: a do ouvido. Pela porta da
boca saem de dentro os cidadãos e ninguém entra por ela; pela porta
do ouvido, ao contrário, entram de fora e não sai ninguém. Estão,
pois, entre si estreitamente relacionadas. Com efeito, se a porta do
ouvido não deixar pisar seus umbrais nenhum corruptor nem
corrompido, não cria grandes dificuldades à boca, pois aquele que
não ouve coisas vergonhosas e más, tampouco as fala; assim como,
estando a porta do ouvido aberta de par em par a tudo o que vem,
prejudicará a outra e levará à turbação todos os de dentro. E talvez
fosse conveniente ter dito primeiro tudo que é relacionado a esta
porta e ter fechado bem a primeira entrada.

Assim, pois, as crianças não hão de ouvir palavras desonestas, nem


dos escravos, nem das pajens, nem das governantas. As plantas
precisam de cuidados especiais quando são tenras. Assim também as
crianças. Deve-se provê-los, portanto, de boas pajens, afim de que o
fundamento, desde a base, seja bom e não se lhes infiltre
absolutamente nada mal.

Consequentemente, não ouçam histórias da carochinha. "Fulano -


diz - amou fulana. O filho do rei e a filha caçula fizeram isso". Nada
disso devem ouvir. Ouçam outras histórias sem tantos rodeios, com

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toda simplicidade. Podem, efetivamente, contá-las os escravos ou os


acompanhantes. Não todos, pois não se deve permitir a todos os
escravos misturarem-se com as crianças. Brilhantes hão de ser, como
quem se aproxima de uma estátua brilhante, os que nos ajudarão
nessa arte. Se fossemos arquitetos e tratássemos de construir um
palácio para o imperador, não deixaríamos que todos os escravos,
sem mais nem menos, pusessem as mãos na construção; não seria,
pois, absurdo que, quando fundamos uma cidade e queremos formar
cidadãos para o imperador celeste, encomendemos a obra a todas as
pessoas? Não. Tomemos como colaboradores na educação dos filhos
aqueles escravos que sejam proveitosos. Se não há nenhum, paga
remuneração a um cidadão livre, que seja homem virtuoso, e a este
encomenda toda a obra, este seja teu colaborador.

Não ouçam, pois, semelhantes histórias. Não. Quando forem aliviar


o cansaço do estudo, já que a alma aprecia as histórias antigas, conta-
as à criança, afastando-a dos jogos... Sim, estás criando um filósofo, e
um atleta, e um cidadão do céu. Diga-lhe, portanto, e conte-lhe
assim:

"Havia no início do mundo dois filhos do mesmo pai, dois irmãos".

Logo, após uma breve pausa, prossegue:

"Os dois tinham saído do mesmo ventre. Um era maior, o outro


menor. E um era agricultor, o maior; e o menor, era pastor. O pastor
levava seu rebanho nos vales e lagos."

E procura suavizar a narração, para que também a criança sinta gosto


e sua alma não se canse.

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"O agricultor semeava e plantava. Uma vez, pois, decidiram os dois


fazer um sacrifício a Deus. E o pastor, pegando o melhor de seus
rebanhos, o ofereceu a Deus".

Não é melhor, muito melhor, contar estas coisas ao invés de tudo


aquilo do carneiro de ouro e outros fantásticos prodígios? Logo
anima-o (pois a narrativa também o leva consigo) sem acrescentar
nenhuma mentira, mas partindo sempre das Escrituras. Portanto,
como ofereceu a Deus o melhor, prontamente desceu fogo do céu e
arrebatou tudo para o altar do alto. Assim não fez o irmão mais
velho, mas guardando nos celeiros para si a melhor parte das suas
colheitas, ofereceu a Deus o que valia menos. E Deus não se dignou
nem olhar aquelas ofertas, mas virou seu rosto e as deixou no chão.
E já dissemos que as outras havia aceitado para si. É o que acontece
com os que mandam nos lugares: O dono honra um que lhe traz
suas ofertas e permite que entre; o outro deixa do lado de fora.
Exatamente dessa forma aconteceu nesse caso. Então, o que
aconteceu depois? O irmão maior ficou ressentido, pensando ter sido
desonrado e preterido, e estava triste. Então disse-lhe Deus: "Por que
estás triste? Não sabias que fazias oferta a Deus? Por que me
ofendeste? Tinhas alguma coisa contra mim? Por que me ofereceste a
parte que valia menos?" Ou se preferes usar uma linguagem mais
simples, dirás: "Ele esteve quieto, não tendo o que refutar", ou para
dizer melhor ainda, "se calou". Depois disso, vendo seu irmão
menor, lhe disse: "Vamos andar no campo". E lançando-se contra o
irmão mais novo, o matou de forma traiçoeira. E imaginava que
Deus não iria inteirar-se disso. Mas Deus se aproximou e lhe disse:
"Onde está o teu irmão?" Ele respondeu: "Não sei. Por acaso sou o
guardião do meu irmão?" Disse-lhe Deus: "Eis que o sangue do teu
irmão está clamando por mim desde a terra". Sentada a teu lado

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também deverá estar a mãe, enquanto se forma assim a alma da


criança com essas histórias, para que ela também colabore e elogie as
coisas que vão sendo ditas. "O que aconteceu, pois, em seguida? Ao
que foi assassinado Deus admitiu no céu, e lá em cima está mesmo
depois de morto."

