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Prólogo

21 de Junho de 1980

Ninguém sabe como tudo começou, mas as primeiras notícias de que algo se passava vieram
de Lisboa. Num edifício na Rua Almirante Sarmento Rodrigues vários objetos foram dados
como tendo ficado fortemente danificados sem que alguém percebesse minimamente
o que tinha acontecido. Numa foto de uma visita de Lord Baden Powell a Lisboa a 4 de
Março de 1929, vários elementos ficaram repentinamente desfocados ou desaparecidos,
exemplares do livro “Escutismo para Rapazes” tinham ficado completamente em branco
e mais não eram que um conjunto de folhas vazias, amareladas e envelhecidas, que se
desfaziam quando se lhes tocava, bandeiras identificativas da organização ficaram em pó,
algumas esculturas perderam braços, pernas e cabeça.

O que no início mais parecia um ato de vandalismo, passou a ser objeto de redobrada atenção
quando notícias de acontecimentos semelhantes começaram a surgir de todo o mundo.
Quadros, esculturas, estátuas, filmes, músicas, livros, edifícios, pergaminhos, objetos
antigos, começaram a desaparecer em todo o lado. Perdiam a cor, partes, desfaziam-se
em pó, deixavam simplesmente de existir como se fossem corroídos por qualquer doença
inexplicável. Filmes antigos perderam grande parte dos seus fotogramas, reproduções
de músicas intemporais mais não eram que estática. Bibliotecas, arquivos nacionais, viam
começar a desaparecer, de um instante para o outro, séculos de história. Este estranho
fenómeno afetava apenas o que era antigo, o que tinha valor histórico, como se o passado
estivesse a ser deliberadamente apagado, riscado.

Foram convocados os melhores cientistas e investigadores para encontrarem respostas


para as muitas perguntas que todos formulavam. Analisaram-se as poeiras que restavam
de alguns desses objetos, os bocados de estátuas que ainda se encontravam, os livros
que tinham ficado em branco e também alguns dos edifícios afetados que, apesar de
perderem parte importante da sua estrutura, se mantinham miraculosamente em pé.

Os dias transformaram-se em semanas, as semanas em meses e o estranho fenómeno


continuava a alastrar, nada o conseguia parar. As investigações intensificaram-se, mas não
conseguiam produzir qualquer explicação esgotando as forças de todos quantos tinham
dedicado meses de trabalho em análises e estudos.

Foi então que alguém se lembrou de chamar Vicente, um velho investigador que vivia
desde há muito isolado do mundo, mas que era conhecido pelas suas imensas capacidades
de encontrar soluções para os problemas mais difíceis que a humanidade por vezes
enfrentava. Se havia alguém capaz de encontrar a resposta e, quem sabe, também a
solução para aquele problema, era ele, sem dúvida.

Vicente apareceu, observou os estudos que se faziam, estudou materiais e alguns dias
depois, reuniu quem o tinha convocado e resumiu as suas conclusões numa única frase:
“Conhece o teu passado para poderes construir o teu futuro!”

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Cruzaram-se os olhares de uns e de outros, as conversas em surdina intensificaram-se, e
em pouco tempo os risos encheram a sala, troçando da conclusão de Vicente. O que é que
aquilo tinha a ver com o fenómeno? Nada, exclamavam uns, tudo, diziam outros. Vicente
aguardou serenamente que o tumulto terminasse e depois retomou a palavra.

“Olhem para os vossos dias, para aquilo em que se transformaram as vossas vidas.
Trabalham noite e dia, não há tempo para conviver, conhecer, sorrir, amar. Vocês já não
veem o outro, vivem apenas na voragem do dia a dia, do momento, esquecendo sempre
que antes de vós outros construíram o caminho que agora vocês percorrem. Esqueceram
que parte da vossa missão é também continuar a construir caminhos para que outros no
futuro também os possam percorrer. Esqueceram o sabor das coisas, as cores das flores,
esqueceram os vossos antepassados, os acontecimentos marcantes da história, o passado
deixou de ter interesse. Transformaram-se naquilo que são hoje: um povo sem memória.

