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A descoberta de um novo elemento químico poderá

revolucionar os transportes aéreos. Num lugar arqueológico o


perigo espreita uma vez mais a linda repórter e uma organização
terrorista está de olho na nova descoberta. Segunda parte da
aventura que leva nossa linda jornalista e espiã nas terras
misteriosas da Ásia secular.

© 1960/03 – J F KRAKBERB
José Alberto Gueiros
Digitalização: JVS 390227
Publicado no Brasil pela Editora Monterrey
2ª PARTE
UM
Palestra Com Um Defunto

Era impossível subir à superfície das águas, carregando


um escafandro de 60 quilos! Por isso a primeira providencia
de Brigitte foi pescar a ponta cortada do tubo de oxigênio e
impedir a entrada de água. O oxigênio, ainda represado no
pedaço de tubo e no interior do escafandro, talvez lhe desse
mais dez ou quinze minutos de vida, se ela respirasse com
parcimônia; porém, depois disso, o anidrido carbônico
acabaria por envenená-la!
Levantou-se e largou a pedra que retirara do monte de
cascalho do fundo da fossa de Khi-Khent; para sua surpresa,
o pedaço de quartzo e argila saltou de sua mão enluvada e,
em vez de descer para o fundo do lago, subiu
vertiginosamente pela água turva, turbilhonando entre as
areias em suspenso. A jovem repórter sentiu nascer uma
esperança no seu coração. Talvez pudesse utilizar a energia
do Átomo Z que transmitia tal imponderabilidade à matéria
para viajar através do espaço líquido que a separava da
embarcação onde estavam os seus amigos. Ela não sabia,
então, que a barca já se encontrava em poder dos agentes da
União Soviética.
O fundo negro da fossa ficava perto de cinqüenta ou
sessenta metros abaixo do nível do lago e era constituído
por grandes rochas lodosas, pedregulhos cinzentos e
cascalho movediço, materiais provavelmente trazidos, para
o Tonlé-Sap, pelos aluviões do Mekong. Brigitte escolheu
uma enorme rocha porosa que trepidava, quase
imperceptivelmente, sob o impacto das fissões nucleares do
Átomo Z, deitou-se de bruços em cima dela e começou a
executar um lento e paciente trabalho de deslocamento.
Seus dedos ágeis e fortes endurecidos pelos treinos de
caratê e protegidos pelas luvas de borracha foram
escavando, progressivamente, os alicerces do rochedo e
afastando o cascalho que o cimentava às rochas inferiores.
Pouco a pouco, as pedrinhas imponderáveis saltaram para
todos os lados, nadando como peixes assustados, e as
oscilações do rochedo aumentaram auspiciosamente.
Passaram-se cinco minutos... dez minutos... quinze
minutos... O oxigênio do interior do escafandro já estava
esgotado e o gás carbônico de sua própria respiração
começava a intoxicar a valente jornalista. Finalmente,
quando já estava à beira de uma síncope, percebeu que o
rochedo se movia, cabriolando como um cavalo selvagem.
Vagarosamente, o rochedo se destacou dos outros, rodopiou
e começou a subir, aos bamboleios, por entre as águas
fervilhantes. Foi subindo, subindo, oscilando no liquido
grosso e arenoso, e acabou por aflorar à superfície, como
um estranho submarino que emergisse na vertical. Em cima
de sua original bóia de salvamento, Brigitte destacou
rapidamente o tubo do escafandro e expulsou o anidrido
carbônico, aspirando, depois, o ar puro e revigorante que
bafejava a superfície do lago.
A barcaça continuava parada, a poucos metros de
distância, mas não se via ninguém debruçado na amurada.
Brigitte sacudiu os braços, angustiada, sem poder controlar
os movimentos do rochedo, que tendia a girar sobre si
mesmo e erguer uma proa sobre as águas fervilhantes.
Ninguém a via. Naquele momento, cinco dos oito
tripulantes da barcaça estavam muito atarefados, socorrendo
os outros três, que tinham sido feridos pelas balas dos
russos. Jane Finda, o professor White e os agentes do
Kremlin já tinham ido embora na lancha cinzenta deixando
a morte atrás de si. Os dois soldados do Exército Real do
Camboja estavam mortos e o tenente Hang Malup fora
ferido gravemente. Daí a pouco, enquanto a doutora Da
Verne e seus guarda-costas procuravam estancar o sangue
do peito do jovem oficial cambojano, Hugh Chambang
acendeu um toco de cigarro e foi até à amurada, para cuspir
no lago. No mesmo momento, seus olhos amendoados
deram com aquela estranha bóia de pedra, com um
escafandro deitado em cima.
— Doutora Da Verne! — gritou. — Venha ver uma
coisa! Ou eu estou sonhando, ou a moça americana arranjou
condução!
Ao ver o espetáculo, a doutora Da Verne ordenou que
levassem a barcaça para lá. Quando a embarcação encostou
ao rochedo flutuante, os dois detetives de Deuxième Bureau
desceram pelos cabos de boreste e pescaram a escafandrista.
Então, ocorreu outro fenômeno, que pôs em pé os cabelos
da arqueóloga francesa: a enorme pedra, livre do peso do
escafandro, deu um pinote e subiu vertiginosamente pelo
espaço, sibilando como um bólide. Saltaram borrifos de
água para todos os lados; a própria barcaça dançou sobre o
lago, antes liso e sereno.
— Milagre! — exclamou Hugh Chambang. — A pedra
voou!
Era verdade. A pedra tinha voado, através da atmosfera
terrestre, desfazendo-se progressivamente na sua longa
viagem para o Sol. Passado o primeiro momento de estupor,
a doutora Da Verne deu novas ordens. Brigitte foi recolhida
e deitada no convés da barcaça, onde lhe tiraram o capacete
e lhe despiram o macacão. A intrépida repórter tinha os
belos olhos azuis candidamente fechados e estava pálida e
ofegante. Mas vivia. Vivia tanto que ainda teve presença de
espírito suficiente para dar um pontapé na doutora Da
Verne, quando a mulher a apalpou no lugar errado. Logo,
pediu desculpas, afastou a mão da arqueóloga francesa e
sentou-se no convés, respirando a longos haustos, para
desintoxicar o organismo.
— Que aconteceu? — perguntou, depois, olhando ao
redor. — Onde está o patife do professor White? Vocês
viram como ele tentou matar-me?
A doutora Da Verne narrou-lhe os trágicos
acontecimentos de bordo, desde a chegada da lancha
cinzenta até a fuga dos três agentes soviéticos, levando o
professor White e a pedra encontrada por ele.
— Eles inutilizaram o aparelho que insuflava oxigênio
nos escafandros — concluiu a arqueóloga — e foram
embora, certos de que você tinha morrido afogada. O
professor White revelou-se um bandido ma chàrie, e aquela
jovem morena não me parece melhor do que ele! Ela
também pertencia a sua expedição, não é verdade?
— Pertencia, sim. Essa moça era muito parecida comigo,
não era? Recebi um telegrama a seu respeito.
— Era ligeiramente parecida com você — obtemperou a
francesa. — Suponho que seja eurasiana. Seus olhos azuis
eram um pouquinho ovais e tinha a pele cor de marfim
velho. E também tinha uma pistola na mão!
— Seu nome de guerra é Jane Finda — disse Brigitte,
contrariada. — Eu devia ter desconfiado dela também! Essa
falsa paleontóloga e o professor White se entendem, pois
ambos pertencem à rede de espionagem do camarada
Antoniev! Para onde teriam ido, levando a amostra do
Átomo Z? Não podemos permitir que aquela pedra seja
levada para Moscou, em detrimento dos Estados Unidos e
da França! Os russos já têm as equações algébricas do
professor Khatamansky e, agora, de posse de uma amostra
do Átomo Z, fabricarão facilmente as Bombas e as
Astronaves Z! Não posso permitir que isso aconteça!
O tenente Hang gemeu, chamando a atenção para o seu
estado precário. Brigitte acorreu e constatou a gravidade do
ferimento que lhe manchava o peito de sangue vivo.
— Tragam panos limpos e água quente! Depressa! Vou
tentar estancar o sangue, embora não tenha recursos para
extrair a bala! Este pobre rapaz precisa ser levado a um
hospital! Depressa!
— Há médicos budistas no pagode de Khi-Khent —
lembrou Hugh Chambang. — Mas os monges só permitem
a entrada de mulheres.
Brigitte acabou de pensar o ferimento do tenente
estancando o sangue, fez uma compressa de emergência e
decidiu que o jovem oficial aguardaria, a bordo, a chegada
de socorros médicos, enquanto ela e dois voluntários
tentariam alcançar o Vale Proibido.
— É possível que encontremos soldados na estrada de
Angkor-Vat. Eles estão patrulhando toda a região de Khí-
Khent. Vamos!
Mal acabara de falar e estourou um tiroteio, ao longe,
vindo do lado do vale. As detonações acabaram tão
depressa como tinham começado.
— A lancha cinzenta dos russos foi para aquele lado —
observou Jacques Pèlerin. — Eu vi! Eles saltaram, na
margem norte do lago, e internaram-se na selva! Mas, como
a região está sob controle das forças do exército, é possível
que não alcancem facilmente a estrada de Siem Reap. Esse
tiroteio é muito sugestivo.
Os dois voluntários, que se prontificaram a acompanhar
Brigitte, foram Hugh Chambang e Jean Pouchau. O guia
cambojano dirigiu a barcaça para a margem norte do lago e
só parou os motores quando a proa se enterrou no lodo.
Com surpresa, viram uma lancha cinzenta, vazia, boiando
no charco, presa a uma estaca enterrada na lama. A doutora
Da Verne informou que aquela era a lancha dos soviéticos.
— Ótimo! — exclamou Brigitte. — Eles devem ter
procurado refúgio no convento budista! A dúvida está em
saber se os monges os deixaram entrar... Algum de vocês
tem armas? — continuou ela, despindo os culotes e tirando
a pistolinha “Baby” da coxa. — Não podemos ir
descobertos!
Apenas Hugh Charnbang se manifestou, indo buscar a
espingarda, que escondera sob um monte de cordas. Brigitte
olhou interrogativamente para Jean Poucheau; o cabeludo
sorriu, encabulado, e foi apanhar uma alavanca de ferro,
dizendo que também estava pronto para o que desse e
viesse. Os três aventureiros despediram-se da doutora Da
Verne e saltaram para dentro da água, erguendo as armas
acima da cabeça. Em seguida, com água pelo peito,
caminharam lentamente até um lugar seco. Caminharam
apenas alguns metros e tiveram que parar.
— Alto! — gritou uma voz ciciosa. — Quem são vocês?
Por trás de algumas árvores viam-se canos de
submetralhadoras Panhard. Felizmente, não era o coronel
Io; eram tropas do Exército Real. Um tenente magrinho, de
dentes de coelho, nasceu da folhagem e estendeu a mão,
pedindo documentos. Brigitte e seus companheiros
identificaram-se e contaram sua odisséia, acabando por
pedir ao tenente que acorresse, com um médico, à barcaça,
onde o seu colega Hang Malup agonizava. O magro oficial
estava impressionado.
— Foram os russos, dizem vocês? Mas, que russos?
Onde estão os russos? Será que esses desconhecidos, que
usam quimonos azuis, são elementos soviéticos?
— O senhor os viu, tenente?
— Agora há pouco, senhorita. Dois homens e duas
mulheres. Não atenderam à ordem de “alto” e puxaram das
armas; então, nós os metralhamos, simplesmente. Um
homem e as duas mulheres escaparam para o mato, mas o
outro homem morreu no local. Será um russo? Por que
estão aqui os russos? Ele não tinha papéis de identidade,
mas sua cara mostrava que não era cambojano. Pensei que
fosse contrabandista.
— Onde está o cadáver? — inquiriu Jean Poucheau.
— Foi levado para Siem Reap, monsieur. Os dois
homens tinham o mesmo corpo e as mulheres eram
magrinhas. Os outros três fugiram, na direção do pagode,
mas o homem não poderá entrar. Além disso, o homem foi
ferido. Há manchas de sangue nas folhas secas, formando
uma trilha que vai até o retiro espiritual dos budistas,
— Obrigada, tenente — disse Brigitte. — Acuda o seu
colega, na barcaça. Eu tenho que seguir a pista dos russos,
antes que eles levem o Átomo Z para Moscou! Não quero
dar essa “colher de chá” ao camarada Antoniev!
— Faz bem, senhorita. Esses “comunas”, da direita ou
da esquerda, não devem levar nada para fora do Camboja!
Dito isto, o jovem tenente, deu meia volta, reuniu os
soldados de seu pelotão e partiu, em marcha acelerada, para
a margem do lago. Brigitte e seus companheiros seguiram
em frente, pelo meio do mato, e não tardaram a encontrar
uma clareira, onde se viam as manchas de sangue referidas
pelo tenente. Fora ali que se dera o tiroteio. Uma trilha de
pingos de sangue marcava o percurso seguido pelo ferido.
Os três caminhantes acompanharam a pista e, depois de
mais alguns minutos de marcha, encontraram o homem que
procuravam.
— Não atirem — gemeu, sem erguer a cabeça. — Estou
liquidado! Não tenho forças nem para pegar na arma! Eu
me entrego ao Príncipe Sihanouk!
Brigitte sentou-se ao lado dele.
— Sou eu, Kachorrowosky! Onde está o professor
White?
O russo arregalou os olhos.
— Você! Mas... você não morreu, no fundo do lago? O
camarada White disse que você estava morta!
— Ele se enganou, porque é muito míope. Onde está
ele? Onde está aquela pedra cinzenta, que ele retirou do
abismo?
— Não posso falar! Estou morto! E o camarada White
tem uma missão a cumprir! Sou um oficial soviético e sob
hipótese alguma...
— Onde é que você foi ferido? — atalhou Brigitte, como
se mudasse de conversa.
— No ombro, no peito e na coxa direita. Estou morto,
camaradas!
— Não gaste o fôlego. Onde é que lhe dói mais?
— Aqui em cima, no peito.
— Sangue à vontade! É aqui, à esquerda, que lhe dói
mais?
— Não. À direita. Perto do pescoço.
Brigitte acenou compreensivamente e deu um peteleco
no peito do homem, fazendo-o gritar de dor e de surpresa.
— Então? — volveu a bela repórter, sorrindo
ferozmente. — Você vai falar ou não? Responda! Para onde
foi o professor White?
— Para o pagode de Khi-Khent — gemeu o infeliz. —
Por favor, não me façam sofrer! Estou morto, camaradas!
Digo-lhes que estou morto!
— Morto, uma conversa! Os mortos não gritam!
E deu-lhe um peteleco no peito, limpando o sangue dos
dedos. Sua voz tornou-se fria e impessoal:
— Quem são as duas mulheres que escaparam? Só havia
uma mulher, que era Jane Finda. E a outra?
— A outra mulher — sussurrou o russo, quase
desfalecido — é o camarada White, disfarçado. Ele gosta
muito de se disfarçar. A camarada Jane Finda tinha
vestidos, cosméticos e uma peruca ruiva, na lancha. Ele se
vestiu de mulher.
— E aprovou? — perguntou Hugh Chanibang,
interessado.
— Aprovou plenamente — suspirou o moribundo, com
voz cada vez mais fraca. — O camarada White é bonito e
delicado. Até Gregorin Moskanova ficou de olho nele. Mas
Gregorin, agora, está morto! E eu... eu vou pelo mesmo
caminho!
— Viva Stalin! — ironizou Brigitte.
— Abaixo! — choramingou o morto-vivo. — Viva
Khruchev!
E acabou de entregar a alma ao Criador. Brigitte despiu
as calças, colou a pistolinha “Baby” à coxa e voltou a
prender o cinturão dos culotes. Seus dois companheiros
assistiram à cena emocionados.
— Ficarei com a automática do nosso amigo — disse a
moreninha, enfiando a Stechkin no cós das calças. — Vocês
voltam daqui.
— Como! — espantou-se Hugh Chambang. — Você
quer se arriscar sozinha? Não, senhora. Eu irei também,
para ver o professor White vestido de mulher. Quero ter
uma conversinha com ele!
— Só eu poderei entrar no pagode — obtemperou
Brigitte. — Voltem para a barcaça e regressem à Reserva.
Você, Hugh, deve apanhar a sua lancha e vir me buscar, na
margem noroeste do lago, às oito horas da noite. Certo? Até
lá, terei tempo de recuperar o Átomo Z das mãos desse
traiçoeiro professor Patrick White!
— Traiçoeiro — acrescentou Jean Poucheau — e
“bicha”! “Bicha” e traidor!
— Certo — disse o guia cambojano, respondendo a
Brigitte. — Às oito horas, na margem do Tonlé-Sap. Pode
contar comigo, senhorita!
Jean Poucheau acenou, despediu-se da repórter e
acompanhou o guia, de volta ao lago. Brigitte também
partiu, apressadamente, mas na direção do pagode de Khi-
Khent. E o cadáver do agente secreto do Kremlin ficou
sozinho, à sombra da árvore de teca, esperando pelas
formigas.
Um muro de pedra britada surgiu, por entre as altas
árvores da selva. Brigitte descalçou as botas, para lhes tirar
a areia, e voltou a calçá-las. Mas continuou a caminhada,
rente à muralha, até atingir o portão de ferro, guardado
pelas duas sentinelas com hábitos monacais e fuzis Pan
hczrd.
— Quem vem lá? — A interpelação era em cambojano.
A repórter lembrou-se das palavras da doutora Da
Verne. E respondeu, em francês:
— Gente de paz! Sou uma pobre mulher norte-
americana, perseguida por um grupo de facínoras!
— Nesta floresta — protestou um dos guardas — não há
facínoras!
— Refiro-me aos comunistas da linha de Moscou!
Deixe-me entrar, pelo amor de Buda! Buda está olhando!
As sentinelas examinaram a garota, da cabeça aos pés,
trocaram um sinal de assentimento e abriram o portão.
Respirava-se, ali, um ar leve e perfumado; o ambiente era
tranqüilo, pacífico, silencioso, acolhedor, próprio para o
repouso e a meditação metafísica. De vez em quando, um
ou outro monge careca, metido num hábito amarelo saía do
mosteiro e dava uma volta pelo terraço, alheio a tudo,
imerso em pensamentos.
“É quase meio-dia — pensou Brigitte. — Talvez estejam
preocupados com a hora do almoço. Será que eles comem à
maneira macrobiótica?”
Nisso, teve um sobressalto. Havia um monge, alto e
ossudo, parado na sua frente! Ela não o sentira aproximar-se
e teve a desagradável impressão de que ele tinha brotado da
terra.
— Bom-dia, irmão — balbuciou a garota, perturbada,
falando em francês. — Procuro a paz entre os santos
homens de Khi-Khent, a quem Buda ensinou a humildade.
— Uma neófita? — inquiriu o monge, com voz suave,
falando também em francês.
— Não, ainda não aderi. Mas tenho uma bruta
curiosidade!
— Católica ou protestante? — insistiu o budista,
docemente. — Não tenha receio de dizer a verdade, minha
filha. Somos muito indulgentes. A prova é que você tem
uma pistola na cintura e os guardas não a tomaram... Você
não precisará usar essas coisas, aqui dentro.
Envergonhada, Brigitte meteu a Stechkin no bolso das
calças. Depois:
— Sou católica, irmão. Americana, filha de uma beata
francesa.
O monge suspirou, inclinando a cabeça pelada.
— A curiosidade é um pecado, minha filha! Mas deve
ser um costume americano... Agora há pouco, entraram no
pagode outras duas mulheres americanas, que também me
pareceram com uma bruta curiosidade... Você é mulher, não
é? Nunca deve mentir. A verdade é mais cômoda.
— Claro que sou mulher, irmão! Quer que lhe mostre?
— Não — apressou-se a dizer o monge. — Não precisa
me mostrar os papéis de identidade. Eu creio. Você é
mulher e, por isso, também terá entrada franca no pagode.
Nosso Bikchou sempre recebe prazerosamente as mulheres
perdidas, pois o pagode de Khi-Khent, como seu nome
indica, foi construído para abrigar as frágeis representantes
do desprezado sexo feminino. O monge Khi-Khent, que
viveu há seiscentos anos e professava a doutrina Hynaiána,
como você deve saber, não passava de uma mulher
disfarçada.
— Posso entrar no pagode? — volveu Brigitte,
— Estou justamente à procura de duas amigas que se
perderam, durante a nossa tournée. Chamam-se Jane Finda
e Patrícia White.
— E você — sorriu o monge — como se chama?
— Brigitte Montfort. Sou correspondente do “Nova
Manhã”, de Nova Iorque. Só lamento não ter trazido a
minha câmara fotográfica, para fixar flagrantes da vida
monacal.
— Não permitimos retratos no pagode, minha filha. Já
temos todos os retratos tirados, coloridos, e custam apenas
cinqüenta rkels cada um.
O monge sorriu docemente, dando a entender que não
eram ambiciosos. E continuou:
— Mas você está enganada, a respeito de suas amigas.
Falaremos em negócios depois. As duas mulheres que aqui
entraram chamam-se June Brown e Pamona Smith. Não
devem ser aquelas que você procura.
— Onde posso encontrá-las, irmão? De qualquer
maneira, gostaria de falar com elas. Pertencemos à mesma
caravana turística.
— Venha, minha filha. Eu a levarei à Sala do Primeiro
Bom Caminho, que é a Ciência. Suas compatriotas estão,
neste momento, lendo as inscrições da placa de metal
encontrada nas margens do lago. Essa placa parece ouro,
mas não vale um tiro de pistola... Só as mulheres, além dos
Bikchous qualificados, têm permissão para ver a relíquia.
Venha, por favor. Suas compatriotas terão uma agradável
surpresa em encontrá-la aqui.
Brigitte também sorriu. Ferozmente.
— Também acho, irmão. Elas terão uma surpresa muito
agradável!
E sua mão direita entrou no bolso e pousou,
displicentemente, sobre a coronha da pistola russa.