E é assim, com estas histórias, que a criança recebe a doutrina da


ressurreição. Porque se nos mitos ou nas histórias se narram
prodígios como: "Ela se tornou - dizem - semideusa", e a criança
acredita (realmente não sabe o que é semideusa, mas imagina que é
algo acima da natureza humana e fica admirada quando ouve isso),
com mais razão quando ouve falar da ressurreição e que a alma do
irmão mais novo subiu ao céu.

"O menor, portanto, Deus levou imediatamente ao céu; mas o


outro, o que o havia assassinado, viveu ainda muitos anos sofrendo
muitos males, entre temores e tremores, e sobre ele caíram mil
calamidades e castigos todos os dias". E ressalta energicamente este
castigo, não de passagem, que ouviu de Deus: "Com temor e tremor
residirás sobre a terra". Certamente a criança não sabe o que é isso.
Pois tu lhe dirás: "Da mesma forma que tu estás diante do mestre
muito angustiado, temendo e tremendo se alguma vez te tem que
açoitar, assim sempre viveu aquele assassino por ter ofendido a
Deus".

Basta chegar até aqui; e isso podes contar a ele em um único dia
durante a ceia. Por sua vez, o mesmo, deverá lhe dizer a mãe. Logo,
quando já tiver ouvido muitas vezes, pede a ele mesmo: "Conta-me
o que se passou", e assim também seu amor próprio será despertado.
E quando notares que compreendeu bem a história contada,
explicarás a ele também o fruto que deve ser extraído. É verdade que

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a alma por si mesma, ao receber a narração, sabe extrair o fruto antes


mesmo de que lhe venhas explicar; no entanto, tu podes também
acrescentar o seguinte:

"Vês que mal tão grande é a voracidade? Vês que mal tão grande é
ter inveja do irmão? Vês que mal tão grande é pensar que algo pode
ocultar-se a Deus? Porque Deus vê tudo, mesmo o que se faz
ocultamente". Só com essa doutrina, semeada profundamente na
criança, já não lhe fará falta a pajem, pois o temor de Deus lhe será
incutido mais profundamente do que todo outro temor e mexerá
com sua alma.

E não só isso, mas também deves levar a criança pela mão à Igreja, e
procura principalmente levá-lo quando lá seja lida essa mesma
história. E então verás como se orgulhará e saltará de alegria, pois ele
sabe o que todos ignoram, e se adiantará e entenderá melhor e tirará
grande proveito. E a partir de então a história se gravará em sua
memória.

Ainda pode-se extrair outros frutos da história. Portanto, aprenda a


criança, de tua boca, que não devemos lamentar o sofrimento, como
a própria morte o demonstra aqui, no principio do mundo, pois
Deus recebeu no céu aquele que se tornou glorioso por sua morte.

Quando a história anterior estiver bem gravada na alma da criança,


poderás contar outra, por exemplo, a de outros dois irmãos, e
começarás assim:

"Havia também outros dois irmãos, um maior e outro menor; o


maior era caçador; o menor era caseiro".

Esta história é mais interessante do que a outra, por conter mais


peripécias e pelos irmãos serem mais velhos.

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"Estes dois irmãos também eram gêmeos e, quando nasceram, a mãe


amava mais o menor, e o pai o maior. Um passava a maior parte do
tempo fora de casa, nos campos, enquanto o menor ficava em casa. E
ocorreu que o pai, já velho, disse ao filho que ele mais amava: 'Vês,
filho, que já estou velho; portanto, vai e me traga uma caça. Isto é,
vê se caças uma gazela ou uma lebre, e me trazes e asses para mim, e
depois de comer, te darei minha benção'. Mas para o menor não
disse nada disso. Como a mãe ouvira o pai falar daquela forma,
chamou o irmão menor, e lhe disse: 'Filho, como teu pai mandou a
teu irmão que lhe traga caça, a fim de abençoá-lo depois que tiver
comido, escuta-me: Vai agora até o rebanho e pega uns cabritos
bonitos e gordos e traze-os para mim, e eu os prepararei como sei
que teu pai gosta. Tu os apresentarás, a fim de que, depois que ele
tiver comido, te bendiga'. Importa saber que o pai havia perdido a
vista com a velhice. Assim, portanto, o irmão menor trouxe os
cabritos, a mãe os assou, colocou seus pedaços bons numa travessa, e
a deu para o filho e este a apresentou ao pai. Antes a mãe o havia
vestido com peles de cabra, para que não fosse descoberto, pois não
tinha pêlos, e seu irmão era peludo. Era preciso dissimular e que o
pai não percebesse. Preparado dessa forma, a mãe o despachou. E o
pai, imaginando que fosse realmente o mais velho, acabando de
comer, lhe deu a benção. Logo, após dar a benção, chegou o maior
com a caça e, vendo o que tinha acontecido, gritou e começou a
chorar" .