O que acontece aqui é a natureza a dar uma dura lição. Todo um passado está agora
apenas guardado na vossa memória, nada mais. E quando esta também for esquecida,
nada mais há a fazer e todo o passado será simplesmente ignorado, irrecuperável.”

O silêncio imperava na sala. Sim, fazia sentido: se o passado tinha sido esquecido não
fazia sentido existir. “Tem de ser possível fazer algo para reverter a situação!” diziam
alguns olhando para Vicente procurando nele a solução que não conseguiam eles próprios
encontrar”.

“Só vejo uma solução”, disse ele sorrindo. “Qual?”, exclamou em uníssono toda a sala.

“Procurem viajar no tempo”. E saiu apressado.

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I - No Trilho de um Tesouro
07 de Abril de 2021

O dia amanhecera sorridente.

No cimo da colina sobranceira à aldeia, Luísa, cabelo loiro esvoaçando ao vento e olhos
de um verde cintilante, inspirava com avidez o ar fresco da manhã. O céu mostrava-
se temeroso, cinzento até, enquanto as primeiras notas da aurora traziam consigo um
brilho radioso que fazia luzir como ouro as primeiras gotas de orvalho que deslizavam
suavemente pelas ervas do campo saciando a sede que a noite quente trouxera. Tudo à
volta resplandecia de uma vida intensa, vibrante.

De toalha pelos ombros e uma pequena sacola a tiracolo, chamou os seus habituais
companheiros de aventura, Raquel, Paulo, António, Jaime e Álvaro que, tal como ela, já se
encontravam a pé aguardando uns pelos outros no largo junto à Igreja. Naquele ano, as
férias tinham começado mais cedo e tal como nos anos anteriores, o grupo reunia-se na
aldeia dos seus avós para celebrar a vida, partilhando alegremente noite dentro as histórias
vividas ao longo do ano e sentindo a todo o momento que não há longe nem distância que
escureça o brilho de uma sólida amizade. Estarem juntos ali, naquele espaço, o seu espaço,
era único e memorável. Mas algo estava para acontecer e iria marcar indelevelmente a
vida de cada um deles.

II - Um brilho no fundo do rio


Pegaram nas bicicletas e fizeram-se ao caminho rumo ao ribeiro e à represa que os antigos
tinham construído para poder servir de regadio aos agricultores da aldeia e que os mais
novos usavam como piscina nos dias mais quentes, pois aquela hora da manhã o calor já
apertava. Quinze minutos de descida rápida e serpenteante e chegaram ao seu destino.
Na margem deixaram as bicicletas e as sacolas. Tiraram as t-shirts e de fato de banho
vestido correram pelo passadiço de madeira que servia de ancoradouro a uma pequena
bateira e saltaram para a água fresca e cristalina. Todos, menos Jaime, o mais calmo do
grupo, que permanecia parado no ancoradouro olhando atentamente para algo que lhe
despertara a atenção.

“Que se passa Jaime?” perguntou Paulo, o mais audaz de todos. “Está com frio” brincou
António, enquanto Álvaro procurava fugir de Raquel e Luísa que se divertiam a chapinhar
alegremente molhando tudo e todos à sua volta. “Há algo brilhante ali no fundo”, disse
Jaime apontando para uma das extremidades da represa. “Deve ser algum seixo” gritou
Raquel, enquanto mergulhava avidamente. “Não! Não é nenhum seixo” insistiu Jaime. “É
algo metálico”.

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Intrigados, pararam a brincadeira e subiram para a bateira. “Onde está?” questionaram.
“Ali, junto à represa” apontou Jaime. O primeiro a mergulhar foi Paulo mas pouco depois
emergiu e pediu ajuda pois fosse o que fosse que ali estivesse estava enterrado e não o
conseguia mover sozinho. António e Luísa foram ajudar e algum tempo depois, surgiram
trazendo nas mãos uma velha caixa de madeira com aros metálicos: um baú.