DOIS
Uma Garota Nua Espera Pela Morte

A Sala do Primeiro Bom Caminho era uma ampla


dependência de pedra, no interior do mosteiro. Quando
entrou no aposento, Brigitte viu uma senhora magra, de
longos cabelos ruivos, debruçada sobre a uma de vidro. Era
o professor Patrick White, fantasiado de mulher. Sua
companheira, Jane Finda, não estava ali.
— Alô, Pamona! — saudou Brigitte, sem tirar a mão do
bolso onde guardava a automática. — Que surpresa,
querida!
O professor White deu um pulo e encostou-se à vitrina,
tremendo como um bambu verde.
— Você! De onde vem você?
— Do inferno! Vim buscá-lo para que o senhor fique no
meu lugar!
O magro sacerdote budista, que acompanhava Brigitte,
olhava para um e outro sem entender. Eles falavam em
inglês. Mas o timbre de voz da estranha mulher ruiva
começava a impressioná-lo.
— Umbel kulang? — perguntou. — Umbel makan?
Nenhum dos dois lhe respondeu. Outros monges
apareceram nos quatro cantos do salão, e aproximaram-se,
indignados com o barulho.
— Acalme-se — volveu o professor White, baixando a
voz. — Não nos comprometa, pois isso não dará vantagem
a ninguém! Estes budistas não sabem de nada. Quanto quer
você para me deixar em paz? Estou autorizado a ir até os
dez mil rublos, ou cinco mil dólares!
— É o senhor que não me deixa em paz.
— Aceita a gratificação? Os russos, depois, podem lhe
arranjar mais.
— Onde encontrou tanto dinheiro? Seu salário, nos
laboratórios metalúrgicos da White Way, não vai além de
mil dólares.
— Você já tem idade bastante para deixar de ser idiota
— tornou o cientista atômico. — Eu sou o agente Joe.
Entende agora?
Brigitte não esperava por essa. Então, o tímido professor
White, secretário do professor Khatamansky, era o
americano barbudo, de óculos escuros, que estabelecia
contato com os espiões russos em Nova Iorque. O inspetor
Pitzer iria sofrer um colapso, quando soubesse disso!
— Como foi que o senhor entrou para a família do
camarada Antoniev? — inquiriu a repórter, encarando o
travesti.
— Não interessa! Basta que você saiba que pertenço à
rede! Dez mil rublos é o meu preço; foi o prêmio a que fiz
jus, por ter ajudado a liquidar o professor Khatamansky!
Posso transferir essa quantia para você, se me deixar sair
daqui com a amostra do Átomo Z.
— O senhor quase me matou, no fundo do lago!
— Desculpe. Precisava livrar-me de você. Mas agora,
estou lhe oferecendo cinco mil dólares! Você não trairá seu
país; basta que me deixe sair daqui!
— Para Moscou?
— Sim. O camarada Antoniev está à minha espera, em
Moscou. Perdemos dois agentes, mas eu e Jane temos
probabilidades de alcançar Phnom Penh, pela estrada de
rodagem. Quanto ganha você para trabalhar para o inspetor
Pitzer? Quinhentos ou seiscentos dólares por mês, suponho.
Pois eu lhe pagarei cinco mil, agora mesmo!
Brigitte parecia divertida. O homem esta a apavorado.
— Em cheque?
— Sim. Contra o Banco Nacional da Suíça. Você poderá
descontá-lo em qualquer. capital da Indochina. Aceita?
A morena considerou-o longamente.
— Sabe que o senhor fica muito bem, de vestido curto e
saltos altos?
O professor White enrubesceu. Depois, sorriu com
acanhamento.
— Sempre tive jeito para a coisa... No carnaval, gostava
muito de me vestir de mulher e percorrer os bares dos
marinheiros.
— Foi assim, andando pelos bares, que entrou para a
rede?
— Foi. Conheci um oficial soviético, num botequim do
porto de Nova Iorque, e ele gostou de mim. Ficamos
grandes amigos e, nas noites em que nos encontrávamos,
trocávamos confidências. Ele era agente do camarada
Antoniev. Uma noite, no hotel, ele me fez uma proposta
diferente. Sugeriu que eu lhe entregasse os estudos teóricos
do professor Khatamansky. Mas meu mestre nunca me
fornecia todos os detalhes de suas experiências em torno do
Átomo Z. Tivemos que matá-lo, para lhe roubar a pasta. Eu
usava barbas e óculos escuros e adotei o nome de Joe. A
morte do professor Khatamansky não estava nos nossos
planos, mas não nos atrapalhou. Eu sabia que viria ao
Camboja em seu lugar. Qual é a sua resposta, Brigitte?
Aceita o dinheiro?
— Por que quer abrir mão de tanta “gaita”, professor?
— Não sou traidor por dinheiro, mas por ideologia
política! Meu amigo, que é major da Armada Soviética,
convenceu-me a entrar para o partido. Depois de um exame
de consciência, achei que devia mandar para Moscou es
planos do Átomo Z, para que a União Soviética ficasse cm
igualdade de condições com os Estados Unidos, na corrida
atômica. É do equilíbrio das forças que se obtém a paz.
— É mais fácil obter-se a guerra — replicou Brigitte,
asperamente. — Quando um não quer, dois não brigam.
Além disso, se o Átomo Z for para a Rússia, a América
ficará sem ele! Para que houvesse equilíbrio de forças, a
América devia ficar com os planos teóricos ou, então, com a
amostra do Átomo Z! Uma coisa ou outra! E o senhor quer
levar tudo para Moscou!
— Problema da América — retrucou o perito atômico,
fazendo uma careta. — Não me cabe criticar as decisões do
Kremlin e do camarada Antoniev! Um espião nunca faz
perguntas aos seus chefes. Aceita o dinheiro?
— Não — respondeu Brigitte, estendendo a mão. — Dê-
me a pedra que o senhor retirou do fundo do lago! Posso
jurar que ela está escondida no peito de seu vestido; o
senhor tem um seio maior do que o outro!
O professor soltou um rugido e recuou, batendo com as
costas na caixa de vidro. Brigitte tirou a mão do bolso
armada com a Stechkin mas não teve tempo para usá-la.
Alguma coisa pesada bateu na sua cabeça, fazendo-a perder
os sentidos. No primeiro momento, supôs que tivesse sido
agredida pelo monge budista que lhe servia de cicerone,
mas, quando voltou a si, viu o magro sacerdote, ansioso e
gentil, debruçado sobre ela.
— Está melhor, minha filha? — perguntou o budista,
com voz doce.
— Que aconteceu? — replicou a morena, sentando-se
nas lajes. — O teto desabou sobre a minha cabeça?
— Não, não foi o teto. Que Buda nos defenda de tal
coisa! Aquela outra sua amiga, a mestiça dos olhos verdes,
veio por trás e bateu-lhe com o cabo de uma arma! Não
pudemos fazer nada. pois nossa religião condena a
violência. Eles acabam de fugir do pagode, depois de
roubarem um dos nossos jipes.
A linda repórter olhou diretamente para a caixa de vidro.
A placa de ouro não fora roubada.
— Já se passou muito tempo, irmão?
— Não — respondeu o budista, animando-se.
— Fugiram agora mesmo! E foram perseguidos pela
mão invisível de Buddha-Veda!
— Depressa! Mostre-me onde estava o jipe que eles
roubaram! Tenho que dar uma ajudazinha à mão de
Buddha-Veda!
O monge suspirou e ajudou-a a levantar-se. A
automática Stechkin desaparecera, mas a pistolinha Baby
ainda estava colada à sua coxa e, diante do espanto dos
neófitos que assistiam à cena, retirou a pequena arma do
esparadrapo cor-de-rosa.
— Vamos. irmãos! Depressa!
Pelo caminho, foi abotoando outra vez as calças. Saíram
por uma porta dos fundos da Sala do Primeiro Bom
Caminho e atravessaram um estreito pátio ladrilhado. Do
outro lado do pátio, havia uma espécie de oficina mecânica,
onde se movimentavam dois budistas com os hábitos sujos
de óleo. Tal como Brigitte imaginara, ainda tinha ficado um
jipe na garagem. Inesperadamente a audaciosa jornalista
saltou para o assento do carro e acionou a chave incrustada
no painel.
— Obrigado, amigos! Desejem-me bom êxito! Buda não
pode torcer pelos comunistas!
— Bom êxito! — exclamou o Bikchou alto e magro. —
Bom êxito para a maluquinha americana!
— Abram o portão! — gritou ela em francês. — Tenho
ordens do Bikchou para perseguir os ladrões de automóveis!
Sou um dos dedos da mão de Buda!
Os guardas hesitaram, mas acabaram obedecendo,
escancarando o portão. Brigitte voltou a pisar no acelerador
e atravessou-o, como uma bala.
— Na direção do lago! — gritou uma das sentinelas. —
Eles foram para a estrada de Rovieng!
O jipe saltava e resvalava, por cima da lama, mas não
perdia a velocidade inicial. Brigitte desceu o atalho que
levava à beira do lago e não tardou a ver a lancha cinzenta,
amarrada na estaca. Os fugitivos não tinham escapado na
lancha! Saltou do jipe, entrou no charco e foi dar uma
espiada no barco. Dentro dele, viu o vestido e a cabeleira
postiça que o professor White tinha usado; isso queria dizer
que ele passara por ali, e voltara a se vestir como um
homem de respeito. Pouco adiante, o caminho se bifurcava;
uma estrada continuava para Kompong Kleang e, outra,
descia pela margem leste do Tonlé-Sap, na direção de
Kompong Thom. Brigitte examinou os sinais de pneus e
decidiu seguir pela segunda via. À sua direita, as águas do
lago cintilavam ao sol.
O jipe corria pela estrada, levantando um mundo de
poeira. Agora, de um e outro lado, só se viam as gigantescas
árvores da selva tropical, O silêncio era absoluto, tão
asfixiante como o calor da selva. Duas horas depois, a
paisagem continuava a mesma; porém, de súbito, alguma
coisa diferente surgiu à direita, entre a estrada e a margem,
do lago, manchando de cinzento a terra negra. Brigitte freou
o jipe e foi olhar de perto. Pensava que fosse uma casa,
onde o professor White e Jane Finda pudessem estar
recolhidos, mas não era; tratava-se, apenas, de outra ruína
do tempo dos Khmer. Embora não fosse arqueóloga, a
repórter do “Nova Manhã” percebeu que se encontrava
diante de uma porta histórica, arquitetura do Século III com
o limiar, as ombreiras e o dintel feitos de quatro pedras
leves e porosas. Do outro lado da porta não havia nada, a
não ser a terra úmida e pegajosa que circundava o Tonlé-
Sap. Aparentemente, a porta fora submersa, durante o
cataclismo de 1230, e voltara à superfície, com o recuo das
águas na estação seca. Brigitte ainda estava contemplando o
monumento quando uma voz aguda a surpreendeu pelas
costas:
— Mãos ao alto! Se fizer um gesto, eu atiro!
Reconheceu a voz do professor White, falando em
inglês. E respondeu, no mesmo idioma, por cima do ombro:
— Certo, professor! Não gaste suas balas. Eu só queria
encontrá-lo. Agora, já o encontrei. É muito triste o
Camboja, sem uma agradável companhia...
Voltou-se lentamente, as mãos pousadas nos ombros, e
viu o perito atômico de pé, ao lado da falsa paleontóloga
Jane Finda, O professor White empunhava a pesada
automática Stechkin e Jane Finda tinha uma pequena
Markarov, de 9 mm, na mãozinha branca,
— Você não desiste? — perguntou a espiã morena, com
voz de gata enfastiada. — Pensei que lhe tivesse quebrado a
cabeça!
— Minha cabeça é muito dura, Jane. Mas você
conseguiu me fazer um “galo” no cucuruto. Está me
devendo um “galo”, querida...
— Por que não nos deixa em paz? — retrucou o
professor White, irritado. — Serei obrigado a fuziLá-la! E
eu não queria ter outro cadáver na consciência!
Brigitte olhou para ele com expressão de censura.
— Não se faça de gentil, professor! O senhor nunca se
incomodou com um ou outro cadáver. Não teve o menor
escrúpulo em trair a sua pátria! Sua consciência parece ser
bastante elástica... Vocês não me convidam para almoçar.
Adoro peixe de escabeche!
— Venha! Você é nossa prisioneira! Mas não tente fazer
nenhuma “falseta”! Eu e Jane estaremos atentos!
— Professor! — censurou Brigitte, sorrindo. — Não fale
em gíria! O senhor parece um gangster!
Só então reparou que havia um buraco no chão, ao lado
da porta histórica dos Khmer. Entraram por ele como se
fosse um alçapão, desceram um declive bastante íngreme e
encontraram-se num compartimento de pedra, subterrâneo,
que devia ter sido uma residência do Século III. No meio do
subterrâneo havia uma fogueira, com uma trempe de ferro e
uma frigideira, onde chiavam três saborosos peixes do lago
Tonlé.
— Confortável residência — comentou Brigitte. —
Vocês já tinham estado aqui, antes? O senhor, não,
professor. Mas sua amiguinha.
— Também não — confessou Jane Finda. — Só
descobrimos este refúgio há poucos minutos. Nosso jipe
parou, por falta de combustível, e procuramos a sombra da
porta de pedra Então, encontramos o buraco e esta casa
abandonada. Já havia tudo isso aqui dentro, como se os
deuses esperassem por nós. Eu apenas acendi o fogo e pus
os peixes para fritar.
— Você não ganhará mais os cinco mil rublos —
prosseguiu o professor White. — Agora, você vai comer
conosco e, depois será liquidada!
Brigitte não discutiu; estava esfomeada, pois já passava
das quatro horas e ela só tomara o café da manhã. Os três
sentaram-se no chão e dividiram os peixes, comendo com
grande apetite. Jane Finda olhava para Brigitte com
curiosidade.
Acabada a parca refeição, beberam água salobra e
voltaram a subir para a superfície da terra. As águas do lago
tinham avançado alguns metros e já atingiam a soleira da
porta de pedra; se avançassem mais, começariam a descer
pelo alçapão, inundando a casa soterrada.
— O Mekong está ‘em maré vazante — informou o
professor White — e o lago começa a encher. Dentro de um
mês as chuvas chegarão. Ainda há bastante gasolina no seu
jipe? Ouvi o barulho do carro, na estrada.
Brigitte sacudiu a cabeça.
— Infelizmente, não. Mas podemos ir verificar. Deixei o
jipe na beira do caminho.
Os três foram ao local onde ficara o carro e o professor
White constatou que só restavam cinco litros de gasolina no
tanque.
— Não dá nem para a saída — rosnou o homem ruivo,
mordendo o lábio. — Temos que seguir a pé, Jane querida.
Mas pode ser que encontremos algum pescador, na margem
do lago, que nos leve para Phnom Penh em seu junco. A
amostra do Átomo Z está bem escondida, comigo, e nosso
contato, no Hotel Kampuchea, logo nos arranjará passagens
aérea para Paris. Agora, vire o rosto, meu bem. Vou dar um
tiro na nuca desta nossa encantadora inimiga...
Disfarçadamente, Brigitte enfiou os dedos no bolso e
tocou a pistolinha “Baby”. Mas Jane Finda agarrou no pulso
do seu cúmplice e evitou que ele disparasse a arma.
— Não, Patrick! Não quero mais cadáveres! O cheiro de
sangue me repugna. Tive uma idéia melhor.
O professor olhou para ela por cima das lunetas.
— Que idéia, amorzinho?
— Vamos amarrar Brigitte Montfort e deixá-la no fundo
da casa de pedra! As águas do lago estão avançando e logo
cobrirão o subterrâneo. Será uma morte mais limpa do que
um tiro na nuca. E você não terá tantos remorsos.
— Boa idéia! Ela jogará com a sorte. Pode ser que se
liberte antes de as águas chegarem.
A cena seguinte foi rápida, fulminante. Mas Brigitte
tirou a pistolinha do bolso, Jane Finda pulou em cima dela e
deu-lhe um pontapé no pulso. A pequena arma voou para
longe.
— Também conheço caratê — explicou a espiã
soviética, sorrindo. — Recebemos treinamento em Moscou,
antes de regressarmos aos Estados Unidos. Não sou
eurasiana; sou russa, naturalizada norte-americana!
— É mesmo? Você me surpreende, Jane! Vejo que é
uma boa esportista. Que tal se medíssemos nossas forças?
— Talvez — retrucou a outra, cerrando os punhos. —
Como quiser. Também acho muito interessante, um
combate de fêmeas!.
O homem ruivo assistia a tudo com os olhos arregalados
pelo espanto, a automática esquecida na mão. Jane Finda
tomou a iniciativa, arremetendo contra Brigitte com um
golpe de shuto. A bela repórter bloqueou o assalto e
retrucou com um inesperado irimi-ate — golpe com o
cotovelo — que atingiu a espiã soviética no seio esquerdo.
Foi o bastante. Jane Finda entortou os olhos e caiu de
costas, desacordada. Mas Brigitte não teve tempo para mais
nada; traiçoeiramente, o professor White veio por trás dela e
deu-lhe uma tremenda pancada na cabeça. Brigitte também
entortou os olhos e perdeu os sentidos. Pela segunda vez
naquele dia.
Cinco minutos depois, Jane Finda voltou a si e
contemplou a adversária desmaiada. Tinha apanhado a
pistolinha Baby no chão e guardara-a num dos bolsos do
culote.
— Mato-a? — perguntou o professor White, cerrando os
maxilares.
— Não, ainda não. Dispa-lhe as roupas e amarre-lhe os
pulsos e os tornozelos. Vamos deixá-la no fundo do
subterrâneo, como sugeri.
Obediente, o sábio atômico desabotoou a túnica e as
calças da jovem desacordada, despindo-a inteiramente. Uma
por uma, as peças de roupa foram arrancadas pelas mãos
nervosas do professor. O belo corpo desnudo da jornalista
americana surgiu, esplendoroso. Apesar de seu desinteresse
pelos encantos do sexo oposto, o professor White não pôde
evitar um grito de admiração.
— Deus, como é bela! Parece uma estátua de Fídias! É a
própria Afrodite!
— Certo — rosnou Jane Finda, enciumada. — Concordo
em que seu físico seja mais perfeito do que o meu... mas
você não deve se entusiasmar tanto! Essa mulher é veneno,
Patrick! Amarre-lhe os pulsos e os tornozelos! E atire-a no
fundo da cova! Precisamos ficar livres dela. De uma vez por
todas!
Brigitte ainda não dava acordo de si. O cientista atômico
atou-lhe as mãos e os pés com uma grossa corda encerada e
carregou o corpo nos braços, indo despojá-lo, brutalmente,
pelo buraco próximo à porta dos Khmer. As primeiras gotas
da água do lago começavam a infiltrar-se pelas paredes de
pedra, formando uma poça no chão inclinado. E essa poça
crescia a olhos vistos.
Na superfície da terra, o professor White e sua
companheira trocaram um beijo, puseram duas trouxas nas
costas e iniciaram a longa viagem a pé para Phnom Penh,
250 quilômetros ao sul do lugar onde estavam. Precisavam
evitar os centros urbanos, pois podiam ser tomados como
contrabandistas e não queriam cair nas mãos da polícia.
No fundo da casa dos Khrner, as nádegas rosadas de
Brigitte começavam a ser acariciadas, timidamente, pela
água fresca do lago, que as paredes destilavam cada vez
com mais intensidade; dentro de duas ou três horas, nossa
heroína morreria afogada, se não aparecesse ninguém para
salvá-la.
Mas nem o professor Patrick White, nem sua
companheira, tinham refletido sobre a incongruência de
encontrarem utensílios domésticos e peixes frescos naquele
subterrâneo; era evidente que aquela “residência” fora ou
estava sendo habitada por algum cambojano do Século XX.
Efetivamente, poucos minutos depois da partida do casal de
espiões, um homem saiu da sombra de uma árvore secular,
à esquerda da estrada de Kompong Kleang, e aproximou-se
cautelosamente da porta de pedra e do buraco na terra. Era
um leproso.