Olha quantos bens se extraem disso. E não conta a história inteira.


Repara quanto proveito pode ser tirado do que foi contado. Em
primeiro lugar, as crianças admirarão seus pais, vendo que assim
disputam estes dois irmãos pela benção do seu, e preferirão mil vezes
ser açoitados ao invés de ouvir uma maldição de seus pais. Porque se

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uma fábula qualquer lhes interessa e a têm como digna de fé, como
não interessá-los o que realmente é verdade, e quanto maior temor
não lhes infundirá? Aqui perceberão que devem desprezar o ventre;
pois deves contar-lhes que "ao maior não valeu de nada sua
primogenitura, pois por sua intemperança do ventre vendeu seu
privilégio de primogênito".

Logo, quando assimilar bem o descrito, numa outra noite lhe dirás:
"Então conta-me a história daqueles dois irmãos".

E começará a contar-te a história de Caim e Abel: mas lhe replicarás


dizendo:

"Não, não é esta a que pergunto, mas a dos outros dois irmãos, que
disputavam entre si a benção do pai".

E dá-lhe os sinais pois, ainda não deves atribuir-lhes os nomes. E


como não contaste a história inteira, continua teu relato dizendo:
"Ouça, pois, o que aconteceu então. Também este tentava matar seu
irmão, como o da outra história, e esperava a morte de seu pai.
Como a mãe ficou sabendo, e temia, providenciou que o irmão
menor fugisse.

Logo vem a grande filosofia que certamente supera a capacidade da


criança, mas que, se soubermos manejar bem o relato, pode também,
com condescendência, ser apresentada à tenra inteligência infantil.
Portanto, lhe diremos assim:

"O irmão perseguido se pôs a caminho e chegou a um lugar, sem a


companhia de ninguém, sem escravo, sem provedor, nem pajem,
nem qualquer pessoa deste mundo. Estando ali, fez oração e disse:
'Senhor, dá-me pão e roupa e salva-me'. Logo, dito isso, a própria
tristeza o fez dormir. E viu uma escada que chegava da terra ao céu e

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os anjos de Deus que subiam e desciam, e viu o próprio Deus que


estava em cima na extremidade,

e disse: 'Abençoa-me'. E o abençoou e o chamou de Israel" .

Em tempo me lembrei e agora me ocorreu outro pensamento, a


propósito do nome. Que pensamento é este? Que despertemos neles,
imediatamente, por seu próprio nome, zelo pela virtude. Ninguém
tenha, pois, pressa em dar às crianças nomes de antepassados, do pai,
da mãe, avô ou bisavô. Não. Ponhamos neles os nomes dos justos,
dos mártires, dos bispos, dos apóstolos. O próprio nome há de ser
para eles um motivo de fervor. Chame-se um Pedro, outro João ou
nome de algum outro santo.

E não me venhas com costumes pagãos. Efetivamente não é pequena


a vergonha e ridículo que em casa de cristãos se perpetuem costumes
dos gentios, acendendo velas, observando qual se apaga primeiro, e
outros costumes semelhantes, que não trazem dano de qualquer tipo
para quem os praticam. Com efeito, não penseis que tudo isso são
coisas fúteis e sem importância.

Eu vos exorto, portanto, a que chameis vossos filhos pelos nomes dos
santos. É natural que no princípio se fizesse de outra forma e se
chamasse os filhos pelos nomes dos antepassados. Isso era como um
consolo da morte, pois aquele que morria se imaginava viver no
nome dos filhos. Porém, agora já não. Pelo menos vemos que os
justos não chamam assim seus próprios filhos. Assim Abraão gerou
Isaac. Jacó e Moisés não se chamaram como seus antepassados nem
encontraremos nenhum dos justos que assim fossem chamados. Que
exemplo e exortação à virtude não é o mero nome! E, efetivamente,

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não acharemos outro motivo para a mudança do nome, senão o de


recordar a virtude:

"Tu", disse, "te chamarás Céfas, que significa Pedro". (Jo. 1, 42)

Por quê? "Porque tu me confessaste" (Mt. 16, 17-18). "E tu te


chamarás Abraão". Por quê? "Porque serás pai de nações". (Gen. 17,
4 ss)

E Jacó foi chamado Israel, porque viu a Deus (Gen. 32, 39). Por
aqui, portanto, deve-se começar nosso esmero com os filhos e assim
os deveremos educar.

Portanto, como dizia, "viu uma escada voltada para o céu e que
chegava até ali...".

Entre, pois, o nome dos santos nas casas como o nome dos filhos, e
assim se eduque não só o filho, mas também o pai, sempre que
considere ser pai de um João, de um Elias, de um Jacó. Porque se o
nome é escolhido com piedade e para honrar os antepassados; se
preferirmos o parentesco com os justos ao invés de nossos avós, isso
trará muito proveito para nós e para nossos filhos. Não penses que
por tratar-se de coisa miúda, deixa de ter importância, pois é motivo
de muita utilidade.

Assim, como dizia, retornemos à história.

