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POVO DO LOBO
1º volume
W. MICHAEL GEAR e KATHLEEN O NEAL GEAR
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original: People ofthe Wolf
Tradução de Margarida Gomes e Eduardo Gomes
Tradução portuguesa © de P. E. A.
Capa: estúdios P. E. A.
© 1990 by W. Michael Gear and Kathleen O Neal Gear
Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda.

A Richard S. Wheeler, que ajudou a tornar o sonho em realidade.

AGRADECIMENTOS
Ao escrever O Povo do Lobo socorremo-nos de muitos recursos para limar a n
ossa própria compreensão da cultura paleolítica precoce. Além dos artigos publicados, do
s relatos profissionais e dos livros de referência queremos fazer um agradecimento
especial a: Stephen D. Chomko, dos Serviços Arqueológicos Interdepartamentais, Serv
iço Nacional de Parques, por ter partilhado o seu conhecimento dos recentes avanços
nos estudos paleoíndios; Ray C. Leicht, arqueólogo do Estado de Wyoming, e ex-arqueólo
go do Estado do Alasca, pela sua ajuda na reconstituição da climatologia do Pleistoc
eno e por nos fornecer dados sobre a arqueologia ártica; George Frison, do Departa
mento de Arqueologia da Universidade de Wyoming, pelas suas observações sobre a caçada
aos mamutes em The Colby Site, Gary E. Kessler, professor de Filosofia e Estudo
s Religiosos, Faculdade Estatal da Califórnia, Bakersfield, pela suas valiosas lições
sobre misticismo e religiões americanas nativas; Katherine Cook, pelo seu apoio co
nstante e boa vontade em ler e reler os manuscritos; também os nossos colegas prof
issionais nos deram valiosas discussões, resumos de conferências, relatórios de escavações
e, é claro, montes de debates estimulantes em redor das fogueiras nos campos em q
ue tem lugar a arqueologia real. Vocês sabem a quem me refiro.
Temos um débito especial de gratidão para com o nosso editor, Michael Seidman,
cujo interesse pela arqueologia e pelo misticismo americano nativo foram, de fat
o, o ponto de partida para esta série; assim como a Tom Doherty, que apoiou este p
rojeto; a Tappan King, que escreveu as linhas gerais; a Wanda June Alexander, qu
e tanto se esforçou; e a todo o talentoso pessoal de Tor Books.

INTRODUÇÃO
O furgão saltitava e derrapava ao avançar sobre o terreno rugoso. Uma poeira v
ermelha rodopiava sob os pneus de todo-o-terreno. Com a tração às quatro rodas gemeu e
arranhou para subir até ao terraço erodido e avançou então, por cima da artemísia azul-es
verdeada, na direção do equipamento amarelo estacionado junto da escarpa que ficava
do outro lado do plano.
O condutor parou no meio do odor doce da artemísia esmagada e do cheiro acre
da poeira alcalina. Dois gatos, uma escavadora e uma máquina de colocação de tubos, as
sim como um punhado de furgões, esperavam-no, de motores desligados. Apenas o murmúr
io constante do vento competia com as vozes humanas sussurradas.
O motorista abriu a porta e saltou, esticando-se todo para afugentar a rigi
dez da longa viagem. Apareceram cabeças na vala do tubo, capacetes amarelos e bril
hantes no meio da poeira batida pelo vento.
Chegou! Um capataz saiu da vala com esforço. Já não era sem tempo! O raio dos se
us arqueólogos estão me custando um dinheirão! Temos de ter este tubo concluído em 10 de
Dezembro e este atraso está custando dez mil dólares por dia à companhia.
O condutor apertou-lhe a mão e acenou em concordância:
Bem, vamos ver o que temos aqui. Num velho terraço aluvial como este não se en
contra muita coisa. Além do mais, pela geomorfologia, este terraço deve ter uns quin
ze mil anos. O fim do Pleistoceno. O que vocês cortaram é, provavelmente, intrusivo.
Um pedaço qualquer que foi enterrado aqui. Quem sabe?
O motorista regressou ao furgão e, esticando-se sobre a alavanca de marchas,
puxou uma velha caixa de munições militares e uma pasta já muito gasta.
Os dois avançaram por cima das artemísias já esmagadas e foram olhar a vala onde
a escavadora já removera a terra superficial. Uma peneira manual estava encostada
a uma pilha cônica de terra.
Dr. Cogs? Uma jovem bronzeada olhou do fundo da vala.
Olá, Anne, que encontrou aí? O motorista saltou para dentro da vala.
A jovem olhou para os gatinhos e para os trabalhadores e apontou a folha de
plástico negro que cobria o quadrado aberto pela pá da escavadora.
Apenas uma sepultura solitária, Dr. Cogs. Limpou, com uma mão, o rosto sujo de
pó. Eu estava aqui observando a abertura da vala. Estava pensando que era um trab
alho aborrecido. Foi então que a pá trouxe um braço. Vi os segmentos distais do rádio e
do cúbito aparecerem, brancos, contra a terra escura. Mandei-os parar o trabalho.
Intrusivo? perguntou ele, ao mesmo tempo que via o capataz cruzar os braços,
de rosto sombrio.
De modo algum. Ela estava aqui e foi coberta. Hum, há até pedras escolhidas no
mesmo estrato. Sou capaz de afirmar que ela morreu afogada e foi aqui depositad
a pela corrente.
Num terraço pleistocênico? perguntou ele, estendendo uma mão para o plástico.
A resposta séria de Anne avisou-o:
Isso, é melhor que veja por si mesmo.
Cogs, com a ajuda de Anne, levantou o plástico negro que cobria a escavação. Par
ou e ficou observando o esqueleto. Um braço soltara-se. Os ossos partidos tinham u
m brilho branco-amarelado no lugar em que a pá os seccionara.
Observou mais de perto o crânio.
Velha. Só tem um par de dentes... e são incisivos. Mal se vê uma sutura no crânio
a não ser as temporais. Eu diria que era alguém já bem entrada na casa dos sessenta, p
elo menos. Talvez até mais velha. Repare na artrite na coluna! Deve ter dado umas
dores do diabo!
Da caixa de munições tirou uma colher de pedreiro e experimentou a consistência d
a terra cheia de pedras da sepultura. Mordiscou o lábio e acenou a cabeça.
Muito bem, concordo. Olhou para a jovem arqueóloga. Apanhada numa enxurrada?
Por que não? Isso até explicaria a preservação.
Não encontramos muitas sepulturas paleoíndias recordou Anne. Nunca encontr
s nenhuma numa formação tão velha como esta. Estou pensando...
Começou a escavar em volta da grelha costal. A colher de pedreiro retinia con
tra as pedras.
Resolvi não escavar mais estava dizendo Anne. Considerando a idade do depósito
, pensei que... Que é isso?
Crog limpou o sedimento mais duro, servindo-se da ponta da colher para expo
r qualquer coisa de um laranja-avermelhado.
Já encontrou algum artefato aqui?
Um bocado de uma concha velha. Parecendo ser de ostra. Não posso dizer se es
tava ou não associada.
Inclinou-se mais quando ele pegou um pincel e, limpando com todo o cuidado,
expôs uma ponta alongada de projétil num jaspe vermelho como sangue.
Jesus! exclamou ele. Olhe para isto!
Que é?
O capataz e os seus homens aproximaram-se em bloco para ver o que seria.
Clovis! soltou Anne. Uma sepultura Clovis autêntica! Servindo-se da sua co
lher começou a descobrir outra ponta. Um magnífico trabalho manual! Olhe esta: b
ordas vermelhas sobre fundo amarelo. Excepcional!
A marca registrada dos Clovis. Cogs estudou a ponta que as mãos destras dela
tinham descoberto. Um trabalho incrível em pedra!
Ela concordou, entusiasmada:
A mais bela ponta que vi em toda a minha vida!
Cogs ficou pensativo:
E uma velha estava com ela? Revela-nos alguma coisa da estrutura social. D
eve ter sido uma líder de qualquer tipo. Claro que depois das pontas de Oregon...
Ei, temos de acabar a tubulação! reclamou o capataz. Quem é o Clovis?
Foram os primeiros americanos. A cultura mais velha da América do Norte resp
ondeu ele, coçando a testa e continuando a contemplar o achado. Até hoje nunca ninguém
tinha encontrado uma sepultura como esta.
Vocês estão me custando dez notinhas das grandes por dia só por causa de um raio
de uma pilha de ossos velhos? Juro que vou escrever ao meu congressista por cau
sa disto. Que raio...
Cogs deixou sair um suspiro de irritação:
Calma: vocês vão instalar o seu tubo.
Vamos? A voz do homem amaciara. Puxou o chapéu para trás. O arqueólogo confi
mou com a cabeça:
Vamos fazer algumas pesquisas... hum, umas escavações mais para saber se há mais
alguma sepultura por aqui... mas penso que é só esta. Pode até ver os sinais da enxur
rada nas paredes da vala. Abanou a cabeça. Olhem para o pé direito dela. Estão
vendo como o osso está torcido? Partiu o tornozelo... anos antes de morrer. Deve t
er doído para burro andar em cima deste pé. Nunca foi alinhado.
O capataz olhou mais de perto:
Sim, tem mau aspecto. Quanto tempo vão demorar com essas pesquisas?
Alguns dias, poucos.
Gostaria de saber quem era ela...

PRÓLOGO
O fogo crepitava da fenda abrigada e as fagulhas saltavam e rodopiavam. Por
cima das cabeças um manto negro de fuligem parecia veludo espesso e suavizava a s
uperfície rugosa da rocha. Ao longo das paredes, ramos de salgueiro cobertos de er
vas secas quebravam o frio que vinha do chão. Uma dupla cortina de pele de caribu,
enegrecida pela fumaça, evitava que as rajadas árticas da Mulher Vento penetrassem
nas fendas da rocha. Num círculo em volta da cavidade estavam dispostos os crânios b
rancos do Avô Urso Polar, do Caribu, do Lobo e da Raposa Branca, de órbitas vazias c
omo que a contemplar a luz bruxuleante. Os ossos brancos tinham estranhos desenh
os coloridos símbolos do Poder do Shaman.
Quando a mulher se inclinou, num gesto cansado, para a frente, caíam-lhe para
o rosto longas madeixas de cabelo negro a que a luz do fogo dava reflexos azula
dos. Apalpou com carinho o granito a seus pés. Em nichos e rachaduras estavam arru
mados amuletos enrolados em cascas castanhas de salgueiro, muito amarrotadas e t
ingidas pela fumaça dos fogos sagrados.
Ainda estou aqui... murmurou à espera. Não pensou que eu tinha ido embora, não é?
Quando não lhe chegou qualquer resposta, Garça encostou-se contra a fria parede
de rocha resmungando, irritada consigo própria. Na sua roupa de pele estavam grav
ados desenhos outrora brilhantes mas agora meio apagados pelo tempo e pela abrasão
. Olhando para o rubro e sempre cambiante olho do fogo, começou a cantar baixinho
traçando com as mãos, no ar à sua frente, antigos símbolos do Poder do Espírito. Pegou um
punhado de casca seca de salgueiro e mergulhou-a no saco de pele cheio de água e q
ue estava pendurado num tripé a seu lado. Depois de sacudir a casca lançou-a às chamas
. O vapor explodiu e a madeira chiou. Quatro vezes repetiu ela o processo e a fu
maça, quente e úmida, espiralou para cima e desapareceu no buraco de saída em algum lu
gar lá no alto.
Ora murmurou ela ao mesmo tempo que os seus olhos tentavam ver para lá das p
aredes tingidas de laranja. Ouvi a tua chamada. Hei de te encontrar.
Aproximou-se mais das chamas e fechou os olhos. Os traços da sua legendária bel
eza mal estavam ainda obscurecidos pela mão do tempo.
Inalou quatro vezes pelo nariz, permitindo que a paz e a tranqüilidade fluíssem
por si como a névoa matinal pelos vales. O odor pungente da fumaça de salgueiro enc
heu-lhe os sentidos.
Por quatro dias jejuara, cantara, banhara-se nas águas quentes que borbulhava
m da terra, soltando vapor no ar frígido do abrigo. Cantara, rezara e purgara o se
u corpo de todos os malefícios dos maus pensamentos e dos desejos errados.
Mas, apesar de tudo isso, continuava sem aparecer qualquer visão na fumaça chei
a de vapor.
Bem... resmungou. Não está dando resultado. O melhor é tentar outra coisa.
Hesitou, assustada, sentindo mais uma vez a chamada. Encheu devagar os pulmõe
s, soltou o ar e olhou para o pacote de pele de raposa.
É isso murmurou. Tenho medo do seu Poder. Poder significa conhecimento.
.. e morte.
A sua língua, rosada, percorreu os lábios secos.
A chamada tornou a surgir, urgente, tocando-lhe o âmago da alma. Garça decidiu-
se.
Com dentes trementes tirou o segundo pacote a seu lado e desdobrou as camad
as de pele de raposa, expondo à vista quatro pequenas lâminas de um precioso cogumel
o. Passou por quatro vezes cada uma delas pela fumaça quente de salgueiro, uma vez
por cada uma das direções do mundo. Este pela chegada da Longa Escuridão. Norte pela
profundidade da Longa Escuridão. Oeste pelo Renascimento do Mundo. E, finalmente,
Sul pela Longa Luz e pela vida que ela trazia.
Cantando, forçou a sua alma a entrar no Todo, com cuidado para manter afastad
o o vazio que havia do outro lado, um vazio aterrador e que a chamava.
Um a um purificou os cogumelos e levou-os aos lábios para mastigá-los devagar.
Um amargo intenso mordeu-lhe a língua. Engoliu-os e inclinou-se para trás ao mesmo t
empo que colocava as mãos em cima dos joelhos.
Na sua frente a fumaça rodopiava como o nevoeiro que rolava vindo da grande águ
a salgada. Imagens fantasmagóricas, distorcidas e rodopiantes pareciam estar numa
louca dança.
Garça semicerrou os seus olhos castanhos e já velhos para se focar na fumaça. Os
minutos passaram e a sua testa estava enrugada pela concentração.
Quem...
Na névoa cresceu uma imagem ondas a desfazerem-se com violência contra rochas n
egras e escarpadas. A espuma elevava-se bem alto no céu cinzento. Ali, no ir e vir
das águas, estava uma mulher agachada e indiferente ao poder das vagas. Com um pa
u soltava mexilhões das rochas e deixava-os cair num saco de pele. Sobre a sua cab
eça as gaivotas planavam e mergulhavam. A mulher desviou-se para o lado para evita
r a torrente de água espumosa de uma onda maior. Um caranguejo, perturbado pelos s
eus movimentos, afastou-se correndo. A mulher rica na graça da juventude plena sal
tou com ligeireza encurralando o caranguejo e tocando-lhe com o pau até que pôde, co
m arte, agarrá-lo e colocá-lo no saco.
Atrás de um alto bastião de rocha negra estava um homem agachado a observá-la. Qu
ando a mulher seguiu a onda que recuava, enchendo o saco com a generosidade do m
ar, ele seguiu-a.
Trazia um cinto grosso de pele de mamute em torno da cintura. De cada lado
de um pequeno e fino nariz de águia brilhavam dois olhos negros. Uma capa de pele
de raposa branca cobria-lhe as costas. Através da visão, Garça sentia a força da alma de
le, pulsante, intensa um homem de Poder, de visões.
Ele sonha... mesmo agora ele sonha.
A cena oscilou quando as emoções se misturaram com as imagens: dor, perda do am
or, um desejo vindo das profundidades da sua alma perdidas naquela mulher. Garça e
stendeu o contato até ele, sentindo pena pela sua angústia. Quando se projetou algo
estalou, como folhas secas crepitando na periferia da visão. Um sentimento de sepa
ração tremelicou nas névoas. Espantada com o que fizera, Garça retirou-se.
A mulher da praia parou, de cabeça inclinada e o cabelo negro esvoaçando na bri
sa do mar. Como uma lebre, atraída pelo olhar de uma raposa, a mulher rodou sobre
si mesma e os seus olhos abriram-se muito ao verem o homem que se aproximava, de
rosto ansioso e braços abertos para, abraçá-la.
O medo contorceu as feições da mulher. Em desespero procurou escapar correndo.
Os seus pés deixaram marcas brancas na areia molhada.
O homem fez uma finta e agarrou-a, rindo de prazer enquanto ela gritava e l
he batia com punhos fúteis. Com os músculos endurecidos de um caçador ele lançou-a ao chão
e segurou-lhe com firmeza os braços.
Lute, pequena! Lute contra ele! gritou freneticamente Garça, cerrando os p
unhos.
Perdido no seu sonho ele evitou as pernas que chicoteavam e subjugou-a até el
a ficar debaixo dele, tremendo de medo e cansaço. Tirou-lhe a parka enquanto ela c
ontinuava a gritar e a retorcer-se. A luta foi curta: a mulher não era adversário pa
ra a força de um caçador.
Garça sacudiu a cabeça enquanto o via possuir a mulher na areia. O Poder girava
, desequilibrado, na visão.
Satisfeito, o homem levantou-se com um ar ausente no rosto. Os dedos tremia
m-lhe enquanto reapertava os laços das suas botas compridas. Quase por acaso os ol
hos dele encontraram os de Garça que espreitava na névoa. Estacou e praguejou baixin
ho. Olhou para a mulher estendida na areia e o horror misturou-se à sua expressão. A
tordoado, sacudiu com violência a cabeça e recuou.
De súbito, virou-se e lançou aos olhos de Garça um olhar cheio de ódio, levantou um
punho cerrado. O seu belo rosto ficou distorcido quando soltou um grito, numa v
oz cheia de súplica, as lágrimas correndo-lhe pelas faces. Tornou a virar-se e corre
u, saltando pedras na sua fuga. A sua voz soava com um uivo, um uivo na névoa.
A névoa rodopiou quando a visão obscureceu.
A chamada veio de novo, desta vez forte e insistente. Garça coçou o rosto com u
ma mão calejada.
Não era ele. Não... não era ele de modo algum. Nesse caso quem é! Quem...
Pegou em mais casca de salgueiro e lançou-a aos carvões ardentes seguindo o cam
inho da chamada através do Todo.
Outra visão começou a nascer no vapor que se elevava. A mulher da praia estava
deitada, nua, a barriga cheia com criança, o umbigo saliente. Em volta dela outras
mulheres observavam, os olhos brilhantes à luz de um fogo de vidoeiro e salgueiro
. O suor molhava a testa da mulher e corria entre os seus seios para manchar a p
ele sobre a qual estava deitada. Contorceu-se, de pernas abertas, e as outras mu
lheres aproximaram-se para ver mais de perto.
A mulher arfou e soltou um grito, os seios saltaram quando as águas se romper
am e formaram uma poça escura nas peles malhadas. Uma das velhas abanou a cabeça. O
parto estava sendo difícil. O bebê emergiu vermelho, azul, raiado com os líquidos do úte
ro. Uma das mulheres inclinou-se e, com os dentes, cortou o cordão umbilical enqua
nto outras tomaram conta da criança e a esfregaram com ervas. O coração de Garça apertou
-se ao reconhecer a beleza: Ramada Partida. Cerrando os punhos rezou com fervor
para que o Pai Sol amaldiçoasse o inimigo dela, fazendo-o morrer e ser enterrado p
ara que a alma dele ficasse presa no pó toda a eternidade.
Garça tornou a observar o bebê. Um raio de sol que atravessava uma fenda no tel
hado dançava sobre a criança.
A mulher, de barriga ainda distendida, tornou a cerrar os dentes, a fazer f
orça e a gritar; as suas pernas queriam saltar mas duas das mulheres seguravam-lhe
os tornozelos. Uma segunda criança começou a emergir, pelos pés. Uma velha de rosto m
uito encarquelhado acocorou-se junto da mãe, de cabeça inclinada, vendo mais de pert
o. A jovem uivou quando umas mãos engelhadas entraram nela, afastando as suas carn
es e puxando a criança. A velha murmurou qualquer coisa e abanou a cabeça. Com um ge
mido de esforço virou a criança. A mulher gritou de desespero quando a criança saiu e
as gotas de sangue tornaram-se num rio.
Sangue demais. Garça disse as palavras em silêncio, reconhecendo os sinais. Qua
lquer coisa se rasgara dentro da mulher. O sangue vermelho escorria pela cabeça do
bebê quando a cabeça saiu da pélvis. Uma criança grande, que gritou ao entrar num mundo
novo, indiferente ao sangue por onde se perdia a vida da sua mãe e que lhe entrav
a na boca desdentada e aberta.
Sangue ruim... ruim murmurou Garça com paixão, sentindo subir-lhe no pei
to o medo pela vida da mulher.
Garça piscou os olhos, vendo o sangue da mulher ensopar as peles e a sua resp
iração parar, apesar das canções de curar das velhas que a rodeavam. Nos seus olhos um a
r baço substituiu o brilho febril. As pernas dela agitaram-se sem forças e pararam a
o mesmo tempo que perdia a cor com aquele caudaloso rio vermelho.
Rapazes, os dois. Caçadores para o Povo. Mãos cuidadosas pegaram a segunda cria
nça, procurando, sem êxito, limpar a sujeira que a ele aderia, ao mesmo tempo que o
cordão era cortado à dentada e a criança colocada ao lado da primeira. Vinda de algum
lugar lá de cima uma pena negra desceu e foi pousar ao lado da criança. No seu choro
a mão pequenina agarrou-a e torceu-a de raiva.
Garça estudou-os aos dois, lado a lado. Um berrava raivosamente, sujo de sang
ue, segurando na mãozinha uma pena de corvo. O outro sorria e dava pontapés no raio
de luz, de olhos desfocados como se perdido num sonho. Mas, de repente, piscou o
s olhos, chorou baixinho e, por um fugaz instante, os seus olhos pareceram focar
-se... procurando-a na névoa da visão.
Você? Foi você quem me chamou? Garça sacudiu a cabeça e endireitou-se, perc
orrendo com a língua os intervalos entre os seus dentes já gastos. Sim, você sonha, cr
iança. Vejo o Poder nos teus olhos. E agora, que te conheço, ficarei à espera.
A visão quebrou-se como farrapos de fumaça arrastados através da rocha até ao frio
da noite lá fora. Garça cerrou as mãos em punhos, lutando contra os efeitos do cogumel
o. Pôs-se de pé, vacilante, e afastou as peles de caribu para sair. O ar gelado da n
oite apanhou-a e fê-la cair de joelhos. O forte odor de enxofre das nascentes quen
tes invadiu-lhe as narinas. Inclinou-se para a frente e vomitou com violência.
As vozes dos cogumelos murmuravam-lhe nos ouvidos, a morte estava suspensa
dos tons abafados dessas vozes enquanto procurava manter o Todo até que o cogumelo
se consumisse nas suas veias.
Quando esfregava a boca e piscava os olhos um lobo uivou na noite, num uivo
alto e penetrante que o ligou para sempre à visão.

CAPÍTULO 1
A Longa Escuridão continuava, sem fim, consumindo-lhes as almas.
A Mulher Vento corria sobre as neves geladas, fazendo rodopiar nuvens de ne
ve na noite ártica. Na sua fúria bateu nos abrigos de pele de mamute do Povo com uma
rajada que fez estalar as peles geladas sobre a cabeça daquele que se chamava Cor
re na Luz.
Acordando, estremunhado, ficou ouvindo as rajadas ululantes. À sua volta, os
outros do Povo enrolavam-se nas suas roupas grossas e dormiam profundamente. Alg
uém ressonava baixinho. Estava frio, estava tão frio... Um arrepio incontornável fê-lo d
esejar que tivessem mais gordura para queimar no buraco do fogo, mas a gordura g
astara-se. Dezessete Longas Escuridões não tinham colocado muitos músculos nos seus os
sos... e a fome fizera o resto.
Até mesmo a velha Ramada Partida murmurava que nunca vira um Inverno como aqu
ele.
Trazido pelo vento chegava aos abrigos um barulho tênue. Um animal qualquer p
rocurava restos de comida que o Povo há muito tirara do gelo. Lobo?
Corre na Luz, com o coração batendo de esperança, passou os dedos rígidos de frio p
elo seu atlatl a vara de lançar, ornamentada por gravações, que o Povo usava para cata
pultar dardos com pontas de pedra. Saiu de debaixo das peles geladas. Tentáculos d
e frio atingiram os últimos lugares ainda quentes do seu corpo quando, agachado, p
assou em silêncio pelos adormecidos enrolados nas peles. Apesar do ano gelado, o m
au cheiro do abrigo ocupado há meses chegou-lhe ao nariz.
Enterrado debaixo das peles o bebê de Raio de Sol Sorridente gemia de fome. C
omo uma lança de som fez fechar-se ainda mais a expressão sombria de Corre na Luz.
Onde está, Pai Sol? perguntou ele com dureza, apertando o atlatl na mão até os d
edos doerem. Depois, como uma foca num buraco no gelo, passou de gatas pela aba
de saída. A Mulher Vento veio do negro noroeste e fê-lo recuar. Apoiou-se contra o a
brigo e semicerrou os olhos para ver naquela escuridão menos cerrada. Os cristais
de neve corriam em silêncio sobre o gelo compacto.
Chegaram-lhe de novo aos ouvidos os sons abafados de um lobo: garras que es
gravatavam algo enterrado na neve.
Corre na Luz andou num círculo, procurando esconder-se atrás de um monte de nev
e e esperando que a Mulher Vento não deixasse que o seu odor chegasse ao nariz apu
rado do lobo. Subiu, de gatas, até ao cimo do monte e deixou-se cair de barriga ao
chegar ao alto. Negro contra a alvura da neve o lobo procurava desenterrar Voa
Como Uma Gaivota da prisão do gelo.
Corre na Luz baixou a cabeça, cheio de pena.
Descobrira, há uma semana atrás, a sua mãe morta dentro das roupas. Os ecos das s
uas histórias persistiriam para sempre no seu espírito, naquela voz cheia de calor c
om que lhe ensinava os costumes do Povo. Sorriu com a recordação, lembrando a luz no
s olhos dela quando cantava a história dos grandes Sonhadores: da Garça, do Caminhan
te Só e de outros heróis lendários do Povo. Como haviam sido macias e cheias de carinh
o as mãos dela ao aconchegar as peles em torno do rosto frio de um mais novo e mai
s feliz Corre na Luz.
Um calafrio amargurado tocou-lhe a alma ao ter uma recordação mais recente do s
eu rosto desdentado e imobilizado pelos rictus da morte os seus olhos cinzentos
e baços.
Tantos haviam morrido de fome!
Fraco demais para fazer mais do que sair a custo dos abrigos, o Povo carreg
ara o cadáver de Voa Como Uma Gaivota até ali, bem perto. Ali tinham deixado, no gel
o, para que pudesse olhar para os céus, orando cantando a sua alma até ao Abençoado Po
vo das Estrelas. A Mulher Vento soprara sobre o seu corpo rígido e a neve viera, d
evagarinho, enterrá-la até o lobo ter chegado para mastigar a sua carne congelada.
Dentro de si surgiu um impulso forte de correr por ali abaixo gritando a su
a raiva. Obrigou-o a parar. Comida: o lobo era comida.
O Pai Sol não olha quando a fome obriga o caçador a emboscar o caçador. Que tinha
m eles feito para que Ele os castigasse tanto?
Corre na Luz respirou fundo, e, levantando-se devagar para ficar de joelhos
, avaliou a distância.
O lobo estacou e levantou a cabeça, de orelhas arrebitadas. Forçando-se a ficar
imóvel Corre na Luz sentiu o vento e aguardou, esperando que as pernas consumidas
pela fome não o atraiçoassem.
O lobo virou a cabeça, farejando, as costelas salientes a moverem-se enquanto
procurava algo no vento.
Corre na Luz aclarou os pensamentos e olhou um pouco mais para o lado. Resp
irou devagar, para relaxar e afastar da consciência as guinadas lancinantes da fom
e. Ele próprio já experimentara essa sensação de estar sendo observado, esse sutil toqu
e de olhos sobre si. Esperou por longos momentos enquanto os nervos do lobo se a
calmavam e o focinho cinzento do animal voltou a baixar-se para tornar a mastiga
r o cadáver.
Corre na Luz ficou tenso colocando todo o peso do corpo no atlatl e ficou v
endo o dardo percorrer o seu arco. Fiel ao Poder do Espírito que colocara na vara,
o dardo apanhou o lobo atrás das costelas.
O animal ganiu e, assustado, deu um salto enorme. Caindo nas quatro patas o
lobo desapareceu correndo na noite.
Com a cabeça cheia de vozes de fome, Corre na Luz avançou para inspecionar as m
anchas negras de sangue sobre a neve. Colocou um joelho no chão. Erguendo com difi
culdade o atlatl utilizou a ponta para soltar uma das manchas. Com uma mão enluvad
a tocou na mancha e cheirou-o. Sangue de tripa: tinha o cheiro pungente de intes
tino perfurado. Sangue destrutivo, que acabaria por fazer o lobo diminuir o anda
mento até parar de todo.
De mancha em mancha, Corre na Luz seguiu a pista, sentindo-se cada vez mais
inquieto à medida que aumentava a distância entre si e o acampamento. A respiração da M
ulher Vento percorria a terra e soprava neve sobre as suas pegadas. Os olhos da
Longa Escuridão miravam-no pesada e ameaçadoramente.
Olhou para o alto e murmurou aos espíritos: Deixem-me em paz. Tenho de encont
rar o lobo. Não me comam a alma... não... Desapareceu a pressão na sua alma mas a pres
ença manteve-se no ar, flutuando, à espera de ver se a sua honra era merecedora de c
rédito. Num espaço abrigado do vento, Corre na Luz estudou a pista. O lobo parara al
i e estivera até algum tempo deitado. A neve estava tingida por uma mancha mais ne
gra de sangue.
Os dedos de Corre na Luz tremeram dentro das luvas grossas enquanto se serv
ia da ponta de pedra de um dardo para arrancar, com cuidado, o sangue do gelo. S
em ligar para os pêlos do lobo que estavam agarrados, Corre na Luz mastigou o sang
ue congelado e fez uma careta ao sentir o sabor de suco de tripa. Comida. A prim
eira comida que provava em quatro dias.
Quatro dias? O número do Sonhador. Fora a sua mãe que lhe contara. Um dia para
cada uma das direções para acordar a alma.
Pôs-se de pé, inspecionando a paisagem e murmurando:
Você está aqui, lobo. Sinto o teu espírito perto de mim.
Na Longa Escuridão, aquela vastidão branca tinha uma tonalidade azulada e com s
ombras púrpuras lançadas pelos montes de neve. Ao norte, a terra ondulava e os picos
agrestes brilhavam à luz do Povo das Estrelas.
De olhos fixos na neve, Corre na Luz agarrou-se às suas armas: dois dardos, a
mbos tão compridos como ele tinha de altura, e o atlatl, abençoado pelo sangue do ma
mute e do Avô Urso Branco. Começou a avançar num passo apenas suficiente para o manter
quente. A fome prendia-lhe as pernas vacilantes enquanto procurava a presa.
A neve esculpida pelo vento ondulou e brilhou nos seus olhos toldada pelas
lágrimas. Quanto tempo dormira? Dois dias?
Caçador de Sonho? murmurou, numa voz rouca, com sensações irreais. A fome e a fa
diga brincavam com a sua mente e os seus sentidos Cambaleou, estonteado pelo seu
equilíbrio vacilante.
Preciso de te apanhar, lobo.
Os comedores de almas da Longa Escuridão aproximaram-se e sentiu os ouvidos a
ssombrados pelos seus sussurros. Cerrou os dentes e gritou
O Povo precisa de comida. Está me ouvindo, lobo? Estamos morrendo de fome!
Uma voz marcada pela idade murmurou na memória rodopiante de Luz: O Pai Sol e
stá perdendo a força. A Mãe Nuvem está enrolando-se no Homem Céu Azul e sugando seu calor.
O velho shaman, Chamador de Corvo, piscara os olhos e, com um olho negro e o ou
tro branco pela cegueira, falara ao Povo da fome que viria.
Vendo apenas neve, o velho líder profetizara:
Este ano o mamute morrerá. O boi almiscarado morrerá. O caribu ficará, com o búf
alo, lá para o sul. O Povo vai definhar.
E assim acontecera. O tempo do degelo durante a Longa Luz mal durara um vir
ar do rosto da Mulher Lua. Logo a Mãe Nuvem cobrira os céus, a chuva e a neve consta
ntes tinham vindo, raivosamente, do norte para matar a Longa Luz. O frio caiu pe
sadamente sobre a terra quando as ervas, os salgueiros e as plantas da tundra ai
nda não tinham crescido bem alto para alimentarem os mamutes.
Chamador de Corvo passava o tempo cantando, rezando por um Sonho, O velho s
haman apanhou uma vez Gaivota e torceu-lhe quatro vezes o pescoço. Com a ave inert
e nas suas mãos castanhas e calosas, rasgara através das penas de baixo, com uma fac
a de obsidiana, para expor os intestinos. Olhara, com o olho bom brilhando, para
ver que notícias Gaivota trouxera de tão longe, por cima das montanhas de gelo flut
uante, da grande água salgada do Norte.
Voltar dissera ele, rouco. Temos de ir para o Norte... voltar para onde
viemos.
O Povo trocara olhares ansiosos, recordando aqueles que os tinham perseguid
o, aqueles a quem chamavam os Outros: caçadores de mamutes como eles, mas homens q
ue tinham assassinado e expulsado o Povo dos férteis terrenos de caça do Norte. O Po
vo poderia voltar? Poderia enfrentar aqueles ferozes guerreiros?
Outrora assim o diziam os mais velhos, o Povo vivera do outro lado das giga
ntescas montanhas de Oeste. Lá, o Pai Sol dera-lhes uma terra maravilhosa de rios
e de planícies cheias de ervas e de caça. Depois os Outros tinham chegado, expulsand
o-os da terra, empurrando-os para Norte e para Leste, contra a água salgada. O Pai
Sol, na sua sabedoria, dera-lhes uma nova terra na boca do Grande Rio, uma terr
a de onde podiam ver o Grande Gelo entrando na água salgada. Os Outros tinham-nos
seguido, tinham-nos expulso daqueles luxuriantes terrenos de caça, empurrando-os p
ara aquele vale comprido, muito ao Sul. Agora, a terra elevava-se, as montanhas
fechavam-se a Oeste, o Grande Gelo avançava de Leste. Que lhes restava? E, atrás del
es, os Outros continuavam a empurrar, a forçar o Povo a subir mais ainda naquelas
colinas rochosas e desprovidas de caça.
E os mais velhos debateram o que fazer enquanto o Povo se preocupava. Haver
ia caça suficiente naquela região montanhosa onde pouca erva havia para o mamute e o
caribu? Que deveria fazer o Povo?
E foi então que um jovem caçador, chamado Aquele Que Chora, entrara correndo no
acampamento gritando que encontrara três mamutes mortos. Todos falaram. Contra a
opinião de Chamador de Corvo o Povo fora mais para Sul para desmanchar os gigantes
cos animais, comendo as carcaças enquanto a Longa Escuridão crescia cada vez mais so
bre as suas cabeças e expulsando o Pai Sol para a sua morada mais para Sul.
O Chamador de Corvo resmungou e barafustou, atormentando-os, dizendo que a
fome seria a punição que teriam por desobedecer ao oráculo da Gaivota.
Uma boca cheia de comida vale mais que um ouvido cheio das palavras do sha
man disse Corre na Luz a si mesmo. E o Povo ficara, partindo até os ossos menores
dos mamutes para aproveitar a medula toda. Estenderam as pesadas peles sobre ped
ras empilhadas e levantaram-nas com os ossos compridos e os dentes dos mamutes.
Mas o mamute não respondeu aos cânticos de encantamento de Chamador de Corvo. Os boi
s almiscarados e os caribus permaneceram ao longe, no Norte, mais perto da grand
e água salgada.
Apesar dos protestos da velha Ramada Partida, o Povo comeu os cães. Primeiro
foram os cães da matilha que foram transformados em guisado. Por fim, em desespero
, os cães de urso foram abatidos e lançados às peles de ferver um sinal indiscutível de
que o Povo estava à beira da catástrofe.
Os homens e as mulheres foram caçar mas não encontraram se não escuridão e gelo. O
Avô Urso Branco matou Atira Ossos e arrastou-o para a escuridão, onde o comeu.
E o Povo morria de fome.
A Mulher Vento bateu nas peles de Corre na Luz empurrando-o para a terra do
Grande Gelo e casa do Pai Sol: para Sul, cada vez mais para Sul. Até mesmo Lobo e
stava correndo nessa direção para longe dos abrigos do Povo e para o desconhecido, o
nde nem mesmo Chamador de Corvo se atrevia a penetrar.
Chamador de Corvo sussurrou Corre na Luz. O maldito do velho shaman toma
ra Raposa Dançante para sua mulher, apesar de saber como ela o desprezava. Mas que
m podia negar alguma coisa a um shaman com o poder de Chamador de Corvo?
Fora um Inverno de lamentações. Corre na Luz perdera muito: não apenas a mãe como a
mulher que fazia cantar o seu coração. Piscou os olhos e abanou a cabeça. Percorreu-o
uma tontura e teve de lutar para manter o equilíbrio.
Mais um bocadinho murmurou ele, dirigindo-se aos Comedores de Almas da L
onga Escuridão. Concedam-me apenas mais um bocadinho.
Fome... muita fome. O Povo insistira para que os caçadores fossem os primeiro
s a serem alimentados. Sem caçadores fortes um Povo morria. Mesmo assim, ele fizer
a batota dera a sua parte a Raio de Sol Sorridente. O leite dela secara e o bebê c
horava desalmadamente. Mas se ele encontrasse o lobo, ela poderia alimentá-lo de n
ovo.
Corre na Luz engoliu o ar gelado e sentiu o frio penetrar no seu corpo já tre
mente de frio. A sua mente reduziu a velocidade. Continuou a perseguição, as pernas
pesadas, sabendo que o lobo estava por perto, raivoso sem desejo algum de morrer
pacificamente.
Um pé escorregou no gelo inclinado. Caiu desamparado, soltando uma imprecação e f
icando de novo com a cabeça tonta. Levantou-se, sacudiu a neve e inspecionou as ar
mas, tornando a colocar o dardo no gancho existente na extremidade do atlatl.
Com o espírito confundido, esteve um momento, tentando recordar-se do motivo
que o levara a sair da segurança do abrigo.
Que estava eu...? Ah... o lobo. Assustado com o lapso procurou concentrar-
se na presa.
Tornou a debruçar-se sobre a pista. Há semanas que o Povo vivia da pele de mamu
te, cortando seção por seção os tetos que lhe cobriam as cabeças. Passavam horas mastigand
o a pele congelada, pois não tinham fogo para ferve-la e amaciar.
Tropeçou e quase caiu. Enquanto lutava para se conservar ereto viu pelo canto
do olho, um movimento. Virou-se devagar. Tarde demais.
Uma cornija cedeu sob o lobo quando este, enfraquecido pela perda de sangue
, saltou da crista de um monte de gelo. O lobo caiu, rolando descontrolado no me
io de uma nuvem de neve, rosnando de raiva e medo, e apanhou Corre na Luz, atira
ndo-o ao chão.
Corre na Luz pôs-se de joelhos para enfrentar o lobo.
Meu irmão cantou ele baixinho, permita que te mate. O Povo morre de fome. Ab
ençoa a tua alma deixando-te usar por nós. Merecemos a tua...
O lobo saltou. Corre na Luz, por instinto, rolou para escapar às poderosas ma
ndíbulas que visavam a sua perna.
A respiração do animal, pesada e rouca, lançava no ar lufadas de vapor gelado. De
cabeça baixa, olhos amarelos semicerrados, mostrou os dentes.
Corre na Luz levantou-se e rodou em volta do lobo. A haste ensanguentada do
dardo pendia do flanco do lobo e mexia-se, indolente, com cada respiração laboriosa
do animal. O sangue pingava da ferida aberta e ensopava o pêlo do lobo onde conge
lava em cordões.
Por que não sinto eu medo? O lobo enfrenta-me com ódio nos olhos. Estamos os
dois famintos. Será que a fome transforma os homens e os lobos em loucos?
A Mulher Vento uivou através da escuridão gelada. Uma fina poeira de neve brilh
ou à luz do Povo das Estrelas ao pousar sobre eles. O rosnar do lobo saía da sua boc
a como uma nuvem vaporosa.
Lobo... lamento. O Pai Sol não se lembrou de nós quando temos de nos comer uns
aos outros. Para onde foi o caribu? E o mamute?
A cabeça do animal descaiu. Corre na Luz reparou, pela primeira vez, na espum
a vermelha que se acumulava na boca do lobo. A queda de há pouco devia ter feito o
dardo penetrar num pulmão.
Os membros do lobo tremeram, atingidos por uma súbita fraqueza. O animal atac
ou mas os seus pés perderam a graça. Vacilou e forçou a respiração a soltar um som lancina
nte que se sobrepôs ao uivar do vento. Tropeçou e tombou.
Perdoe-me, irmão cantou Corre na Luz de mãos erguidas ao céu noturno. Envio
tua alma ao Povo das Estrelas. A tua carne tornará o meu Povo forte. É um bravo, irmão
lobo.
Mergulhou, com toda a sua força, como se fosse uma lança, um dos compridos dard
os no flanco do lobo. O lobo ganiu de dor e agitou-se com violência enquanto Corre
na Luz procurava segurar o outro extremo do dardo. O grande animal imobilizou-s
e e os seus ferozes olhos amarelos ficaram vazios contemplando a neve.
Corre na Luz relaxou o corpo e olhou na direção do Povo das Estrelas.
Obrigado, lobo. Pai Sol, está me ouvindo? gritou, ressentido. O Lobo acabou d
e dar a sua vida para salvar o teu povo. Ele preocupou-se conosco.
As suas mãos tremiam enquanto abria a barriga do lobo soltando uma golfada de
vapor, que rodopiou, acariciando a sua cabeça com o odor quente do sangue. Soltou
o coração e, agradecido, sugou-lhe o sangue quente de vida. Com as pontas dos dardo
s, cortantes como facas, cortou o espesso músculo cardíaco em tiras e engoliu-as, qu
ase se sentindo deliciado com as repentinas câimbras do seu estômago. O desagradável s
abor acre do lobo encheu-o a Força no seu pleno direito.
A força do lobo invadiu-lhe o corpo. Uma sensação de calor espalhou-se pelos seus
membros como o gelo derretendo-se na alvorada da Longa Luz.
Entoando baixinho uma canção do espírito Corre na Luz virou-se para o monte de ne
ve de onde lobo tombara e começou a retirar a crosta de neve. Em questão de minutos
as suas mãos hábeis tinham escavado um abrigo.
E gritou, olhando para o céu noturno:
Vão embora! Mostrei ter honra! Não têm nenhum direito sobre a minha alma! Vão! Dei
xem-me sozinho!
Os poderes malignos da Longa Escuridão recuaram, respeitando-o; ele e à sua bra
vura.
Rezando para que o Avô Urso Branco não o encontrasse, Corre na Luz puxou a carc
aça do lobo, de modo a bloquear a entrada, a maior parte da entrada dos dedos pene
trantes da Mulher Vento, e enrolou-se numa bola, caindo de imediato num sono de
exaustão.
A longa fome misturou-se com a fadiga enquanto que a força do sangue do lobo
lhe aquecia o estômago e corria, forte, nas suas veias. O Sonho veio da escuridão do
torpor e apanhou-o desprevenido, com toda a sua força.
No Sonho, ele e Lobo caminhavam lado a lado. O Pai Sol já não estava escondido
atrás da Mãe Nuvem. Ali, no Sonho, a fome não lhe amolecia as pernas ou lhe fazia a ca
beça leve. Caminhava cheio de força, com Lobo junto de si, num passo ligeiro.
Ali! , indicou Lobo com o focinho. Está vendo? Ali no Sul? O Grande Gelo brilhava
na frente deles, uma muralha interdita de frio e de gelo sob montanhas de neve.
Da enorme parede corria água que arrastava pedras e rochas para a luz antes de fic
ar congelada, em formas estranhas, no ar frígido. A parede maciça abriu fendas, geme
u, e desabou na sua frente.
Não era de espantar que Chamador de Corvo tivesse medo dela. Corre na Luz eng
oliu em seco quando ele e lobo se aproximaram mais.
Quando se aproximaram da muralha viram um rio largo e ondulante que escapav
a de uma fenda, com blocos de gelo acumulados no vale à medida que o gelo recuava
nas colinas. Caminharam ao longo das águas cristalinas e Corre na Luz viu salmões e
trutas vermelhos com as ovas lutando para subir o rio enquanto que aqui e ali da
rdejavam tímalos.
Por aqui murmurou Lobo. Treparam juntos por uma fenda gigante. Olhando par
a cima, Corre na Luz podia ver o Homem Céu Azul muito no alto, numa linha quebrada
, onde o gelo fora derretido pela luz. Depois caminharam na escuridão. Negra, eter
na, a noite envolveu-os. Só os seus dedos, tocando no pêlo de lobo, lhe asseguravam
que a sua alma não ficara enterrada para sempre.
Ao fim de muito tempo tremeluziu um ponto de luz que foi crescendo, cada ve
z mais forte. As paredes abriram-se, permitindo que se tornasse visível uma maior
extensão do Homem Céu Azul. O medo desapareceu tal como o pêlo de Inverno do caribu de
saparecia na Primavera. Durante muito tempo correram, envolvidos por uma sombra
azul, com o ruído do cascalho debaixo dos pés almofadados, até que por fim um monte de
pedras, arredondadas pelas águas, lhes bloqueou o caminho.
Lobo saltou com ligeireza de pedra em pedra e, no cimo, parou para olhar pa
ra trás, por cima do ombro. Os dedos da Mulher Vento levantavam-lhe o longo pêlo bra
nco-acinzentado.
É este o caminho, homem do Povo , ecoou a voz do animal nas paredes de gelo. Most
rar-te-ei o caminho da salvação. Eu devia ter vindo por aqui. Não teria necessitado ro
er Voa Como Uma Gaivota e não você teria disparado contra mim. Toma a minha carne. C
omam-na e fiquem fortes para que possam seguir este caminho... este caminho...
Lobo saltou de pedra em pedra, a cauda felpuda captando a luz prateada enqu
anto tomava balanço para saltar para o outro lado.
Corre na Luz mordiscou o lábio, sentindo fechar-se em torno de si uma súbita so
lidão, enquanto permanecia nas sombras azuladas dos blocos de gelo. Seguiu o lobo,
atacando as pedras. Subiu devagar, apoiando-se num joelho para nivelar o corpo.
Agarrando-se às superfícies de granito polido foi subindo cada vez mais alto.
O Pai Sol banhou o rosto em luz enquanto suava no seu avanço os pulmões rebenta
ndo até o topo. Olhou, meio cego, e soltou um súbito som de espanto e maravilha. Erv
as espessas ondulavam sob a carícia da Mulher Vento. Com os pêlos castanhos brilhand
o, o mamute virou-se, levantando a cabeça, a tromba enrolando-se nas presas de mar
fim branco e cheirando o ar. Caribu pastava, as hastes não passando ainda de botões
sob um novo manto de veludo. O boi almiscarado batia os cascos e baixava o focin
ho para apresentar os cornos na sua velha postura defensiva. Muito ao longe, lob
o corria saudando raposa, doninha, corvo e outros.
Corre na Luz sorriu e abriu os braços para o Pai Sol fazer a vida bater nas s
uas veias. Lá embaixo, o Avô Urso Castanho rolava de costas na erva, agarrando as pa
tas de trás antes de sacudir a sua pelagem sedosa ao brilho da luz. O búfalo de corn
os compridos pastava, a cauda abanando.
O alce estava no charco, com musgo agarrado às hastes por andar procurando na
s águas por plantas tenras.
Esta é a terra do meu Povo murmurou Corre na Luz. É aqui que vive o Pai Sol. A
sua morada do Sul. Lobo, abençoado seja por me mostrar este caminho. Trarei o Pov
o até aqui... e, juntos, cantaremos a ti os nossos agradecimentos.
Virou-se, relutante em deixar atrás de si tal terra. A descida pelas pedras c
onsumiu-lhe a energia, deixando-o frio e cansado quando finalmente acabou a desc
ida.

CAPÍTULO 2
Uma forte rajada de vento bateu no dólmen e penetrou, como uma lança, entre as
pedras negras e geladas. Fogo de Gelo, acocorado no abrigo entre as pedras, os
braços cruzados, enrolou-se mais no casacão de pele dupla de caribu.
Apesar da tempestade de neve levantada pelo vento, e que obscurecia a terra
num branco cegante, conseguia ver, abrindo a mente, através dos tentáculos de neve
e catalogar a miríade de estrelas. A neve caía das pedras e acumulava-se, num pó fino,
em torno das suas botas altas.
Fogo de Gelo, o Mais Respeitado Velho do Povo do Mamute, correu, a língua sob
re os dentes que lhe restavam. Havia um espaço estranho no lugar em que o primeiro
molar superior esquerdo estivera. Só era capaz de mastigar com o lado direito da
boca. Seguiu com a língua a parte de trás dos seus incisivos superiores e contemplou
as estrelas.
Há tantos anos murmurou ele ao céu que estou sozinho. Por que me ti
rou todos aqueles que eu amava? Que quer de mim, Grande Mistério, que está aí em cima?
Mas apenas o vento incessante assobiava e sibilava. Escutou, à espera de uma
voz, de que uma visão se formasse na neve que soprava sobre, a planície interminável e
apagava todo aquele ano terrível.
Mudou de posição e uma saliência na pedra aleijou-lhe as costas quando procurou o
lhar para Norte. Continuava a consumi-lo aquela inquietação. Há quanto tempo? Já se havi
am passado quase duas dezenas de dedos desde a primeira vez que viera até aquele l
ugar em resposta à chamada. Agora, tudo começara de novo, só que a chamada vinda de Su
l e o deixava insone, como naquela noite. Era como uma pressão sutil que incomodav
a a periferia dos seus pensamentos, que o levava a deixar as quentes cabanas de
pele de mamute do Clã da Presa Branca e o fazia trepar aquelas alturas para ficar
ali sentado, olhando e pensando enquanto esperava.
O Inimigo estava lá. O Inimigo em cujas terras agora caçavam. O Inimigo que nun
ca lutava apenas abandonava as suas coisas e fugia para o Sul. Fungou. Como é que
um guerreiro podia encontrar honra com inimigos como aqueles? Como é que o Clã da Pr
esa Branca podia ganhar de novo a honra da proteção da Pele Branca Sagrada, o totem
de poder da sua tribo, enquanto a guerra assolava os outros clãs do oeste?
Temos de obrigar aqueles covardes a lutarem contra nós.
Fogo de Gelo coçou o nariz com a luva incrustada de gelo e inclinou a cabeça pa
ra trás para olhar de novo as estrelas meio encobertas pela neve. A Pele era o obj
eto sagrado de maior valor do Povo do Mamute. Há muito tempo que lhes pertencia: a
pele de uma cria de mamute branca cuidadosamente curtida. A história dos clãs, o si
mbolismo das direções, as coisas da terra, ar, água e luz, tudo isso fora delicadament
e desenhado em torno da área que simbolizava o coração da Pele. As imagens tinham sido
desenhadas com o sangue ritualmente colhido do coração de mamutes recém abatidos. O P
ovo, sem a Pele, morreria de fome: o Mamute deixaria de ouvi-los. Morreriam, sop
rados como a fina penugem branca do peito de um ganso das neves.
Cansado, Fogo de Gelo deixou-se relaxar, bem quente dentro das suas roupas,
confortável, a não ser pela dor dos seus velhos joelhos e a pressão da pedra nas suas
costas.
Como sempre acontecia em noites solitárias como aquela, a memória da mulher na
praia voltou para assombrá-lo. Que beleza espantosa! Estivera tão seguro de que ela
o chamara para aquele lugar isolado parte da visão, do Sonho de Dor que lhe deixar
a a morte da sua esposa. Talvez o tivesse chamado. Na visão, ela entregara-se a el
e, deixara que ele a amasse, se perdesse nos braços da alma dela. Mas a Vigilante
interferira e alterara tudo. A visão desaparecera deixando-o a contemplar, horrori
zado, aquilo que fizera. O Poder fora indevidamente usado. Tremeram o futuro e o
passado. Aquilo que poderia ter sido bom mudou-se em algo de terrível. A Vigilant
e estivera lá, a sua presença tão tangível como a fome, a sede... ou a dor.
Fugira correndo, chocado com o que fizera à mulher que quisera amar. Subira,
em vão, aos lugares mais altos em busca da explicação do Grande Mistério, gritando bem a
lto na noite para enfrentar a Vigilante sem qualquer resultado.
Sou apenas o teu instrumento! sibilou ele para o céu. Para que te serviste a
ssim de mim, ó Grande Mistério das alturas? Que sou eu para ti, quando podia ser ape
nas um homem? Por que me amaldiçoaste? Por que me deixaste estéril quando o que eu m
ais queria eram filhos?
Fechou os olhos e sacudiu a cabeça. O vento uivou-lhe, a neve invadiu-lhe as
pregas da parka, debruou a pele do capuz, onde a sua respiração já se congelara.
A atração da nova terra ficou mais forte e, na sua exaustão, deixou-se arrastar p
ara sul, cada vez mais para sul. Tal como a fumaça de uma fogueira de bosta fresca
começou a pairar sobre a terra, vendo, cheirando, ouvindo o espírito e a alma evola
rem-se das rochas, do pó e da tundra lá embaixo. Durante algum tempo teve a exaltação da
liberdade total, uma alegria e uma leveza de laços quebrados e bênçãos sem fim.
De repente, um jovem surgiu na sua frente e bloqueou-o. Ergueu-se das colin
as rochosas, pés juntos, vestido à maneira do Inimigo, com uma pele de Urso Branco e
os olhos brilhantes de um Sonhador.
Desaparece, homem! ordenou Fogo de Gelo. Você está no caminho do Clã da Presa
ranca. No caminho do meu povo.
Que está procurando?
O que estou destinado a encontrar. O caminho do meu povo. Os filhos que eu
deveria ter gerado.
O jovem indicou a cabeça.
Você já tem filhos. O teu destino o espera... se o aceitar. Os seus quatro filh
os são o teu destino. Qual será a sua escolha? Luz ou Escuridão? ergueu uma mão.
A visão de uma mulher, cabelos soltos ao vento, moldou-se nas nuvens.
O jovem alto falou de novo:
Ela é a Luz. Escolhe-a e você e os teus passarão por este caminho. Tornou a levan
tar a mão, soprou na palma aberta e dela soltou-se um arco-íris que se estendeu pelo
céu, ofuscando até as bandas de cor da Li que o Grande Mistério enviara para os céus bo
reais. O jovem apontou uma nuvem negra: Escolhe a Escuridão e todos vocês morrerão.
Eu disse desaparece! Havemos de esmagá-los debaixo dos nossos pés apesar da su
a mágica. Fogo de Gelo respirou fundo para esconder o medo. Nunca toleraremos esse
Sonhar, essa mágica da sua espécie. O Grande Mistério cuidará de que assim seja. Os nos
sos dardos são mais fortes que os seus Sonhos... seus Vigilantes. Não brinque conosc
o, homem do Inimigo. Quebraremos o teu povo como um ramo seco de salgueiro.
O jovem sorriu.
É isso que procura? Destruir? É essa a sua escolha?
Não retorquiu Fogo de Gelo numa voz estridente, sentindo uma desesperada agu
lha de medo subir-lhe pela espinha. Procuro os meus filhos, o destino do meu
povo, a posse da Pele Sagrada.
E que dará em troca? - Os olhos do jovem faiscavam como luz na sua cabeça.
Fogo de Gelo engoliu em seco.
Eu... tudo.
Dá-me o teu filho? Pagarei no mesmo valor. Um filho por um filho. Uma vitória
pela derrota. A vida pela morte.
Mas eu...
Concorda? Trocará o que é teu por aquilo que é meu?
Fogo de Gelo, confuso, abriu a boca e murmurou involuntariamente:
Trocaria... se...
Então, que assim seja. E o jovem virou-se, tremeluzente, caiu de quatro
no chão, os braços e as pernas multiplicaram-se até se tornar numa aranha vermelha. O
animal subiu correndo o arco-íris e parou quase no topo, onde se virou e, abrindo
as pernas, lançou girando pelos céus as cores do arco-íris até se juntarem numa teia li
gando as estrelas.
Fogo de Gelo acordou em sobressalto, piscando os olhos. A neve continuava s
oprando em rajadas infindáveis. Fez uma careta ao sentir as pernas dormentes de es
tar há tanto tempo ali sentado. Pôs-se de pé com esforço sentindo as agulhadas do sangue
a revitalizarem as suas pernas dormentes.
Quando olhou para as estrelas, meio encobertas pela neve, viu nelas a forma
da aranha, suspensa, esperando, vigiando.
Que assim seja sussurrou ainda vendo a visão. No seu coração instalou-se uma dor
. Um filho por um filho? As velhas linhas de sofrimento reapareceram em torno da
sua boca. Para começar, Grande Mistério, não tenho filho algum. Sou de novo um brinqu
edo nas tuas mãos? Para ser atirado fora como uma boneca de osso de peixe? Não terá ou
tro homem para mergulhar na dor?
Coxeando, devido às picadas nas pernas, Fogo de Gelo saiu do dólmen e desceu de
vagar a colina na direção dos abrigos cônicos de pele de mamute que pontilhavam a planíc
ie lá em baixo.
Muito longe dali, para Sul, Corre na Luz piscou as pálpebras cobertas de gelo
, pensando no estranho mais velho dos Outros, o homem com quem falara tão alegreme
nte no seu Sonho.
De onde tinham vindo as suas palavras? Que queriam dizer? Não devia falar daq
uela maneira com um mais velho. A testa enrugou-se. E aquela coisa de povos... e
filhos?
Espreitou para a escuridão, sentindo a parka pesada com a neve, espantado por
um instante até se recordar de onde estava... o Sonho da Caçada. Com certa curiosid
ade estendeu uma mão até sentir o tranqüilizante toque da pele do Lobo.
Tantos Sonhos. Olhou, assustado, para a escuridão.
Irei para Sul contigo, Lobo. Mas, homem dos Outros, quem é você? Por que me pro
curou? Como poderei eu, Corre na Luz, trocar contigo um filho?