TRÊS
A Nova Fonte do Átomo Z

Buri-Khon, o leproso, desceu cautelosamente o plano


inclinado e logo viu aquela moça, nua, com as mãos e os
pés amarrados, que voltava lentamente a si. A água já
começava a lamber o ventre acetinado de Brigitte,
espalhando os seus longos cabelos negros; mais um pouco e
entraria pelas suas narinas. Buri-Khon soltou uma
exclamação de espanto e acorreu, cortando as cordas que
prendiam a bela morena. Brigitte pôs-se de pé, tapando com
as mãos as partes riais secretas de seu corpo.
— Depressa! Vamos sair daqui!
O leproso parecia bestificado e custou a entender.
Brigitte agarrou-o por um braço e sacudiu-o, com risco de
desconjuntar as suas carnes apodrecidas. Correram para o
aclive, chapinhando na água, e subiram para a superfície da
terra. Só então a repórter reparou na figura impressionante
de seu salvador. O homem era cego de um olho e tinha
metade do rosto comido pela doença. Brigitte levou um
susto.
— Nossa! Quem é você?
Ele não entendia o inglês, mas o olhar da moça era
muito eloqüente; tapou o rosto, envergonhado, e respondeu,
em francês:
— Chamo-me Buri-Khon, o leproso, e moro nesse
buraco. Vocês comeram do meu peixe e, agora, são meus
hóspedes.
Brigitte sentiu engulhos e fez uma careta.
— Sim, claro. Não sabia que o peixe era... Para onde
foram os meus amigos? Eles estavam com tanta pressa que
se esqueceram de mim...
— Sua roupa — retrucou o velhote, com expressão
severa — está ali adiante, perto do automóvel. Sou budista e
não tolero o nudismo! Sugiro que a senhorita se vista
primeiro, e faça perguntas depois. Seus amigos quiseram
afogá-la como uma rata. Esse não é o procedimento digno
de um amigo. Buda nos deu a vida para que espalhemos a
bondade pelo mundo!
— Sim, eu sei. Para onde foram eles?
— Ignoro. Puseram as trouxas nas costas e desceram
pela estrada que margeiam o lago. Se esperam alcançar
Phnom Penh, a pé, levarão cinco dias na viagem. Mas pode
ser, que arranjem condução pelo caminho.
Brigitte encontrou todas as peças de seu traje de
caçadora de feras e vestiu-se rapidamente. Só não encontrou
a pistolinha Baby. Estava sozinha e desarmada, no meio da
selva hostil do Camboja.
— Você tem família? — perguntou, olhando de esguelha
para o velho morfético. — Ou há muitos anos que não vê
mulher?
— Pode ficar descansada — retrucou Buri-Khon, com
um sorriso triste nas gengivas sem dentes. — Sou muito
respeitador, senhorita. Minha religião não me permite
contatos inlpuros. Vivo da pesca, depois que meus parentes
me expulsaram de casa. Ninguém gosta de leprosos, por
aqui. Eles desprezaram Buri-Khon, mas se esqueceram de
que Buda sempre reservou, para os velhos e os doentes, os
maiores prazeres do Nirvana! Eu também encontrei o meu
Nirvana, senhorita!
— É mesmo? — fez Brigitte, olhando pensativamente
para o jipe. — E, no seu paraíso, haverá gasolina?
O velhote encarou-a com o olho malicioso.
— Não, não há gasolina. Mas há pedras que voam!
Brigitte sentiu um choque.
— Repita isso, amigo. Você viu as pedras voarem?
Onde? Quando?
O leproso apontou para a grande porta de pedra dos
Khmer.
— Aqui, senhorita! Está vendo aquela porta? Já pôs a
mão na sua ombreira? Eu me sinto um mágico, um faquir,
no meu Nirvana! Ontem, ergui uma pedra para o sol e o sol
me arrebatou! Você nunca viu as pedras voarem, senhorita?
Pois eu lhe afirmo que voam! Todas as pedras do meu
Nirvana estão tocadas pelo espírito de Buda Sorridente! E,
hoje, talvez seja o dia em que eu pisarei na soleira da porta
e a porta me levará para o alto! Um dia, será. Estou muito
velho e doente, senhorita, e quero descansar. Depois de ver
as pedras subirem para as alturas, também quero subir com
elas. Talvez seja hoje o dia do Grande Milagre! Ou talvez
seja amanhã. Eu nunca me canso de esperar. Não há maior
virtude do que a esperança.
Dizendo isto, voltou a sorrir horrivelmente e foi se
sentar na soleira da porta de pedra, sob o enorme dintel de
uma laje só. Brigitte suspirou, impaciente. O leproso tinha
ficado imóvel, de pernas entrelaçadas, na posição
tradicional dos faquires, com os olhos fechados e um sorriso
de múmia nos lábios exangues. Nada mais aconteceu. A
porta também permanecia imóvel. Brigitte aproximou-se e
examinou, mais acuradamente, as quatro pedras que
formavam a singela construção. Sim, havia qualquer coisa
diferente naquelas lajes: eram quentes, leves, porosas, e
pareciam trepidar! O velho leproso encontrara, sem querer,
outra fonte do Átomo Z!
— Você disse que é pescador? — inquiriu Brigitte,
parando diante do farrapo humano. — Então, deve ter um
barquinho, não? Já não digo um junco, mas, pelo menos,
um barquinho...
Buri-Khon abriu o olho.
— Sim, senhorita. Tenho um barquinho. E posso alugá-
lo por duzentas piastras. Ou seis dólares.
— Para que quer dinheiro, se está à espera da morte?
— A morte, às vezes, demora. Com duzentas piastras,
poderei ir a Kompong Kleang e comprar muita coisa bonita!
A morte, às vezes, nos engana... e, quanto mais nós
precisamos dela, menos ela atende às nossas preces. Dê-me
duzentos ríeis, senhorita, e eu lhe direi onde está o meu
barquinho.
Brigitte procurou o dinheiro no bolso traseiro do culote e
teve a agradável surpresa de encontrar a carteira intacta. De
posse de uma nota de cinco dólares, o leproso voltou a
sorrir e apontou para o lago.
— Desça pela tábua, senhorita, e puxe a corda que sai de
dentro da água. O barco está afundado, para que os outros
pescadores não o roubem, e virá atrás da corda. Mas você
não agüentará ir até Konipong Kleang.
— Não é para lá que eu vou. Antes disso, tenho que
passar pela reserva arqueológica de Khi-Khent. Sabe onde
fica?
— Sei. A ilhota da mulher francesa fica perto daqui, se
você atravessar o lago na direção noroeste. Oriente-se pelos
tufos de capim alto, que devem ficar sempre à sua esquerda.
Antes de chegar à outra margem do Tonié-Sap, você verá a
reserva à sua frente. Não tem que errar, senhorita. São
apenas duzentos lis, ou treze quilômetros.
Brigitte agradeceu e desceu para o lago, encontrando
logo a corda a que o velhote se referira. Puxou-a e retirou
das águas, com alguma dificuldade, um barquinho de três
metros de comprimento, com uma longa vara de bambu
amarrada ao casco. Pôs o barco para flutuar e entrou,
empurrando-o vigorosamente para o lago, com o auxílio da
vara. Seguindo as indicações do leproso, manteve o barco
na direção noroeste; depois, virou para o norte, deixando à
esquerda algumas ilhotas cheias de capim alto. A distância
seria curta, para um pescador experimentado, mas a bela
jornalista perdeu quatro horas a empurrar a embarcação. Por
duas vezes a vara não encontrou o fundo e lhe escapou das
mãos; ela teve que pescá-la nervosamente. Já era noite
fechada quando, finalmente, abicou a uma das margens da
ilhota onde a doutora Madalena Da Verne estabelecera o
seu acampamento. Um soldado cambojano, armado com
uma submetralhadora, veio receber a navegadora solitária.
Era um dos homens do pelotão do tenente Hang Malup e
logo a reconheceu.
— Senhorita Montfort! Estávamos preocupados com a
senhorita! Sua amiga, a doutora Da Verne, já se recolheu.
Ela nos deu ordens para que não a incomodássemos.
Amanhã de manhã, talvez...
— Nada disso — contrapôs Brigitte. — A doutora Da
Verne terá que ser incomodada! Eu assumo a
responsabilidade!
Outros dois homens apareceram, por trás do soldado.
Eram os agentes do Deuxiéme Bureau Jacques Pêlerin com
o braço na tipóia e uma venda na testa e Charles
Montlaiteux. Ao verem Brigitte, sorriram alegremente,
desejando-lhe boas vindas. Depois, foram todos até a
barraca de lona da arqueóloga francesa, batendo palmas na
entrada. A doutora Da Verne apareceu logo, piscando os
olhos sonolentos. Vestia um quimono amarelo e trazia na
mão o seu espanador de pêlo de marta. Atrás dela, também
apareceu o seu guarda-costas oficial, Jean Poucheau.
— Brigitte, ma chèrie! — exclamou a francesa,
estremecendo de prazer. — Entre, meu amor! Sinto-me
terrivelmente sozinha! Como foi a sua aventura no pagode
de Khi-Khent? Os patifes estavam lá? Conseguiu recuperar
a pedra que o professor White lhe roubou?
— Ainda não — respondeu a repórter, bloqueando a
mão da francesa, que procurava apalpá-la no lugar errado.
— Mas espero apanhar o casal de espiões soviéticos em
Phnom Penh. Como estão o tenente Hang e seus dois
soldados?
— Os soldados morreram — respondeu Jean Poucheau,
antecipando-se à arqueóloga. — O tenente foi levado para
Siem Reap, para ser operado. A estas horas, suponho que já
esteja fora de perigo. A bala não chegou a traspassar o
pulmão.
— E Hugh Champang? — insistiu Brigitte. — Se a
doutora Da Verne me permitir, descerei com ele à capital
antes do casal de espiões que me roubou o Átomo Z! A
pedra que o professor White retirou do fundo do Tonlé-Sap
não pode ser levada para Moscou! Os resultados dos
estudos teóricos do professor Khatamansky já estão lá e
tanta vantagem junta fará da União Soviética uma potência
militar difícil de destruir. As teorias do professor
Khatamansky também precisam ser devolvidas aos Estados
Unidos!
— Você sabe que pode contar comigo — disse a doutora
Da Verne, sorrindo carinhosamente.
— Basta que a França também participe da fabricação da
Bomba Z. Eu lhe emprestarei Hugh e a lancha. Mas só
amanhã de manhã, claro. Vocês poderão partir ao nascer do
sol. Agora, venha, ma chèrie. Você deve estar cansada,
coitadinha! Venha dormir comigo.
E seus olhos negros tornaram-se ligeiramente estrábicos.
— Obrigada — retorquiu Brigitte, com outro sorriso
carinhoso. — Prefiro dormir sozinha. Estou muito cansada,
realmente! Boa-noite, doutora Da Verne.
A arqueóloga suspirou e desentortou os olhos.
— Boa-noite, garota maldosa! É uma pena que você seja
tão arisca! Mas continuo gostando de você assim mesmo...
Nunca encontrei uma menina tão excitante como você!
Você é perfeita!
Brigitte agradeceu e foi para a barraca que lhe
destinaram. Ali, encontrou a sua câmara fotográfica e a
mala com documentos. Escolheu um passaporte e uma
carteira de identidade em nome de Margaret Petterson,
turista norte-americana, e enfiou-a no bolso da túnica;
depois, escreveu meia dúzia de laudas de papel e deitou-se,
adormecendo em seguida. Não mentira: estava
cansadíssima.
Às seis e meia da manhã, a própria doutora Da Verne
despertou sua graciosa hóspede, beijando-a na boca. Brigitte
acordou, assustada, mas logo sorriu. Não queria desgostar a
sua anfitriã.
— Bom-dia, ma chèrie — disse a francesa, meigamente.
— Seu banho quente está pronto, na tina de plástico de
minha barraca. Costumamos tomar banho de Jurô, à
maneira japonesa. Venha. Venha. Eu lhe esfregarei a pele
com sândalo e deixarei que você também me esfregue...
— Obrigada — negou Brigitte, com ar inocente. —
Costumo tomar banho à maneira ocidental, ou seja, sozinha.
Mas prefiro lavar-me no hotel de Phnom Penh, depois que
lá chegar.
A arqueóloga mordeu o lábio, contrariada.
— Como quiser. Perdoe-me se a beijei. Você estava tão
bela, nos braços de Morfeu, que não resisti à tentação! Mas
notei, constrangida, que você gosta muito de comer peixe
frito...
Hugh Chambang apareceu em seguida, sorrindo com ar
subserviente. Seus olhos apertados examinaram Brigitte de
alto a baixo e logo deram com o “galo” que a repórter
ostentava no alto da cabeça.
— Teve sorte, senhorita. Poucas pessoas voltam vivas
do Vale Proibido. Lamento que não tenha apanhado a pedra
que o professor White lhe roubou. Agora, quer ir para
Phnom Penh?
— Sim, Hugh! O mais depressa possível! O casal de
espiões está seguindo para lá, por via terrestre, e eu preciso
chegar antes dele!
— Gastaremos sete horas na viagem, senhorita. A lancha
está pronta. Podemos partir quando quiser. Vou apanhar sua
bagagem.
A lancha esperava por eles, atracada a um dos molhes
naturais da ilhota. Embarcaram sob os aplausos dos
arqueólogos sobreviventes do massacre comunista e
fizeram-se ao largo. O guia cambojano era um excelente
piloto e tinha prática em descer o Tonlé-Sap; em menos de
três horas estavam em Chinok Trou, pequena cidade à beira
do lago, em sua extremidade sul. Ali, encheram o tanque de
gasolina e prosseguiram viagem, descendo o Rio Tonlé, a
uma velocidade média de 30 nós por hora. Às duas horas da
tarde, chegaram à capital do Camboja. Hugh Chambang
encostou a lancha ao cais já em águas do Mekong e Brigitte
saltou lepidamente, sobraçando a máquina fotográfica. Era
uma turista em Phnom Penh, apenas mais uma bela turista.
— Talvez seja melhor eu acompanhá-la — sugeriu o
guia. — A senhorita não fala o khmer e terá dificuldade em
se entender com os nativos. Terei muita honra em ser útil a
uma amiga tão íntima da doutora Da Verne...
— Não sou uma amiga íntima da doutora Da Verne,
Hugh. Nunca tomei banho de jurô com ela.
— Ainda não — concordou o guia, maliciosamente.
— Está bem, Hugh. Venha comigo. Quero que me leve
aos correios. Mas não precisa trazer a espingarda. Phnom
Penh é uma cidade civilizada.
Atravessaram a capital, por entre os prédios baixos e
coloridos e foram até uma praça ajardinada, onde ficava o
Hotel Kampuchea. Um prédio quadrado, de 4 andares, feito
de tijolos vermelhos e também encimado por um terraço.
Na portaria, um funcionário risonho informou Hugh
Chambang de que ainda não tinha chegado nenhum casal de
hóspedes norte-americanos, mas que, realmente, o gerente
da casa esperava por ele. Brigitte hospedou-se no hotel, sob
o nome de Margareth Petterson, deixou a mala no quarto de
n.0 22 e voltou a sair, em companhia do guia.
Almoçaram num pequeno restaurante típico, entre
clientes vestidos com calças azuis e blusões brancos, e
dirigiram-se para o edifício dos Correios e Telégrafos, na
Praça Raik-Them. Brigitte expediu um telegrama, dirigido
ao inspetor Pitzer, e uma carta, com a nova reportagem para
o “Nova Manhã” que tinha redigido nessa noite. Tanto
numa mensagem, como na outra, revelava suas mais
recentes aventuras no interior do Camboja e manifestava a
intenção de fazer uma visita a Moscou. Além disso, no
telegrama dirigido ao FBI solicitava a liberação de uma
verba de 50 mil dólares, destinada à compra dos
documentos secretos roubados ao professor Khatamansky e
entregues ao camarada Antoniev.
Voltaram ao hotel, mas o casal norte-americano ainda
não tinha chegado. Em vista disso, foram dar um passeio.
Hugh Chambang era budista, de maneira que apenas
Brigitte visitou os templos católicos da cidade que datavam
dos tempos do protetorado francês, apreciando
especialmente a arquitetura da formosa catedral. Também
tirou diversos retratos, que serviriam de testamento de sua
estada na capital do Camboja. Ao anoitecer, regressaram ao
Hotel Kampuches e foram jantar. Ainda não havia notícias
do professor White e Jane Finda, O gerente do hotel
também esperava por eles.
— Você está livre, Hugh — disse Brigitte, depois do
chá. — Pode fazer o que lhe aprouver, até a meia-noite.
Depois regresse ao hotel. Se eu precisar de você, sei onde
fica o seu quarto. Amanhã de manhã, procure-me no meu,
que é o 22. Espero ainda estar viva então.
O guia sorriu, fez uma reverência e desapareceu. Era
quase certo que iria passar o resto da noite na Rua do Prazer
Artificial, onde cada sacerdotisa do amor era perita em
encher os cachimbos de ópio... Brigitte foi para o seu quarto
e pôs-se a escrever uma nova reportagem, mais detalhada,
revelando os últimos segredos do Átomo Z natural,
inclusive o encontro da nova fonte de pedras leves, na
margem leste do lago. O hotel estava em silêncio. Por volta
da meia-noite, bateram de leve à porta do quarto. Brigitte
tinha atado os longos cabelos negros no alto da cabeça, sob
um turbante de cetim, e pintara um bigodinbo incipiente,
em cima do lábio superior; pôs um par de óculos escuros no
nariz e foi abrir. No corredor, estava a russa Jane Finda, os
olhos azuis apertados pela suspeita e uma pequena
Markarov na mãozinha branca. Brigitte fez uma voz
esganiçada:
— Oh, que encantamento! Uma patrícia, suponho?
Entre, entre! Nós, americanas, nos sentimos tão solitárias na
Indochina! Tudo aqui, quando não é Kmer, é francês! Que
encantamento!
— Peço o seu perdão — resmungou a cúmplice do
professor White, enfiando a pistola na bolsa.
— Pensei que a senhorita fosse minha conhecida...
— Mas entre! — insistiu Brigitte, abrindo caminho. —
Quero conversar com você, patrícia! Que encantamento!
A russa dera apenas dois passos para dentro do quarto,
quando a porta se fechou inopinadamente e uma das mãos
de Brigitte lhe aplicou um estrangulamento pelas costas;
enquanto isso, a outra mão da repórter lhe arrebatava a
bolsa. Sob a ameaça da Markarov, Jane Finda sentou-se na
beira da cama, mordendo os lábios exangues.
— Você é esperta, Brigitte. Enganou-me muito bem!
Mas Patrick não tardará a apanhá-la!
— Tenho mais medo de você — retrucou a linda
jornalista, balançando a pistola na mão. — Vamos, fale!
Vocês só chegaram agora a Phnom Penh?
— Sim — rosnou a russa. — Tivemos dificuldades em
arranjar um junco que nos trouxesse. Você não ousará me
matar Brigitte Montfort! Mesmo que você tenha sete
fôlegos, como os gatos...
— Não — disse a repórter, sorrindo. — Não pretendo
matá-la. Dispa-se!
— Como?
— Tire as roupas, querida. Você será empacotada e
enviada para a Reserva arqueológica de Khi-Khcnt. Ali, não
causará transtornos. Quanto ao seu amigo, o professor
White, também cuidarei dele!
Protestando com voz abafada, Jane Finda teve que tirar o
seu traje de caçadora africana, que Brigitte vestiu e lhe caiu
como uma luva. No bolso da roupa de brim também estava
a pequena pistola Baby. Em seguida, Jane Finda foi
amarrada de pés e mãos e escondida no armário do quarto.
Então, Brigitte deu início à sua nova caracterização.
Amendoou os olhos azuis, endureceu os traços de seu rosto
angelical e dilatou ligeiramente as narinas. Quando se
olhou, pela última vez, no espelho da penteadeira, tinha
diante de si a figura desdenhosa de Jane Finda. Sorriu para
si mesma e desceu ao andar térreo, indo bater à porta do
quarto de Hugh Chambang. O guia cambojano levou um
susto e custou a acreditar no que seus olhos viam.
— Você não é Jane Finda, senhorita?
— Não — sorriu Brigitte. — Jane está no armário do
meu quarto completamente nua e amarrada de pés e mãos.
Quero que você a coloque numa caixa e a leve, na lancha,
para a reserva. Peça à doutora Da Verne que a mantenha
prisioneira, sob severa vigilância, até que eu volte de
Moscou.
— Moscou não é um bocado longe, senhorita?
— A aviação foi feita para encurtar as distâncias. Faça o
que lhe digo, Hugh, e receberá uma boa recompensa!
— Ela está amarrada e completamente nua?
— Sim.
Os olhos oblíquos do guia cintilaram.
— Ótimo! Pode deixar, senhorita. Não faço questão de
nenhuma recompensa!
Brigitte suspirou e dirigiu-se ao balcão da portaria. O
quarto do senhor Patrick e senhora Jane Wallace era o de
número 46, no último andar. Subiu a larga escadaria com a
mão sobre a Markarov que levava no bolso e abriu a porta
sem bater. O professor Patrick White encontrava-se deitado
na cama de casal, de pijama listrado, folheando uma revista
tailandesa.
— Alô, Patrick! — saudou Brigitte, imitando a voz de
Jane Finda.
— Era ela? — perguntou o perito atômico, saltando da
cama. — Você conseguiu neutralizá-la?
— Não. Era eu.
Ele a reconheceu e, soltando um rugido de ódio, pulou
para o meio do quarto, tentando alcançar a Stechkin, que
estava em cima da mesa. Brigitte tirou a Markarov do bolso
e atingiu o homem na nuca, como uma pancada seca e
demolidora. As lunetas do professor caíram para um lado e
seu corpo caiu para o outro. Ainda balançou a cabeça duas
vezes, como se não entendesse nada; depois, ficou imóvel.
Rápida e eficientemente, Brigitte deu uma busca no
aposento, sem encontrar a amostra do Átomo Z. Não estava
escondida nos móveis, nem nas roupas, em parte alguma.
Então, a bela repórter respirou fundo, enojada, e despiu o
pijama de sua vitima, pondo-se a procurar a pedra nas
cavidades de seu corpo magro e desengonçado. Encontrou-
a, afinal, e foi lavá-la na pia do banheiro. A pedra que ficara
reduzida a uma esfera pouco maior do que uma bola de
gude, tendia a saltar de sua mão e subir para o teto. Ela a
enfiou no bolso, com todo o cuidado, e despejou um balde
de água na cara do professor White. O sábio atômico
despertou, estonteado.
— Sente-se, professor — ela o acalmou com um gesto.
— Não vou matá-lo, ainda que o senhor tivesse me dado
razões para isso. Quero conversar como o senhor.
O homem ruivo pôs-se a gemer e a praguejar. Mas
acabou serenando e sentando-se numa cadeira. Seus olhos,
aguados e vermelhos, sem as lunetas pareciam os de um
rato branco.
— Onde está Jane? — murmurou. — Que foi que você
fez com ela?
— Sua amiguinha está a caminho da reserva
arqueológica. Achei melhor não a entregar à polícia, pois
nunca se sabe o que pensam os cambojanos sobre o paraíso
soviético... Não pense mais em Jane, professor; pense em
mim. Nós vamos viajar juntos e eu serei a sua Jane. Embora
o senhor não seja exatamente um Tarzan...
— O quê? Você será Jane?
— Sim. Enviei um telegrama para Nova Iorque,
solicitando resposta urgente. Amanhã ou depois, já saberei
se posso contar com o dinheiro que pedi ao FBI. O senhor
me ofereceu cinco mil rublos para que eu o deixasse em
paz; agora eu lhe ofereço vinte vezes essa quantia, para que
o senhor me leve a Moscou!
— Você está maluca! Eu nunca faria isso!
— Nunca? Nem mesmo para salvar a sua pele e receber
cinqüenta mil dólares? Pense bem, professor! Também
posso procurar o camarada Antoniev sem o seu auxílio. E
talvez ele queira fazer negócio comigo...
O professor White lambeu os beiços.
— Cinqüenta mil. Pense bem, professor. O senhor e Jane
iam para Moscou, levando a pedra que eu acabei de retirar
de um buraco de seu corpo. Eu posso, muito bem, passar
por Jane Finda. O passaporte dela já está em meu poder. E,
se o senhor colaborar, podemos apanhar a pasta com os
documentos roubados ao professor Khatamansky. Se o
senhor me oferece dois mil e quinhentos dólares, eu replico
com cinqüenta mil. E, se o senhor já recebeu cinco mil,
agora pode receber cinqüenta! Simples, não acha?
— Já lhe disse — replicou o professor White com ar
austero — que não sou traidor por dinheiro! Sou um espião
soviético por ideologia e... De qualquer maneira, o FBI
acabaria me apanhando!
— Talvez não. Com cinqüenta e cinco mil dólares no
bolso, o senhor não precisará voltar aos Estados Unidos.
Pode eleger o melhor lugar da América do Sul em que
deseja passar as férias. Pense bem, professor, e dê-me uma
resposta amanhã. Não tenho medo de que o senhor me
escape, pois a pedra está comigo, e o senhor não vale nada
sem ela. Pense bem na minha proposta e dê-me uma
resposta amanhã. Tenho a certeza de que o FBI mandará o
dinheiro. Boa-noite, professor.
— Espere! Você não fará mal a Jane? Jane foi a única
mulher que conseguiu fazer de mim um homem!
— Não lhe farei mais mal do que o mal que ela me fez.
E prometo que darei liberdade à moreninha, depois de
reaver as equações algébricas do professor Khatamansky.
— Certo — gemeu o professor White. — Deixe-me
pensar. É muito arriscado! O camarada Antoniev não é fácil
de enganar!
— Eu me encarregarei do camarada Antoniev, depois
que o senhor me disser quem é ele. Boa-noite, professor!
E a linda repórter saiu do quarto, com passos macios,
deixando o professor White engolfado em suas dúvidas.
Cinqüenta mil dólares, realmente, não era uma quantia que
se desprezasse — e podiam comprar até uma ideologia
política. Tudo dependia da consciência do idealista...
QUATRO
O Camarada Antoniev