"Viu uma escada levantar-se; procurou ser abençoado; Deus lhe


concedeu a benção; caminhou em direção de seus parentes; foi
pastor".

Logo lhe explicarás o referente à esposa e à volta, e muito proveito


poderá a criança extrair disso tudo. Vê quanto ensinamento:
Aprenderá a confiar em Deus; mesmo sendo de nobre família, não

18 
 
  

desprezará ninguém; não se envergonhará da pobreza, saberá sofrer


pacientemente as dificuldades e muitos outros ensinamentos.

Depois disso, quando a criança tiver crescido, conta-lhe também


histórias de maior temor, pois enquanto a inteligência da criança é
tenra não deves sobrecarregá-la com tanto peso, para que não se sinta
confusa. Mas quando chegar aos quinze anos ou mais, tem que ouvir
o que se refere ao inferno; ou melhor, quando tiver cerca de dezoito
anos ou menos, ouça sobre o dilúvio, o castigo de Sodoma, as pragas
do Egito e tudo o que estiver envolvendo castigo. Sempre com muita
naturalidade. Crescendo um pouco mais, entra na matéria do Novo
Testamento, da graça e do inferno. Com esses temas e mil outros
semelhantes deverás tapar seus ouvidos e usar os exemplos de nossa
própria casa.

Mas se alguém vier com histórias espúrias, não admitamos, como já


dissemos, que se aproxime do menino. Se percebes que um escravo
fala diante dele coisas torpes, castiga-o imediatamente e constitua-te
examinador severo e duro do que se faz. Se vês uma garota..., ou
melhor, uma garota não deve nem se aproximar e assim acender o
fogo. Só eventualmente uma senhora idosa, que não possa perturbar
o jovem. Das jovens, deve afastar-se mais do que do fogo. Se o
menino não ouve nada desonesto, mas se alimenta dessas histórias,
não pronunciará, tampouco, palavra desonesta.

Vamos passar a outra porta: a do olfato. Também essa porta pode


provocar muitos danos, se não a fechamos bem. Tal, os aromas e
perfumes. Nada destrói tanto o vigor da alma, nada a relaxa tanto,
como o deleitar-se com os bons odores.

Por que? - perguntas - deverá contentar-se com a lama? Não é isso o


que digo: Nem a lama nem os perfumes. Ninguém tem que gastar

19 
 
  

perfumes, pois recebendo-os imediatamente todo o cérebro se relaxa.


Daí se estimula também prazeres e isso é muito perigoso. Portanto,
importa fechar também esta porta, pois a função do olfato é respirar
o ar, não receber os bons perfumes.

Talvez haja quem se ria, por acreditar que nos preocupamos com
minúcias, ao falar da conduta nessas coisas; no entanto, não são
minúcias. Se isso se cumprisse, seria o fundamento, a educação e a
ordem de toda a terra.

Aqui fazem falta leis muito enérgicas, e seja a primeira a de nunca


levar o menino ao teatro, a fim de que não contraia uma pestilência
completa que lhe entrará pelos ouvidos e pelos olhos. E nas praças,
isto é o que a pajem deverá vigiar particularmente ao passar pelas
ruas, e a isto há de dirigir suas recomendações, a fim de que essa
doença jamais contamine a criança.

Para que não seja contaminado ao ser olhado, deve usar de muitos
meios, por exemplo, deve tirar-lhe a maior parte da sua beleza,
cortando seus cabelos para mais gravidade. Se a criança se aborrece
por acreditar que com isso fica feia, aprenda antes de tudo, que esta é
a maior formosura.

Para que o olhar não provoque pecado, bastarão para sua precaução,
aquelas histórias dos filhos de Deus que se voltaram para as filhas
dos homens (Gen. 6, 1-4), a história dos sodomistas (Gen. 19, 1-
29), a lembrança do inferno e tudo o mais.

Aqui é onde o pedagogo e o acompanhante hão de colocar zelo


extremo. Deverão mostra a ele outras belezas: o céu, o sol, as estrelas,
as flores da terra, os belos livros. Estas coisas é que deverá admirar. E
tantas outras coisas que não tragam nenhum prejuízo.

20 
 
  

Esta porta é efetivamente difícil de guardar, pois tem o fogo dentro


de si e uma necessidade, digamos assim, da natureza. Aprenda o
menino as músicas sagradas. Se não for despertado em seu interior,
tampouco quererá admirar por fora. Não se banhe com mulheres,
pois o costume não é boa coisa. Nem vá a reuniões de mulheres.

Ouça continuamente a história de José. Aprenda já a doutrina do


reino dos céus, que tão grande recompensa espera pelos que se
determinam a viver castamente. Prometa-lhe que procurará para ele
uma bela esposa e o farás herdeiro dos seus bens. Não omitas as
ameaças, se notas que segue o caminho contrário, e diga-lhe: Filho,
não encontraremos uma mulher virtuosa, se tu não dás provas de
muita vigilância e de progresso na virtude. E se perseverares,
rapidamente te levarei ao matrimônio.