Com extremo cuidado levaram-na para a margem e pousaram-na na relva. Sentaram-se


à volta dela e avaliaram-na com atenção: não era grande, mas era robusta e de aspeto
antigo. Não se encontrava fechada por nenhum mecanismo visível, mas devia estar ali há
muitos anos pois as dobradiças não cederam quando a tentaram abrir. Fizeram um pouco
mais de força, mas as dobradiças continuaram a não se mover. Foi Jaime quem encontrou
a solução ao reparar que nos lados do baú se encontravam dois cravos de ferro mais
salientes que os outros. Pressionou-os ao mesmo tempo e, como por magia, a tampa do
baú ergueu-se. Aproximaram-se e o que viram lá dentro deixou-os a todos com um brilho
nos olhos e um sorriso nos lábios.

Apesar de ter estado debaixo de água, o interior do Baú estava seco e continha apenas,
enrolado a um canto, um pergaminho e uma rosa encarnada, viçosa como se ali tivesse
sido colocada à apenas alguns instantes. “Isto não é possível”, exclamou Álvaro, o mais
cético do grupo. “O baú não estava enterrado na areia da represa?” “Sim”, disseram em
uníssono Paulo e Luísa. “Só tinha um pouco de um dos aros de fora. De resto tinha tanta
areia e seixos em cima que há muito tempo que ali estava”.

Raquel pegou na rosa e cheirou-a: mantinha um perfume intenso, único, inconfundível. Por
sua vez António pegou no pergaminho, desenrolou-o lentamente colocando-o de seguida
em cima da erva: continha o desenho de dois anéis, um dentro do outro, uma série de
números que faziam lembrar fórmulas matemáticas e todo um conjunto de objetos e
caracteres que não conheciam. Debruçaram-se sobre o desenho e, observando com mais
atenção, descobriram que cada um dos anéis tinha quatro desenhos, diferentes uns dos
outros, incorporados na sua estrutura.

“Uau” exclamou Raquel. “O que será isto?”. Voltaram a colocar tudo dentro do Baú,
vestiram-se, pegaram nas bicicletas e dirigiram-se para a aldeia. Tinham de encontrar
respostas e talvez lá houvesse alguém que os conseguisse ajudar. O Ti Ramiro, o mais
velho da aldeia, era homem para isso.

III - Uma Rosa vermelha


Foram encontrá-lo sentado no regaço da porta de casa, abrigado do calor debaixo de
uma parreira. Mostraram-lhe o que tinham encontrado e ao ver a rosa vermelha um
ligeiro sorriso aflorou-lhe os lábios. “A história que vos vou contar”, começou ele, “chegou
até mim contada pelo meu pai, que por sua vez a tinha ouvido do meu avô, que a tinha
escutado do meu bisavô e por aí fora.”

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“Conhecem certamente a velha mansão abandonada que fica no cimo da colina, a
norte da aldeia. Pois bem, há muitos, muitos anos atrás, viveu lá um inventor, conhecido
essencialmente pelas muitas máquinas que a sua fértil imaginação produzia e que alguns,
mais temerosos, consideravam demasiado avançadas para o seu tempo. Das suas mãos
nasceram noras, aquedutos, e, acreditem, até uma geringonça que lhe permitia sobrevoar
a aldeia. Um dia, quando tinha vindo comprar víveres, encantou-se de amores por uma
bela moura que encontrou no caminho. Ninguém sabia quem ela era ou como tinha ali
chegado, mas o que é certo é que ficou a viver na aldeia, recusando sempre a companhia
do inventor. Mas este não desesperou e prometeu-lhe que, estivesse ela onde estivesse,
ele haveria sempre de deixar junto dela uma rosa encarnada, como sinal do amor que
nutria por ela. E assim aconteceu: de manhã quando acordava, a bela moura encontrava
na mesa de cabeceira uma rosa encarnada. Trancava portas e janelas, adormecia, mas
quando acordava, lá estava uma rosa encarnada na mesa de cabeceira. Quando ia ao
pomar, pegava na cesta vazia e quando se prestava para a encher de fruta fresca descobria
na cesta uma rosa encarnada.