O telegrama de resposta do inspetor Pitzer só chegou a


Phnom Pehn dois dias depois, ou seja, na manhã de
domingo, 20 de março. Já então Hugh Chambang e Jane
Finda, sua prisioneira, estavam na reserva arqueológica de
Khi-Kent. Mas o professor White não fugira do Hotel
Kampuchea; na manhã de sexta-feira, o homem ruivo
procurava Brigitte e declarara, com voz sumida:
— Certo, mulher diabólica! Aceito! Mas você será
responsável por tudo o que acontecer! Não é fácil enfrentar
o camarada Antoniev! Ele tem muita influência no Kremlin!
Brigitte imitou a voz ligeiramente ciciosa de Jane Finda:
— Eu corro mais perigo do que você, Patrick querido...
— Não me chame de querido! Tenho nojo de você!
— Precisamos ir treinando os nossos papéis, meu bem.
De agora em diante, eu serei sua amante... e você terá que
ser muito carinhoso comigo. Só assim enganaremos o
camarada Antoniev. A propósito: ele é seu amigo major da
Armada Soviética, não é?
— Sim, ele é o meu amigo major! Mas você espera
roubar-lhe os planos do professor Katamansky? É uma
loucura! Eu lhe entreguei a pasta, numa rua de Nova Iorque,
e ele a levou para sua casa de campo, em Moscou! A casa
de campo do major Antoniev é uma fortaleza!
— Nós dois entraremos lá, não é verdade? Afinal,
pertencemos à mesma família.
— Sim, mas... Tenho medo! Repugna-me a idéia de trair
o meu amigo! E ele é muito poderoso, Brigitte! Você quer
enfrentar o leão no seu covil! Vamos correr muitos riscos
em Moscou!
— São cinqüenta mil dólares, querido. Pagos depois que
eu apanhar os planos. Assim, correrei menos riscos... Se
você me delatar, perderá o dinheiro. E talvez não escape da
vingança de seu amigo Antoniev... A partir de ontem —
concluiu com voz dura — você passou a ser um espião
duplo! E sabe que está arriscando a pele, dos dois lados do
corpo!
— Certo — gemeu o cientista. — Podemos tentar. Eu a
levarei, comigo, para Moscou. Mas... é preciso um pretexto!
E a pedra? Onde está o Átomo Z?
— A pedra vai comigo. Claro que o pretexto é esse.
Estamos levando para a União Soviética a amostra grátis do
Átomo .... Agora, vamos torcer para que o Departamento de
Defesa dos Estados Unidos conceda a verba de cinqüenta
mil dólares que eu solicitei. Temos que ter paciência e
esperar pela resposta ao meu telegrama. Os serviços
telegráficos, no Camboja, ainda não são tão rápidos como
deseja o príncipe Sihnouk...
O telegrama-resposta, assinado pelo inspetor Pitzer,
dizia apenas:
“OK”
À hora do almoço, no domingo, Brigitte e o professor
White tiveram uma longa conversa com o gerente do Hotel
Kampuchea, que era um agente residencial do NKVD no
Camboja. O homenzinho gordo e baixo, de pele cor de
azeitona, já tinha prontos os passaportes que o professor e
sua companheira deveriam usar, na longa viagem para
Moscou. Pelo visto, o camarada Antoniev pensava em tudo;
sua organização era perfeita.
Uma vez resolvidas as pequenas dificuldades
burocráticas, o professor Patrick White e a senhorita Jane
Finda — née Brigitte Montfort — embarcaram num DC-3
da Royal Air Cambodge, que os levou, do aeroporto
Pochentong de Phnom Penh, para o aeroporto Dou Mung,
em Bangkok. Na Tailândia já encontraram um Boeing a jato
da Air Frauce que os transportou a Nova Dheli, onde
derembarcaram no aeroporto de Palatn. Passaram a noite na
capital indiana e, na manhã seguinte, voltaram a voar dessa
vez num DC-8 da MEA que os levou ao aeroporto de
Mehrabad, no Teerã. Mais sete horas de vôo e estavam no
aeroporto de Esenboga, em Ancara. Passaram a noite de
terça para quarta-feira na capital da Turquia e, finalmente,
às duas e meia da tarde do dia 23 saltaram de um jato da
Aeroflot no aeroporto Choretnetiet’s, a 28 quilômetros de
Moscou. O professor White revelava sinais de fadiga,
depois de um cruzeiro tão longo, mas Brigitte que adorava
dormir a bordo parecia fresca como um pessego maduro.
A chegada dos espiões devia ter sido controlada pelo
Serviço Secreto Soviético, pois, quando se livraram da
alfândega e dispunham-se a sair do aeroporto, em busca de
um táxi foram abordados por dois militares à paisana, muito
atenciosos, que falavam fluentemente o inglês:
— Somos agentes do camarada Antoniev — disse um
deles, beijando a mão de Brigitte. — Nosso homem em
Phnom Ponh radiografou-nos, comunicando a vossa vinda.
Temos imensa satisfação em receber outros camaradas
americanos, identificados com o regime socialista. E
esperamos que tenham resolvido satisfatoriamente o
pequeno problema do Átomo Z. O contrário seria muito
desagradável.
— Tudo resolvido — afirmou o professor White.
— Trazemos uma amostra conosco.
— Excelente! Meu nome é Katukachenko. O capitão
Goriltza os levará à presença do camarada Antoniev. Não
falem com nenhum transeunte, por obséquio. A partir deste
momento, vossos gestos serão vigiados e fotografados pelo
KGB. Não temos a honra de pertencer ao KGB, mas
sabemos que nossos camaradas do Kremlin também se
interessaram pela vossa visita à União Soviética. Quanto
menos falarem, melhor. Não se fala muito, em Moscou.
Um pesado carro Zis, preto, de oito cilindros, levou o
casal e o capitão Goriltza a um palacete da Avenida Gorki,
no centro da cidade. Mas o major Antoniev ainda não estava
lá. Brigitte e o professor fizeram um lanche, em companhia
de seu cicerone, e desceram à garagem do prédio. Logo, o
capitão Goriltza que era um homem enorme, hercúleo, com
dois dentes de ouro, exibiu um par de vendas pretas.
— Desculpem as precauções, camaradas, mas terei que
lhes tapar os olhos. Neste momento, um casal, muito
parecido com vocês, continua lá em cima, tomando chá... É
preciso que o KGB não localize o QG do camarada
Antoniev.
Brigitte e o perito atômico foram vendados e colocados
noutro automóvel, que partiu rugindo. A viagem por uma
estrada de rodagem que parecia não ter fim durou três horas.
O carro parou, depois de atravessar um trecho de cascalho,
mas seus dois passageiros continuaram de olhos vendados.
— Saltem, por obséquio — disse a voz roufenha do
capitão Goriltza. — Só mais um minuto de trevas. Muito
obrigado.
O professor White apoiou-se no braço de sua jovem
companheira; parecia mais nervoso do que ela. Saltaram e
caminharam, alguns metros, em linha reta. Subiram uma
curta escadinha de pedoutora Uma porta foi aberta e
fechada. Andaram mais um pouco, sobre um assoalho velho
e rangente. Outra porta se abriu e fechou. Ninguém mais os
empurrava. Ficaram parados, de pé, à espera.
— Agora — disse o capitão Goriltza — podem tirar as
vendas, com suas próprias mãos.
Brigitte e o sábio atômico livraram-se dos incômodos
panos pretos e piscaram os olhos, várias vezes, para
habituá-los à claridade. Ainda não eram seis horas da tarde,
mas a sala onde se encontravam estava intensamente
iluminada por meia dúzia de lâmpadas de gás néon. Nas
janelas, pesados reposteiros azuis vedavam a luz do dia.
— Bem-vindos sejam, camaradas — disse uma voz
grave, redonda, num perfeito inglês. — Espero que me
tragam boas notícias. Fiquei muito satisfeito quando me
informaram que vocês vinham para Moscou. Esta é uma
bela cidade.
A sala era um escritório, cheio de livros em estantes
envidraçadas, com uma ampla secretária no meio. No alto
da parede do fundo via-se um retrato de Stalin, o ídolo
caído. E, atrás da secretária, encontrava-se um homem
baixo, obeso, completamente calvo, usando um monóculo
fora de moda. Trajava o uniforme azul-marinho do
Almirantado Soviético e tinha medalhas no peito,
— Saúde, querido Antoniev — murmurou o professor
White. — Apresento-lhe a companheira Jane Finda, de
quem já lhe falei. Você ainda não a conhecia pessoalmente.
Jane nasceu Findakova e é de inteira confiança. A ela
devemos o encontro do Átomo Z natural. Nossos camaradas
Gregorin Maskanova e Virgil Polkachenko foram mortos
em ação.
— Da — respondeu o camarada Antoniev, levantando-
se e beijando galantemente a mão de Brigitte. — Os retratos
que possuo da camarada Findakova não lhe fazem justiça...
Você teve bom-gosto, querido Patrick, ao trazer-me tão
apetitosa dièvushka...
— Ela é inteiramente sua — murmurou o homem ruivo,
confundido.
O camarada Antoniev deu uma risada. Brigitte
começava a ficar desconfiada de suas intenções...
— Falemos de negócios — acudiu ela, encarando os
olhos cruéis do oficial de marinha. — Patrick já recebeu dez
mil rublos, pela morte do professor Khatamansky, mas eu
ainda não vi a cor do dinheiro do Kremlin. Não trabalho por
amor à arte, major. Sou mais leal a quem me paga melhor.
— Você é sabidinha — riu o gordo, dando-lhe uma
palmada nas nádegas. — Quer dinheiro, hem? A amostra do
Átomo Z está com você, não é isso?
— Sim. Mas não na minha bagagem.
— Já sei, filhinha. Sua bagagem foi revistada, em meu
palacete da Avenida Gorki, e nada apareceu... Você é
esperta. Gosto de agentes espertos. Eu também sou muito
esperto.
— Já notei isso — retrucou a repórter, audaciosamente.
— Você está lutando contra o seu próprio Serviço Secreto,
O KGB não entrou, ainda, no caso do Átomo Z. Vocês
formaram uma rede de espionagem independente, que não
dá satisfações ao Kremlin.
O gordo ficou sério.
— Quase isso. Você é ainda mais esperta do que eu
pensava. Sou agente do KGB, mas resolvi tratar
pessoalmente do caso do Átomo Z. Mas não estou traindo
minha pátria, como vocês. Faço negócios, transações
comerciais. E vou vender, ao Kremlin, os estudos do
professor Khatamansky e a amostra do Átomo Z. É claro
que, para vender a pedra, terei que recebê-la de suas
mãozinhas... Isso, pelo que vejo, vai me custar mais algum
dinheiro... Certo?
— Certo. Mais dez mil rublos, pagos no ato da entrega.
— Se a pedra está com você, menina, posso apanhá-la
de graça.
— Não, não pode. Você não a encontrará, por mais que
a procure. Ela não está exatamente comigo... Se não
acredita, reviste-me.
O gordo voltou a sorrir.
— Acredito, Jane. Você é bonita e inteligente. Gostei de
você, sabe? Vamos fazer negócio, é claro. Meu querido
Patrick vai me desculpar, mas não precisaremos mais dele.
O sábio atômico empalideceu. Mas Brigitte sossegou-o
com um gesto.
— Patrick receberá cinqüenta por cento do meu lucro,
major. Ele foi muito útil à rede. E terá que estar vivo, para
receber o dinheiro. Só assim eu lhe direi onde está
escondida a amostra do Átomo Z.
O camarada Antoniev considerou-a, longamente, com
seus olhos perversos. Depois, deu outra casquinada.
— Que tolice! Você está sendo sentimental, Jane. Não
podemos ser românticos, em nossa desagradável profissão.
O professor Patrick White já foi denunciado ao FBI e será
preso pelos federeis, se voltar aos Estados Unidos. Eu não
quero que ele seja preso. O professor White, agora, tornou-
se um estorvo. Meu negócio será feito apenas com você.
— Ou Patrick entra na transação, ou nada feito!
— Você não está em condições de fazer exigências,
Jane. Não prejudique a si mesma. Uma garota bonita e
fogosa como você não pode se sacrificar por causa de um
hermafrodita como o professor White. Isso não é lógico.
Desculpe, mas você acaba de mudar de dono. Eu serei o seu
novo amante!
— Assim, simplesmente? Como se eu fosse uma coisa?
— Assim mesmo! Não quero ter dois cadáveres na
consciência. Prefiro que o agente Joe seja sacrificado
sozinho. Ele jamais voltará a Nova Iorque.
Compreendendo a insinuação, o professor White recuou
para o fundo do gabinete e coçou-se todo, à procura da sua
Sleczkin. Mas não a encontrou mais.
— Sua automática foi-lhe confiscada — anunciou o
camarada Antoniev. — Não faça escândalos, Patrick.
Submeta-se à lei da espionagem. Os agentes “queimados”
têm que desaparecer, quando não merecem a Ordem do
Estandarte Vermelho. Você não merece essa distinção.
O homem ruivo deu um berro e pulou em cima do
capitão Goriltza, que assistia a tudo impassível. Lépido e
eficiente, o oficial à paisana imobilizou-o com um golpe de
judô e arrastou-o para fora do escritório. Os gritos do
professor foram sendo engolidos pela distância. Brigitte
manteve o sangue-frio. Não tinha remorsos, pois a culpa
não fora sua.
— Mandou matá-lo, major? — perguntou com voz seca.
— Da. A ordem já tinha sido dada antes. Ele fracassou
algumas vezes. E, depois do serviço executado,
costumamos liquidar os traidores. Como lhe disse, querida
Jane, pertenço ao KGB, mas, neste caso, tenho meus
próprios métodos de trabalho... Você nunca mais verá o seu
herói. Em compensação, podemos entrar num acordo, nós
dois. Eu e você, filhinha.
— Não gosto de homens gordos, major. Pesam muito...
— Eu sou leve, quando as circunstâncias o exigem... Se
eu lhe pagar os dez mil rublos, você me dará o Átomo Z
natural? Encontrou-o, realmente, no cofre da doutora
Madalena de Da Verne?
— Não. Encontrei a fonte das pedras radiativas. Mas só
eu sei onde é que ela fica.
— Você tem um grande trunfo na mão, filhinha. O
Camboja é muito grande e, embora a jazida do Átomo Z
deva ficar próxima à reserva arqueológica de Khi-Kbent...
Você é esperta, filhinha! Seremos muito felizes, juntos.
Você acabará se apaixonando por mim.
— Não creio, major.
— Você não estava apaixonada por Patrick Eu sei.
Queria o dinheiro dele. Eu lhe darei mais do que dez mil
rublos. Sou um homem muito rico e gosto de ser explorado
pelas mulheres bonitas... Onde está a pedra?
— Onde está o dinheiro?
— Não tenho dez mil rublos em caixa. Você confiaria
em mim, se eu lhe desse a metade dessa quantia, em
dinheiro, e a outra metade em cheque?
— Os espiões não gostam de cheques, major. Tal e qual
os vigaristas... Mas, aceito. Quanto espera extorquir do
Kremlin?
— Não lhe posso dizer. Mas será o bastante para cobrir
você de ouro em pó. Você deve ficar ainda mais excitante,
completamente nua, com a pele dourada... Quero beijar o
ouro que escorrer dos seus seios.
Brigitte sentou-se numa poltrona, de pernas cruzadas.
— Primeiro, os dez mil rublos.
O gordo suspirou e foi até um cofre, embutido na parede
do gabinete. Graças a um espelho, colocado na parede
oposta, Brigitte pôde ver o sarilho do segredo e anotou
mentalmente a palavra-chave: “Mécto” — lugar — O
camarada Antoniev escancarou o cofre e pôs à mostra uma
pasta de couro castanho, com um pedaço de corrente
pendurada. Extraiu cinco pacotes de cédulas de uma gaveta
do cofre e voltou a fechar a pesada porta de aço,
desmanchando a combinação do segredo. Em seguida,
estendeu o dinheiro para Brigitte, fazendo um rasgado e
irônico cumprimento.
— Cinco mil rublos, querida. Onde está a pedra?
— Ainda falta o cheque, major...
Ele sorriu e sentou-se à secretária, preenchendo um
cheque de um talão esverdeado. Assinou e destacou o papel:
— Pronto! Negócio concluído!
Brigitte apanhou o cheque e verificou a quantia. Mais
cinco mil rublos.
— Ainda não, major. Acredito que o senhor tenha
fundos no banco, mas, depois do que aconteceu com
Patrick, preciso me precaver... Eu lhe darei a pedra amanhã,
no centro de Moscou, depois de descontar o cheque. Só
então, o senhor poderá pôr os seus cães na minha pista...
O gordo voltou a ficar sério. Seus olhos cruéis soltaram
faíscas.
— Você não está sendo correta, filhinha! Não deve
duvidar da minha palavra!
— Amanhã, no centro de Moscou.
— Está certo. Mas, esta noite, você será minha!
— Se você conseguir me derrubar...
Ele deu outra risada e bateu palmas. Abriu-se uma porta
e apareceu uma mulher alta e musculosa, com cara de
homem.
— Ludmila — disse o camarada Antoniev — esta é Jane
Findakova, minha protegida. Quero que seja tratada como
uma rainha. Dê-lhe um banho morno com sais perfumados,
e faça-a bem bonita. Ela jantará comigo, no terraço, ao ar
livre, e dormirá nos aposentos do leste. Amanhã, descerei
com ela a Moscou, no Packard. Você fica responsável pela
sua segurança. Entende, Ludmila?
A governanta balançou a cabeça, mas não disse nada.
Depois, olhou para Brigitte com ar de comiseração e fez-lhe
sinal para que a acompanhasse. A repórter enviou um beijo
na direção do camarada Antoniev com a ponta dos dedos e
seguiu a mulher. No corredor, ainda ouviu as risadas do
gordo. Ele parecia muito feliz com a sua nova conquista.
O jantar foi servido no terraço da casa de campo, entre
dois guarda-costas imóveis e silenciosos. Sobre a larga
mesa, coberta de iguanas, o teto azul do céu cintilava em
miríades de estrelas. Brigitte estava linda, vestida com um
“palazzo” de esvoaçante gaze cor-de-rosa. O camarada
Antoniev, baixo e gordo, também trocara o seu uniforme
militar por um pijama verde com uma estrela vermelha no
peito. Comeram caviar Beluga e beberam vodca
Gratchenko. Às dez horas da noite, Brigitte estava
ligeiramente “tocada” e seu anfitrião, completamente
bêbado.
— Vamos para o quarto — rugiu, subitamente, o
camarada Antoniev. — Depressa, antes que eu mude de
idéia! Não posso deixar passar o momento psicológico!
Vamos para o quarto, agora!
— Espere — implorou Brigitte, acariciando-lhe o rosto
acalorado. — Só mais uma taça de vodca... Não há
champanha na casa? Ainda me sinto muito tímida! E estou
com medo de enfrentar um monstro como você...
— Você é uma traidora! — berrou o gordo. — Você e
seu cúmplice tramaram me enganar! Queriam roubar a pasta
com os planos, não é? Sim, eu sei! Acabei de ser
informado! Seu amigo Patrick falou, antes de ser executado!
Você não é Jane Finda, é Brigitte Montfort! E trabalha para
o FBI!
— Que tolice! Patrick devia estar delirando! Ou, então,
vocês o obrigaram a mentir.
— Onde está a pedra, sua cachorra? Você pensava que ia
pegar no meu dinheiro e levar os papéis para Washington?
Ainda não nasceu a mulher capaz de tapear o camarada
Antoniev! Você vai me dar a pedra, Brigitte Montfort!
A garota recuou, apavorada. O gordo parecia um louco.
— Revistem-na! — gritou ele, cambaleando pelo
terraço. — Dispam-na! É uma espiã americana! E a pedra
está no corpo dela! Tirem-lhe a pedra, nem que seja preciso
cortá-la em pedaços!
Os dois guarda-costas pularam em cima da moça, como
lobos famintos, e arrancaram-lhe o pijama. Brigitte tentou
escapar, distribuindo socos e pontapés, mas eles eram mais
fortes. A pistolinha baby ficara na sua mala, pois não se
arriscara a tomar banho com ela. Em poucos minutos,
estava completamente nua, estendida numa poltrona, e seus
dois algozes sondavam brutalmente, com os dedos grossos,
as partes mais secretas de seu belo corpo arrepiado de frio.
— Está aqui! — exclamou um dos guarda-costas,
erguendo a pedrinha na mão. — Justamente no lugar mais
delicado! As mulheres têm cada idéia!
Brigitte deu-lhe um pontapé no pulso, antes de ser
agredida, a socos, pelo segundo atacante. A pedrinha saltou
dos dedos do russo e voou, vertiginosamente, para o céu.
Num segundo, tinha desaparecido, rumo às estrelas.
— Maldição! — rugiu o camarada Antoniev, avançando
para o seu subordinado. — Você soltou a pedra, imbecil!
Ela é mais leve do que o ar!
Brigitte começou a vestir nervosamente as calças do
pijama. A noite estava gelada e ela não queria apanhar um
resfriado.
— Vocês estragaram tudo — protestou a garota,
amarrando o cadarço das calças. — Eu ia lhes dar a pedra,
direitinho, num frasco de vidro! Não sou Brigitte Montfort,
sou Jane Finda! Vocês estragaram tudo! Esse é o castigo da
violência!
— Esses porcos, estúpidos, cretinos! Eu que devia ter
apanhado a pedra! Das minhas mãos ela não fugiria! E
agora, cachorrinha? Nem você nem eu ganhamos nada com
isto!
— Agora — concluiu Brigitte, com o paletó do pijama
ainda na mão — você terá que esperar outra amostra do
Átomo Z. E só eu sei onde é que ela se encontra. Mas,
enquanto não regresso ao Camboja, vou matar a sua sede.
Não sou Brigitte Montfort, major, sou Messalina!
E sentou-se no colo do gordo, beijando-o ferozmente na
boca flácida. As mãos enormes do camarada Antoniev
empolgaram-lhe os seios nus com tanta sofreguidão que ela
soltou um gemido.
— Messalina — grunhiu ele, retesando os músculos. —
Mesalina Findakova! Que vá para o diabo o Átomo Z! Isto
é muito melhor!
Brigitte continuava a sugá-lo, coleando sobre ele como
uma serpente. Caíram nos ladrilhos do terraço, rolaram pelo
chão, cambalearam até um divã, mas não se separaram. O
rosto rubicundo do major estava roxo e seus olhos pareciam
querer sair das órbitas. Sua fogosa parceira esperava,
ardentemente, que ele tivesse uma congestão.
— Morre, querido! Estoura, meu amor!
Mas isso não aconteceu. Meia hora depois, os dois
litigantes estavam satisfeitos, rendidos pelo cansaço, e pelo
álcool, dormindo no divã do terraço. Aliás, apenas o
camarada Antoniev adormecera. Logo que o guarda-costas
desceu a escadinha, sem fazer barulho, Brigitte vestiu o
pijama e fez o mesmo. Estava descalça e seus pezinhos nus
também não faziam o menor ruído. A casa de campo
parecia deserta. Ela cruzou o corredor do andar térreo e
alcançou a porta do escritório, sem encontrar nenhum
obstáculo. Abriu a porta com um simples grampo de cabelo
e passou, como uma sombra.
O gabinete estava às escuras. Sem acender a luz, foi até
o cofre e apalpou-o carinhosamente. Seus dedos ágeis
revolveram o sarilho do segredo, formando a palavra
“Mécto”. O cofre se abriu com um leve estalido. Brigitte
agarrou na pasta castanha, apalpou-a, para ter a certeza de
que não estava vazia, e saiu cautelosamente do aposento.
Outro corredor levou-a ao quarto do leste, onde estava a sua
mala de viagem. Apesar de encontrar tudo remexido, não
faltava nada. Nem sequer a pistolinha Baby, que continuava
no mesmo escaninho onde a escondera. Colou o
esparadrapo na coxa, segurando a arma, e vestiu
rapidamente um par de calças e uma túnica de zuarte azul.
Nisso, ouviu um estalo e a luz do quarto brilhou
vivamente. Brigitte voltou-se para a porta, agachada como
uma pantera, e viu na sua frente a governanta Ludmila. A
mulher-homem tinha um revólver na mão.
— Não se assuste — disse ela, em voz baixa.
— Dê-me a pasta, por favor. O major Antoniev traiu
nossos chefes, mas aquilo que ele conseguiu não voltará
para os Estados Unidos. Suponho que você já tenha
percebido que eu sou agente do KGB. Nunca confiei nesses
stalinistas! Dê-me a pasta, menina... e não faça barulho!
Você morreria antes de mim!
Brigitte estendeu-lhe a pasta, num gesto de desânimo —
e, quando a mulher estendeu a mão esquerda, para apanhá-
la, atirou-a violentamente contra a sua mão armada. O
revólver disparou, mas a bala bateu na parede. No segundo
seguinte, Brigitte tinha saltado como uma mola e aplicado
uma cutilada no pescoço da governanta. A mulher-homem
cambaleou, olhando para os seus próprios pés. Outro golpe
na nuca acabou de derrubá-la.
Ouviram-se passos pesados no andar superior. Brigitte
enfiou a pasta na mala, fechou-a à chave e correu para a
janela. O quarto ficava ao rés-do-chão. Abriu as vidraças,
saltou o peitoril e caiu no quintal. Não se via ninguém, sob
a noite fria e estrelada. Correu em volta do prédio. protegida
pela sombra do telheiro, e logo encontrou a garagem.
Aberta. Um homem montava guarda a um possante Packard
Custom 54. Brigitte escondeu a mala num tufo de arbustos e
foi ao encontro do homem.
— Depressa! O major está sendo ameaçado! Venha
comigo!
O russo sacou de uma pistola e correu para a porta da
casa de campos sem reparar que a garota não o seguia.
Enquanto isso, ela punha a mala dentro do carro, ligava a
ignição e partia como um foguete. Não sabia onde estava,
nem onde a levaria a estrada fronteira à casa de campo —
mas, fosse para onde fosse, sempre estaria mais segura do
que nas mãos do gordo camarada Antoniev.