Sobre tudo isso se o ensinarmos a não dizer palavras torpes, já terá


desde o início um bom fundamento de prudência. Fala com ele
sobre a formosura da alma. Inspira-lhe o desprezo pelas mulheres.
Mostra-lhe como é tão vil ser desprezado pelas escravas e que
ninguém precisa de tanto esforço como o jovem. Porque aquele que
fala se revela, mas o que olha não se descobre, pois esse sentido é
muito rápido e, colocado entre muitos, pode disparar os tiros de seu
olhar a quem desejar. Que nada tenha em comum com a mulher.
Não lhe dê parte no ouro. Não olhe para mulher alguma, com
exceção de sua mãe. Não entre na sua alma nada torpe. Despreze o
prazer e coisas semelhantes.

Há ainda outra porta, que não é certamente como as outras, mas que
se estende por todo o corpo e é a que denominamos tato.
Aparentemente ela está fechada, mas na verdade está aberta e tudo
envia para o interior. Não a deixemos se comunicar com vestidos

21 
 
  

nem com corpos delicados. Façamo-la bem mais dura. Devemos


pensar que estamos formando um atleta. Não use este, portanto,
nem leitos, nem vestimentas brandas. E estas sejam as nossas
recomendações relacionadas a estes assuntos.

Uma vez, pois, bem ajustados os detalhes relacionados às portas,


vamos entrar agora na própria cidade, e ditar e ordenar leis. Em
primeiro lugar, examinemos bem as casas e as dispensas dos
cidadãos, para ver onde vivem e quem são os ardorosos, os
preguiçosos.

Dizem que o lugar e a casa da ira é o peito, e dentro do peito, o


coração; a casa da concupiscência é o fígado, e a da razão, o cérebro.
Pois bem, da ira procede vício e virtude. As virtudes que procedem
da ira são a temperança e a modéstia; a maldade ou vício é a audácia
e a dureza. A virtude que vem da concupiscência é também a
temperança; a maldade é a dissolução. A virtude da razão é a
prudência; o vício é a insensatez ou a loucura. Temos, pois, de
procurar que nesses lugares nasçam essas virtudes e estas gerem
cidadãos semelhantes e não maus. Porque estas paixões são como
mães dos pensamentos.

Vejamos, pois, a tirânica paixão da ira. Na realidade, esta paixão não


deve ser extraída totalmente do jovem, nem se há de consentir que
em todo momento lhe dê rédea solta. Devemos sim educá-los desde
a primeira infância, de forma que quando algum agravo for
cometido contra eles o saibam sofrer valorosamente; mas quando
virem que se comete contra outro, ataquem igualmente com valentia
e defendam o ofendido na medida conveniente.

Como conseguir isso? Exercitando-se os jovens com seus próprios


escravos, sofrendo seu desprezo e não se irritando quando são

22 
 
  

desobedecidos, e examinando cuidadosamente, por outro lado, as


ofensas cometidas contra os outros.

Nessas coisas o pai deverá ser em todo momento o dono e senhor,


duro e intransigente quando se infringem as leis, suave e benigno e
generoso em premiar o filho, quando as cumprem. Assim o próprio
Deus governa o mundo: pelo temor do inferno e pela promessa do
reino dos céus. E assim também nós devemos formar nossos filhos.

Convém que haja em todo lugar muitas pessoas que o exasperem e


assim se exercite e aprenda com os de sua própria casa a dominar a
paixão. Os atletas, antes das competições, se exercitam nos ginásios
com seus familiares ou companheiros para que, triunfando sobre
estes, sejam depois invencíveis para seus verdadeiros rivais. Nesse
sentido, o jovem também deverá exercitar-se em sua própria casa.
Seja muitas vezes o pai ou o irmão quem o ponha particularmente a
prova, e todos tenham grande interesse em sua vitória. Ou ainda
haja quem o defenda ou se lhe oponha numa luta, para que nela se
exercite. Também podem molestá-lo frequentemente os
empregados, tendo razão ou não, e assim aprenda a dominar a
paixão a qualquer momento. Porque se é o pai quem o irrita, nada
há de estranho que ele se contenha, pois se põe na frente o nome de
pai e, por isso, a alma não se revolta. Não. Façam-no os de sua
própria idade, escravos e livres, para que com eles aprenda a
moderação.

Ademais, há outro meio. Que meio é este? Quando se irritar,


recorda-lhe suas próprias paixões, se irrita-se contra o escravo, que
não o prejudicou em nada, pergunta-lhe o que sentiria ele mesmo, se
estivesse no seu lugar. Se notares que maltrata o escravo, pede-lhe

23 
 
  

conta disto; o mesmo se o insulta. Não deve ser pacífico nem


violento, mas homem e moderado. Em muitas ocasiões,
efetivamente, precisará da ajuda da ira, por exemplo, quando ele
mesmo tiver filhos ou venha a ser dono de escravos. A ira é
proveitosa em todos os momentos; apenas é inútil quando
defendemos a nós mesmos. Por isso Paulo nunca lançou mão dela
em seu próprio proveito; mas só em benefício dos ofendidos. E
Moisés, ao ver ofendido um irmão da sua raça, usou da ira, e muito
valentemente, ele, que era o “mais manso dos homens” (Num.
12,3), mas quando ele mesmo foi insultado, já não se defendeu, mas
fugiu (Ex. 2, 11-15). O jovem também deverá ouvir esses relatos.
Quando estávamos descrevendo as portas, eram apropriadas aquelas
histórias mais simples; mas, uma vez tendo entrado na cidade e
procurando formar os cidadãos, é o momento dessas histórias mais
elevadas. Em suma: Seja lei para o jovem que jamais defenda a si
mesmo quando for insultado ou quando sofrer um dano, nem
tampouco consinta jamais que outro sofra nada semelhante.