Os dias foram passando, as rosas continuaram a aparecer misteriosamente junto da bela


moura, até que ela cedeu e lhe fez um pedido que considerava impossível: caso contigo se
me levares através dos tempos, se me construíres uma máquina que nos permita viver o
passado, o presente e o futuro. Ao escutar este pedido, dizem que o inventor sorriu, pegou
na mão da bela moura e levou-a com ele.

Uma noite, a aldeia acordou sobressaltada pois um ruído intenso e vibrante vinha da colina
onde ficava a mansão do inventor. Vieram para a rua e viram no cimo da colina dois anéis
gigantescos que rodavam velozmente um dentro do outro, emitindo uma luz azulada.
Aquilo durou uns 15 minutos, mas, desde essa noite, o inventor e a bela moura nunca mais
foram vistos na aldeia.”

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IV - Vamos viver uma Aventura?
Os seis jovens olharam surpresos uns para os outros. “Obrigado Ti Ramiro” disse Raquel
enquanto se levantava e chamava os outros. Não conseguiam disfarçar o espanto pela
história assombrosa que o Ti Ramiro lhes tinha contado, a boca seca pois mal conseguiam
respirar enquanto ele lhes contava aquela aventura. Durante alguns momentos mal
conseguiram falar, mas ao verem o olhar sorridente do Jaime é que se deram conta que
a realidade era muito mais completa: tinham encontrado os planos do inventor para
construir a máquina que a bela moura lhe tinha pedido, uma máquina capaz de lhes abrir
um Portal do Tempo.

Raquel estava pensativa. “Ti Ramiro” chamou. “Como se chamava o inventor?”

“Vicente. Chamava-se Vicente”

A primeira a quebrar o silêncio foi a Luísa. “Malta” começou ela “isto dava uma excelente
atividade para propormos às outras Equipas da nossa secção”. “Boa ideia” exclamaram
Paulo e António ao mesmo tempo. “Ainda a podemos fazer este ano, e começar o Verão
da melhor maneira” terminou Luísa.

Entusiasmados, afastaram-se um pouco e voltaram a abrir o Baú e foi então que repararam
em algo que ainda não tinham visto: colado à lateral do baú estava uma foto. Jaime pegou
nela, observou-a e levantou-se, a surpresa a bailar-lhe no rosto. “Que se passa?” perguntou
Raquel. O que é que vamos fazer?

Jaime sorriu e mostrou-lhes a foto: nela estavam eles os 6, de lenço de escuteiro ao pescoço.
Tinha sido tirada no último dia do ACANAC de 2017, em pleno campo de Idanha-a Nova.
“Agora, meus amigos, agora vamos viver uma aventura”.

V - Um Jardim Secreto
O dia tinha passado a correr.

Tal como tinham planeado, apresentaram a ideia às outras Equipas da Comunidade e


conquistado de imediato a atenção e o coração de todos. O Conselho de Guias reuniu-se,
fizeram-se planos, estabeleceram-se horários, e quando a noite chegou, a atividade estava
preparada. Decidiram que não havia tempo a perder, pelo que era importante aproveitar
as férias e a estadia na aldeia para procurar pistas que os levassem até ao Portal do Tempo.
Raquel adormeceu com a certeza que haveria de ser a Equipa Leonardo da Vinci, a sua
Equipa, a encontrar o Portal.

A manhã apanhou Raquel espreguiçando-se indolentemente. Levantou-se feliz, enquanto


Jonas, o gato dengoso, procurava intrometer-se no caminho fazendo Raquel saltitar para
não o pisar. Colocou a seu lenço de Pioneira ao pescoço, pegou num pão, recheou-o com
marmelada e manteiga, deu um beijo corrido à mãe, pegou na bicicleta e, de mochila às

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costas, foi alapar-se no largo da aldeia à espera dos amigos do costume, que, como de
costume, estavam atrasados para a grande missão daquele dia: explorar a velha mansão
de Vicente. Quando por fim chegaram, já Raquel tinha devorado o pão e lambia, satisfeita,
os dedos.