CAPÍTULO 3
Raposa Dançante apertou as últimas tiras de couro em volta do bebê morto de Raio
de Sol Sorridente cobrindo, pela derradeira vez, aquele rostinho descorado. Exa
lou devagar. Era uma mulher bonita, de rosto oval, com olhos brilhantes e tão gran
des e redondos como de uma coruja. Cerrou os dentes numa mistura de raiva e dor
enquanto se esforçava por espetar, com dedos enregelados, uma sovela de osso no co
uro gelado.
Raios partam isto...
O quê? perguntou, temerosa, Raio de Sol Sorridente.
Estava falando com a pele. Está tão rija do gelo que até sinto os cristais range
ndo quando a sovela os atravessa.
Rápido, por favor implorou Raio de Sol Sorridente. Não suporto mais.
Colocando o bebê no colo, Raposa Dançante encolheu a mão dentro da manga e usou o
couro como uma proteção para, com mais força, fazer a sovela penetrar na pele. Com um
estalo a pele cedeu. Segurando na sovela com os dentes começou a passar o pedaço de
tendão pelo buraco que abrira para depois puxá-lo e fechar assim aquele rostinho no
seu saco de pele.
Tantos mortos. Será que a Longa Escuridão comeu todas as nossas almas? A luz e
a vida desapareceram do mundo inteiro? Coçou a própria barriga, receosa de que a sem
ente de Chamador de Corvo tivesse vingado na sua matriz. O sangue não lhe viera na
s duas últimas luas, mas a fome também fazia isso a uma mulher.
Na sua frente, Raio de Sol Sorridente chorava baixinho, embalando-se para a
trás e para frente nos calcanhares, um esgar no seu rosto triangular e de nariz e
m bico. Com uma lasca de pedra batera numa das partes íntimas de Lobo Cantante e c
ortara a sua própria cara até o sangue quente correr. Depois metera a lâmina cortante
nos cabelos e cortara-os rentes vendo as longas madeixas negras tombarem no chão g
elado e sujo.
Raio de Sol Sorridente? chamou baixinho Raposa Dançante, ao mesmo tempo que
atava o nó da morte no saco do bebê. O rosto azulado da criança continuava a pesar no
seu espírito, como a fumaça do óleo numa manhã fria. Pegou o saco para a mãe o tomar mas R
aio de Sol Sorridente apenas abanou com amargura a cabeça.
Raposa Dançante segurou o bebê debaixo do braço esquerdo e estendeu o outro para
apertar o ombro de Raio de Sol Sorridente.
Pare com isso ordenou ela numa voz suave. Está gastando forças que pre
cisa para viver.
Talvez eu não queira viver balbuciou Raio de Sol Sorridente, escondendo ent
re as mãos o rosto ensanguentado. Todas as minhas crianças morreram na Longa Escuridão
. Eu...
Chiu! Claro que quer viver. Virão mais bebês. Não está assim tão velha que não possa.
.
Será que ninguém Sonha? gritou histericamente Raio de Sol Sorridente bat
endo repetidas vezes com os punhos cerrados no chão gelado. O som cavo das batidas
ecoava dolorosamente no coração de Raposa. Que nos aconteceu? Que estamos fazendo a
qui morrendo de fome? Será que o Pai Sol nos abandonou aos espíritos da Longa Escuri
dão?
Talvez disse Raposa Dançante com amargura. Mas eu pretendo continuar a vi
ver apesar d Ele. E vou te arrastar comigo. Agora pare de torturar a si mesma. Tem
os deveres a cumprir.
Raio de Sol Sorridente limpou os olhos e sussurrou:
O teu coração está tão vazio como a tua barriga, Raposa? Que fez Chamador de Corvo
...
Que fez? perguntou a outra, refletindo, sentindo uma dor remexendo-se no p
eito à menção do nome do marido. Baixou os olhos para o chão. Fez-me mais forte.
Quer dizer meio humana. Costumava ser gentil e...
A gentileza é para os que estão vivos disse ela abrindo a cortina da porta.
Os mortos já não precisam dela.
Raio de Sol Sorridente inclinou, cheia de curiosidade, a cabeça.
Mas o espírito da minha filhinha ainda pode ouvir...
Não existem espíritos.
Você... Ora, claro que existem. Que pensa que faz...
Raposa abanou a cabeça com veemência:
Não, não existem. Há duas luas que rezo ao Pai Sol e às Crianças Monstruosas...
Desde que casou com Chamador de Corvo?
Raposa deixou cair a cortina e acenou afirmativamente:
Não me responderam nem a uma só das minhas orações.
Raio de Sol Sorridente piscou para afastar as lágrimas e engoliu com esforço:
Talvez o Poder dele impeça os espíritos de te ouvir.
Talvez
Nesse caso podem mesmo existir disse ela, implorante. E a minha menina
pode ouvir.
Claro. Raposa Dançante sentiu a vergonha da sua insensibilidade a avermel
har-lhe a cara. Tocou desajeitadamente no saco fúnebre acariciando-lhe a cabeça cobe
rta. Que ela estava fazendo, minando a derradeira esperança da sua amiga? Não era o
que eu queria dizer, Raio de Sol. Claro que ela pode ouvir.
Eu sei que você não fez de propósito. Raio de Sol sorriu, consolada e acaricio
u o braço de Raposa. Apenas está esfomeada e cansada, como todos nós.
Trocaram um sorriso de ternura e gatinharam por baixo da cortina para entra
r na tênue luz cinzenta. As pernas de Raposa Dançante tremeram um pouco quando se co
locou de pé. Ajudou, com esforço, Raio de Sol Sorridente a pôr-se de pé.
Chamador de Corvo, um pouco afastado delas, mostrava irritação no seu rosto enc
arquilhado. As suas carnes velhas tombavam em rugas pendentes. De um dos lados d
o seu nariz de falcão brilhava um mortífero olho negro o outro olhava branco e sem v
ida. Na sua boca de lábios finos não havia humor nem um sentimento sequer por outra
tragédia de morte. Erguendo as mãos começou de imediato a cantar, a sua voz antiga ond
ulando para cima e para baixo na escala enquanto entoava a canção de morte de cor, c
hamando o Abençoado Povo das Estrelas para que aceitasse no seu seio aquele bebê ape
sar de nem sequer ter nome.
Claro que não lhe tinham dado nome. O Povo nunca daria o nome a um bebê antes d
e passarem cinco Longas Escuridões para provar que sobreviveria. Fosse como fosse
um bebê era, até essa altura, um simples animal. Só se tornava humano quando aprendia
a falar e a pensar e começava a ser um dos do Povo. Era então que chegava uma alma
humana durante um Sonho e encontrava um lar nessa criança.
Lobo Cantante, o marido de Raio de Sol Sorridente, avançou para abraçar a espos
a e tirar a criança dos braços da Raposa. Colocou o bebê nas mãos relutantes de Raio de
Sol. Um a um o Povo levantou as cortina geladas das portas dos seus abrigos e fo
i-se pondo, a custo, de pé. Alguns oscilavam, estonteados pela fome.
O Povo era alto e ereto, de pele acastanhada brilhando no clarão da neve. Hav
ia linhas traçadas em redor dos olhos e das bocas, uma herança do sol, do vento e da
tempestade. Lábios largos, feitos para rir, tinham-se tornado em estreitos e fúteis
traços por debaixo de olhos aguçados pela dor. Os dedos da Mulher Vento pegaram sua
s peles talhadas onde velhas nódoas de gordura brilhavam negras sobre o cinzento N
aquele lusco-fusco apresentavam um ar cheio e rotundo, metidos como estavam nos
seus montes de peles, um povo tão gasto como as pedras glaciais polidas sobre as q
uais acampavam.
Marcharam, numa linha solene, todos cantando, seguindo uma Raio de Sol que
avançava, vacilante, rodeando os abrigos cobertos de gelo na direção da neve mais ao l
onge. Começou a subir uma encosta, abrindo a pontapé pontos de apoio na crosta branc
a. Tropeçou e quase deixou cair a criança mas, apertando-a contra o peito, respirou
fundo e prosseguiu.
Seguindo-lhe os passos hesitantes o Povo atravessou para o outro lado. Aqui
e ali eram visíveis os mortos, com partes dos seus corpos sobressaindo grotescame
nte da neve. Os velhos tinham sido os primeiros a morrer. Nos primeiros dias tin
ham calmamente saído para vaguear naquele descampado batido pelo vento para morrer
em em paz, como era seu direito. Mais tarde, com as forças faltando, os mais velho
s tinham congelado dentro das suas roupas, recusando-se a comer.
Raio de Sol colocou o bebê no cimo do monte de neve e caiu de joelhos soluçando
a sua angústia. À sua volta, o Povo cantava, erguiam-se vozes na canção da morte, na es
perança de enviar a criança sem nome para o Povo das Estrelas.
Chamador de Corvo levantou as mãos e virou-se para os olhar de frente.
Era só uma menina! gritou. Vamos acabar com isto depressa para pode
rmos voltar aos abrigos.
Os gritos de Raio de Sol pararam de repente quando virou os seus olhos inch
ados para olhar, implorante, para o velho shaman.
Raposa Dançante ergueu uma sobrancelha e sentiu a raiva rasgar-lhe o peito qu
ando viu o olhar devastado de Raio de Sol.
Não diga nada, marido disse ela numa voz baixa e tremelicante. Todas as cria
nças são preciosas.
Está assim tão ansiosa para que eu te encha que está disposta a aceitar qualquer
resultado? Cale essa boca...
Nem por isso.
Ele virou-se de um salto:
Cheia de coragem, é? Eu devia amaldiçoar a tua matriz para que nunca tenha uma
criança.
Seria capaz disso? respondeu Raposa Dançante em tom desdenhoso. Ficaria muit
o grata.
Do grupo começou a elevar-se um murmúrio baixo com as pessoas ficando irritadas
com a desobediência de Raposa. Uma mulher nova nunca devia falar assim com um mai
s velho em especial quando o mais velho era o seu marido. Raposa, ao observar os
seus olhares condenatórios, sentiu uma impressão invadir-lhe o estômago. Toda a sua v
ida tentara obedecer às regras. Por que é que nunca conseguia fazer isso?
Chamador de Corvo levantou devagar o queixo. Via-se a raiva brilhar no seu ún
ico olho negro. Apontou uma mão enluvada para ela:
Está vendo? Uma prova de que as mulheres são menos que nada... não passam de pó qu
e apenas é útil para fazer crescer a semente de um homem.
É verdade gritou o jovem Gritos de Águia do fim da multidão. Todos sabem disso. V
amos nos apressar e voltar para os abrigos.
Escutem... começou Chamador de Corvo.
Loucos! interrompeu uma fraca e velha voz, ressoando do último abrigo. Quem
pensam vocês que lhes limpou os traseiros quando eram bebês? Quem lhes limpou as lágri
mas quando estavam assustados? Quem foi, pais?
O Povo virou-se para contemplar pensativamente Ramada Partida o mais velho
membro do bando, que lutava por se soltar de baixo da pesada cortina e avançar. Po
r debaixo do seu capuz de raposa ártica saía madeixas de cabelo cinzento e ralo em âng
ulos estranhos. As narinas do seu avantajado nariz fremiam. Os seus velhos olhos
castanhos estavam semicerrados naquilo que todos reconheciam como puro desdém. O
Povo recuou para deixar uma passagem para ela.
Quando alcançou o topo da colina, Ramada Partida olhou ameaçadoramente para a m
ultidão, trespassando cada um dos homens com o olhar furibundo. Uns poucos enchera
m os peitos de ar em desafio, mas a maioria baixou o olhar em sinal de respeito.
Acenou com uma mão como se os mandasse embora.
Que vocês estão fazendo? Discutindo quando está morto um membro do nosso clã?
A Mulher Vento acentuou as suas palavras soprando ferozmente sobre a neve. As pe
ssoas agarraram-se umas às outras para se manterem de pé. Deviam era estar pensando
como evitar que morra mais alguém!
Sim cuspiu Chamador de Corvo, olhando-a de soslaio. Temos de sair daqui. A
morte espreita cada um de nós...
Não concorde comigo, velho trapaceiro acusou-o Ramada Partida.
Os olhos de Chamador de Corvo iluminaram-se de raiva.
Eu tenho o mais forte Poder de Espírito de todos os do Povo! gritou ele, agit
ando o punho na frente da cara dela.
Você passa o tempo a dizer-me isso.
Raposa Dançante recuou um passo quando o marido mugiu como um caribu macho fe
rido.
Não me desafie, velha bruxa! Amaldiçoarei a tua alma para que nunca chegue ao
Povo das Estrelas. Ainda te verei enterrada, fechada para sempre dentro da terra
, apodrecendo na escuridão.
As pessoas afastaram-se de Ramada Partida.
Partiremos daqui amanhã! Chamador de Corvo acenou para si mesmo. Partir?
perguntou Lobo Cantante afagando com a mão a cabeça insensível da mulher. Fui à caça..
. e não vi caça alguma. Se morremos de fome sentados... não morreremos mais depressa a
ndando? Pior ainda: a nossa fome levou-nos a comer os nossos cães. Teremos de carr
egar tudo nas nossas costas.
Se formos... acrescentou, pensativo, Aquele Que Grita ...deixaremos at
rás de nós um rastro de morte. Está à espera que os mais velhos nos acompanhem? E em que
direção seguiremos? Levantou uma mão para aumentar a expressão do seu rosto imóvel.
Onde está o mamute? Onde está o caribu?
Talvez não devêssemos ter vindo até aqui gritou Lobo Cantante com paixão po
r sobre o renovado soluçar da mulher. Você é o Sonhador. Faça qualquer coisa. Estou
cansado de ver as minhas crianças morrer. Voltar para trás? Mas atrás estão os Outros. S
e voltarmos para trás... matam-nos. Talvez, se fôssemos para Sul, nós...
Não podemos ir para Sul disse Chamador De Lobo, numa voz estridente, mostr
ando nas linhas enrugadas e pendentes da sua velha face a ira que sentia. Encaro
u-os, um a um, com o seu olho bom e ficou perturbado com a expressão de escárnio de
Ramada Partida. O meu pai foi lá. O capuz forrado de pêlo agitava-se em torno do seu
cabelo negro já cheio de mechas brancas. Encontrou uma parede de gelo tão alta que
homem algum conseguirá subir. Mais alta que o vôo de uma gaivota. Uma águia pode voar
assim tão alto... mas nada mais o consegue. Caçaram...
Como é que sabes que é mais alta do que um homem pode subir? desafiou Ramada P
artida, usando uma manga para limpar o pingo do nariz. Como? Seu pai por acaso t
entou?
O silêncio tombou, pois até o lamento de Raio de Sol Sorridente estacou, surpre
endido pelo desafio ao maior shaman do Povo. O rosto de Chamador de Corvo corou.
Não precisou de fazê-lo. Bastou olhar e ficou logo sabendo...
Era um covarde! interrompeu Ramada Partida. O Povo sabia isso nessa época...
e vemos agora que era verdade. Vá você para o Norte se quer assim. Deixe que os Out
ros te matem. Apontou, com uma mão enluvada, para o horizonte cinzento. Mas eu vou
para o Sul. Garça foi para lá. Ela era uma verdadeira Sonhadora! Era capaz de...
O quê? ridicularizou Chamador de Corvo. Quer seguir uma bruxa? Um espírito malév
olo que suga as almas dos homens e as manda, com um sopro, para a longa escuridão?
Além disso, ela não passa de uma lenda. Como a fumaça que tem nessa tua mente já vacila
nte.
Bah! O que você sabe disso? Eu a conheci! cuspiu a velha. Partiu para o Sul
em busca do Espírito do Poder que...
Então, vá! gritou Chamador de Corvo, acenando para a multidão. Este saco velho b
em merece a morte. Não serve de nada para o Povo. É velha demais para caçar ou pescar.
A sua matriz está tão morta como a sua mente. Nem sequer já é capaz de sonhar.
Os murmúrios varreram aqueles rostos chupados, que endureceram. Incapaz de So
nhar? Um sinal de que o mundo dos espíritos abandonara uma pessoa. O velho shaman
endireitou-se, satisfeito. Olhos hesitantes olhavam para aqui e para ali, à espera
do final.
Ramada Partida levantou uma sobrancelha:
Bem, isso torna-me mais afortunada que você. Pelo menos, não tenho de sofrer S
onhos falsos... Sonhos que fazem sofrer o Povo. Ou, pior ainda... Sonhos que lev
am o Povo a acreditar num Poder que há muito morreu.
Alguém soltou um som de espanto e recuou um passo.
Raposa Dançante engoliu em seco ao ver a faísca de ódio que encheu o olho negro d
e Chamador de Corvo. O olho branco dele fazia-a sempre lembrar-se da morte, lemb
rava-lhe um cadáver há muito escondido na neve.
Você está me acusando de que invento os Sonhos? - gritou o shaman. - Você...
Fala-me do Norte - gritou Corvo Caçador, cuspindo, em desdém, para a velha. Po
r que deveremos ir para Norte?
Esta terra é nossa! - gritou Chamador de Corvo por cima do ulular da Mulher
Vento. Mas iremos sair dela e deixar os ossos dos nossos pais só por causa de uns
Outros que...
Eu não tenho medo dos Outros disse, com toda a calma, Corvo Caçador. E continu
ou: Pense, Povo. Que nos aconteceu? Os Outros vivem nos nossos melhores terrenos
de caça, no caminho do caribu. Quanto mais para Sul formos mais seco vai ficar. E
a terra mais alta e mais rochosa. Mais vento. Montes de lagos que não conseguirem
os atravessar na Longa Luz. Já nem podemos apanhar mexilhões nas praias. E porquê? Por
que os Outros nos empurraram para cá! O caribu vem até tanto ao Sul? E o mamute? Olh
em para o musgo, para o absíntio, para os tufos de erva: estão vendo como são mais bai
xos? Se formos para Sul não desaparecerão de todo? Se nem o caribu nem o mamute pude
rem comer, nós também não poderemos.
Tal como matei o Avô Urso Branco acrescentou Corvo Caçador , também matarei os Ou
tros.
Você não passa de um jovem idiota! comentou, com desprezo, Ramada Partida. Vá se
sentar e não incomode ninguém.
Fora, mulher! exigiu Chamador de Corvo. O Povo não tem interesse naquilo que
diz. Deixe-nos!
Ramada Partida abanou a cabeça.
Foi nisto que nos tornamos contigo como chefe? Estar aqui discutindo quand
o devíamos orar pela alma deste bebê? E apontou na direção de Raio de Sol Sorridente.
Parte!
Mas ela ficou, os olhos tão duros como obsidiana. Atrás dela, a velha Garra fez
um gesto de concordância.
Chamador de Corvo observou os rostos ansiosos da multidão. Alguns baixaram os
olhos para a neve. Outros miravam-no com esperança, recordados de anteriores avis
os.
Vou acabar de contar coisas sobre o Sul para onde esta velha quer nos leva
r. O meu avô e os seus caçaram lá gritou, já rouco. Durante dias e dias nada mais encont
raram que rochas, pedras e lagos intransponíveis. Tal como nós ficaram cheios de fom
e. Seguiram, por muitos dias, a parede de gelo, comendo as próprias roupas para ma
nterem as forças. Muitos e muitos morreram. Viraram então para Norte na esperança de e
ncontrar mamute, ou mesmo foca ou raposa.
Caminharam até chegar à água salgada. Mas até ali o gelo continuava até se perder de
vista. Desesperados, seguiram para Oeste em busca do Rio Grande, onde sabiam qu
e encontrariam comida. Levantou a voz para vencer o vento. Encontraram foca, mex
ilhão e caribu. Viveram e o pai do meu pai disse ao meu pai: Não vá para o Sul. Existe
lá uma parede de gelo... e a morte.
Nesse caso, vamos para o Norte concordou Aquele Que Grita. Talvez pudéssemos
ir para Oeste, seguindo as montanhas até...
A Mulher Vento nos apanharia interrompeu Rocha Cinzenta, remexendo as suas
gengivas desdentadas. Não se esqueçam de que estamos no meio da Longa Escuridão. A Mu
lher Vento soltará uma gargalhada e chamará a Mãe Nuvem. Que chance teremos? Hein? Dig
am-me! Que chance teremos no meio de uma tempestade? A Mulher Vento congelará os n
ossos corpos. Os nossos ossos ficarão...
E que chance temos aqui? perguntou Chamador de Corvo. Já se esqueceram do qu
e eu vi dentro da Gaivota? Vi que tínhamos de ir para Norte. Vi...
Não viu nada! gritou Ramada Partida, erguendo um punho no ar. Há anos que não vê
utra coisa que não seja escuridão. E agora até mente para manter as coisas. Mente... e
arrasta todos nós para a sua perdição!
Pelo canto do olho Raposa Dançante viu Lebre Saltitante começar a andar, e depo
is a correr, ziguezagueando entre os corpos mortos para ir cair, de olhos muito
abertos, olhando para a neve.
Olhem! gritou ele. Sangue! Aqui, perto de Voa Como Uma Gaivota.
Os homens avançaram. Raposa Dançante ignorou-os e ajoelhou-se ao lado de Raio d
e Sol para confortá-la.
Vamos, eu cantarei contigo assegurou-lhe numa voz meiga. Nós somos capazes d
e cantar sozinhos o bebê até ao Povo das Estrelas. - E começou a entoar, na sua voz su
ave, a triste melodia da morte. Raio de Sol ecoou, mais baixinho, as suas palavr
as.
Marcas de lobo disse Aquele Que Grita, calando a canção das mulheres. Lobo sal
tou aqui. Baixou a cabeça para estudar a neve de outro ângulo. Ali, estão vendo?
Tombou no chão e começou a correr. Pôs-se de gatas seguindo a pista com a cara ju
nto da crosta de neve.
Olhem! Mais sangue aqui! Lobo está bastante ferido.
Corvo Caçador olhou à volta para inspecionar os rostos.
Onde está o meu irmão, Corre na Luz?
Raposa respirou fundo e sentiu o coração acelerar.
Corre na Luz? Fez uma carícia no braço de Raio de Sol e pôs-se de pé, escorregando
pelo declive até o abrigo.
O gelo brilhava traiçoeiramente ao longo do seu caminho. Até um pequeno exercício
como aquele a deixou sem fôlego e de pernas tremendo. Ao chegar ao abrigo gatinho
u por debaixo da cortina da porta e espreitou para a escuridão dentro da pele de m
amute. Algumas das pessoas mais velhas e umas poucas crianças mais fracas olharam-
na sem grande interesse. As peles de Corre na Luz estavam vazias e as suas armas
tinham desaparecido.
Saiu do abrigo e correu colina acima, completamente sem fôlego:
Desapareceu. Levou as armas e...
Um lobo disse Lobo Cantante entredentes. Tirou uma luva e levou um pouco d
a neve ensopada em urina ao nariz. Lobo esfomeado. Tal como nós... está morrendo de
fome.
E Corre na Luz atingiu-o! exclamou Aquele Que Grita. É possível que Luz não tenh
a feito uma boa ferida... mas vai matar. Cheiro sumo de tripas neste sangue.
Tal como a Mulher Vento nos salgueiros uma brisa de alívio percorreu o Povo.
Raposa Dançante sorriu, sentindo uma carícia leve no coração. Raposa Dançante ia salvá-los.
O orgulho que sentia...
Uma mão pesada caiu-lhe sobre o ombro. Chamador de Corvo torceu-lhe a cabeça pa
ra trás para a encarar nos olhos e sussurrar:
Estás feliz, não está? Feliz por Corre na Luz ter morto o lobo?
Ela tentou soltar-se mas estava bem presa.
Claro que estou feliz. Acha que quero morrer?
Um lobo? Para todas estas barrigas esfomeadas? A mão dele apertou até obrigá-la
a fazer um esgar de dor.
Raposa não pode deixar de ver o seu olho branco e cego. E, como sempre, estre
meceu.
Os outros... caçadores... Nem sequer apanharam um lobo.
Você é a minha mulher. Mas vejo os teus olhos atraídos por Corre na Luz. Vejo os
sorrisos que lhe atira. Sei onde está o teu coração, mulher. Abanou-lhe o ombro com t
al força que a fez gritar baixinho. E sei onde está o dele.
Que diferença faz? Eu sou a tua mulher. Não posso...
Nunca se esqueça disso disse ele, empurrando-a e gritando: Vou partir deste
local ao nascer do Pai Sol. Vou para o Norte... e depois para Oeste, rodeando as
montanhas. É esse o caminho... o caminho do mamute! Isto eu vi no Sonho! E, rodan
do sobre os próprios pés, dirigiu-se para o abrigo.
Ramada Partida fê-lo vacilar quando gritou:
Quem o seguirá? Quem seguirá um homem de falsos Sonhos?
Chamador de Corvo endireitou-se e continuou a andar como se as palavras não f
ossem mais que o ulular da Mulher Vento. Raposa Dançante tinha o olhar fixo nele e
o coração batendo numa cadência de ódio.
Deixe-o! murmurou-lhe espontaneamente Ramada Partida ao ouvido. Eu permito
que fique na minha tenda.
Se assim acontecesse nenhuma de nós teria comida, avó.
Luz jamais permitiria que morresse de fome tornou a a outra. Os sentimento
s que ele sente por ti não diminuíram.
Raposa Dançante sentiu um soluço na garganta. Engoliu com força para o impedir de
sair.
Isso agora não importa. Além do mais, Chamador de Corvo controla a minha alma.
.. e a sua também.
Está falando daquelas mechas de cabelo e das manchas de sangue menstrual? Or
a, isso só dá resultado nas mãos de um homem de Poder. Não se preocupe com ele. É tão inofen
sivo como um lobo estripado.
Enquanto ele tiver o apoio do Povo, avó, não é de modo algum inofensivo. Pode fa
zer o que quiser comigo e ninguém se atreverá...
Não permita que ele te reduza a nada resmungou Ramada Partida. Isso é pior que
ser um proscrito.
E virou-se, afagando a cabeça pendente de Raio de Sol antes de trotar de volt
a ao calor dos abrigos. A velha Garra inclinou-se para lhe dar uma reprimenda ao
ouvido. A velha Ramada Partida resmungou com raiva e afastou Garra com um gesto
.
Garra hesitou um momento, deu um passo na direção de Raposa e estacou. Os lábios
torceram-se no seu rosto castanho antes de soltar um suspiro e se dirigir aos ab
rigos no rastro de Ramada Partida.
Raposa Dançante mudou nervosamente de pé para pé. Nunca poderia deixar Chamador d
e Corvo. Ele a mataria... e o Povo o ajudaria nisso. Ouviu, atrás de si, o riso ba
ixo e condenatório de Corvo Caçador e virou-se de repente. Ele afagou o seu próprio, c
om ar conhecedor, como se a sua audição apurada tivesse captado cada palavra sussurr
ada por Ramada Partida.
Tenha cuidado murmurou ele, aproximando-se. O Poder do teu marido pode ter
desaparecido, mas só Ramada Partida crê nisso. Vão cortá-la em pedaços se o envergonhar.
Não preciso dos seus conselhos.
Ele sorriu e mirou-a de alto a baixo:
Por agora. Mas precisará.
Nunca!
Sorrindo, Corvo Caçador estendeu uma mão e pegou numa mecha dos cabelos dela qu
e esvoaçava ao vento. E, acariciando-a, murmurou:
Veremos.
Raposa recuou, irritada, mas ele manteve os olhos fixos nos dela por uns in
stantes.
Quando estiver sem saída disse ele numa voz de conspiração , não se esqueça... eu
tarei lá.
Afaste-se de mim!
Corvo Caçador riu e começou a descer a encosta. Raposa Dançante fechou os olhos c
om toda a força.

CAPÍTULO 4
Raposa Dançante deixou-se ficar na periferia do magote de gente que estava re
unida no canto do abrigo grande. Olhava para a planície cheia de neve, de coração dorm
ente, vendo os três homens abrirem caminho na neve.
Corre na Luz vinha à frente, com a Mulher Vento fazendo esvoaçar as suas casaca
s de pele de caribu já muito desgastadas, com as costuras das roupas debruadas em
branco pela neve que nelas se acumulara e gelara. Um murmúrio de espanto ergueu-se
quando a luz lhe bateu no rosto.
Raposa levou uma mão enluvada à boca. Vejam como ele pintou o rosto! Linhas ver
melhas de sangue corriam-lhe nas bochechas e circundavam a sua boca como um foci
nho. Traçada em sangue congelado havia na sua testa uma imagem que podia ser de ur
so ou lobo.
O coração dela começou a bater mais depressa. Vejam o estranho brilho nos seus ol
hos, parece o fogo do óleo-de-baleia na noite. Viu algo poderoso. Talvez os espírito
s existam?
Ahhh... ohhh! entoou Ramada Partida. Mechas soltas do seu cabelo cinzento
chicoteavam ao ritmo da Mulher Vento. Levantou um braço ossudo e um dedo calejado
apontou no ar glacial. Ah... ali está um Sonhador! Estão vendo a luz no seu rosto?
O Espírito caminhou nele. O Espírito traçou as marcas de um Sonho poderoso! E saltitav
a de excitação.
Raposa Dançante olhou, receosa, para Chamador de Corvo. Uma sombra negra sobr
e o branco à sua volta. Na sua face enrugada o queixo estava cerrado com força.
O meu irmão? ridicularizou Corvo Caçador. Um Sonhador de Espírito? Mais fácil ser
a para ele conjurar imagens de flocos de neve na luz do dia.
Raposa endireitou os ombros ao sentir os seus olhos negros e brilhantes per
correrem todas as linhas do seu rosto. Olhou para longe ao ouvir os passos dele
aproximarem-se e pararem a seu lado. Cerrando os dentes manteve o olhar fixo em
Corre na Luz.
A mente do meu irmão é simples, mulher murmurou baixinho Corvo Caçador. Os pensa
mentos dele estão num mundo diferente dos teus ou dos meus.
Raposa engoliu em seco e enfrentou aquele rosto duro:
Como você pode saber?
As suas idéias pérfidas estão no teu rosto como uma pista na neve fresca disse C
orvo Caçador com um humor sarcástico, e algo mais, algo doloroso nos olhos. E não sou
eu o único a vê-las.
Não sei a que está...
Acho que sabe. Afastou-se lesto, com um sorriso, um predador mesmo morrend
o de fome. Que sobre ele desça a maldição de ser enterrado, mas por que estava assim tão
seguro de si? Algo nos olhos dele a fez pensar. Arrogante ou não, Corvo Caçador rar
amente cometia erros. Era esse o seu gênio: saber como as almas, humanas e animais
, pensavam.
Duas crianças saíram do grupo e, aos tropeções, avançaram para saudar Lebre Saltitant
e e Aquele Que Grita que arrastavam pedaços angulosos de carne de lobo congelada.
A única carga que Corre na Luz transportava tombava-lhe, cinzenta, dos seus o
mbros: a pele do lobo, com a cabeça ainda presa, Os olhos baços congelados como cris
tal.
Corre na Luz traz comida! gritou Lebre Saltitante. E a sua voz gritou a se
guir, como a de uma morsa ao Sol: E traz um Sonho!
Ficaram à espera, tensos, os olhares fixos nos pedaços de carne vermelha e bran
ca aos ombros dos caçadores, as mentes focadas na promessa de vida que aqueles ped
aços encerravam. Um Sonho? Um Sonho do Espírito?
Corre na Luz parou à beira do círculo e olhou-os rosto a rosto. Todos ficaram i
móvel exceto a Mulher Vento que continuou a brincar com as roupas deles e a tapar-
lhes as caras com madeixas de cabelo.
Conte-nos - pediu Ramada Partida, interrompendo o silêncio.
Sonho de Lobo disse ele baixinho com um rosto de pedra. Mas não aqui no frio
. Vamos para dentro antes que a Mulher Vento nos tire todo o calor e o sopre par
a a Longa Escuridão.
Corte a carne! interferiu Chamador de Corvo. Não brinque, rapaz. As pessoas
têm fome.
Não respondeu Corre na Luz com uma calma total. Lobo deu-me a carne para nos
levar para o Sul. Veio até mim num Sonho e mostrou-me o caminho. O seu corpo mant
erá o Povo forte durante a jornada. O sangue do coração corre nas minhas veias... assi
m será.
Ora! Você? Não passa de um rapazinho! Nem saberia reconhecer um Espírito do Sonh
o se...
Não se atreva! Olha para ele! Olhe e veja o Poder! O Sonho está nos seus olhos
. Ramada Partida virou-se a apontou um dedo deformado, como uma lança, para o rost
o de Chamador de Corvo.
Raposa suspendeu a respiração quando os olhos de Corre na Luz se reviraram e mu
daram fazendo-a recordar a maneira como os olhos dos lobos brilhavam à luz dos fog
os noturnos.
Vamos para o Norte. A mão de Chamador de Corvo fez um arco apontando para on
de o Pai Sol iluminava o longínquo horizonte. Eu também Sonhei... rapaz. O Mamute no
s chama do lugar de onde viemos. Tal como disse a todos na última Longa Luz. Lembr
am-se? Vamos voltar...
Então, vão. Corre na Luz ergueu o queixo. O Espírito do Poder chegar a,onde quis
er. Não é coisa dos homens. Lobo deu-me o seu Poder. O Sonho do Lobo vai levar-me...
e aqueles do Povo que me seguirem... para o Sul. Lá, no Grande Gelo...
Fica a morte! - interrompeu Chamador de Corvo.
Quando o olhar de Corre na Luz caiu sobre si, o velho shaman umedeceu os lábi
os e recuou um passo, como se receasse o rapaz. O bafo, gelado, era como uma nuv
em branca no lusco-fusco. Um vento carregado de neve atingiu-os na cara e o Povo
recuou.
Morte! Está ouvindo, rapaz? O olho branco de Chamador de Corvo brilhou enqua
nto que o negro soltava faíscas como a pederneira contra o granito. Há monstros no g
elo. As almas dos mortos perdidos cantam ali. Virou-se para o Povo e apontou-os
um a um. Quando chegarem perto do Grande Gelo vão ouvi-los... a estalar e a gemer
debaixo de todo aquele peso. Vão matá-los! Temos de ir para o Norte.
Você pode ir para Norte gritou Ramada Partida. Talvez você, e só você, esteja des
inado a ser morto pelos Outros.
E, aproximando-se de Corre na Luz, espetou os dedos tortos nas peles já puídas:
Olhe para mim, rapaz. Olhe para mim. Vê... vê... o Sonho? Encostou tanto o ros
to ao dele que os bafos se condensavam juntos criando uma nuvem branca que envo
lvia ambas as cabeças.
Ficou ali, imóvel, os dedos na nuca dele, por um longo instante. Depois puxou
-o ainda mais para si, até os olhos quase se tocarem.
Ha-heee! gritou ela, soltando-o e caindo para trás com os braços abertos para
recuperar o equilíbrio. Sentou-se de repente e ficou falando sozinha enquanto o Po
vo, fascinado, a olhava.
Loucos, os dois disse Corvo Caçador.
Avó? Raio de Sol Sorridente pegou numa das mãos geladas da anciã. Que há nos olho
de Corre na Luz?
Sonho... sussurrou a velha, de queixo caído e olhar ausente. Há Lobo nos seus
olhos. Lobo...
Aquele Que Grita mudou de posição e olhou, pouco à vontade, para Chamador de Corv
o.
É verdade? Você nos conduziu a tantos lugares... nos curou quando estávamos doen
tes. Corre na Luz afirma que a sua visão está errada. Como poderemos saber quem tem
razão?
Ele não passa de um rapaz disse secamente Chamador de Corvo. Brinca com a s
obrevivência do Povo. Os Sonhos exigem jejum e preparação. Não pode...
Ele não comia há quatro dias interpôs Raio de Sol Sorridente. Deu sua comida pa
ra mim... para o bebê. Apontou, com um dedo que tremia, para o monte de neve.
Aiie... soltou Rocha Cinzenta, os lábios finos de velha mexendo-se no seu ro
sto enrugado, virando para Corre na Luz uns olhos negros como contas. Quatro dia
s, hein? O número do Espírito. Tal como o caminho do Pai Sol sobre o coração da Terra. O
s opostos cruzam-se.
Não passa de um rapaz! gritou Chamador de Corvo, agitando um punho.
Corre na Luz estremeceu como se a mão calosa do shaman o tivesse atingido.
Lobo veio até mim. Ele salvará aqueles que forem para o Sul. Ele mostrou-me a
abertura no Grande Gelo por onde podemos passar. Por trás do Grande Gelo está o mamu
te. O búfalo. O caribu cria novas hastes nas ervas verdes.
Os lábios de Raposa Dançante entreabriram-se ao encontrar os olhos de Luz.
Eu vejo o Sonho murmurou ela. Está ali. Refletido nos seus...
Vá para dentro do abrigo! - ordenou o velho shaman. Vá aquecer as minhas roupa
s. Amanhã iremos para Norte... e quero ter uma boa noite de repouso.
Não disse ela. Aturdida pela raiva dele Raposa olhou-o, sem compreender, com
os pés fincados no chão. A ira queimava no rosto magro do Velho. Levantou uma mão par
a lhe bater.
Mas ela levantou as mãos, em defesa, e afastou-se murmurando:
Não me toque!
Vá! gritou Chamador de Corvo.
Ao dirigir-se para os abrigos viu, de relance, a expressão no rosto de Corre
na Luz que dava um passo em frente. Ramada Partida colocou uma mão no ombro do jov
em para segurá-lo.
Ao gatinhar por debaixo da cortina de entrada ouviu ainda a voz poderosa do
seu marido:
Não dêem ouvidos a esta criança! O mamute está ali... no Norte! Eu vi os nossos caça
dores cercando-os e a cravando os dados profundamente nas suas crias! As mães vira
m-se, as trombas no ar para procurar na Mulher Vento sinais da nossa presença. Mas
nós somos espertos! As crias tombam na neve funda com o seu sangue embebendo os n
ossos dardos. A manada começa a fugir para Norte e nós colhemos...
Mentiroso! gritou Ramada Partida. Você não viu nada! Inventou tudo enquanto fa
lava! Não há Sonho nos teus olhos!
Raposa encolheu-se quando o som da pancada penetrou no abrigo. Pegando as r
oupas de Chamador de Corvo cobriu com elas a cabeça para abafar o som continuado d
e carne em carne. Encheu-a uma raiva tão violenta que correu para o canto com o es
tômago contorcendo-se com dores.
Estava com medo, pela velha anciã e por si mesma, por terem desafiado Chamado
r de Corvo. Tal como ela o envergonhara hoje também ele a envergonharia naquela no
ite. Enrolou-se numa bola, estremecendo pela agonia que sabia que iria sofrer.
Chamador de Corvo levantou a mão para bater outra vez em Ramada Partida. A an
ciã afastou-se, arrastando-se sobre o gelo, falando sozinha. Mãe Nuvem correu no cin
zento do céu traçando nele fitas de rosa e laranja.
Deixe-a em paz! disse, numa voz tensa, Corre na Luz, tendo ainda na sua fr
ente o rosto aterrorizado de Raposa Dançante. O sangue de Lobo fluía, rico e forte,
nas suas veias. Bem do fundo da sua alma subiu um ódio contra aquele velho que tor
turava a sua gente.
O quê? Palavras de valor vindas do meu irmão? comentou Corvo Caçador assistindo,
impávido, de braços cruzados.
Você quer quebrar a paz do Povo? acusou Chamador de Corvo. Você? Você está me ame
ndo?
Não existe paz quando uma velha sofre. Você é que já quebrou a...
Não me diga! Chamador de Corvo endireitou-se e encheu o peito. Eu tenho o di
reito de punir quando...
Ninguém tem esse direito. Nem mesmo...
Eu te mato, rapaz. O meu Espírito de Poder é grande! O velho shaman, lívido, sor
riu, revelando dentes amarelos e partidos. Agachou-se, e com o braço ossudo saindo
da manga, traçou sinais mágicos no ar.
Corre na Luz respirou fundo e mexeu nervosamente nos seus dardos.
O Lobo me protege. Não tenho medo de você.
Mas tinha. Já vira demasiadas vezes os poderosos efeitos da magia do velho. O
rou, em silêncio, pedindo coragem ao Lobo.
Atrás dele ouviam-se sussurros e pés que deslizavam na neve para deixar um espaço
em que os dois shaman se pudessem enfrentar sozinhos. O Poder pairava no ar frígi
do.
Em quatro semanas cantou Chamador de Corvo entoando uma melodia de maldição, a
cabeça virada para trás o teu estômago vai doer por se estar a revirar... Depressa o
canto se tornou incompreensível. O velho ergueu os braços e a sua voz dirigiu-se ao
céu ao mesmo tempo que executava uma dança desconhecida.
Corre na Luz cerrou os olhos com força. O Espírito de Poder de Chamador de Corv
o acercou-se da sua alma. O Lobo, me protege, repetia e tornava a repetir, o cor
ação batendo desordenadamente. Não me deixará morrer até que alcance a terra para lá do Gran
de Gelo. Tocou na efígie, feita de sangue de lobo, que tinha na testa. Lobo leve-m
e para o Sul, para a terra do Pai Sol. Eu sigo o Sonho do Lobo.
O Poder de Chamador de Corvo pareceu vacilar nas fronteiras do seu ser. Cor
re na Luz abriu os olhos e sorriu o seu alívio ao velho shaman que dançava.
Atrás dele soaram exclamações de espanto perante aquela demonstração do seu Poder. Ra
mada Partida agarrou os dedos dos pés e começou a embalar-se para trás e para a frente
como o Avô Grande Urso Castanho. Um sorriso expunha as suas gengivas, negras e se
m dentes, e a sua língua rosa.
Sonho de Lobo! exclamou na sua voz grave. Ha-heee! Eu vou para o Sul com C
orre na Luz. Eu vou para o Sul com o Lobo!
Pai Sol escondeu-se atrás do horizonte, a sudoeste, e a escuridão acentuou a co
ncavidade dos rostos e olhos do Povo. A escuridão descia como opalescentes véus de f
umo. Os brilhantes e ondulantes fogos, criados pela guerra das Crianças Monstros,
ergueram-se em padrões de arco-íris para iluminar o céu a Norte. Desde o começo dos temp
os que os Gêmeos lutavam, um bom, o outro mau, envolvidos num combate eterno.
Para Sul vão para a morte! Ouve-me, ó Pai Sol! Eu, Chamador de Corvo, tenho o
teu Sonho. Sente o meu Poder? Eu amaldiçôo estes... estes traidores! As suas almas j
amais alcançarão o Abençoado Povo das Estrelas. Morte! gritou ele, fazendo piruetas, a
s armas estendidas como as asas de uma águia a pousar em frente de Corre na Luz.
Eu sigo o Lobo. Quem comer a carne de Lobo segue o meu Sonho.
Corre na Luz virou-se e, serpenteando entre a multidão, entrou no abrigo.