CINCO
Viagem Aérea Para Tuschkent

A longa estrada levou-a de volta a Moscou. Depois de


duas horas e meia de viagem, as casas, ao longo do
caminho, foram se tomando mais freqüentes; acabou por
cruzar com uma tabuleta que anunciava a extrema
proximidade da capital soviética. Brigitte estacionou o
Packard à beira da rodovia, longe de olhares indiscretos, e
abriu a mala, escolhendo um passaporte e uma carteira de
identidade em nome de Irina Biluka. O retrato era o seu. Ela
esfregou o rosto com uma toalha embebida em álcool,
limpando os restos da maquilagem que a tornava parecida
com Jane Finda, e voltou a exibir as suas feições bonitas e
angelicais. Em seguida, abriu a pasta castanha e tirou para
fora todos os documentos que ela continha.
Eram, realmente, o “Diário”, os apontamentos e as
equações algébricas feitas pelo professor Khatamansky.
Despiu as roupas, espalhou os papéis pelo corpo, colados à
pele, e vestiu uma malha elástica, sob as calças e a túnica
azuis. Assim, recheada com as fórmulas secretas, sentia-se
mais segura. Voltou a pôr a pasta castanha na mala, depois
de enchê-la com folhas de jornal, e continuou a marcha,
pisando o acelerador do Packard. Atravessou os subúrbios
de Moscou e seguiu para o aeroporto Cherernetievo. Eram
três e meia da madrugada. Freou em frente ao imponente
edifício envidraçado e saltou, com a mala na mão. Um
grupo de senhoras de meia-idade, vestidas modestamente e
calçando botas de borracha, esfregava o chão ladrilhado da
sala de espera, despejando baldes de água nas pernas dos
passageiros em trânsito. No balcão da Aeroflot, uma
recepcionista sorridente informou-a de que não havia mais
passagens para a Turquia. Um mapa da União Soviética
estava pendurado sobre o balcão; Brigitte olhou
pensativamente para ele e acabou por se decidir:
— Posso obter um bilhete para Taschkent, na fronteira
da China?
A garota da Aeroflot arregalou os olhos.
— Oh, não! Não ternos uma linha regular para essa
cidade! Não há passageiros. Só os nossos aviões de carga é
que servem o Kirguistão, por causa da troca de mercadorias.
— Eu quero, justamente, enviar mercadorias para lá.
Mas gostaria que um nosso representante seguisse com o
material.
— Você já tem as guias de embarque?
— Sim. Está tudo providenciado.
— Isso pode-se arranjar. Eu lhe venderei a passagem no
jato de carga e você poderá embarcar o seu representante. O
próximo avião para Taschkent parte amanhã, às três horas
da tarde.
— E chega...
— Às dez da noite. O embarque será na pista vermelha,
Plataforma B, do outro lado do aeroporto. Mostre-me o seu
cartão de identidade, camarada.
Brigitte obedeceu e esperou que a funcionária
preenchesse o talão da passagem. Outros dois empregados
da empresa tiveram que ser incomodados, mas, às cinco e
meia da manhã, a jovem repórter estava de posse do bilhete.
Pagou, agradeceu a amabilidade de todos, e saiu do
aeroporto, na direção do Packard, que deixara no
estacionamento. Havia dois homens suspeitos, lendo duas
edições do “Pravda”, perto do carro preto. Brigitte mudou
de rumo, passou ao largo do Packard e correu atrás de um
táxi que passava no momento. Os dois homens dobraram os
jornais, meteram-nos no bolso do sobretudo e correram
atrás dela. A garota entrou no táxi, fechou a portinhola e
bateu no ombro do chofer.
— Depressa! Serviço Secreto! Para a Embaixada dos
Estados Unidos!
O chofer vacilou. E só pôs o carro em movimento
quando viu a pequena pistola Baby encostada ao seu
ouvido. O táxi arrancou, um segundo antes de ser
interceptado pelos dois agentes do camarada Antoniev.
— Que espécie de Serviço Secreto? — perguntou o
chofer, por cima do ombro.
— NKVD! Trabalho na embaixada dos nossos inimigos!
Aqueles são dois agentes da CIA! Depressa, por favor,
camarada!
O motorista afastou a pistolinha do ouvido e pisou fundo
no pedal do acelerador. Atravessaram as ruas vazias do
centro da cidade e foram parar em frente ao edifício da
Embaixada Americana. Brigitte saltou, pagou a corrida,
com uma das notas fornecidas pelo camarada Antoniev, e
subiu a escadaria. Outro carro parou, ali perto, e começou a
soltar estampidos pelo cano de descarga. Ao mesmo tempo,
balas de pistola assobiavam aos ouvidos de Brigitte. Ela se
agachou e rastejou até à porta principal da embaixada. Uma
sentinela, armada com um fuzil, surgiu por trás de uma
pilastra.
— Sou Brigitte Montfort — anunciou a garota. —
Trabalho para o FBI! E preciso falar com o embaixador!
Assunto da maior importância! Caso de vida ou morte!
O carro que a perseguira tinha desaparecido e não se
ouvia mais nenhuma detonação. Mas a sentinela percebera
tudo.
— Sua Excelência o Sr. Embaixador, está recolhido aos
seus aposentos. Você terá que esperar no hall da
Chancelaria. Mostre-me os seus documentos, menina. São
os russos que estão atrás de você?
— Sim e não. São os agentes do camarada Antoniev. Ele
não trabalha apenas para o KGB, entende? Resolveu abrir a
sua própria filial.
O soldado examinou o cartão, verdadeiro, que ela lhe
mostrava. Depois, devolveu-o e resmungou:
— Não conheço nem quero conhecer o camarada
Antoniev! Estou farto de Moscou! Não vejo a hora de voltar
para Chicago e assistir uma boa partida de baseball! Certo,
menina. Toque a campainha, porque os portões ainda estão
fechados.
Um americano tranqüilo, pálido, de grandes olheiras,
atendeu ao toque da campainha e fez a visitante entrar e
sentar-se numa poltrona forrada de couro. O hall era
espaçoso, cercado de espelhos facetados. Conversaram
alguns minutos e, depois, o rapaz — que era o segundo
secretário — pediu licença e retirou-se. Brigitte ficou
sozinha, com a mala no colo, numa atitude de refugiada de
guerra. Passou-se uma hora e o rapaz pálido voltou, com a
mesma tranqüilidade.
— Informei-me a seu respeito, com meus contatos no
Kremlin. Você está sendo procurada pela polícia, como
assassina de um compatriota, o professor Patrick White.
— Meu problema, no momento, é escapar da embaixada.
— Tratando-se de um assassínio puro e simples —
replicou o rapaz, com voz severa — não podemos protegê-
la. Não temos base para alegar implicações políticas. Será
muito difícil provar que você não matou o seu amigo, para
roubar. Sugiro que não se apresente ao nosso embaixador,
pois ele pode não ser tão compreensivo como eu... Trate de
fugir daqui, Brigitte. O prédio, a estas horas, já deve estar
cercado pela polícia.
— E pelos homens do camarada Antoniev. Como é que
vou sair daqui?
— E se sair, como é que vai deixar a União Soviética?
— Tenho uma passagem comprada para a fronteira da
China.
— Isso é uma loucura! Você vai escapar do urso para
cair na boca do leão!
— Não me resta outra alternativa. Nem o KGB poderá
imaginar que eu viaje em sentido contrário ao ocidente. E os
chineses não têm nada contra mim.
— Os aeroportos já devem estar vigiados. As
engrenagens da máquina policial socialista são muito bem
lubrificadas.
— É por isso que preciso falar com a Sra. Embaixatriz.
Ela poderá me ceder um de seus vestidos e. .
— Pensei numa coisa melhor — atalhou o rapaz,
suspirando. — Não sei por que, simpatizei com você. Estou
me arriscando a uma séria reprimenda mas... Certo,
Brigitte! Vou-lhe arranjar um san indiano. Minha noiva tem
um san, que usou no último baile a fantasia da embaixada.
Venha, comigo, até o quarto dos fundos, onde ninguém verá
você tirar a roupa.
— Obrigada — retrucou Brigitte, apertando os olhos
azuis. — Prefiro que você traga o san para o hall. Aqui,
estarei mais segura.
— Por favor! — rouquejou ele. — Só quero que você
tire a roupa!
— Não!
O rapaz voltou a suspirar e foi-se embora, para buscar o
traje típico. Passaram-se outros quinze minutos e ele voltou,
com uma trouxa de roupas. Brigitte enrolou os panos
coloridos sobre as calças e a túnica azuis e ficou
transformada numa imponente dama indiana. Também
pendurou duas argolas de metal nas orelhas e cobriu os
cabelos com uma espécie de turbante improvisado.
— E a sua mala? — inquiriu o rapaz.
— Fica sob a sua guarda, amigo. Pode envia-la, depois,
para Nova Iorque, aos cuidados do “Nova Manhã”. Dentro
da mala estão a minha câmara fotográfica e a pasta castanha
que foi roubada ao professor Khatamansky; eu a recuperei,
ontem, das mãos do camarada Antoniev. Essa pasta ficará
melhor no cofre da embaixada. Mas não tem importância, se
ele desaparecer... Como é que você se chama?
— Gregory Litvinogg. Sou filho de russos. Você não
quer, mesmo, ir até meu quarto? Gostaria de lhe mostrar
alguns quadros da minha coleção. Reproduções de Rubens,
Renoir, Modigliani...
— Não, Gregory. Estou com pressa. Ficará para outra
oportunidade.
O rapaz apanhou a mala que ela lhe estendia e suspirou,
outra vez.
E ele foi-se embora, suspirando, com a mala debaixo do
braço e as mãos nos bolsos da calça. Ainda não eram seis
horas da manhã. Às oito, o movimento de visitantes cresceu
na embaixada: Homens e mulheres entravam e saíam
majestosamente. Por volta das dez horas, Brigitte julgou o
momento oportuno. Um casal de visitantes indianos — a
mulher também usava san — preparava-se para deixar o
prédio. A linda repórter levantou-se e abordou o hindu, no
alto das escadas.
— Peço o seu perdão, sahib. Vocês são de Calcutá?
O homem moreno sorriu, mostrando uns dentes muito
brancos e iguais.
— Não. Somos de Nova Dheli, ,Kisne tumen beja?
(Quem mandou você?)
Brigitte continuou a descer a escadaria, ao lado do casal.
Na calçada, dois russos de má catadura olhavam para eles
com interesse.
— Infelizmente — disse Brigitte — não falo indiano.
Sou filha de um negociante inglês de Calcutá. Brevemente,
deixarei Moscou para rever minha pátria. Gosto muito da
índia.
— Nós estamos indo para os Estados Unidos —
informou a mulher. — Mas não conhecemos Calcutá. Você
não tem tipo de quem nasceu na índia. Inglesa, talvez, mas
nunca recebeu na pele o sol de nossa terra. Por que mente
para nós? Jhut mat bolô! (Nunca deve mentir!)
Os dois russos tinham deixado de olhar para eles.
— Talvez tenha havido um equívoco — balbuciou
Brigitte. — Sou, de Calcutá. mas saí de lá muito
pequenina... Não me leve a mal, sahib. Aí está o seu carro;
eu vou-me embora no outro. Salam! Suba ka salam!
Tinham chegado à beira da calçada. O casal de indianos
entrou num pequeno cupê e Brigitte correu para um táxi,
estacionado atrás dele. Entrou e fechou a portinhola.
— Para qualquer restaurante chinês que você conheça,
chofer! Num bairro bem modesto!
O motorista olhou, curioso, pelo espelhinho retrovisor,
mas não fez comentários. Afastaram-se da Embaixada
Americana e seguiram, na corrente disciplinada do tráfego.
Atravessaram metade de Moscou, sem serem seguidos. As
ruas foram ficando desertas e sujas. Afinal, o táxi foi parar
em frente ao restaurante “Hong-Kong’, no bairro de São
Basílio. Brigitte pagou a corrida e saltou, entrando
diretamente no restaurante. Deu uma volta por entre as
mesas baixas como se procurasse alguém e voltou a sair,
atravessando a rua. Havia outro restaurante russo em frente.
Especialidade da casa: goulache. Brigitte entrou, sentou-se
a uma mesinha, perto da porta de vaivém, e pediu o prato do
dia. Através da porta cada vez que alguém a abria para
passar vigiava o “Hong-Kong”. Meia hora depois, viu dois
russos, altos e fortes, saltarem de um carro preto e
invadirem o restaurante chinês. Não se enganara em suas
previsões: o chofer do táxi tinha voltado à embaixada e
“dado o serviço”...
Passou-se outra meia hora. Brigitte acabou de comer o
goulache, bebeu uma taça de vodca e pagou a despesa. Os
dois agentes do camarada Antoniev — ou do KGB? — já
tinham saído do “Hong-Kong” e entrado no carro preto, que
se afastara vagarosamente. A garota desceu para a calçada e
caminhou na direção oposta, atrapalhada com as saias
esvoaçantes do san. Na esquina, havia um quiosque, de
jornais e revistas; comprou um guia automobilístico da
União Soviética em russo e inglês, um mapa dos Belos
Caminhos da China Popular escrito em chinês e russo, e
uma revista francesa com data do mês anterior. Depois,
continuou a andar, apressadamente, até entrar numa loja de
malas, onde adquiriu uma valise de pelica. Pouco adiante
ficava a entrada imponente de uma estação do metrô. A
garota desceu a escadaria e comprou uma passagem para o
outro lado da cidade. Atravessou a borboleta, entrou num
dos luxuosos carros do metrô e deixou-se ficar sentada a um
canto, lendo o “Paris-Match”. Viajou para cima e para
baixo, até consultar o relógio de pulso e constatar que já
passava das duas horas. Então, saltou, na primeira estação,
apanhou um táxi e mandou rodar para o aeroporto
Cheremetievo. Pelo caminho, despiu o san e meteu-o na
valise recentemente comprada, onde também enfiou o
dinheiro e os documentos de que necessitaria em sua fuga.
Ao saltar, diante do prédio do aeroporto, divertiu-se com a
expressão de pasmo do chofer, por vê-la transformada numa
moscovita vulgar. Ela apenas sorriu encantadoramente, e
foi-se embora, sem esperar pelo troco da nota de dez rublos.
Eram três horas em ponto. Ela sabia que, na Rússia, não há
pressa.
Não teve dificuldades em encontrar a pista vermelha —
Plataforma B — e o jato de carga da Aeroflot à sua espera.
Ninguém estranhou o seu embarque. Dez minutos depois,
estava no ar, dizendo adeus a Mascou.
“Curit Nielzia” — dizia um letreiro vermelho — e ela
apagou o cigarro, para acendê-lo cinco minutos depois,
quando o letreiro desapareceu. O avião atravessou quase
metade da União Soviética, fazendo apenas duas rápidas
escalas em Kuizyshev e Aralsk — à beira do Mar de Aral
—, e acabou descendo no pequeno aeroporto de Gosawa, na
cidadezinha de Taschkent. Brigitte saltou, com a valise
debaixo do braço, e saiu da pista de aterrissagem sem ser
molestada. Uma vez na rua, folheou o guia automobilístico
da União Soviética e procurou se orientar. A rodovia para a
fronteira da China não passava de uma estrada secundária
do Kirguistão, que atravessava as vilas de Angrén,
Iamangán e Dzhala-Abad. Brigitte percorreu diversas ruas
tortuosas de Taschkent entre tártaros de longos bigodes
caídos até encontrar uma casa de câmbio e uma oficina de
automóveis. Trocou mil rublos por outros tantos yuans e
entrou na oficina, perguntando onde poderia comprar um
automóvel. O dono da casa — um velho simpático, com
cara de bebê — custou a entender o russo da garota, mas
acabou oferecendo-lhe um jipe Volga, com capota de aço,
pelo preço de dois mil e quinhentos rublos. Depois dessa
transação e de comprar sessenta litros de gasolina, a linda
repórter só podia contar com os dois mil yuans que acabara
de trocar na casa de câmbio.
Já era noite fechada. Ela procurou pousada numa
pequena hospedaria próxima do aeroporto, onde dormiu em
paz. Na manhã seguinte, encheu o jipe de garrafas de água
mineral e frangos assados e partiu para a sua grande
excursão rodoviária. Precisava chegar ao Camboja, de
qualquer maneira, sem ser apanhada pelos agentes do
camarada Antoniev — e nada mais seguro do que atravessar
a China.
O jipe portou-se muito bem, devorando a estrada a cem
quilômetros por hora. Atravessou várias localidades
adormecidas ao sol e, à uma hora da tarde, tinha percorrido
os 450 quilômetros que separavam Taschkent da fronteira
sino-soviética. Parou o carrinho na beira da estrada, num
vale cercado por altas montanhas, pouco antes da barreira
guardada por um pelotão de soldados do Exército Popular
Chinês e estudou a situação, enquanto devorava um frango
assado, com gosto de cadáver. Era impossível cruzar a
fronteira com o passaporte de Irina Biluka, pois o
documento não tinha a “visa” da Embaixada da China. E
seu cartão de identidade, em nome de Brigitte Changlah,
embora fosse válido em território chinês, também não lhe
permitia cruzar a fronteira. Tinha que lançar mão de um
método original, adequado às circunstâncias.
Acabou de almoçar, descansou durante três horas e,
depois, manobrou o jipe para fora da estrada, seguindo ao
longo e ao largo da cerca de arame farpado que separava o
império de Krouchev do império de Mao Tsé-tung. Logo
adiante, viu um trecho em que a cerca se interrompia,
substituída por uma armação de tábuas. Havia duas
sentinelas chinesas do outro lado do tabique, sentadas no
chão, com os fuzis nas costas. Aparentemente, estavam
muito entretidas, jogando pedrinhas e gritando
monossílabos. Brigtte aproximou-se, em alta velocidade,
agachou-se no assento e atirou o jipe contra o monte de
madeiras podres. No primeiro momento, os dois guardas
ficaram imóveis, gelados pelo espanto, como se nunca
tivessem visto um automóvel; depois, quando tiraram os
fuzis das costas, o carrinho já tinha varado o obstáculo e
corria, aos solavancos, por um atalho chinês. Como não
possuíam nenhum veículo motorizado, os soldados da
fronteira coçaram a cabeça e voltaram a sentar-se no chão,
jogando pedrinhas e gritando monossílabos.
Depois de percorrer cinqüenta quilômetros do atalho
entre árvores copadas. cheias de flores brancas e azuis, a
fugitiva enviesou o jipe para a estrada real, que ia dar em
Kashgar. Esta cidadezinha chinesa ficava apenas a 150
quilômetros da fronteira. O jipe voltou a portar-se bem e
cobriu essa distância cm menos de duas horas. Às seis e
meia da tarde, Brigitte entrou vitoriosamente em Kashgai e
deixou o jipe numa viela escura, encoberto por um tapume
onde se viam alguns tatsibacs falando da saúde de Mao.
Saltou, com a valise na mão, e procurou uma hospedaria
modesta, cheia de chineses mal-encarados e silenciosos,
onde talvez não lhe fizessem muitas perguntas. O dono da
casa, porém, exigiu-lhe os documentos e ela teve que exibir
o seu cartão de identidade, com o nome de Brigitte
Changlah. O homem não criou dificuldades, quando viu sua
carteira cheia de yuans, mas aconselhou-a a comprar um
livro vermelho de Mao. Foi o que a garota fez,
humildemente, agradecendo a sugestão. Em seguida, pediu
ao dono da casa que lhe comprasse, também, uma passagem
de avião para Chungking, onde moravam seus pais.
— Há uma pequena revolta em Chungking — informou
o chinês. — Traidores revisionistas, partidários de Liu-
Chao-chi, tentam desmoralizar o nome de nosso pai Mao!
Mas é possível que ainda haja passagens aéreas para
Chungking. Tudo depende do preço. Em tempo de guerra,
as passagens são mais caras.
Brigitte deu-lhe mil e quinhentos yuans e o homenzinho
ficou encantado. Nessa noite, mesmo, a linda excursionista
recebeu a passagem em nome de Brigitte Changlah e pôde
dormir sossegada. O avião para Chungking devia partir, às
oito horas da manhã, do pequeno aeroporto local, que se
chamava Bub. Às sete e meia, Brigitte apareceu na pista,
verificando que só teria meia dúzia de negociantes chineses
como companheiros de viagem. Entre eles não havia
nenhum militar. Na hora do embarque, um membro da
Hungweiping exigiu o cartão de identidade de cada
passageiro, pedindo-lhes que recitassem alguns provérbios
de Mao. Todos obedeceram, inclusive Brigitte, e ela pôde
subir para bordo, saracoteando entre as mãos bobas dos
negociantes.
O pequeno avião da carreira decolou meio de banda,
mas logo se endireitou e varou os céus, durante oito longas
horas, até pousar aos pinotes. no aeroporto de Mei-kuang,
em Chungking. Eram quatro e meia da tarde de sábado, 26
de março. Brigitte saiu do aeroporto e viu as ruas da cidade
desertas. Um tanque russo passou por ela, exibindo cartazes
com o retrato de Mao, e um soldado de boné vermelho na
torre do carro de assalto acenou para ela.
— Viva Mao! — gritou ele, em chinês.
— Viva nós! — respondeu Brigitte, sacudindo a valise e
o livro vermelho.
Ouviu-se um tiro e sua valise ficou com um buraco de
bala. Isso tirou-lhe toda a vontade de passear pelas ruas de
Chungking.