O próprio pai também melhorará ao ensinar estas coisas e ter que


educar-se a si mesmo. Porque, se não por outro motivo, pelo menos
para não levar a perder o modelo, o pai tem que ser cada vez melhor.

Portanto, aprenda o jovem a ser desprezado e preterido. Não exija


nada dos escravos a pretexto de ser livre; na maior parte das coisas
deverá ele servir-se a si mesmo. Apenas nas coisas que seja impossível
servir-se a si mesmo hão de servir-lhe os criados. Um homem livre
não pode, por exemplo, ser cozinheiro, pois não deixará os trabalhos
próprios de um homem livre para dedicar-se à cozinha. Mas se deve
lavar os pés, que jamais o faça o escravo, mas ele mesmo. Deverás
procurar fazer benigno o homem livre e muito amável para com os
escravos. Tampouco ninguém tenha que lhe dar o manto. No banho
24 
 
  

não deverá esperar ajuda alheia, mas fazer tudo sozinho. Isto faz o
jovem robusto, simples e humano.

Ensina-lhe também o que se refere à natureza; o que é um escravo e


o que é um livre. Dirás a ele:

"Meu filho,

antigamente, entre nossos antepassados, não havia escravos, mas foi


o pecado que introduziu a escravidão. Desde que um filho se
revoltou contra seu pai, por causa do seu pecado, se tornou escravo
dos seus irmãos (Gen. 9, 20-25). Por isso, cuidado, não sejas escravo
dos teus escravos. Porque se te aborreces como eles e ages em tudo
como eles e não levas nenhuma vantagem sobre eles na virtude,
tampouco a levarás quanto à dignidade. Esforça-te, pois, em ser
senhor de ti mesmo e chegar a sê-lo não por esse motivo, mas para
que não aconteça que, por causa de teus costumes, sendo livre,
venhas a ser escravo de teus escravos. Não vês quantos pais
deserdaram seus filhos e colocaram escravos no lugar deles? Por isso,
fica alerta para que não aconteça nada parecido. Eu, certamente, não
o quero nem o desejo; tu és dono de uma e outra coisa".

Assim deverá controlar sua ira, ordenando-lhe que trate os


empregados como irmãos e ensinando-lhe as leis da natureza. Repete
para ele as palavras de Jó:

"Se desprezei", disse, "o juízo do meu servo ou da minha serva ao


disputarem contra mim, então que farei quando o Senhor me
examinar? E se me interrogar, que lhe responderei? Acaso, assim
como fui formado no ventre, não o foram também eles? Num
25 
 
  

mesmo seio fomos formados". E novamente: "Se as minhas


empregadas não falaram muitas vezes: Quem nos dera saciar-nos de
sua carne? Pois eu era bom em extremo". (Jó 31, 31)

Ou achas que Paulo não tem razão em não permitir que suba ao
governo da Igreja aquele que não tiver sabido governar sua casa? (1
Tim. 3, 4-5). Portanto, diz a teu filho: "Se percebes que se perdeu
um teu buril ou que o escravo te estragou uma pena, não te irrites
nem o insultes; perdoa-o e sê compreensivo".

Dessa forma, começando no que é pequeno, saberá também suportar


os prejuízos maiores, por exemplo, se lhe perdem o correia ou a
correntinha de bronze para apoiar a tábua de escrever. E acontece
que os meninos são muito violentos em relação a tais perdas, e antes
se deixariam matar, que deixar impune quem tenha sido mau nessas
coisinhas. Por isso, aqui deve-se suavizar a aspereza da ira. Porque
deves entender bem que quem nestas coisas se acalma e se modera e
se comporta como um homem, facilmente superará qualquer
prejuízo. Portanto, quando o menino tiver sua tábua de escrever feita
de uma madeira bonita, com suas cadeiazinhas de bronze e estiletes
que imitam a prata, e outras ninharias semelhantes, e se o
acompanhante perder ou quebrar alguma destas coisas sem que o
garoto se irrite, dará então uma prova da mais elevada filosofia. E
não se deve comprar outra imediatamente, pois, com isso, se
apagaria a paixão; quando notares que já não a reclama e que não lhe
importa nada, então é o momento adequado para suavizar a aspereza
suportada.

Não estamos falando de insignificâncias. Traçamos a constituição de


toda a terra. Ensina-lhe também, se tiver irmão, a preferi-lo a si

26 
 
  

mesmo; se não tem irmão, ao empregado; eis que isso também é


altíssima filosofia.