CAPÍTULO 5
Uma luz carmesim brilhava sobre as paredes de pele do abrigo acentuando o m
edo e a ânsia nos olhos das pessoas. Amontoados silenciosamente em torno das chama
s baixas iam deixando que a fumaça negra os aquecesse.
Aquele Que Grita levou aos dentes o cabo do seu novo dardo de pedra e senti
u, com a língua, a ponta do tendão. Segurou-a com força entre os incisivos já gastos e p
uxou com força, sentindo o nó ficar apertado. Examinou, com olhar crítico, a ligação e, co
m um grunhido de satisfação, a ponta de pedra encaixada na extremidade fendida da ha
ste de madeira.
Lobo Cantante remexeu o pedaço de bosta de mamute que estava no poço do fogo. A
pesar da erva seca era uma magra fonte de calor. Fora um dia de sorte: uma das c
rianças achara o combustível que o vento libertara da neve que o cobria. A tristeza
da morte do seu bebê ainda lhe pesava nos olhos. A bosta brilhou, mais vermelha, e
nchendo o ar de uma fumaça espessa e bolorenta.
Aquele Que Grita apontou a longa haste do seu dardo ao pedaço da carne de lob
o que estava no chão.
Tenho de ficar aqui sentado a noite toda olhando para aquele monte de carn
e?
Que é mais forte? A tua fome ou o medo daquilo que Chamador de Corvo te fará s
e comer o lobo? Disse Lobo Cantante, como que a pensar alto, de olhos esfomeado
s fixos nos apetitosos quartos do lobo. O lado da carne virada para o fogo tinha
um brilho vermelho. Lobo Cantante engoliu como se a água que sentia na boca o irr
itasse.
Shamans! murmurou Aquele Que Grita fazendo rodar o dardo entre os dedos. J
ogando com o Poder enquanto o Povo morre de fome.. Eu vou comer a carne. Começou a
gatinhar pelo chão.
E vai para o Sul com Corre na Luz? Lobo Cantante levantou uma sobrancelha.
Aquele Que Grita estacou, já em cima da carne. A sua testa foi invadida por l
inhas de perplexidade. Mordeu o lábio de baixo. A sua cara redonda quase parecia g
orda à luz irreal do fogo. As maçãs do rosto salientes tornavam mais chato o seu nariz
esborrachado. A fome quase apagava o brilho perpétuo dos seus olhos. Aquele Que G
rita, agora cheio de incertezas, levantou um ombro.
Corvo Caçador diz que o irmão é um louco. Um louco é capaz de convencer a si mesmo
que acredita nas coisas. Você conhece Corre na Luz: está sempre vendo coisas. Talve
z...
Corvo Caçador: ora aí está um homem cheio de juízo. Como é que dois irmãos podem ser
diferentes?
E, então, que fazemos? Olhe para esta carne. Tocou-lhe com uma mão. Por que é qu
e os espíritos têm de se misturar com o meu estômago? Meterem-se assim com nós todos com
toda esta morte à nossa volta?
Porque todos os shamans são loucos resmungou Lobo Cantante.
Eu vou comê-la. Você confia no espírito da carne?
Lobo Cantante coçou debaixo do braço e semicerrou, pensativo, os olhos.
Não sejas idiota. Claro que não. Os espíritos são imprevisíveis. Uma pausa. Chama
de Corvo não quis cantar pela minha filha. Não quis!
Atrás dele os olhos de Raio de Sol Sorridente brilharam com as lágrimas. Lobo C
antante segurou-lhe numa das mãos com firmeza.
Aquele Que Grita lançou-lhe um olhar dolorido:
Viu os olhos de Luz, não viu? Viu neles o Sonho? Lobo Cantante encolheu os o
mbros, pouco à vontade:
Não sei. Havia qualquer coisa neles mas...
Mas o quê?
Corvo Caçador disse...
Eu sei o que ele disse resmungou, com despeito, Aquele Que Grita, e equili
brou-se nos calcanhares, as mandíbulas vibrando com a força com que cerrava os dente
s.
Lobo Cantante abanou a cabeça e, com um gesto brusco, tirou um buril do seu s
aco. Uma ferramenta de gravar, com uma ponta afiada, que ele fizera com todo o c
uidado a partir de madeira ou osso. Arrancou, do chão gelado, um fragmento de cost
ela de mamute há muito fervido em busca do tutano que porventura tivera. As rugas
na sua testa ficaram mais fundas quando começou a riscar linhas no osso cortical c
om a ponta do buril. Acrescentou, sem emoção alguma:
Chamador de Corvo amaldiçoou quem comer o lobo.
E então? Ambos, Chamador de Corvo e Corre na Luz, têm razão numa coisa. Temos de
sair daqui... mas não conseguiremos ir muito longe com as barrigas vazias.
Água Verde, a mulher de Aquele Que Grita, gatinhou até ele coberta com um cober
tor de pele de lobo.
Ficarmos aqui sentados também não vai nos encher as barrigas acrescentou ela n
a sua voz bem modulada. Nem mesmo a fome conseguia abafar o amor nos seus olhos
enquanto estudava o marido. Ninguém viu caça... nem sequer sinal dela. Se ficarmos a
qui mais tempo será que teremos forças sequer para andar?
Aquele Que Grita observou o seu dardo de haste nova e, depois do tempo nece
ssário para entoar em silêncio uma canção do espírito, colocou-o no seu carcaz de cria de
caribu:
Vou comer a carne.
A minha filha está morta acrescentou, sem expressão alguma Lobo Cantante, olha
ndo para onde Raio de Sol Sorridente o observava sentada, a boca exprimindo dor.
Tornou a olhar para a carne que brilhava. Todos os meus filhos morreram.
As mulheres olharam para ele e Raio de Sol Sorridente deixou-se ficar imóvel,
de olhos vazios, enquanto ele a estudava. O silêncio estendeu-se.
Lobo Cantante continuou:
Será Raio de Sol Sorridente a próxima? Eh? Eu? Serei eu o próximo? Quem será o próxi
mo a morrer de fome?
Aquele Que Grita levantou um ombro, em desespero, tirando, com um dedo sujo
, fuligem do canto de um olho:
Chamador de Corvo diz que se... se comermos a carne.
A minha filhinha... repetiu Lobo Cantante teria sido uma beleza, uma fazed
ora de vida para o Povo. Fez uma pausa. Chamador de Corvo nem sequer cantou para
ela. Uma vida inútil, foi o que disse. Outra morte... e ali está carne. Há quantos di
as saímos? Há quantos dias não vemos se não há neve soprada pelo vento?
Demasiados.
Lobo Cantante ajustou, com destreza, os dedos em torno do buril enquanto gr
avava o osso chato que segurava na mão.
Atira Ossos saiu e encontrou o Avô Urso Branco lembrou Água Verde.
E isso é outra coisa continuou Aquele Que Grita. Quem já ouvira falar do Avô Urs
o Branco tanto ao Sul? Há algum espírito que quer nos tirar daqui. Fungou com o frio
e correu o polegar pela ponta quebrada que tirara do dardo. Vou ter de voltar a
afiar isto. Aqui no Sul há muito pouca pedra boa para ferramentas. Talvez encontr
emos boa obsidiana do outro lado do Grande Gelo, não acham? Ou alguma quartzite da
boa? Talvez aqueles mortos de que fala Chamador de Corvo, nos indiquem o caminh
o. Que acham?
Raio de Sol Sorridente falou baixinho:
Que mal poderia vir de comermos carne de espírito?
Lobo Cantante suspirou de confusão.
Se tiver de escolher entre Espíritos de Sonhos, eu escolho Corre na Luz. Ele
...
Ele mal é um homem.
Chamador de Corvo teve razão no passado lembrou-lhes Água Verde, compondo uma
prega da sua capa de pele.
Os dois com razão? interrogou-se Aquele Que Grita, pensando em voz alta. Cad
a um deles indo numa direção diferente? Não tenho o suficiente para fazer a felicidade
de dois Sonhadores! Não me posso cortar ao meio!
Mas viu o ar nos olhos de Corre na Luz?
Acho que prefiro morrer de fome antes de permitir que o meu estômago fique v
irado do avesso. Lembram-se de quando Chamador de Corvo lançou uma praga sobre Gar
ra de Foca? Caíram-lhe todos os dentes. Aquele Que Grita rebuscou no saco até encont
rar a ponta fina de chifre e um quadrado de pele grossa com um buraco para o pol
egar. À luz vermelha do fogo estudou a ponta danificada e resmungou. Com o saber d
e uma longa prática colocou a pedra na pele de modo a proteger-lhe a mão. Franzindo
o seu nariz chato colocou a ponta de chifre contra o bordo da pedra e fez força até
se soltar uma lasca de pedra.
Eh! reclamou Lobo Cantante. Faça isso lá fora. Espeto essas lascas nas mãos semp
re que me sento. Metem-se em todo o lado, até na comida.
Que importa? Vamos sair daqui amanhã. Acha que o lobo, irá se importar se vier
aqui cheirar alguma coisa que tenhamos esquecido? Ao contrário de você, ele não disti
ngue uma pedra afiada do gelo.
Água Verde, irritada, esforçando-se por remendar a sola de umas botas altas, es
petando uma sovela de osso na pele dura. Lançou um olhar de reprovação aos homens.
O estalar da pedra continuou, ao mesmo tempo que Lobo Cantante gravava o os
so de mamute e de quando em quando o virava, para melhor ver o trabalho, para o
fogo.
Ramada Partida diz que o Poder de Chamador de Corvo desapareceu. Chamador
de Corvo diz que Corre na Luz não passa de um rapaz brincando de shamans.
Huh! soltou Aquele Que Grita. Vamos para o norte e ficamos à porta das caban
as dos Outros. Bem sabem que mataram a maior parte do bando Geyser... levaram um
monte de mulheres e destruíram o acampamento. Os que escaparam com vida pouco tem
po duraram na última longa escuridão. Os Outros são homens maus. Com espíritos doentes.
Corvo Caçador quer matá-los! disse Lobo Cantante com um sorriso. Pensa que há um
a maneira de fazê-los recuar. De obrigá-los a deixarem-nos em paz. E se ele tiver ra
zão? Pergunto a mim mesmo se nós não poderíamos...
Corvo Caçador quer posição cortou Aquele Que Grita. Os seus pensamentos vagueara
m até anos atrás. Corre na Luz e Corvo Caçador estavam sempre lutando, e era sempre es
te último que ganhava. Ele que morra. Há lugares melhores para meter os dardos que a
minha barriga.
Experimentou o gume da faca contra o calo do polegar. Eu vou comer a carne
. O Lobo não permitirá que Chamador de Corvo nos atormente. Não é esse o Seu hábito.
Chamador de Corvo tem medo do Sul acrescentou Água Verde, olhando para os ho
mens. A sua expressão suave estimulava-os a pensar. Água Verde era assim, forte mas
sensível, pensada e ajuizada.
Tem concordou Lobo Cantante. Que pode assustar um homem com o Poder do Espír
ito que ele tem?
Fantasmas disse Aquele Que Grita. Olhou fixamente para Lobo Cantante e sac
udiu, enquanto falava, a ponta afiada de novo. Se é que tem algum Poder.
Corre na Luz não tem medo.
Uh! Os loucos são assim.
O buril nas mãos de Lobo Cantante guinchou sobre o osso. A pederneira captou
o brilho do lume quando a virou nos dedos fortes.
Quanto a mim não gostaria de fazer olhar grosso a Chamador de Corvo. Da próxim
a vez que precisar da pele do Avô Urso Branco, a Mulher Vento soprará o cheiro no na
riz dele porque Chamador de Corvo me tirou a medicina.
Não se preocupes. Com o cheiro que tem, o mais provável é que o Avô Urso Branco fu
ja a sete pés.
Lobo Cantante lançou-lhe um olhar furioso:
Fale sério. Não me interessa o que diz Ramada Partida. O velho tem Poder. E Co
rre na Luz nem sequer piscou os olhos quando Chamador de Corvo invocou o seu espír
ito mágico. Nem sequer piscou os olhos!
Olhou para Raio de Sol Sorridente que, de olhos na carne, tinha uma expressão
de dor.
Baixou os olhos e apertou os lábios. Também na sua mente pesava o pequeno embru
lho que estava lá fora na neve - pesava como o dente de marfim de um velho mamute
macho.
Então? Que vai fazer?
Raio de Sol Sorridente interferiu:
Quando não há caça, não há possibilidade de encontrar comida, que se tem de fazer? A
questão está em ir para sul ou voltarmos para onde viemos. Não sabemos o que iremos e
ncontrar nas colinas ao sul. Talvez algumas bagas de Inverno expostas pela Mulhe
r Vento, pelo menos.
E quanto tempo isso durará? E se Corre na Luz estiver errado? E se os seus S
onhos não passarem de imaginação de uma criança? perguntou, com brusquidão, Lobo Cantante
.
Aquele Que Grita olhou para o chão:
Bem, nesse caso sempre poderemos voltar para trás. A Renovação encontra-se todos
os anos no mesmo lugar. Se Luz é forte, e não houver nenhum buraco no gelo, podemos
nos reunir com o clã Costas de Búfalo na Renovação. Seremos aceitos.
Lobo Cantante engoliu e interrompeu o que gravava, ficando a olhar para o p
edaço de pederneira que segurava na mão.
A minha filha morreu de fome. Lançou ao ar a placa de osso. Aquele Que Grita
apanhou-a e virou-a para a luz.
Lobo Cantante lançou uma olhadela rápida a Raio de Sol Sorridente ao mesmo temp
o que se inclinava para as patas traseiras de lobo que estavam perto do olho ver
melho do fogo.
À luz mortiça do fogo, Aquele Que grita inspecionou o osso enquanto Água Verde ga
tinhava até à carne. Sendo o melhor artista do bando, Lobo Cantante gravara um anima
l de quatro patas, de focinho comprido e orelhas pontiagudas. A coisa podia não te
r distinção podia ser uma raposa ou um cão. Mas não era assim.
Carne de lobo? Aquele Que Grita fez uma careta. É como comer os mocassins ve
lhos e suados de alguém... mas os mocassins têm melhor sabor! Com relutância, aproximo
u-se de Lobo Cantante e, servindo-se da sua faca nova, começou a cortar tiras comp
ridas de carne escura. Com um sorriso amarelo entregou fatias a Raio de Sol Sorr
idente e a Água Verde.
As duas velhas sentaram-se juntas, as rugas profundas dos seus rostos brilh
ando à luz do fogo com a gordura que as besuntava. Sobre o abrigo quente estendiam
-se longas sombras que chegavam à outra parede.
Com mãos destras, Ramada Partida quebrou ao meio o fêmur e pôs à vista a medula ros
ada. Usando a comprida e recurvada unha do polegar limpou com habilidade o canal
. Cortando ao meio a medula ofereceu metade a Rocha Cinzenta.
Que importa ser carne de espírito, não é verdade? disse Ramada Partida com um so
rriso travesso.
Rocha Cinzenta lambeu os dedos:
As maldições assustam-me menos que a fome.
Sempre soube que você eras uma velha bruxa espertalhona.
Não, não sabia. Mais de cem vezes me disse...
Ora, esquece o que eu disse antes. Mudei de opinião. Rocha Cinzenta sorriu,
mastigando mais carne.
Que pena! Finalmente ganhou juízo e eu não tenho chance de gozar a situação.
Venha conosco. Ha-heee, o Poder está no Sul! Sinto-o no fundo do meu coração. -
Servindo-se de uma lasca de osso Ramada Partida picou a área esponjosa da articulação,
indiferente aos bocadinhos de osso que metia na boca juntamente com a pasta ros
ada. Uma vantagem de não ter dentes comentou com um sorriso. Não há nada onde os ossin
hos se prendam.
Uh-uh concordou Rocha Cinzenta. Só vai rasgar o teu traseiro quando sair pel
o outro lado.
Pelo menos sairá. O teu problema é ligar demais. Afeta a sua disposição. Torna-se
rabugenta como se não tivesse um homem há mais de um ano.
Rocha Cinzenta acenou a mão para indicar que isso não lhe interessava.
Quem precisa de um homem? Não fazem outra coisa além de resmungar e gritar e q
uem passa nove meses carregando somos nós... e essa é a parte mais fácil.
Venha conosco para o Sul implorou Ramada Partida olhando-a por sob as pest
anas cinzentas. Eu preciso de você. Vou ficar só no meio daqueles garotos. Não terei n
inguém com quem falar. Vem. Vai ser...
Quanto mais para o Sul avançamos mais difícil é o terreno. Mais pilhas de pedras
para subir... e não sou tão ligeira como antes. Baixou a cabeça, pensativa, e olhou c
om ternura para a amiga. Além disso, estou em dívida para com o Chamador de Corvo. E
le salvou-me a vida quando estive com febre.
Isso foi há muito tempo. O Poder dele desapareceu. Há anos que se foi.
Não sei. Rocha Cinzenta tirou a perna debaixo do corpo e fez uma careta com
a dor que veio das suas articulações inchadas. Não se lembra quando os meus últimos dent
es apodreceram? O veneno fez inchar metade da minha cara.
Ramada Partida soltou uma gargalhada ao recordar-se:
A tua cara parecia uma bexiga de morsa soprada... toda inchada e esticada!
Ha-heee!
Isso mesmo. E lembra-se do que fez Chamador de Corvo?
Não olhe assim para mim, seu saco velho! Claro que me lembro! Como podia esq
uecer de você uivando como um lobo com o focinho preso num mexilhão? Ramada Partida
bateu na perna, perdida de riso. Quantos caçadores foram precisos para segurá-la en
quanto o velho Zarolho fazia a sua cura? Cinco? Dez?
Não é isso o que importa! contrapôs Rocha Cinzenta, assanhada ao ponto das rugas
estarem esticadas. O importante é que ele salvou a minha vida.
Bah! Fez Ramada Partida com os lábios. Fez um buraco na tua bochecha com uma
enorme sovela de osso. Eu também podia ter feito o mesmo. E tão bem como ele!
Rocha Cinzenta, amuada, frisou:
Mas foi ele que me salvou a vida. Fez uma pausa. Eu vou para o Norte.
Ramada Partida chupou com cuidado, até ao fim, o tutano do osso. Lambeu dos d
edos e do osso a gordura antes de meter no bolso os pedaços do osso para fervê-los m
ais tarde e recuperar a gordura que ainda estivesse ali.
Bem... vai. Apontou o dedo a Rocha Cinzenta. Veja o que o Poder dele te fa
z. Daqui a pouco vai voltar para o Sul... se nenhum dos Outros te espetar primei
ro as tripas com um dardo.
Rocha Cinzenta passou a língua pelas gengivas vazias enquanto estudava a amig
a.
Os dardos talvez sejam melhores que os fantasmas do Grande Gelo.
O que eles podem de uma velha como você? Para eles só pode significar problema
s... confusões. Dar cabo das suas fantasmagorias ou coisa do gênero.
Rocha Cinzenta sorriu.
Eu disse a Lebre Saltitante para ir com Corre na Luz.
Você o quê? Isso não está certo! O teu filho deve ficar contigo. Lobo Cantante e e
sse sim-não do Aquele Que Grita vão com Luz. O bando de Chamador de Corvo vai ficar se
m caçadores suficientes. Se pensa que ir para o Sul é que está certo, por que é que você..
.
Corvo Caçador bastará.
Bah! Ele vai metê-los em problemas com os Outros. Jovem idiota! Só quer guerra
. Há qualquer coisa má no seu sangue. Recordo-me de quando ele nasceu. Sangue... san
gue ruim.
Rocha Cinzenta olhou para a abertura na pele da porta para saber quanto tem
po lhes restava. A luz da alvorada já acinzentava o céu.
Estão preparando-se para partir. Quase como se lhe ocorresse naquele momento
a idéia perguntou: Acreditas mesmo que a Garça foi para o Sul?
Sei que foi. Eu a vi partir.
A maior parte das pessoas pensam que ela é um mito, que ela nunca...
Só os mais velhos ainda se lembram.
Rocha Cinzenta franziu o sobrolho.
As histórias falam de como era traiçoeira e má, de como se casou com os Poderes
da Longa Escuridão. Por que ela partiu? Foi o clã que a expulsou?
Ramada Partida abanou atabalhoadamente a cabeça.
Não. Partiu por vontade própria. Precisava ficar sozinha, foi o que ela disse.
A culpa tingiu a voz da idosa mulher, culpa e remorso
Rocha Cinzenta olhou com toda a seriedade o rosto da outra:
O que é que você fez? Matou a mãe da Garça? Esse teu olhar...
Pare de fazer perguntas sobre o que não é do teu...
Está bem disse Rocha Cinzenta. Estava só conversando.
Ramada Partida colocou-se em pé devagar e ofereceu uma mão à sua amiga aleijada q
ue não conseguia levantar-se.
Vai fazer uma caminhada para encontrar outro clã do Povo? Você nem consegue le
vantar!
Oh, cale-se, minha velha isca de urso respondeu Rocha Cinzenta. Mas aceito
u a mão e estalaram ossos no esforço para se pôr de pé. Assim que estou de pé fico bem. Dê-
e um empurrão de arranque e eu não paro. O que não me deixa levantar foi aquilo que os
filhos grandes demais me fizeram à bacia!
Numa voz gentil, estranha a ela, Ramada Partida acrescentou:
Bem, nesse caso, sente-se. Não estarei lá para levantá-la.
Rocha Cinzenta acenou em concordância e saiu para o exterior. Na luz ainda fr
aca virou-se para onde Chamador de Corvo reunia o Povo que partiria com ele.
Até às estrelas! sussurrou ela, piscando um olho, e dirigindo-se para o velho
shaman.
Ramada Partida viu-a partir com uma sensação familiar de perda apertando-lhe o
coração.
CAPÍTULO 6
Sonhador de Lobo?
Corre na Luz virou-se e viu Lebre Saltitante que se aproximava por trás dele.
Agora chamavam-lhe assim pelo menos os que tinham aceito o sonho o faziam. Os o
utros, bem... Corvo Caçador tratava-o por criança. Até aí nada de novo. Desde crianças que
passavam o tempo todo brigando por razões que nunca compreendera. Mas que mesmo a
ssim doíam.
Penso que já está tudo arrumado disse Lebre Saltitante. Nós estamos prontos. Não
emos muito tempo: a luz é ainda muito curta.
Bem sei. Os olhos de Corre na Luz não eram capazes de se desviar do local on
de Chamador de Corvo estava reunindo o seu grupo. Estavam lá tantos dos seus amigo
s, incluindo Raposa Dançante! A dor era como um cinto muito apertado sobre o peito
. Estou pronto.
Lebre Saltitante, seguindo o olhar dele, ficou de cenho franzido:
Você não pode fazer nada. Ela é dele. O pai dela deu-a em pagamento de curas. El
a está em dívida com ele. É assim a vida.
Bem sei. Só que sinto ser esta a minha ultima chance. Sinto que, se não avançar
e a tirar, nunca mais...
Sempre nos parece assim. Eu passei pelo mesmo quando o meu primeiro amor c
asou com outro. Mas hoje tenho nome. Na próxima Renovação encontrarei uma esposa. Você v
ai ver. Espere até à Renovação.
Lobo Saltitante deu-lhe uma pancadinha no ombro e foi de novo meter-se num
abrigo.
Corre na Luz sentiu uma vontade cada vez mais intensa de ficar sozinho. Ava
nçou sobre a colina de neve até ficar fora de vista do acampamento. O medo atormenta
va-lhe as entranhas, roendo dentro de si como uma vez vira enxames de moscas var
ejeiras mordendo a garganta de um caribu morto. Toda a sua vida fora perseguido
durante o sono por rostos e vozes desconhecidos que o chamavam de qualquer caver
na cheia de ecos no fundo da sua mente. Havia uma voz em particular que se desta
cava das outras, uma voz de mulher. Era estranho mas sentia naquele momento que
ia partir em busca dela. O que o assustava. Fantasia ou realidade? Vou levar o m
eu povo no Caminho do Sonho... ou conduzi-los à morte? O.Lobo viera até ele: era uma
certeza que tinha. No entanto, havia um não sei quê de dúvida, sussurros de armadilha
ou de magia quase inaudíveis na sua fé. Teria o homem Sonhador dos Outros lançado sob
re si uma maldição? Teria lhe enviado aquela forma de destruição?
Apertou a corda do capuz e contemplou o vasto descampado. A neve esvoaçava co
mo nevoeiro junto ao chão, tocada pela brisa glacial. No céu branco e brilhante voav
am corvos e a luz arrancava reflexos prateados das suas penas cor da meia-noite.
Lobo? chamou baixinho. O pêlo da sua capa ondulou ao vento. Não me deixe aqui
sozinho. Ajude-me...
Corre na Luz? disse uma voz terna atrás de si.
Os músculos do seu estômago ficaram rígidos. Conhecia aquela voz seria capaz de r
econhecê-la dali a mil Longas Escuridões nos seus Sonhos no Povo das Estrelas. Cerro
u os olhos com toda a força e perguntou:
Veio dizer adeus?
Ela foi colocar-se na sua frente. Sentiu a sua presença, forte e quente, e ab
riu os olhos. Apesar da magreza cadavérica do seu rosto estava linda com o seu lon
go cabelo, que lhe chegava à cintura, dançando nas bordas do seu capuz.
Olhou-a nos olhos. A sua expressão terna não mudara mas havia algo nos seus olh
os que estava parado, como se equilibrado no fio de uma faca à espera da derradeir
a batida do coração antes da morte.
Você podia vir murmurou ele desajeitadamente.
Pensou que ela iria responder mas, depois de uma profunda inspiração, Raposa Da
nçante calou-se. Dor e medo misturaram-se nos seus olhos antes de baixá-los para a n
eve.
Ele me mataria. Ele tem... partes do meu corpo. Coisas que lhe dão a minha a
lma. Se ficasse contigo podia causar a destruição de todos vocês. Ele até poderia mandar
sair um espírito mau da Longa Escuridão.
Não me importaria de correr esse risco. Vem comigo, Raposa Dançante. Posso pro
tegê-la. O Lobo nunca...
Eu comi um pedaço de lobo disse ela num suspiro.
Você...
Apesar de não poder ir contigo eu quero ser parte do teu Sonho. E quero que
saiba... Raposa Dançante desviou o olhar e ele sentiu que o coração lhe subia à garganta
.
Ela fez a sua escolha. As suas entranhas cederam como as tripas de um mamut
e de barriga cortada.
Não diga isso sussurrou ele com vigor. Não fará a nenhum de nós bem algum.
Ela deu três passos em frente, com lágrimas nos olhos, e, antes de ele poder re
agir, abraçou-o pela cintura e encostou o rosto ao seu peito.
Você pode marcar uma pista para mim? Talvez eu consiga...
Marcarei uma pista. A futilidade invadiu-o: jamais Chamador de Corvo a dei
xaria escapar. Esmagou contra si o frágil corpo dela. Sentiu a sua respiração ofegante
através das espessas camadas de peles.
Com suavidade ela recuou olhando ansiosamente para o topo da colina.
Tenho de ir. Ele deve estar à minha procura.
Soltou-a com relutância. Os olhos dela miraram-no por uma última vez. Remexeu n
ervosamente os dedos dentro das luvas já gastas.
Se puder escapar... venha.
Irei. E, olhando mais uma vez para ele, correu pela colina acima. Corre na
Luz ficou contemplando as suas pegadas durante muito tempo antes de murmurar pa
ra si mesmo:
Deixe de ser um louco. Bem sabe que ela não poderá fazer isso. E, abanando a
cabeça, sussurrou: E não tenho certeza de que quero que ela o faça. E se o meu Sonho não
for... Foi incapaz de completar o pensamento.
Respirou fundo e contemplou as ondas de neve gelada. Riscos castanho-escuro
s viam-se nos lugares onde a Mulher Vento soprara com mais força e deixara limpos
os cumes das colinas. Aqueles cumes rochosos seriam a sua pista para o Sul, cada
vez mais altos...
Tocante.
Corre na Luz rodou sobre si mesmo e viu Corvo Caçador junto de si
Sabe, cheguei a pensar, por um momento, que ela cederia, que o medo da vin
gança de Chamador de Corvo seria menor que o seu amor por você.
O que você quer? perguntou Corre na Luz.
Ora... Corvo Caçador abriu os braços. Vim dizer adeus, meu irmão idiota. É um dir
ito de família, não é? Ter um último gesto de caridade e boa vontade para com um irmão.
Porquê?
Nem eu mesmo sei disse Corvo Caçador, inclinando a cabeça. Você sempre foi esqui
sito. Nunca entendi por que Garra De Foca e Gaivota ligavam mais para você quando
era eu quem fazia tudo melhor, aprendia a seguir pistas, era capaz de repetir as
histórias. Mas eles sempre te admiraram.
Corre na Luz engoliu, sentiu-se invadido por um certo desconforto. Vacilou
como se tivesse uma tontura. As palavras involuntárias ficaram-lhe presas na garga
nta ao mesmo tempo que mundo oscilava, desfocado, à sua volta.
Você... você e eu, irmão. Somos o futuro. Não faça o que está planejando. Ou chegará
ia em que um de nós terá de destruir o outro.
A risada sonora de Corvo Caçador quebrou o encanto, fragmentando-o como uma lâm
ina de gelo ao cair sobre o bico de uma rocha.
Está me ameaçando?
A luta rasgará o mundo em dois.
Será melhor para você que nunca cheguemos a isso, irmão. Corvo Caçador fez um sor
riso amarelo e inclinou-se tanto para a frente que os seus olhos duros quase que
penetraram nos de Corre na Luz. Sou mais forte, mais ágil e não padeço dos teus defei
tos de misericórdia e compaixão. Está me ameaçando? Você é mais louco do que eu pensava!
Eu... eu não sou louco murmurou ele, incerto. Está tudo na minha cabeça, as visõe
...
Não se esqueça do aviso, irmão. Um dia vai desejar nunca ter feito essa ameaça. Ah
vai, se vai! Por isso, tirarei uma coisa sua e, quando tiver acabado contigo, t
alvez te atire um osso. Hum?
Virou-se e, soltando outra gargalhada, subiu a colina pisando as pegadas de
Raposa Dançante, tornando-as em simples buracos na neve.
Afogando o seu medo do Sonho de Lobo, Corre na Luz fechou os olhos e escuto
u de novo as palavras do espírito: É este o caminho, homem do Povo. Vou mostrar-lhe.
..
Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Semicerrou os olhos para observar melho
r os corvos que voavam em círculos e perscrutou depois a brancura ondulante.
Eu ouvi, Lobo.
E caminhou para o alto onde o seu próprio grupo o esperava. Ramada Partida ac
enou-lhe, sorridente.
Do outro lado do acampamento ouviu-se o grito de Chamador de Corvo ao seu p
equeno bando:
Vamos!
O olhar de Corre na Luz percorreu o seu próprio grupo:
Tantos?
Ha-heee! Sonhador De Lobo! exclamou Ramada Partida começando a caminhada pa
ra o Sul, com a carga suspensa nas costas e presa a uma tira que lhe marcava a t
esta enrugada. As suas pernas arqueadas moviam-se com decisão conduzindo os outros
.
Um sorriso meio amargo aflorou aos lábios de Corre na Luz. Eles acreditam que
posso salvá-los. Posso? O seu olhar avistou Raposa Dançante que reunia as suas cois
as para a viagem para Norte. Encheu-o um vazio.
Uma mão pesada bateu-lhe no ombro fazendo-o recuar.
Deixe isso para lá disse Água Verde.
O quê?
Esse ar de quem a perdeu sussurrou ela. A menos que o Avô Urso Branco a apan
he, você tornará a vê-la.
Abriu a boca para lhe perguntar como é que ela sabia, mas manteve-se calado.
Em vez disso semicerrou os olhos e perguntou:
Anda tendo Sonhos também?
Claro, meu jovem louco. Você tem concorrência. Não se esqueça disso. Água Verde pis
ou-lhe o olho e, pegando-o pela manga, colocou-o num trote vivo.
CAPÍTULO 7
O fogo que se erguia dos fogos de bosta captou os primeiros clarões da manhã ao
elevar-se na brisa ligeira. As sombras frias e azuis recuaram até às encostas. O ba
ndo de Chamador de Corvo movimentava-se pelo acampamento, conversando sobre a pi
sta para o Norte e observando Corre na Luz que conduzia a sua gente para o Sul.
Raposa Dançante deu um nó mais apertado no seu blusão e ajustou a carga nas costa
s, sentindo a tira de suspensão morder-lhe a testa. Em segredo seguiu Corre na Luz
com os olhos. Quando este alcançou o topo da colina virou-se, olhando para trás, a
luz do Sol brilhando na pele de lobo que trazia nos ombros. Inclinou-se e coloco
u uma pedra em cima de outra.
A pista.
Raposa Dançante endireitou-se, sentindo um novelo de medo no estômago. Teria el
a a coragem para desafiar...
Tire os teus olhos dele disse, atrás dela, Chamador de Corvo. Se quer que os
olhos continuem na tua cara.
Ela virou-se para enfrentá-lo:
Eu não fiz nada!
E é melhor que não faça. Chamador de Corvo sorriu, sem humor, e meteu a mão no bol
so para retirar um pequeno saco curtido. Raposa Dançante reconheceu-o: a coleção de ca
belos e artigos pessoais com os quais ele controlava a alma dela. Abanou-o omini
osamente na frente dela, que estava de olhos muito abertos, olhando ora para ela
ora para Corre na Luz, o rosto cheio de dureza. Mantenha os teus pensamentos e
m mim, mulher!
Afastando-se, ela disse, tremendo:
Pensarei os pensamentos que eu quiser, marido. Pode controlar a minha alma
mas não a minha mente.
Ele segurou-lhe no braço com força e a sacudiu até ela pensar que o pescoço iria se
partir.
Gosta de punições, não gosta?
Não. Eu...
Bem, está se candidatando a mais! E, atirando-a para trás, afastou-se num pass
o decidido.
Raposa Dançante tornou a endireitar a faixa e seguiu-o lentamente, serpentean
do entre o emaranhado de gente, até à frente da procissão. Manteve os olhos pregados n
o chão para evitar ver os olhares curiosos e as expressões impassíveis que mascaravam
pensamentos.
Subiram a encosta batida pelo vento numa fila indiana, gente cansada sem lu
gar para onde ir. Andrajosos, esfomeados, as roupas de pele de caribu tornadas f
inas pelo uso, marchavam contra o vento. Alguns olhavam por cima dos ombros espr
eitando, com inquietação, o bando de Corre na Luz que ainda se via à distância.
Raposa Dançante lançou um ultimo olhar ao Acampamento do Mamute, o local onde o
seu mundo mudara. O seu amor gelara quando a tinham dado a Chamador de Corvo. O
pai dela a atirara, para pagamento de serviços prestados, como se atira um cobert
or velho. Quando ele morrera nem sequer chorara.
Tanta coisa na sua vida fora torcida como uma lebre tirada da toca. Tantas
esperanças e desejos esmagados e quebrados debaixo das peles castanhas de mamutes
com quadrados brancos cosidos. E agora afastava-se. Casada, possuída por Chamador
de Corvo, que todas as noites gatinhava até ela, lhe abria as pernas, a penetrava
e ficava mole. Graças ao Abençoado Povo das Estrelas que era breve naquilo. A vergon
ha queimava-lhe a cara.
Lá atrás, o Acampamento do Mamute iria mergulhar lentamente na terra. Os abrigo
s iriam apodrecer, os ossos secando e tornando-se quebradiços na Longa Luz. Os exc
rementos do Povo iriam tornar-se pasto para os escaravelhos e outros bichos. Os
mortos, com as suas almas brilhando lá no alto, seriam não apenas o abrigo dos inset
os mas também alimentariam os corvos e as gaivotas. Talvez até um lobo, por ali de p
assagem, os mastigasse. Os ossos seriam espalhados, os ratos trepariam pelos crâni
os vazios. Parte do que deixavam para trás seria levado pelas águas, outra parte se
enterraria lentamente na terra até que nada mais restasse a não ser ervas e arbustos
.
Só a minha dor permanecerá para sempre murmurou ela. Fez uma careta por causa
da dor que a trespassava em cada passo que dava. Alargou as pernas para evitar i
rritar os lugares que o marido rasgara na noite anterior. As dentadas nos seus p
eitos doíam nos pontos em que o pêlo das suas roupas de pele de caribu roçavam nelas.
Olhou com raiva para as costas muito retas de Chamador de Corvo que abria a
marcha. O ódio bloqueou-lhe por instantes a dor. Quer que eu pense em ti, velho?
Está bem, pensarei. Concentrou-se em encher a mente de tanto ódio que mal lhe restav
a espaço para pensar. Os seus males retrocederam para o nada. Odeio-te!, cantou el
a em silêncio vezes sem conta.
Caminharam durante horas até que atingiram um espinhaço rochoso que tiveram de
subir de mãos e joelhos. No topo, ofegante, Raposa Dançante quedou-se um instante ve
ndo a terra. O Pai Sol estava baixo no horizonte distante e mandava a sua luz, p
or entre as nuvens, para traçar padrões irregulares naquela brancura ventosa.
Vamos - ordenou Chamador de Corvo, tocando-lhe no braço ao passar por ela.
Soltou um suspiro e desceu, sobre as rochas escorregadias, até à planície. Gigant
escos blocos de pedra pontilhavam a vastidão com montes de neve empilhados até vinte
pés de altura nas suas bases. A luz solar refletia-se com tal brilho na neve que
quase cegava. Tirou da trouxa os protetores da neve e colocou a venda com fendas
na cara.
Corvo Caçador explorava em redor, a sua forma negra como uma mosca na gordura
enquanto subia em cada um dos montes de neve em busca do mamute ou do Avô Urso Br
anco. Ramada Partida bem os avisara para não matarem à paulada os cães de urso, mas a
fome vencera o bom senso. Agora, sem os cães para avisá-los, estavam sob o perigo co
nstante dos predadores. Naquele ermo da Longa escuridão, nem mesmo o seu número cons
eguiria deter um urso esfomeado.
Um abismo vazio cresceu no peito de Raposa Dançante, um abismo que se alargav
a a cada passo. Os seus laços com Corre na Luz esticavam quase até ao ponto de ruptu
ra à medida que se afastava mais e mais dele. Quando estavam no acampamento sempre
podia, pelo menos, conversar ocasionalmente com ele e tocá-lo cautelosamente. Mas
agora nada tinha, não possuía qualquer lenitivo para a brutalidade do marido.
Arrastaram-se durante horas e a Mãe Nuvem gradualmente foi cobrindo-os com um
cobertor negro de carvão. De começo, a Mulher Vento tocou com gentileza na roupa de
Raposa mas, na altura em que o Pai Sol já percorrera mais de metade do caminho pa
ra os céus de sul, já eram vergastadas ululantes que lhe batiam. A neve soprava em d
olorosos flocos e cortava-lhe a cara como agulhas gélidas de lascas de osso.
O ódio dela queimava, os seus pensamentos oscilavam entre Corre na Luz e Cham
ador de Corvo. Ele tem a minha alma.
Eu posso protegê-la! Prometeu, na sua memória, a voz desesperada de Luz.
Sentiu os peitos doridos, conhecendo cada uma das nódoas negras deixadas por
Chamador de Corvo. A memória da carne dele contra a sua fez-lhe revirar o estômago.
Na sua frente, o velho shaman, inclinado contra o vento, tentava cuspir fle
uma dos pulmões.
Não posso murmurou ela com a alma chorando por dentro. Não posso ficar contigo
, velho. Não suporto pensar na tua boca suja me tocando. Não suporto pensar na tua c
arne já gasta roçando na minha. Prefiro morrer...
Olhou em volta, o coração como uma rocha no seu peito. Mordeu o lábio, pensativa.
A tempestade desabou sobre eles como lençóis de névoa cristalina, obscurecendo to
da a planície, mas mesmo assim prosseguiram em frente. Quando já estavam bem embrenh
ados na planura, Raposa Dançante reduziu o passo e deixou-se atrasar até ficar na ca
uda da procissão. Saiu da linha e acocorou-se como se fosse aliviar-se. O seu coração
batia desvairadamente. As pessoas desviavam o olhar, como era próprio.
Deixou-se ficar agachada na neve rodopiante, com os joelhos tremendo. O ban
do afastou-se até ser uma sombra cor de cinza e acabou finalmente por desaparecer.
Só as suas pegadas, que se enchiam com rapidez, gravavam a neve.
Reunindo toda a sua coragem correu para junto de um monte de neve e, encost
ando-se a ele, virou-se na direção oposta seguida pelo Povo. Desceu pela encosta cob
erta de gelo lançando, para trás de si, olhares cheios de terror. Não andariam já à procur
a dela?
Estremeceu e, virando o rosto para o vento forte e gelado, orou:
Mulher Vento, por favor, cobre a minha pista. Tenho de fugir.
Muito fracamente, como se o espírito a trouxesse, escutou Chamador de Corvo g
ritando. Fragmentos de pragas que perfuravam a tempestade, uma delas clara pela
repetição: morte... morte .
Começou a correr com todas as suas forças, os pulmões explodindo com o esforço de s
ubir mais uma encosta e avançou pelo espinhaço rochoso, escondendo-se atrás de cada ro
cha maior para parar e escutar. Correu durante muito tempo, indiferente a tudo q
ue não fosse uma direção e a sua fraqueza devida à fome.
Lobo? sussurrou ela ao cinzento escurecido do dia. Lobo, você me prometeu qu
e o teu Poder seria forte. Proteja-me.
Encontraria a pista de Luz nem que fosse no centro da tempestade Sentiu-se
tranqüilizada pelas recordações dos seus olhos ternos e toque carinhoso.
Desceu a colina, os cabelos revoltos na frente dos olhos, passou ao lado de
um banco de gelo fantasticamente esculpido que se estendia como um bando de mam
utes avançando em fila indiana. Pareceu-lhe ver de relance, através da neve, os seus
velhos abrigos, as peles negras geladas pela neve.
Posso estar assim tão perto ao fim de tão pouco tempo? murmurou, a testa fran
zida em pensamentos. Não fazia sentido que ela tivesse já feito tanto caminho, mas o
tempo parecia parar no meio de uma tempestade.
O seu olhar percorreu toda a parede de gelo, perscrutando buracos azuis e m
ontes redemoinhantes. A neve começou a cair com mais intensidade, apagando a cor d
a paisagem ártica até nada mais existir que não o branco. Deslizou ao longo da parede
até que a sua mão, estendida tateando se enfiou de repente no banco.
Que... murmurou, insegura, ao mesmo tempo que se inclinava para olhar a pe
quena caverna de gelo. Entrou nela de gatas, deixando lá fora o vento.
O seu santuário tinha escassos cinco pés por oito, o teto ficava a um escasso pé
da sua cabeça. Caminhou acocorada até o fundo da caverna, tirou a mochila das costas
, lançou-a para um canto escuro e encostou-se, fatigada, à parede.
Lobo? a sua voz ecoou nas paredes irregulares. Assim que a tempestade amai
nar vão começar a me procurar.
Encolheu-se, tremendo de exaustão, e fechou os olhos, tentando sentir a sua a
lma para saber se Chamador de Corvo lhe tirara alguma parte dela. Mas a leveza d
a fome obscurecia quaisquer outras sensações.
Farrapos prateados redemoinhavam fora da boca da caverna e os gritos ululan
tes da Mulher Vento perfuravam o dia. Raposa, as mãos enluvadas metidas nos bolsos
, descansou e ficou à espera.
Apesar do medo que sentia, o sono chegou depressa, apoderando-se do calor d
os seus membros exaustos e enroscando-se, com toda a suavidade no seu cérebro cans
ado. Corre na Luz surgiu de uma brilhante coluna de luz. Saiu da escuridão chorand
o. Atrás dele, o Povo das Estrelas brilhava intensamente, sobre uma série de colinas
irregulares. Cada lágrima que tombava do seu queixo ficava congelada antes de cai
r no chão com um som abafado. Estaria chorando por ela? Não, Raposa sentia que era p
or algo mais profundo, uma ferida da alma que apenas ele poderia curar. Mesmo as
sim, o coração dela sofria por ele. Ansiava por estar junto dele, por...
Ah, Raposa Dançante. Está aqui ecoou uma voz suave, intrometendo-se no sonho.
Raposa, assustada, abriu os olhos. Tudo voltou ao seu espírito, Chamador de C
orvo, a fuga, a tempestade o medo.
Corvo Caçador disse ela, numa voz temerosa, as lágrimas nos olhos. O velho dev
ia tê-lo mandado à sua procura. O que você quer?
Ele riu e sentou-se ao seu lado, as duas mãos erguidas em sinal de paz, mas d
ivertido com a forma como ela recuou. Raposa observou-o com todo o cuidado, espe
rando jogo sujo esperando uma oportunidade para fugir para fora, para a tempesta
de.
Afinal, não está perdida, não é?
Ela manteve-se em silêncio, de olhos fechados, sentindo um vazio enorme a enc
her-lhe o coração.
Ora, então animou-a ele. Não estou aqui para te magoar. Digamos que é apenas cu
riosidade. O seu nariz espetado e bochechas salientes estavam vermelhos de frio,
os lábios grossos curvados num sorriso. Só os seus olhos negros ardiam, negros e im
penetráveis.
Curiosidade?
Isso mesmo disse ele num tom casual ao mesmo tempo que tirava o capuz de p
ele e sacudia os cabelos compridos. Não estava à espera de te ver aqui. Não está um dia
para...
Pare com isso ordenou ela num tom calmo. Você me seguiu. Foi de quem te mand
ou.
Não defendeu-se ele prontamente. Ainda não regressei ao bando. A tempestade ca
iu tão depressa que não tive tempo para isso. E, quando a vi correr de volta ao Camp
o do Mamute, vim saber porquê.
Raposa lançou-lhe um olhar frio.
Corvo Caçador descalçou as luvas e, abrindo a mochila, tirou de lá um pedaço de bos
ta seca. Com a ponta do atlatl abriu um pequeno buraco no chão de gelo da caverna.
Colocou o combustível no poço, puxou do bolso dois paus de fogo e começou a girá-los até
a fumaça começar a sair. Soprou, com toda a suavidade, para estimular o fogo até uma c
hama crepitante invadir de luz o abrigo. Com os dedos longos sobre o frágil calor
emitido pela bosta, olhou para ela com uma sobrancelha levantada.
Ela aguentou-lhe o olhar.
Eu a vi correr pelo topo da colina. Soltou vapor condensado e sorriu ligei
ramente. Nunca corra por lugares altos se está tentando fugir. As pessoas podem ve
r os seus movimentos de distâncias espantosas.
Raposa desviou o olhar para o brilho rubro do fogo. Julgara que a neve enco
briria os esforços e talvez o tivesse feito do bando. Mas esquecera-se dele. Em si
lêncio, rogou uma praga a si mesma.
O que você quer? perguntou ela com brusquidão.
De momento, encher a barriga. Retirou um pedaço de carne congelada de um sac
o que trazia na mochila e, espetando-o no dardo comprido, colocou-o sobre o fogo
.
E depois?
Corvo apoiou as costas confortavelmente na parede, soltou um suspiro e, per
furando-a com o olhar, disse, em tom casual:
Depende. Uma pausa. Você ia atrás do inútil do meu irmão.
Eu... A garganta apertou-se e era-lhe difícil engolir. Ele...
Ele está deixando uma pista para você. Sim, eu reparei nisso. E penso que o ve
lho Zarolho também.
Embora tivesse dito as palavras com toda a tranqüilidade, estas atingiram-na
como um soco do estômago. Seria verdade? Não, Chamador de Corvo a teria punido de im
ediato. Era essa a sua maneira de ser.
Você é um mentiroso.
Ele soltou uma gargalhada.
Mesmo? Era um pouco difícil não reparar nas ações de Luz, não acha? Quero dizer, aqu
ela tocante cerimônia no topo da colina, o teu olhar colado no dele. Ora, só um louc
o...
Nesse caso, como conseguiu descobrir? perguntou ela, cruzando os braços e ab
raçando a si mesma.
Com a sombra de um sorriso no canto dos lábios, ele mirou-a pelo canto do olh
o.
Não me diga que ainda está apaixonada por ele? Estava convencido de que as caríc
ias de Chamador de Corvo há muito o tinham apagado do teu espírito.
Preferia que uma mosca colocasse os seus ovos em mim do que deixar esse ve
lho louco...
Tanta devoção da parte de uma jovem e dotada esposa.
O velho Zarolho? Não foi assim que te ouvi chamar ao homem mais poderoso do
Povo? Tanto respeito da parte de um jovem caçador por um ancião.
Corvo riu.
Talvez nós os dois nos compreendamos.
Ela ficou encantada mas, lá dentro, sentiu como a voz dele estava melada, mel
ada... e amiga. Um sinal perigoso. Corvo Caçador só era amigável quando pensava poder
ganhar qualquer coisa com isso.
Claro continuou Corvo Caçador que o idiota do meu irmão te pediu que casasse c
om ele depois do teu pai ter te dado a Chamador de Corvo. O seu sentido de oport
unidade é impagável, não é?
Você é um homem perverso.
Ele abriu muito os olhos, como se estivesse surpreso, e apontou para si mes
mo. Depois sussurrou:
E, agora, sou também o seu único amigo.
Amigo escarneceu ela.
Ainda não te arrastei para o teu marido, não é? Inclinou-se para virar o cabo do
dardo de modo a grelhar o outro lado da carne. Quando tornou a olhar para ela h
avia chispas vermelhas do fogo nos seus olhos negros. Não está pensando porquê?
A tempestade está violenta demais.
Já encontrei o meu caminho em tempestades maiores que esta. Os músculos do estôm
ago de Raposa contraíram-se como se o seu corpo soubesse alguma coisa que o seu es
pírito se recusasse a aceitar. Recuou, instintivamente, o mais que pode para o can
to.
Porquê?
Ele espreguiçou-se e cruzou os tornozelos um sobre o outro.
Queria falar com você.
Porquê?
Corvo sorriu e abanou a cabeça.
Nunca tivemos oportunidade de falar a sós.
Uma violenta rajada de vento invadiu a caverna e a neve gelou-lhe os rostos
e silvou nas chamas. Raposa Dançante ergueu as mãos como um escudo. Corvo Caçador sac
udiu a neve da roupa e voltou a soprar, com suavidade, o lume.
Vai me levar de volta? perguntou ela, lutando para manter a voz controlad
a.
Ainda não decidi.
E quando fará isso?
Está assim com tanta pressa? levantou as mãos num simulacro de espanto. Virou
-se então para ela com um ar sério. Bem, sabe que sempre admirei por isso. Lembra-se
de quando o teu pai te deu a Chamador de Corvo, no princípio da Longa Escuridão?
Como o poderia esquecer?
Corvo contemplou a neve. O mundo estava ficando cor de carvão agora que a Lon
ga Escuridão descia sobre a terra.
Eu também gostaria de esquecer.
Raposa mudou a posição dos pés. O nó de fome que sentia no estômago agitava-se com o
cheiro da carne.
O que você quer...
Lembra-se de quando eu regressei?
Trazias a pele do Avô Urso Branco. O que matou e comeu Atira Ossos.
Ele assentiu com a cabeça:
Era para você. Para o seu pai. Eu... eu ia pedir-te a ele. Os seus lábios trem
eram até ele os cerrar com força. Se... bem, se você me tivesse dito que sim.
As palavras gelaram-lhe na garganta. Ele não podia estar falando sério. Em toda
a vida de ambos mal tinham trocado três palavras amigáveis.
Mas você já estava nas roupas do Chamador de Corvo. Já nada havia para dizer. Fu
ngou e reclinou-se para trás. É engraçado como as coisas acontecem. Sobretudo entre o
meu irmão e eu. Você amá-lo. Os nossos pais, Gaivota e Garra de Foca, amavam-no. E por
quê? Hein? Tudo o que ele faz é apenas metade do que devia fazer. Sabe, não sabe? Como
se só metade dele estivesse neste mundo.
É por isso que o odeia tanto?
Corvo Caçador acenou a cabeça e disse, baixinho:
É.
Mas depois riu.
Mas você vai ver. As coisas mudaram. Voa Como Uma Gaivota desapareceu. Eu ma
tei o Avô Urso Branco. Estou prestes a ser um dos maiores homens do Povo.
Presunção da tua parte.
Mas verdadeira. Inspecionou a carne e voltou a olhar para ela. E a quero c
omigo.
Raposa mordeu a língua, alerta, o coração batendo-lhe no peito. A sinceridade não d
eixava lugar a dúvidas. Estava ali presente um Poder ofuscante. Ele estava sendo
sincero em cada uma das suas palavras.
Mas... e Chamador de Corvo? Ele...
Corvo Caçador abanou devagarinho a cabeça.
Não a mim, não. E eu sei o que ele te tem feito. Tenho-o ouvido durante a noit
e. Tenho ouvido os seus gemidos. Eu nunca te magoarei daquela maneira.
Apanhada de surpresa Raposa engoliu em seco, sentindo uma curiosa falta de
ar no peito.
Eu... eu não entendo...
Eu a quero-te para minha mulher, Raposa Dançante. Foi por você que matei o Avô U
rso Branco. Chamador de Corvo não passa de um velho louco. Um de que irei necessit
ar, é certo. Mas, seja como for, louco. Sei como lidar com ele.
Mas o Poder do Espírito dele...
Você não acredita nisso, não é?
Eu...
Pense na minha oferta. É tudo o que te peço. Sorriu e inclinou a cabeça. Eu a fa
rei muito feliz. Alimentada. Arranjarei um lugar para você nos conselhos do Povo.
Não podia ser melhor.
E se eu decidir não o fazer?
Corvo soltou um suspiro profundo.
Acabarei por ter você. Será mais difícil para ambos, mas não perderei. Claro que t
erei de levá-la de volta a Chamador de Corvo, mas...
Não irei.
Oh, acho que vai.
Não. Vou embora mal a tempestade acabe.
Considere... disse ele de cenho franzido e fazendo estalar os dedos. Você não
tem mais ninguém. O teu pai era o teu último familiar vivo, à exceção de alguns primos e t
ios no bando do Costas de Búfalo. Se eu te levar de volta, Chamador de Corvo vai d
enunciá-la, amaldiçoá-la de uma forma terrível, e todos terão medo das suas ameaças. Você ser
ma foragida, uma expulsa. Ficará reduzida a pedir migalhas... a estar dependente d
a caridade que porventura o Povo tenha.
Talvez.
Depois disso continuou ele como se a não tivesse ouvido um homem pode tê-la se
mpre que quiser. Olhou para ela com ar sombrio. Qualquer homem... em qualquer mo
mento.
Você me faria isso?
Ele encheu os pulmões e suspirou.
Talvez. É provável que o faça. Abanou devagar a cabeça. É uma coisa engraçada. Al
e não sei se consigo explicar bem mas, enquanto te amar, não posso suportar sequer o
pensamento de você estar na cama de Luz.
Você o odeia tanto assim?
Oh, se odeio. Sorriu abertamente.
Serias capaz de me destruir? De me arruinar, em vez de me deixar ir para C
orre na Luz?
Na verdade, estou te salvando de um destino horrível. Virou a carne, que já es
tava corada e começando a chiar no lume. Se você for para Corre na Luz será tão miserável
que acabará por orar para que Chamador de Corvo vá te buscar.
Duvido.
Eu sei que fará isso. Tal como o meu irmão louco, eu também vejo pedaços de coisas
na minha cabeça. Nunca tinha dito isso a ninguém. São coisas dispersas, sem ligação. Cont
emplou-a com um curioso vazio no olhar. Mas vejo como você tem se esforçado para viv
er com ele e as suas ilusões. Ele é louco, bem sabe. Completamente maluco. Maluco co
mo um caribu infestado por moscas e igualmente possesso por coisas que o comem.
Não me importo.
Nesse caso, você tomou a decisão por mim. Vou levá-la de volta.
Não irei.
Acha que isso importa?
Umedecendo os lábios, cheia de medo, ela disse:
Tem. Você pode me matar, Corvo Caçador, mas eu lutarei.
Nunca ninguém te ensinou vergonha feminina quando estava crescendo? pergunto
u ele. Pegou o dardo, tirou dele a carne e soprou para esfriá-la. Cortou-a em tira
s e ofereceu-lhe um pedaço.
Raposa ficou olhando o pedaço de carne que balançava, pendurado dos dedos dele,
tentando convencer a si mesma a não aceitar, mas, quando ele começou a afastá-lo, ela
agarrou-o de repente e meteu o pedaço no bolso para mais tarde.
Uma atitude inteligente. A viagem até junto do Povo vai ser longa
Vai ter de me arrastar o caminho todo.
O olhar que ele lhe lançou gelou-lhe o coração. A dor profunda brilhava nos olhos
negros de Corvo Caçador.
Não queria machucá-la desta maneira, mas eu vi, Raposa Dançante. Compreende? Vai
pensar que estou arruinando a sua vida, degradando você, mas no fim verá que foi a
coisa certa.
Os olhos dela semicerraram-se de medo. Ele está louco. Querido Povo das Estre
las, tenho de fugir daqui.
Ele sorriu, um sorriso fraco:
Eu a amo, não sei se entende. É a única pessoa no mundo a quem amo de verdade. A
quilo que estou prestes a fazer...
Nesse caso, prove que me ama e deixe-me ir embora.
Corvo abanou a cabeça, desesperado, mas fechou os lábios e franziu a testa.
Não, não posso. É porque te amo mais do que pode compreender...
Quer que eu morra? Chamador de Corvo não vai me expulsar! Ele me odeia, ele.
..
Não. Ele estremeceu como se possuído por um súbito arrepio. Não, isso nunca.
Então...
Eu... eu não sei porquê. Eu só... vi isso. Talvez tenha sonhado. Riu amargamente
. Tal como o meu irmão de cabeça dura como osso, só que este é real. É como se eu não fosse
mais que uma folha no vento. Tenho de casar contigo ou destruí-la.
Disse isso com tal precisão que fez o coração dela bater com força contra as costel
as. Comeu, sem pressa as finas tiras de carne. Limpou as mãos nas botas compridas
e ofereceu-lhe outro pedaço de carne.
Come pediu ele baixinho. Vai precisar de forças se pretende escapar de mim.
Ela pegou o pedaço, meio atordoada, e mastigou-o, sentindo prazer no seu calo
r. Reconheceu o sabor amargo: lobo. Afinal, ele também o comera. Engoliu, com rece
io de fazer outra coisa.
O que mais você Sonhou? perguntou ela, para ganhar tempo, olhando para a esc
uridão lá fora.
Entregando-lhe o último pedaço, ele engoliu o que tinha na boca e contemplou a
bosta coberta de cinzas.
Virá sangue e morte. Indicou o norte com o queixo. Não consigo ver tudo, mas s
ei que o meu caminho está determinado. Terei de segui-lo tal como um caribu na mig
ração.
Mesmo que isso signifique arruinar a mulher que ama?
Absorto, ele fez um gesto de concordância:
Mesmo que isso signifique a ruína de nós dois. Se eu acreditasse nessa bosta d
e rato sobre o Pai Sol diria que sou um brinquedo nas suas mãos. Que me obriga a f
azer estas coisas porque o divertem.
Raposa saltou, tentando passar por ele e alcançar a abertura coberta de neve,
mas os braços poderosos do homem seguraram-na pela cintura e arrastaram-na para t
rás. As suas mãos levaram-na ao chão. Ela chutou e bateu com os punhos. As pernas dele
prenderam as suas ao chão, as suas mãos seguraram-lhe os pulsos.
Ela olhou para cima, para o rosto dele iluminado pelo lume de bosta espevit
ado pelo movimento. Lutou e tentou evitar os olhos dele que a possuíam, penetravam
até ao âmago da sua alma.
Ele é tão bonito... tal como Corre na Luz.
O hálito dele cheirava à doçura da carne.
Corvo baixou a cabeça e a sua face roçou pela dela. A pele dele era quente cont
ra a sua, o toque suave.
Deixe-me levantar. Raposa sentia-se a cair na negridão dos olhos dele. A vis
ta turvou-se. Seria o cansaço da fome... ou o poder da alma dele procurando a sua?
Não quer ser minha? perguntou ele com amargura.
Ela sacudiu a cabeça devagar, sem despregar os olhos dos dele:
Nunca.
Ele fez uma careta, uma expressão de dor no rosto:
Sendo assim, terei de fazer da forma mais violenta.
Raposa lutou enquanto ele desfazia os laços da parka dela e expunha o seu cor
po à luz. A sua expressão de dor tornou-se mais profunda quando viu as nódoas negras d
eixadas por Chamador de Corvo.
Eu disse que jamais te machucaria murmurou. O joelho dele obrigou-a a afas
tar as pernas.
Raposa cerrou os dentes, virou a cabeça e fechou os olhos, preparando-se para
a dor. Mas ele fez algo de novo. Ao contrário de Chamador de Corvo, ele deslizou
para dentro dela, enchendo-a com facilidade. Não sentiu dor.

CAPÍTULO 8
A luz cinzenta da tarde espalhava-se nas encostas de neve e as sombras est
endiam-se como dedos compridos para tocar nos rostos chupados do Povo. A fumaça su
bia, enrolando-se, da boca de um abrigo de neve. Alguém encontrara musgo ou vidoei
ro anão. No chão estavam espalhados ossos de um búfalo abatido no Inverno, misturados
com as penas de um corvo sem sorte. As crianças, amparadas às paredes, saltaram, che
ias de curiosidade, quando viram duas pessoas aproximando-se. Chamador de Corvo
estava imóvel, de queixo erguido, o olho negro faiscando.
Corvo Caçador implorou baixinho a Raposa Dançante. Não faça isto. Bem sabe o que
le fará...
Já lhe disse: tenho de fazer.
Chamador de Corvo avançou, num passo arrogante, ao encontro deles, a face enr
ugada tensa de antecipação. Inclinou a cabeça ao perceber as tiras de couro cru que am
arravam as mãos dela.
Que está acontecendo? perguntou ele com uma certa vacilação.
Encontrei-a fugindo para Corre na Luz respondeu, sombrio, Corvo Caçador, emp
urrando Raposa Dançante para os pés do marido.
Eu... eu não fugia negou ela, respirando pesadamente, o medo tão forte dentro
de si que sentia até vontade de vomitar. As pessoas começaram ajuntar-se em volta, d
e olhos muito abertos, preocupadas. Raposa olhou-as uma a uma pedindo, em silêncio
, ajuda. Rocha Cinzenta ainda esboçou ir até junto dela, mas estacou. Não se atrevia.
O queixo do velho shaman tremeu de raiva. Apontou um dedo espetado para Rap
osa e gritou:
Você seria capaz de envergonhar o teu clã abandonando-me?
Não, nunca. Me perdi. A tempestade...Por que estou mentindo? Por que não o enf
rento? Ele que faça o pior. Que fique mais envergonhado do que envergonha a mim?
O rosto de Corvo Caçador ficou branco. A sua expressão era a de um homem apanha
do numa situação insuportável.
Duvido. Encontrei-a voltando para trás no mesmo caminho que o Povo fez até aqu
i.
Raposa teve uma careta involuntária ao virem ao espírito as recordações das noites
que haviam partilhado.
Me perdi! Não sabia aonde estava! Não podia...
Ela seguia as nossas pegadas explicou Corvo Caçador para regressar ao Campo
do Mamute.
Mentiroso! Olhou-o nos olhos, em desafio, e encontrou neles uma simpatia i
rônica. Foi ele quem afastou o olhar.
É coisa que ela não pode evitar acrescentou ele em voz baixa. Tem de protestar
. Nada mais lhe resta. Mas eu... eu peço-lhe, Chamador de Corvo. Aceite-a de volta
. Não é uma mulher ruim, apenas está confusa e louca...
Eu não quero voltar! gritou ela. Eu o odeio!
O Povo deixou escapar uma exclamação e olhou, com medo, para Chamador de Corvo.
O olho bom do velho brilhou enquanto que o branco a marcava com uma malícia escon
dida. O shaman abriu e fechou os punhos e, de repente, deu-lhe um violento ponta
pé. Da garganta dela soltou-se um pequeno grito de agonia. Pondo-se de joelhos, o
estômago vazio cheio de câimbras, tentou vomitar, sem sucesso.
Olhou para Corvo Caçador, implorando. E se o acusasse de violação? Não, ela já fora l
onge demais. Quem acreditaria nela? Baixou a cabeça.
Ela tentou escapar para o inútil do meu irmão disse ele, num tom baixo, como s
e falar daquilo o incomodasse. Eu a trouxe para o seu devido lugar, ao lado do s
eu marido.
Levante-se! ordenou Chamador de Corvo, agarrando-a pelo queixo e torcendo-
lhe o pescoço para ver os olhos dela cobertos de lágrimas. Tentou levantar-se mas a
fraqueza sobrepôs-se e tornou a cair no gelo.
A partir deste momento gritou o seu marido acima do ulular da Mulher Vento
condeno o espírito desta mulher a espiralar para baixo, para baixo, para longe do
Bendito Povo das Estrelas. Quando ela morrer, o seu corpo será enterrado. A alma
dela ficará para sempre presa na terra, com as raízes e os tubérculos e apodrecerá. Ela
envergonhou o nosso clã!
Raposa viu velhos amigos abanarem as cabeças e caminhar para os abrigos. Algu
mas das mulheres mais novas ainda se quedaram alguns instantes olhando para ela
antes de a deixarem. Só Rocha Cinzenta ficou, dobrada e frágil dentro das suas peles
.
Chamador de Corvo disse timidamente a mulher idosa. Não a machuque. Não passa
de uma jovem...
Saia já daqui! gritou ele, cortando o ar com o braço. Quer que eu rogue uma pr
aga às tuas pernas para que fiquem sem forças e não possa acompanhar o clã?
Rocha Cinzenta encolheu-se toda:
Não, mas...
Então, saia daqui!
Rocha Cinzenta lançou a Raposa um olhar de pena e dor antes de se virar na di
reção dos abrigos.
Chamador de Corvo ajoelhou, os dedos nodosos agarrando-lhe o braço, olhando-a
ameaçadoramente nos olhos.
As pessoas vão rir nas minhas costas. Vão dizer que eu não fui suficientemente h
omem para manter a minha própria mulher em casa.
Ora, pelo menos uma vez aprenda a viver com a verdade.
Cale-se! gritou ele. Sacudiu-a com tal violência que a cabeça dela bateu sonor
amente no gelo.
Outra vez tonta e nauseada, deixou-se ficar ali estendida, sentindo o hálito
frígido da Mulher Vento acariciar-lhe o rosto. Ouviu o deslizar do marfim e pedra
no couro quando o velho shaman desembainhou a sua faca.
Vale mais morrer. Ouça-me chamar, Corre na Luz? Meu amor, tentei juntar-me a
você. A culpa não é sua... não te culpe a si mesmo.
Abriu os olhos a tempo de ver a longa lâmina de obsidiana da faca de Chamador
de Corvo brilhar, vítrea, na luz pálida e deixou de respirar quando ele lhe agarrou
os cabelos. O seu coração começou a bater numa cadência louca e tentou engolir sentindo
na garganta um nó de medo.
Sonhador? chamou Corvo Caçador ao mesmo tempo que segurava na mão do ancião e im
obilizava a faca. Ela o desgraçou, brincou com a tua liderança sobre o Povo. Mas ist
o não é o correto.
Hush! O rosto de Chamador de Corvo ficou vermelho, a respiração ofegante. Vou
matá-la para apagar...
Mas a morte é tão fácil.
Isto não é assunto seu!
Corvo Caçador, com um encolher de ombros, soltou a mão tremente do velho.
É verdade. Mas pensa numa coisa. Se a deixar viver pode envergonhá-la todos os
dias pela dor que te causou. É um castigo muito maior que acabar agora com a sua
miséria.
A voz dele soava perfeitamente razoável e controlada, mas Raposa Dançante ficou
fixa no desespero que havia nos seus olhos. Um dos dardos compridos estava entr
e os seus dedos, pronto a agir.
O velho shaman ficou rígido olhando para a esposa. Limpou a boca com a mão:
Torná-la uma proscrita?
Corvo Caçador assentiu com um gesto de cabeça.
Dessa forma só conseguirá sobreviver se as pessoas lhe atirarem restos de comi
da. Ou com o que conseguir apanhar, como os corvos.
Sim...
Raposa fechou os olhos. E você pode atormentar-me sempre que quiser.
Marido implorou. Mate-me. Não sirvo para...
Ninguém partilhará restos. Estamos todos cheios de fome disse, pensativo, Cham
ador de Corvo, coçando o queixo e assomando-lhe ao rosto um sorriso.
Corvo Caçador sorriu também.
A morte dela será antes um padecimento...
Você vai viver, mulher! E vamos ver o que te acontece rugiu o velho. E, debr
uçado sobre ela, murmurou, cheio de malevolência: Numa volta do rosto da Mãe Lua vai d
esejar que eu tivesse lhe cortado a garganta.
Raposa contemplou, absorta, os picos distantes cobertos de púrpura. Corre na
Luz estava ali, atravessando o buraco no gelo para atingir o paraíso do outro lado
. Imaginou o rosto dele, a ternura nos olhos quando a contemplava e a sua alma g
ritou de infortúnio.
Vou dizer ao Povo disse Chamador de Corvo. Raposa escutou os passos dele a
afastarem-se.
Ao fim de alguns instantes, Corvo Caçador exalou ruidosamente e ajoelhou-se a
o lado dela. Levantou-lhe o queixo obrigando-a a olhar para ele. Lembrava tanto
Luz... exceto pelo brilho negro e frio no olhar.
Cheguei a pensar que teria de matá-lo. Mas, ao que parece, passamos no teste
. Agora temos de...
Que teste?
Corvo mirou-a como se a achasse estúpida.
Não te disse? Haverá muitos no caminho. Mas não se preocupe, terei o cuidado de
te arranjar comida suficiente para que mantenha as forças.
Porquê?
O rosto dele suavizou-se.
Porque te amo. E porque você é importante para o futuro do... Fez uma pausa e,
rodando a cabeça, contemplou o céu coberto de nuvens. Não sei exatamente como. Mas um
dia precisarei de você. Não se esqueça da vida que me deve.
Ao ver os olhos dele, loucos e turvos, sentiu-se sacudida por um tremor.
Não se preocupe disse ele. Colocou as suas mãos sobre as luvas trementes dela,
como se acalmasse uma criança histérica. Já lhe disse: tomarei conta de você.
Em algum lugar, entre a neve, um lobo uivou e o vento trouxe-lhes o lamento
desse uivo.

CAPÍTULO 9
Na luz leitosa do Sol da tarde, a Mulher Vento soprava as nuvens em longas
tiras douradas e penetrava até aos ossos do Povo. Um fino cordão de Gelo debruava os
seus capuzes. Com profundas olheiras sob os olhos semicerrados, o Povo contempl
ava a infindável cadeia de colinas na sua frente.
Aquele Que Grita olhou para trás para ver a fila de gente que subia a colina
elevada. Ramada Partida vinha no fim, colocando com cuidado os pés na rocha que o
vento desnudara de neve. Três das crianças menores seguiam à frente dela. Lá na frente,
muito mais acima, aquele a quem agora chamavam Sonhador De Lobo continuava em fr
ente, os dardos sobre o ombro, arrastado pelo seu Sonho.
Aquele Que Grita olhou para Lebre Saltitante. O seu jovem primo tinha um ar
tão gasto como aquela paisagem ancestral. Limpando o gelo incrustado na pele do c
apuz em volta do queixo, os olhos meio fechados contra as rajadas gélidas que varr
iam a terra.
Quatro semanas, foi o que disse Chamador de Corvo. Quatro semanas até começarm
os a ter fome.
Lebre Saltitante comprimiu os lábios:
E o que apanhamos nós? Três coelhos, desde que saímos do Campo do Mamute?
E isso foi apenas há uma semana resmungou o desafortunado Aquele Que Grita o
lhando para as costas de Sonhador De Lobo. Devíamos ter voltado para trás.
Um caminho é tão bom como o outro sussurrou Água Verde. Morreríamos da mesma de f
me no Campo do Mamute.
Aquele Que Grita baixou os olhos e levantou um pé forrado de peles à frente do
outro, mantendo o passo lento, sabendo, pelo saber da experiência, que a noite os
apanharia antes de chegarem ao cume da colina. A vergonha queimava-lhe o peito.
Perdera, assim tão depressa, a fé em Sonhador De Lobo?
Subiram passo a passo, experimentando cada passo com a deliberação de músculos en
fraquecidos pela fome. Nenhum movimento extra desperdiçava a energia que restava n
os seus membros cansados.
Espíritos murmurou Lebre Saltitante entredentes. Corre na Luz tinha logo que
escutar o Lobo! Tinha logo de se meter com o Poder do Espírito!
Continua acreditando nisso? perguntou, condescendente, Lobo Cantante.
Você não acredita?
O Lobo não nos torturaria até à morte se estivéssemos seguindo o seu Sonho.
Hush. Tínhamos de fazer qualquer coisa brincou Raio de Sol Sorridente. Ainda
não viram as mulheres se queixarem: nós avançamos. Guardamos o fôlego e o esforço para o
caminho. Se os homens tivessem juízo, estariam fazendo o mesmo.
Tombou um silêncio pesado. Olharam para a frente e para trás, inseguros. Ao lon
ge, o Pai Sol brilhava, em tons de prata, através do manto de nuvens, no seu camin
ho de descida.
Talvez isto seja uma prova à nossa fé suspirou Água Verde. Aquele Que Grita olho
u para o céu cinzento.
Morrer de fome não é das piores maneiras de morrer. Há piores. Há os dedos maus qu
e apodrecem e fazem inchar de pus a cara de um homem. Há as dores das articulações, qu
e fazem um homem gritar em agonia, com as articulações rangendo e queimando. Um home
m pode sempre quebrar uma perna num lugar onde não tem ajuda alguma... ou ser comi
do pelo Avô Urso Castanho. Lembram-se do velho Dente de Morsa? As pernas dele inch
aram tanto que não cabiam nas botas altas. Depois as águas dele ficaram de sangue. E
depois...
Hush! soltou, em desespero, Água Verde.
Fogo de Gelo acordou durante a noite. Podia escutar, à sua volta, a respiração ca
lma do clã. Por cima da sua cabeça, o vento vicioso agitava o teto de pele do abrigo
. Mesmo na escuridão podia ver o vapor da respiração que se elevava das roupas que o r
odeavam. Mudou de posição debaixo do monte de peles macias, sentindo a escuridão com u
m cheiro de maresia.
Um sonho curioso. Ia andando, procurando qualquer coisa no sul. Atrás dele vi
nha o Clã da Presa Branca, esfomeado, confiante. Durante todo o sonho sentira-se t
raído por qualquer Poder da noite. Mas, enquanto conduzia o bando pelas rochas aci
ma, sentia que havia olhos a verem-nos, alguém que os mirava lá de cima. Depois, no
meio da encosta batida pelo vento, virara-se para olhar os céus nublados.
E vira os olhos dela, que olhavam para baixo: A Vigilante.
Enquanto se acomodava de novo tentou afastar de si a sensação de premonição. O apel
o ecoava nos limites da sua mente. Piscou os olhos e rolou, procurando adormecer
de novo. Horas mais tarde acabou por afastar a roupa, vestir a parka e dirigir-
se para a cortina de entrada.
Está outra vez sem conseguir dormir, ancião?
Não, Pederneira Vermelha, meu velho amigo. Fez uma pausa ao sentir o frio lá d
e fora que entrava pela fresta da cortina levantada. Há momentos em que penso se não
estarei perdendo lentamente o juízo.
Pederneira Vermelha mexeu-se dentro das peles e estendeu um braço para remexe
r no poço do fogo, expondo o olho vermelho do carvão.
Vai, mais uma vez, andar por aí na noite como um fantasma sem lar?
Fogo de Gelo levantou um ombro. Pederneira Vermelha colocou a parka e incli
nou-se para soprar o carvão, alimentando o pequeno olho com um pouco de musgo seco
, nutrindo-o com pedaços de ramos de vidoeiro e folhas secas.
A luz pode acordar alguém disse Fogo de Gelo apontando, com um gesto, os far
dos adormecidos em volta deles.
Pederneira Vermelha sorriu para o clarão. O humor traçava padrões cômicos nas linha
s do seu rosto.
Duvido. Você os manteve acordados até tarde, recontando a história da Aranha do
Céu e de como ela fez a teia que segura o sol e o céu. Não vão continuar a dormir.
Fogo de Gelo sentou-se perto das peles do amigo e cruzou as pernas com cuid
ado. Resmungou aceitação e ficou contemplando as chamas amarelas e vacilantes.
Não vai morrer, não é? Às vezes os homens não conseguem dormir antes de morrer.
Fogo de Gelo baixou a cabeça e riu baixinho:
Ainda não.
Nesse caso, o que o está incomodando?
O outro pegou um ramo comprido de vidoeiro e remexeu o lume devagar, pensan
do. Por onde começar?
Sonhei com uma velha... uma feiticeira. Franziu a testa. Eu a conheço. Ou, p
elo menos, já a vi antes.
Meu cão velho! Pensando em mulheres? Não está pronto para morrer... exceto, talv
ez, para o teu gosto? Olha, tenho esta filha, Água da Lua. Já está espigada. Será para t
i uma boa...
Quer ouvir isto, ou não? interrompeu, irritado.
Desculpe. Só que você parecia tão... Bem, pensei que um pouco de brincadeira o a
nimaria.
Fogo de Gelo deu uma palmadinha no joelho do amigo e ficou algum tempo para
do olhando o fogo.
Lembra-se que lhe contei daquela mulher que apanhei à beira-mar, anos atrás?
A mulher do Inimigo assentiu Pederneira Vermelha de olhos brilhando.
A feiticeira estava lá. Observando.
Pensei que não tinha visto ninguém.
E não vi. Mas conheço a sensação da visão de uma feiticeira. Tal como o cabo do dard
o na mão. Familiar. Não precisa olhar para reconhecer o seu dardo. É a textura, o bala
nço, o peso. Ela tinha esta sensação, a feiticeira.
Pederneira Vermelha coçou o rosto curtido pelo tempo.
Acha que ela está te chamando? Talvez o tenha enfeitiçado? Podemos ter uma Canção
para tentar afastá-la. Talvez possamos atirar tudo de volta para ela, feri-la...
Não. Levantou uma mão. É outra coisa. Algo de Poder que se agitou nela... e em m
im. Está acontecendo qualquer coisa.
Pederneira Vermelha olhou sombriamente para o fogo. Nos seus olhos refletir
am-se as fagulhas douradas.
Você sabe que os outros clãs não estão se saindo bem. O Clã Barriga de Tigre perdeu
uma boa parte do território no ano passado. Morreram centenas de jovens nas lutas
com o Povo da Geleira. A Oeste, o Clã do Casco Redondo foi empurrado para longe do
Grande Lago. Empurrados até o território do Clã do Búfalo. Encare os fatos: estamos sen
do empurrados para fora dos nossos velhos territórios.
O mundo inteiro está mudando e já não resta gente nossa suficiente para deter os
nossos inimigos.
É isso que a feiticeira tem andado a dizer?
Fogo de Gelo tossiu e coçou a nuca.
Em parte é isso. Mas há mais. Arrasta-me para sul por outra razão.
Qual?
Tem qualquer coisa a ver com a Viagem de Sonho que fiz anos atrás, quando ma
taram a minha mulher. A viagem durou muitos dias, e o caminho foi difícil. Andei d
uas semanas sem comida. Lembro-me de ter dormido num pináculo de rocha. A rocha na
scia do chão e erguia-se tão alta que eu via os pássaros voarem abaixo de mim. Vi, par
a sul, uma enorme muralha de Gelo e, atrás dela, uma terra livre, uma terra cheia
de animais mas vazia de homens.
Mas temos o Inimigo ao sul salientou Pederneira Vermelha.
Agora. Nessa época não tínhamos.
Acha que devemos tentar chegar a essa terra?
Não tenho certeza. O Sonho não era claro e, no dia seguinte, encontrei a mulhe
r do Inimigo. Estávamos destinados a nos juntarmos, eu e ela. Eu podia... podia se
ntir a justeza disso. Era como que uma cura, se assim quiser. Os seus longos cab
elos ondulavam ao vento. A água batia-lhe nos pés. Num torpor de Sonho avancei para
ela e ela sorriu. Fizemos amor com paixão, ela e eu, à beira do mar, e eu coloquei n
ela a minha semente.
Mas essa parte foi verdadeira. As espessas sobrancelhas de Pederneira Verm
elha baixaram-se.
Sim... e não. Fogo de Gelo estremeceu e passou os dedos calejados pelo rosto
. A visão quebrou-se quando me levantei e olhei... olhei para os olhos da Vigilant
e. E a mulher... violei-a. Deixei-a alquebrada e chorando na areia. Ela, a quem
eu teria amado e querido, eu a destruí.
E acha que foi a feiticeira que assombra os teus sonhos que causou isso?
Não tenho certeza.
Pederneira Vermelha, pouco à vontade, mudou de posição e pegou um pau para reaviv
ar o brilho do fogo.
Que aconteceu depois?
Virei-me e vi os clãs todos atrás de mim, sendo perseguidos por toda a casta d
e inimigos.
Foi assim que terminou o Sonho?
Fogo de Gelo piscou os olhos e encolheu ligeiramente os ombros:
Não. Nesse dia, depois de ver o que acontecera na praia, fugi correndo. Sabe
como... tentando escapar do horror. Nessa noite tive pesadelos... um a seguir a
o outro. A mulher do Sonho levantava-se e estendia-me as mãos. Numa estava um pedaço
de carne. Na outra, um dardo.
Vida ou morte?
Foi a minha leitura. Meteu a cara entre as mãos. Olhei então para trás e o mar a
vançava para nos engolir a todos. Peguei a carne e a mulher sorriu e disse: Você e eu
somos um. Nós somos um. Pegou então na minha mão e transformou-se num pássaro enorme, o
Pássaro da Tempestade, e voou comigo para o sul, até à nova terra, atrás da muralha bran
ca.
Pederneira Vermelha ficou algum tempo chupando os dentes e pensando:
E é por tudo isso que tem nos forçado a vir para o sul, apesar da caça ser menor
?
Nunca, desde que parti nessa minha viagem, sentira o espírito mover-se dentr
o de mim com tanta força. Até agora. Persegue-me, não me deixa dormir. Sinto-me levado
, como se a feiticeira pretendesse que eu levasse para o sul todos os clãs.
Pederneira Vermelha olhou para a luz do fogo que dançava no teto.
Mas o resto dos clãs não irá. Dizem que lá não há qualquer honra para os guerreiros.
Inimigo foge na nossa frente como as gaivotas fogem de uma pedra que lhes é atira
da.
Eu sei. Virou-se para olhar o rosto preocupado do amigo. E se eu não consegu
ir salvar o nosso povo antes do mar nos afogar?
Nesse caso, o nosso clã irá para o sul sem eles. Em tudo isto há uma certeza: os
nossos Inimigos covardes são poucos e cada vez são menos Pelo menos o nosso clã poderá
afastá-los do caminho como se afastam as moscas.
Fogo de Gelo esfregou as mãos, sentindo os calos nas palmas.
Talvez. Mas eu sonhei com um jovem. Um jovem alto e zangado. Eu o vi reuni
ndo os dardos e trazendo-nos a morte. É um líder. Do tipo que sabe levantar guerreir
os. Ele...
Continue.
Poderei ter de matá-lo.
Pederneira Vermelha ficou olhando para ele, imóvel.
Já matou antes. Por que te incomoda mais uma morte?
Fogo de Gelo virou-se, os olhos cheios de angústia:
Não estou seguro de que seja capaz de fazê-lo.
Por que não?
Eu... eu penso que ele é meu filho.