SEIS
As Armas de Uma Mulher Bonita

O tiro que atingira a valise, fora disparado pelo fuzil de


um soldado embriagado, que marchava atrás do tanque.
Brigitte recuou precipitadamente e procurou refúgio num
portal. Alguns minutos depois, voltou a sair para a rua
deserta e deu uma volta, rente às casas, à procura de uma
hospedaria. Não tardou a encontrar uma casa de cômodos
melhorada, com uma tabuleta na porta, escrita com
caracteres chineses. Como havia almoçado a bordo do
avião, a bela turista não tinha pressa; entrou vagarosamente
numa sala ampla, sem mobília, e enfrentou um balcão de
tela, atrás do qual se via um rapazinho chinês, de óculos e
barrete vermelho. Também havia, ali, dois soldados do
exército popular, encostados ao balcão, fazendo perguntas
ao rapazinho. Brigitte recuou alguns passos e tentou fazer
hora, à espera de que os inquisidores se retirassem: mas
estes, depois que a viram, deram demonstrações de que iam
ficar ali o resto da vida. Afinal, a repórter respirou fundo e
dirigiu-se resolutamente para o balcão. O rapazinho do
barrete vermelho não falava inglês, nem francês, nem russo.
— Perdoe-me — acudiu um dos soldados. — Eu falo
inglês. Quem é você?
Brigitte exibiu o seu cartão de identidade, explicando:
— Chamo-me Brigitte Changlah. Meus pais são de
Kunming. É para lá que estou indo.
— Falando apenas inglês? — estranhou o soldado.
— Sim. Fui criada em Hong-Kong.
— E não fala a língua de seus pais?
— Em Hong-Kong fala-se pouco chinês ...
— Você veio do sul? — insistiu o militar.
— Não. Do norte.
— Da União Soviética, provavelmente?
— Não. De Kashgar, onde moram meus veneráveis
avós.
— Podemos verificar isso. Queira ter o incômodo de nos
acompanhar.
— O senhor é muito amável.
Súbito, o segundo soldado arrancou-lhe a valise das
mãos e deu-lhe uma bofetada. Desprevenida, a garota
rodopiou e caiu de quatro.
— Não faça isso — censurou o primeiro soldado,
falando em chinês. — É melhor levá-la para o quartel de
Tingtouyen, onde estão os nossos. Ela talvez seja uma espiã
soviética, interessada em provocar desordens nesta
província.
— É melhor levá-la para a cadeia.
Brigitte não entendia nada, mas não era preciso
entender; já sabia que estava detida e teria muitas
dificuldades com os soldados de Mao, se eles a apanhassem
em cima de uma esteira.
Os olhos do primeiro soldado, cada vez que se voltavam
para ela, sugeriam revoltantes cenas eróticas.
— Certo — murmurou a linda repórter, apalpando a face
avermelhada pelo bofetão. — Confesso tudo! Sou uma
agente da CIA!
— CIA? — estranhou o segundo soldado, pondo a valise
debaixo do braço.
— Agência de espionagem americana — explicou o
primeiro militar. — Vamos levá-la ao capitão. Há agentes
do Serviço Secreto no quartel de Tingtouyen. Eu me
encarregarei desta boneca! — encarou Brigitte e sua voz
tornou-se dura: — Está armada, espiã da CIA?
— Não. Só uso as armas que Deus me deu.
— Deus não existe! — rugiu o segundo soldado. — Os
falsos deuses da Velha China já morreram há muito tempo!
Vamos para a cadeia!
— Vamos — suspirou Brigitte, enquanto pensava num
meio de se livrar dos dois enxeridos.
Os soldados ajudaram-na a pôr-se de pé e apalparam-na
verificando, satisfeitos, a elasticidade de suas nádegas mas
não notaram o chumaço da pistolinha “Baby”, oculta na sua
coxa direita. Aquela pistola teria que fazer um milagre.
Saíram da hospedaria e marcharam pela calçada deserta,
rente à parede. Ao longe,, para os lados do sul, ouvia-se um
tiroteio e uma tremenda algazarra. Quando iam passando
em frente ao tapume onde escondera o jipe, Brigitte já
estava abraçada ao primeiro soldado, permitindo que ele lhe
esfregasse os seios, por cima da grosseira túnica de zuarte.
— Querido — suspirou ela, ao seu ouvido — não me
entregue aos seus camaradas! Antes disso, quero ser sua,
somente sua! Nunca encontrei um homem tão fascinante
como você! Você é másculo, forte, dominador!
O soldado, que era baixo e magrinho, começou a babar-
se todo.
— Onde? — grunhiu, excitado. — Onde é que você
quer...
— Atrás deste tapume. Mas quero você sozinho,
gostosão!
O rapaz acenou e deu uma ordem ao companheiro. O
outro protestou, dizendo que queria também. Por fim,
conformou-se em esperar a sua vez. E ficou na beira da
calçada, apoiado ao fuzil. O primeiro soldado agarrou em
Brigitte e arrastou-a brutalmente para trás do tapume. Num
ápice, Brigitte baixou as calças e apanhou a pistolinha.
— Olhe! — exclamou, apontando para trás. — Um jipe!
Há alguma coisa se mexendo dentro dele!
O soldado voltou-se, sobressaltado, e foi se debruçar
sobre o carrinho de aço. Uma simples pancada na nuca
bastou para fraturar-lhe a base do crânio e atirá-lo de borco
no interior do jipe. Ainda com as calças na mão, Brigitte
assomou à abertura do tapume e chamou o segundo
soldado, movendo graciosamente o dedo indicador.
— Ei! Venha! Agora é a sua vez!
O outro chegou correndo, o fuzil numa das mãos e a
valise na outra, e também recebeu uma bordoada na testa.
Ainda tentou erguer o fuzil, mas outro golpe no alto da
cabeça prostrou-o desacordado. Livre dos dois inimigos,
Brigitte apoderou-se dos fuzis e da valise, recolocou a
pistolinha na coxa, abotoou as calças e subiu para o jipe,
fugindo dali a toda velocidade.
Deu uma volta pelas ruas desertas, na direção do sul, até
sair da cidade. Uma estrada ia dar no Chinsha Kiang, rio
que delimitava a fronteira da província de Yunnan, vizinha
do Laos. O jipe percorreu a estrada rapidamente. À beira do
rio, em frente a uma casa flutuante, via-se uma bicicleta,
encostada a uma árvore. Brigitte freou e bateu palmas. Um
rapazinho surgiu à porta da residência lacustre e perguntou
qualquer coisa, em chinês. Os dois tiveram alguma
dificuldade em se entender, mas, por fim, a audaciosa
repórter saiu dali sem o jipe e montada na bicicleta, com um
fuzil nas costas e quinhentos yuans no bolso. Pedalou pela
beira do rio, passando por diversos juncos de pesca,
ancorados nos cais de bambus, mas nenhum pescador sabia
falar inglês ou francês. Começava a ficar desesperada
quando encontrou um velho careca, de pele apergaminhada,
que conhecia alguma coisa de seu idioma.
— Sim, miss. Por quinhentos yuans, eu levo a senhora,
pelo yang além, até Haing. Depois, é mais fácil, pela bela
estrada de rodagem, a senhora chegar em Kunming.
Brigitte consultou o mapa dos belos caminhos da China
e concordou. Aquele rio era providencial, pois ligava-se ao
Chehung Kiang, que passava perto de Kunming. Enfiou a
bicicleta no junco do pescador e começaram a descer o
Chinsha. O jantar a bordo constou de peixe frito e farinha
de mandioca. Depois da refeição, Brigitte adormeceu, no
fundo do barco, com o fuzil ao alcance da mão. Navegaram
passando a boi’do toda a noite de sábado. Às sete e meia da
manhã de domingo, estavam apenas a cem quilômetros de
Kunming, próximo à fronteira do Vietnã do Norte. Brigitte
pagou os quinhentos yuans prometidos e saltou, com o
fuzil, a valise e a bicicleta. Uma estrada de terra batida
serpenteava pelo meio do mato.
— Siga este bom caminho — aconselhou o velho
pescador — e logo estará na grande cidade. Mas tome
cuidado! Eles estão alistando voluntários para combater no
Vietnã!
— Eles, quem?
— Os comunistas da “Liga de Libertação Nacional”!
São amigos dos Vietcongs! Homens muito desconfiados,
miss! A senhora deve tomar cuidado com eles!
Brigitte agradeceu e montou na bicicleta, pedalando na
direção indicada. Tinha dormido bastante e sentia-se bem
disposta. Mas, depois de pedalar quatro horas seguidas, sob
um sol abrasador, teve que parar e pedir água, numa casinha
perdida na beira da estrada. Foi atendida por uma mulher de
shorts, com o busto nu e um grande chapéu de palha na
cabeça; seus grandes seios murchos pareciam dois funis.
— Viva Mao! — saudou Brigitte.
— Quem é Mao? — respondeu a mulher, em chinês.
E ofereceu-lhe gentilmente o poço. A garota bebeu meio
litro de água salobra, aceitou uma gamela de arroz e voltou
a montar na bicicleta, pedalando mais alguns minutos.
Depois, parou à sombra de uma árvore e descansou quatro
horas seguidas. Eram seis e meia da tarde. O sol declinava.
Quando tentou subir, outra vez, na bicicleta, suas pernas
trêmulas recusaram-se a obedecê-la. Estava exausta. Pesou
os prós e os contras e acabou por voltar à casinha da beira
da estrada, a pé, apoiada à bicicleta. Uma vez ali, bateu
palmas e ofereceu os seus últimos yuans à mulher dos seios
nus, fazendo gestos de que queria dormir. A boa senhora
compreendeu e concordou. Morava sozinha, apenas com um
cachorro. Brigitte passou uma noite excelente, abraçada ao
fuzil mas sem ter necessidade de usá-lo. E ainda ganhou, de
presente, um chapéu de palha igual ao de sua hospedeira.
A segunda-feira amanheceu fresca e ensolarada. Brigitte
agradeceu a amabilidade da mulher e montou, outra vez, na
bicicleta, afastando-se pela estrada. Só depois de pedalar
cinqüenta quilômetros, notou que estava sem a valise.
Felizmente, o cartão de identidade em nome de Brigitte
Changlah continuava no seu bolso. E as fórmulas secretas
do professor Khatamansky continuavam colados à sua pele,
pôr baixo da malha. Na valise havia apenas um san indiano,
furado por uma bala, e um livro vermelho com os
pensamentos de Mao.
Pedalou, heroicamente, pela estrada empoeirada, até
atingir os subúrbios de Kunming. A fronteira do Vietnã não
ficava longe e havia uma boa estrada para Lao Kaí. Antes
de entrar em Kunming, Brigitte pôs o fuzil nas costas e
baixou o chapéu de palha sobre o rosto queimado de sol e
sujo de poeira.
No centro da cidadezinha reunia-se uma multidão de
lavradores dando vivas a Mao e HoChi-Minh. Soldados
regulares chineses escolhiam, entre os camponeses da
região, aqueles que mais lhes interessavam. Ao verem
Brigitte com o fuzil nas costas e a bicicleta na mão,
aproximaram-se, curiosos, e começaram a fazer-lhe
perguntas. A garota, apavorada, só dizia que sim com a
cabeça. Um sargento cabeludo, ostentando uma cicatriz na
face, apalpou os braços da repórter e grunhiu, satisfeito. Ela
foi empurrada. por entre os outros assistentes, e metida num
caminhão fechado com lonas onde já se encontravam cerca
de cinqüenta chineses pouco asseados. O fuzil e a bicicleta
foram atirados sobre o seu colo. O cheiro de suor era
insuportável. No meio do caminhão havia um longo
varapau, onde os passageiros ficavam pendurados.
Cinqüenta homens e mulheres pacientes, amontoados como
sardinhas em lata. Brigitte ficou muito quietinha, no seu
canto.
— Quem é você? — perguntou uma voz, em inglês, no
escuro do caminhão.
Um camponês invisível tinha furado caminho até junto
dela, Brigitte sentiu um arrepio e não respondeu. O homem
devia estar de cócoras, na sua frente.
— Quem é você? — insistiu a voz, que parecia pertencer
a um chinês educado em Oxford.
— Pode responder, porque ninguém nos entende. Sou
filho de americanos, também. Você não precisa ter medo,
garota.
O caminhão pôs-se em marcha, sacolejando.
— Para onde estamos indo? — perguntou Brigitte, num
fio de voz.
— Para Hanoi, capital do Vietnã do Norte. Este rebanho
pertence à “Liga de Libertação Nacional” do Vietnã, que
tem ramificações no Laos e no Camboja. Dentro desta jaula,
atravessaremos tranqüilamente a fronteira. Você também
quer ir para o Vietnã, garota?
— Quem é você?
— Responda primeiro. Sou um espião mais antigo.
Então, Brigitte respirou aliviada. E narrou a sua odisséia
ao homem invisível. Ele ouviu tudo em silêncio e deu uma
risada.
— Imagine só! Uma americana perdida na China! Eu
sou Joe Maminh, de Hanoi. Minha missão é ir e vir, através
da fronteira. Informo os soldados americanos sobre o
movimento das tropas comunistas, nestas paragens. Você
teve sorte em me encontrar, garota! Você não fala uma
palavra de chinês, não é? Não tem importância: eu falarei
por você.
— Preciso chegar ao Camboja — gemeu Brigitte. —
Preciso chegar lá antes do camarada Antoniev! Se ele
encontrar as jazidas do Átomo Z, tudo estará perdido! Os
russos fabricarão a Bomba Z e...
— Não chore, garota. Você chegará primeiro.
A longa viagem do “pau-de-arara” prosseguiu. Seus
ocupantes dormiram em pé, amontoados como porcos.
Houve uma parada em Lao Kai logo depois de atravessada a
fronteira e, aí reabasteceram o tanque, mas não apareceu
nenhum soldado para lhes pedir os passaportes. O caminhão
reiniciou a marcha pela estrada de rodagem que levava a
Hanoi, cruzando o Rio Vermelho e passando por Fu Tho.
Chegaram à capital vietnamita algumas horas depois. O
grupo de guerrilheiros saltou. Só então Brigitte pôde ver o
rosto de seu companheiro. E constatou, entusiasmada, que o
rapaz era alto e bonitão, embora tivesse feições orientais.
Foram comer juntos, num acampamento improvisado pela
“Liga de Libertação Nacional”.
— Você é casado, Joe? — quis saber Brigitte, quando já
estavam de barriga cheia.
O rapaz mostrou os dentes brancos, no rosto moreno e
simpático.
— Não, garota. Não era, pelo menos. Agora, você terá
que fingir ser minha mulher. Só assim enganaremos esses
comunistas.
Brigitte agarrou na mão dele e apertou-a
eloqüentemente.
— Será um prazer fingir de sua mulher, Joe! Você me
agrada! É muito parecido com um amigo meu, chamado
Frank Minello. Fico feliz só de pensar em Frank! Ele é um
verdadeiro touro!
— Ótimo! Continue feliz, porque eu gosto de mulheres
assim.
As narinas de Brigitte se alargaram e sua respiração
tornou-se ofegante.
— Onde dormiremos esta noite? Estou morrendo de
sono!
— Vamos ficar neste acampamento. Vou conseguir uma
tenda só para nós dois. Tá?
— Consiga, também, água e sabão. Amanhã você me
deixará, não é? Terá que voltar para a China. E eu vou para
o Camboja! Não posso deixar de ir para o Camboja!
O rapaz beijou-a nos lábios, apertando-a contra seu peito
musculoso.
— Tudo depende do que acontecer esta noite, garota.
Talvez eu me decida a descer com você. Tudo depende do
seu procedimento...
Passaram a noite numa barraca isolada e, na manhã
seguinte, Joe Maminh acordou muito nervoso. Correu ao
QG dos guerrilheiros e discutiu longamente com um oficial
mal-encarado. Uma hora depois, voltou à barraca,
desanimado.
— Eles exigem que sigamos com a tropa, para combater
no Vietnã do Sul. Isso quer dizer que podemos seguir, com
os guerrilheiros, até Pakse, no Laos. Também é um caminho
para o Camboja. Em Pakse, deixaremos de ser marido e
mulher. Mas, até lá, você não sairá dos meus braços! Puxa,
garota! Nunca tive uma mulher tão perfeita como você!
— As chinesas do interior — sentenciou Brigitte
alisando-lhe as olheiras — não conhecem os refinamentos
do amor francês...
Às dez horas da manhã, o casal de espiões embarcou
noutro caminhão blindado e desceu a “Estrada de Ho-Chi-
Minh”, que seguia pelo outro lado da fronteira do Laos. Até
Pakse eram setecentos quilômetros de estrada árida e dura,
aberta no meio da floresta tropical. O caminhão cheio de
guerrilheiros armados atravessou a fronteira, em Nape, e
rodou durante sete horas ininterruptas. Por duas vezes,
aviões americanos e sul-vietnamitas circularam sobre o
veículo solitário, mas não atiraram bombas. As lonas
camuflavam perfeitamente os obuses e morteiros,
escondidos dentro dele. Mais cinco horas de viagem, dentro
da noite quente, e atingiram Pakse. Daí, o caminhão se
dirigia para Altopeu e, depois, para Kontum, no Vietnã do
Sul. Joe Maminh esperou a ordem de descanso e arrastou
Brigitte para o meio do mato. Ali deviam se separar, pois o
rapaz tinha que seguir para o leste, a fim de se reunir aos
Vietcongs e informar Saigon de seus movimentos.
Despediram-se ardentemente, prometendo encontrarem-
se em breve, quando a garota voltasse a Hanoi, e, em
seguida, Brigitte voltou a vestir a malha recheada de
documentos e a roupa de cidadã chinesa. Um último beijo,
um último abraço — e Joe Maminh ficou chorando, sentado
na beira do caminho; enquanto a moreninha se afastava,
arrastando as pernas trôpegas. Tinha sido um amor muito
violento.
Ainda lhe restava um anel de platina e brilhantes. Ela
desceu até à beira do rio Mekong e procurou diversos
proprietários de juncos e sampanas, até encontrar um jovem
cambojano que falava mais ou menos o francês.
— Preciso descer o rio até o Camboja — disse Brigitte.
— Não tenho dinheiro, mas este anel vale mais de
quinhentos dólares. Quer fazer negócio?
O rapaz examinou, cheirou e mordeu o anel, acabando
por acenar afirmativamente. Sua voz era aguda e ciciosa:
— Oui, mademoiselle. Entre. Posso levá-la até Phnom
Penh, em troca da pequenina jóia. Meu pai foi guia do
governo, nas ruínas de Angkor.
— Melhor ainda. Em vez de me levar até a capital,
prefiro que me leve ao Vale Proibido de Khi-Khent.
Conhece o lugar?
— Como as palmas das minhas mãos. Fica além de Siem
Reap e das ruínas de Angkor-Thon. Dizem que apareceram
novos monumentos por Já. Mas o meu barco só nos levará
até a floresta; o resto da viagem, para Rovieng e Siem Reap,
terá que ser feito a pé. Eu tenho boas pernas. E você, nem se
fala.
— Você topa, simpático?
O rapaz era feio como um porco-da-índia.
— Topo, desde que encontre um lugar onde possa
esconder o meu barco. Oui, mademoiselle. Eu a levarei até
Khi-Khent. em troca deste anel!
Aliviada, Brigitte pulou para a lancha e deitou-se no
fundo, com o chapéu de palha sobre o rosto. Ainda não
tinha dormido meia hora quando sentiu que um corpo nu e
musculoso se deitava em cima dela. Abriu os olhos,
espantada, e afastou o chapéu. A lancha descia o rio, mas
não havia ninguém na cana do leme.
— Este anel — disse a voz ciciosa do pescador — e
você! Você também é uma jóia, mademoiselle!
— Está bem — suspirou Brigitte, conformada. — Mas
não se afobe! Não quero que você me fure os papéis do
professor Khatarnansky!
O barco continuou a descer o rio, enquanto os dois
galopavam em cima dele. Passaram o dia inteiro na viagem.
Ao cair da noite, o jovem pescador entusiasmado ocultou a
lancha num cais natural do Mekong e saltou, com sua
companheira.
— Agora — anunciou ele, enfiando algumas provisões
numa trouxa — vamos a pé! Atravessaremos a floresta, para
o oeste, e levaremos um dia no trajeto. Rovieng fica a cem
quilômetros daqui e Siem Rcap, a duzentos e cinqüenta.
Convém dormir, esta noite, ainda a bordo. Minha esteira é
mais macia do que as folhas da floresta.
Passaram a noite no barquinho, mas dormiram muito
pouco. O rapaz parecia insaciável! Ao raiar do sol, voltaram
a vestir suas roupas rústicas, agarraram na trouxa com as
provisões e enfrentaram a selva quente e úmida, cheia de
mosquitos. Foram quinze horas de marcha forçada, com um
descanso de seis horas na cidadezinha de Rovieng. Ao cair
da noite de quarta-feíra, atingiram Siem Reap. Aí, dormiram
numa hospedaria, exaustos, e seguiram viagem na direção
do lago Tonlé-Sap.
Era meio-dia em ponto quando alugaram um pequeno
junco de pesca e o pescador os levou à reserva arqueológica
de Khi-Khcnt.
— Vocês ouviram o estrondo? — perguntou o dono do
barco, espetando a longa vara no fundo das águas. —
Houve outro terremoto por aqui. Dizem que o governo vai
acudir as vítimas.
Brigitte estremeceu, mas não disse nada. Atravessaram o
charco e deram voltas e mais voltas, sem encontrar a ilhota
onde ficava o acampamento da doutora Madalena de Da
Verne. As águas serenas do lago cobriam tudo como uma
mortalha líquida.
— Engraçado — comentou o pescador. — Ainda na
semana passada, havia uma ilhota por aqui! Mas, agora,
desapareceu! Será que foi o terremoto?
Brigitte sentiu outro arrepio. Desagradável surpresa! A
reserva arqueológica de Khi-Khent e o acampamento da
arqueóloga francesa tinham subido para o céu! Não havia
nem sinais deles, no grande lago Tonlé!
SETE
Missão Cumprida