Assim deves falar da ira, para gerar pensamentos moderados. Porque


se o menino ou o jovem não devolve, a ninguém, o mal pelo mal, se
sabe sofrer um dano, se não exige que seja servido, se não sente
inveja quando outro é honrado, que lhe restará para irritar-se?

É chegado o momento de atacarmos também a concupiscência.


Aqui, em minha opinião, a temperança é dupla, e duplo é também o
dano: que nem o menino seja para si mesmo objeto de fornicação
nem fornique ele com as mulheres. Dizem os médicos que essa
concupiscência ataca com violência desde os quinze anos. Como
atar, pois esta fera? Que fazer? Que freio colocar-lhe? Eu não
conheço outro a não ser o do inferno.

Em primeiro lugar, deve-se afastar o menino dos espetáculos e


apresentações desonestas; um menino livre nunca deve ir ao teatro. E
se procurar a diversão propiciada pelo teatro, mostremos a ele outros
meninos de sua idade que se abstêm dela, se os conhecemos, e por
emulação procuremos que também ele se abstenha. Não há,
efetivamente, nada que dê tão bom resultado como a emulação,
nada. Convém sempre considerar esta regra, principalmente se o
menino é zeloso. É coisa que tem mais força que o temor, as
promessas e tudo o mais.

Logo devemos procurar outras diversões inocentes. Levemos este


menino aos homens santos, demos a ele um pouco de folga.
Procuremos honrá-lo com todo tipo de prêmios, para que a alma se
resigne em superar a pena que poderá advir por não ir ao teatro. Ao
invés daqueles espetáculos, contemos histórias recreativas, ou o
levemos a contemplar as pastagens ou belos edifícios. Depois disso

27 
 
  

tudo, com palavras iremos também derrubar os teatros e dizer ao


garoto:

"Filho, esses espetáculos são próprios para homens vis, ver mulheres
despidas e ouvir suas indecências. Prometa-me que não ouvirás,
nem dirás nada indecente, e podes ir; porém, não é possível deixar
de ouvir lá, coisas desonestas. O que se faz lá é indigno de teus
olhos".

Devemos beijá-lo enquanto falamos isso, abraçá-lo e estreitá-lo nos


braços, para darmos prova do nosso carinho. Com todos esses meios
iremos acalmá-lo.

Que mais? Como tinha comentado, não deve se aproximar nem


servir ao menino uma garota jovem, mas uma empregada de idade
avançada, uma velha senhora. Fale-se do reino dos céus e daqueles
que em tempos passados brilharam por sua castidade, tanto dentre
os nossos, como dentre os gentios. Com estes exemplos devemos
ocupar continuamente os ouvidos dele. E se tivermos escravos que se
mantêm castos, usaremos os exemplos deles; pois seria o maior
absurdo se o escravo fosse tão moderado e a pessoa livre fosse pior do
que ele.

Ademais há outro remédio. Que remédio? Que o menino aprenda a


jejuar, senão sempre, pelo menos duas vezes por semana, nas quartas
e sextas-feiras. Que vá, também, à igreja. Pegue-o o padre no fim da
tarde, quando acaba o teatro, mostre-lhe as pessoas que saem dali e
ria dos idosos, porque se mostram mais insensatos do que os jovens;
e dos jovens, porque se inflamam com as paixões. E pergunta ao
menino; Na verdade, o que todos eles ganharam? Não outra coisa,
senão desonra, injúria e condenação. Resumindo, em geral não é

28 
 
  

pouca coisa para a guarda da castidade afastar-se de tudo isso,


espetáculos e audições.

Ainda há outro meio: O menino deve aprender a rezar com muito


empenho e devoção. E não deves pensar que, sendo um menino, não
pode compreender estas coisas. Ninguém melhor do que o menino
para compreendê-las, se é vivo e esperto. Assim vemos muitos
exemplos de tempos antigos, como Daniel e José. Não deves alegar
os dezessete anos de José, mas considerar primeiro como conquistou
seu pai, melhor que seus irmãos mais velhos. E Jacó também não era
mais novo? E Jeremias? E Daniel, não tinha doze anos? E Salomão,
não tinha também doze anos quando pronunciou aquela linda
oração? E Samuel, não ensinou seu próprio mestre quando ainda era
uma criança? Portanto, não devemos desanimar. Quem não
compreende estas coisas é porque é menino de alma, não de idade.
Portanto, aprenda a orar com grande devoção e a vigiar naquilo que
for possível. O menino há de levar absolutamente a marca de um
homem santo. Porque aquele que põe empenho em não jurar e não
devolver injúrias, o que não insulta nem aborrece ninguém, o que
jejua e reza, recebe suficiente exortação de tudo isso para a guarda da
castidade.

Se teu filho está destinado para a vida do mundo, apresenta-lhe logo


uma esposa e não espera que se dedique à milícia ou à política.
Ordena, antes de tudo, a sua alma e então poderás preocupar-te com
a glória exterior. Por acaso acreditas ser um bem pequeno para o
matrimônio que se unam virgem com virgem? Não, não é pequeno,
não só para a castidade do jovem, mas para a da mulher também.
Então, não será particularmente puro o amor? E, o que vale mais que
tudo, não será então Deus particularmente propício e cumulará o
matrimônio com suas incontáveis bênçãos, quando os esposos se
29 
 
  

unem como Ele mandou? Isto o faz manter em sua memória o amor;
e se ele contém este carinho, ele se rirá de qualquer outra mulher.