CAPÍTULO 10
Sonhador de Lobo observou, com ansiedade, a terra enrugada. Uma terra que
ondulava em picos aguçados. O hálito cruel da Mulher Vento fazia-os vacilar sobre os
pés. O vazio não trazia qualquer alívio. Nas fendas escondiam-se ramos grossos de sal
gueiro e de vidoeiro anão que prendiam a neve, formando armadilhas onde já tombara m
ais de uma vez e de onde saíra à custa de um perigoso gasto de energia. As escorrega
dias encostas de Gelo tinham de ser negociadas, os traiçoeiros pontos de apoio dos
pés eram um perigo constante. Não podia se arriscar a uma queda, a quebrar ossos. S
ignificaria a sua morte.
E o Povo era uma responsabilidade sua.
Era um fardo que pesava sobre os seus ombros como o peso de uma presa de ma
mute. O sabor do sangue do lobo permanecia para sempre no fundo da sua língua, o f
ogo do Sonho fazia-o seguir em frente.
Fora real.
À medida que os dias passavam, lutava para se convencer de que o Lobo não lhe p
regara uma partida. Brincar assim com as vidas do Povo era algo que estava além da
sua compreensão. Corre na Luz parou, encostado aos cabos dos seus dardos, e olhou
para a pilha de rochas onde a neve enchia os espaços entre as pedras.
Outro Sonho de Caça? murmurou ele, sentindo perto a pressão dos Comedores de A
lmas da Longa Escuridão, afastados por umas escassas horas de luz. Estou cansado d
emais. Se eu pudesse descansar, se me pudesse deitar na neve e permitir que a Lo
nga Escuridão sugasse a minha vida no canto da Mulher Vento. A morte seria uma lib
ertação. Cerrou os maxilares e acusou-se silenciosamente. Covarde.
Respirou fundo e obrigou-se a subir até ao cume da colina, forçando o corpo que
protestava a ultrapassar as suas limitações. Os outros vinham atrás dele, de barrigas
vazias, a carne dos rostos pendente, a acusação nos olhos. Muitos eram os que já não ac
reditavam no buraco no gelo.
Lobo? implorou, rouco. Guia-me.
Olhou para trás e viu Aquele Que Grita e Lebre Saltitante pararem ao lado de
um monte de neve. Com uma omoplata de bisonte afiada começaram a cortar blocos de
neve dura para construir um abrigo.
Temos de acampar aqui? murmurou.
Viu então Ramada Partida e a visão encheu-o de piedade. Continuava a avançar, o r
osto macilento mas ainda com o brilho do Sonho nos olhos.
Cerrando os punhos afastou-se da escavação afastou-se do seu Povo.
A Mulher Vento soprava farrapos de neve que o cobriam como um véu. Os cristai
s redemoinhavam, num desafio mudo, no descampado. Para cima, sempre para cima: a
té onde tinham subido naquelas íngremes colinas? Fria e desolada, a terra que os rod
eava bem podia ter sido a espinha gelada de um monstro do gelo. A rocha negro-az
ulada, batida e gasta pelos ventos, estava ali, maciça, na luz que desaparecia.
Tantas bocas, Lobo. E tão pouca comida.
Fora de vista do campo, Corre na Luz deixou-se cair de joelhos e esmurrou c
om as luvas a neve eterna.
Terá sido falso o meu Sonho? gritou ele aos espíritos da Escuridão que começavam a
se reunir. De cabeça baixa podia senti-los à sua volta, os dedos já puxando pela sua
alma.
O luar iluminava as encostas e arrancava reflexos de prata da neve polida.
Círculos amarelos bruxuleavam aqui e ali, onde os fogos de musgo e salgueiro ilumi
navam os poços de abrigo cavados na neve. Através das nuvens podia ver o Povo das Es
trelas brilhando, vigilante.
Raposa Dançante, agachada ao lado do abrigo, escutava a barafunda que vinha d
e lá. Os choros sobrepunham-se às canções da morte. Rocha Cinzenta ficara desesperadamen
te fraca. O seu corpo, velho e frágil, era incapaz de suportar os tortuosos dias d
e marchas e subidas. Um profundo desgosto atormentava Raposa. Queria entrar lá den
tro e segurar a anciã nos seus braços, embalá-la para trás e para frente enquanto lhe di
zia palavras de amor e gratidão.
Mas era uma pária. Não podia entrar no abrigo a menos que alguém, misericordioso,
a convidasse a tal e receava que Rocha Cinzenta nem isso pudesse fazer.
Estremeceu por causa do frio intenso. A sua respiração formava uma nuvem no ar.
O vento fustigava-lhe a cara e trazia-lhe o longínquo uivar dos lobos.
Por que não parte? sussurrou, zangada, para si mesma. Mas sabia e odiava as
razões. Estavam já muito longe de Corre na Luz e receava que as tempestades de neve
tivessem apagado há muito as pistas que ele lhe deixara. Não podia tocar nas reserva
s de comida do clã. Se fugisse, teria de fazê-lo sem armas e sem comida.
Um vazio arfava no seu coração. Se conseguisse alcançar Corre na Luz, teria a sua
ajuda e conforto. Saber isso apenas servia para lhe tornar a sobrevivência mais i
nsuportável.
Lá dentro, o cântico terminou de repente.
Cruzando os dedos na parka ficou ali à espera, receando o pior. Atrás dela sent
iu pés que pisavam com suavidade a neve.
Era uma boa mulher disse Corvo Caçador com pesar. Tenho pena de Lebre Saltit
ante não estar aqui.
Os músculos das costas dela agitaram-se:
Gostaria de poder...
Não pode disse ele com compaixão. Têm medo que a tua alma amaldiçoada interfira n
subida da dela para o Bendito Povo das Estrelas.
Raposa olhou-o. Os seus olhos negros brilhavam ao luar.
Por que você saiu?
Corvo agachou-se junto dela, que pode sentir o calor do corpo dele na cara.
Tive outra visão lá embaixo.
De quê?
Nós veremos a morte do povo, você e eu. A menos que se faça alguma coisa.
E então? cuspiu ela com ódio.
Do abrigo começaram a soltar gritos que perfuravam o vento. Cheia de amargura
, murmurou:
Está morta.
Fechou os olhos e tentou não pensar nos mortos que deixara para trás. A velha G
arra seria a próxima. Já quase não se agüentava nas pernas oscilantes. Quando teriam fim
essas mortes?
Coloquei alguma comida na sua carga. Não é muito. Algumas tiras que guardei de
um búfalo morto pelo Inverno. Limpei o que os lobos deixaram antes que os corvos
o fizessem. Amanhã trarei os ossos. Têm manteiga de osso bastante para manter um par
de almas nos seus corpos por mais uns tempos.
Ignorou-o, de olhos fixos no abrigo, recordando bocadinhos de comida que Ro
cha Cinzenta partilhara com ela do pouco que o bando encontrara.
Uma bondade simples. Rocha Cinzenta fora uma das poucas a partilhar, a troc
ar palavras escondidas, a ter uma piscadela de olhos de apoio.
Vou sentir falta de Rocha Cinzenta murmurou Raposa, sentindo-se muito infe
liz. Ela nunca se esqueceu de que eu precisava de uma palavra amiga.
Corvo Caçador deixou-se ficar sentado, ouvindo. Uma coisa que ela apreciava,
embora sabendo que mais tarde lhe pagaria, quando ele entrasse nas suas roupas.
Dentro do abrigo alguém começara a soluçar descontroladamente. Levantou-se, meio entor
pecida. Num instante, também Corvo Caçador estava de pé.
Suponho que venha esta noite para me forçar mais uma vez, não é?
Corvo encolheu os ombros:
Não tem ninguém com quem falar. Não te faço doer. Agora, que Rocha Cinzenta desapa
receu, quem senão eu falará contigo com ternura? Além do mais, deixo-te o suficiente p
ara se agüentar. Come melhor na desgraça do que os favoritos de Chamador de Corvo em
boa posição social.
Eu o odeio, você sabe!
Afastou-se.
Não sou seu inimigo, Raposa Dançante.
Então, o que você é? O meu guarda? Por que não me deixou partir? Por que teve de m
e arrastar para isto?
Ele a seguiu devagar, esmagando a neve sob os pés de botas altas.
Porque te amo. Não queria que morresse na neve.
A raiva inundou-a:
Você não me ama! Cuspiu na neve para frisar a opinião. Não passo de um divertimen
o.
Sentiu a pele ficar eriçada ao reparar no olhar tresloucado dele, que sorria
docemente:
Mas assim você é só minha.
Raposa recuou um passo.
Sim, cuidou bem de fazer isso. Amarrou-me com a mesma firmeza com que se u
sa uma corda de tripa de mamute para amarrar um cão de urso valioso.
Ele colocou-lhe uma mão no ombro e ignorou o arrepio dela quando a obrigou a
virar-se para si. Num tom cortante como a obsidiana ele comentou:
Volto a dizer que te amo. Um dia você compreenderá.
Tire as mãos de cima de mim.
Mas ele apertou-lhe mais o ombro.
E eu preciso de você. Eu sou a esperança do Povo. Eu vi isso, entenda! Eu vi t
udo isso. Mas tenho de manter os Outros afastados ou então eles matarão todo o Povo.
As tuas ilusões serão a morte de todos nós.
Corvo suspirou fundo e deixou cair os ombros. Acrescentou, de cabeça baixa:
Pode me odiar o quanto desejar. Eu tenho de salvar o Povo. Só eu... e um est
ranho homem. Cara a cara ele me dará qualquer coisa. Qualquer coisa que mude o Pov
o! abriu os braços. Não sei o quê. Só sei que o meu filho...
Ela virou-se, de olhos muito abertos:
É para isso que me quer? Para um filho?
Não tenho cer...
O gesto dela apanhou-o desprevenido e a bofetada acertou-lhe. Levou os dedo
s à cara. No sutil clarão da noite assomou-lhe um sorriso aos lábios.
A visão está incompleta mas já vi algumas das coisas tornarem-se verdadeiras. Co
mo ter te encontrado na neve naquele dia. Aposto a minha vida, e as vidas da nos
sa gente, em como o gesto acontecerá também e eu encontrarei esse estranho homem. El
e é como... é como...
Já ouvi o bastante cortou ela. Você está louco!
Virou-se a tempo de ver Chamador de Corvo sair do abrigo, com os outros atrás
de si, cantando e transportando os restos mortais de Rocha Cinzenta para o cume
da encosta, cantando a alma dela ao Bendito Povo das Estrelas.
Corvo segurou-lhe o braço e o olhar dele pareceu perfurá-la.
Não se esqueça disse. Mesmo que tenha de sacrificar nós dois, eu salvarei o Povo
.
Atirou-lhe o próprio braço, fazendo-a desequilibrar-se, e foi cantar a alma de
Raposa Cinzenta.
Raposa Dançante meteu os cabelos debaixo do capuz e forçou os pulmões a respirare
m fundo. De dentes cerrados caminhou, vacilante, até às suas peles de dormir já gastas
. Encontrou várias tiras de carne dentro do seu saco. De boca aguada, e apesar da
culpa que sentia, atacou-as e ignorou até o sabor rançoso.
Nessa noite, Corvo Caçador não veio ter com ela.

CAPÍTULO 11
Vamos voltar para trás! declarou Lebre Saltitante, olhando de rosto em rosto
. Em torno deles, as paredes de neve da caverna de Gelo brilhavam, em tons alara
njados, à luz da fogueira.
Para onde? perguntou Aquele Que Grita.
Água Verde colocou o último pedaço retorcido de salgueiro, arrancado da neve, sob
re os carvões em brasa. Sentia o olhar do marido fixo nela, à espera das suas palavr
as.
Voltar? perguntou ela, com toda a calma. Até agora só atravessamos rochas e ma
is rochas. Talvez exista uma terra melhor mais adiante.
Talvez. Mas...
Pelo menos aqui encontramos folhas e, às vezes, até uma mão-cheia de bagas conge
ladas. Não tínhamos isso no Campo do Mamute. Mais à frente, poderemos encontrar caça.
Lobo Cantante rangeu os dentes e agitou hostilmente os braços.
Mas estamos fracos demais para caçar. Matar exige força.
Conseguiremos assegurou-lhe Aquele Que Grita.
Até os ratos estão enterrados debaixo da neve murmurou Lebre Saltitante. Os po
ucos ptármigas que vimos voavam muito...
Corvo Caçador avisou-nos interrompeu Lobo Cantante. Corre na Luz não passa de
um rapazinho.
E nós não lhe demos ouvidos.
Ramada Partida, que estivera tranquilamente sentada num canto, inclinou-se
de repente para a frente.
Bando de jovens idiotas! exclamou ela, chupando os restos do osso de lobo
que continuava a trazer na bolsa. Que se passa com vocês Acham que ele é um rapaz? O
lhem bem para vocês! Da manga de pele surgiu um braço ossudo que apontou para cada u
m deles. Olhos vazios responderam ao gesto. Mal os seus estômagos se apertam um bo
cadinho, correm logo a meter as cabeças na neve!
Mas, avó disse, incrédulo, Lebre Saltitante. Nós estamos morrendo de fome...
Bah! Não são merecedores da dádiva do Lobo! Vão! Saiam! Chupou ruidosamente o osso
e olhou-os por entre as madeixas de cabelo branco desgrenhadas pelo vento.
Lebre Saltitante fechou os olhos para evitar, mesmo agora, ser rude para co
m uma anciã.
Poderemos ser obrigados a isso, avó. Para sobrevivermos.
Acho que já esquecemos avisou Água Verde de que esta Longa Escuridão é diferente.
Pior do que qualquer outra de que haja memória Os Outros estão a Norte e a Oeste, bl
oqueando a retirada. Aqui estamos numa nova região. Pelo menos, os cumes estão livre
s de neve. Nas planícies do Norte estaríamos andando em sapatos de neve.
Mas podemos encontrar um acampamento do Povo frisou Lebre Saltitante.
E eles terão alguma coisa para partilhar? Água Verde levantou uma sobrancelha
cautelosa. Ou será que a nossa chegada os condenará a... assim como a nós?
Sobreviver murmurou Lobo Cantante. Estamos aqui sentados tentando imaginar
uma maneira de nos salvar e onde está o nosso grande Sonhador? Apontou para a abe
rtura da caverna de Gelo. Fugiu, porque não suporta encarar-nos cara a cara!
Instalou-se um silêncio incomodo, quebrado apenas pelos sons do estralejar do
fogo e de Ramada Partida chupando o seu osso.
Está tentando chamar os animais acabou por dizer Água Verde.
Ah! Ele está louco de fome. Só um homem com o Poder do Espírito é capaz de chamar
os animais. E que animal poderá existir aqui, nestas rochas?
Talvez alguns ratos e...
Eu hoje vi-o tropeçar e cair. Perdeu o seu Poder! Vai matar a todos!
Aquele Que Grita soltou ruidosamente o ar dos pulmões:
Não penso que...
Talvez os espíritos da Longa Escuridão já lhe sugaram a alma do corpo e a levara
m para a negridão, para assim ganharem forças para mitigarem as nossas.
Você... disse Ramada Partida, os olhos cansados brilhando à luz do lume. Todos
suspenderam a respiração ao ver o olhar hostil naquele rosto encarquilhado. O que v
ocê fez tu pelo Povo? Hein? Nada. É um reclamador, não um fazedor. Espera que os outro
s se arrisquem para depois lhes saltar em cima, condenando-os. É pior que os espírit
os da Longa Escuridão. Suga-nos as almas com as suas lamúrias invejosas!
A boca de Lobo Cantante abriu-se com palavras amargas na língua:
Sua velha doida...
Não me responda, rapaz. Olha que te arranco a pele com este osso! E juntou o
gesto à palavra batendo-lhe, com força, no pescoço. Ele recuou, procurando dar-lhe um
a bofetada.
Raio de velha louca! Louca! Tal como o maldito do Corre na Luz!
Ramada Partida avançou para ele, de osso em punho, os olhos abertos e a cabeça
inclinada:
Deixe que te diga uma coisa, rapaz. Você nunca provou quem é! Foi por isso que
sempre esteve agarrado ao Chamador de Corvo. Pelo menos, teve-o até ao dia em que
ele não cantou a sua filha na neve, hein?
Não sei a que está se...
Foi isso que te fez mudar. Ramada Partida bateu-lhe com o osso no joelho.
Foi isso que quebrou a tua fé em Chamador de Corvo e te fez seguir Sonhador de Lob
o. E antes disso? Que é que quebrou a tua fé em Assobio de Carneiro, hein? Talvez o
fato de ele não te colocar como líder de caça quando você achava que merecia?
Lobo Cantante baixou o olhar e ficou contemplando a superfície dura e polida
do gelo.
Você é todo emoção, rapaz. É melhor que medite nisso. Está sempre com lamúrias e nunc
ensa no que está fazendo e onde está fazendo. Se alguém matar o Povo, será decerto você e
os da sua laia.
As mandíbulas de Lobo Cantante rangeram tão alto que todos ouviram no silêncio qu
e aumentava. As cabeças baixavam-se, pouco à vontade, por toda a caverna.
E você quer ser um líder? Ramada Partida soltou uma risada de desprezo. Tem es
sas coisas metidas bem fundo, mas sempre foi covarde demais para fazer alguma c
oisa com elas.
Avó, ele tenta disse, baixinho, Água Verde. Estamos atravessando tempos difíceis
para todos. Lobo Cantante...
Não tenta com muita força. O rapaz tem de sair da casca e pôr-se à prova... correr
alguns riscos. Quando isso acontecer, vai deixar de insultar as pessoas que ten
tam com mais força que ele.
Água Verde sorriu tibiamente.
Quando olhamos em volta e vemos tantos lugares vazios, lugares onde deviam
estar rostos familiares, todos nós sentimos um peso no coração. É difícil querer mais pro
vas. Não culpe Lobo Cantante. Esta Longa Escuridão foi particularmente dura para ele
.
Ramada Partida lançou, pelo canto do olho, um olhar frio a Água Verde, antes de
se virar para Lobo Cantante:
Isso é verdade, rapaz? As coisas têm sido mais duras para você que para o resto
da nossa gente?
Num movimento súbito, Lobo Cantante gatinhou, passando pela anciã, e saiu pelo
buraco entrando na noite.
Lebre Saltitante murmurou para Aquele Que Grita:
Fome demais. Tira o juízo das pessoas.
Aquele Que grita baixou os olhos:
Nenhum de nós está no seu juízo perfeito.
Sobretudo Corre na Luz.
Ramada Partida atacou de repente com o seu osso e acertou-lhe no braço, fazen
do-o soltar uma exclamação.
Que sabem vocês de um Sonho? Eu o vi! exclamou Ramada Partida num gesto que
fez o seu gasto capuz tombar. Eu vi nos olhos dele!
Aquele Que Grita, olhando para o seu acovardado primo, colocou uma mão apazig
uadora no ombro de Ramada Partida.
Ele não estava falando sério, avó. Ele...
Talvez você tenha visto! defendeu-se Lebre Saltitante. O que não tira que pos
sa estar louco como Corvo Caçador disse que ele estava.
Ramada Partida olhou, carrancuda, para a mão no seu ombro.
Solte-me, louco de cabeça oca... ou será o seguinte avisou ela, acenando com o
osso afiado. Aquele Que Grita retirou a mão como se estivesse a queimar-se. Perco
rrendo o abrigo com o olhar, Ramada Partida acrescentou, num fôlego: Ainda não morre
mos, não é?
Não concordou baixinho Água Verde. O Sonho vive.
Sonho? repetiu Lobo Cantante do outro lado do buraco de saída. Ele Sonhou fo
i a nossa morte.
Não! gritou Ramada Partida. Os seus dedos ossudos agarraram a parka mais próxi
ma. Aquele Que Grita ficou tenso enquanto ela o sacudiu sem grande força. Não o vira
m? Não o viram nos olhos dele? O olhar dela desfocou-se e inclinou-se para trás, sol
tando a mão. Era real.
Eu acredito, avó disse ele.
Água Verde estendeu uma mão para acariciá-la:
Eu vi os olhos dele, avó. Ele Sonhou.
Lebre Saltitante mordeu o lábio e olhou para outro lado.
Água Verde mexeu-se e acordou, piscando os olhos. Podia sentir, através da roup
a, o frio brincando com a sua pele. Daí a pouco o Pai Sol estaria levantando-se. T
eve de se esforçar para se sentar e ficou com os membros tremendo.
Há dois dias que não se mexiam. As pessoas estavam ali, embrulhadas nas roupas,
os olhos encovados pela fome. Ninguém tinha forças para andar.
O nosso descanso final, murmurou ela em silêncio.
Olhou para as roupas de Corre na Luz: ainda não voltara. Gatinhou, com cuidad
o, por cima das pessoas adormecidas até chegar à abertura, Meteu a cabeça para olhar a
paisagem. Lá em cima, o Povo das Estrelas piscavam-nas, já se via a luz acinzentada
que vinha do sudoeste. A Meia-luz da Mulher Lua brilhava nos picos que os cerca
vam. Majestosas montanhas de brilho azul no ar cristalino com imponentes geleira
s deslizando nos seus flancos. A Mulher Vento interrompera, por um breve instant
e, o seu incessante rugir. Para Leste o vale abria-se, estendendo-se para as alt
uras rochosas. Apesar da fraca luz, Água Verde conseguia ver as pilhas de rochas g
laciares.
Virou-se um pouco e o viu.
Estava agachado e a cabeça tombava-lhe para trás num ângulo pouco natural.
Com o coração na garganta, Água Verde saiu e abanou-lhe um ombro. Ele nem se mexe
u. Abanou-o com mais força, os olhos marejados de lágrimas.
Acorda! Corre na Luz?
O medo invadiu-lhe o rosto quando notou a espessa camada de Gelo que lhe bo
rdejava o capuz de pêlo. Até mesmo a respiração normal devia ter derretido algum...
Não disse ela. Dentro de si abriu-se um abismo. Acocorou-se e, pegando uma mão
cheia de neve, atirou-lha à cara. Sonhador de Lobo? Não podemos ter chegado a isto!
Mas ele continuou imóvel e silencioso. Raivosamente, ela bateu-lhe e voltou a bat
er, gritando:
Não morra! Não nos deixe aqui morrendo de fome! Foi você que nos trouxe até aqui!
Ele continuou imóvel.
Não... não... - gemeu ela, escondendo o rosto nas mãos.
Cansado.
O murmúrio penetrou na sua raiva. Água Verde, de respiração suspensa, caiu de joelh
os ao lado dele para lhe tirar neve das maçãs do rosto
O quê?
Cansado.
Levante-se! bateu nele com os punhos cerrados. Levante-se! Já!
Num gesto frenético agarrou-o por um braço e colocou-o de pé. Vacilante sob o pes
o do corpo dele fê-lo andar, esperando que o sangue ainda pudesse gerar calor sufi
ciente para mantê-lo vivo.
Seu louco maldito! Ficou aqui fora só para não enfrentar os nossos olhares? Po
dias ter morrido e o que nos aconteceria então...
Comida murmurou ele. Encontrei comida. Fiquei cansado. Só precisava... desc
ansar.
Água Verde estacou e ficou olhando para ele, receando ter ouvido mal.
Comida?
Corre na Luz acenou levemente com a cabeça. Com um gesto do queixo apontou:
Ali, atrás das rochas. Era tão pesada. Eu não era capaz de arrastá-la.
Entre e se aqueça! ordenou Água Verde, conduzindo-o até à entrada do abrigo e ajud
ando-o a entrar.
Seguindo as marcas arrastadas que ele deixara na neve subiu, a custo, até ao
topo da colina. Abaixo do cume soprando limpo pela fúria da Mulher Vento estava um
monte de pêlo castanho sobre a rocha nua. Água Verde reconheceu o pêlo grosso e o cas
co: um boi almiscarado. Uma perna traseira quase completa. Não era nenhum festim p
ara tantas bocas mas talvez fosse o suficiente para tirá-los daquela rocha e levá-lo
s até à região onde a caça abundava.
Os lobos tinham andado ali: viam-se os rasgões das suas garras no couro, de o
nde tinham arrancado longos pedaços de pêlo. Podia não ser mais que carne putrefata...
mas em pleno Inverno, e com fome, ninguém ligaria para isso.
Meteu a mão na bolsa e tirou uma faca com cabo. Tremendo começou a usá-la como es
copo na carne congelada.

CAPÍTULO 12
Aquele Que Grita, Lobo Cantante e Lebre Saltitante, rejuvenescidos, tiveram
de juntar todas as suas forças para conseguir levantar o quarto traseiro até ao alt
o das rochas, de onde as mulheres já eram capazes de arrastá-lo para o acampamento.
Fiuuu soltou Lebre Saltitante, sentindo os pés escorregarem nas rochas cober
tas de Gelo, enquanto empurrava o pedaço de carne congelada. Como é que ele a trouxe
até aqui?
Os espíritos devem ter lhe dado forças disse Aquele Que Grita, por entre os de
ntes cerrados, puxando do topo.
Espíritos resmungou Lobo Cantante. Os homens são capazes de fazer coisas maluc
as quando estão desesperados.
Ele disse que estava seguindo pistas de lobo.
Que importa? Acha que estamos salvos? protestou Lobo Cantante. Este pedaço t
alvez nos encha a barriga por um dia. E depois?
Lebre Saltitante olhou, incomodado, cravando os dentes no lábio.
Sonhador De Lobo disse que havia mais na planície.
Com um derradeiro esforço conseguiram colocar a carne no topo da Colina e, of
egantes, encostaram-se aos rochedos. Aquele Que Grita olhou incomodado para Lebr
e Saltitante. De dia para dia, o homem estava ficando cada vez mais difícil e host
il, incitando as pessoas a querelar umas com as outras, levando-as a criticar Co
rre na Luz pelas costas. As suas maneiras tinham até piorado depois daquela noite
em que Ramada Partida o desafiara. Lobo Cantante agia como um homem à beira do col
apso.
O Sonhador deixara de se sentar nas fogueiras noturnas com temor do sarcasm
os sussurrados.
Vamos à procura do resto disse Aquele Que Grita, apontando a pista deixada p
elo Sonhador. Os compridos pêlos castanhos do boi almiscarado marcavam o caminho.
Espero que os animais não nos tenham tirado tudo.
Lobo Cantante resmungou:
Tomamos a decisão errada. Eu devia saber o suficiente para não seguir um garot
o doido!
Espere disse Aquele Que Grita, de uma forma um tanto atabalhoada, cruzando
fugazmente o olhar com o do primo. Vai ver aposto que lá embaixo, na planície, vamo
s encontrar...
Nada! É isso que vamos encontrar. Daqui a uma semana estaremos outra vez mor
rendo de fome.
Está com uma excelente disposição o sarcasmo de Lebre Saltitante, gélido como o ve
nto, cortou o discurso.
Não sou maluco. Eu sei o que...
Pare com isso! gritou Aquele Que Grita. Lobo deu-nos comida. Deixe dessa d
e fazer todos...
A risada condenatória de Lobo Cantante interrompeu-o. Aquele Que Grita inspir
ou fundo e estugou o passo, nada desejoso do problema que sabia estar logo abaix
o da raiva que sentia. Se Ramada Partida não tivesse espicaçado o primo!
Se fosse mesmo o Lobo que nos estivesse guiando berrou Lobo Cantante, faze
ndo a voz ondular no vento glacial, acha que ia nos trazer uma miserável matança de
Inverno? Huh? Se fosse ele teria chamado para nós uma manada inteira de mamutes.
Aquele Que Grita não se virou e continuou a atravessar uma área de neve revolta
no topo da colina. O seu coração batia, acelerado, com a raiva dentro de si. Se as
coisas não começassem a melhorar, acabaria por meter um murro na bocar de Lobo Canta
nte.
Acho que vou pegar minha mulher e voltar para trás. Por que não vêm comigo? perg
untou Lobo Cantante, numa súbita esperança, correndo para apanhar os outros. Sabemos
o que há atrás de nós. Podemos...
Uh-huh. Aquele Que Grita passou por cima de um afloramento de piçarra e cont
inuou a observar tudo à sua volta. Os Outros.
Eu não tenho medo...
Eu vou para a planície murmurou, em tom de desculpas, Lebre Saltitante. Morr
eu aqui um boi almiscarado. Talvez haja mais.
Estavam descendo a encosta gelada quando avistaram a carcaça. Os lobos endire
itaram-se, marcando posição e observando-os com olhos! amarelos e atentos.
Lobo Cantante correu para o meio deles, aos gritos.
Fora! Desapareçam!
Os animais espalharam-se, ganindo e rosnando o seu ressentimento.
Por que fez isso? gritou Aquele Que Grita. Se tivesse dado uma oportunidad
e poderíamos ter apanhado um ou dois. O Lobo tem uma carne péssima. Mas é carne.
Lebre Saltitante suspirou e observou os animais que, vigilantes, se mantinh
am num círculo fora do alcance dos dardos.
Um destes lobos poderia ter feito a diferença entre vida e morte para alguns
dos nossos mais velhos.
Lobo Cantante abriu a boca, com uma resposta acerada nos lábios. Mas, como se
atingido de repente pela realidade, afastou o olhar e deixou cair os ombros.
Aquele Que Grita olhou, de olhos semicerrados, os restos. O boi atolara-se
em neve profunda quando tentava apanhar uma zona de loriças escondidas. Os lobos t
inham tido tempo.
Já não tem tripas. Os lobos ficaram com a maior parte da gordura. Mas é a vida.
Lebre Saltitante umedeceu com a língua os lábios gretados.
O povo vai nos chamar de estúpidos se arrastarmos a carcaça até ao acampamento p
ara depois voltarmos a passar por aqui a caminho de um buraco no gelo. Olhou pa
ra os seus irmãos de clã. Nós vamos para lá, não vamos?
Aquele Que Grita encheu os pulmões de ar e depois deixou-o sair devagar.
Eu me recuso a subir todas as colinas que nos separam do Campo do Mamute.
Excelente! exclamou Lebre Saltitante, batendo os braços de alegria. Eu vou b
uscar o resto da nossa gente e trazê-la para cá. E partiu, correndo, seguindo o cami
nho por onde chegara.
Aquele Que Grita olhou para Lobo Cantante. O primo afastou o olhar, um olha
r onde se lia a culpa.
Um a um, o bando de Chamador de Corvo começou a desaparecer. Dois Assobios pe
rdeu-se durante a marcha. Pedra de Ardósia tropeçou, caiu e recusou-se a levantar. Não
tiveram outra alternativa senão deixá-lo ficar. Chamador de Corvo exortou-os, chico
teou-os com palavras e pancadas, mas o Povo fora levado tão além da sua capacidade d
e resistência que já não podia satisfazê-lo.
Raposa Dançante continuava avançando, sentindo-se à beira do fim, sabendo que, se
m os donativos extras de Corvo Caçador também ela já teria morrido de frio ou exaustão.
Aguentava-se, cheia de determinação, seguindo na cauda do grupo, tentando manter as
raquetes em movimento. Conseguindo algumas vezes, falhando outras.
Até o rosto de Corvo Caçador parecia vazio. Só o seu espírito indomável o mantinha em
exploração na frente do bando. As suas ofertas periódicas de coelhos, ptarmigas e res
tos das mortes de Inverno os mantinham vivos. Continuavam a avançar, apesar de mui
tos estarem à beira da morte.
Nos sonhos dela, Corre na Luz vigiava-a com os olhos marejados de lágrimas. H
avia um Sonho que se repetia. Corre na Luz estava de pé no alto de uma colina roch
osa. Lá embaixo, Raposa Dançante procurava subir pelas rochas irregulares para alcançá-l
o. Quanto mais dura a subida mais inclinada se tornava e mais alta parecia.
Chamava-o, estendia-lhe a mão, tentava tocar na rocha onde ele estava. Tentav
a e voltava a tentar, saltando e pulando infrutiferamente. Mas ele permanecia im
passível, sem dar pela sua presença, apesar de ela procurar, com todo o desespero, c
hamar-lhe a atenção.
Por fim, quando ela gritava a sua dor, ele virava-se, com o Sonho nos olhos
, e afastava-se lentamente num raio de luz, deixando-a no vazio da escuridão.
Devia ter ido com Corre na Luz murmurou Garra, em voz fraca, caminhando na
frente de Raposa Dançante. Devia ter ido. Sonho de Lobo. Ramada Partida viu. Ela
sabia reconhecer um Sonhador quando via um.
Um frio envolveu o coração de Raposa Dançante.
Sim sussurrou. Ela sabia.
Garra olhou para trás por um instante, esquecendo o estigma de uma mulher pro
scrita.
Bem no fundo, eu sabia que Chamador de Corvo já perdera o Poder. E, apesar d
isso, continuou a conduzir-nos.
Ele é um louco! disse Raposa Dançante. E, pior ainda, está matando o povo que co
nfiou nele... só para salvar as aparências.
Bem disse Garra, sem fôlego, o bafo formando uma nuvem branca na sua frente ,
ele também me matou. Estou cansada, minha jovem. Cansada e gelada. Sinto-o nas mi
nhas articulações. Quando paro fico cheia de arrepios. Sabe o que isso quer dizer? Já
não há fogo no meu corpo. Não há fogo, jovem.
Vai conseguir insistiu Raposa Dançante. Olhe, apóie-se em mim.
A anciã abanou a cabeça e parou.
Não disse ela num longo suspiro. Estou apenas cansada. Entende? Já passei para
o outro lado.
Raposa Dançante parou com o coração batendo com mais pressa.
Pegue na minha mão, eu dou uma ajuda. Se ficar para trás morre. Nunca consegui
rá chegar ao abrigo depois de escurecer.
Garra soltou uma risada seca.
Pegar na tua mão? E permitir que a tua alma manche a minha? Raposa Dançante re
tirou a mão enluvada que estendera à anciã e baixou os olhos.
Só quero que viva, nada mais.
Estou brincando, jovem. Não ligo para as maldições dele. O Poder dele já não existe.
Não pode fazer mal nem a mim nem a você.
Os olhares das duas ficaram alguns instantes presos, sondando as almas uma
da outra.
Estou arrependida de ter te abandonado! murmurou Garra numa voz magoada. F
iquei preocupada com o que as pessoas podiam pensar de mim. E olha o que está acon
tecendo. Levantou uma mão para apontar. Aqueles que vivem comigo abandonaram-me. E
quem dispõe de tempo para me encorajar? Uma mulher proscrita por aquele idiota do
Chamador de Corvo.
Venha. Raposa Dançante sorriu e colocou um braço em torno dos ombros ossudos d
a anciã. Vamos. Esta noite Corvo Caçador vai me trazer qualquer coisa. Partilharei c
onsigo. Mas continue a tentar, está bem? Faça-o por mim.
Chamador de Corvo tentará enterrar nós duas. Sabe disso, não sabe? E, como se lh
e ocorresse o pensamento, acrescentou: Se ele viver até lá.
Se... murmurou Raposa, ajudando a anciã e sentindo o frio invadir-lhe as própr
ias pernas. Sabia como estava perto do colapso.
Com certeza resmungou Garra. O ódio que todos temos por ele acabará por matá-lo.
Raposa Dançante, em silêncio, tinha esperança de que a anciã estivesse certa.
Os sapatos de neve foram retirados dos sacos e atados, com nós firmes, às botas
altas. O Povo, vacilante, saiu para o ar livre. Olhos atentos perscrutaram a ne
ve procurando sinais deixados por caribu, boi almiscarado ou um raro veado. Uma
raposa trotou suficientemente perto para identificá-los e se afastar apressadament
e. Quando a Longa Escuridão começou a crescer, vinda do norte, cavaram um abrigo na
neve.
Corre na Luz mastigava uma tira fina de carne crua e congelada. O sabor que
nte do boi invadia-lhe a língua e fazia a saliva correr na boca. Tão pouco. Uma refe
ição. O bastante para mantê-los vivos. Onde estava o mamute? Deviam andar por ali algu
ns dos animais vasculhando a neve com as suas longas presas. Onde estava o carib
u?
Mas o Sonho fora tão vívido.
Permitiu, com relutância, que o seu olhar percorresse o abrigo. As crianças já es
tavam deitadas nas peles, em um dos cantos, com as mães junto delas, bem encostada
s. Os homens estavam encostados, indiferentes, às paredes irregulares de Gelo. Nin
guém o olhou nos olhos. Estavam falando como se ele não estivesse ali. Todos menos R
amada Partida, que estava ajudando-o a encontrar um lugar para estender as suas
peles.
Avó, será que sou um pária? perguntou, baixinho.
Ela fungou no escuro e a sua mão enluvada tocou-lhe .de leve num joelho.
O Sonho de Lobo, rapaz. Guia-nos.
Será que sim?
Claro. Lobo só está vendo se somos merecedores.
Corre na Luz deixou cair a cabeça e os seus longos cabelos negros caíram-lhe so
bre o peito. Perguntou, enquanto tentava desatar os laços das botas:
E se foi apenas a fome a pregar-me uma partida?
Seja fome, seja uma pancada na cabeça, não interessa aquilo que nos traz o Son
ho... desde que o traga.
Ele olhou à sua volta na luz mortiça o abrigo.
Eles nem olham para mim.
Os dedos calejados da anciã apertaram-lhe o joelho.
E então? Precisa, por acaso, da aprovação deles para acreditar no que o Lobo te
disse?
Não tenho cert...
Se pensa assim, não tem nada que ficar aqui. Vá lá para fora, para a escuridão, e
torne a chamar Lobo!
Após estas palavras começou a murmurar incoerentemente, agitando os braços com ir
ritação, enquanto se afastava nas pernas vacilantes mas com um brilho de fé teimosa no
s seus velhos olhos.
Velha doida. Que sabia ela, afinal? Mais de cem vezes tentara chamar o Lob
o mas nunca tivera resposta. E a memória do Poder que o ajudara quando fizera fren
te a Chamador de Corvo era cada vez mais tênue, algo que pairava no fundo da sua m
ente como uma recordação perdida.
Sonho de Lobo sussurrou a velha antes de cair num sono de exaustão. Sonho de
Lobo.
Corre na Luz enrolou-se numa bola fetal e puxou as roupas para tapar a cabeça
Na manhã seguinte, meteu o saco às costas e avançou para onde Lebre Saltitante e
Lobo Cantante estavam numa animada conversa. Assim que se aproximou a conversa d
eles morreu e lançaram sobre ele olhares de ira.
Eu... procurou palavras, com um sorriso implorante. Está tudo pronto?
Claro retorquiu Lobo Cantante num tom duro.
Acenou com a cabeça e evitou os olhares dos outros enquanto ia se reunir a Ra
mada Partida na cauda da fila. Lebre Saltitante tomou o primeiro lugar e começou a
avançar, balançando os sapatos de neve. Nesse dia, e no seguinte, para sempre, limi
tou o seu mundo a colocar um pé à frente do outro, chamando Lobo em cada respiração. Na
sua memória brilhavam, numa imensa luxúria, os prados verdes e as peles luzidias dos
animais.

CAPÍTULO 13
No horizonte rolavam nuvens negras e o vento gelado trazia o odor de uma t
empestade. A luz do poente traçava faixas de ouro enferrujado no velho rosto de Ga
rra. A idosa tremia nos braços de Raposa Dançante, todo o seu corpo percorrido por e
spasmos.
Não morra implorou Raposa Dançante. Viva, avó. Viva. Ajeitou a gasta pele de car
ibu em volta das duas, mas uma pele não bastava para mantê-las aquecidas apesar da c
amada isoladora de neve. Tinham vagueado das alturas para as planícies, sem encont
rarem locais onde a neve, soprada, tivesse deixado à vista a superfície. Não se via bo
sta, nem caribu, nem musgos, nem vidoeiro ou salgueiro.
Montes de neve marcavam os lugares em que o Povo estava junto. Era o fim. T
odos sabiam.
Você é uma boa menina, Raposa sussurrou Garra. As minhas pernas estão quentes. O
s pés estão como se tivessem em cima de brasas. Sabe como é, confortáveis.
Raposa Dançante fechou os olhos:
Sinto-me contente.
Ficar congelada não é a pior maneira de morrer. Garra suspirou. A sério que não é
ma pessoa apenas adormece.
Avó, não vai...
Vou, sim. Sinto dentro de mim um frio profundo. Um frio de morte. É estranho
como um frio mortal nos faz doer toda por dentro... e depois te dá calor.
Chiuu, não desperdice forças.
Vou dormir quentinha. Quentinha. Nos seus lábios cheios de cieiro apareceu u
m leve sorriso.
Raposa Dançante apertou Garra com força contra o peito. Os ossos por baixo da c
arne emaciada da anciã pareciam tão estaladiços como ramos secos.
Pelo menos murmurou Garra, seguindo, com os dedos enluvados, os desenhos q
ue a luz traçava nas suas roupas, não vou morrer só
Ao longe, viu Chamador de Corvo tentar, debilmente, colocar-se de pé. A neve
tombava das suas roupas. Ficou um instante ereto, cambaleou e tombou de lado fic
ando imóvel.
Raposa sorriu.
Uma pista disse, sem emoção, Aquele Que Grita. Baixou-se e examinou a neve rev
olta, vendo a direção em que fora arrastada. Deslocou-se um par de passos e deu um p
ontapé numa bosta de mamute, uma bosta de Inverno, cheia de ramos.
Corre na Luz olhou para os rostos ansiosos que o rodeavam. Uma das crianças f
ora encontrada congelada dentro das suas roupas. Lobo Cantante ajudava uma garot
inha que tropeçava descontroladamente.
Mamute? Como é que seres humanos tão fracos podiam ter esperanças de matar um mam
ute? Sobretudo um mamute adulto? Mas os ramos na bosta provavam que, em algum lu
gar, havia vegetação enterrada na neve. E onde havia o bastante para alimentar um ma
mute, não seria possível apanhar uma lebre numa armadilha? Ou caribu? Nem sequer est
a esperança penetrava nos olhos mortiços do Povo.
Não podemos continuar disse Raio de Sol Sorridente. Eu não posso.
Água Verde aproximou-se para observar com atenção os olhos de Raio de Sol Sorride
nte e estendeu uma mão enluvada para sentir as bochechas de Raio de Sol.
Temos de parar por um pedaço. Se continuarmos, ela vai cair de borco.
E eu também disse o jovem Musgo, com as pernas tremendo, sem sair de onde es
tava.
Aquele Que Grita hesitou. Observou a paisagem cinzenta e as nuvens baixas,
sentiu a fúria mordente da Mulher Vento. O vento levantava no ar flocos de neve.
Paremos. A escuridão está descendo. Amanhã todos os que puderem andar seguirão as
pistas do mamute.
Corre na Luz observava, sentindo-se vazio com a dúvida que o roia por dentro.
Encurvou-se para cortar a neve compactada e tirar os blocos leves do monte. Qua
nto mais não fosse, o seu esforço talvez servisse para manter vivos alguns do Povo p
ara morrerem mais tarde de fome. A sua fé no Sonho estava agora tão fina como um pêlo
de caribu. Fora mesmo real? Já nem sequer o sabia.
Água Verde olhou-o furtivamente, por um instante, e caminhou devagar até lhe co
locar uma mão no ombro.
Não sei o que está pensando, mas não deixe que as palavras de Lobo Cantante te a
tinjam.
Corre na Luz estremeceu e piscou os olhos, sentindo no peito a enorme opres
são da dúvida:
Talvez ele tenha razão. Eu... eu sou o responsável. Fui eu que os trouxe para
cá.
Você fez o melhor que pode, Sonhador de Lobo. Há honra nisso. Ninguém é obrigado a
dar mais...
O meu melhor? sussurrou ele sombriamente, cavando a neve e olhando para a
paisagem esculpida pelo vento. Isso chega? Posso ler os pensamentos deles nos se
us olhos. Vejo o que eles...
Eles estão apenas cansados contrapôs ela. Não seja tão duro no teu julgamento.
Ele olhou em volta, com um ar de dúvida, e inspecionou o céu vermelho de sangue
atrás deles. Os montes de neve cercavam-nos como paredes.
Lobo Cantante chamou-me de falso...
Eu sei. Mas ele está confuso. Está enfrentando algo que não compreende. É a primei
ra vez, desde que chupou uma teta, que se sente incapaz de sustentar a família.
Corre na Luz baixou os olhos perante a compreensão revelada no pequeno sorris
o dela.
Nenhum de nós está conseguindo sustentar aqueles que lhe são queridos.
É uma realidade terrível para um homem encarar.
Um homem?
Água Verde confirmou com a cabeça:
Sempre tive pena dos homens. Carregam sobre os ombros as responsabilidades
por tantas coisas que não são culpa deles. Como acontece a Lobo Cantante, sempre qu
e olha para Raio de Sol Sorridente e sente pesar dentro dele a morte do bebê. Tem
medo que Raio de Sol Sorridente o troque por outro homem... um mais capaz de sus
tentá-la.
Isso é idiotice. Sonhador de Lobo mordeu o lábio. Ela o ama.
Mas Lobo Cantante não vê isso. Os homens são assim. Piscou-lhe o olho. Deviam fi
car contentes por nos terem por perto para mantê-los longe de problemas. As mulher
es permanecem sãs em tempos como estes. Temos de fazer isso.
Mas ele esmagou uma mão-cheia de neve:
Continuo sendo o responsável.
Ela deu-lhe uma pancadinha no ombro:
Mas descansa. Eu acredito em você. Como acreditam Raio de Sol Sorridente, Oc
ra e Ramada Partida. Todas acreditamos em você. Sabemos o que fez por nós... e estam
os gratas por tudo.
Ele quedou-se a olhar o sorriso caloroso dela até que, com um gesto de assent
imento, caminhou devagar para o lugar onde colocavam os blocos das escavações.
Depois de terem cortado três cavidades na encosta do monte, Corre na Luz afas
tou-se discretamente e foi sentir a pista. Da última vez tinham sido as pistas dos
lobos que o tinham conduzido ao boi almiscarado Talvez, desta vez, aparecesse o
Lobo. Ou talvez encontrasse outra morte de Inverno por Água Verde e por todos os
outros.
Virou-se para a escuridão crescente e começou a avançar, sentindo a superfície irre
gular da pista.
O latir do Preto fez Garça acordar completamente.
Sentou-se e coçou os olhos com punhos meio dormentes.
Tem qualquer coisa de diferente nesse seu latido comentou ela
Os carvões em brasa brilhavam no poço de fogo feito de pedras empilhadas. Pegan
do os dardos, Garça levantou-se e começou a vestir a parka. De novo lhe chegou o lat
ido, meio abafado pelo uivar do vento. Calçou as botas, apertando bem os laços, e se
gurou os cabelos com uma corda antes de colocar o capuz. Por fim, pegou os seus
sapatos de neve
Antes de sair colocou mais alguns ramos no fogo e só depois atravessou a cort
ina. A neve redemoinhava na escuridão uma cascata em movimento quando ela virou a
cabeça, meio hesitante sobre se deveria tirar o capuz para ouvir melhor. Não, não era
sensato molhar assim a cabeça. A cabeça desprotegida perdia calor demais.
Preto voltou a ladrar. Fixou a direção e hesitou. Mesmo com o conhecimento de q
ue ela tinha da área só um louco é que andava no meio de uma tempestade batida pelo ve
nto como aquela. No entanto, sentiu qualquer coisa no ladrar do Preto, qualquer
coisa de errado, que a fez avançar.
Nunca te ouvi ladrar assim murmurou, preocupada, os pés afundando-se na neve
recente à medida que se afastava de casa.
Assobiou e ouviu, em resposta, um débil uivar. Baixou-se para prender aos pés o
s sapatos de neve. Com um passo rápido, e um dardo metido no atlatl, começou a subir
a encosta, lutando contra o vento. Os lábios estavam tão gelados que lhe era difícil
assobiar. A neve acumulava-se na frente da sua parka de caribu, obrigando-a a av
ançar de cabeça baixa para que a tempestade a não cegasse de todo.
Ao longe, ouvia-se o ladrar excitado do Preto.
Apesar de estar descansada, as suas velhas pernas queixavam-se e doíam ao sub
ir a íngreme encosta. Assobiou e voltou a assobiar vezes sem conta para seguir o g
rito de Preto. Durante o que lhe pareceu uma eternidade, de noite e de Mulher Ve
nto, a chamada de Preto foi-se tornando mais forte.
O cão surgiu da escuridão, de um salto, ganindo e, como sempre, a cadela Branca
seguiu-o, insegura. Preto mostrou-lhe o caminho. Ela seguiu atrás dele.
Quase o perdeu. Estava meio enterrado, o rosto metido entre as mãos para o pr
oteger da força do vento. As patas de Preto tinham calcado a neve em volta dele. O
cão gania, de cauda erguida abanando.
Sim, senhor disse ela. Bom menino. Tal como eu o treinei, não é?
Baixou-se e observou, na escuridão, a roupa dele.
Um dos do Povo. Aqui? piscou os olhos, sentindo no coração uma estranha sensação d
e familiaridade.
Depois de estar parada durante o que lhe pareceu uma eternidade, Garça acabou
por lhe afastar um dos braços e contemplar o rosto emagrecido dele.
Tarde demais soltou um suspiro. Acho que congelou.