— Não é possível! — exclamou Brigitte. — Ainda na


semana passada estive aqui, na ilha, e vi os monumentos
dos Khmer!
— Foi o que eu disse — tornou o pescador.
— Na semana passada, a ilhota ainda existia. Mas,
agora, como estão vendo, não existe mais nada! Mais nada,
a não ser as águas do Tonlé-Sap! E as águas cresceram, e
continuam crescendo, devido às primeiras chuvas que
caíram sobre o Mekong. Daqui a pouco, o charco vai ficar
cheio e ninguém mais poderá pescar com facilidade. Estão
chegando as chuvas de abril.
O jovem pescador olhava de esguelha para Brigitte,
penalizado com a sua aflição.
— Elas eram suas amigas? — perguntou.
— Quem?
— As pessoas que moravam na ilhota.
— Sim, eram minhas amigas. A doutora Da Verne,
descobridora das novas ruínas de Angkor-Naga, não
merecia este fim! Era uma senhora muito distinta e... e não
merecia este fim!
— Deve ter-se afogado. Certamente a tal ilhota afundou.
— Pelo contrário — disse Brigitte, sacudindo a cabeça.
— A ilhota subiu!
— Sim, claro. Era isso que eu queria dizer.
— Subiu para onde? — perguntou o pescador mais
velho.
Brigitte encarou-o.
— Para o sol! E levou todos aqueles que estavam em
cima dela! Zummmm... para as alturas! Sim, foi o que
aconteceu!
— Claro — volveu o outro rapaz, impressionado. —
Zummmm... para as alturas! Mas, agora, você deve procurar
um médico da cabeça, em Siem Reap. Eles têm bons
médicos, no hospital. O excesso de sol deve ter-lhe feito
mal.
E procurava acalmá-la, segurando-a por um braço. A
garota soltou-se, com um repelão.
— Tire as mãos de cima de mim! Vocês não sabem de
nada! A ilhota subiu, sim! As pedras leves e porosas
levantaram-na, quando houve uma grande fissão do Átomo
Z! Resta saber se ainda existe esse átomo no fundo do lago!
Tem que existir! Vocês me entendem? Tem que existir! Eu
atravessei a China de ponta a ponta, para apanhá-lo e levá-
lo para os Estados Unidos!
Os dois cambojanos trocaram um olhar de entendimento.
— Claro — disse o rapaz, com voz persuasiva. — Têm
que existir muitos átomos, no fundo do lago... Mas, agora,
você vem conosco. Ninguém lhe quer fazer mal. Somos
seus amigos e...
— Não estou doida! — gritou Brigitte. — A ilhota subiu
para o sol! E eu perdi o Átomo Z! Depois de tanto
sacrifício, eu o perdi! Maldito seja o Átomo Z!
— Maldito seja — concordou o rapaz. —Agora, vamos,
quietinha, para o hospital de Siem Reap! Os missionários
franceses cuidarão de você. Você necessita de repouso.
Mas a garota tinha arregalado os olhos, varada por outro
pensamento.
— A porta! — exclamou. — Ainda resta a porta de
pedra dos Khmer!
— Sem dúvida — suspirou o rapaz. — Resta a porta de
pedra Vamos procurar a porta, no hospital de Siem Reap.
Lá deve haver muitas portas.
Mas Brigitte tinha-se sentado num banco do barquinho e
apontava para longe, para o meio do grande lago, que
cintilava ao sol.
— Depressa! Vamos voltar para a margem leste! Tenho
que encontrar a porta de pedra e o velho leproso!
— Certamente — disse o pescador mais velho,
apanhando os remos. — Tinha que haver um velho leproso
na história. Não haverá, também, um bicho de sete cabeças?
— Bicho de sete cabeças — rosnou Brigitte — é a
Serpente Naga, símbolo da Ciência Khmer! Ela está no
fundo do lago, se não foi feita de pedras leves. Mas, agora,
preciso encontrar a porta. É a porta que me interessa. A
porta e Buri-Khon.
Os dois homens se entreolharam, outra vez.
— Deixe-me na margem leste — pediu o jovem
pescador. — Para mim, chega! Tenho que voltar e apanhar
o meu barco. Não me interessa encontrar nenhuma porta,
nem nenhum velho leproso! Para mim, chega!
O pescador mais idoso dirigiu o barco para a outra
margem e o rapaz saltou, Correndo para lugar seco.
— Obrigada — gritou-lhe Brigitte, acenando com a
mão. — Você foi muito gentil em me trazer até aqui. Faça
bom proveito do meu anel e sonhe sempre com o meu
corpo... Como é que você se chama?
Mas o outro já não a ouvia; estava correndo
desabaladamente para o meio do mato.
— Coitado — pensou a repórter. — Ele julga que eu
fiquei maluca, por causa do Átomo Z! E só Deus sabe por
que é que eu não fiquei!
O dono do barquinho empurrou-o com os remos e
continuou a navegar, ao longo da costa leste do Tonlé-Sap.
— Está bem assim — aprovou Brigitte. — Continue
descendo para o sul. Quando a porta aparecer, eu lhe direi.
O barco prosseguiu a viagem, sempre à vista da margem
esquerda. Uma hora se passou. O sol parecia cada vez mais
quente. Das florestas circunvizinhas vinha um hálito úmido
e abrasador.
— Então? — inquiriu o pescador, cansado de remar.
Nesse momento, Brigitte viu uma grande aglomeração
de pessoas, na margem leste do lago. Roupas de todas as
cores e feitios. Mas não eram apenas pescadores; entre os
“mirones” havia muitas fardas verdes de soldados do
Exército Nacional do Camboja.
— É ali! — gritou a garota. — Reconheço aquela velha
árvore, na beira da estrada! E ali que está a porta!
O pescador dirigiu o barco para a margem. Brigitte não
esperou que ele encostasse; saltou para dentro d’água e
correu na direção do grupo de espectadores. Para sua
surpresa, metade dos homens eram guerrilheiros
comunistas, outra metade, constituída de soldados do
exército, que os mantinham sob ameaça das armas. Alguns
dos guerrilheiros tinham algemas nos pulsos. E, entre eles,
estava um chinês de óculos de aros de ouro e dentadura
postiça, no qual Brigitte reconheceu o coronel Io Nan-
Kuang.
— Subiu! — estava dizendo o líder dos comunistas do
Camboja. — Afirmo-lhes que o santo homem subiu para o
céu! Depois deste milagre, até eu sinto dúvidas sobre a
validade do materialismo histórico! A porta subiu,
senhores! E essa cratera prova que subiu!
Brigítte olhou para o local onde, antes, estivera a porta
dos Khmer e viu, apenas, um buraco fundo, que começava a
encher-se com a água do lago.
— A porta! Onde está a porta?
— Desapareceu nas alturas — disse o coronel Io. — Eu
vi, senhores! A porta se desintegrou diante dos meus olhos,
assumindo a forma de uma cruz, e o velho leproso subiu
junto com ela! Eu vi, com meus próprios olhos! A porta foi
para o céu, levando o santo homem entre os seus batentes
desconjuntados!
Desesperada, Brigitte correu para o buraco e sondou as
suas margens com os dedos... Nada! Nem sinal de uma
pedra leve e porosa! A terra ainda estava quente, mas não
tinha pedras atômicas. Também não existia, mais, a entrada
da casa subterrânea, onde Buri-Khon fizera a sua moradia.
O declive tinha sido entupido pela terra deslocada, quando a
porta subira para o sol. Não havia, ali, uma única amostra
do Átomo Z!
— Subiu! — repetia o coronel Io. — Desapareceu nas
alturas! E o velho ia rindo e cantando como se estivesse
muito feliz! Eu vi, senhores! Ele ia agarrado às pedras que
voavam, e ria e cantava como se estivesse muito feliz! E eu
vi a porta subir, como uma, grande cruz de pedra, levando o
velho leproso no meio! E tudo desapareceu nas alturas! Foi
um milagre, senhores, mas eu vi!
Um tenente do exército bateu no ombro do prisioneiro e
ordenou-lhe que marchasse. Ia levar todos os guerrilheiros
para Siem Reap, onde os aguardava um tribunal militar. Os
paisanos na maioria, chineses, resmungaram, mas puseram-
se a andar.
— Sua alteza o príncipe Sihanouk — disse o tenente,
com voz severa — não quer badernas no Camboja! Já
bastam os guerrilheiros da “Liga”, insuflados pelos
Vietcongs, que invadiram Bokhan e Bokheo, na província
de Rattanakiri! O Camboja tem que manter a sua
neutralidade no conflito do Vietnã! — seus olhos
amendoados voltaram-se para Brigitte. — E você, quem é?
A repórter identificou-se e pediu notícias do tenente
Hang-Malup. O sargento bateu continência e sua voz
tornou-se amável:
— Já me falaram a seu respeito, miss Montfort. O
tenente Malup está fora de perigo, convalescendo no
hospital., Mas a senhora francesa ficará cega. Ou talvez seja
operada em Paris, onde há mais recursos. De qualquer
maneira, não acredito que chegue a recuperar o juízo.
— O que está dizendo?! — exclamou Brigitte, sentindo
um baque no coração. — A que senhora francesa se refere?
— Como? A senhorita não soube?
— Não. Não sei de nada. Há mais de uma semana que
me afastei daqui, numa tournée turística pela União
Soviética.
— Pois aconteceu o diabo na reserva arqueológica de
Khi-Khent — disse o sargento, suspirando. — Foi na
segunda-feira passada, se não me falha a memória. Houve
um terrível terremoto, na região noroeste do Tonlé-Sap, e a
reserva desapareceu! Tudo foi para o inferno! As únicas
testemunhas vivas são a senhora francesa, mademoiselle
Madalena de Da Verne, e seu guia Hugh Chambang. Todos
os seus companheiros de expedição morreram afogados,
segundo parece. A doutora Da Verne não diz coisa com
coisa e o guia estava bêbado, na manhã em que se deu a
tragédia.
— E a doutora Da Verne está cega?
— Completamente, senhorita. Ficou com a cara toda
escalavrada.
— Meu Deus, que horror! Onde posso encontrá-la?
— No hospital de Siem Reap, senhorita. O guia levou-a,
na segunda-feira à tarde, para a cidade e providenciou o seu
internamento. A pobre senhora perdeu tudo, no terremoto!
Roupas, dinheiro, tudo!
— Depressa! — implorou Brigitte. — Leve-me ao
hospital de Siem Reap! Preciso falar com a doutora Da
Verne!
O sargento anuiu e ofereceu-lhe o seu jipe de campanha.
Havia, também, dois caminhões, na estrada, que deviam
transportar os guerrilheiros aprisionados.
— Quando vocês vieram para aqui — inquiriu Brigitte
ao sargento — não viram dois jipes, estacionados no meio
do caminho?
— Não, senhorita. Quando viemos para aqui, trocando
tiros com esses comunistas, os jipes já tinham sido levados
— o militar sorriu. — Sei a que a senhorita se refere. Esses
carros pertenciam ao pagode de Khi-Khent, no Vale
Proibido, e foram recuperados pelos monges.
Uma hora depois estavam entrando em Siem Reap. O
sargento mandou o chofer dirigir o jipe diretamente para o
hospital. Um prédio baixo, com telhado vermelho,
construído no centro de um jardim de plantas tropicais.
Brígitte agradeceu a atenção dos soldados e saltou, correndo
parra portaria do hospital. Havia, ali, uma irmã de caridade
francesa, que a recebeu com um sorriso meigo sob a grande
touca branca.
— Acalme-se, mademoiselle. A doutora Da Verne está
melhor. Já nos comunicamos com a embaixada francesa, em
Phnom Pehn, e eles vão removê-la para a França. Ela não
sente mais dores e começa a raciocinar com clareza. Mas,
infelizmente, talvez fique cega para o resto de seus dias.
Você a encontrará, passeando pelo parque, na companhia da
irmã Rita de Cássia.
Brigitte atravessou o vestíbulo do hospital e desceu para
o jardim. Diversos doentes passeavam, lentamente, de
camisola branca, tomando sol e conversando. A doutora Da
Verne estava sentada num banco, ouvindo o que lhe dizia
uma freira jovem e simpática. Brigitte aproximou-se e
beijou a mão da freira.
— Perdoe-me, irmã. Posso conversar um momentinho
com a doutora Da Verne?
Ao ouvir a sua voz, a arqueóloga francesa pôs-se de pé,
soltando uma exclamação afogada. Seu rosto estava coberto
por esparadrapos e suas pupilas, sem vida, olhavam
diretamente para a frente. Suas mãos trêmulas procuraram
as da visitante e apertaram-nas com gratidão.
— Brigitte! Graças a Deus! É você, ma chèrie?
— Sim, doutora Da Verne. Sou eu. Por favor, conte-me!
Que aconteceu?
A freira sorria mansamente, caiada e imóvel, sem
coragem para interferir.
— A serpente! — gemeu a arqueóloga. — Naga, a
serpente das sete cabeças! Ela estava no fundo do lago! Ela
sempre esteve ali, à espera da ressurreição! E, naquele dia,
depois que você embarcou para Phnom Pehn, Naga
apareceu na superfície das águas... eu vi as suas cabeças de
pedra, em forma de leque... e soprou o hálito dos infernos
sobre a reserva arqueológica! Então, tudo começou a
tremer, a oscilar... Foi um terremoto, Brigitte! Foi a
vingança de Naga, porque nós invadimos os seus domínios!
E a serpente estava lá, nos olhando com seus olhos de
pedra!
— Provavelmente, as fissões submarinas do Átomo Z
fizeram subir à tona a estátua de Naga, que guardava a
cidade da ciência dos Khmer. Como foi que a senhora
escapou?
— Hugh Chambang me salvou, embora estivesse
bêbado. Quando a ilhota começou a tremer, meu guia me
puxou para a lancha e afastou-se dali, a toda velocidade, em
busca do centro do lago. Não tivemos tempo de salvar mais
ninguém. Vimos as pedras subirem, como uma fantástica
erupção vulcânica, e a reserva voou pelos ares, levando
todos os nossos companheiros! A ilhota subiu, sibilando,
como um foguete! Não escapou ninguém, Brigitte! Nem
Jacques, nem Charles, nem Jean! Ninguém!
— E Jane Finda?
— Ninguém escapou, Brigitte, a não ser eu e Hugh! Jane
Finda era nossa prisioneira, conforme você pediu, e estava
algemada aos pés de um dos monumentos. Ela também
subiu para o céu, agarrada à rocha voadora! Só eu e Hugh
nos salvamos. Mas veja o meu rosto, ma chèrie! Recebi, na
cara, uma chuva de granizo que cortava como uma navalha!
A serpente se vingou, Brigitte! A guarda de pedra da cidade
da ciência não permitiu que eu mostrasse ao mundo as
maravilhas de Angkor-Naga! Foi a serpente, Brigitte! Foi a
serpente!
E a pobre mulher começou a chorar, num ataque de
nervos. A freira abraçou-a carinhosamente e fez sinal a
Brigitte, pedindo-lhe que fosse embora.
Brigitte murmurou uma desculpa, sorriu encabulada para
a freira e fugiu, correndo, do jardim. Atrás de si ainda ouvia