Se elogias para ele a beleza, a modéstia e as outras qualidades da


moça, e em seguida acrescentas: "Se ela souber que vives
negligentemente, não quererá se unir contigo", o jovem terá, daí em
diante, muito cuidado, pois está em jogo o que mais quer. O amor
obrigou aquele santo (cf. Gen. 29, 18 ss) a servir outros sete anos por
sua prometida, depois de ser enganado; na verdade, serviu durante
quatorze anos por ela; pois com mais razão o faremos nós. Podes
dizer para a teu filho:

"Toda a família da tua prometida: seu pai, sua mãe, seus


empregados, vizinhos ou amigos, estão te observando: a ti e a tua
conduta, e todos contarão a ela".

Vincula-o a isso, pois tal vínculo produz a castidade. De modo que,


embora pela tenra idade não possa ter mulher, tenha, desde os
primeiros anos, uma prometida e tenha como questão de honra
aparentar ser um bom homem. Isto é suficiente para afastá-lo de
tudo.

Há outra defesa para a castidade: que o menino veja continuamente


quem preside a Igreja e ouça dele muitos elogios e alegre-se com isso
o pai diante de todos os que ouvirem. Tenham respeito por ele
quando o virem as garotas. E, ademais, o que o pai lhe falar, seu
temor e suas promessas e junto a tudo isso a recompensa que Deus
lhe prepara e o pensamento dos muitos bens dos quais desfrutarão os
castos; tudo isso lhe proporcionará grande segurança.

Menciona também as honras na milícia e na política. Deve-se falar


também frequentemente de modo depreciativo sobre a dissolução e,

30 
 
  

pelo contrário, elogiar muito a temperança. Tudo isto é suficiente


para conter a alma do menino, e assim se desenvolverá nela
pensamentos castos.

Resta outro ponto: Vamos agora ao mais importante de tudo, ao que


domina tudo. Qual é este? A prudência. Aqui é necessário um
grande esforço, para tornar o menino inteligente e discreto e extirpar
dele toda estupidez. Esta é seguramente a grande e maravilhosa obra
da filosofia: Conhecer as coisas de Deus, tudo o que nos espera no
outro mundo, o referente ao inferno, o relativo ao reino dos céus.

"O princípio da sabedoria, o temor do Senhor". (Prov. 1, 7)

Esta é, portanto, a sabedoria que devemos incutir e estimular que se


exercite, a fim de conhecer as coisas humanas: a riqueza, a glória, o
poder, para desprezá-las e juntar-se ao que é verdadeiramente
grande. Recordemos as palavras de exortação:

"Filho, teme somente a Deus, e além Dele não temas nada".

Assim será prudente e agradável, pois nada faz o homem tão


insensato como essas paixões. Para alcançar a sabedoria basta o
temor de Deus e ter em relação às coisas humanas o juízo que se
deve ter. O auge da sabedoria é não se deslumbrar com os amores.
Aprenda o menino a considerar como nada as riquezas, nada a glória
humana, nada o poder, nada a morte, nada esta vida. Assim será
prudente. Se com vida e exercícios semelhantes o levarmos ao leito
nupcial, considera o presente que damos à noiva.

Quanto à boda, não deve ser celebrada com flautas, nem com
cítaras, nem com bailes. É grande absurdo envergonhar com tais
coisas um esposo como esse. Ali chamemos a Cristo, pois o esposo já
é digno Dele. Convidemos seus discípulos (Jo. 2, 2).

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Assim educado o menino, sobre ele recairão todos os bens e logo ele
também aprenderá a educar dessa forma seus filhos, e estes aos seus,
e assim se formará uma corrente de ouro.

Procuremos que se dedique também à política, conforme suas forças


e sempre que não haja nisso pecado. Se seguir a milícia, aprenda a
fugir de qualquer ganância torpe. O mesmo se for advogado, ou em
qualquer outra profissão.

Também a mãe deve aprender a educar desta forma a sua filha,


afastando-a do luxo, dos adornos e tudo o mais que seja
característico de mulheres perdidas. Conforme esta lei, deverá fazer
tudo, e afasta-a da gula e da embriaguez, à jovem assim como ao
jovem. Isto contribui muito para a castidade. Ao jovem, de fato,
domina ou molesta a concupiscência e à jovem , o amor aos adornos
e o chamar a atenção. Também isso devemos, pois, reprimir e, dessa
forma agradaremos a Deus, criando para Ele tais atletas, e
poderemos alcançar nós e nossos filhos, os bens prometidos aos que
o amam, pela graça e amor de nosso Senhor Jesus Cristo, com o qual
seja ao Pai, junto com o Espírito Santo, glória, poder e honra, agora
e sempre e por todos os séculos dos séculos. Amém.

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