CAPÍTULO 14
Garça deu-lhe um pontapé nas costelas, com força, e obteve um gemido.
Vamos gritou. Levante-se.
Levantou-o à força, escorregando na irregularidade da neve por debaixo. Pista d
e mamute. Devia ser do velho macho dirigindo-se para as nascentes quentes. O rap
az estava seguindo a pista.
Preto chamou ela, enquanto suportava o peso do homem. Para casa, Preto.
Obediente, o cão partiu correndo, um pedaço de carvão na noite varrida pelo vento
.
Caminharam durante uma eternidade. A respiração ardia-lhe dentro do peito. O ho
mem, apesar de procurar manter-se ereto, não conseguia andar. Podia sentir-lhe os
ossos apesar de todas as camadas de roupa que vestia. Esfomeado. Progrediram, um
pé à frente do outro, com Preto correndo para a frente e para trás, indicando o camin
ho, o focinho cheirando a neve que tombara.
Uma hora depois, à beira do colapso, ao chegarem ao cume, o estranho caiu de
joelhos e quase a arrastou também. Soltando bafos condensados, Garça pegou nele pelo
capuz e puxou-se pelo caminho abaixo. Ele tremia, cheio de violentos espasmos.
Vai morrer depois de eu ter tido todo este trabalho? resmungou ela. Tirand
o as luvas começou, com dedos enregelados, a abrir a parka dele. Os cães, sentindo a
inquietação dela, rondavam ansiosamente os dois.
O couro rígido cedeu com dificuldade. Garça desviou a cara ao sentir o cheiro d
ele. Doença e suor acumulado. Com os dentes batendo arrancou-lhe o resto da roupa
e depois despiu-se. Arrastou-o por cima das rochas, indiferente à frágil pele dele,
até o meter dentro das suas nascentes quentes.
Na escuridão, o vapor enrolava-se no vento e envolvia-os num manto de calor úmi
do. Segurou-o, sentindo a estranheza de carne humana encostada à sua. Manteve-lhe
a cabeça fora de água e escutou o coração e a respiração dele. Ele mexeu-se.
Você está salvo! assegurou-lhe ela. Diga-me o que estava fazendo por aqui?
O rapaz murmurou, a voz rouca, as palavras meio formuladas. Mesmo na escuri
dão conseguiu ler-lhe os olhos confusos. Conhecia aquele rapaz. Dentro dela algo f
icou tenso.
Foi há tanto tempo... murmurou. Mas, finalmente, você chegou.
Na noite seguinte, Garça atravessou a cortina da porta deixando o rapaz, de o
lhos muito abertos, vendo as suas costas. Estivera todo o dia calado, absorvido
nos seus pensamentos. Ainda não o forçara a falar, mas em breve teria de fazer isso.
Avançava sobre as pedras úmidas e escorregadias à beira da poça mas, de repente, pa
rou. O velho mamute estava ali aspirando a água com a tromba e molhando com ela as
costas.
Você voltou? Sabia que me trouxe um homem? Seguiu a sua pista.
Uma expiração explosiva e um grunhido foram as suas respostas enquanto o mamute
cheirava o ar. Vinha sempre antes de uma tempestade. Regular como a chamada de
uma tarambola, o enorme animal vinha até às nascentes quentes para beber a água minera
l e se lavar na poça quente. Ela aceitava o fato, ciente de como as articulações doíam a
ntes da tempestade. As suas, naquele momento rígidas de dor, reagiam da mesma mane
ira.
Esperou, falando suavemente com os dois cães que vigiavam de orelhas espetada
s. Estendeu a mão para os manter quietos e silenciosos.
Embora tivessem uma espécie de acordo de trégua ela e o velho macho procuravam
não invadir o território um do outro. Esperou, sentada numa pedra, vendo pelo canto
do olho o mamute que estava agora de barriga para o ar dentro da água. O animal ro
lou o tronco e fungou como se o cheiro das nascentes minerais ofendessem o seu s
ensível nariz.
O vento não a tocava entre as rochas, embora os flocos de neve descessem do céu
para se derreterem sobre as pedras quentes. Da névoa, como que por magia, aparece
u caribu. Um jovem de uma haste agitava a cabeça como se a comichão incomodasse um dos
lados da cabeça. O caribu, nervoso, mas sentindo a serenidade de Garça, bebeu.
Preto mudou de posição, inquieto. Fez sinal ao cão para se manter quieto. Branca
emitiu um ganir baixo olhando, com ar especulativo, para o caribu.
O velho mamute grunhiu, erguendo a tromba, e dirigiu-se para a margem. Um a
nimal poderoso: as suas enormes pernas levantavam ondas de cristas prateadas que
batiam na praia rochosa e a névoa quase que obscurecia o seu corpo. No meio de água
que saltava, o patriarca da manada colocava graciosamente as suas pernas, que m
ais pareciam troncos de árvores, fazendo as pedras ranger debaixo daquele peso. Ri
beirinhos de água escorriam do seu grosso pêlo castanho-avermelhado.
É comentou Garça. O melhor que tem a fazer é voltar para as suas fêmeas. Quantas
em agora? Três? E duas crias para cuidar, não é? É melhor ter cuidado, velhote. A Longa
Luz está crescendo. Virão outros mais novos que vão tentar afastá-lo e manter as damas p
ara eles, não é?
Perante as palavras dela o animal virou-se, encarando-a, e grunhiu.
Ora, vá embora. Com um gesto, mandou-o afastar-se. Que é para você uma mulher ve
lha?
O animal levantou a tromba, emitindo um ruído com a boca, e mergulhou na escu
ridão da tempestade. Uma montanha de pêlo e carne. O seu corpo desapareceu na escuri
dão e misturou-se com a névoa.
Preto mexeu-se, nervoso, o focinho atento ao grande animal que desaparecia
de vista.
Os caribus olharam para ela, receosos. Garça aguardou que eles bebessem, most
rassem, com um fungar, o seu desprezo pelo sabor da água. Afastaram-se, inquietos,
lambendo os focinhos negros. Antes mesmo de Garça estar de pé, eles já tinham desapar
ecido na névoa.
Escolheu com cuidado o caminho e entrou na água até esta lhe cobrir as ancas. M
ergulhou então, com graciosidade, deixando que o calor da água tocasse e penetrasse
na sua pele. Banhada pelo calor radiante atravessou a poça a nado até sair na outra
margem, cuspindo a água sulfurosa que lhe entrara na boca.
Ah, como o calor ajudava. Espremeu a água do cabelo com dedos calejados e sus
pirou, contemplando as águas. A brisa que tocava as águas formava cristais de Gelo n
o seu cabelo.
Preto vigiava-a ansiosamente e andava de cá para lá nas rochas.
Garça deixou-se ficar flutuando enquanto a escuridão caía, sentindo a vida penetr
ar nas suas velhas articulações. Aquilo era uma verdadeira bênção. A sua poça era um tesouro
. Mais acima, entre as rochas, escondido pela névoa, o geiser soprava e lançava água q
uente que tombava do céu envolta em vapor. A fonte soava sobre as rochas com um ri
tmo melodioso.
Garça, refrescada, saiu da água. A sua respiração formava uma nuvem de vapor enquan
to, tremendo, sacudia a água das pernas e dos braços. Reuniu a roupa e, numa distância
que não era maior que o alcance de um dardo, entrou na sua gruta com os pés dorment
es da neve fria. Preto seguiu-a, farejando o vento.
Atravessou as cortinas de pele de caribu da porta e lançou para as brasas out
ro ramo de vidoeiro. Deixou-se ficar secando ao calor do lume antes de se vestir
. O rapaz, do outro lado do fogo, olhava hesitante para ela. Era um moço de feições bo
nitas, um rosto oval perfeito com uns grandes olhos e lábios cheios. Assim como al
to e de ombros largos.
Preto andava de um lado para o outro junto da entrada e olhava para ela.
Está com fome murmurou Garça.
A cauda de Preto agitou-se e estendeu as patas da frente, brincalhão.
Vai! Veja o que consegue apanhar. Fez um gesto e logo Preto e Branca meter
am o focinho por debaixo das cortinas e desapareceram na noite que se aproximava
.
Garça espalhou o cabelo molhado de modo a apanhar o calor seco do fogo.
Você tem o ar de quem vai viver comentou.
O rapaz abanou lentamente a cabeça.
Eu viverei, mas estou preocupado com a minha gente. Não sei quantos deles vi
verão.
Amanhã, quando houver luz, iremos encontrá-los suspirou. Lá se vai a minha priva
cidade.
Ele nada disse e continuou a comer, devagar, o seu bolo de carne seca, A mi
stura de bagas e gordura daria nutrição à seu corpo de pele e osso.
Ela assentiu, incapaz de desviar os olhos dele.
Você cresceu e tornou-se mais bonito do que eu imaginava.
Ele a olhou, as sobrancelhas levantadas:
O quê?
Não interessa. Mais tarde eu explico. Primeiro que tudo, diga-me por que está
aqui? Enfiou a ponta de outro ramo no braseiro crepitante. Pensei que o pai do v
elho Chamador de Corvo avisara todos acerca deste lugar.
E avisou. Afastou o olhar onde se liam a dor e a culpa. Mas eu trouxe o po
vo para cá.
Uma escolha acertada. Ela soprou os cabelos grisalhos. Não estava habituada
a usar a voz para falar com seres humanos. O tom da sua voz, outrora um contralt
o suave e doce, tornara-se mais grave com os longos anos.
Ele deixou cair a cabeça entre as mãos. Ao ver aquele ar vencido, Garça sentiu o
coração rendido àquele sofrimento. Os olhos dele traíam um terrível fardo que arrastava de
ntro dele.
Não quer me contar como foi?
Ele, pouco à-vontade, encolheu os ombros:
Eu... eu Sonhei. Estávamos cheios de fome. E a fome faz coisas estranhas com
a mente de uma pessoa.
É claro que faz coisas estranhas, mas isso nada tem a ver com o Sonhar.
Como é que sabe? perguntou ele com uma ponta de medo e de esperança na voz.
Eu sei.
O rosto dele ficou ruborizado ao mesmo tempo que passava uma mão sobre os cab
elos compridos.
O Lobo... chamou por mim... quero dizer...
O coração de Garça bateu mais depressa. Estendeu uma mão para lhe levantar o queixo
.
Olhe-me nos olhos, rapaz. Conte-me o que te contou Lobo.
Ele engoliu em seco e o queixo mexeu-se dentro da pele que os dedos firmes
dela seguravam.
Estávamos morrendo de fome nos abrigos. Ouvi as garras de Lobo no cadáver da m
inha mãe. Eu... eu só pensei em comida...
Uma vez iniciada a história fluiu, hesitante, é certo, mas toda a história. Ela fê-
lo parar quando ele começou a contar como tentara chamar os animais para encontrá-lo
s e assim arranjar comida.
E que aconteceu quando tentou chamar os animais? Que foi?
Ele abanou a cabeça e estendeu as mãos para o fogo.
Não consegui senti-los, não fui capaz de... Eu não sou um Sonhador. Veja o que f
iz. Trouxe a minha gente para o fim do mundo...
Você tinha a mente obstruída. Estava pensando em outras coisas? Estava desespe
rado?
Ele acenou que sim, acovardado. Garça animou-o:
Mas você me disse que enfrentou Chamador de Corvo, que a força de Lobo estava
em você.
Ele lançou-lhe um olhar firme, um olhar onde havia um brilho de desafio:
E foi! Eu senti! Eu o tinha... nessa época.
Claro disse ela, pensativa. Posso ver que estava. Mas por que não está agora?
Ninguém te ensinou...
Eu não sei porquê! gritou ele, frustrado.
Quem é que agora Sonha no Povo?
Chamador de Corvo.
Ela levantou uma sobrancelha. Que teria acontecido durante todos aqueles an
os em que estava afastada deles?
Sempre senti algo de errado nele. Ele nunca Sonhou direito... era como se
fossem apenas meios Sonhos. Alterava as visões. Nunca se deixava ficar livre. É prec
iso liberdade para Sonhar... solidão.
Ramada Partida disse...
Ramada Partida? Garça deixou soltou uma exclamação. Essa bruxa traidora ainda es
tá viva?
O rapaz estremeceu.
Estava, da última vez que a vi.
Garça riu e deu uma pancada na coxa até que recordações desagradáveis lhe assomaram a
o espírito e lhe endureceram o coração.
Acho que vou lhe amaldiçoar as articulações.
Você a conhece?
Garça mirou-o pelo canto do olho.
Conheço.
Acho que não há ninguém no mundo mais velho que ela. Anda por aqui desde...
Bem, não alimente grandes esperanças. Pode não andar por aqui muito mais tempo q
uando eu lhe meter as mãos em cima.
Ele ficou preocupado.
Eu penso que ela é a única amiga que me resta. Acredita no Sonhar e fala muito
do assunto.
Ela? Costumava me chamar de doida quando eu tinha Sonhos. Até dizia que eu t
inha maus espíritos nas tripas.
Corre na Luz, incrédulo, suspendeu a respiração:
Você Sonha?
Eu Sonho.
É por isso que tem todo esse ódio de Ramada Partida? Por coisas que ela disse
sobre os seus Sonhos?
Garça fez uma pausa, sentindo as memórias dentro de si.
Não... não foi por isso. Outrora, há muito tempo, houve um homem. Um grande caçado
r. Era conhecido por caçar o Avô Urso Pardo. Desafiava os ursos e fazia-os correr at
rás dele. Corria até os levar a uma armadilha, fazia um círculo e espetava-lhes um dar
do nas espáduas. Matou um monte de ursos desta maneira. Eu amava esse homem. Teria
ficado ao lado dele. Até Ramada Partida, e como ela era bonita!, enrolar as perna
s nele e dar-lhe volta à cabeça. Além do mais, os Sonhos...
Uma súbita luz de entendimento perpassou nos olhos dele, recordações de histórias q
ue ouvira. Respirou fundo:
Você é... é a Garça?
Ela estudou-o por entre os olhos semicerrados, observando-o como a grande águ
ia de cabeça branca observava um peixe. Só depois disse, com todo o cuidado:
Ela ainda fala mal de mim?
As pessoas dizem que a senhora não passa de uma lenda.
Exceto Ramada Partida, disso tenho certeza.
Ele acenou que sim ao mesmo tempo que gatinhava como um caranguejo para um
canto mais afastado do abrigo. Garça apreciou o medo crescente, a tensão que se lia
nas linhas da boca dele. Que estaria pensando aquele rapazinho louco? Que ela o
enfeitiçaria?
Indo por aí não irá longe avisou ela numa voz suave. A outra saída é ali por cima
pontou o buraco, revestido de fuligem, por cima das suas cabeças. Já me servi dela u
ma ou duas vezes quando o Avô Urso Pardo não queria desistir das suas intenções nem com
fogo nem com dardos.
Ele parou e molhou nervosamente os lábios.
Chamador de Corvo disse...
E você lhe deu ouvidos? Não é muito esperto, não é? Bem, só para tranqüilizá-lo, semp
go que não como criancinhas.
Corre na Luz não pareceu ficar muito tranqüilo.
Ramada Partida diz que você costumava falar com os animais, que os chamava a
té si.
Claro, é uma coisa que todos os Sonhadores fazem.
O rapaz engoliu convulsivamente e a culpa voltou ao seu rosto emagrecido.
Eu não consigo.
Bem, você ainda é muito novo.
Outros dizem que você falava com os espíritos da Longa Escuridão e partilhava do
s seus Poderes. Que é capaz de fazer que os mortos se levantem... ou de sugar a al
ma de um homem vivo e soprá-la ao vento para que vagueie para sempre.
Bosta de rato! cuspiu, irritada. Estudou-o, de cabeça inclinada. Eu faço aquil
o que um Sonhador faz. Só que o faço melhor aqui, longe da confusão, da tagarelice das
velhas e dos jovens tolos apaixonados.
Ele continuou tenso, os olhos procurando a porta, como se avaliasse as suas
chances.
Nesse caso, por que vive aqui sozinha? Se não faz as coisas que o Povo repro
va...
Pela mesma razão que você deverá fazer o mesmo. Semicerrou os olhos e viu-o estr
emecer. Pelo Sonho, rapaz! Porque as pessoas à volta te enevoam a mente. Não permite
m que os teus pensamentos sejam puros.
Um traço de confusão surgiu nos olhos dele.
Ela abanou a cabeça.
Sim eu o conheço bem, Corre na Luz. Eu vi no dia em que nasceu. No dia em qu
e foi concebido! Olhe-me nos olhos. Já nessa época você era um Sonhador. E o seu irmão?
Qual é o nome dele?
Corvo Caçador. Saiu-lhe como um doloroso estertor. Ela tornou a abanar a cab
eça, recordando a visão.
Apropriado. Ele ainda continua agarrando as penas negras? Procurando sangu
e? Bem sabe que foi assim que ele nasceu. Em sangue.
Ele foi com o bando de Chamador de Corvo para enfrentar os outros. Ele...
Há nisso morte murmurou Garça. Eles são muitos. Levantou a cabeça. Oh, eu os
egando. As coisas estão mudando no mundo, rapaz. O gelo está derretendo. Os animais
estão se movendo, os seres humanos seguem-nos. Deixa-me dizer-lhe uma coisa.
Apesar de um tanto receoso ele perguntou:
O quê?
Eu costumava atravessar as montanhas altas a oeste daqui para chegar à água sa
lgada. Costumava sentar-me numa rocha para ver as ondas baterem. Podem ver-se co
isas na espuma das ondas. Dão bons Sonhos. Franziu a testa vendo de novo as imagen
s. A última vez que lá estive foi três anos atrás. As ondas cobriam já a minha rocha.
E então?
Quer dizer que as águas estão subindo, rapaz. Mantiveram-se alguns instantes o
lhos nos olhos até ele se atrever a perguntar, assustado:
Cobrirá a terra toda?
Como é que eu posso saber?
Não Sonhou...
Pelo Grande Mamute, não! Eu limitei-me a ver a diferença quando lá estive.
Oh ele suspirou de alívio.
Se tivesse Sonhado, teria ido lançar-se nas águas para se afogar?
Talvez.
Ela riu e deu-lhe uma pancadinha no braço.
Gosto de você, rapaz. Respeita os seus anciãos.
Ele esboçou um sorriso.
Bem, voltemos aos Outros. Ninguém consegue vencê-los. Fez um gesto que o fez p
arar. O Povo pode fazer uma de duas coisas. Pode lutar... e morrer. Ou pode junt
ar-se aos Outros, ser absorvido como o sangue em pêlo de raposa.
Absorvido? Mas o Pai Sol deu-nos a terra e os animais.
Nada é eterno, meu rapaz. Nem o mamute, nem você, nem eu, nem sequer o Povo.
Os olhos dele ficaram embaçados como se estivessem vendo algo muito distante.
O homem do Clã Da Presa Branca disse...
Que homem?
Um homem alto, com um cabelo negro ficando grisalho. Veio ter comigo e eu
soprei um arco-íris. Engoliu em seco como se esperasse que ela lhe chamasse de men
tiroso. Eu lhe disse que trocaria um filho por um filho. Eu... eu o mandei escol
her entre a luz e a escuridão.
Você o conhecia?
Não.
Garça ficou imóvel, os lábios fechados numa linha branca.
Tinha um rosto oval? Um nariz fino? Lábios cheios?
O rapaz foi concordando com a cabeça.
Garça cerrou os olhos para ver bem longe, para procurar no passado o rosto ma
gro daquele homem que violara a mulher do Povo na areia cinzenta, tendo por pano
de fundo a rebentação.
Nos ombros dele assentava uma pele branca.
Você o conhece?
Garça acenou que sim e soltou:
É o seu pai.
Os olhos de Corre na Luz estreitaram-se de espanto:
Garra de Foca era o meu...
Garra ae Foca o adotou. Não, o homem do Sonho é o seu verdadeiro pai. O sorris
o dela mudou. E vai trocar com ele filho por filho? Interessante. Que quer isso
dizer?
Não sei.
Passou um longo silêncio.
Talvez. Garça meditou. Escapa-me qualquer coisa. Um arco-íris é a estrada de cor
es que conduz ao mundo das Crianças Monstruosas, que fica para o Norte. Um Sonhado
r tem de ter fibra para se meter no meio da guerra deles. É disso que se trata? O
bem combatendo o mal?
Talvez seja.
Você é muito prestável, não é?
Ele piscou os olhos, embaraçado.
Nunca compreendi os meus Sonhos. Deixam-se sempre... bem...
Vamos ter de fazer qualquer coisa nesse aspecto.
O quê?
Falaremos disso mais tarde. Neste momento, apenas quero que me diga como o
Sonho te faz sentir. Pensa que o Povo irá morrer nas mãos dos Outros? Nas mãos do teu
pai?
O Lobo me disse como... vacilou, mostrando incerteza no gesto da cabeça.
Como o quê?
Corre na Luz olhou para as brasas do fogo.
Existe um buraco no Grande Gelo.
O Lobo mostrou-o?
Ele acenou a cabeça.
Disse-me que, se seguíssemos esse caminho, o Povo estaria seguro.
Na testa de Garça surgiram profundas rugas. Deixou sair um longo suspiro.
Nesse caso, o melhor que tem a fazer é continuar o caminho. Eu vi, que os Ou
tros se aproximam rapidamente. Você não tem muito tempo.

CAPÍTULO 15
Aquele Que Grita, de gatas, empurrou para fora a neve acumulada no túnel de
entrada do abrigo. Fora uma má escolha, mas não tinham tido tempo para escavar uma e
ntrada mais profunda que impedisse a entrada do frio. O vento sugou a neve e o m
undo era uma nuvem branca. Ponderou as possibilidades de sair. Podia conseguir m
anter a direção certa pelo vento. Mas de que serviria? Podiam acabar por cair num pe
nhasco, afundar num atoleiro de ramos de vidoeiro ou de lariço. E para onde iriam?
Pior ainda: as crianças, os mais fracos, ficarariam para trás... perdidos dos resta
ntes.
Meio agachado contemplou a tempestade infindável. O frio penetrava-o vindo do
gelo a seus pés. A tempestade podia estar soprando dias e dias.
Acabou tudo! murmurou.
Sem forças para caçar só outra carcaça lhes poderia devolver a vida que outrora pos
suíam.
Talvez devêssemos ir para o Norte murmurou, olhando para o lugar onde Água Ver
de dormia. O nariz dela mal se mexia com a respiração da vida. Lamento, esposa. Lame
nto muito. Trouxe-a até aqui seguindo um louco.
Estendeu a mão para acariciá-la, sentindo o frio, ciente de que não seria uma má mo
rte. Melhor que apodrecer de uma doença qualquer, cada vez mais cansado.
Foi isso, Lobo? Enganaste o rapaz, atraiu-o aqui para alimentar os teus ir
mãos de carne?
Encostou a testa ao braço e riu baixinho.
Acho que estou pronto para isso. Todos tem o direito de alimentar os seus.
Porque todos somos um todo, marido disse Água Verde, numa voz que tomara aqu
ele tom respeitoso que os anciãos usavam em torno das fogueiras de Inverno. Outror
a fomos estrelas. O Pai Sol expulsou-nos do céu. O Rato Almiscarado viu-nos cair e
mergulhou no mar, trazendo de lá lama para que a nossa queda fosse amortecida. De
pois o Pai Sol soprou a vida em nós e em outras estrelas caídas, tornando-nos todos
irmãos. Nós comemos os lobos, eles comem-nos. É tudo a mesma vida.
Você está espantosamente calma perante tudo isto.
Água Verde encolheu fracamente os ombros.
O marido gatinhou até ela, colocando um braço atrás da cabeça da mulher e encostand
o-lhe a cara com meiguice.
Mas quem nos rezará às estrelas?
A Mulher Vento uivava lá fora e a neve entrava ali dentro congelando-lhes as
peles e picando-lhes as caras.
Talvez o Lobo o faça.
Assim espero.
Com a mão enluvada segurando na de Água Verde acabou por fechar os olhos e coch
ilar. Sonhou que voltava a viver, que era de novo um jovem. O sorriso tímido e os
olhos conhecedores de Água Verde seguiam-no enquanto ele avançava altivo à frente dela
, um caçador orgulhoso, com a sua primeira peça abatida, junto do fogo, sozinho. Até n
essa altura ela soubera ver para lá do riso dele, conseguira ver o homem lá escondid
o. Água Verde sempre soubera. Sempre tivera tudo ordenado, cada coisa planejada e
aceite a seu tempo. Nem mesmo a morte do primeiro filho morto de fome no princípio
da Longa Escuridão perturbara a sua postura. A morte chegou. Ela sofreu, aceitou,
planejou o futuro.
Uma mulher daquelas... desperdiçada com ele.
Caiu-lhe neve em cima. Amontoara-se assim tanta? Suspirou, pensando se vale
ria a pena subir e tornar a afastá-la para que pudessem respirar. A asfixia seria
uma morte mais rápida, um sofrimento mais curto.
O cão de alguém ganiu. Ora, havia sempre um cão de alguém ganindo. Os cães eram assim
. Ou ganiam, ou lutavam, ou estavam comendo.
Sacudiu a cabeça tentando afastar o torpor da fome. Cão? Eles tinham comido os
cães!
Imaginação resmungou, olhando para o focinho do cão preto que o espreitava do túne
l.
Aquele Que Grita piscou os olhos escutando, com os próprios ouvidos, o animal
farejar. Comida! Estendeu a mão para os dardos, sentindo o tremor dos músculos. Mal
dita fome que roubava de um homem a sua...
Sai daí, Preto chamou uma voz, enquanto Aquele Que Grita ainda procurava sol
tar um dos dardos. Água Verde sentou-se com uma esperança desesperada nos olhos.
Ei, vocês aí, estão com fome? perguntou a voz de uma velha. Achei que era uma li
nda tempestade. Uma tempestade para não desperdiçar em casa junto do lume. Daí que ten
ha pegado algumas tripas bem cheias de gordura e saído para dar uma volta.
Aquele Que Grita ficou olhando:
Você é um espírito tentando sugar a minha alma para a Longa Escuridão?
Hush chamou Água Verde, puxando-o para trás.
A velha soltou uma risada e o cão preto avançou, enchendo o espaço e bloqueando a
pouca luz que lhes chegava.
Preto! gritou a velha. Saia daí!
A um gesto seu, o cão apressou-se a recuar.
Onde está Ramada Partida? perguntou a mulher, com um brilho travesso nos olh
os.
No abrigo a seguir, acho. Você a conhece? perguntou Aquele Que Grita.
Ela estudou-o durante alguns segundos:
Se a conheço? Vinte e cinco Longas Escuridões atrás prometi que a mataria se ela
voltasse a ficar ao meu alcance. É tempo demais para manter uma promessa.
Aquele Que Grita olhou, espantado, para Água Verde.
Frio. Nada mais existia para lá do nó de fome na barriga de Raposa Dançante. Só a r
espiração difícil de Garra lhe recordava que não estava sozinha, que existiam outros ser
es humanos, que o mundo tivera outrora calor, luz e riso.
A Mulher Vento juntava a neve em volta delas, fazendo os cristais de Gelo r
aspar nas suas peles de caribu já gastas. Restava já tão pouco calor do corpo para par
tilhar, tão pouca energia. Apesar da pele em que estavam enroladas, apesar das par
kas de pêlo duplo, o frio chegava até elas.
Quem nos cantará ao Abençoado Povo das Estrelas? perguntou ela em voz alta.
Talvez mamute, hein? murmurou Garra, sem sequer mexer a cabeça grisalha apoi
ada no ombro de Raposa Dançante.
Há quatro dias que aqui estamos. Pergunto a mim mesma se mais alguém ainda está
vivo além de nós duas.
Para mim, o pior sussurrou Garra é que você pode querer fazer chichi outra vez
. Quando se levanta eu gelo.
Tenho de fazer. Fica-se mais quente se não se tiver essa água extra. Suga-nos
o calor. Desperdiça o pouco que nos resta.
Ah, eu bem sei. Mas não posso voltar a levantar-me, garota. Não posso. O meu f
io da vida está fraco... fraco...
Raposa Dançante fechou os olhos.
Obrigado, Garra, por passar o tempo comigo. Acho que nunca conseguiria ter
...
Ora interrompeu Garra. Eu queria estar perto de você. Virou então o seu velho
rosto e contemplou as paredes de Gelo. Como gostaria que nós tivéssemos ido com Corr
e na Luz. Sonho de Luz. Há Poder nisso.
Eu tentei.
Eu sei. A cabeça da anciã mexeu-se quando ela engoliu. Eu... sei.
Raposa Dançante levantou a ponta da pele de caribu e viu os farrapos de neve
que esvoaçavam. Ali, no chão, o mundo inteiro era branco. Nem agora, que era de dia,
conseguia ver alguma coisa. Que maneira terrível da sua alma deixar o corpo.
Corre na Luz? chamou ela baixinho. Um dia, talvez entre as estrelas, volte
mos a nos encontrar. Como te abraçarei então! Amo-te!
Fechou os olhos para reter as lágrimas. A dor da perda era uma lança no coração.
Continua chamando pelo idiota do meu irmão?
A voz de Corvo Caçador penetrou mesmo através dos sonhos de morte. Tentou afast
ar aqueles tons indesejados.
Vá lá, querida Raposa Dançante chamou de novo a voz, insistente, real. Levante a
pele e come isto.
Garra mudou de posição quando a pele de caribu e, apesar da neve fria que a ati
ngia, olhou para o rosto bonito dele.
Encontrei o campo de Assobio de Carneiro a um dia daqui. Ofereceu-lhe tira
s de carne. Estão construindo um abrigo. Daqui a alguns minutos vamos ter um fogo.
Come alguma gordura. Vai ser duro, mas acho que podemos salvar os que ainda estão
vivos. Até lá, mantenha-se quente.
Viveremos sussurrou Raposa Dançante. Oh, Corre na Luz, eu vou continuar a vi
ver!
Um bom rapaz, este Corvo Caçador murmurou Garra. Podia ter pior sorte do que
ele, Raposa Dançante. Muito pior.
Raposa Dançante encolheu-se, estremecendo toda.

CAPÍTULO 16
Os raios de luz coloridos pelas cinzas penetravam pela estreita abertura d
a caverna de Gelo e acentuavam os rostos encovados do Povo acumulado lá dentro. Ap
ertando bem as roupas contra os corpos, falavam pouco, ou nada, e o desespero er
a algo palpável a esperança desaparecera.
Avó? Chamou Estrela Vermelha, uma garota de cinco anos com enormes olhos cas
tanhos e um rosto magro a ponto de cadavérico, bateu, sem forças, no capuz que cobri
a a cabeça de Ramada Partida.
Hum?
Avó, tenho frio. Segurou ainda com mais força a boneca de osso de peixe que ag
arrava, com uma força mortal, contra a cara.
Ramada Partida endireitou-se, coçando os olhos, antes de olhar para a criança.
Estrela Vermelha, de olhos fixos nela, piscou-os devagar com as pestanas incrust
adas de Gelo. Estendeu os braços pedindo que lhe pegassem.
Venha, pequenina murmurou Ramada Partida com ternura, pegando a garota e s
entando-a no colo. Enrolou as roupas, tornadas duras pelo gelo, em volta das dua
s e apertou com força Estrela Vermelha, beijando-a ao mesmo tempo na testa.
Obrigada. A criança soltou um suspiro e encostou-se, cansada, ao peito da an
ciã. Tirou uma luva para meter um dedo na boca e chupar devagarinho. Tenho fome.
Eu sei que está com fome. Mas agora já não vai durar muito. O Sonhador de Lobo v
ai voltar daqui a pouco. Ele vai nos tirar disto tudo. Possivelmente, está neste m
omento falando com o Lobo.
Estrela Vermelha franziu a testa, descrente.
Está mentindo só porque eu sou pequenina?
Claro que não protestou Ramada Partida com o orgulho ferido. Ele vai voltar.
Você vai ver.
Talvez ele esteja morto e não possa voltar.
Quem disse isso?
Estrela Vermelha teve um gesto atabalhoado da cabeça como se hesitasse em dizê-
lo.
Bem...
Então! A quem pode contar se não for a mim? sugeriu Ramada Partida.
Lobo Cantante disse que talvez o Avô Urso Branco o comeu e que vamos todos m
orrer por tê-lo seguido.
Ramada Partida esticou desdenhosamente os lábios.
Ora, Lobo Cantante é um idiota. Escute o que te digo. Já vivi duas vezes mais
do que ele viveu e sei como é que o mundo funciona. Sonhador De Lobo vai voltar.
O estômago de Estrela Vermelha roncou e ela procurou acalmá-lo, afagando-o com
uma mãozinha pequenina.
Tem roncado e doido.
Talvez uma das Crianças Monstruosas desceu e fez aí o ninho, hem?
Estrela Vermelha riu sem forças, incrédula.
Bem sabe que nunca saem do céu.
Não?
A criança abanou a cabeça.
Não. É por isso que não precisamos ter medo deles. Foram apanhados nas luzes do
arco-íris e vão ficar lá para sempre.
Ramada Partida sorrindo, acariciou-lhe a carinha gelada.
Lembra-se de todas as velhas histórias muito bem, não é?
Você me disse que tinha de fazer isso. Lembra-se?
Eu?
Uh-huh. Quando eu era pequenina. Disse que me daria umas palmadas no trase
iro se eu me esquecesse de uma que fosse.
Sou mesmo boa. Deu certo.
Estrela Vermelha roçou o nariz pelas peles da anciã, mostrando claramente no se
u semblante que havia mais qualquer coisa. Ramada Partida estendeu uma mão enluvad
a para traçar as pregas naquela jovem fronte.
Que é isto? Está tentando parecer-se comigo?
A garota olhou-a, tímida, os seus olhos escuros espreitando de dentro do seu
capuz de pele cinzenta.
Avó, como é morrer?
Apertou-lhe o peito. Deixou o ar sair dos pulmões e apertou com toda a força a
pequenina. Já uma vez ou duas fizera a si própria aquela pergunta.
Oh, não é nada. A menos que algum velho...
Mas, e se vem um urso e me engole quando eu ainda estiver viva?
Ramada Partida tirou do cinto a faca de pedra e virou a lâmina de obsidiana d
e maneira a brilhar, ameaçadora, naquela fraca luz.
Se um urso fizesse isso, eu abria-lhe as tripas e a tirava de lá.
Mas, mas como será... se... se o urso fugir e não conseguir me encontrar?
Bem murmurou Ramada Partida, contemplando as sombras azuladas irregulares
do teto. É como quando se adormece. Sabe como é adormecer, não sabe? Num minuto está aco
rdada, no minuto seguinte dormindo.
Estrela Vermelha acenou com a cabeça.
E não dói muito?
Não, pequena, não dura muito tempo.
Talvez dura só um minuto.
Oh, menos ainda. Mal se percebe.
Estrela Vermelha deixou escapar um pequeno suspiro de alívio, chupando de nov
o o dedo e coçando a comichão do nariz com a cara, de pele de rato almiscarado pinta
da, da sua boneca.
Estava preocupada com tudo isso.
Notava-se.
Cauda de Salmão disse que doía muito, de que uma pessoa ficava gritando, grita
ndo até os Comedores de Almas a apanharem.
Ele só tem sete anos resmungou a anciã. Que pode ele saber de tais coisas?
Atira Ossos era tio dele. Ele me disse que podia ouvi-lo gemer dias e dias
depois que o urso o apanhou.
Bah! O Atira Ossos era uma peste tão grande que o mais certo é ter dado ao vel
ho Avô Urso Branco uma indigestão e isso foi o que Cauda de Salmão ouviu.
Com um suspiro cheio de paciência, Estrela Vermelha deixou-se ficar olhando o
pé de Ramada Partida metido na bota de pele.
E o que acontece depois?
Quer dizer depois da morte? A criança acenou que sim. Bem, quando acordar es
tará no meio das estrelas, voando como a Águia. Consegue...
Por que volto a ser outra vez do Povo das Estrelas?
Claro.
A pequena inclinou a cabeça:
Avó, acredita mesmo que o Lobo visitou Corre na Luz e lhe deu um Sonho?
Não existe no meu corpo todo nem sequer uma ponta de dúvida, minha querida. Eu
já vi Sonhadores... Sonhadores de verdade... A voz dela apagou-se ao mergulhar no
s dias, doces e amargos, vinte e cinco anos atrás. Sonhadores de verdade...
Pelo túnel inclinado da entrada soou um restolhar de peles e o ladrar de cães.
Estrela Vermelha deu um salto e um grito de alegria soltou-se dos seus lábios azul
ados:
É ele! gritou, estridente, correndo para o túnel. Corre na Luz! Corre na Luz!
Ramada Partida fechou os olhos e ofereceu uma breve prece de agradecimento
ao Lobo antes de meter a cabeça entre as mãos.
Olá ouviu Estrela Vermelha dizer como se não conhecesse a pessoa com quem esta
va falando.
Está com fome, pequenina? perguntou uma mulher desconhecida.
Oh, se estou! O meu estômago está roncando.
Bem, tome. Coma um pedaço disto e vai ficar boa.
Obrigada! soltou Estrela Vermelha, agradecida, e voltou a descer o túnel aga
rrada a uma comprida corda de tripa recheada.
Que há nesta voz que me faz pensar...
Com a sensação chegaram tremores de medo e arrependimento, lágrimas que desciam p
ela garganta velha e enrugada de Ramada Partida. Engoliu com dificuldade.
Ramada Partida? chamou, grave, a voz. Está aí dentro?
Estou aqui respondeu, em choque. Quem...
Nesse caso, venha para fora antes que eu vá te buscar.
Quem é você?
Quando não veio resposta, Ramada Partida, hesitante, afastou as roupas e saiu
de gatas pela abertura no gelo. Uma névoa branca soprava em torno de uma figura e
ncapuçada e veio bater-lhe nos olhos obrigando-a a mantê-los quase fechados. Lá conseg
uiu, com esforço, pôr-se de pé sobre as pernas trôpegas, enquanto procurava distinguir o
rosto velho por baixo do capuz de caribu. Todo aquele branco que as rodeava par
ecia girar no sopro da Mulher Vento.
Maldita eu seja... exclamou a mulher. Esse teu nariz arrebitado costumava
ser bonito. Agora tem o mesmo ar feio e pontiagudo do dardo de alguém. Me faz sent
ir melhor.
Quem é você? exigiu ela com firmeza. Eu a conheço?
Sua velha cabra. Claro que me conhece. Como é que pode esquecer alguém a quem
partiu o coração?
Ramada Partida até inspirou fundo aquele ar gelado quando o reconhecimento a
invadiu. As suas mãos voaram para os ombros da outra. Para tocá-la e sentir que era
real. Conseguindo finalmente controlar-se levou uma mão aos lábios que tremiam e olh
ou, perturbada:
Abençoado Povo das Estrelas... É você?
Claro que sou eu retorquiu Garça. Quantos outros corações você partiu? Depois,
o se pensasse melhor, acrescentou: Claro que eu não posso saber disso. Talvez agor
a já tenha até um monte deles.
Com timidez, Ramada Partida agarrou os cordões de pele da parka de Garça e, des
ajeitadamente, puxou-a para si antes de lançar os braços em torno da outra e a abraçar
como se fosse uma visão que pudesse desaparecer a qualquer momento.
Achei que você já tinha morrido há muito tempo.
Garça levantou os braços e acariciou as costas de Ramada Partida dizendo, em to
m jocoso:
Não podia morrer. Sempre imaginei que te voltaria a vê-la.
Ramada Partida afastou-se um pouco para contemplar o rosto oval da Mulher d
e Espírito. As feições graciosas de Garça continuavam finas, os lábios cheios, o nariz arr
ebitado.
Ainda quer me matar?
Garça encheu os pulmões e reteve o ar uns momentos:
Não com tanta vontade como outrora.
Acabou de chegar a essa conclusão por causa do meu nariz.
Sobretudo por isso. Mas acho que ainda posso amaldiçoar as suas articulações.
Chegou tarde demais. Alguém já o fez. Mal consigo andar no Inverno.
Sério?
Ramada Partida acenou em resposta e baixou os olhos, sentindo a culpa enche
r-lhe o peito.
Sabe, nunca foi minha intenção magoá-la. Só que...
Oh... começou Garça com um gesto ríspido. Até me fez um favor, sério. Eu não tinh
agem para ser um Sonhador. Precisava que alguém me obrigasse a me afastar do Povo.
E eu fiz-te mesmo isso, isso é verdade.
Fez.
Nunca mais me senti bem desde que partiu. Tive sempre um lugar vazio dentr
o de mim.
Depois, claro. Mas nunca te ocorreu isso quando ainda valia a pena?
Ramada Partida semi fechou os olhos e cerrou a boca:
Claro que não. Eu não gostava de você.
Bem, você não era propriamente um amor. Essa sua língua afiada estava sempre tra
balhando! Ora, eu...
Avó? interrompeu a voz da jovem Estrela Vermelha, o doce e tímido rosto esprei
tando pela abertura da caverna. Venha comer antes que desapareça tudo.
Já vou, pequena respondeu ela por cima do ombro.
A Mulher Vento brincou com as cordas da sua parka, fazendo-as bater no seu
peito. Olhou outra vez para Garça. Um sorriso começou a formar-se no rosto da sua ve
lha inimiga, um ar maroto a invadir-lhe os olhos.
Sabe disse ela com ar trocista, tenho mesmo aquilo de que as suas articulações
precisam.
O quê? Vai fazer um espírito de cura? Para mim?
Garça negou:
Não. Tenho uma coisa muito mais poderosa.
Que poderá ser mais...
Garça teve um ataque de riso histérico.
Ramada Partida abriu muito os olhos e deixou cair o queixo.
Não vai cortá-las, não é?
Bem podia comentou Garça com um leve sorriso. Virou-se e acenou a Ramada Par
tida para que a seguisse enquanto atravessava a planície branca, batida pelo vento
, na direção de Corre na Luz. Todos estavam saindo das cavernas para se reunir, chei
os de alegria, em torno dele. Abraçavam-no e gritavam que jamais tinham duvidado d
ele.
Ramada Partida apertou os lábios e baixou os olhos para mirar a neve que lhe
batia nas pernas como dedos de fantasmas.
Maldita seja! murmurou consigo mesma olhando as costas de Garça. Foi o único S
onhador que eu considerava que tinha Poder. Escutando as estranhas palavras apre
ssou-se a corrigir: Você e Corre na Luz
Ouviu, acima do assobio do vento, Garça gritando:
Sim, encontrei-a. Aquela cadela velha nunca deixou ninguém em paz.
Uma gargalhada baixa soltou-se da garganta de Ramada Partida. Respirou fund
o, para se acalmar, pela primeira vez em dias e dias, e deixou o olhar percorrer
os rostos alegres que iam saindo das cavernas de neve. Em volta deles os gelos
brilhavam como pérolas. As nuvens que passavam pareceram ficar mais brilhantes e c
om os bordos dourados.
Avó? chamou Estrela Vermelha. Guardei um bocadinho para você. Mas acho melhor
que o coma depressa antes que o meu estômago volte a roncar.
Virou-se para a pequena que segurava na mão um pedaço de tripa recheada. Ramada
Partida ajoelhou-se e pegou a comida:
Muito obrigada, você é uma linda menina.
Estrela Vermelha inclinou a cabeça e cerrou os olhos para fugir ao brilho do
Sol.
Avó? Isto quer dizer que o Sonho de Corre na Luz foi mesmo sério?
Claro que foi. Não te disse que ele voltaria?
Nesse caso, não virá nenhum urso para nos comer, não é? Vamos ficar todos bem?
Ramada Partida deu uma dentada na carne deliciosamente temperada e olhou pa
ra Estrela Vermelha. A velha Mulher de Espírito acenava com os braços para que todos
se organizassem. As suas palavras abafadas pareciam misturar-se com as da Mulhe
r Vento e formar uma poderosa e implorante voz naquele descampado.
Estamos salvas, pequenina disse Ramada Partida. Algumas lágrimas, que tinham
congelado nas suas pestanas de baixo, brilhavam como cristais. Retirou-as com a
manga. As nossas almas estão agora nas mãos de uma mestra Sonhadora... o Sonhador m
ais poderoso que existiu no nosso Povo desde que o próprio Pai Sol caminhou sobre
a terra. Deu uma palmadinha na cara emagrecida de Estrela Vermelha. Sim, não se pr
eocupe, minha querida. Estamos salvos.

CAPÍTULO 17
O Povo descansou, comeu e descansou durante outra extensão de escuridão, reviv
ificando. Quando a tempestade finalmente desapareceu, Garça conduziu-os para fora,
para a neve fresca, a rede dos sapatos de neve esmagando-a, seguindo Preto que,
de focinho metido na neve, farejava uma pista.
Quando, ao pôr do Sol, chegaram ao topo da colina, Água Verde ficou olhando, es
pantada, o abrigo de Garça. Era uma maravilha. A Mulher Vento parou, por um instan
te, o seu contínuo ulular, permitindo uma visão do pequeno vale. Água branca borbulhav
a do chão, por entre fendas nas rochas, e tombava em cascata sobre uma lagoa límpida
. Mais além, a água corria, livre e envolta em névoa, até onde o olhar alcançava. Enterrad
os na neve viam-se longos ramos de salgueiro e, perto, depressões do terreno margi
nadas por erva verde. Mais abaixo ainda, a neve derretera.
Há quanto tempo vive aqui? perguntou ela, com timidez, à Mulher Espírito.
Há uns tempos gritou Garça na frente da procissão. Na minha idéia o chão abriu-se
ui e toda esta água quente subiu à superfície. Uns anos atrás... vejamos. Bem, talvez un
s vinte, a terra tremeu. Ia morrendo de susto. Até aí, a nascente era apenas um fioz
inho. Mas depois começou a atirar a água nos ares com toda esta força. Como se qualque
r coisa se tivesse solto dentro da rocha. Assusta-me pensar no que poderá suceder
se o chão voltar a se abrir. Não se aproximem do geiser. É capaz de coze-los. Estou fa
lando sério. Eu cozinho carne nele.
Água Verde sacudiu a cabeça. Ouvira histórias. O velho geiser já falecido falara de
coisas assim. Porventura teria ele estado ali? Devagarinho, tentando absorver t
udo aquilo, Água Verde seguiu o grupo até às águas fumegantes. Recordou, insegura, as hi
stórias contadas em volta dos fogos. Histórias de como Garça deixara o Povo. Histórias d
e como ela tinha acordo com os espíritos da Longa Escuridão. Hesitante, olhou! por c
ima do ombro, para a vastidão branca. Bem, talvez houvesse destinos piores.
Quando chegaram à beira da lagoa fumegante, Garça desapareceu numa fenda entre
as rochas para voltar com uma pilha de peles de caribu.
Tomem disse ela, deixando-as cair no chão coberto de neve. Tenho mais lá dentr
o que vocês podem usar para construir um abrigo. Enquanto tratam disso vou prepara
r um chá de musgo e tirar alguma carne para o jantar.
Um tremor de alívio percorreu o Povo. Reuniram de imediato os esforços e começara
m a fazer os abrigos. Horas mais tarde, quando Garça voltou, ficou olhando, com ar
de aprovação, os abrigos levantados.
Agora venham sentar-se ordenou a anciã. Temos coisas para falar.
O Povo, cheio de gratidão, sentou-se em torno da beira da lagoa, secando naqu
ela névoa quente. Garça acendera um fogo em frente do seu abrigo e as chamas subiam,
lançando longas sombras sobre os penedos circundantes e bruxuleando, em tons de âmb
ar, sobre a lagoa esverdeada. Fez passar de mão em mão sacos de carne, e as pessoas
foram-se servindo dos odres de chá de musgo quente.
Quando todos se sentaram e estavam comendo tranquilamente, a Mulher Espírito
declarou:
Posso alimentá-los durante um par de semanas com aquilo que tenho guardado.
Mas depois disso...
Lobo Cantante, segurando um corno cheio de chá quente, acenou:
Há muita caça por aqui?
Garça levantou um ombro magro.
O suficiente. Uma pequena manada de caribus passa o Inverno na bacia do ri
o, lá em baixo. O vento mantém-na limpa. Podem comer salgueiro, musgo e erva. Dá a idéia
que cresce mais erva com cada ano que passa. Aconteceram montes de mudanças desde
que cheguei aqui... ora vejamos... Bem, não interessa... desde os tempos em que R
amada Partida era ainda suficientemente nova para me roubar um homem.
Ramada Partida ficou rígida e parou no meio do mastigar para semicerrar os ol
hos.
Quanto à caça disse Aquele Que Grita, aclarando a garganta ., podemos fazer um
a linha. Água Verde e Raio de Sol podem ficar nas asas, a extensão das linhas, com a
s crianças entre as pedras para manter os animais em movimento. Com Lobo Cantante,
Lebre Saltitante e eu sempre somos três homens para correr...
Quatro acrescentou Garça indicando, com um gesto de cabeça, Corre na Luz, que
permanecia em silêncio e de cabeça baixa.
As pessoas resmungavam entre si. Agora que tinham as barrigas cheias tinham
voltado às suas queixas e a chamar Corre na Luz de falso Sonhador.
Garça levantou o sobrolho e cuspiu:
Loucos. Ele viu muito mais do que aquilo que vocês jamais compreenderão.
Desceu sobre eles um silêncio incômodo e as chamas iluminaram os rostos tensos.
Avó. Corre na Luz falou. Não se preocupe. Eu...
Alto, rapaz. Você e eu ainda não terminamos. Virou-se para ele sem ligar para
o embaraço dele. Ainda não sabe quem você é, hein? Mantenha essa atitude e talvez nunca
venha a saber.
Sonho de Lobo murmurou Ramada Partida novamente com olhos brilhantes.
Garça virou-se, a cabeça inclinada:
Você viu?
Vi nos olhos dele.
Garça abanou a cabeça.
Muita coisa mudou desde a minha partida. Já não há Sonhadores?
Ramada Partida acenou, descrente, com uma das mãos.
Chamador de Corvo foi um, outrora. Acho que matou isso. Começou a Sonhar est
ragado... como a carne cheia de moscas. Estes jovens nunca tinham visto, até agora
, um verdadeiro Sonhador. Você tem de voltar, Garça. O Povo precisa de você. Não há coração.
há fogo. As velhas tradições, as verdadeiras tradições, desapareceram com a fumaça no hálito
da Mulher Vento.
Garça apontou com um dedo:
Ele é o futuro.
Sonhador De Lobo abanou a cabeça, em silêncio. Pálido, pôs-se de pé e desapareceu na
noite.
Depois de uma longa pausa, Ramada Partida abanou a cabeça:
Não sei. O espírito deixou-o. Soltou um suspiro. Já não está presente nos seus ol
.
Está enganada. Garça sorriu. Como de costume.
Lobo Cantante aclarou a garganta:
É novo. Tal como diz o irmão, Corvo Caçador, ele ainda se deixa levar por ilusões.
Corvo Caçador? Garça girou, apontando um dedo magro como um dardo a Lobo Canta
nte. Você dá ouvidos a ele? Os olhos dela semicerraram-se, furibundos. O que lhes ac
onteceu? Será que Chamador de Corvo, esse boca cheia de moscas, lhes tirou de todo
o Sonho? Malditos sejam todos vocês. Porque não existe vida sem Sonhar!
O queixo de Lobo Cantante caiu enquanto ele balbuciava:
Corre na Luz quase nos Sonhou até à morte.
Idiotas! Garça abanou a cabeça. Pensam que são apenas máquinas de comer? Hem? Que
seu único objectivo aqui é comer e fazer bebês que tornem a fazer tudo igual depois de
vocês terem desaparecido? Amaldiçoados sejam! Não admira que o Povo esteja morrendo! É
preciso Sonhar para VIVER!
É isso mesmo! gritou Ramada Partida batendo as palmas. Estão vendo? Apontou pa
ra Garça. Aqui está o Poder! Aqui está uma Sonhadora! Estão ouvindo como ela fala? Estão o
uvindo o Poder? Ha-heee! O Lobo trouxe-nos até aqui. Sonho de Lobo!
Que se está acontecendo com o rapaz, Sonhador De Lobo?
Garça cruzou o olhar com Lobo Cantante que, com a vergonha a invadir-lhe a ca
ra, desviou o olhar.
Está sentindo-se culpado disse Ramada Partida sem dar grande importância ao fa
to. Perdemos uma menininha, mas o resto está aqui.
Garça afagou o queixo com os dedos.
Será que Chamador de Corvo lhes disse que os Sonhos eram fáceis? Foi o que lhe
s disse?
Ninguém se atreveu a responder, mas os rostos deles disseram-lhe o que ela qu
eria saber.
Bem, não são fáceis. Os Sonhos não chegam sem dor... sim, dor e até mesmo morte. Não
e esqueçam jamais disto.
Sacudiu-se, fazendo o cabelo grisalho soltar-se sobre os ombros.
Você, Lobo Cantante?
Ele olhou-a com indignação.
O quê?
Pensa que é um caçador?
Sou o melhor...
Não, não é. Vou levá-lo numa caçada de verdade. Uma Caçada de Sonho. Vou chamar o car
bu. Conheço o lugar. Lá já existe uma linha de caça. O caribu vai me ouvir e responder.
Se eu lhes pedir, eles ajudarão o Povo.
Lobo Cantante olhou à volta, pouco à vontade.
Quer dizer que não vamos ter de emboscá-los? Que...
Não. Vou fazê-los vir por Sonho. Não me aborreça. E afastou-se na escuridão crescen
e, seguindo o mesmo caminho que tomara Sonhador de Lobo.
Lobo Cantante, a confusão estampada no rosto, mordeu o lábio. Levantou os olhos
para Ramada Partida que também se dirigia para a escuridão mas parou para admoestá-lo
:
Eu não disse para manter a boca fechada?
Lobo Cantante baixou o olhar.
Corre na Luz ouviu os passos leves. Engoliu a frustração.
Eu não sou o escolhido.
Não? A voz de Garça transmitia um certo poder.
Não.
Uma mão pousou-lhe no ombro.
Conte-me de novo o que viu.
Eu... eu passei com o Lobo por um buraco no gelo. Subimos rochedos. Do out
ro lado havia um vale verde que se estendia até onde o olhar chegava. Lá viviam cari
bus, alces, mamutes, todo o tipo de animais. A seguir tive o Sonho com o homem.
O Outro a quem você chamou de meu pai.
Desde a primeira hora da tua vida que soube que você seria um grande Sonhado
r.
Luz abanou a cabeça sentindo a dúvida nas próprias entranhas.
Eu não sou um Sonhador.
A lâmina de hostilidade na voz dela apanhou-o de surpresa quando lhe disse, p
or cima do ombro:
Não será se continuar nesse caminho. Isso eu garanto.
Corre na Luz suspirou, aliviado, ao som dos passos se afastando. Ao fim de
alguns momentos de silêncio, a voz de Ramada Partida soou na escuridão a seu lado:
O que ela te disse?
Corre na Luz teve de piscar os olhos para distinguir a silhueta na escuridão.
Que eu sou um Sonhador.
Grande novidade!
Mas ele abanou a cabeça:
Não compreendo nada disto. Nem disto nem do homem no meu Sonho.
Homem?
Ele confirmou com um gesto.
Garça diz que Garra de Foca não era o meu pai.
E que mais ela diz?
Sentiu a tensão na voz dela crescendo. Mordeu o lábio. Devia contar-lhe?
Que a minha mãe foi violada. Que eu nasci primeiro e fiquei deitado num raio
de luz. Que Corvo Caçador nasceu a seguir. Que saiu coberto de sangue. Que o sang
ue lhe escorria para a boca quando o deitaram a meu lado. Que uma pena de corvo
desceu e ele a agarrou.
Hah-heee. Ramada Partida ficou varada e levou uma mão à boca. Sim. Foi isso: e
u estava lá. Fui eu que cortei, com os meus dentes, o teu cordão em dois. Onde... on
de é que a tua mãe...
Na praia, junto à água salgada. Garça diz que ela andava apanhando mexilhões.
Ramada Partida encostou-se devagar em uma rocha, os olhos focados na Lua qu
e nascia no horizonte, a oeste, fazendo as nuvens birlharem como prata.
Sim, ouvi os rumores. Olhou para ele. Um Sonho. E ela o viu?
Corre na Luz acenou positivamente, muito sério:
Diz que eu a olhei bem nos olhos.
Ha-heee, eu bem sabia. Sonhador De Lobo. Mesmo então, você era... diferente.
Ele levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, irritado.
Eu não quero ser diferente! Quero ser um caçador! Mais nada!
O que mais ela te disse? Sobre o Povo?
Que seríamos mortos pelos Outros... ou nos misturaríamos com eles. Absorvidos
como o sangue numa pele de raposa.
Ramada Partida cobriu a cabeça:
Você viraria as costas ao teu Povo?
Eu não sou o escolhido! Teve de lutar para não elevar a voz. Segui o caminho e
rrado! Chamador de Corvo tinha razão!
Ainda não estamos mortos murmurou Ramada Partida para si mesma. Olhou para e
le: Se não é você... então, quem será?
Corre na Luz observou o geiser, ouvindo o seu rugir, vendo a água voar bem al
to, soltando reflexos brancos ao luar.
Eu não sei! gritou, implorante, apertando a cabeça entre as mãos. Eu não...
Não existe mais ninguém.
Como o sabe?
Como poderia existir?
Eu não sei! Se o Outro do meu Sonho é o meu pai, então talvez este Sonho esteja
no nosso sangue!
Que isso quer...
Talvez o salvador seja Corvo Caçador!
Ramada Partida deixou-se ficar sentada, como morta, os olhos fechados, pens
ando.

CAPÍTULO 18
O caribu veio, formando uma linha negra no cinzento da luz. Corre na Luz o
lhava, varado pelo espanto. Tal como o contavam as velhas histórias os animais ava
nçavam deliberadamente para a linha dos caçadores.
À sua direita, de olhos fechados, Garça entoava cânticos. À sua esquerda, Lobo Cant
ante contemplava, incrédulo, os caribus que se aproximavam. Até que o seu olhar se v
irou, espantado, para Garça.
Um estranho calor cresceu no peito de Corre na Luz, uma sensação de retidão de Po
der. As mulheres, agachadas nas asas da linha, tinham os dardos metidos nos bura
cos dos atlatls. Tombou sobre eles um silêncio apenas quebrado pelo cântico de Garça.
Corre na Luz, com o coração batendo muito depressa, observou os animais. Cada v
ez estavam mais perto, o vapor da respiração saindo dos seus focinhos negros, as bar
bas brancas esvoaçando ao vento, os flancos cinzentos contra o fundo branco da nev
e. Tantos?
Matem só trinta avisara Garça com o brilho do Sonho nos olhos. Foi o que eu pr
ometi. Só trinta. Matem depressa, com misericórdia. Não devem sofrer.
Só trinta murmurou ele, entredentes.
A fêmea, que chefiava o grupo, estava agora junto dele, a cabeça erguida, dois
jatos de vapor a saírem-lhe do focinho enquanto avançava, ligeira, a cabeça virada par
a melhor o olhar.
Corre na Luz começou a entoar o cântico, juntando-lhe a admiração que sentia pela b
eleza dela, o como cantaria a sua alma ao Abençoado Povo das Estrelas.
Viverá em mim prometeu. A tua vida é a nossa vida. Partilhem conosco, irmãos e i
rmãs das estrelas.
Um sentimento de amor espalhou-se no peito dele ao vê-la aproximar-se ainda m
ais, um casco no ar, à espera.
Nesse instante, os olhares dos dois cruzaram-se e uma harmonia suave possui
u-o, como se a sua alma tocasse na dela. Deixou-se pairar assim, em unidade com
toda a vida, uma dança entrelaçada de um todo.
Respeitoso, o coração transbordando de amor, explicou a sua necessidade.
Por favor, mãe. O Povo precisa de você. Está ouvindo os nossos gritos? Lamento t
er de pedir isso.
Ela voltou a avançar, atingida pelo Poder do Sonho. Podia até ouvir os cascos d
ela entrando na neve e fincando-se no gelo. Juntamente com ela respirou, inquiet
o, o ar que os envolvia. A preocupação dela tornou-se sua. Colocaram-se em posição de ma
tar os dois e a velha fêmea virou-lhe o flanco.
Preso no Poder que lhe corria nas veias, Corre na Luz levantou-se, firme co
mo uma rocha, com cada nervo a vibrar. Disparou e viu o dardo penetrar bem fundo
no flanco do animal, sentindo a ponta dirigir-se aos seus órgãos vitais. A fêmea fico
u de pé enquanto ele encaixava o segundo dardo e, rodando, sobre si mesmo, o lançava
, com todas as suas forças, contra o flanco de um jovem macho. Os botões de osso dei
xados pelas hastes, recentemente caídas, brilhavam, alvas, sobre o negro do seu pêlo
.
A fêmea tombou de joelhos com uma espuma sanguinolenta saindo da sua boca. Co
rre na Luz continuou a cantar, partilhando na alma a dor do caribu. Os seus olho
s encheram-se de lágrimas que correram pela sua face curtida. Sentia, vagamente, L
obo Cantante lançando os dardos. Vindas dos lados, as mulheres correram atirando o
s dardos. O braço de Água Verde chicoteou para a frente, enterrando um dardo na espádu
a de um macho. Raio de Sol Sorridente, em corrida, usou o peso do corpo para imp
elir a ponta de pedra da sua lança numa jovem fêmea. Os caribus tombaram uns atrás dos
outros.
Basta! gritou Garça, levantando-se e quebrando o transe. Os caribus rodaram,
os cascos levantando a neve, e fugiram através das filas das mulheres.
Um caribu ferido rodou, com dificuldade, até ficar, submissamente, em frente
de Garça. A velha preparou o dardo e balanceou a arma para não errar. A jovem fêmea vi
rou-se e tombou no chão, agitando inutilmente as patas.
Só o estertor da respiração dos animais moribundos quebrava o silêncio.
Corre na Luz respirou fundo, sem sequer estar ciente de ter parado de respi
rar. Garça olhou-o, avaliadora.
Sabia que foi você que fez isso? gritou ela. As palavras ecoaram na mente de
le. Sacudiu a cabeça.
O quê?
Foi você que os cantou o resto do caminho. Você conseguiu.
Corre na Luz sentou-se numa rocha para olhar, meio atordoado, a neve cheia
de sangue, sentindo ainda no peito a dor da fêmea.
Peço-lhe perdão, mãe disse ele numa voz ferida, os olhos fixos no animal morto.