a voz esganiçada da arqueóloga francesa:
— Foi a serpente! Naga se vingou! Foi a serpente que
subiu do fundo do abismo! Foi a serpente! A serpente! A
serpente!
À saída do hospital, Brigitte foi de encontro a um
homem baixo e moreno, de olhos estreitos, que se amparou
a ela para não cair. Era Hugh Chambang.
— Hugh! Que surpresa! Fico muito satisfeita em saber
que você não sofreu nada!
O guia cambojano fez cara de choro.
— Foi horrível, senhorita! A doutora Da Verne lhe
contou? Tudo subiu para as alturas, como um presépio
iluminado! Minha lancha dançou sobre as águas revoltas
como um cavalo bravio! Foi Buda que me salvou da
vingança de Naga! Mas a pobre doutora Da Verne não teve
tanta sorte e recebeu, no rosto, uma chuva de granizo!
— Eu sei. Acabo de falar com ela. Não há notícias de
mais nenhum sobrevivente?
O guia olhou para ela de esguelha.
— Não, senhorita. Todos os que estavam na reserva
foram pelos ares. Mas há duas senhoras, numa casa de
cômodos de Siem Reap, que podem ser consideradas
sobrevíventes do terremoto. São as duas expedicionárias da
Missão White, que tinham sido levadas, como reféns, pelos
guerrilheiros do coronel Io. Os soldados as libertaram,
ontem, e elas terão que depor no tribunal.
Brigitte acenou, nervosa. Depois:
— Hugh, você tem que me ajudar! Preciso voltar ao
lago! Entende? Preciso encontrar alguma pedra, que tenha
sobrado, com restos do Átomo Z! Isso é muito importante,
Hugh! Prometo-lhe cem dólares, depois da excursão.
O guia sacudiu a cabeça.
— Não há mais nada no lago, senhorita. Você vai perder
seu tempo. Não existe mais a jazida das pedras dançarinas.
Mas eu a levarei até lá, se esse for o seu desejo. O mais que
pode nos acontecer é sermos devorados pela serpente.
Brigitte deu uma busca nos bolsos de sua roupa chinesa
e ainda encontrou uma nota de dez dólares. Era o bastante.
Levou Hugh Chambang para jantar num restaurante típico e
foi dormir numa casa de cômodos da Rua Mai-Trong, onde
já se encontravam as expedicionárias Margaret O’Sullivan e
Shirley Murray. As duas pobres moças estavam bastante
maltratadas, mas vivas.
— Eles eram mais de cem — choramingou Shirley
Murray, quando Brigitte lhe pediu que narrasse a sua
odisséia. — E nós tivemos que satisfazê-los, um atrás do
outro! Cem homens, em fila indiana, como no corredor de
uma sauna!
— Inclusive o coronel Io — intercalou Margaret
O’Sullivan. — Aquele chinês seboso tem gostos muito
especiais! Mas acabei de saber que ele foi apanhado e será
passado pelas armas!
— Nunca mais — concluiu a outra. — Nunca mais, na
minha vida, vou querer negócios com guerrilheiros!
Na manhã seguinte, Brigitte reuniu-se a Hugh
Chambang e regressaram ao lago Tonlé. A lancha do guia
cambojano levou-o ao charco, ao local onde tinham visto as
águas turbulentas. Tudo estava quieto e silencioso. As águas
permaneciam frias e imóveis; apenas os peixes nadavam de
um lado para o outro.
— Agora há peixes por aqui — observou Brigitte.
O guia acenou.
— Sim, senhorita. Os peixes voltaram, depois de terem
fugido deste pedaço do lago. Isso quer dizer que Naga se
retirou. Talvez tenha subido, também, para o sol. E isso
quer dizer que não existem mais pedras leves, se desfazendo
no fundo do abismo.
— Vou mergulhar — decidiu Brigitte.
— Não! Não faça isso! Você não sabe o que vai
encontrar lá embaixo!
A audaciosa repórter despiu as calças, a túnica e a malha
com os documentos do professor Khatamansky e pulou pela
borda do barco, mergulhando no líquido calmo e fresco.
Não era difícil afundar, nas águas doces do Tonlé-Sap; em
poucos segundos, Brigitte tinha atingido o fundo e
arrancado dois pedaços de pedra, incrustados na areia. Eram
pedras pesadas, normais. Não havia, ali embaixo, nenhuma
amostra do Átomo Z!
O fôlego já lhe faltava. Nadou desesperadamente para
cima, em busca de oxigênio, e emergiu ao lado da lancha.
— Então? — perguntou Hugh, ajudando-a a subir para
bordo.
— Nada! — ela atirou, no lago, as pedras que apanhara e
que afundaram diretamente. — As pedras leves subiram,
todas, para o sol! Se houver outra jazida do Átomo Z no
Camboja, só a divina providência fará com que os Estados
Unidos a encontrem! Mas consegui reaver os estudos
teóricos do professor Khatamansky; o resto, fica por conta
do Departamento de Defesa!
Hugh dirigiu a lancha para a margem nordeste e
encostou-a a um talude. Inesperadamente, três homens
brancos se destacaram das folhagens que beiravam o lago e
assomaram ao alto da escarpa.
— Alô, Brigitte Montfort! — disse um deles, que era
gordo e pesadão. — Encontrou as pedras?
Brigitte piscou duas vezes, antes de reconhecer o
camarada Antoniev. Mas não demonstrou surpresa; nada
mais poderia surpreendê-la.
— Não, major. Não encontrei nada. Não há mais Átomo
Z! Que está fazendo por aqui? Julgava que o senhor
estivesse em Moscou.
Ele sorriu.
— Vim na sua frente, filhinha. Já revistamos tudo e
também não encontramos a jazida de que você falou. Mas
quero os documentos do professor Khatamansky para
vendê-los ao Kremlin! Você me deve dez mil rublos,
lembra-se? Devolva-me os papéis, sua cadelinha!
Estava procurando tirar a automática do coldre que
trazia debaixo do sovaco quando Brigitte empunhou a
pistolinha Baby e disparou instintivamente. Dois tiros
rápidos e certeiros, que atingiram o grande homem no peito.
Ele arregalou os olhos, surpreendido, e balançou a enorme
Stechkin na mão gorda; depois, sem um gemido,
mergulhou, de cabeça para baixo, nas águas rasas do
charco. Seus guarda-costas recuaram precipitadamente,
sacando das armas; os dois também usavam pesadas
automáticas russas.
— Vamos embora daqui! — gritou Brigitte, sacudindo o
braço de Hugh. — Não podemos enfrentá-los!
O cadáver do camarada Antoniev repousava no fundo
das águas limpas, de costas, os braços abertos como uma
gigantesca aranha, destilando sangue pelos buracos do
peito. Hugh acionou o motor da lancha e o barco voltou, aos
ziguezagues, para o meio do charco.
— Ainda há comunistas no Tonlé-Sap — informou o
guia cambojano. — Dois homens vestidos à européia, com
pistolas russas! Vocês podem apanhá-los no Vale Proibido,
se forem agora mesmo para lá!
Os militares agradeceram e partiram, num jipe
desconjuntado. E Brigitte guiada por Hugh Chambang
regressou lentamente a Siem Reap, a pé, carregando o peso
de sua desilusão. Não havia mais Átomo Z nas jazidas do
Camboja. E a reserva arqueológica de Khi-Khent, que
poderia se transformar numa nova fonte de divisas, subira
para o céu, levando os últimos vestígios da cidade da
ciência dos Khmer. Angkor-Thom e Angkor-Vat
continuariam a atrair turistas, mas Angkor-Naga não
chegara a existir! Hugh Cham-bang também se sentia
arrasado.
Chegados à cidade, Brigitte despediu-se do guia
prometendo pagar-lhe os cem dólares, através de um vale
postal e dirigiu-se aos correios, na Praça do Sambor-Tau.
Depois de alguns desentendimentos, conseguiu encontrar
uma funcionária que falava francês:
— Je suis à vos ordres, mademoiselle.
— Por favor, quero enviar um telegrama urgente para
Nova Iorque, via Phnom Pehn. É possível?
— Oui. Mas vai demorar um pouco, mademoiselle. Um
dia ou dois, talvez.
— Eu espero. Estou hospedada na casa de cômodos de
Noga-Lam, em Mai-Trong. Quando chegar a resposta,
avise-me. O telegrama será pago pelo destinatário.
O destinatário era o inspetor Charles Alan Pitzer. E o
despacho dizia:
“Missão cumprida ponto não há mais Átomo Z
natural ponto só sobramos três mulheres muito
maltratadas ponto mande dinheiro para à
passagem de volta. Brigitte.”

CONCLUSÃO
De qualquer maneira, tinha sido uma vitória, Quando
Brigitte desembarcou no aeroporto Kennedy acompanhada
pelas duas arqueólogas sobreviventes da Expedição White,
encontrou uma festiva recepção. Ali estavam o Inspetor
Pitzer. Miky Grogan, Frank Minello — o cronista-atleta —
e meia-dúzia de outros colegas do “Nova Manhã”.
— Meu Deus, Brigitte! — exclamou o gordo diretor do
jornal, penalizado. — Como você emagreceu, criatura!
— É verdade — sorriu a repórter. — Fiquei mais
morena e elegante. Perdi doze quilos, nesta brincadeira! Só
quem tem alma de jornalista pode compreender o meu
sacrifício e não me chamar de idiota! Mas minhas pernas
ainda são as mesmas — acrescentou, fazendo um trejeito
malicioso. — Se vocês não acreditam, vamos para a redação
que eu lhes mostrarei..
— Nada disso — contrapôs o chefe do FBI em
Manhattan. — Dê-me os papéis do professor Khatamansky!
Tenho que seguir diretamente para Washington, para uma
reunião no Pentágono, onde o velho Hoover está à minha
espera.
— Os papéis já estão em seu poder, chefe. Nessa maleta
que o senhor teve a gentileza de tirar das minhas mãos...
Dirigiram-se para a saída do aeroporto.
— O diabo! — resmungou o agente federal. — O
Departamento de Defesa ficou muito chocado, com a
notícia de que não existe mais Átomo Z natural no
Camboja. Agora, temos que procurar esse misterioso
elemento em todas as partes do mundo! Ele tem que estar
em algum lugar!
Brigitte espichou o beicinho.
— A menos que as suas jazidas já estejam esgotadas, no
planeta Terra. Nesse caso, os Estados Unidos terão que
procurá-lo no sol. Deve haver muito Átomo Z nas explosões
solares.
— Iremos para lá — prometeu o inspetor Pitzer. —
Depois que conquistarmos a Lua!
No dia seguinte, Miky Grogan deu uma nova festa, em
seu apartamento duplex, homenageando a sua principal
colaboradora. A câmara fotográfica, e as últimas fotos
tiradas por Brigitte no Camboja, já tinham chegado ao
“Nova Manhã”, enviadas pelo segundo secretário da
embaixada americana em Moscou, e o jornal aumentou suas
tiragens, publicando a série de reportagens ilustradas
“boiada” pela irrequieta correspondente estrangeira, Por
outro lado, dessa vez o Departamento de Estado deu
permissão aos jornalistas para lançarem nas páginas do
“Nova Manhã” todo o relato dos sensacionais
acontecimentos,
Miky omitiu apenas a morte dos espiões soviéticos, que
poderia deixar sua protegida em má situação perante a
justiça e a opinião pública.
A festinha foi outro sucesso. Beberam muito e Brigitte
aqueceu o ambiente, mostrando nesgas de seu corpo moreno
queimado pelo sol da Indochina num audacioso vestido
importado de Paris. Charles Alan Pitzer, o “lobo mau do
FBI”, babou-se todo, quando pôde dançar com a heroína da
noite. Mas Brigitte fugiu de suas mãos, quando elas se
tornaram inconvenientes, e foi se refugiar nos braços
musculosos de Frank Minello.
— Esta noite? — sugeriu o cronista esportivo, falando
na concha de seu ouvido.
— Sim, meu bem. Se eu ainda estiver disposta, depois
de beber tanto... Você não imagina, Frank, como eu
funcionei na China e no Camboja!
— Telefone-me quando chegar em casa. Eu irei
correndo. Já sei que o inspetor Pitzer levará você para a
Quinta Avenida...
— Mas não entrará no meu apartamento.
— Também sei que ele não entra. Você me telefona?
— Sim, meu bem. Mas não espere um milagre. Eu
funcionei muito, realmente, entre os meus fãs orientais!
Acho que preciso tirar quinze dias de férias.
Com efeito, nessa noite, de volta ao seu luxuoso
apartamento no Edifício Gilmor da Quinta Avenida, Brigitte
não usou o telefone. Estava cansada e cheia de sono. Antes
de se deitar, porém, ainda se despiu inteiramente e lançou
um olhar critico para o espelho. Tinha emagrecido doze
quilos, mas seu corpo continuava bem proporcionado. Os
seios e as coxas, de tom aveludado, continuavam belos e
duros. Nua, diante do espelho, ela voltava às velhas
recordações. Suas experiências amorosas, na Indochina,
tinham sido brutais, pouco refinadas, e não mereciam o
prêmio da saudade...
Outro passado renasceu, atualizado pela memória
irrepreensível. Como fora, mesmo, o caso do farmacêutico?
Ah, sim! Dois anos antes... Uma intimidade conseguida
através de seus talcos, cremes, loções e xampus, sempre
procurados no drugstore da esquina. O rapaz amável, louco
por atendê-la na frente dos outros. Solícito. oferecendo-se
para levar as encomendas até sua casa. E, naquela tarde, a
experiência. Viera com um bálsamo para as costas. Brigitte
lhe pedira, por favor, a massagem necessária.
O rapaz, ávido, todo prestativo. Ela despindo-se.
mostrando a beleza de seu dorso iluminado, já deitada na
cama, para submeter-se ao tratamento.
Súbito, o acidente! Abrindo desmesuradamente a boca, o
jovem farmacêutico deslocara o maxilar! Ficara,
verdadeiramente de queixo caído!
Brigitte se recordava agora, sorrindo, do meio de que se
valera para consertar o deslocamento do maxilar do rapaz.
Aproximara um seio róseo, macio, fremente, de sua boca
escancarada. E fizera o milagre, que a medicina não sabe
explicar.
Agora, seus selos estavam mais morenos, mas
continuavam macios e frementes. Brigitte deitou-se e
adormeceu sorrindo, afagando a sua própria beleza.
Hoje, graças a Brigitte Montfort, os Estados Unidos têm,
de novo, os planos teóricos do professor Khatamansky, que
provam a existência do Átomo Z. Mas não têm o Átomo Z
natural. A procura dessa fugidia partícula atômica está
deixando loucos os cientistas e os agentes da CIA. Faz
poucas semanas, alguns pescadores esquimós anunciaram
que um iceberg, no Oceano Glacial Ártico, deu um salto
sobre as águas e subiu vertiginosamente para o céu. Pode se
tratar de outra fonte de Átomo Z. Ninguém sabe. A busca
continua.

Brigitte Montfort volta em:


O CRIME SAGRADO

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