CAPÍTULO 19
A Longa Escuridão desvaneceu-se.
Os espíritos que haviam assombrado os redemoinhos do respirar da Mulher Vento
partiram para o Norte e começaram a soprar os ventos mais quentes de Sudoeste, de
ixando a neve mole e pesada. A Oeste, as montanhas brilhavam, ofuscantes de neve
, nos poucos dias em que o Sol estava livre nos céus. A água corria sobre as pedras.
A Norte, um rio enorme corria em torrente, águas brancas que se elevavam no ar ao
bater de rocha em rocha.
O Povo caçou e voltou a caçar o caribu e melhor que todo o resto pequenas manad
as de bois almiscarados que pastavam no sopé das colinas. A carne do boi almiscara
do foi sempre a favorita, rica, doce, cheia de gordura até mesmo num Inverno como
aquele.
Deixem o mamute em paz avisara Garça, vendo o velho macho entrar na parte ba
ixa da lagoa para umedecer as articulações. Claro que tem aqui perto as fêmeas e as cr
ias... mas eu os conheço. Nunca os Sonharia.
E o Povo foi ficando mais forte, cortando as carcaças das matanças, fervendo a
gordura dos corpos embora pudesse ainda ser pobre depois de um frio tão longo. Os
rostos ficaram cheios, as pernas fortes e firmes..
Aquele Que Grita ria e cantava pois encontrara um afloramento de quartzite
de grão fino para fazer as pontas dos dardos. O melhor talhador de pederneira de t
odo o Povo estudava as pedras do tamanho de cabeças com um olhar prático antes de a
partir em pedaços grandes. Estas lascas eram depois rapidamente aparelhadas a golp
es certeiros do seu martelo de pedra.
Bom material! comentou ele para Lobo Cantante. Olhe, olhe como a pedra se
solta em lascas, largas e chatas, com toda a facilidade.
Essas coisas pequenas fazem a sua felicidade. Lobo Cantante abanou a cabeça.
Uh-huh. E não podia negar tal verdade. Tirou do saco a haste de caribu, sent
indo a textura lisa que o uso dera ao instrumento. Utilizava-a para criar uma pré-
forma uma lasca básica talhada numa forma lenticular em ambas as faces. Aquele Que
Grita ia entoando canções dos espíritos enquanto arrancava finas lascas da pré-forma. U
ma a uma foi criando uma reserva de pré-formas, a maioria das quais foi colocando
no seu saco para utilização futura. A partir da forma lenticular podia produzir uma
ampla variedade de instrumentos incluindo raspadores, facas, buris, gravadores e
pontas de dardos, conforme as necessidades que surgissem.
É bom vê-lo trabalhando de novo. Lobo Cantante sentou-se para ficar vendo o tr
abalho.
Aquele Que Grita assobiou alto, sentindo a alma inchar.
Sabe, o espírito de uma pessoa entra na pedra. Há qualquer coisa de maravilhos
o nisso. Uma boa pedra, como esta quartzite, ou um sílex, bem, aceitam melhor a al
ma.
Tendo obtido a forma básica Aquele Que Grita serviu-se da haste e do couro pa
ra, com todo o cuidado, obter uma ponta afilada. Alisou as asperezas com grés prep
arando uma plataforma uma superfície de apoio para o denteado da haste. Fazendo is
to podia ter um maior controle ao tirar as pequenas lascas da ponta. Quando acab
ou tinha produzido uma ponta de lados paralelos e com uma ponta, afiada como uma
agulha, cuja largura era aproximadamente a da sua mão. Com o grés aparelhou a base
da ponta para que os bordos afiados não cortassem os tendões com que iria segurar a
ponta ao cabo de madeira.
Olhe para isto! exclamou, cheio de entusiasmo. Não é mesmo uma beleza?
E aqui está a haste para prendê-la. Lobo Cantante pegou uma vara de vidoeiro e
, apontando-a ao céu, tentou encontrar qualquer irregularidade. Depois de apanhar
três dúzias colocara-as ao seu lado para preparar as ferramentas. Utilizando as pequ
enas lascas que se iam acumulando aos pés de Aquele Que Grita e servindo-se de uma
haste de caribu para criar um plano de corte inclinado, descascou com cuidado a
s varas e alisou os nós. Com ajuda de um osso comprido endireitou as varas sobre o
fogo lento. Nos exemplares mais perfeitos abriu uma fenda para prender as ponta
s que a perícia de Aquele Que Grita produzira.
Sabe, houve um momento em que cheguei a pensar que nunca mais tornaríamos a
fazer isto. Aquele Que Grita olhou para a vara e, pensativo, encaixou a ponta d
o dardo na fenda.
Sonho de Lobo, hein?
Aquele Que Grita sorriu:
Ainda não estamos mortos, primo.
Água Verde, Raio de Sol Sorridente e as outras mulheres passavam os dias, cad
a vez maiores, medindo peles com todo o cuidado, sobre os corpos do Povo, e cose
ndo as roupas feitas, de modo a ajustarem-se bem a cada um. Uniam as peles com p
ontos cuidadosos e colocavam o pêlo para dentro, a fim de fornecer isolamento e ci
rculação capaz de eliminar o perigoso suor.
Tem de fazer isto direito explicou Água Verde a Estrela Vermelha.
Isto são as parkas de fora? Os olhos dela estavam muito abertos.
São. Para a roupa interior, a que fica encostada à pele, teremos de esperar pe
las crias do caribu. Mas para estas parkas destinadas ao frio, temos de usar pel
es de Inverno. Está vendo? O pêlo tem de estar muito junto. Se matarmos mais animais
nesta estação, o pêlo começa a cair.
Então temos duas parkas observou, cheia de seriedade, Estrela Vermelha. A pa
rka de fora fica com o pêlo para fora... e a parka interior, feita de pele de cria
, fica com o pêlo para dentro!
Água Verde acariciou-lhe o cabelo.
Você vai fazer a melhor de todas, não vai?
Vou! - Estrela Vermelha riu. São como abrigos para cada pessoa. É por isso qu
e quase chegam aos joelhos, fazendo como que uma tenda à nossa volta, e as botas a
ltas chegam bem acima.
Não se gela comentou Raio de Sol Sorridente inspecionando a parka que termin
ara de fazer naquele momento.
No conjunto, a roupa pesava por volta de cinco quilos e não deixava um ser hu
mano gelar nem mesmo no mais intenso dos frios da Longa Escuridão, quando o cuspe
de um homem gelava antes de chegar ao chão.
Serei a melhor! - prometeu Estrela Vermelha. Vocês vão ver!
Água Verde sorriu, de olhos fechados para sentir o Sol no rosto.
Sim, veremos. Graças a Sonhador de Lobo.
Ramada Partida bamboleava de um lado para o outro, gozando aqueles momentos
deliciosos dentro da lagoa quente ou mexendo na curiosa crosta amarela que se f
ormava nos lugares em que a água batia nas rochas.
Das rochas expostas pelo recuar da neve colhia-se o musgo, os líquens e as fo
lhas de Inverno, de que se fazia o chá forte e preto. À medida que os ramos de uva d
e urso, de mirtilo azul e de oxicoco iam descongelando, as bagas, preservadas pe
lo frio da Longa Escuridão, eram doces e suculentas quando o seu sumo se derretia
na boca.
As crianças, de olhos brilhantes, corriam, brincavam e riam dentro de água.
A umas cem braçadas da caverna de Garça, Aquele Que Grita, Lebre Saltitante e L
obo Cantante contemplavam a água quente da lagoa evolar-se em nuvens e lançavam, olh
ares furtivos para onde Corre na Luz estava falando com a velha Sonhadora. A tag
arelice de Garça cortava o ar como uma faca.
Aquele Que Grita encheu os pulmões daquele ar já com odor de Primavera e estudo
u o vôo dos corvos que vinham do Sul. Um bando de gaivotas voou para Leste.
Caribu murmurou. Deve estar chegando uma manada.
Nesse caso, também não devem estar longe as malditas moscas. Lebre Saltitante
olhou para oeste e esticou os lábios como se lamentasse as palavras que ia dizer.
E os clãs devem estar reunindo-se dentro de mais ou menos uma lua.
Está falando da Renovação?
Estou.
Você vai?
Lebre Saltitante baixou o olhar e brincou, inseguro, com a ponta da bota nu
ma pedra.
Já cheguei à idade de casar. O único lugar onde posso encontrar uma esposa é na Re
novação, onde se reúnem todos os clãs.
É verdade.
Cometemos os nossos erros, mas a vida continua.
Aquele Que Grita encheu as bochechas e deixou o ar sair devagar.
Erros? Estamos vivos!
Lebre Saltitante, ignorando o comentário, acrescentou:
E quero saber se a minha mãe ainda está viva.
Ela é uma mulher forte.
Bem sabem que Corre na Luz vai ficar aqui disse Lobo Cantante ao mesmo tem
po que observava o jovem conversando, em voz baixa, com Garça. A velha não vai sair
daqui. Eu não... Bem, Corre na Luz ainda não sabe, mas vai ficar aqui.
Aquele Que Grita inclinou a cabeça:
Não me diga que você se tornou um perito em Corre na Luz? E eu que estava conv
encido de que nem sequer o suportava.
A expressão de Lobo Cantante não se alterou.
Você se lembra de quando, nas colinas, Ramada Partida saltou em cima de mim?
Isso não foi nada comparado com o que Garça me disse uns dias depois de chegarmos.
E o que ela disse?
Ela... ela é esperta. Sabe um monte de coisas sobre as pessoas e o modo como
as pessoas funcionam. Ela me disse que... eu... podia ser um grande líder se apre
ndesse aquilo que faz acontecer as coisas. Disse que eu podia vir a ser um dos
maiores líderes do Povo, se me permitisse tal oportunidade, mantivesse a boca fech
ada e pensasse nas coisas antes de agir.
Acho que ela tem razão. Você sempre foi muito esperto, só que é muito emocional.
Lobo Cantante cerrou os lábios.
Tive uma conversa com Raio de Sol Sorridente. Ela pensa que talvez tenha c
hegado a hora de pensar em vez de gritar primeiro.
Aquele Que Grita sorriu.
Nesse caso, meu amigo, será mesmo um líder. E, da próxima vez que estivermos mor
rendo de fome, não voltarei a sentir vontade de te espetar um dardo.
Teve essa idéia?
Oh, tive. No dia em que encontramos o boi almiscarado.
Lobo Cantante baixou a cabeça e ficou olhando para a erva primaveril.
Posso compreender porquê. Eu não era uma boa companhia. Sempre me queixando.
É pena que não seja capaz de fazer as bases das pontas mais finas. Lebre Salti
tante enrolou um tendão molhado em volta de uma ponta que obtivera de Aquele Que G
rita. Franziu a testa. Estou pensando... O Sonho de Lobo. Vocês acham...
Eu não acho nada quando se trata de espíritos disse Aquele Que Grita, coçando o
nariz abatatado. Mas sei uma coisa: Corre na Luz encontrou o boi almiscarado e m
anteve-nos vivos. Trouxe-nos Garça quando nós estávamos prestes a morrer de fome. Lemb
ram-se das palavras dela? Os Sonhos não são fáceis. De olhos postos no leste, acrescen
tou: Mas aqui nada é.
Garça diz que o Grande Gelo fica a cinco dias de caminho.
E ela não sabe de nenhum buraco murmurou, sombriamente, Aquele Que Grita, en
frentando o olhar do primo.
Os Sonhos do Espírito tornam as pessoas malucas disse Lebre Saltitante. Eu..
. eu acho que tudo aconteceu na cabeça de Corre na Luz. Eu acho que ele...
Corre na Luz não inventa coisas protestou Aquele Que Grita.
Eu não disse isso! Lebre Saltitante lançou uma olhadela de irritação a Corre na Lu
z. Eu acho que ele acreditou nisso à princípio. Mas, se houve alguma vez o Sonho de
Lobo, agora está morto.
Só por ele não ser capaz de compreendê-lo não quer dizer que seja falso contrapôs,
pesar de ele próprio já ter posto em dúvida se o rapaz vira de fato o Lobo.
Lebre Saltitante encolheu os ombros.
A reunião dos clãs? E a minha mãe? Porquê ir mais para o Sul quando aqui há comida?
Lá embaixo, nos gelos, não vou encontrar uma esposa para me aquecer as peles.
O coração de Aquele Que Grita bateu de culpa.
Se voltarmos para trás, estaremos marcando Corre na Luz como uma farsa... pa
ra sempre. Ele não será capaz de viver com isso. E o Povo não esquece.
Foi ele que Sonhou. Não fomos nós frisou Lebre Saltitante, batendo com o punho
numa rocha. Um homem não pode ser responsável pelo Sonho de outro. Isso é problema do
outro. Ele que o enfrente como puder e souber.
Ele culpa a si mesmo por não termos avançado num raio de luz do Pai Sol até ao o
utro lado do Grande Gelo resmungou Aquele Que Grita. Detesto vê-lo sofrer.
Tudo bem disse Lebre Saltitante, batendo com a mão na coxa. Não quer vê-lo sofre
ndo. Ótimo. Nem eu. Mas quero dançar na Renovação, ver as moças, descobrir se a minha mãe ai
nda está viva. Encaremos os fatos: lá não há nada. Não há nenhuma passagem mágica para o Sul,
nem campos de caça sem limites. Isto aqui é o fim do mundo! Tudo o que temos está no P
ovo. E temos as nossas responsabilidades: a Dança de Agradecimento, os rituais da
Renovação...
Como é que você sabe que não há uma passagem mágica? Nunca procuramos sequer o burac
o de Corre na Luz. Ao longo do rio, foi o que a visão lhe mostrou frisou Lobo Cant
ante, olhando os outros dois.
Você pode ir caçar. Eu não vou perder a Dança de Agradecimento. É impensável exprim
se Lebre Saltitante.
Impensável! concordou Aquele Que Grita num suspiro relutante.
Lembram-se do ano passado? Não fomos à Renovação e a Longa Luz desapareceu recordo
u-lhes Lebre Saltitante. Talvez tenha sido essa a falta do Povo, não acham?
Bem, se vamos voltar acrescentou Lobo Cantante é melhor que partamos em bre
ve. Se demorarmos aqui, teremos de atravessar o lodaçal. Bem sabem como fica a ter
ra quando descongela. As ervas e os arbustos ficam capazes de fazer-nos torcer o
s tornozelos. Temos de aproveitar enquanto as tempestades da Primavera mantêm o chão
gelado.
E Corre na Luz?
Lebre Saltitante encolheu os ombros:
A decisão é dele. Podemos sempre voltar aqui e ver se...
Garça não gosta de companhia lembrou Aquele Que Grita. Quer que ela fique zang
ada por nós voltarmos aqui?
Lobo Cantante pegou uma pedra e traçou um desenho no chão. Levantou um ombro, i
ndiferente.
Pois eu não quero declarou Lebre Saltitante ver zangada uma mulher com o Pod
er que ela tem.
O maxilar de Lobo Cantante vibrou com a força com que cerrava os dentes. Aque
le Que Grita observava-o com toda a atenção mas via, ao fundo, as nuvens que viajava
m para o Sul.
Há qualquer coisa acontecendo. Não sente?
Lobo Cantante mostrou um ar preocupado:
Que quer dizer?
Quero dizer que... que me sinto atraído para o Grande Gelo, como se talvez lá
haja mesmo um buraco.
Mesmo?
Lobo Cantante, o rosto fino muito sério, acenou afirmativamente uma vez.
Lebre Saltitante mordiscou o lábio. O silêncio prolongou-se até ele dizer:
Vamos à Renovação. Podemos voltar e montar o campo do sopé das colinas, onde a Mul
her Vento mantém o chão limpo de neve. Sabemos que aqui há caça. Poderemos depois dar um
a olhadela.
E os Outros?
Nunca chegarão aqui! gritou, incrédulo, Lebre Saltitante. Por que razão viriam a
qui? Eles...
Atrás da caça, como nós garantiu Aquele Que Grita. E, mesmo que não venham nesta
onga Escuridão, acabarão por vir na próxima ou na seguinte.
Um tremor de apreensão percorreu, em cadeia, os homens. O nariz achatado de L
ebre Saltitante aumentou:
Eu não acredito...
Mas pode acreditar. Aquele Que Grita tem razão. Se nós descobrimos este lugar,
também os Outros podem encontrá-lo.
Lebre Saltitante agitou os braços num gesto de desespero.
Temos de ir à Renovação. É um costume do Povo. É um costume, só isso.
O costume... ecoou Aquele Que Grita, sem argumentos. Nada mais foi dito.

CAPÍTULO 20
As colinas, cobertas de erva, estendiam-se como ondas verdes perante Rapos
a Dançante. Os pântanos, dispersos na paisagem, brilhavam com o orvalho. Dos arbusto
s, nascidos ao longo da passagem das águas, brotavam folhas verdes, e os cheiros p
ungentes dos salgueiros e dos absintos pairavam na brisa.
Raposa aninhou-se no abrigo que escavara, com muito esforço, na encosta da co
lina. Com toda a concentração afastou o desejo de se mover, de redistribuir o peso d
o corpo de modo à circulação voltar dando sensações as seus pés dormentes.
Movimento.
Imobilizou-se, mal se atrevendo a respirar. Os juncos, tão altos como uma pes
soa, obscureciam a sua visão daquele lado da encosta mas, mesmo assim, conseguia d
istinguir uma mancha castanha. Tentáculos de terror começaram a rodear-lhe o coração. Não,
não podia ser o Avô Urso Pardo! Numa manhã bonita e quente como aquela decerto andava
vagueando, ainda com a fome do Inverno, à procura de tudo o que fosse comestível.
O vento continuava a soprar-lhe na cara, escondendo o seu odor de qualquer
caçador potencial.
Esperou, o coração batendo desordenadamente no peito, os olhos colados no casta
nho. Uma cabeça abanou e o vento trouxe um leve resfolegar. Alces! Desde quando el
a não via um alce? Cinco anos? Mais? E isso fora muito mais para oeste, nas terras
que os Outros há muito lhes tinham usurpado.
O medo transformou-se em excitação, fome e fadiga. Os seus longos dedos apertar
am com mais força a haste fina do dardo. Pelo tato, sabia que o buraco do atlatl c
ontinuava na ponta. Talvez fosse hoje. Talvez.
Raposa Dançante recusava-se a recordar a semana em que atirara cedo demais e
o dardo não conseguira cavar um caminho na pele do caribu. Acertando em ângulo, o da
rdo não pudera penetrar e o animal, cheio de medo, fugira. Desta vez, não. Desta vez
teria de fazer um lançamento perfeito.
Esperou e foi revendo na sua memória tudo o que se podia lembrar sobre o alce
. Não era muito. Habitualmente, não percorriam estas estepes altas do Norte. Costuma
vam permanecer a oeste das montanhas, e mais para o sul, onde as terras antigas
tinham ervas com fartura, essas terras abertas abaixo das florestas de que ouvir
a falar mas que nunca vira. Os Outros tinham tirado muita coisa do Povo.
O alce aproximou-se, permitindo-lhe ver, por entre os juncos, alguns pormen
ores. Teria sido o tempo que empurrara uma manada daqueles animais assim tanto p
ara leste? Uma orelha enorme abanou para trás e para a frente, enquanto o animal b
aixava a cabeça.
Passo a passo foi olhando, a energia carregando-lhe os músculos, os pés dorment
es há muito esquecidos.
Agora? Não, espera. Só mais um bocadinho. O alce levantou a cabeça, olhando para
o norte, as orelhas em movimento, as amplas narinas frementes. Um segundo animal
uma cria entrou na periferia do seu campo de visão, seguindo nas pegadas do prime
iro.
A garganta de Raposa Dançante estava seca, a carga nos seus músculos era quase
insuportável, o coração martelava de excitação. Tanta carne! Tanta!
O alce fêmea trotava uns passos à frente, de cabeça erguida. Cheirava a brisa com
o focinho bulboso, tentando compensar a falta de vista. A cria encaminhou-se, a
nsiosa, com medo de uma emboscada, para a nascente, que ficava aos pés do abrigo d
e Raposa Dançante.
Escolhera um lugar perfeito. Naquela altura do ano a água ia e vinha com o So
l e o degelo pelo que a pequena nascente atraía caça como uma ferida aberta atrai mo
scas.
Espere, disse a si mesma. Os animais ficam sempre mais relaxados depois de
beberem. Tenha paciência. A fêmea acabou finalmente por baixar a cabeça para beber dep
ois da cria e, em seguida, recuou para mastigar algumas ervas. E aproximou-se ma
is.
Os alces, apesar de bons focinhos e bons ouvidos, eram fracos dos pulmões. Um
bom lançamento entre as costelas seria o bastante para matá-la. A informação surgiu na
sua mente. Um animal tão grande e uma única fraqueza para explorar. Além disso, tinha
m peles grossas embora não prestassem nem para roupas nem para abrigos.
Como que por magia a fêmea virou-se de flanco, a menos de dez passos de distânc
ia, e começou a tasquinhar a erva. De onde estava sentada, Raposa Dançante quase pod
ia contar os pêlos que davam um ar encanecido às patas traseiras do animal. Agora!
Raposa Dançante levantou-se com suavidade, o braço recuado, os músculos agindo qu
ando usou o atlatl para catapultar o dardo, colocando todo o seu peso no impulso
. O dardo voou certeiro, entrando atrás das costelas flutuantes e avançando para a f
rente.
O enorme alce deu um salto, soltou um berro, um par de coices e voltou a pu
lar duas vezes. A cria baliu, um balido de desolação.
Raposa Dançante colocou um segundo dardo, tomou balanço e lançou-o no momento em
que a fêmea começava a correr com o som cavo dos cascos a baterem no chão. A preocupad
a cria seguiu no seu encalço. Na ação, o segundo dardo errou por pouco a cria.
Não faz mal! Apanhou a mãe! gritou Garra lá do alto. Um tiro bonito, bem fundo.
Concordou com um gesto, sentindo uma profunda satisfação dentro de si, enquanto
ouvia a idosa descer do terraço, fazendo rolar pedras debaixo dos pés.
A fêmea ia agora devagar, já perto das neves que ainda cobriam os sopés das colin
as. Subiu uma pequena elevação e desapareceu da vista.
Raposa Dançante marcou a posição e foi inspecionar o local onde atingira o animal
para ver as marcas. Havia uma pilha de bosta fresca onde a fêmea saltara.
Garra atravessou os juncos e sorriu contemplando as pegadas em forma de cor
ação.
Está vendo disse ela. Bem te disse que este era um excelente lugar. Lembrei-
me de que acampamos aqui uma vez... quando? Há uns dez anos? Há muito. Nunca tinha v
indo tanto para o sul. O meu homem veio. Queria caçar por estas bandas, mas não pare
cia grande coisa. A vegetação era cada vez mais curta à medida que descíamos mais para s
ul.
E Corre na Luz está muito mais para o Sul que isto murmurou Raposa Dançante, p
rocurando com os olhos o horizonte onde as geleiras tornavam cinzenta a terra. B
em, avó, está disposta a uma caminhada? Não deve estar longe, da última vez que a vi ia
muito devagar.
Garra puxou os lábios sobre as gengivas, inspecionando a pista com olhos já can
sados.
Aqui há sangue. Escuro. Sangue do fígado. Apanhou-a em cheio.
Não perdeu nenhuma das suas capacidades.
Nem uma só, filha. Garra soltou uma gargalhada seca. Só os meus músculos é que pe
deram qualquer coisa.
Avançaram enquanto o Sol começava a descer no Oeste.
Ela abrandou aqui decidiu Raposa, olhando para a pista. Formara-se uma poça
de sangue negro. Levantou a cabeça para medir a altura do Sol com a mão. Restavam três
mãos travessas de luz? Ia ser em cima. O pensamento de perder o alce a favor dos
lobos doía dentro de si.
Não está longe acrescentou Garra, apontando. Olha aqui. Sangue com espuma. Ist
o caiu do focinho dela. Neste instante, já está morta.
Ou isso ou já está deitada.
Em qualquer dos casos, está morta. Deitam-se, sangram por dentro, morrem. Já a
apanhamos.
Continuaram a caminhar, os olhos postos na pista e no sangue cada vez mais
abundante perdido pela fêmea, sempre seguida pela cria.
Está se agüentando mais do que eu pensava que agüentaria comentou Garra.
Raposa olhou, semicerrando as pálpebras, para a luz do poente.
E vou agüentar ainda mais.
Estou um tanto surpresa. Nunca esperei que fosse assim tão forte. Sempre pen
sei que estaria de volta ao ba...
Nesse caso, por que veio comigo?
Garra teve um sorriso traquina:
Oh, não sei. Acho que queria ver como você se sairia. Há muito tempo que uma mul
her não deixava o bando para viver sozinha. Um ou outro homem fazia isso de quando
em quando. Mas uma mulher? Garça foi a última, e isso foi há mais de vinte Longas Luz
es.
Raposa abanou a cabeça, desejosa de ter os talentos de Sonhadora atribuídos a G
arça para poder saber se fizera a escolha certa. As coisas iriam ficar mais duras
de agora em diante.
Eu não podia ficar explicou simplesmente.
Não gosta de Corvo Caçador, não é? Começou a abanar a cabeça mas interrompeu o gesto:
Eu... Para dizer a verdade, não sei. Não o odeio de verdade. Fungou em desprez
o. Pode acreditar nisto? Ele me arrastou até Chamador de Corvo para que eu fosse h
umilhada. Serviu-se de mim todas as noites em que o pode fazer, até que você se mudo
u para as minhas roupas. Eu... eu não sei o que pensar dele.
Então, é por isso que está aqui?
Raposa acenou afirmativamente e acabou por sorrir.
E pela primeira vez na minha vida, avó, estou livre!
Se voltar, deixarás de ser.
Raposa Dançante levantou um ombro.
Corre na Luz virá na Renovação.
Se ainda estiver vivo.
Raposa mordeu o lábio sentindo um frio interior.
Sim, ele está vivo.
Vais casar com ele?
Não sei se ele ainda me quer.
Bem, isso você podes descobri. Mas não se esqueça que Corvo Caçador também estará lá.
sim como Chamador de Corvo. As sobrancelhas brancas de Garra franziram-se de pre
ocupação. Por que raio aquele velho desgraçado ainda está vivo quando morreram de frio t
antos outros?
Raposa Dançante abanou a cabeça:
Falta de sorte.
Garra estudou-a pelo canto do olho.
Ninguém estará contra você. Uma mulher tem o direito de fugir de um homem que ab
usa dela. E Chamador de Corvo estava abusando de ti. Todos sabem disso, agora.
Raposa levantou as mãos, indefesa, sentindo o frio da noite que se aproximava
começando a subir da terra como se fosse vapor. A luz do Sol lançava longas sombras
na tundra, arrancando reflexos de prata às folhas novas dos juncos e dos absintos
.
Acha que eu tomei a atitude correta?
Garra soltou um suspiro.
Não me faça essa pergunta, criança. Não posso julgar ninguém Estou aqui com tempo já
mprestado. Foi você que me manteve viva na neve. Tem direito à minha alma, apesar de
ela ainda estar no corpo Mas, para ser honesta, sinto-me curiosa e feliz por co
ntinuar seguindo o meu nariz por mais uns tempos. Se formos comidas por um urso,
paciência. Há honra nisso. Se eu morrer, você rezará por mim ao Povo das Estrelas e iss
o é o bastante para me satisfazer.
É também o suficiente para mim.
Garra mirou-a, muito séria.
Não sei se sabe, mas não vai querer andar assim sozinha por muito tempo. Um di
a desses um homem te apanha. Coloca uma criancinha nessa tua barriga e você vai pr
ecisar de gente à sua volta. É essa a maldição das mulheres. Acaba sempre por haver um h
omem que te espeta a haste. Ou ficam assustados com o teu sangue e não te querem p
or perto... ou te afastam as pernas e trepam para cima de ti.
Abanou a cabeça.
Bem, desde que Corvo Caçador não me descubra, estarei a salvo de ambas comento
u, esperançosa, Raposa, observando o círculo do Sol que desaparecia no horizonte.
Garra estudou, à luz azulada que ficara depois do pôr do Sol, os altos e baixos
do terreno, murmurando:
Para onde foi o alce?
Por ali. Raposa Dançante apontou para onde o chão fora arrancado. Uma poça de sa
ngue ensopava a terra. As pegadas dirigiam-se para uma baixa à direita.
E lá está ela rejubilou Garra, apontando um dedo trêmulo. Raposa semicerrou as pál
pebras e viu a grande cabeça, de orelhas pendentes. A cria estava perto dela e olh
ava ora para elas ora para a mãe prostrada.
Tinha esperança de encontrá-la morta. Quanto tempo ainda teremos de luz?
Já não nos resta muito. Mas... espere. Deixou cair a cabeça. Espere. Ah! Não se l
vantará mais. As velhas pernas de Garra tremiam devido à longa caminhada mas, mesmo
assim, começou a descer a colina. Vamos fazer um fogo e teremos, esta noite, fígado
e coração, garota! Que excelente caçadora você se tornou! Corre na Luz vai saltar de ale
gria por casar contigo.
Raposa Dançante transbordou de alegria. Sim, Corre na Luz teria orgulho nela.
Ao pensar que em breve estaria nos seus braços, concluiu que afinal não seria assim
tão mau ter crianças. Ansiava por sentir os braços dele envolvendo-a, a segurando-a n
as longas noites de inverno.

CAPÍTULO 21
A silhueta de Corre na Luz destacava-se no topo do monte sobranceiro ao va
le de Garça e os seus cabelos, que lhe chegavam à cintura, esvoaçavam ao vento. Enverg
ava roupa de Verão, feita de raposa, e os seus músculos salientavam-se no dourado da
luz do dia. Lá embaixo, o Povo avançava pelos caminhos lamacentos entre os montes d
e neve cada vez mais pequenos. As poças de água pareciam de prata sob o brilho do So
l. Cruzou os braços sobre o peito, numa atitude de defesa, esperando aliviar um po
uco a dor que sentia. Lá vão eles. Sinto-me como uma concha abandonada: vazio e inútil
.
Garça, caminhando com todo o vagar, veio juntar-se a ele, com uma mão a protege
r os olhos do brilho do Pai Sol. O vestido dela, muito limpo, tinha o odor do en
xofre das nascentes quentes.
Você não vai?
Como posso ir? perguntou ele com amargura. Que diriam eles? O Sonho de Lob
o...
Eles sobreviveram recordou ela. Mas estou contente por você não ir.
Porquê?
Ainda não está pronto.
Luz franziu a testa, virou-se para ler aquele rosto enrugado e aqueles olho
s brilhantes.
Como sabe?
Houve uma outra vez em que estivemos olhos nos olhos. Há dezessete Longas Lu
zes. Até mesmo nessa época você me procurou... por uma razão. Sorriu, com os lábios castan
hos escondendo os dentes gastos e em falta. Não, claro que não se lembra... mas fez
isso.
Não estou compreendendo.
Sei que não está. Sondou muito fundo os olhos dele como se lhe procurasse a al
ma. Quer saiba quer não, Sonhador de Lobo, tomou a sua decisão. Você escolheu... a mi
nha via. Tive certeza absoluta desde o dia em que Sonhou com o caribu. Tal como
em mim também em você o Poder existe, remexe na tua mente, obriga-o a enfrentar a lu
z brilhante que tem dentro de si.
O medo encheu-lhe o peito, apertando, picando.
Não estou interessado em Poder. O Poder é para alguém que...
Que o quê?
Que tenha mais valor.
Garça soltou uma pequena gargalhada e abanou a cabeça grisalha.
Você é um tanto dado à covardia, não é?
Luz ficou rígido, atingido em cheio.
Se sou dado a alguma coisa será ao bom senso. Tenho andado a enganar a mim m
esmo.
Gosta da sensação de Sonhar, não gosta?
Claro admitiu ele. A sensação acalmava-o como um fogo quente numa fria noite d
e Inverno.
Mas não gosta o suficiente para dar a tua alma por isso? Prefere ser como um
a criança brincando com fogo, sempre na esperança de não precisar entregar o seu preci
oso eu para saber os segredos da chama.
Eu sou Corre na Luz. Filho bastardo de um Outro protestou ele, cheio de in
dignação. Não sou...
E então? inclinou a cabeça encanecida e levantou uma sobrancelha.
Dentro dele remexiam-se um temor e um desejo de regressar aos velhos tempos
. Gritou em silêncio, implorando pela segurança que sentira antes da Via do Sonho. O
h, estava com fome, então, mas a sua alma estava inteira e sem tormentos. Mas sent
ia-a naquele momento tão fragmentada como a ponta desfeita de um dardo.
Nem sequer sou verdadeiramente um do meu Povo. Não tenho valor algum!
Porquê?
Não estou integrado em nada.
Nem todos se sentem integrados. Faz parte da maldição de se ser humano.
Mas eu estava integrado... antes do Lobo me chamar.
E por que acha que não está integrado?
Luz bateu nervosamente com os pés e tentou sentir o que sentia quando estava
sob as correntes do Sonho.
Agora estou diferente.
Claro que está.
Um nó na garganta quase o não deixava falar.
Mas porquê?
Porque tocou a alma do mundo. Viu de perto o combate das Crianças Monstruosa
s, escutou o estrondoso silêncio das suas armas entrechocando-se e viu a negridão br
ilhante da sua alma refletida nos olhos delas.
Palavras resmungou ele, mas a verdade de tais palavras ressoava profundame
nte dentro dele como um tambor de aviso. Nada mais que palavras.
Sim, você está diferente. Corre na Luz morreu quando o Lobo o chamou do Campo
do Mamute.
Contemplando os rochedos que se estendiam a perder de vista sob a luz brilh
ante do Sol, Corre na Luz deixou de respirar. Estou meio-morto, nisso tem ela ra
zão. Por que é que não consigo viver? Onde está Raposa Dançante? Que me aconteceu? Tudo o
que quero é a mulher que amo, um campo seguro e ver os meus filhos crescer. Será ist
o algo assim tão terrível?
Garça foi colocar-se na frente dele e, pegando uma das madeixas do cabelo del
e que esvoaçavam ao vento, puxou-a para obrigá-lo a olhar para ela.
Ainda não percebeu o que está fazendo?
Não.
Está tentando desesperadamente juntar de novo todos os fios de Corre na Luz
quando devia deixá-los desaparecer para sempre.
Não posso deixá-lo desaparecer! gritou ele, com amargura. Ele sou eu. É tudo o q
ue eu sou. Eu sou...
Bah! Deixa de ser louco. Se isso é tudo o que você é, então, nunca ouviu o chamame
nto do Lobo.
A pressão começou a crescer dentro de si.
Não faço a mínima idéia do que está falando.
Não? A sua voz de velha tornara-se suave, confortante. Eu sei exatamente com
o está se sentindo, dilacerado entre este mundo e o mundo do Sonho. Já estive assim.
Felizmente, eu tive Ramada Partida para tomar tal decisão por mim. Passaram-se an
os enquanto me esforçava para aprender a abrir as portas da minha alma. Comigo a e
nsiná-lo, aprenderá num décimo desse tempo.
Não quero os seus ensinamentos.
Um sorriso sulcou o rosto dela, um sorriso de compreensão e simpatia.
Prefere continuar sendo um amador toda a sua vida, hein?
Talvez.
Faço-lhe um aviso... acabará como Chamador de Corvo, fora de tudo, incapaz de
deixar o Poder em paz, perdido entre a verdade e a falsidade.
Não me interessa! gritou ele, rouco, virando-lhe as costas. A escolha é minha.
Isso não tem qualquer discussão.
Luz escutou os passos dela afastarem-se no caminho, de regresso às nascentes
quentes e engoliu convulsivamente, o coração martelando no peito. Olhando ao longe,
podia ainda ver o Povo, pequenos agora, pequenos pontos em movimento na planície b
rilhante, procurando o caminho entre pilhas de rochas glaciares cobertas por man
tos de neve.
A vontade de segui-los gritava, vazia, no seu peito. Aquele caminho conduzi
a ao mundo que lhe era familiar, conduzia ao Povo e ao conforto de saber o seu l
ugar na comunidade. Aquele caminho conduzia ao riso, ao calor das fogueiras na n
oite, às velhas histórias. O derradeiro elo com a segurança que sempre fora sua estava
desaparecendo com o apagar das pegadas deles na neve.
Demais. Não posso jogar tudo isso fora!
Resoluto, pegou os dardos e os sapatos de neve que deixara no chão e correu,
correu atrás do Povo. Uma mão de passos depois estacou e olhou para trás, para a colin
a de Garça. O medo correu-lhe pela espinha.
Não gritou ele a si mesmo quando o desejo de voltar o assolou. Eu não sou o es
colhido.
E retomou o caminho, amordaçando o que sentia no coração. Mas não havia entusiasmo
algum nos seus passos.
A noite apanhou-o em campo aberto. Farripas de nuvens, no horizonte distant
e, ardiam em tons laranja. Sozinho. Aninhou-se num nicho de uma rocha onde o cal
or do Pai Sol irradiaria durante parte da noite. Tentou dormir, sentindo-se muit
o infeliz.
Os Sonhos deixaram-no inquieto, imagens do Sonho de Caça, do vale verdejante
cheio de caça, das últimas respirações esterterosas de Lobo. Provocavam-no e perseguiam-
no como os braços abertos de uma amante. Na sua língua, sentia o travo amargo da car
ne de lobo. No Sonho, o Lobo vinha, por entre a vegetação luxuriante, e olhava-o de
focinho levantado:
Você rejeitou minha promessa?
Não! Não, eu... há alguém melhor, alguém que pode...
Eu o escolhi.
Não!
Como se tivesse soado um trovão acabou por acordar de repente, na escuridão. O
suor escorria-lhe pelo peito. A aspereza da rocha e o mordente do frio penetrava
m nas suas botas compridas molhadas.
Tenho medo! murmurou, com lágrimas aflorando nos olhos. Tanto medo. Que está a
contecendo comigo?
O vento trouxe um odor pungente e cortante. Encostou-se para trás, apoiado no
s cotovelos. Na noite, um lobo uivou e logo um coro o acompanhou.

CAPÍTULO 22
Uma brisa forte encapelava as águas do rio em pequenas ondas de crista branc
a e agitava as franjas das mangas de Fogo de Gelo. Do seu lugar, sobre a rocha a
lta, contemplava a margem do outro lado do Grande Rio. A vegetação verde-azulada ata
petava as colinas. Mais para Leste podia ver o branco do Grande Gelo. Atrás dele o
s cumes cobertos de neve das grandes montanhas tocavam nos céus. Chegara o coração da
Longa Luz. A vida enchia a terra.
Bandos de gansos cobriam o céu azul e as suas formações em V estendiam-se, infindáv
eis, para o Sul. As aves sobrevoavam as águas pescando os peixes abundantes. Um de
sejo fundo enchia-lhe o peito enquanto lhes seguia o vôo.
Há quatro dias que você está observando os gansos da neve comentou Pederneira Ve
rmelha, aproximando-se por trás dele.
Fogo de Gelo nem sequer se virou.
Os pássaros são coisas maravilhosas. Imagine só o que eles devem ver lá de cima. D
eixou que o olhar se fixasse no horizonte ao sul. A chama continuava, sutil, ins
istente.
São também barulhentos. Gritam, roncam e são estúpidos. Se meter uma pele de ganso
cheia de palha à vista deles, voam direitinho para a sua rede.
Fogo de Gelo inclinou a cabeça para estudar o amigo com um olho meio fechado.
Espero que tenha tido um motivo para vir arruinar a minha meditação.
Você não come há dois dias. Água Da Lua está ficando nervosa por causa da sua saúde.
A sua filha está sempre nervosa por causa da minha saúde. Até leva a pensar que
eu sou vinte anos mais novo e ela tenciona criar os meus filhos.
Pederneira Vermelha abriu as mãos e manteve uma expressão neutra no rosto.
Ela não precisa que você seja vinte anos mais novo.
Fogo de Gelo tornou a observar os bandos de gansos que voavam para o Sul.
Outrora tive uma esposa... e depois disso uma visão. São mulheres mais que suf
icientes para uma vida inteira.
Pederneira Vermelha mudou de posição e as botas fizeram ranger a gravilha.
Eu sei. Sentiu-se vencido. Não estava falando sério sobre Água Da Lua. Mas ela f
aria isso, bem sabe. Ela o adora desde que era pequenina e você a atirava ao ar e
lhe contava histórias.
Riu com a recordação da menina, de olhos muito redondos, gritando, os cabelos s
oltos, quando ele a atirava ao ar e a voltava a apanhar.
Ela devia procurar um jovem.
Já chega de Água Da Lua. Você anda preocupado. Pederneira Vermelha instalou-se n
a rocha, um pouco abaixo do ponto de observação de Fogo de Gelo. O que está acontecend
o, Ancião-Mais-Respeitado? O que vê daqui? Que nós devemos saber?
Fogo de Gelo enlaçou os dedos em torno do joelho e reclinou-se para trás, o olh
ar ainda pregado no Sul. Até daquela posição era capaz de ver as colinas que subiam. O
enorme rio, ladeado de gravilha, era de um azul profundo, e apresentava, aqui e
ali, espuma branca dos rápidos criados pelas rochas submersas. Desde há longos dias
que orava ao Grande Mistério pedindo uma visão, uma explicação da tensão que crescia, vio
lenta, no seu peito mas não tivera qualquer resposta.
Ainda não posso dizer. Murmurou, colocando sobre o peito uma mão curtida pelo
tempo Só sinto aqui. A longa espera está quase terminando, meu velho amigo.
E isso é bom?
Fogo de Gelo teve um leve sorriso.
Não, mas também não é mau.
Então?
A via do Grande Mistério está se abrindo para nós. Boa ou má, quem sabe? O que int
eressa é que as coisas serão diferentes e nós ficaremos mudados para sempre.
Pederneira Vermelha escutou, abanando de leve a cabeça, uma expressão cética no s
eu rosto enrugado.
Quando você fala dessa maneira, eu ouço as suas palavras... mas nunca tenho ce
rteza do que você quer dizer.
Fogo de Gelo teve um sorriso caloroso. Colocou uma mão no braço do amigo e come
ntou:
Nem eu tenho, habitualmente. E isso não importa. Não podemos mudar nada, mesmo
que soubéssemos.

CAPÍTULO 23
Com desespero, afastando o medo, Aquele Que Grita segurou-se. Os seus dedo
s escorregaram na madeira quando o búfalo rodou, girando com uma velocidade incrível
. Tentou manter-se agarrado apesar dos músculos quase arrebentando e dos dedos sol
tando-se das mãos. O coração batia com força e o mundo saltava e girava, desfocado, quan
do os seus pés perderam o contato com o chão.
O seu corpo bateu no chão quando o búfalo escorregou no gelo. A haste do dardo
partiu-se na mão e o ar dos pulmões saiu, forçado, entre os seus dentes.
Aquele Que Grita ficou atordoado, incapaz de se mover, os olhos desmesurada
mente abertos de horror. O búfalo colocou-se de pé, com os cascos atirando cristais
de gelo contra ele. Viu os olhos do animal, cheios de dor e raiva, quando o búfalo
abanou a cabeça lançando ao ar, num arco, baba cheia de sangue. Um bafo quente cond
ensou-se no ar quando o animal contraiu os músculos das espáduas e das pás.
Ele vai matar-me! Aquele Que Grita ficou olhando, incapaz de se mover, enqu
anto o búfalo corria para ele, a cabeça pronta para espetá-lo num dos longos cornos ne
gros.
Abriu a boca para gritar.
Nenhum som saiu.
O búfalo rodou no último momento e as poderosas patas traseiras encheram-no de
pedras e neve suja. Outro dardo se cravara nele, num ângulo estranho, e o flanco d
o animal ondulava como se procurasse ver-se livre daquela mosca viciosa.
Ehh! Ooooh! gritou alguém. O búfalo recuou, os cascos molhados dançando e brilha
ndo, negros, na frente do nariz de Aquele Que Grita. Outro passo para trás e...
O búfalo deu um salto quando outro dardo lhe penetrou no flanco. Aquele Que G
rita ouviu o grunhido do animal quando sentiu a dor da pedra afiada entrando na
pele. Uma enorme massa, negra e castanha, que estava por cima dele, vacilante, c
om uma respiração ofegante.
Aquele Que grita engoliu, procurando meter ar dentro dos pulmões. Virando a c
abeça viu o sangue que escorria entre as patas da frente do animal. De repente, a
baba do animal apareceu entre as patas. O animal inclinou-se para um lado.
Conseguiu respirar, inspirando ruidosamente. Ouviu os cascos do búfalo batere
m no chão para se virar recordado da sua presença. A criatura vacilou, procurando eq
uilibrar-se.
De um dos lados soaram vozes e gritos mais desesperados, que ecoavam na tar
de fria, procurando distrair o animal.
Aquele Que Grita tentou levantar-se apesar do manto de dor que cobria todo
o seu corpo, sem deixar de olhar o animal que, por causa da dor, avançava devagar.
O búfalo, com os flancos arquejando em cada respiração sibilante. A enorme cabeça e
rgueu-se e o pesado corpo estremecia à medida que mais dardos atingiam o alvo.
Aquele Que Grita agarrou a haste quebrada do seu dardo e levantou-a.
Olhos cheios de ódio ficaram-se nos seus quando o búfalo apontou o corno compri
do. Aquele Que Grita enfiou a haste no olho louco do animal, fazendo-o vacilar.
Com um grito, Aquele Que Grita rolou e o enorme corno espetou-se no chão gela
do, cravando a sua parka ao solo.
Aquele Que Grita encolheu-se todo, à espera da dor.
Mexeu-se com a força que o medo emprestava ao seu corpo dolorido. Nada aconte
ceu.
Que cena espectacular!
Aquele Que Grita abriu os olhos para aquela voz calma e viu Lebre Saltitant
e, debruçado sobre si e abanando a cabeça.
Nunca vi nada assim acrescentou Lobo Cantante, fingindo espanto, antes de
lamber os lábios. Parece que está morrendo de falta de sangue.
Aquele Que Grita, furibundo, limpou a porcaria e o sangue da cara. Começou a
levantar-se para logo ser recordado de que ainda estava preso no corno do búfalo.
O enorme animal voltou a estremecer quando Aquele Que Grita soltou mais um grito
.
Aqui está a ponta. Aquele Que Grita estudou o dardo que tirara do flanco do
bisonte. Este foi o primeiro que eu lancei. Estão vendo? A ponta apanhou uma coste
la e partiu-se. Levantou um pedaço da costela para mostrar a todos onde a ponta se
embebera no osso e se partira. Depois apontou o resto da ponta, tornada romba p
elo impacto.
Bem, quando acerta numa costela não há nada a fazer. É um risco sempre presente.
Mas este pegou no segundo dardo não acertou em nenhuma costela. Atirei, acertei e
o búfalo virou-se. Remexeu os lábios enquanto estudava a ponta ainda unida a um bom
pedaço da haste
Coçou a cabeça.
Como não sabia o que fazer quando aqueles cornos se viraram para mim, agarre
i o dardo. Imaginei que era o mais seguro. Mas o dardo não se enterrou todo. É muito
grosso no lugar em que a ponta está atada à haste. Tem um nó tão grande que a ponta não p
ode entrar mais.
E então? perguntou Água Verde. Que vai fazer quanto a isso?
Umas roupas novas. Lebre Saltitante riu, tapando o nariz e apontando para
a parka suja e rasgada de Aquele Que grita. O cheiro do sangue do búfalo ainda pai
rava no ar.
Aquele Que Grita resmungou e lançou-lhe um olhar furioso.
Vou fazer uma ponta melhor.
O Povo desde sempre que faz as suas pontas assim disse, acalorado, Lobo Ca
ntante. É assim que as pontas devem ser feitas.
Porquê?
Porque sim, ora porquê!
Aquele Que Grita afagou, pensativo, o queixo e olhou para a ponta.
O problema está na ligação. Muito volumosa.
Use uma haste mais fina.
Nesse caso, fica fraco demais argumentou Aquele Que Grita. Os nossos dard
os já se partem com muita facilidade. O salgueiro e o vidoeiro anão são quebradiços...
Tem de usar toda essa corda insistiu Lebre Saltitante. Se não fizer isso, a
ponta escorrega para o lado quando bate.
Uma ponta mais fina? Aquele Que Grita virou-a para o fogo e, com um só olho
, avaliou o comprimento da lasca de pedra.
Não é essa a maneira do Povo fazer as pontas declarou Lobo Cantante. Já é ruim qu
Corre na Luz esteja agitando as coisas. Agora, você quer mudar a ponta do Povo?
Uh-huh murmurou Aquele Que Grita, perdido nos seus pensamentos e observand
o a pedra.
Vai para algum lugar?
Corre na Luz, sobressaltado, agarrou os dardos e olhou, apreensivo, para as
rochas sobranceiras.
Se eu fosse o Avô Urso Pardo já o teria para meu jantar. Ramada Partida soltou
um som com a boca desdentada. E, pelo seu ar, um pobre jantar. Você se considera
um caçador? Andando sozinho, de olhos no chão?
Luz soltou o ar dos pulmões, de alívio, e sentiu o medo esvair-se dos seus múscul
os tensos.
O que você está fazendo aqui?
Eu? E o que você está fazendo aqui? retorquiu ela, descendo pela rocha polida.
Ele não respondeu mas estendeu as mãos para ajudá-la. Pareciam leves como um pássaro na
s suas. Quando chegou ao chão ela mirou-o com toda a atenção dos seus olhos castanhos.
Vai voltar? perguntou ele, receoso de que a resposta fosse uma parte da vi
são.
Doem-me as pernas. A lagoa de Garça fez-me sentir dez anos mais nova. Além dis
so, já estive em muitas Renovações. Já dancei tantos agradecimentos que, se o Pai Sol não
souber ainda o que sinto, jamais o saberá. Já nada têm para me dar.
Luz observou as madeixas grisalhas que o vento agitava.
E você? Para onde ia?
Hesitou, sem saber verdadeiramente se sabia, uma folha na tempestade, execu
tando piruetas segundo o desejo de algum Poder desconhecido.
Eu...
Eu diria que estava seguindo o rastro do Povo disse ela, olhando-o inquisi
doramente. Uma longa caminhada essa, muito mais longa do que esta velha pretende
fazer.
Luz baixou o olhar, as mãos fazendo tanta força nos dardos que os nós dos dedos e
stavam ficando brancos.
Você desistiu? Não conseguiu suportar a idéia de tornar poderoso o teu Sonhar? V
ai lamber os pés de Chamador de Corvo? Ser a chacota de todos? abanou a cabeça, desi
ludida. O Lobo devia ter escolhido melhor.
Aquilo que eu faço, avó, é assunto meu.
Acho que sim. Enxotou-o com os dedos. Nesse caso, desaparece. Eu tenho coi
sas mais importantes para fazer. Ainda não vivi toda a minha vida. E retomou o seu
caminho.
Corre na Luz cerrou os dentes, o coração batendo descompensadamente. Dando meia
volta, correu para apanhá-la.
Continue resmungou a anciã. Vá ajoelhar-se aos pés de Chamador de Corvo. Eu esto
u ótima. Já andava por estas planícies muito antes da tua mãe sugar uma teta, ou mesmo a
mãe dela.
Mas eu...
O quê? Desembuche, rapaz! Há tanto tempo que a Mulher Vento me sopra nos ouvid
os que eles já ficaram entupidos.
Nunca conheci a minha mãe disse ele, desajeitado, querendo apenas que ela co
ntinuasse a falar, necessitando de ver reforçada a decisão que torturava o âmago da su
a alma.
Você nunca... Claro que não! Ela morreu dando à luz ao insolente do teu irmão. Até n
isso ele fez errado. Nasceu com os pés para a frente. Voa Como Uma Cegonha tentou
virá-lo mas, bem... Já sabe. Estas coisas acontecem. Já nessa época ele arranjava proble
mas. Agora, que está mais velho, problemas maiores consegue. É assim que funciona. S
empre pensei que você poderia temperar a violência dele, mas acho que nunca consegui
u.
A violência dele foi sempre mais poderosa que a minha...
Oh, bem o sei. Como o sabia a velha Gaivota. Ela adorava a sua gentileza,
você a fazia lembrar a filha que perdera. Sabia que ela tinha perdido uma filha po
uco antes de recebê-los?
Luz abanou a cabeça, impaciente.
Sim, uma menina que teve um nascimento esquisito. Parte das costas dela es
tava aberta. A medula estava à vista, sem pele nem osso por cima. Uma coisinha fei
a, essa menina. Nunca mexeu as pernas. Morreu muito depressa, mas não antes de Gai
vota ter aprendido a amá-la. Como ela ficou feliz por ter a vocês os dois! Preencheu
uma necessidade que tinha e serviu para dar uso ao seu leite. Ramada Partida so
ltou uma gargalhada e deu uma palmada na coxa. Às vezes, até fazia uma careta quando
seu irmão a mordia. Os dentes nasceram-lhe cedo. Acho que ele ainda os tem... mas
seria melhor chamar-lhes de presas.
Corre na Luz abanou a cabeça, compreensivo.
Ele mordeu-me uma ou duas vezes.
A anciã soltou nova gargalhada e no seu rosto permaneceu um sorriso:
Mordeu a todos pelo menos uma vez.
Ramada Partida começou ele, pouco à vontade. Sabe que Corvo Caçador e eu somos a
penas meio Povo?
A anciã encolheu os ombros e colocou-lhe uma mão no ombro.
Alguns de nós estavam convencidos disso, mas a tua mãe nunca disse nada e nós não
damos importância a isso.
Como podem não dar importância a isso? perguntou ele, incrédulo. Eles são nossos
nimigos!
Porque os dias mais felizes de todos são sempre os dias em que o Povo recebe
novos bebês. Mantêm-nos vivos. Vocês pertencem a nós, não a eles. Nós queríamos vocês.
O rapaz inspirou fundo, lutando consigo mesmo, enfrentando os medos que rol
avam lá dentro, soltando um grito silencioso de confusão. Ramada Partida observou-o
pelo canto do olho.
Há quanto tempo isso te incomoda?
Corre na Luz acenou com uma mão, negligentemente.
Desde que Garça me contou.
Ora, esqueça isso. Quando você atingiu as cinco Longas Escuridões e uma alma hum
ana veio viver dentro de ti, foi uma alma do Povo, não uma alma de um Outro.
Mesmo assim, corre nas minhas veias o sangue dos Outros.
Se isso o incomoda, pense na coisa como uma ponte entre dois mundos.
Uma ponte entre... As palavras fizeram eco na sua mente: ponte... entre...
mundos.
Claro. Um dia teremos de enfrentá-los. Torne útil esse teu sangue. Tal como a
velha Gaivota fez ao seu leite.
Corre na Luz vacilou, a mente num desvario. As imagens aumentaram: uma teia
de sangue saltou do seu peito, cobriu o campo dos Outros, tocou o homem alto co
m cabelo prateado, enredando-o. O homem virou-se de repente e ficou olhando-o, s
em respirar.
A teia vermelha exclamou. Eu vi fragmentos...
O quê? perguntou, incisiva, Ramada Partida.
A visão desapareceu e ele abriu muito os olhos e sentiu o vento gélido.
Uma teia, que se espalha como...
Que quer isso dizer?
Não sei. Apareceu.
Como é que você irá aprender o que querem dizer essas visões?
Um abismo vazio abriu-se no peito. O que ela estava perguntando era se ele
alguma dia assumiria a responsabilidade pelas visões, se alguma vez iria olhá-las be
m no fundo, até às raízes.
Sabe porquê, não sabe, não é verdade? Eu já vi Sonhadores, dúzias de Sonhadores!
Porquê?
O queixo dela ruminou agitando as bochechas flácidas. Acenou a cabeça, os olhos
abertos:
Tem a cabeça cheia de vento. Vento por todo o lado, como enxames de moscas n
as costas do caribu.
E como me livro delas? perguntou, irritado, sentindo ainda farrapos da visão
muito perto da consciência.
Cuidado com a língua, jovem admoestou a anciã. Não foi isso que te ensinamos.
Amuado, ele baixou os olhos e sentiu-se corar de vergonha.
Como você aprendeu a caçar? Garra de Foca levou-o com ele. Escutou as histórias.
.. observou os animais. Teve professores.
Professores... suspirou, fechando os olhos, sentindo os tentáculos do destin
o a cercarem-no, tão apertados que mal conseguia respirar.
Claro, professores. Garça ofereceu-se, não ofereceu? Assentiu com um gesto de
cabeça. Ela é a melhor. Aquele louco do Chamador de Corvo? Uma vergonha, um farsante
que se mantém naquela posição, inventando as coisas. Oh, claro que sara, mas não cura.
Entende o que estou dizendo, rapaz? Como, por exemplo, no caso do velho Rocha Ci
nzenta. Lembra-se de quando os dentes dele apodreceram? Qualquer simplório é capaz d
e fazer um buraco para o pus sair.
Mas o Povo ainda o escuta.
Ramada Partida soltou um suspiro e agitou uma mão, irritada, como se fosse um
a garra.
Já se esqueceram de como são os Sonhadores de verdade. Garanto, rapaz, que já não
temos Sonhadores. Não como tínhamos antigamente. Talvez o mundo esteja mudando, mas
o Povo esqueceu... e os velhos que se lembram são cada vez menos. Esses rebentos n
ovos, como Corvo Caçador, nem sequer sabem quão poderoso pode ser um Sonhador!
Poderoso... mais poderoso que a Guerra das Crianças Monstruosas. Ramada fung
ou em concordância.
Você sabe, hein? E, apesar disso, ainda está atrás do bando para se meter no mei
o da reunião do clã e fazer de conta que nada aconteceu? Isso nunca acontecerá.
Abraçou-se com desespero a si mesmo, como se receoso de desaparecer no vazio
que se expandia no seu peito.
Eu sei. E estou me sentindo em pedaços.
Ramada soltou um som com os lábios:
Bem, faça qualquer coisa a esse respeito. Só tem duas escolhas possíveis. Esqueça
tudo, volte para o bando, arranje uma esposa bonita e bem disposta... e viva na
esperança de que os Outros nunca te furem as tripas com um dardo. Ou siga o chamam
ento do Lobo... salve o Povo.
E perco a mim mesmo.
Não, jovem idiota. Encontra a si mesmo! Já é tempo de deixar de ser idiota. Pare
ce uma raposa com duas tocas de coelhos sem saber qual delas deve vigiar. Escolh
a. Agora.
Ramada Partida meteu as mãos nas ancas e olhou-o com firmeza.
Nunca vai ser mais simples. Só mais difícil. Adia, adia e, sem perceber, está co
m uma esposa e quatro filhos sem nunca ter assumido a sua responsabilidade... e
incapaz de a assumir.
Os pensamentos dele eram uma espiral de confusão. A anciã observava-o com um br
ilho no olhar. No horizonte distante, uma matilha de lobos corria para o Sul. So
rriu, sentindo dentro do seu peito o bater apressado dos corações deles e vendo, por
um instante, o mundo pelos olhos deles. Tentou engolir mas a saliva ficou-lhe p
resa na garganta como um pedaço de carne crua.
Vamos, avó pronunciou as palavras devagar, sentindo a sua vida desenraizada,
soprada pelo bafo frio da Mulher Vento.
Ramada Partida soltou uma gargalhada seca e bateu-lhe no ombro. Começaram o c
aminho de volta.

CAPÍTULO 24
Fogo de Gelo estremeceu, sentindo mãos no corpo e vozes que penetravam lenta
mente na névoa do seu espírito.
Acorde! gritou alguém no seu ouvido. Pederneira Vermelha. Mais ninguém tinha a
quela voz roufenha.
Piscou os olhos e viu peles, pés e joelhos sobre o chão macio.
Que aconteceu? A sua voz estava abafada e rouca. Pederneira Vermelha teve
de se dobrar para ouvi-lo.
Fora da sua visão borrada podia ver o céu e as nuvens brancas. O Sol estava num
ângulo baixo era de manhã cedo. Pelos sons de crianças e mulheres que ouvia, o campo
estava atrás de si. Em volta de si alguns absintos raquíticos agarravam-se ao chão cob
erto de pequenas pedras. O céu, a sul, parecia laranja, como filamentos vermelhos
de... teia...
Pederneira abriu os braços, sem resposta.
Não sei. Estavas indo para a colina e você gritou. Todos nós o vimos rodar e olh
ar para o Sol. Depois gritou, levantou os braços e agitou-os como se estivesse rod
eado de moscas ou coisa parecida.
Como quando empunha os dardos numa batalha explicou Morsa, com um rosto re
ceoso. Sabe... com fúria.
Fogo de Gelo ficou tenso quando a visão lhe voltou à mente.
Sim soltou ele, recordando-se dos filamentos vermelhos como sangue que o t
inham perseguido. Estou me lembrando.
Conte-nos implorou Pederneira Vermelha. O que você viu?
Fios vermelhos, como filamentos de uma teia, que vinham rodando do Sul. O
Sonhador Inimigo estava lá, tecendo a teia... como se fosse uma estranha aranha.
Estão fazendo mágica contra nós? inquiriu Cauda de Carneiro, batendo com os dard
os no chão.
Vão desejar não o ter feito! acrescentou, com veemência, Relincho de Cavalo. Ele
s vão ver! Vão ver o que o Povo do Mamute faz àqueles que...
Não interrompeu Fogo de Gelo, que se esforçava por levantar-se ao mesmo tempo
que examinava os rostos que o rodeavam. Não era mágica contra nós. A princípio tive rece
io. Receio da teia que ele tecera. Mas no fim... sim, no fim enrolou-se em volta
de mim. Arrastando-me, arrastando-me para o Sul para... para... Ficou perplexo
e abanou a cabeça.
Era outra vez a Vigilante? Foi ela que te fez isto? Pederneira Vermelha ab
aixou-se para o olhar bem nos olhos.
Não, não foi a Vigilante. Não a senti.
Como foi? Pense. Recorde-se, velho amigo pediu Pederneira Vermelha.
Fogo de Gelo olhou para ele, abanando a cabeça.
Não consigo... não consigo lembrar-me de mais. A visão parou nesse instante.
Sul. Relincho de Cavalo olhou em torno de si com um sorriso de predador. P
ara o Inimigo.
Fogo de Gelo olhou-o e sentiu dentro de si fluir uma estranha premonição.
Cuidado, Relincho de Cavalo, as coisas podem não acontecer como você imagina.
Não quando o Poder lança os seus tentáculos em torno das vidas e das almas dos homens.

CAPÍTULO 25
Ramada Partida e Corre na Luz subiram a custo, ajudando-se, até o monte de G
arça. A velha Sonhadora, sozinha, observava-os enquanto subiam o caminho ondulante
e pedregoso. Os seus olhos estavam pregados em Corre na Luz.
Quando eles já estavam próximos, dirigiu-se a Ramada Partida:
De volta? Gosta assim tanto de castigos, velha tonta?
Ora, cala essa boca! murmurou Ramada Partida, torcendo o pescoço fino para v
er a Sonhadora. Mate-me, se é isso que quer, mas faça-o quando eu estiver nas suas n
ascentes quentes molhando os meus ossos doridos.
Garça soltou uma gargalhada estridente, os olhos cheios de brilho.
Vá se molhar. Irei matá-la quando tiver tempo.
Primeiro, venha para conversar pediu Ramada Partida com ternura. Já ninguém se
lembra dos costumes antigos como nós nos lembramos. Sinto saudades.
O sorriso de Garça tornou-se terno e baixou o olhar.
Assim farei.
E ensine este rapaz o que tem a fazer com as imagens que flutuam à volta da
sua cabeça. Ramada Partida espetou um polegar nele. Vai ficar maluco se não aprender
depressa.
O coração de Corre na Luz bateu descompassado ao encontrar os olhos de Garça. Ard
ia neles uma chama que não compreendia, mas que lhe fez contrair as entranhas.
Você não é mais Corre na Luz, sabia?
Sim concordou ele com ansiedade. Agora já sei.
Na noite seguinte sentou-se, pouco à vontade, em frente da fogueira de Garça. A
s paredes do abrigo brilhavam fracamente à sua volta. Os crânios colocados nos canto
s pareciam olhá-lo com suspeita como se tivessem dúvidas sobre a sua resolução. Incomoda
do mudou de posição, dobrando os joelhos e apoiando neles o queixo. Há mais de três hora
s que estava ouvindo a velha Sonhadora. Ouvindo muito mas compreendendo pouco. D
o outro lado do fogo, Ramada Partida estava sentada preparando uma lebre, apanha
da há pouco numa armadilha, para o jantar.
Magia? O mundo está cheio dela. Mas não é do tipo que pensa salientou Garça. Eu n
sou capaz de mover uma rocha. Não sou capaz de soprar vida nos mortos. Existem reg
ras que mantêm tudo em harmonia. Um Sonhador tem de mergulhar no mundo... deixar q
ue o mundo o engula até nada mais restar dele. Inclinou a cabeça e olhou-o com toda
a seriedade. Está me ouvindo?
Estou.
Que pensa que acontece quando chama os animais e eles vêm?
Ouvem-me a chamar e...
Errado. Garça inclinou-se para olhá-lo nos olhos. Ele engoliu nervosamente.
Então, como é?
Eles não te ouvem. Ouvem as suas próprias vozes chamando-os para morrerem.
Que quer dizer? perguntou ele, confuso, remexendo o fogo com um ramo compr
ido.
Estou dizendo que a regra básica de toda a magia, ou de todo o Sonho, é de que
existe apenas Uma Vida. Num movimento rápido e violento, Garça atirou outro pedaço de
lenha para o fogo. Saltaram faíscas no ar.
Os olhos dela brilhavam enquanto aguardava, pensativa, que ele respondesse,
mas o rapaz sentia tal agitação nas entranhas que nem conseguia pensar em nada. Até q
ue disse:
Continue.
Já viu uma mãe atacar o Avô Urso Branco com uma pedra quando ele apanhou um dos
seus filhos.
Ele acenou que sim.
Por que faz ela isso?
Para salvar a criança.
Garça cuspiu desdenhosamente para no lume.
Pelo Grande Mamute, não!
Ele encolheu-se. Aonde queria ela chegar? Analisou os seus próprios sentiment
os e pensamentos.
Eu não... entendo.
Ela faz isso para se salvar a si mesma.
Mas o Avô Urso Branco tem o filho dela.
Um filho é o Eu sussurrou ela, obscuramente. Às vezes, as pessoas tocam a Uma
Vida... sentem-se ligadas de forma inseparável a outras, ou a lugares. É disso que s
e trata: nunca deixar que o elo desapareça. Abriu os braços e perfurou-o com o olhar
. Foi isso que fez os caribus vir até nós. Por um instante, você tocou o Todo e, quand
o chamou, pedindo-lhes que se oferecessem, eles ouviram as suas próprias vozes e v
ieram. Oferecendo o sacrifício para que eles próprios pudessem viver.
Se existe apenas Uma Vida, então, por que é que nem todos a sentem? Porque não e
stamos nós sempre em contato com esse Todo?
Garça olhou para ele, mal percebendo a presença de Ramada Partida, que assava a
lebre.
Os pensamentos interferem. As pessoas bloqueiam as suas mentes contra o So
nho, tornam-se descrentes, fecham-se à voz do Todo. Se se ouvissem a si mesmas pod
iam ouvir o Todo, mas uma pessoa tem de rasgar as paredes que construiu na sua m
ente antes de estar livre para ouvir. A maior parte das pessoas não consegue. É difíci
l demais. Em vez disso, enchem as mentes com besteiras sem importância, coscuvilhi
ce, pensamentos de vingança.
Mas as criaturas são diferentes Sonhador De Lobo abriu os braços. Basta ver a
forma que têm. Ninguém mais usa dardos para caçar. Ninguém mais se aquece com o fogo.
Garça estendeu a mão e tirou da parede um crânio enegrecido pelo tempo.
Este é humano. Pegou outro. Este é urso. Ambos têm dentes, ambos têm os mesmos oss
os... só que moldados de forma diferente. Dois olhos. Está vendo? Um nariz. Se tirar
a pele de um urso ele parece com um homem. Os pés têm os mesmos ossos. Pelo que, fo
ra a pele que os cobre e as diferentes formas dos ossos, todos os animais partil
ham certas coisas. Você tem unhas. Um urso tem garras. Um caribu cascos. É esse o pa
drão. Sempre igual.
Ramada Partida pigarreou, perturbando a tensão. Tirou uma madeixa de cabelo e
mbranquecido do rosto enrugado e murmurou:
Nas lendas do Povo todas as criaturas foram outrora estrelas, cada uma del
as formada da mesma poeira estelar. O Pai Sol atirou-nos para a Terra e soprou e
m nós a vida. O Povo era o pior de todos. O Pai Sol esqueceu-se de nos dar uma cob
ertura de pêlo. O caribu permite-nos que usemos a sua quando lhe comemos a carne.
Uma oferta a um irmão. Não temos a tromba do mamute mas temos as mãos para fazer a mes
ma coisa.
Sonhador De Lobo piscou os olhos, pensativo.
Eu me lembro, avó.
Garça agitou um dedo na frente da cara dele.
Lembra? Que há dentro de si que o faz lembrar?
Ele apontou logo para o estômago:
O meu fígado. Eu...
Bah! resmungou ela, cortando o ar com um punho. Eu sei que o Povo acredita
nisso mas estão errados. É o seu cérebro que lembra... e que Sonha.
Que a leva a pensar que é o cérebro? Garça inclinou-se, os lábios esticados.
Já viu um homem atingido na cabeça? Que lhe acontece? Esquece de coisas. Quand
o lhe é cortado um braço, não se esquece. Quando o estômago dele está doente, continua pen
sando da mesma maneira como sempre o fez. Ah! Mas quando lhe batem no osso em vo
lta do cérebro, ele pensa de forma diferente. E se a pancada for muito forte nem s
equer pensa. O mesmo acontece com qualquer outro animal. Bate com força na cabeça de
um caribu e ele morre. Desliga o cérebro.
Imagino que assim seja.
Não imagine replicou ela. Veja por si próprio. Aprenda. Pense por si. Não acredi
te em tudo o que o Povo sempre diz. Questione!
Ramada Partida interferiu:
Está dizendo que eu não estou certa acerca do Pai Sol e da poeira de estrelas?
Garça piscou os olhos como se o pensamento não lhe tivesse ocorrido.
Não. Essa é uma das poucas coisas em que sempre esteve certa.
Sua bruxa velha. Eu devia...
Por que sabe você todas essas coisas? Uma terrível ansiedade estava acumulando
-se dentro dele. Que estava ele fazendo? Se aprendesse aquilo que Garça queria ens
inar, perderia completamente o mundo que amava. Por que é que nem todos sabem o me
smo?
Garça riu para Ramada Partida e encolheu os ombros.
Nos campos do Povo ninguém tem tempo. Há peles para serem curtidas. Carne para
ser caçada. Musgo para ser colhido. As crianças estão sempre querendo alguma coisa, o
u lutando, ou magoadas, ou curiosas. Um Sonhador tem de limpar a sua mente para
ser capaz de pensar e sentir, sem estar preocupado com quem está discutindo com qu
em. Sem ser interrompido por futilidades.
Coçou o nariz.
Aqui... antes do Povo ter chegado... podia-se ouvir, sentir, deixar que o
mundo nos cercasse. A terra respira e os animais seguem os seus costumes. Estações,
ciclos, tudo gira. Todas as coisas estão inseparavelmente ligadas. A erva cresce o
nde cai a bosta do mamute. As sementes voam no vento. O mamute come a erva e faz
mais bostas. O Povo sabe disto mas não conhece o significado. E quem pode pensar
em Uma Vida com três crianças berrando por comida e alguém contando anedotas no fundo
do abrigo?
Então, só tenho de estar sozinho? perguntou ele, cético. Soava fácil demais para s
er verdade.
Garça baixou a cabeça e soltou uma gargalhada.
Tudo o que você tem a fazer é ser livre.
Como posso fazer isso?
A anciã sorriu, insolente.
Primeiro, precisa aprender a andar.
A andar? perguntou ele sem acreditar no que ouvira.
Claro. Depois tem de aprender a Dançar:
Dançar?
Uh-huh. Depois aprende a parar a Dança para poder olhar bem para o dançarino.
Sonhador De Lobo sacudiu a cabeça:
Do que está falando?
De Uma Vida. É tudo uma Dança e você tem de sentir os movimentos antes de poder
compreendê-la.
E você acha que eu ainda não sei andar?
Ela fungou.
Sonhador De Lobo, você nem sequer sabe gatinhar.
Ele retorceu a pele da sua parka fazendo-a formar uma ponta, pensando.
Você pode ensina-me?
Está disposto a aprender?
Uma secura incomum invadiu-lhe a boca.
Estou.
Venha. Garça levantou-se e afastou as cortinas da porta.
Ao sair reparou no crânio do urso e nas órbitas vazias que o observavam sombria
mente. Fechou os punhos com determinação. Aprenderia.
Garça conduziu-o até um lugar mais alto que as nascentes de água quente. Abaixo d
eles a água borbulhava, saltava e assobiava. Na escuridão da noite, ela colocou uma
manta sobre a rocha.
Sente-se. Fique aqui até que eu venha chamá-lo. A única coisa que deve fazer é par
ar a tua mente... encontrar o silêncio que reside em todo o som.
Semicerrou os olhos de incredulidade.
Aqui não existe silêncio. É tudo uma massa de sons constantes.
Viu os dentes partidos dela brilharem na luz fraca do Povo das Estrelas.
Garça colocou as mãos nas ancas e olhou para as colinas que se estendiam até as m
ontanhas distantes.
Você acha que existe um buraco ali?
Seguiu o olhar dela até aos picos de Gelo. Uma dor fina atravessou-o.
Sim.
Precisa encontrar o buraco dentro de si antes de encontrar o que existe no
gelo.
Fechou os olhos e os maxilares em descrença.
Isto não passa de coisa de tolos. Uma Vida, a Dança, o buraco. Que quer...
É tudo a mesma coisa. Tudo é nada.
Soltou uma gargalhada bem humorada.
Você perdeu o juízo.
Garça afagou-lhe o ombro:
Exatamente! E você deve fazer o mesmo. Venha. Sente-se. Limpe a sua cabeça de
todas as palavras. Nem um só pensamento. Nem uma única imagem na sua mente. Tem de p
erder a tua mente, de se esvaziar para depois se encher. Parece fácil?
Acenou na escuridão:
Claro. Basta calar a voz dentro da mente.
Estava mesmo à espera que dissesse isso. E afastou-se, os seus passos desvan
ecendo-se na escuridão. Ainda a ouviu acrescentar baixinho: Lembre-se que seu único
inimigo será você mesmo.
Sonhador de Lobo coçou o queixo, duvidoso, observando o vapor que se erguia d
o geiser e brilhava como prata à luz das estrelas.
Bem suspirou. Vamos lá. Fechou os olhos e fez parar todas as palavras dentro
da sua mente, concentrando-se no som das nascentes quentes. Era fácil... durante
meia dúzia de batidas do coração.
Depois as palavras invadiram os seus pensamentos. Cenas de que se recordava
surgiam, vívidas, na sua mente. Pedaços de conversas surgiam não sabia de onde. O som
das nascentes desaparecia naquela luta. Nada ajudava. Em sua volta apenas o fri
o da noite e o desconforto da rocha agitavam a sua batalha constante para manter
a mente limpa.
O rosto de Raposa Dançante flutuou nas suas memórias e sentiu uma confusão dilace
rante, um anseio, um desejo de vê-la de novo. Magoado tentou afastá-la, a mente divi
dida.
Mal acabara de vencer a visão e logo a voz de Gaivota se fez ouvir, os sutis
sons do seu discurso bem-vindos e reconfortantes. Seguiram-se sonhos acordado, t
odos emergindo no torvelinho da sua mente.
O seu único inimigo será você mesmo. As palavras de Garça afloraram-lhe à mente, esca
rnecendo do seu esforço. O traseiro doía-lhe. Os primeiros tentáculos da fome remexiam
-se no seu estômago.
As longas horas continuaram.
Ao nascer do Sol descobriu-se meditativo e sorrindo para as bandas vermelha
s e azuis que cobriam o céu. Tentou, com desespero, parar os pensamentos sobre o d
ia. A sua imaginação criava padrões no vapor que se evolava da água borbulhante. A brisa
suave enchia-se de vozes familiares.
Tinha o traseiro dormente. Um ronco forte fez-lhe recordar o estômago vazio.
As coisas começaram a piorar.
Não se recordava de se deitar, mas as moscas acordaram-no. Minúsculos mosquitos
não o deixavam em paz.
Bonito Sonhador você me saiu , disse a si mesmo, sentindo-se frustrado ao ponto
de ter vontade de gritar. Esmagou um inseto com toda a raiva e limpou os seus re
stos na perna das calças.
O dia avançou. Garça teria se esquecido dele? Estaria perdida numa meditação e esqu
ecida da passagem do tempo? E se fosse ver onde ela estava?
Não vou sair daqui.
O sol estava bem quente no céu e uma sede cresceu quando ele começou a transpir
ar. Os insetos, atraídos pelo odor do suor, tornaram-se ainda mais insuportáveis. Ha
via uma autêntica nuvem deles zunindo à sua volta. As moscas pretas e os mosquitos p
rocuravam a sua carne. Os mosquitos menores queriam entrar-lhe no nariz. Sentia
as mordidelas no pescoço e na cintura. Em puro desespero puxou o capuz sobre a cab
eça. Doce olvido...
Um pontapé forte nas costelas sobressaltou-o. A Oeste um brilho já fraco marcav
a o caminho por onde partira o Pai Sol.
Dormindo? gozou Garça, olhando para a cara dele toda mordida pelos mosquitos
. Você Sonhou?
Uh... sim. Estava de volta ao...
Encontrou o silêncio?
Não há silêncio nenhum aqui! insistiu teimosamente, olhando-a de frente.
Grande mamute! Você é pior do que eu esperava! E afastou-se. Levantou-se, um t
anto desequilibrado, e sacudiu a poeira. Sentia-se um fracasso total. De crista
caída, seguiu-a.

CAPÍTULO 26
Raposa Dançante e Garra estavam sentadas na base da enorme colina de basalto
. As encostas estavam cobertas de pedaços de rochas. As ervas enchiam os espaços ent
re os pedregulhos, transformando o conjunto numa manta de retalhos irregulares v
erdes e negros. Sobre as suas cabeças, uma água circulava no céu nublado, curiosa, mer
gulhando de quando em quando para manter um olho nelas.
Não está grande coisa. Raposa Dançante levantou no ar a ponta em que estivera tr
abalhando. As cicatrizes das lascas refletiram a luz. O afloramento de basalto c
ontinha uma rocha granulosa que se lascava mal, ao contrário do sílex pétreo e colorid
o e da quartzite de grão fino que Aquele Que Grita tanto apreciava.
Fica assim. Vai funcionar. A ponta é o importante, Raposa. Tem de ter a extr
emidade afiada para conseguir cortar. A seguir temos a ligação. Lembro do que dizia
o inútil do meu homem: Se a haste for grossa demais levanta o dardo e corta-lhe a v
elocidade. Bem, pelo menos o velho isca de moscas era bom para fazer dardos. Mas
não se esqueça, garota, que quando colocar a haste tem de fazer uma boa ligação ou, então,
a ponta vira com o impacto em vez de penetrar.
Raposa Dançante concentrou-se e chupou a pele solta da mão onde se cortara. Era
a desgraça de todos os lascadores de pederneira: tinha enfiado, bem funda, uma la
sca entre o polegar e o indicador. A seus pés estava um monte de pequenas lascas i
ncluindo também mais de uma lasca das longas pontas finas que ela estragara durant
e o processo, ao bater demais na pedra. Tornou a levantar a ponta no ar e sorriu
.
Agora acrescentou Garra baixinho, precisa soprar espírito na ponta. É a chave.
.. torná-la viva para que saiba que deve penetrar profundamente no flanco do anima
l em busca da vida. Use toda a sua alma, moça. Cante!
Raposa começou a entoar um cântico, sentindo o Poder da sua alma cobrir a ponta
do dardo. Segurava a ponta na sua mão ferida e encostava-se à rocha negra. Uma sens
ação de calor invadiu-a.
Agora na ligação e na haste explicou Garra. Precisa cobrir com o seu Poder a c
oisa toda. A ponta é apenas parte do todo. Sem uma haste reta e forte, a ponta não p
ode matar. Sem a ponta, a haste é inofensiva. A ligação as torna uma só. Depois, vai ter
de fazer os sulcos na base e colocar as penas. Isso é importante... mantém o dardo
voando reto e estável no ar.
Nunca tinha percebido o trabalho que isto dá.
Garra coçou o nariz carnudo.
Pense nisso como um homem e uma mulher. A ligação é o casamento para tornar o si
stema num todo. Reúna as esferas do Poder. Una os espíritos da pedra, da madeira, do
animal e da ave. Uma união: é isso o Poder. Macho e fêmea, compreendeu?
Raposa Dançante contemplou a ponta sem vê-la.
Tal como eu seria com Corre na Luz murmurou.
Ainda não conseguiu tirá-lo da sua cabeça, hein?
Raposa Dançante afastou do rosto longas madeixas de cabelo negro e olhou saud
osamente para o Sul.
Não, avó, não consigo. Ele continua a preencher os meus sonhos e atormentar as m
inhas noites solitárias e vazias. Ouço a sua voz. Sinto os seus braços.
Bem, já não falta muito para a Renovação, Vamos encontrá-lo lá.
Raposa soltou um profundo suspiro.
Assim espero.
Você seria capaz de trocar a sua liberdade por ele? Depois de todo o trabalh
o que tem tido para aprender a sobreviver sozinha?
Raposa Dançante levantou os seus delicados mas musculosos ombros.
Preferia sobreviver com a ajuda dele. É assim tão má a idéia?
Garra meditou, a língua entre os espaços onde faltavam dentes, os olhos observa
ndo o céu que escurecia. Já se viam algumas estrelas no manto lá em cima.
Para ser honesta, filha, não sei. Sem crianças não há Povo. Mas assim que tiver um
bebê vai deixar de poder caçar como tem feito. Os homens são livres. Não têm de ficar pre
sos vigiando os seus rebentos. Isso pertence às mulheres.
Você não tomaria conta da minha criança quando eu fosse caçar?
Garra sorriu.
Claro que faria isso. Mas não vou continuar por aqui eternamente.
Raposa Dançante acenou, pensativa.
Bem, mesmo sem ajuda, há alguma caça que posso fazer mesmo com um bebê. Posso co
ntinuar correndo atrás de animais para caírem de um penhasco, como fizemos com aquel
e búfalo. Ou usar uma armadilha de poço, como me mostrou para o caribu. Posso contin
uar a usar fumaça para apanhar esquilos da terra, matar ratos, tirar ovos dos ninh
os e apanhar lebres com armadilhas. Não preciso de me pavonear como os homens faze
m.
E onde vai ficar o bebê enquanto estiver fazendo essas coisas?
Para a caça menor posso carregá-lo nas costas. Para caça maior terei de encontra
r um lugar seguro, fora de perigos, e ir lá buscá-lo depois.
Pode fazer isso, tem toda a razão. Semicerrou as pálpebras e rearranjou todas
as rugas da sua velha face, estudando Raposa Dançante. Mas pense numa coisa. Se um
búfalo ferido te matar quando estiver caçando sozinha, o que acontecerá? Vê onde está a d
iferença? Se um homem morre, o filho está em casa, seguro, mas se você morrer quando t
iver o seu bebê contigo, bem...
Terei de depender de que outras pessoas cuidem dos meus filhos enquanto caço
. Abanou a cabeça.
Ou de não ter filhos. Garra debruçou-se para a frente, dobrando os joelhos. E,
nesse caso, o que acontecerá ao Povo?
Só quero amar Corre na Luz, estar junto dele. Por que terei de ceder a minha
liberdade?
Porque o Pai Sol fez os homens de uma maneira e as mulheres de outra. Diga
-me uma coisa: e se Corre na Luz aparecesse agora nesta colina? Que aconteceria,
hein? Quanto tempo demoraria para se enfiar debaixo das roupas com ele?
Raposa Dançante baixou o olhar.
Uh-huh, era o que eu pensava. É esse o problema, moça. Tudo o que é vivo tem uma
atração para acasalar. Uma coisa profunda, que nos mantém. O homem é pior que a mulher.
Sempre pronto para espetar a sua lança. Mas uma mulher, uma mulher nova e apaixon
ada, é igual. Foi assim que o Pai Sol nos fez.
E nos tira a liberdade?
Não pode ser diferente. Garra encolheu os ombros. Graças sejam dadas pelo Pai
Sol nos ter dado a obrigação de carregar os filhos. Nem se pode imaginar o que acont
eceria se ele tivesse dado aos loucos dos homens tal responsabilidade. As pessoa
s teriam morrido de estupidez pouco depois de o Pai Sol ter soprado em nós a vida,
depois de termos caído das estrelas.
Raposa Dançante percorreu distraidamente com um dedo a ponta do dardo. Conseg
uirei estar perto dele? Conseguirei vê-lo todos os dias sem o abraçar bem apertado c
ontra mim? Conseguirei deixar Corre na Luz para viver aqui, exilada e só? Engoliu
em seco, olhando o Sol. O tempo da Renovação aproximava-se. Uma dor surda instalou-s
e no seu coração.
Por ele sussurrou, abandonaria tudo isto.
Garra acenou com a cabeça, soltando o ar:
Acho que está disposta a cometer uma loucura... mas compreendo.
Um Verão como nunca imaginara. O Homem Céu Azul em cima, a sua imponente barrig
a apenas ocasionalmente escondida por nuvens. Incontáveis moscas e mosquitos sobre
a terra verdejante. Rebentos de salgueiros e de vidoeiros anões que brotavam das
rochas ao longo das margens amareladas da torrente. Ramada Partida sorria para o
sol, atacando com ardor os musgos e as plantas com o seu pau de escavar, criand
o festim após festim para o jantar. Flores doces e delicadas perfumavam a brisa su
ave com a promessa de bagas. Bardanas amargas e ruibarbos selvagens erguiam-se,
verdes, acima do brilho verdejante dos salgueiros e amieiros.
Por cima da sua cabeça passavam bandos de gansos e de patos, de corvos barulh
entos, num bater constante de asas. As gaivotas dos pântanos chamavam, solitárias, d
os lagos a nascente. As águias volteavam em espirais que percorriam todo o céu.
Sonhador De Lobo flutuava na lagoa, grato pelo cheiro do geiser que mantinh
a à distância os exércitos de moscas pretas e mosquitos sugadores de sangue. No dia an
terior, fora, com Garça, até o grande rio. O tumulto das águas fizera-o estremecer até a
os ossos. Tanto Poder, tanta violência: o próprio chão vibrava com a tormentosa e aren
osa torrente.
Nunca o tinha visto tão alto comentou ela, mirando a corrente. Nunca.
De onde vem toda esta água?
Garça virou-se, o rosto inexpressivo:
Do seu Grande Gelo, Sonhador De Lobo.
Tanta?
Só a água salgada era assim tão grande... e quase pacífica comparada com o impetuos
o rio que corria para Norte.
Instalou-se melhor, deixando a água quente suportar o corpo, e limpou a mente
. A paz encheu-o. A batalha estava prestes a ser obtida. Vez após vez obrigara-se
a fazê-lo e, a cada tentativa, eram mais longos os períodos de silêncio. Garça tivera mu
ita paciência.
Nem sequer uma criança aprende a andar num dia recordara-lhe ela.
A sensação da água batendo-lhe na pele, tocando-lhe os ouvidos, era calmante. A v
oz da água, descobrira, era parecida com a fala humana. O barulho era pontuado por
intervalo, intervalos que eram de puro silêncio.
Um sentido oculto fê-lo sentir a presença dela e levantou a cabeça para vê-la despi
r-se. Apesar da sua idade avançada, Garça mantinha a beleza. Os seios, caídos com a id
ade, mantinham mesmo assim a postura, tal como a sua barriga firme, não estragada
pelos filhos. Pernas e braços firmes revelavam a essência graciosa da mulher.
E Raposa Dançante? Teria a mesma aparência quando chegasse à idade de Garça? Tentou
formar uma imagem dela, a imagem das sua juventude transbordante, as ancas bamb
oleando, os olhos cheios das promessas que lhe fizera. A sua masculinidade endur
eceu.
O cabelo dela brilharia ao Sol, num negro-azulado, tombando sobre os seus o
mbros macios. Mergulhou na lagoa como uma foca, a água abrindo-se em ondas nas sua
s costas. Chegou ao lado dele, os seios flutuando. O toque dela seria suave na s
ua pele. Virou-se, tocou-a, apertando-a contra si ao mesmo tempo que ela a rodea
va com as pernas. Sentia como ela se abria, pronta para...
Tem alguma coisa em mente? perguntou Garça, fazendo desaparecer a imagem e s
obressaltando-o. A água entrou-lhe no nariz, fazendo-o tossir e espirrar, enquanto
procurava apoio para os pés.
Nos olhos dela havia um brilho malandro. Olhou para a sua masculinidade dur
a que sobressaía da água.
Não com esta velha. Velha demais... mesmo para um rapaz bonito como você.
Soltou uma imprecação e rolou na água para se esconder, sentindo a vergonha corre
r, escaldante, nas suas veias.
Ela riu e mergulhou, obrigando-o a esconder-se de novo.
Os velhos olhos dela rebrilhavam quando a cabeça dele voltou à tona. Deixou-se
ficar com o queixo quase submerso.
Continuo sendo um homem desafiou, a ira cobrindo o embaraço. Sonhar não nos t
ira isso.
Garça limpou do rosto as gotas de água cristalina e se virou rindo:
Oh, tem razão, é um homem. Segundo parece só pensam numa coisa. E acrescentou: M
as desculpe uma velha. As pessoas acasalando são também uma parte da Dança.
Agitou a água com as mãos na esperança de que as ondas obscurecessem o que a água r
evelava. O desejo desapareceu. Sentiu-se melhor.
Não era em você que estava pensando.
Garça sentou-se numa rocha, com a água batendo-lhe na cintura.
Ah, uma jovem? Olhou para os salgueiros meio escondidos pelo vapor branco
do geiser. E ela está à sua espera?
Ela não... Chamador de Corvo tomou-a por esposa. Bateu as mãos na água em frustr
ação. Comeu do lobo, aceitou o Sonho... mas seguiu a ele. Uma esposa não pode...
Fugir com outro homem terminou ela. Mas podia tê-lo feito.
Teria trazido desonra. Ela nunca...
O mais certo é ela ter medo de Chamador de Corvo. Medo do que ele lhe poderi
a fazer. Escorreu água do cabelo e apreciou o ar de desafio dele. Que é que vejo nos
seus olhos? Um caso de amor juvenil?
Não avisou ele. A dor da perda de Raposa Dançante dilacerava-lhe o peito.
Garça desistiu:
Não vou atormentá-lo com ela. O seu amor é o seu castigo.
Castigo? exclamou ele, incrédulo. É antes o meu consolo.
Acho que irá ver as coisas de modo diferente num futuro próximo
Nunca desejou um homem? Não amou o seu Caçador De Ursos? lamentou as palavras
mal acabara de dizê-las.
Garça olhou-o, permanecendo impassível por vários momentos.
Sim, amei. Teria dado tudo por ele. Pensei até em matar Ramada Partida quand
o ela se insinuou dentro das roupas dele.
Por que não regressou? Sendo... bonita como é, qualquer homem teria vindo cons
igo para cá.
Garça abanou a cabeça, suspirando.
Não, nenhum homem. Contemplou o céu e preparou os lábios. Sonhador De Lobo, há um
coisa que precisa saber. Sonhar... Sonhar de verdade... não deixa espaço para ter c
ompanhia. Quando um homem e uma mulher estão juntos fazem parte um do outro. Os pr
oblemas de um tornam-se os problemas de ambos. Acasalar produz crianças. Não há forma
de evitar. As crianças exigem toda a sua atenção... e são merecedoras dela. Dá muito traba
lho converter uma criança de um animal num ser humano. As crianças não têm o sentido do
tempo, precisam de atenção agora. Não pode Sonhar quando a tua criança tem fome, tem uma
pergunta ou se cortou num pedaço de sílex.
É por isso que continua aqui depois de todos estes anos?
É por isso. Nenhum homem, nenhuma tentação. Apenas eu e os meus pensamentos e So
nhos. Tomei essa decisão quando Caçador De Urso se juntou a Ramada Partida. Sorriu.
E, nessa época, eu era jovem, ferida. Não queria ter de vê-lo... com ela.
E agora ela está aqui.
Garça inclinou a cabeça.
Já passou muito tempo. Há muitas Longas Escuridões que ele morreu. Ramada Partid
a e eu mudamos. E ela me trouxe um homem diferente. Um homem muito mais importan
te do que seria qualquer amante.
Oh, posso imaginar muitos ses mas, se procurar bem, existe sempre um objetivo,
uma razão para tudo o que acontece. Talvez tenha sido você me chamando... nessa oca
sião .
De cenho carregado, Sonhador De Lobo foi sentar-se ao lado dela.
Tem certeza de que era eu no seu Sonho?
Os olhos dela não deixaram lugar a dúvida alguma.
Mas por que teria de Sonhar comigo?
A Sonhadora respirou fundo.
Você é importante para o Povo, embora ainda não saiba como. Talvez todos nós estej
amos condenados a morrer, se não encontrar o tal buraco no gelo.
Um tremor de ansiedade percorreu-o. Brincou com a superfície áspera da rocha.
Que devo fazer com Raposa Dançante? Em cada dia que passa ela enche mais os
meus pensamentos. Não consigo concentr...
A escolha é tua, Sonhador De Lobo. Os olhos castanhos nada revelavam. Esses
seus dons são poderosos. Vejo-o mudar. O homem que você era, aquele que ela conhecia
, já não existe. Pior ainda: está crescendo tão depressa, se tornando alguém tão diferente,
que ela quase nem o reconhecerá quando o encontrar de novo. Será que ela vai compree
nder? Mais importante ainda: você vai desejar voltar a ser o que era antes do Son
ho?
Diga-me como será. Já percorreu o mesmo caminho.
Não tenho respostas para dar, mas posso dizer que Sonhar é como comer a planta
do espírito. Uma vez que comece nunca mais terá o bastante. É uma coisa que te enche,
te empurra, te guia.
Constantemente? Não deixa sequer tempo para...
Constantemente.
Ficou vendo o vapor desaparecer por cima da sua cabeça.
É um preço muito alto a pagar por...
Um preço terrível.
Apoiou o queixo num joelho e olhou, sem piscar, para os olhos sérios de Garça.
As madeixas de cabelo grisalho e molhado cobriam-lhe os seios. Um sorriso amargo
torcia os lábios dela.
A salvação do Povo valerá isso?

CAPÍTULO 27
Os ramos de vidoeiro anão e de salgueiro entrelaçavam-se entre as névoas das nas
centes quentes e estendiam-se até ao céu. A crosta verde-amarelada nas bordas da lag
oa brilhava, em tons dourados, ao sol.
Sonhador de Lobo sacudiu da testa as pontas do seu comprido cabelo, ensopad
o em suor. O seu rosto oval estava lustroso de suor. Observava Ramada Partida qu
e, utilizando uma pedra do tamanho da mão e uma outra pedra chata, batia numa past
a os corpos secos de esquilos de terra. Misturava a carne com bagas e depois met
ia um punhado daquilo numa tripa de caribu. Depois de cada mão-cheia de pasta vaza
va, naquele saco alongado, gordura quente. A seguir, usando uma vara, empurrava
bem toda aquela massa até a tripa ficar inchada.
Sonhador De Lobo permanecia de pé, incomodado, pensativo. Tinham caçado, voltad
o a Sonhar caribu. E desta vez parecia-lhe ter escutado a voz da Uma Vida que pa
rtilhavam. Teria mesmo? Ou teria simplesmente imaginado? Os passos de Garça soaram
na gravilha e ele virou-se com um sorriso nos lábios.
Venha disse ela, dirigindo-se para o abrigo.
Seguiu-a, os olhos perdendo o foco na escuridão. Garça atirou-lhe uma pele fina
mente curtida que agarrou antes de tocar o chão.
As moscas desapareceram. A geada as fez fugir. Há quantos dias comeu?
Três.
Vai bem alto. Pelo menos a um dia daqui. Não se esqueça da Dança. Sonhe.
Sonhador De Lobo pegou a manta e virou-se, fazendo uma pausa para olhá-la.
Desta vez eu os chamei desde o princípio, não chamei?
Ela estudou-o, pensativa.
Eu não fiz coisa alguma. Você chamou, eles vieram. Matamos o suficiente para o
Inverno. Teremos gordura para os dias frios. Carne para nos dar forças.
Eu pensei... hesitou, receoso de mencionar o fato, não passasse ele de uma f
alsa percepção.
O quê?
Por um momento julguei ter escutado a respiração do Todo.
Como era o som?
Não tinha um som... não era bem isso.
Um sorriso iluminou o rosto dela.
Então, talvez tenha ouvido mesmo. Era a voz que partilhamos com os animais e q
ue é mais profunda que o mundo que julgamos ouvir à nossa volta? Um véu cobriu-lhe o o
lhar e mandou-o embora com um gesto. Vai Sonhar. Ouça.
Sentindo certo desconforto ele foi para oeste, na direção das montanhas coberta
s de Gelo. Ela fazia sempre aquilo, deixando-o sempre a pensar no que era real..
. e no que era imaginário. Teriam eles acorrido à sua chamada? Haveria mesmo só Uma vo
z para Uma Vida? Ou teria sido por acaso que tinham entrado na sua armadilha? Qu
e era real?
Este ano os abrigos tinham um ar miserável, gasto, mal remendado. Raposa Dançan
te descia o caminho à frente de Garra que se arrastava dolorosamente atrás de si. A
idosa mulher já não era tão forte como outrora. Desde os dias de fome, em que haviam s
aído do campo de Costas de Búfalo, que uma parte da alma de Garra estava diminuída. Ar
rastava-se como um espectro dentro de farrapos de pele.
Na frente delas o campo estendia-se, aninhado junto à planície pantanosa, os ju
ncos estendendo-se, verdejantes, até o horizonte. As moscas e os mosquitos deviam
ser ali insuportáveis num ano como aquele. A Leste corria o Grande Rio, torrencial
, ultrapassando as margens e cobrindo parte dos juncos. Ao Sul, para lá do campo,
estendiam-se colinas cinzentas que obscureciam o horizonte até se juntarem aos den
tes das montanhas cobertas de geleiras.
Das luzes dos abrigos no terraço próximo ao juncal erguia-se fumaça azulada em es
pirais que se elevavam aos céus. Já se sentiam no ar os odores da carne cozida, dos
cães e do lixo. Ao lado de um abrigo havia um tabuleiro de peixe secando. Um jovem
, armado com um pau, guardava-o dos cães. As pessoas estavam sentadas em torno das
fogueiras, meio escondidas pela fumarada, conversando e gesticulando.
Não precisa esperar por mim disse Garra numa voz fina e vacilante. Vá, vá procu
rar o teu Corre na Luz. Ele está por aí.
Com um sorriso de alegria, Raposa Dançante começou a correr e logo estacou com
um arrepio gelado no coração.
Por que parou?
Chamador de Corvo. Também está lá. Como estarão os outros que sobreviveram. A histór
ia de ele me ter expulso já deve ter corrido o acampamento. Não, avó, quero que vá comig
o.
Garra mirou-a pelo canto do olho:
Ainda não está preparada para ir sozinha, hein?
Raposa Dançante lutou contra a sensação de corar.
Eu... Talvez. Além disso, pense eu o que pensar, é a você que devo. Vamos juntas
. Será mais... apropriado. Por que minto?
Os cães foram os primeiros a avistá-las e vieram ladrando e rosnando, pêlos eriçado
s, ameaçadores. Raposa Dançante afastou-os com os dedos. As crianças vieram depois dos
cães, gritando:
Quem está chegando? Quem está chegando?
Esta é Garra respondeu. Eu sou Raposa Dançante.
Um rapaz mais velho, obviamente o líder, parou, afastou com um pontapé um dos cãe
s maiores e perguntou, sério:
Você é a esposa que Chamador de Corvo expulsou?
Raposa Dançante ficou tensa.
Sou.
Os olhos do rapaz estreitaram-se.
E devia vir à Renovação? A sua alma não vai fazer alguma coisa ruim? Causar doenças
ou fazer que os Outros nos descubram?
Garra ultrapassou-a.
E quem é você, garoto? Ninguém te ensinou boas maneiras? carregou sobre ele, nas
suas pernas magras, e os olhos do jovem abriram-se muito e recuou.
Desculpe! pediu. Desculpe, avó. Eu não me referia a você. Eu só... só...
Só estava agindo como um animal! atirou Garra. Oh, os seus pais vão saber dist
o. E o líder também. Este ano pode ter sido ruim, mas isso não é desculpa para permitir
que garotos como você esqueçam as boas maneiras e atuem como moscas nos corpos do Po
vo!
O jovem rodou nos calcanhares, os olhos no chão, envergonhado e desapareceu c
orrendo. O resto do grupo ficou um instante de olhos muito abertos antes de corr
erem atrás dele.
Parece que a minha fama já chegou e se espalhou. Raposa Dançante suspirou. Ist
o pode não ser nada agradável.
Garra virou-se para ela.
Você sabia disso antes de vir para cá. Mas não esteja preocupada. Depois de Cham
ador de Corvo ter morto tanta gente ninguém vai pensar duas vezes na maldição dele.
Vamos ver.
Continuaram a avançar, serpenteando entre os abrigos, vendo centenas de caras
novas.
Olhe para ali disse Garra, apontando. Não são Aquele Que Grita e Lobo Cantante
?
Raposa suspendeu a respiração, inspecionando os rostos das pessoas perto dos do
is homens, em busca de Corre na Luz.
Não vejo...
Também não o vejo. Mas o fato de estarem aqui dois primos dele significa que o
s guiou em segurança. Não morreram.
O orgulho encheu-lhe o peito e um amplo sorriso iluminou-lhe o rosto.
Sim, é isso.
Garra remexeu os lábios murmurando qualquer coisa ininteligível.
Bem, vamos procurar o seu herói. Talvez nos deixe entrar na sua cabana, que
tal? Acha que ele precisa de uma velha para lhe coser as coisas? Cozinhar? Talve
z para contar aos seus filhos as velhas histórias?
Raposa Dançante sorriu e bateu no ombro da anciã.
Depois da morte de Gaivota, estou certa de que ficará grato.
À porta do abrigo de Aquele Que Grita chamou, com toda a delicadeza. Água Verde
emergiu. Sacudindo um bando de moscas, e um sorriso começou a desenhar-se no seu
rosto:
Raposa Dançante!
Água Verde! Está viva! O Sonho de Lobo... era verdadeiro.
O abraço caloroso de Água Verde envolveu-a primeiro, e depois Garra. Recuou, ol
hando Raposa Dançante dos pés à cabeça, a sua cara larga cheia de alegria.
Sim, o Sonho manteve-nos vivos. E, quanto ao buraco no Grande Gelo, quem s
abe? Mas encontramos um refúgio contra os Outros.
Os olhos de Raposa Dançante miraram em volta, cheios de esperança.
E Corre na Luz?
Não veio.
Não... O coração parou-lhe.
Com a sua habitual calma, Água Verde pegou-lhe a mão e mandou-as entrar na tend
a baixa.
Ficou com Garça para aprender a ser um grande Sonhador.
Garça! exclamou Garra. Água Verde acenou.
Sim, ela é mais que uma lenda.
Ao sentar-se nas peles espessas Raposa Dançante olhou, confusa, para Garra e
viu reserva nos olhos da anciã, um segredo velado.
Para que precisava ficar com ela? Ele já é um grande Sonhador.
Água Verde inclinou-se para olhando bem de frente.
Ele quer ser tão grande como Garça. Talvez ,maior.
Garra bateu com as mãos nodosas nos joelhos. Os seus olhos encontram, desafia
ntes, os de Raposa.
Nesse caso, moça, ele nunca terá tempo para você.
Eu não...
Sonhar! soltou Garra, os olhos focados para lá da tenda. Sonhar de verdade!
O Povo precisa de um Sonhador. Há tanto tempo que não temos nenhum. E agora... acha
que será Corre na Luz?
Mas eu não...
Garra, sobressaltada, regressou ao presente.
Não, claro que não sabe! Moça, se ele vai ser um Sonhador vai ser um homem possuíd
o. Oh, vai reconhecê-la e, se gostar mesmo de você, vai até sair dos seus Sonhos. Mas
quero que saiba uma coisa, Raposa. Mesmo que consiga ganhá-lo por uns tempos, mesm
o que consiga, ele nunca será seu. Nunca.
Uma mão gelada pousou no fundo do seu coração.
Porquê?
Porque as visões prendem a alma de um Sonhador e não a soltam.
CAPÍTULO 28
Os penhascos rochosos rodeavam o pequeno acampamento, enormes rochas que s
e erguiam bem alto no ar gelado da noite. Nas fendas, cresciam pequenos arbustos
, as folhas prateadas à luz das estrelas.
Cinco homens, altos, de pernas compridas, caminhavam numa graciosa fila ind
iana pelo meio das rochas. Os capuzes estavam caídos nos ombros e os olhos vazios
de lobos, raposas e águias olhavam as peles que lhes cobriam as cabeças. Os olhos do
s homens observavam tudo à maneira dos caçadores. Traziam peles de mamute largas enr
oladas nas ancas como se fossem cintos. Dardos muito compridos, com penas de águia
, estavam seguros em mãos ossudas.
Não viram Corvo Caçador nem os outros jovens escondidos entre os rochedos. Podi
am ser ferozes, mas também marchavam arrogantes, de cabeças erguidas.
Corvo Caçador, o coração batendo forte no seu peito, os membros vibrantes de exci
tação, aguardava. Faltava pouco. Muito pouco. O primeiro homem já entrara na armadilha
. Espere. Nem um pode escapar.
Apesar da boca seca pelo medo e do sangue correndo tenso nas suas veias, Co
rvo Caçador flutuava numa crista de exaltação. Ali, na sua frente, caminhavam os assas
sinos dos seus. E, agora, por fim, seria a desforra. Por este ato o Povo se colo
caria à prova e sob a sua liderança. Apesar da sua juventude poderia entrar nos círcul
os de poder e decisão a que pertencia. No seu peito ardia uma sensação de invencibilid
ade e de premonição.
Chiu! disse para Lebre Saltitante, cujo pé escorregara numa pedra solta.
O último dos Outros ficou dentro do alcance.
Corvo Caçador contraiu os músculos e atirou com aquela certeza que vinha de ano
s de prática. O dardo perfurou o peito do homem. O homem cambaleou, soltou um não , est
remeceu e deixou cair o atlatl com um olhar de incompreensão no seu rosto enquanto
tombava no chão.
Um murmúrio assustado percorreu os Outros. Os homens correram, tropeçando uns n
os outros, as armas erguidas.
Estão ali! gritou um deles, apontando os rochedos.
Corvo Caçador disparou outro dardo que se foi enterrar profundamente, com cer
teira pontaria, no homem antes do último. De todos os lados saltaram Lebre Saltita
nte, Raio Certeiro, Três Quedas e Gritos de Águia, os dardos nas mãos.
Acabou tudo depressa com os Outros estrebuchando no chão. O sangue cobria mãos
frenéticas, enquanto eles gemiam e gritavam agarrados às hastes que lhes saíam dos cor
pos. Corvo Caçador saltou da rocha. Dois! Matara dois! Arrancou brutalmente o dard
o do peito do primeiro, deliciado com as gotas de sangue coagulando que o seguir
am.
Não! Não! disse o homem. Os seus olhos cravaram-se nos de Corvo Caçador e ficou
imóvel, sem ver, com um sangue espumoso saindo-lhe da boca.
Maldito assassino! gritou Corvo Caçador, cuspindo no rosto do Outro antes de
se virar para o segundo e lhe cravar a haste no coração.
Em volta dele, o resto do grupo descia vagarosamente das rochas, os olhos m
uito abertos, chocados com o que tinham feito. Movimentando-se de homem para hom
em, Corvo Caçador foi despachando-os com golpes calculados do seu dardo ensangüentad
o.
Lebre Saltitante abanou lentamente a cabeça, contemplando o homem que o seu d
ardo matara.
Corvo Caçador olhou com curiosidade para o primo.
Não são assim tão assustadores quando estão mortos, não é? Já não vão correr conosco
sas terras ancestrais... terras que nos foram dadas pelo Pai Sol! Amanheceu um n
ovo dia. Nós somos o Povo!
Raio Certeiro sorriu, orgulhoso.
O Povo repetiu e depois, de alívio e alegria, deu um salto no ar e soltou um
grito deliciado que lhe limpou a garganta.
Um por um foram ficando excitados à medida que Corvo Caçador lhes ia batendo na
s costas, elogiando a sua coragem e esperteza.
E pensar que nós fugimos? Fugimos de indivíduos como estes? ergueu um punho e
agitou-o no ar. Nunca mais, não é, amigos? Não, nunca mais! Juntos, vamos fazer estes
homens recuar! soltou aos céus um grito de vitória. Não vamos permitir que nos cacem c
omo caribus assustados, da terra onde os ossos dos nossos pais descansam em paz.
Gritos de Águia cerrou os lábios e disse:
Nunca mais.
Sigam-me! ordenou Corvo Caçador num tom conspirador. Sigam-me e expulsaremos
estes Outros das nossas terras!
Gritos de Águia começou, baixinho, o cântico:
Corvo Caçador. Corvo Caçador! Corvo Caçador.
E depois os outros seguiram-no, cada vez mais alto, até as suas vozes ressoar
em entre os rochedos que os cercavam.
Fogo de Gelo deixou que a sua alma fosse embalada pelo cântico dos cantores d
o Clã da Presa Branca. O mais velho, Pederneira Vermelha, conduzia os homens mais
novos nas canções que aplacariam as almas dos animais e os chamariam, no futuro, até o
alcance das armas do Povo do Mamute.
O Verão atingira o seu máximo no longo dia do solstício. O Sol estava no céu como u
ma enorme bola dourada, um presente do Grande Mistério. Os abrigos do Clã da Presa B
ranca, espalhados à volta, eram mais altos naquela estação de ventos moderados. A Fogo
de Gelo chegava o odor de búfalo e caribu sendo assados. A memória de um lombo de c
ria de corça, cortado ao lado da espinha, instalou-se na sua língua, um festim sabor
oso e delicioso.
As mulheres mais novas rodeavam os dançarinos, batendo palmas e com sorrisos
nos rostos felizes. Os cães andavam por ali em busca de restos, os machos levantan
do as pernas nos cantos das tendas e mostrando os dentes na eterna ordem da mati
lha. Um balbuciar constante de vozes felizes subia e descia acompanhando o canto
de Pederneira Vermelha.
Os abrigos refletiam prosperidade. As crianças apresentavam pernas firmes e c
aras cheias. As roupas novas davam ainda mais graça às pernas e braços fortes. Espirai
s de moscas sobrevoavam os tabuleiros de seca que rodeavam o acampamento cerimon
ial do Clã da Presa Branca. Melhor que tudo, não se viam viúvas olhando de longe nem s
e avistavam cabelos curtos. Apesar dos horrores da escuridão, aquele Verão fora-lhes
benevolente uma dádiva do Grande Mistério que os esquecera durante o Inverno horror
oso.
Na frente de Fogo de Gelo os jovens saltavam e dançavam, os pés batendo no chão n
o ritmo dos cânticos. Fechou os olhos e inalou profundamente a fumaça do salgueiro.
Uma planta sagrada, o salgueiro: o seu odor acalmava e purificava a alma. No fes
tival anual do clã era o salgueiro que os tornava um todo.
Fogo de Gelo voltou a abrir os olhos para contemplar o fogo, sentindo em to
rno de si a harmonia da vida. As chamas lambiam e mudavam, lâminas de luz amarela
que se erguiam, fagulhas que estalavam. Parou a mente para gozar a paz daquela t
arde.
Nos carvões observou os padrões que se mexiam e mudavam a cada segundo que pass
ava. Em transe viu os caprichos do vento sobre o olho ardente e sentiu o Poder a
ntes mesmo de perceber. Nos torvelinhos de luz formou-se um rosto que o olhava.
Quem é você? perguntou, a Dança do Clã apagando-se à sua volta, sentindo apenas o c
ico.
Por que pergunta, pai?
Fogo de Gelo levou um punho ao peito.
Quem... Uma vez lançou-me um arco-íris. Não chega?
Pai? Você me chamou pai?-O homem que violou a minha mãe. E agora quer o resto
de nós? Parta. Deixe as terras que o Pai Sol abençoou para nós. Dê-nos... soltou repenti
namente um grito.
Uma dor atravessou o peito de Fogo de Gelo, uma picada forte que lembrava a
frieza de uma ponta de dardo a perfurá-lo.
Morte murmurou o rosto no fogo. O meu irmão matou os Outros. Está vendo-os? Es
tá vendo os seus corpos caídos e alquebrados?
Uma visão formou-se no fundo da mente de Fogo de Gelo. Cinco figuras tombadas
, as moscas cobrindo as feridas coaguladas, os seus ovos como pilhas de marfim s
obre a carne nua.
Arco De Lançar, Cinco Estrelas, Cauda De Rato... Um a um Fogo de Gelo foi da
ndo-lhes nomes, a visão tremeluzindo no fundo da mente. Olhou para o fogo e engoli
u com força. Foi... foi você que fez isto?
O meu irmão, Corvo Caçador... seu filho... fez isto. Eu sou Sonhador De Lobo..
. nascido da sua semente, homem dos Outros. Está colhendo o resultado da sua luxúria
. Aquilo que plantou cresceu no solo rochoso do Povo. Dor, morte e miséria são os ac
ompanhantes de Corvo Caçador.
Fogo de Gelo sacudiu a cabeça.
Vamos matá-los. Agora é uma questão de honra. Os meus são um povo bravo. Vocês são mo
es, balem como as crias feridas de caribus. Os meus guerreiros não os deixarão fugir
, vão matá-los por isto.
Veja o que fez, pai. O seu filho, nascido do seu sangue, está chegando. O se
u filho, nascido da luz, está partindo. Qual deles vai escolher?
Escolher? Que quer dizer? Sonhador De Lobo, qual é a sua mensagem? Levantou-
se para se aproximar. Qual?
Morte... ou vida. Haverá nisto qualquer outra mensagem, pai? E as chamas est
ralejaram com uma chuva de fagulhas que subiram na noite.
Sonhador De Lobo? Sonhador De Lobo? Só as chamas se mexiam, os ramos mais de
lgados do salgueiro crepitavam e a fumaça sagrada rolava para cobri-lo como um man
to.
Fogo de Gelo olhou à sua volta, piscando os olhos, o Poder da visão desaparecen
do do seu corpo fatigado.
Velho amigo? A voz de Pederneira Vermelha soou, inquieta e hesitante, no s
ilêncio.
Fogo de Gelo esfregou a cara rígida como uma máscara e sentiu a mão quente do Can
tador no seu ombro. Virou-se para olhar e viu que os cantadores o miravam ou tro
cavam olhares entre si.
Que... Que aconteceu?
O olhar de Pederneira Vermelha encontrou o seu. Lia-se uma profunda preocup
ação naqueles olhos castanhos.
Você se levantou gritando para o fogo. Como se estivesse falando com alguém. C
heguei aqui num instante mas só vi as brasas brilhando no poço da fogueira.
Fogo de Gelo estremeceu de repente, a imagem dos caçadores mortos no fundo da
mente, ouvindo até o zunir das moscas.
Morte. Ele disse que a morte estava chegando. O meu filho está chegando. E n
asceu de sangue.
Fogo de Gelo passou, devagar, pelos dançarinos imóveis sem sequer perceber de q
ue olhavam para ele, os rostos pálidos.
CAPÍTULO 29
As enormes fogueiras de amieiro e salgueiro crepitavam bem alto lançando as
chamas vermelho-alaranjadas contra os céus malvas. As pessoas dançavam, agradeciam às
almas dos animais que os tinham sustentado ao longo do ano, concluindo assim a c
erimônia de quatro dias que marcava cada uma das estações. Dançavam, de todo o coração, à Ren
vação do mundo, gritando a sua alegria ao Abençoado Povo das Estrelas. Chegara o momen
to do festim e o brilho das gigantescas fogueiras permitia que os espíritos lá de ci
ma vissem a sua alegria e generosidade, para que lhe dessem mais no ano a seguir
.
Sob o brilho avermelhado do Sol da meia-noite, os abrigos de pele de mamute
, caribu e boi almiscarado projetavam sombras irreais sobre as ervas esmagadas p
elos pés. A Mulher Vento, o seu sopro emudecido pela Longa Luz, brincava com ligei
reza sobre os campos dos clãs, carregando consigo os odores das carnes assadas e o
s sons de risos e alegrias por outra estação que passava.
Tão poucos murmurou Corvo Caçador com uma raiva mal contida.
Não há memória de uma Longa Escuridão ter levado tantos lembrou-lhe Raio Certeiro.
Nem de um Verão tão quente. Não na memória de nenhum homem.
Os guerreiros prosseguiram o seu caminho, passando pelas tendas, distantes,
eretos, aproximando-se do fogo principal.
Esperaram, em bloco um núcleo de resistência, até a Dança Sagrada abrandar e termin
ar num grito final uníssono destinado a chegar ao Abençoado Povo das Estrelas.
Chamador de Corvo emergiu da multidão, refletindo no rosto o brilho do fogo.
Envergando as peles de Verão avançou altivamente com as mãos erguidas.
O Povo vive! gritou.
As canções começaram gradualmente a calar-se e os olhos a virarem-se para o velho
shaman. Chamador de Corvo sorriu.
Oferecemos a nossa gratidão ao Abençoado Povo das Estrelas. As almas dos anima
is nos ouvem e a se alegram. A força deles vive em nós. Pelo seu sacrifício formamos u
m todo. Lá de cima olham para a nossa alegria e a nossa gratidão.
Um grito surgiu do Povo, meio de gratidão, meio de esperança. Era hora do festi
m! Começaram a dispersar-se na direção dos fogos de cozinhar, as vozes cada vez mais a
ltas.
Há mais! Corvo Caçador entrou na luz feérica do fogo, sentindo a relutância dos se
us seguidores, sentindo que o seguiam apesar das suas reservas.
Chamador de Corvo virou-se com o olho branco brilhando num estranho reflexo
das chamas.
Enquanto dançavam começou Corvo Caçador, eu parti. Quatro foram comigo. Olhou d
rosto em rosto, vendo os olhos abrirem-se de curiosidade. E regressamos vitorio
sos!
Apenas o crepitar do fogo quebrava o silêncio quando ele ergueu o dardo que a
rrancara do peito do Outro. As pessoas inclinaram as cabeças, expectantes.
Corvo Caçador levantou bem os braços para mostrar o mortífero projétil, enegrecido
pelo sangue seco.
Eis aqui, meu povo, a vitória.
Chamador de Corvo avançou, o olho negro concentrado.
Você matou um animal! Sabe que ninguém mata durante as cerimônias de Graças. Como
pode...
Não foi nenhum dos nossos irmãos de quatro pernas. Corvo Caçador sorriu cinicame
nte. Não cometi qualquer sacrilégio.
Da multidão inquieta uma voz perguntou:
Então o que foi?
Começaram a ouvir sussurros de desdém e de curiosidade.
Juntos apontou para o seu grupo, nós, homens do Povo, matamos Outros. Na con
fusão que se seguiu teve de gritar: Os Outros que mataram o Povo do bando de Geise
r. Que mataram os nossos parentes quando os empurravam para fora da terra dos no
ssos antepassados... para longe das grandes manadas!
Não! gritou um ancião avançando. Nós não matamos! Não é esse o nosso costume. Som
paz...
Não podemos continuar a fugir! berrou Corvo Caçador, agitando o dardo ensangüent
ado. Esta terra é nossa. Nossa! Que mais podemos fazer? Ir para o Grande Gelo? Ir
para a água salgada? Estamos encurralados!
Virão nos matar! O ancião virou-se para a multidão agitada. Não é este o costume
Povo. Nós não matamos homens! Foi Corvo Caçador quem trouxe a ira deles sobre nós. Que f
aremos...
Raio Certeiro avançou.
Mataram o meu pai, Geiser. Eu... eu fugi deles na estação passada Está ouvindo,
avô? Estou cansado de fugir. Escutem, escutem todos. Eles podem ser vencidos, empu
rrados para o lugar de onde vieram! Escutem Corvo Caçador, ele descobriu como pode
mos fazê-lo.
Não é esse o nosso costume!
Covardes! acusou Corvo Caçador, prendendo na garganta as palavras do ancião. Não
temos nós o direito de continuar nas nossas terras? De proteger as nossas mulhere
s e os nossos filhos?
Mas os Outros...
Acham que eles vão nos deixar em p
Por que não? desafiou o ancião. Não os ameaçamos.
Corvo Caçador cerrou os dentes e a raiva emprestou força à sua voz para ser ouvid
a por toda a assembléia.
Deixaram a gente de Geiser em paz? O braço apontou o homem alto a seu lado.
Perguntem a Raio Certeiro. Eles assassinaram toda a família dele.
O ancião mudou nervosamente a posição dos pés.
Lamento pelo rapaz, mas acho que Geiser deve ter feito qualquer coisa aos
Outros para os zangar ao ponto de matarem...
Nada! insistiu Raio Certeiro com amargura. Não fizemos nada!
Corvo Caçador permitiu que o silêncio pesasse sobre todos antes de gritar:
Nada exceto competir pelas manadas!
Nesse caso, temos de ensiná-los de que não queremos fazer-lhes mal. Partilhare
mos os animais.
Quer que recebamos os assassinos de braços abertos? Que os aceitemos? Que lh
es ensinemos sobre o Pai Sol e o Abençoado Povo das Estrelas? Corvo Caçador fez uma
pausa e limpou a boca com a manga enquanto olhava para a multidão silenciosa e som
bria. Eles só querem o nosso sangue!
A sua acusação rolou pela planície.
Vários dos homens mais novos manifestaram a sua concordância. Os mais velhos mu
rmuraram entre si. Uma mulher já idosa cobriu o rosto com uma pele de raposa e com
eçou, entre gemidos, a balançar para trás e para a frente.
Rato abriu caminho por entre a multidão para vir se colocar ao lado de Raio C
erteiro, seu marido.
O meu rapaz está morto! disse ela numa voz emocional. Que vale o Outro que o
matou? Não é do Povo... nem segue os costumes do Povo! Estou orgulhosa por o meu ma
rido ter morto este Outro. Escutem-me! Quantos vão ter de chorar? Quantos vão cair s
ob os seus dardos no ano que começou? Pensem nisto antes de cochichar por trás das mão
s.
Ela tem razão! gritou Corvo Caçador, de punho fechado bem no ar. Será que o Pai
Sol nos colocou aqui para diversão desses Outros? Todos já viram o Avô Urso Pardo brin
car com um salmão, atirá-lo de um lado para o outro por divertimento, pisá-lo, e depoi
s deixá-lo apodrecendo porque tem a barriga cheia. Eu recuso-me a servir de brinqu
edo aos Outros.
De hoje em diante, que seja sabido que eu lutarei e matarei para manter a
terra dos meus pais! Espetou o dardo no chão, um totem de sangue negro. Cheio de r
aiva fincou os pés e cruzou os braços, olhando todos de frente. A luz da fogueira re
fletia-se nas suas feições plenas de raiva e brilhava nos seus olhos negros.
Os homens mais novos acenaram a sua concordância e da multidão surgiu um murmúrio
crescente de vozes. Com tons de raiva e razão. As mulheres mais novas olhavam par
a eles, os dentes brilhando de orgulho à luz da fogueira.
Apenas os mais velhos olhavam nervosamente uns para os outros e murmuravam
a sua hesitação.
Corvo Caçador ergueu as mãos calejadas, com as palmas viradas para a frente, pa
ra acalmá-los. Olhou em volta de rosto fechado.
Isto... isto não devia ter acontecido. Virou-se para encarar Corvo Caçador bem
nos olhos.
Mas alguma coisa tem de ser feita.
Não a guerra com os Outros disse o ancião da multidão. E a seguir? Mais incursões
Não, não é esse o caminho!
A morte também não o é! Corvo Caçador ergueu o queixo e estendeu um dedo. Ali, a
este de nós, fica o Grande Gelo. Mais gelo existe nas grandes montanhas. No gelo não
há caça, avô, só existe fome. E sabemos que no Sul há colinas, pilhas de rochas, terra se
ca e, no fim, mais gelo! Pensem naquilo que deixamos que os Outros nos tirassem!
A riqueza da água salgada... e os animais das planícies de erva. Só fazendo os Outros
recuar poderemos voltar a viver em paz.
Lobo Cantante saiu da linha dos dançarinos.
Corre na Luz disse que existe um caminho através do Grande Gelo que leva a u
ma terra cheia de caça e...
E você está aqui salientou Corvo Caçador com ironia. Pouco vale o Sonho de Lobo.
Lobo Cantante soltou um suspiro e abanou a cabeça:
Eu... eu não sei. Nós não morremos. Virou-se, ganhando coragem. Estão ouvindo? Nó
morremos!
E onde está o meu irmão?
Ficou com a velha Garça. A boca de Lobo Cantante endureceu com o silêncio.
Ficou com uma bruxa. Corvo Caçador soltou uma risada de desprezo. O mais pro
vável é que esteja conjurando espíritos maus para nos matar por o termos rejeitado e a
os seus falsos Sonhos!
As sobrancelhas de Lobo Cantante baixaram-se.
Ele é um excelente rapaz! Ele nunca...
Nesse caso, por que não está aqui em pessoa para nos ensinar o caminho através d
o gelo?
Não sei murmurou humildemente Lobo Cantante.
O nosso destino está nas nossas mãos, nas mãos dos jovens com dardos certeiros!
E os Outros? perguntou outro dos mais velhos, gesticulando. Acha que se vão
limitar a deixar que os matemos? Acha que também não nos matarão?
Corvo Caçador abanou a cabeça.
Lebre Saltitante? Quantos de nós morreram ontem?
Lebre Saltitante mudou de posição, nitidamente incomodado:
Nenhum.
Quantos dardos atiraram contra nós?
Nenhum.
Oh, alguém vai morrer continuou Corvo Caçador. Eu posso morrer! Começou a andar
de um lado para o outro em frente do dardo ensangüentado. Mas não morrerei como um c
aribu numa armadilha, para ser abatido à paulada. Será que o Povo perdeu a sua honra
?
Raio Certeiro deslizou até ficar ao lado de Corvo Caçador, o seu rosto estranho
brilhando com os tons laranja da fogueira.
Se se limitarem a ficarem sentados e deixarem que os Outros nos matem, dei
xará de haver alguém que nos possa cantar ao Abençoado Povo das Estrelas! O Pai Sol ob
rigará as nossas almas a descer em espiral para a escuridão.
Escuridão eterna, por sermos covardes reforçou malevolamente Corvo Caçador.
Uma onda de assentimento percorreu o Povo. Os mais velhos, e as mães com cria
nças no colo, olhavam-se, desconfiados. As crianças assistiam, de olhos muito aberto
s, os mais pequeninos chuchando nos dedos ao mesmo tempo que davam as mãos aos irmão
s e irmãs.
Na periferia do grupo, Corvo Caçador avistou Raposa Dançante, o seu belo rosto
sombrio. Mesmo num momento de perigo como aquele ele sorriu-lhe e viu-a baixar o
s olhos. Afinal, ela voltou. Mais tarde...
É este o futuro, meu Povo. Corvo Caçador bateu no dardo coberto de sangue. Tem
os de nos salvar. Vou jejuar durante quatro dias. No quinto dia partirei e empur
rarei mais Outros para fora das nossas terras. Observou os rostos dos mais novos
. Mas se mais ninguém tem coragem de ir, irei sozinho!
Viu Raposa Dançante afastar-se num passo rápido.
Corvo Caçador deu meia volta e mergulhou também na escuridão. Atrás dele houve uma
erupção de vozes. Tal como um homem jogando com dados de ossos do pé de caribu, fizera
a sua melhor jogada.
Isto não é nada bom. Água Verde abanou a cabeça e entrou na escuridão da tenda. C
o Caçador não devia ter feito isto neste momento.
Eu só quero caçar protestou Aquele Que Grita, seguindo-a. Não é pedir muito, não
E os Outros? Eles... Eh! Há um pé nas minhas roupas!
Um pé!
É Raposa Dançante murmurou, baixinho. Por favor, eu tinha de ir para algum lug
ar.
Água Verde viu que Aquele Que Grita estava agitado.
E tinha de ser...
Corvo Caçador sussurrou desesperadamente Raposa Dançante. Ele anda à minha procu
ra. Ele vai querer... vai querer...
Não me interessa o que ele quer começou Aquele Que Grita. Não pode meter-se assi
m na minha...
Cale-se! disse Água Verde. Corvo Caçador quer acasalar com ela. Não é demais uma
ulher pedir santuário por causa de um homem como aquele.
Quer acasalar... A voz de Aquele Que Grita apagou-se.
Eu vou embora murmurou Raposa Dançante. Eu não queria causar...
Hush! ordenou com firmeza Água Verde. Estas roupas têm espaço suficiente para to
dos nós.
Não, não tem importância. Afinal, estou amaldiçoada por Chamador de Corvo. Não tenho
o direito de sujar as suas almas com a minha. Não pensei no que estava fazendo.
Chamador de Corvo! Nem conseguiria amaldiçoar uma mosca em mosquito! Aquele
Que Grita soltou uma gargalhada.
As roupas são grandes repetiu Água Verde. Concordo com o meu marido. Nós vimos S
onhadores. Chamador de Corvo não passa de uma imitação.
Expulsou-me e amaldiçoou-me! lembrou Raposa Dançante.
Ouvi falar no que ele te fez. E sei porque isso aconteceu. Ele lhe bateu!
Eh! exclamou Aquele Que Grita. Será que um marido não tem direito à mulher sempr
e que a queira?
Venha para mim como um mamute com cio e vai ver o tempo que leva para mete
r as suas roupas na neve!
Eu nunca seria...
Claro que não concordou ternamente Água Verde. Mas é aí que bate o ponto.
O melhor é ir embora! insistiu Raposa Dançante.
Fique. Aquele Que Grita obrigou-a a deitar-se. Tal como diz Água Verde, as r
oupas são suficientemente grandes.
E você vai ser cuidadoso acrescentou secamente Água Verde, enfiando um dedo na
s costelas de Aquele Que Grita.
Ai! Por que fez isso?
É só um aviso. A última coisa que deve querer fazer é criar problemas para si mesm
o, tentando espetar essa coisa pequenina em Raposa Dançante. E Água Verde meteu-se d
ebaixo das finas peles de Verão.
Coisa pequenina? Pequenina! ORA!

CAPÍTULO 30
Até que enfim te encontrei.
Raposa Dançante ficou rígida ao escutar a voz fria de Corvo Caçador. Agarrou com
mais força o pau de escavar que estava usando para colher as raízes das batatas ártica
s do solo lamacento. O seu saco estava cheio de bardanas amargas e de raízes sucul
entas. Na sua frente estendiam-se as colinas até às montanhas do Oeste. Tinham um ar
límpido naquela luz do dia. Como se ela pudesse estender a mão e tocar nos picos pe
rpetuamente nevados. À sua volta, as ervas e as moitas ondulavam, verdes em contra
ste marcante com as rochas aluviais da encosta a seu lado.
Virou-se. Ele estava ali, os braços cruzados, a cabeça de lado. A brisa agitava
os seus longos cabelos que pendiam sobre os seus ombros num brilhante manto neg
ro-azulado. O seu rosto, demasiado perfeito, refletia curiosidade, desafio e uma
gentileza por trás dos seus olhos negros e pestanudos.
Andei à sua procura na última noite da Dança.
Achei que você ia orar por uma visão.
Um sorriso torceu-lhe os lábios.
Já vi. Encheu os pulmões, expandindo o peito. Este ano seremos bem sucedidos.
Este ano vamos empurrá-los para o Norte. Vamos dar ao Povo espaço para respirar... d
urante algum tempo.
Raposa Dançante observava-o, sentindo-se encurralada. Água Verde e Raio de Sol
Sorridente estavam do outro lado da pequena colina. Bastava que gritasse.
O que você quer?
Um curioso ar de surpresa atravessou-lhe o rosto.
Salvar o Povo dos Outros. Para...
Comigo clarificou ela friamente. Ele riu.
Ah, mas você já se tornou minha. Quem mais vai te querer? O tolo do meu irmão va
i ser um Sonhador. Louco! fez um gesto de futilidade. Costumava me falar das sua
s visões. De como o Pai Sol vivia no Sul e de estranhos animais. De caribus castan
ho-avermelhados com traseiros da cor do couro curtido. De veados menores, amarel
os e brancos, com os cornos ramificados e capazes de correr mais que a Mulher Ve
nto. E falava também de um pequeno cão-lobo. Castanho, dizia ele, com uma cauda felp
uda e um focinho de raposa. Rápido, segundo ele. Mais esperto que o lobo. Emitiu u
ma gargalhada. Mais esperto que o lobo? Aposto que o seu querido espírito adora es
sas coisas!
Eu não desprezaria os Sonhos dele comentou Raposa.
Oh? avançou arrogantemente para ela. E por que não? Diga-me porquê, Raposa. Dou
valor aos seus conselhos. Um dia você será a minha esposa.
Olhou para ele, ciente de como estava próximo. O leve odor do seu corpo chega
va-lhe ao nariz. Quase com medo encarou os olhos dele, sentindo o magnetismo da
sua personalidade. Se ele não fosse tão bonito... não, impensável! Não com ele. Voltaram a
s memórias da Longa Escuridão, do corpo de Corvo Caçador deslizando para dentro das su
as roupas.
Não, nunca serei! murmurou ela, tentando manter uma voz firme.
Os lagos profundos que eram os olhos dele rodopiaram aspirando-lhe a alma.
Um arrepio profundo correu-lhe a espinha ao mesmo tempo que aqueles olhos se sua
vizavam.
Você vai ser uma líder do Povo, Raposa. Os tons suaves da voz dele acalmavam e
acariciavam. Um calor surgiu dentro dela. Mas só se estiver ao meu lado.
Uma líder?
Corvo Caçador assentiu com um gesto.
Uma grande líder. Foi por isso que eu fiz aquilo que fiz. Garra ensinou-lhe
muitas coisas, não ensinou? Oh, eu a vi matar o alce. Bem feito. Um lançamento perfe
ito.
Como? perguntou Raposa, recuando um passo.
Eu a segui durante toda a Longa Luz. Vi e admirei. Admito que houve ocasiões
em que me senti tentado a fazer-lhe uma emboscada e saborear as tentações do teu co
rpo...
Você nos seguiu? Todo este tempo você...
Com certeza. Não queria que acontecesse qualquer mal à mulher que me é querida..
. sobretudo desde que fez amor comigo na marcha, desde o Campo do Mamute.
Ela estremeceu.
Nunca te machuquei recordou ele. Eu a amo mais do que qualquer outra coisa
nesta terra. Exceto, talvez, o nosso Povo.
Estonteada, virou-se e olhou para longe, sentindo a proximidade dele, senti
ndo os seus braços em torno de si, ternos, protetores. Os dedos dele traçaram a linh
a firme do seu queixo, acendendo fogo na sua carne.
Eu... eu nunca te amarei! Nunca! Você me forçou... serviu-se de mim para seu p
razer como uma... como uma... Levou-me de volta para os pés de Chamador de Corvo..
. humilhou-me na frente do Povo. Não, eu fugi para escapar de você.
Eu sei.
Libertou-se com violência, as mãos cerradas em punhos ao longo do corpo.
Você sabe? repetiu ela com uma raiva crescendo das suas memórias. O que é que vo
cê sabe? Que sabe das carícias de Chamador de Corvo, do meu desespero? Como pode sab
er o que senti no dia em que eu e Garra abandonamos o campo de Assobio De Carnei
ro?
As visões. Uma tristeza invadiu-lhe os olhos. Já te disse que nunca serei capa
z de te magoar. Mas eu vi. Vi o seu Poder, Raposa. Não agora, não nos tempos mais próx
imos, mas um dia a sua palavra será lei. Na visão você será a força do Povo e eu...
E é você que faz pouco dos Sonhos de Corre na Luz? gritou ela, abanando a cabeça
.
Alguma vez ele teve visões onde a via? Remexeu os dedos sujos e baixou o olh
ar.
Não, ele Sonhava...
Eu tive visões de você. Estamos ligados, você e eu. Eu a vi mudada... pod
erosa. E é meu dever obrigá-la a seguir o caminho certo. Ajudá-la a ser aquilo que dev
e ser.
Interrompeu-o com brusquidão:
Serei aquilo que quero, não o que a sua imaginação doentia quer que eu seja!
Corvo Caçador abanou a cabeça, um ligeiro sorriso nos lábios.
Como te amo gostaria de te poupar. Mas não posso. Tal como eu, você também tem o
seu lugar. Talvez acabaremos os dois juntos, poderosos, com o destino do Povo n
as nossas mãos. Nesse momento, você me amará e compreenderá aquilo que fiz por você.
A resposta dela morreu-lhe nos lábios perante o olhar apaixonado dele.
Está louco!
Os estranhos olhos dele nunca largaram os dela.
Talvez. Lembre-se que jurei amar-te. O meu ódio é para os Outros que querem no
s tirar daqui. Para você tenho apenas ternura e lágrimas ao pensar no que terá de enfr
entar. Quando vier comigo...
Eu nunca irei com você! contestou. Prefiro juntar-me aos Outros a...
Foi a vez de ele ser apanhado de surpresa.
Não! Nunca diga isso! Você... você é minha! Minha, está ouvindo? Por que pensa que l
uto? Para que você caia nas mãos de um Outro? É para mantê-la limpa... pura para a minha
semente, para que juntos, você e eu, possamos dar ao maior dos Povos uma linha...
Raposa recuou.
Louco! sussurrou, vendo-o olhar para si e abanar a cabeça.
Não pediu ele. Você não viu! Eu vi. Eu vi o filho na tua matriz.
O meu filho!
Um sorriso trêmulo aflorou-lhe aos lábios e os olhos ficaram úmidos.
Eu vi o nosso filho!
Não! gritou ela. Deixando atrás de si o saco de pele partiu correndo, os pés mal
tocando o chão, até ao outro lado da colina. Só quando Água Verde a segurou nos seus br
aços fortes é que parou de tremer.
Que foi?
Corvo Caçador ela tentou explicar, mas o horror era grande demais. Ele está lo
uco, está doido!
Calma, está tudo bem. Ele não vai incomodá-la. Água Verde voltou a abraçá-la.
Raposa Dançante olhou para trás, com medo, procurando, mas só viu as moitas e as
ervas que ondulavam na brisa.
Por que temos de ser sempre nós?
Aquele Que Grita levantou as mãos, olhando para um grupo de pessoas que disc
utia em voz alta a uma distância menor que a de um dardo lançado. Os mais velhos esp
etavam dedos acusadores no ar e arengavam com o grupo agitado de novos que, agar
rados aos seus dardos, abanavam teimosamente as cabeças. As discussões enchiam o aca
mpamento. As ações de Corvo Caçador tinham posto tudo em ebulição.
Nos abrigos do terraço, uma tensão profunda invadira as tendas de pele. As mulh
eres trabalhavam nas peles e vigiavam, com preocupação, os seus homens enquanto disc
utiam. As crianças já não corriam entre os cães, rindo e brincando. Os jogos do pau e da
s corridas tinham-se silenciado.
Aquele Que Grita abanou a cabeça e estudou a reserva, cada vez menor, das sua
s pontas de quartzite em bruto. Escolheu uma, observou cuidadosamente a pedra, o
s seus olhos cheios de prática procurando a mínima falha, a mínima irregularidade. Com
os dentes cravados no lábio, fechou um olho para melhor ver a ponta antes de pega
r a sua pedra de grés para preparar a plataforma.
Primeiro foi Corre na Luz e o seu Sonho! começou ele por cima do raspar da p
edra. Agora, é Corvo Caçador que quer caçar os Outros em vez de mamute e caribu! Estam
os sempre com problemas.
Lobo Cantante, que talhava um pedaço de marfim de mamute, para fazer dele um
gancho de atlatl, levantou os olhos. Perto de si, Raio de Sol Sorridente remenda
va-lhe os mocassins. Ainda mal se notava a nova vida que crescia na sua barriga.
É como disse Garça comentou ele. O mundo está mudando. Nada é como antigamente.
Corvo Caçador e Corre na Luz dividiram o Povo em duas metades. Água Verde leva
ntou o queixo, pensativa.
Com que metade devemos ficar? Corre na Luz manteve-nos em segurança... levou
-nos a Garça. Não podemos esquecer o fato. Com uma pedra redonda esfregava uma mistu
ra de mioleiras e urina na pele em que estava trabalhando. A pele de cria de car
ibu serviria para fazer roupa de baixo macia, quente, leve. O volume de uma cria
nça já lhe arredondava o abdômen.
Acho que devíamos ter ficado com ele concordou Aquele Que Grita. Eu teria pe
rdido isto tudo.
Você anda dizendo isso muitas vezes disse Água Verde num tom casual.
O quê?
Nós devíamos ter... nós devíamos ter... sorriu-lhe ternamente ao vê-lo corar.
Por que acham perguntou Lobo Cantante com curiosidade que Chamador de Corv
o ainda não disse nada?
Aquele Que Grita encolheu os ombros.
Dá a idéia de que está à espera de qualquer coisa.
Raposa Dançante fungou alto.
Bem sabem o que Garça disse a respeito dele. E ouviram Ramada Partida. Raio
de Sol Sorridente virou as botas compridas na mão. Que ele não Sonha. E Garça sabe ess
as coisas. Talvez ele esteja vendo de que lado sopra o vento para inventar um So
nho.
Garça acredita no Sonho de Corre na Luz disse Aquele Que Grita. Acenou consi
go mesmo, correndo o polegar pelos bordos do instrumento que preparara, e pegou
a vara.
Mas as pessoas dizem que ela é perversa, que é uma bruxa! murmurou Raio de Sol
Sorridente.
Não nos fez mal algum. Deu-nos comida e manteve-nos vivos. Não, ela tem toda a
razão. E Sonha. Sonha de verdade. Lembram-se de como chamou o caribu?
E lembram-se de como Corre na Luz chamou o caribu?
Sim. Aquele Que Grita bateu com a vara ao longo do bordo que preparara, fa
zendo saltar pequenas lascas finas. E havia lá pedra muito boa para ferramentas. P
or aqui não encontrei nada que se assemelhasse.
Raposa Dançante aproximou-se mais para observá-lo, absorvida no trabalho dele.
Eh! queixou-se Lobo Cantante. Não faça isso! Essas lascas de pedra metem-se em
todo o lado. Quando menos esperar, estou me sentando e espetando numa nádega!
Aquele Que Grita olhou em volta, desanimado.
Perto de você um homem não pode talhar uma boa ponta para salvar a alma. Mas e
spere, está bem? Assim que eu acabar isto você vai querer esta ponta. Vai querer tro
car uma das suas imagens por ela.
Não tenho culpa de que faça as melhores pontas de todo o Povo. Sobretudo essa
nova ponta fina que criou. Que devo fazer? Deixar a família morrer de fome? Além do
mais, estas imagens que faço são poderosas, dão-lhe sorte.
Nesse caso, pare de protestar por causa das lascas! Não se pode fazer uma po
nta sem...
Eu quero essa ponta disse bruscamente Raposa Dançante, estudando a pedra. Tr
oco duas boas peles de raposa por ela. Boas peles, das que servem para forrar os
capuzes e as parkas ou para isolar as luvas.
É sua. Aquele Que Grita olhou, cheio de orgulho, para Lobo Cantante, que mur
murou qualquer coisa entredentes e se concentrou no marfim.
Faça-me uma haste destacável... e talvez troque contigo um par de pontas menci
onou Aquele Que Grita.
Dardos destacáveis? Lobo Cantante afastou a idéia com um gesto. Você não está bom
espírito.
Uma coisa em que eu pensei quando o búfalo quase deu cabo de mim. Aquele Que
Grita franziu a testa. Pense nisso, está bem?
Não acha que devemos seguir Corvo Caçador? perguntou Raio de Sol Sorridente, m
udando o rumo da conversa para aquilo que preocupava a todos.
Lobo Cantante coçou o queixo.
Estão acontecendo coisas estranhas. E se ele tiver razão? E se a gente de Geis
er tivesse lutado? Gostaria de saber mais do que sei.
A luta não está nos nossos costumes protestou Aquele Que Grita. Lembro-me de u
ma história que Voa Como Uma Gaivota costumava contar. Sobre um tempo muito antigo
em que guerreávamos com os Outros. Foi por isso que o Povo veio para cá, para estar
longe de tudo isso. Ela dizia que era melhor partir do que sofrer todas aquelas
incursões. Dizia que todos passavam o tempo olhando para trás e nada aparecia feito
. Não havia tempo para caçar. Foi por isso que o Pai Sol nos trouxe para esse lugar.
E nos deu regras para não nos matarmos uns aos outros.
Talvez tenha sido o Pai Sol que trouxe para cá os Outros? Sabem, para nos pôr à
prova?
Talvez. Lobo Cantante fez uma pausa e olhou para longe. Talvez Corre na Lu
z nos estivesse dizendo que existem outras maneiras.
Corre na Luz! Corre na Luz! Já chega de ouvir falar nele.
Ninguém morreu a não ser uma garotinha. Minha mulher e eu sobrevivemos. Lobo C
antante abanou a cabeça. Levou-nos até Garça. Um Sonhador. Um verdadeiro Sonhador. Não a
lguém como o Chamador de Corvo.
Chamador de Corvo murmurou Raposa numa voz baixa e selvagem, fechando os o
lhos.
O que ele te fez foi errado concordou baixinho Lobo Cantante.
Não se esqueçam que Corvo Caçador ajudou.
E pensa que ele está louco?
Ela acenou muito depressa com a cabeça.
Há qualquer coisa atormentando-lhe a mente. Ele diz que Sonha, mas eu não sei.
Aquele Que Grita suspirou e olhou, pensativo, para Raposa.
Ao que parece, acabamos sempre por voltar aos dois irmãos, hein? E com probl
emas em qualquer um deles.
Pelo menos, Corre na Luz sugeriu que não fossemos tentar apanhar um dardo na
barriga respondeu Água Verde com uma sobrancelha elevada. Um líder deve ter sempre
em mente o bem-estar do povo. Por mim, acho que devíamos evitar os Outros.
Corre na Luz não quer que a gente lute concordou Raio de Sol Sorridente. Só qu
er que sejamos comidos pelos fantasmas do Grande Gelo. Apertou o nó com os dentes
e inspecionou as botas que acabara de fazer.
Corvo Caçador regressa amanhã. A maioria dos mais novos está pensando em ir com
ele. Todos dispostos a espetar os dardos nos Outros. Lobo Cantante levantou o ma
rfim, escavando furiosamente com o buril que tinha na mão. Se tinha de acontecer,
estamos em bom momento. Há muita carne. A Renovação está prestes a acabar. Falta ainda a
lgum tempo para a caçada de Inverno.
Eu não vou decidiu Aquele Que Grita, olhando para Água Verde e vendo o alívio de
la. Tenho aqui uma família. E mais um a caminho.
Lobo Cantante olhou para a esposa.
Talvez... talvez eu vá.
Raio de Sol Sorridente endireitou-se com um olhar horrorizado.
Não, você não.
Quero ver. Talvez deva estar lá alguém como eu. Como testemunha do que acontec
er.
Não voltou ela a dizer, pegando a mão dele. Lobo Cantante olhou, muito sério, pa
ra a esposa.
Talvez tenha chegado o momento de fazer aquilo que Ramada Partida e Garça di
sseram. É por isso que mantemos os mais velhos. Para nos ensinarem. E eu preciso s
aber, preciso ver os dois lados. Deve haver alguém com juízo que volte e diga ao Pov
o o que de fato aconteceu. Não confio em Corvo Caçador.
Olhou para Aquele Que Grita à medida que o silêncio se prolongava.
Se eu não regressar, você rezará a minha alma ao Abençoado Povo das Estrelas?
Raio de Sol Sorridente cerrou os dentes e afastou o olhar, assustada.
Nós te oraremos ao Abençoado Povo das Estrelas concordou Aquele Que Grita com
toda a gravidade. Mas talvez não sirva de nada...
Você tomará para si Raio de Sol Sorridente? Fará dela uma esposa ao lado de Água V
erde? Criará o meu filho?
Aquele Que Grita calou o protesto que ia saindo e exalou.
Assim farei. Você e eu estamos juntos há muito tempo, hein? Caçamos mamute junto
s, salvamos as vidas um do outro. Farei isso por vcê tal como faria por mim. Tomar
ei Raio de Sol Sorridente por minha esposa. O seu filho será como se fosse do meu
sangue.
Lobo Cantante mirou as próprias mãos.
Talvez eu consiga aprender a verdade dos dois irmãos. Um deles tem de ter ra
zão.
Raio de Sol Sorridente mordeu o lábio, os olhos brilhantes de preocupação. Raposa
Dançante apertou-lhe a mão, procurando tranqüilizá-la.
E talvez gemeu Raio de Sol descubra se Garça tem razão a seu respeito.

CAPÍTULO 31
Lobo Cantante, agachado na neblina cinzenta da manhã, observava o terraço roch
oso onde estava instalado, no outro extremo do areal, o acampamento dos Outros.
Um rio largo passava junto das cabanas, o seu fraco murmurejar mais sonoro no si
lêncio antes da alvorada. Virou-se um pouco de lado para ver Corvo Caçador. Uma luz
estranha enchia os seus olhos de guerreiro. Espetava o dardo na direção dos Outros c
omo se, por magia, os fizesse tombar. Duas crianças levantadas antes dos adultos c
orriam em volta das cabanas e a brisa trazia-lhes o seu riso.
Um vazio de tristeza enchia o peito de Lobo Cantante. Vão matar as crianças?
Lá embaixo, um homem alto saiu de uma das cabanas e bocejou face ao horizonte
. A leste, o céu pintava-se de tons vermelhos e laranja.
Prontos? sussurrou Corvo Caçador, preparando-se para saltar e correr encosta
abaixo.
Os homens acenaram afirmativamente, umedecendo os lábios secos. O coração de Lobo
Cantante ficou muito pequenino.
Vamos!
Corvo Caçador soltou um grito de guerra e correu para o acampamento dos Outro
s. Os guerreiros do Povo foram atrás dele, gritando o seu ódio.
Lobo Cantante seguiu Raio Certeiro até uma cabana escura e assistiu, horroriz
ado, quando o homem levantou o dardo e o usou, como uma lança, para cortar as garg
antas dos velhos e dos bebês.
Incapaz de se mover, deixou que o empurrassem brutalmente para o lado quand
o Raio Certeiro saiu daquela cabana para se dirigir a outra. O estômago de Lobo Ca
ntante subiu-lhe à garganta perante a carnificina. Olhos que já não viam viravam-se pa
ra ele e o cheiro metálico do sangue banhava-o em horror.
Ande! gritou-lhe Raio Certeiro.
Recuou um passo, sentindo o frio da manhã, e engoliu convulsivamente. Percebe
u um movimento da sua direita quando um Outro, por trás de um tabuleiro de carne s
ecando, atirou o dardo rasgando-lhe o braço. Lobo Cantante, por instinto, saltou p
ara trás e atirou o seu dardo que foi furar o pescoço do homem. Este caiu, soltando
um rugido de medo e ódio.
Lobo Cantante correu como um louco pela aldeia, saltando por cima de cadávere
s, afastando mulheres e crianças que procuravam fugir. Os gemidos rasgavam a manhã.
Viu Corvo Caçador e correu nessa direção, respirando pesadamente. O líder descobrir
a uma cabana ainda adormecida e começou a trucidar os homens, ainda mal acordados,
que procuravam as suas armas. Parecia-lhe que todos gritavam e choravam.
Um rapazinho, que nem três anos devia ter, saiu gatinhando por baixo da pele
da entrada, as lágrimas correndo-lhe pelo rostinho sujo. Corvo Caçador gritou:
Apanhem-no! Vai crescer e nos matar!
Raio Certeiro correu, agarrando o rapazinho por um pé e puxando-o para trás. O
pequenino defendeu-se com valentia, gritando de terror. Batendo com os punhos na
cara e nos braços do captor. Raio Certeiro agarrou uma pedra grande e levantou-a
acima da cabeça do garoto.
Não! gritou Lobo Cantante, os olhos cheios de lágrimas, vendo a pedra descer e
esmagar a cabeça do rapaz.
Raio Certeiro levantou-se e, depois de lançar a Lobo Cantante um olhar de des
dém, afastou-se a trote.
Os sobreviventes fugiram para oeste, abandonando atrás de si as armas, arrast
ando consigo os mais velhos, carregando as crianças, sem olharem sequer para trás.
Atrás deles! ordenou Corvo Caçador, e vários dos jovens do Povo iniciaram a pers
eguição daqueles que fugiam pelas colinas. Um Outro estava estendido aos pés de Corvo
Caçador, cheio de dores, um dardo espetado na barriga. Corvo Caçador puxou o dardo c
om brutalidade e ajoelhou, sorrindo com uma falsa simpatia.
Não vou te matar! anunciou.
Morrerei assim mesmo disse, a custo, o homem, rolando de lado, agonizante.
Tinha um rosto triangular com um nariz abatatado.
Sim, mas deste modo vai ser uma coisa demorada e dolorosa. O Outro sorriu,
o ódio no olhar.
É melhor que corra para bem longe e depressa, homem do Inimigo. Fogo de Gelo
revolverá as névoas do tempo até descobrir onde você está escondido e apagará a tua nódoa da
face do mundo.
Corvo Caçador soltou uma gargalhada e levantou-se.
Fogo de Gelo. Quem é esse? Algum falso shaman?
O maior shaman do mundo. Ele viu a tua chegada. Corvo Caçador rosnou de desp
rezo.
Nesse caso, por que não os avisou para poderem escapar?
O Outro deu um pontapé que acertou em Corvo Caçador e o fez cair. Corvo Caçador l
evantou-se e chutou o Outro. Os intestinos do homem saíram pelo rasgão do abdômen.
Veremos como estará a sua bravura daqui a três dias quando o sangue correr com
o um rio negro pelas tuas veias.
Lobo Cantante suspendeu a respiração, sentindo vir à superfície um respeito pelo Ou
tro. Aquele homem sabia a morte terrível que o esperava mas, mesmo assim, lutava c
om todas as suas forças. Dentro de horas a ferida estariam suporando, os sucos do
intestino fervendo como lodo verde, atraindo moscas e animais. O odor ia atrair
todos os bichos que viviam dos mortos... ou, pior ainda, o Avô Urso Pardo. Mas a s
ua morte seria no meio de uma dor insuportável.
Corvo Caçador cuspiu nos olhos do homem antes de se afastar, cheio de arrogânci
a. Acenando para os seus seguidores, grunhiu:
Vamos. Temos de nos certificar de que ninguém sobreviva nas cabanas.
Lobo Cantante viu-os ir de cabana em cabana. Um bebê chorou em algum lugar, o
grito terminando súbita e eternamente.
Avançou devagar para o Outro ali estendido. O homem estava enrolado numa bola
, empurrando futilmente as voltas do intestino que estavam no chão, tentando repô-la
s no seu estômago aberto.
Eu o matarei. Se ele quiser que o faça! murmurou Lobo Cantante numa voz tens
a.
O Outro olhou, semicerrando de confusão os olhos.
Porquê? Por que faria isso?
Por causa da tua coragem.
O Outro franziu a testa e depois baixou a cabeça, acenando.
Sempre pensamos que vocês não conheciam a honra do guerreiro.
Como é que o teu povo... Lobo Cantante procurou as palavras. Têm alguma forma
especial de encomendá-los ao Pai Sol? Ou a qualquer que seja...
Temos. O Grande Mistério. O homem reteve as lágrimas e apontou um dedo trêmulo a
o peito. Arranque o meu coração. Atire-o no rio. Ele o levará para o oceano. O Espírito
do Mar virá e... me levará para casa.
Lobo Cantante ajoelhou-se e rasgou as peles do homem para pôr à vista a sua car
ne. O peito do Outro subia e descia muito depressa e todo o seu corpo tremia.
Depressa murmurou o homem. Antes que os teus amigos voltem.
Lobo Cantante olhou por cima do ombro. Amigos ? Aqueles seus primeiros seriam
ainda humanos? O riso de escárnio de Corvo Caçador soou na brisa misturado com os ge
midos de uma mulher.
Depressa.
Os olhos de ambos cruzaram-se por um instante e Lobo Cantante sentiu a desc
onfiança e o medo do homem. Levantou o dardo e viu o Outro fechar os olhos com força
. Mergulhou o dardo com toda a rapidez, rasgando a carne do peito e pondo à vista
um coração que ainda batia. Um grito baio saiu da sua própria garganta quando cortou a
s artérias e o sangue espirrou para a sua cara e as suas roupas. Cortou com cuidad
o o saco do coração e ficou com ele, quente e tremente, na sua mão.
O rosto do Outro tomou um ar de paz, os olhos mirando a eternidade. Lobo Ca
ntante levantou-se, suportado por pernas que tremiam, dirigiu-se para o rio onde
entrou até ter água pelo joelhos. As ondas batiam-lhe nas pernas.
Colocou o coração na água e viu-o afundar. Pediu, então, baixinho:
Leve-o para casa, Espírito do Mar. Ele morreu com bravura. Viu o sangue do c
oração surgir na superfície, misturando-se com o verde da água, até desaparecer. Agarrou e
ntão o couro por cima do seu próprio coração e deixou as lágrimas correrem.
Dirigiram-se para Norte, descendo ao longo do Grande Rio, empurrando os Out
ros na sua frente. Corvo Caçador avançava agora cheio de arrogância, sorrindo o seu or
gulho àqueles que considerava merecedores dos seus elogios, olhando de lado para o
s covardes como Lobo Cantante, que ficava sempre para trás, só matava para salvar a
própria vida e pedia aos guerreiros que não esquecessem os costumes do Povo.
Uma noite acamparam numa parte baixa, uma necessidade derivada das noites c
ada vez mais longas. Estavam fatigados da longa jornada. Enquanto a noite contin
uava, nenhum deles podia esquecer a Longa Escuridão que já os espreitava no horizont
e. Lobo Cantante olhava por cima do ombro, cada vez com maior freqüência, para o Sul
, saudoso da sua casa.
Naquela noite acamparam numa pequena cova de um vale, as encostas das colin
as a abrigá-los dos ventos. O Grande Rio corria e rugia a Leste, o seu caminho mar
cado, mesmo na escuridão, pela água branca. Lobo Cantante que já não gozava do favor de
Corvo Caçador acendeu um pequeno fogo, um tanto afastado, queimando folhas secas e
bosta seca, aproveitando para secar ramos de salgueiro para fazer, mais tarde,
um fogo mais quente. Lá de cima, o Abençoado Povo das Estrelas contemplava o seu minús
culo olho de fogo. Tentou imaginar, com toda a gravidade, no que pensariam eles
se fechariam os olhos ao verem o Povo e o rastro de sangue que deixava atrás de si
. Refletiu nisso, vendo as outras pequenas fogueiras onde os homens estavam sent
ados, rindo e gesticulando, falando dos seus triunfos de guerra.
Por que você me desafia? perguntou Corvo Caçador, acocorando-se junto do seu f
ogo. O seu rosto, jovem e vigoroso, captava o reflexo das chamas e assumia tons
vermelhos. Os seus olhos negros estavam fixos em Lobo Cantante.
No que nos tornamos nós, Corvo Caçador? Eu os vi fazer coisas que vão perseguir
para sempre o meu sono. Esmagar crianças, cortar velhos e ficar vendo as suas trip
as saindo dos corpos. Vi-os puxar pelos intestinos enquanto eles gritavam. Porquê?
Que objetivo pode ter tudo isso?
Corvo Caçador acenou, muito sério, com rugas na testa.
Compreendo a sua hesitação... e sinto-me enojado com aquilo que faço. Mas os Out
ros são muitos. Eu vi. Aqui apontou para a cabeça. Eu vi. Focou em Lobo Cantante olh
os muito sérios. Compreende? Tenho tido visões.
Não, não compreendo. Lobo Cantante franziu a testa e remexeu o fogo. Para quê us
ar tortura? A atrocidade não interessa com...
Se os levar a ter medo, acabarão por nos deixar em paz. É por isso que deixo o
s corpos deles ficarem grotescos. Se lhes gelarmos os corações, Lobo Cantante, eles
vão nos evitar, vão deixar a nossa terra.
Deve haver outra maneira.
Corvo Caçador sentou-se e encostou os joelhos ao peito.
Como? Temos de matar esta gente, de fazê-los gritar e berrar... bateu no pei
to. Aqui. Tudo isto me faz o coração pequenino e a minha alma gritar nos meus sonhos
. Estes Outros não são muito diferentes de nós. Fazem muitas coisas da mesma maneira.
Mas empurraram-nos, ficaram com o mar, ficaram com as planícies de erva do Oeste.
Empurraram-nos durante gerações até nada mais nos restar. Já ouviu as histórias... de como
outrora eram nossas as terras que se estendiam a oeste das Montanhas de Gelo. Lá,
a caça era abundante. Os nossos antepassados caçavam em todo esse território.
E agora? Quanto mais seguimos para o Sul, o Grande Rio, mais seca, mais fria
é a terra. Você mesmo já viu que é assim. Já esteve mais para o Sul que qualquer outro de
nós. Dos teus próprios lábios ouvi que o Grande Gelo estreita, bloqueia o Grande Rio,
as montanhas mais altas ficam no Oeste. A Leste o gelo não tem fim.
Sim...
Corvo Caçador acenou a cabeça em simpatia.
E que nos resta?
Mas causar o sofrimento de...
Necessário. O rosto dele mostrava o esforço. Pense. As pessoas partilham as co
isas. Quando você mata um animal, espeta uma lança na barriga de um mamute e o segue
dias a fio, sente a dor do animal, não sente?
Lobo Cantante acenou em concordância.
Essa é a nossa única arma contra os Outros. Não está vendo? Levá-los a imaginarem-se
os cadáveres sangrentos que deixamos no chão. Levá-los a verem-se com os nossos olhos
. Levá-los a sentir essa dor.
Tal como nós nos sentimos? considerou Lobo Cantante.
Está começando a entender. Quando olha para um garoto com o crânio esmagado sent
e um nó na alma ao pensar que o teu filho podia estar assim, não sente? Imagina o qu
e acontece nas almas deles. Os olhos negros trespassaram-no e o poder da sua cer
teza era audível no ar.
A tua alma grita nos sonhos que tem?
Os olhos de Corvo Caçador não vacilaram.
Os gritos deles enchem o meu sono. É... é uma tortura.
Então, por que continua? perguntou Lobo Cantante. Por que faz isso a si mesm
o?
Os olhos de Corvo Caçador pareceram expandir-se e a sua alma ficar exposta, r
etorcendo-se à luz da fogueira.
Porque eu amo o Povo. É um fardo que tenho de suportar, não é porque queira ser
um monstro... mas para salvar o Povo. Não tenho nada mais precioso para oferecer q
ue eu próprio.
Os olhos, envolventes, pareciam querer sugá-lo não eram os olhos de um monstro
mas os de um homem na mais horrível das misérias. Honestos, abertos. A alma de Corvo
Caçador pulsava.
Um arrepio gelado fez estremecer Lobo Cantante. Olhou em volta para o acamp
amento na escuridão. Os corpos, enrolados em peles, eram simples, altos sobre as e
rvas esmagadas. Na sua frente, o fogo morrera, restavam apenas algumas brasas.
Corvo Caçador colocou uma mão no ombro de Lobo Cantante:
A guerra não é horrorosa. Mas temos de lutar.
Levantou-se e passou com ligeireza sobre os que dormiam para se enrolar nas
suas roupas.
Lobo Cantante sacudiu a cabeça e quedou-se a olhar para a escuridão.
Três dias depois, pouco após o anoitecer, estavam à espreita, por entre rochas di
spersas, para um acampamento dos Outros, que de nada suspeitava. As mulheres ass
avam peixe em volta de meia dúzia de pequenas fogueiras, rindo, acariciando as cri
anças que brincavam por perto. Os homens estavam sentados num círculo afastado, os o
lhos vigiando a escuridão crescente. Os rápidos do rio brilhavam, prateados, ao luar
.
Montem os dardos ordenou Corvo Caçador, e os homens apressaram-se a cumprir
a ordem.
Lobo Cantante segurou com força no seu atlatl, percorrendo com um dedo os sul
cos traçados na haste. Cortara uma linha para cada homem morto e agora a arma era
ondulada como os ossos da espinha. Raio Certeiro fora o primeiro a morrer: um da
rdo acertara-lhe a perna, cortando a grande artéria que corre ao lado do osso da c
oxa. Lobo Cantante não encontrara nada no seu coração que o fizesse chorar. Um dia mai
s tarde, Dois Dardos recebera uma lançada nos intestinos. Levara o seu tempo, apar
eceu pus na ferida que lhe deu febre. Carregado por outros jovens acabou por ter
uma morte horrorosa no meio de sonhos de pavor. Rede De Musgo, Voz De Pato, Sop
ra Com Neve, e muitos outros caíram também. Alguns pereceram no calor da batalha, ou
tros mais tarde, de feridas infectadas.
A estatura de Corvo Caçador aumentou e os jovens escutavam-no com atenção e verga
vam sob o seu Poder em expansão. Lobo Cantante sentia-se confuso, uma dúvida que o r
oia por dentro. Onde estava a verdade? A memória do horror e da dor nos olhos de C
orvo Caçador não o deixava. A lógica da carnificina mostrara-se correta. Num dos acamp
amentos bastou terem chegado para os Outros fugirem, apavorados, para a escuridão.
Dava resultado: o terror que o Povo inspirava era tão eficaz como os seus dardos.
Devia partir! Voltar para casa, para Raio De Luz Sorridente, repetia muita
s vezes Lobo Cantante a si mesmo. Mas havia uma fascinação horrível que o mantinha ali
vendo tudo, como se a sua própria vida dependesse do resultado. Observou os guerr
eiros agachados. Via-se uma dureza nos olhos do Povo que ele até então nunca vira.
Está acontecendo alguma coisa conosco. O quê? A vida está mudando. Vê a determinação na
s bocas dos jovens? Vê a maneira como olham por cima do ombro, alertas, ligeiros,
perigosos? As mulheres que tomam para si, tomam-nas pela força. Tornaram-se brutai
s. Onde está o riso, o bom humor que costumávamos partilhar?
Prontos? sussurrou Corvo Caçador. Os gestos repetiram-se de rocha em rocha.
Agora!
À ordem de avançar, os homens saíram de trás das rochas, com gritos apavorantes, at
ingindo todos com quem se cruzavam. Lobo Cantante corria atrás, serpenteando entre
a multidão. Uma mulher saiu correndo da cabana à sua esquerda. Deixou escapar uma e
xclamação ao reconhecer a prima que fora raptada muitos anos atrás.
Mirtilo? Mirtilo! chamou, desviando-se para interceptar a fuga. Ela encolh
eu-se toda na frente dele, os olhos esbugalhados pelo medo, tremendo, segurando
contra si um bebê.
Não mate o meu bebê implorou. Ele será um bom filho para você. Não...
Sou o teu primo, Lobo Cantante. O filho de Duas Pedras e de Pato Castanho.
O teu primo. Não se lembra?
A mulher levantou os olhos assustados e o bebê tentou sugar as peles que lhe
cobriam o peito.
O Povo murmurou ela, mal se ouvindo. Lobo Cantante inclinou-se para conseg
uir entender o que ela dizia. O Povo veio buscar-me? Engolindo com força ela abraçou
-o.
Sim, viemos buscá-la assegurou ele, tranquilizando-a, dando-lhe pancadinhas
nas costas.
Até o último dos Outros ter fugido da aldeia, ele manteve-a encostada a si, def
endendo-a do que estava acontecendo às mulheres jovens apanhadas por guerreiros co
m olhares esfomeados. Este ano iriam ter muitas noivas nos campos.
Nessa noite, em torno dos fogos de campo, Corvo Caçador encurralou Mirtilo e
sorriu, simpático, para eliminar o seu medo.
Quando você foi capturada?
Mirtilo olhou-o de soslaio, com o medo nos olhos.
Já passaram seis Longas Escuridões desde que fui apanhada. Um homem, Cauda De
Carneiro, apanhou a mim e à minha irmã, Cebola, quando escavávamos raízes. Obrigou-nos a
seguir para Oeste. Cebola tentou fugir uma vez e ele a matou com um tiro de dar
do. Fiquei assustada. Não fugi.
Corvo Caçador acenou, pensativo.
Nesse caso, esteve tempo suficiente com os Outros para conhecê-los. Conte-no
s coisas sobre eles. São poderosos?
Poderosos. Chamam a si mesmos de o Povo do Mamute mas são um simples floco d
e neve quando comparados com a tempestade de neve que é o Povo da Geleira.
Corvo Caçador franziu as sobrancelhas.
O Povo da Geleira? Quem são esses?
O Povo do Mamute vem sendo empurrado para o Sul e para o Oeste pelo Povo d
a Geleira, que vem no rastro da caça. Os animais estão deslocando-se para o Norte po
rque a terra, muitos dias para oeste, está ficando quente e seca e já não conseguem so
breviver lá. Entre o Clã da Presa Branca e o Povo da Geleira estão o Clã do Casco Redond
o, o Clã do Búfalo e, finalmente, o Clã da Barriga de Tigre. O Clã da Barriga de Tigre é o
de maior honra. Lutam para não deixar que o inimigo ocidental atravesse o estreit
o onde as águas salgadas têm menos de cinco dias de viagem.
Quanta gente tem o Povo do Mamute? perguntou Lobo Cantante, debruçando-se pa
ra a frente, ansioso por ouvir a resposta dos lábios dela.
Muita sussurrou ela. Muita mesmo! Mais gente do que eu tinha visto.
Corvo Caçador olhou para os rostos sombrios dos guerreiros que ouviam atentam
ente com um brilho de medo nos olhos. Riu disparatadamente.
Bem, vão ter de voltar por onde vieram! Alguns conseguiram escapar. Correrão p
ara contar aos outros clãs a bravura e a ferocidade do Povo!
Os elementos mais jovens do grupo levantaram insolentemente os queixos e es
petaram para a frente os peitos.
Lobo Cantante mordeu os lábios e olhou para o chão. Aqueles jovens imbecis não er
am capazes de perceber o que estava acontecendo? Se Mirtilo estava certa, então os
Outros deviam estar sob uma pressão muito maior que o Povo.
Qual é o aspecto do Povo da Geleira? perguntou, cansado.
Têm pele branca e coberta de pêlos. O Povo do Mamute luta contra eles. As histór
ias dizem que vieram do fim do mundo. São ferozes, tão ferozes como o Avô Urso Branco.
Talvez sejam os seus filhos humanos. Mas vivem perto da água salgada a sudoeste.
Contam-se histórias de como eles flutuam na água salgada em cima de troncos escavado
s por eles.
Ah! Ah! Corvo Caçador soltou uma gargalhada. Nenhum homem flutua na água. E as
árvores não crescem tanto que...
Aqui não interrompeu excitadamente Mirtilo. Mas eu já vi árvores tão altas que to
am no céu. Grandes e escuras, como o abeto vermelho anão, mas uma pessoa pode subir
cem pés nelas. Eu as vi a oeste daquelas montanhas apontou para trás de si. E vi as
altas montanhas que correm para a água salgada do sul. As árvores lá são tão altas que fur
am o céu.
Fantasias resmungou Corvo Caçador. Esta mulher está tocada do espírito. O seu es
pírito foi afetado por ter vivido tanto tempo com os Outros.
Mirtilo baixou os olhos, a boca cerrada. Um a um os guerreiros afastaram-se
, rindo das histórias que ela contara. Homens de pele branca? Cobertos de pêlos? Só se
fossem mesmo da família do Avô Urso Branco! Uma boa história.
Lobo Cantante, vendo vergonha na cara dela, esperou até os outros homens tere
m partido para os seus fogos.
Eu acredito em você disse.
Mas eles não sussurrou ela. Talvez deva regressar ao povo do Mamute. Não sei s
e pertenço a isso aqui.
Esquece-os. Estão tão inchados com os seus sucessos de batalha que nem são capaz
es de ver direito.
É melhor que aprendam comentou ela, raivosamente. Porque é muito pior do que a
quilo que lhes contei.
Um frio percorreu a espinha de Lobo Cantante.
Que quer dizer?
Lá, no oeste distante, o gelo está derretendo. O Povo da Geleira empurra os Ou
tros. Mas há outros a empurrar por trás do Povo da Geleira, gente que tem o mesmo as
pecto que nós e que faz fugir o Povo da Geleira para o Leste e encosta ao mar, hom
ens ferozes e desesperados, que seguem os animais para o Norte depois do gelo. São
tantos caçando, que o mamute foge mal sente o odor do homem.
Lobo Cantante ficou pensativo.
Se está havendo toda essa luta, por que é que conseguimos bater os Outros com
tanta facilidade?
Os olhos de Mirtilo encontraram os dele.
Não estavam esperando, primo. O Povo sempre fugiu, sempre lhes deixou os cam
pos de caça sem lutar. Estes campos de Outros tornaram-se gordos e preguiçosos. Só pre
cisavam matar alguns do Povo e podiam ficar com o que desejassem.
Nesse caso, ficarão longe, como afirma Corvo Caçador?
Mirtilo abanou a cabeça.
Não, passarão a mensagem de que vocês já não têm medo e virão caçá-los.
Podemos evitar que eles passem essa mensagem?
Não, primo. Tal como nós, eles também viajam entre os campos. São quatro clãs grande
s, tão grandes que cada um deles tem a sua própria reunião. Passam de campo em campo u
ma pele de mamute, sagrada, para manter o povo informado. E a pele é bem guardada.
Talvez pudéssemos interceptar a pele. Parar...
Nem sequer pensem em fazer uma coisa dessas! A pele está carregada de Poder.
Morreriam só de lhe tocar.
Lobo Cantante esmurrou, com o punho cerrado, a terra macia ao lado do poço do
fogo.
Deve haver uma maneira de fazê-los parar.
Fugir. É a única maneira insistiu ela de olhos implorantes. Não percebe? Vocês os
mataram. Segundo as crenças deles, os seus mortos não poderão ir para a aldeia das alm
as, debaixo do mar, enquanto a sua morte não for vingada. É um ponto de honra para e
les, a honra do guerreiro.
Lobo Cantante encheu os pulmões.
Quantos disse que eram?
São como os troncos de salgueiro ao longo do Grande Rio abanou a cabeça. E não tê
para onde ir. Estão encurralados, tal como o Povo. Eu os ouvi. Neste momento, estão
com medo de vocês. Mas o que os persegue é mais terrível ainda. O medo que sentem de
vocês vai derreter-se como gordura em cima de brasas quentes. O Povo da Geleira es
tá sendo empurrado para o Sul ao longo da costa rochosa da água salgada do Sul. Ist
o nos foi dito por corredores. O Povo da Geleira vai cortá-los em tiras.
Então, o Povo do Mamute não tem outra alternativa se não ocupar as nossas terras
?
É isso. E a sua honra de guerreiro exige que os atinjam de forma ainda mais
violenta que a que vocês usaram.
Os pensamentos de Lobo Cantante voaram para Raio de Sol Sorridente e o seu
futuro filho. Um tremor agitou o fundo da sua alma.
CAPÍTULO 32
Os olhos de Sonhador De Lobo dardejavam entre as duas velhas. As suas boch
echas tinham-se tornado escavadas e o cabelo, que pendia de ambos os lados da ca
ra, acentuava aquele ar de fome. Um traço de pena tingia as suas feições. A dor reflet
ia-se nos seus lábios finos. Esfregou devagar as mãos enquanto esperava, as mandíbulas
tão cerradas que os músculos tremiam.
Conte-me. A voz de Garça sobrepôs-se, calma, ao crepitar do fogo. O abrigo bri
lhava com uma luz alaranjada que iluminava o rosto branco de Ramada Partida.
O Povo murmurou, implorante. A minha visão foi nublada e oscilante, mas acho
que os vi morrendo.
Garça apoiou o queixo nas mãos e baixou as pálpebras. A seu lado, Ramada Partida
escutava com toda a atenção, remexendo o fogo com um pedaço de osso de caribu.
Que mais? insistiu Garça. Sonhador De Lobo abanou a cabeça.
Havia mulheres cativas. Algumas... não, isso não era muito claro.
O que sentiu?
Senti uma presença. Como se uma coisa estivesse chegando, uma coisa que vinh
a do horizonte distante. Como a Longa Escuridão... mas diferente. Umedeceu os lábios
, confuso. Como uma noite que viesse do Oeste em vez de vir do Leste.
Garça levantou uma sobrancelha.
Compreende o que isso significa?
Não.
Bem me pareceu resmungou ela, reclinando-se para trás, desapontada. Bem, pel
o menos já aprendeu a andar. Agora tem de aprender alguns dos movimentos da Dança.
O quê?
Tem de aprender a ter alguma graciosidade, senão anda por aí aos tropeções ou acab
a por se matar.
Ficou pensativo, sentindo do estômago o já habitual buraco de vazio e inadequação.
Sei algumas coisas. Sei chamar o caribu.
Garça abanou a cabeça.
Não, não é a isso que me refiro. Tudo tem a sua própria Dança mas, por trás, há apena
ma Dança.
Está sempre falando coisas incompreensíveis. O Todo isto e o Todo aquilo. Por
que não pode dizer-me as coisas de uma vez? Continuo a não compreender.
Levantou uma mão, os olhos negros bebendo a sua alma, puxando-o. Afastou os t
apetes de pele de lobo. Com uma colher de omoplata mexeu no fogo e espalhou bras
as por cima da rocha. Crepitavam loucamente na brisa que entrava por debaixo da
cortina da porta.
Sem deixar de fixar os olhos de Sonhador De Lobo flexionou os dedos, fechan
do-os em punhos, como se pretendesse aquecer os músculos. Ajoelhou-se em frente da
s brasas, o cabelo prateado ondulando.
Entrelaçou os dedos, fechou os olhos e respirou fundo, murmurando um cântico rítm
ico. A serenidade invadiu o seu rosto, as rugas suavizaram-se como se perdesse a
nos. Estendeu, então, as mãos e colocou-as, de palmas para baixo, sobre os carvões, mu
dando todo o seu peso para cima delas.
Sonhador De Lobo deixou escapar uma exclamação e olhou interrogativamente para
Ramada Partida. Imobilizado de medo, Sonhador De Lobo viu Garça pegar as brasas. O
s olhos vermelhos brilhavam entre os seus dedos quando os levantou acima da cabeça
.
Quanto tempo? Teve de respirar. Respirou de novo, outra vez.
Ainda cantando, Garça colocou os carvões nos lábios e na testa. Por fim, meteu-o
s na boca, fazendo-os rolar antes de cuspi-los. Os carvões tombaram sobre as peles
na sua frente. A pele ficou castanha, negra, fumegante, uma fumaça que se evolava
enquanto os pêlos zumbiam, enrolando-se e soltando cheiro. De olhos ainda fechado
s, com um ar translucente no rosto, a melodia terminou. Inspirou fundo e deixou
o ar sair devagar pelo nariz.
Sonhador De Lobo estendeu uma mão para lhe tocar o rosto, para sentir os luga
res onde tinham pousado os carvões incandescentes. A pele estava macia e fria sob
os seus dedos.
Garça abriu os olhos, ao princípio desfocados, e piscou-os. Inclinou a cabeça par
a mirar Sonhador De Lobo.
As mãos... a cara... murmurou ele, sem crer no que vira, uma sensação de pavor c
orrendo no seu sangue.
Ela levantou-se e abriu primeiro uma mão, depois a outra. Virou o rosto, expo
ndo cada bochecha à luz. Assustado, ele inclinou-se para meter um dedo no buraco d
a pele, soltando um grito e retirando um dedo queimado.
Como?
Nem sequer uma bolha. Atirou o cabelo para trás dos ombros e ficou ali espec
ada, em ar de desafio.
Não pode ser! Sempre me disse que existiam leis!
Imperturbável, Garça raspou os restos das brasas para o fogo, quase nem dando p
ela máscara de espanto que imobilizava o rosto de Ramada Partida.
Feche a boca, saco velho! comentou Garça. Ou vai entrar mosca.
Ramada Partida obedeceu sem pensar, mas protestou:
Como você fez isso?
Dancei com os carvões.
Sonhador De Lobo observava-a, sentindo penetrar em si algo da verdade dela.
Com?
Em vez de contra.
Quer dizer que tocou na Dança das brasas... que, por instantes, lhes seguiu
os passos?
Não foi bem isso. Por baixo da Dança das brasas está a Uma Dança. Por alguns insta
ntes, usei os mocassins do Todo.
Como?
Encontrei a imobilidade por baixo do movimento.
Sonhador De Lobo apertou o nariz. O maldito silêncio debaixo do ruído, a maldit
a imobilidade debaixo do movimento. A velha bruxa estava tentando enlouquecê-lo. P
erguntou, por entre os dentes cerrados:
Como?
Deixei a minha própria Dança.
Deixou a sua... repetiu estupidamente, abanando a cabeça.
Ramada Partida falou, olhando Garça com severidade.
Eu sabia. Está quase tão louca como os loucos! Afinal já não te resta mente alguma
.
Há semanas que estou tentando dizer isso. Olhou de soslaio para Sonhador de
Lobo com uma faísca de ironia no olhar.
Sonhador de Lobo apertou com força a pele das suas botas compridas. Estava co
meçando a ver o que ela queria dizer e isso assustava-o.
Sem mente significa sem que eu interferira no movimento da Dança.
Certo. Sem mente liberte-se, deixe parar a tua Dança e entrar na Uma Dança.
Para ter tempo de pensar, ele apontou para os carvões.
Deve ter se queimado muitas vezes quando começou.
Garça sorriu, sabendo o que ele procurava adiar e concedendo-lhe o tempo de q
ue ele necessitava.
Andava sempre cheia de queimaduras.
Eu posso... abanou a cabeça, não acreditando no que estava perguntando. Eu pos
so fazer isso?
Não teria mostrado se achasse que você era estúpido demais para aprender. Mas é co
mo atravessar uma montanha: a subida é árdua. Não se pode compreender nada sobre o mun
do inteiro até se ver o outro lado. Estalou os dedos. Este é outro passo para atingi
r todo o Poder do Sonho.
Sonhador de Lobo estremeceu ao ver o brilho que enchia o olhar de Garça.
Outro?
Oh, claro, um que tem de aprender a dominar ou, todas as Danças que estão em v
olta de você, acabarão por matá-lo.

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