Com o Paulo a liderar, pedalaram apressadamente colina acima. Pouco depois, a velha
mansão erguia-se à frente do grupo, imponente, captando os olhares admirados de todos
eles. Estava cercada por um muro alto, coberto de eras, enquanto um velho portão de
ferro os convidava a aproximar dizendo-lhes que só com arte e engenho conseguiriam
passar por ele.

A solução foi António quem a encontrou: a poucos metros dali uma velha árvore tinha
tombado, derrubando parcialmente o muro. Treparam pelo tronco caído e ao entrarem
naquele novo mundo, não conseguiram esconder o olhar maravilhado perante o que viam:
à sua frente estava um magnífico jardim que, crescendo de uma forma selvagem, tinha
tomado conta de todos os recantos e da velha mansão.
“Isto é magnífico”, exclamaram em uníssono Luísa e Raquel. “Não” disse Jaime, “é muito
mais que isso. Há aqui árvores de todas as partes do mundo, algumas até de outros tempos”.
Todo o jardim está repleto de árvores que não são de cá ou que já desapareceram.”

“Jaime”, exclamou Álvaro, tu és uma enciclopédia ambulante.

“Malta, malta” chamou Paulo do interior da casa, “isto é brutaaalll”.

Pegaram no pergaminho que tinham encontrado no baú, desenrolaram-no no chão e, em


círculo, estudaram-no atentamente. Ao centro estavam dois anéis entrelaçados e, ao lado
dos anéis, 8 símbolos e uma infinidade de fórmulas matemáticas. O olhar maravilhado
do grupo saltitava de símbolo em símbolo, olhando para o pergaminho e para o que os
rodeava, tentando encontrar uma simples pista que lhes indicasse o caminho a seguir.

Levantaram-se e, separando-se, exploraram todos os cantos da casa, até que um grito


atravessou o tempo e o espaço e levou-os até junto de Luísa que, sem conseguir falar,
olhava e apontava para uma secretária mesmo à sua frente.
“Que se passa Luisa?” perguntou Raquel, aproximando-se, olhando de soslaio para a amiga.
“Estás branca”. Mas Luísa não conseguia responder, apenas apontava para a secretária.
Raquel olhou por cima do ombro da amiga e um olhar de espanto inundou-lhe a face. No
pó que cobria a secretária alguém escrevera recentemente:
“Bem-vindos ao meu mundo!”

Mais ao lado, uma folha de jornal. “Vejam” disse ela “há todo um conjunto de letras
sublinhadas no jornal, de uma forma aleatória, sem qualquer sentido”.
Álvaro aproximou-se, pegou no jornal, virou-o ao contrário, explorou-o atentamente e de
repente uma ideia começou a formar-se na sua mente. “Isto meus amigos, é um código”,
disse ele. Olharam em volta, o coração a bater fortemente no peito, os olhos procurando
com ansiedade nas sombras mais distantes. Foi Paulo quem quebrou o silêncio:

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“Acho que o Vicente ainda anda por aqui e quer transmitir-nos alguma coisa”.

Um sorriso intenso inundou a face dos seis amigos.

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VI - Uma mensagem do passado
Anoitecia quando saíram da mansão de Vicente.

Luísa transportava na mochila que trazia sempre consigo, a página do Jornal que o inventor
tinha deixado na secretária. Combinaram encontrar-se depois do jantar, junto à represa
onde tinham encontrado o baú, para tentarem decifrar a mensagem escondida entre as
palavras da notícia. No largo da aldeia, alguns velhos sem idade olhavam-nos curiosos
avivando na memória os tempos da sua meninice em que, tal como aqueles jovens,
também eles saboreavam intensamente cada sopro de vida.

Naquela altura do ano, o calor tórrido do dia cedia o seu lugar à brisa fresca da noite e ao
aconchego da fogueira que tinham acendido quando chegaram junto ao ribeiro depois
de terem devorado o jantar numa corrida desenfreada. Ao lado, a represa soprava um
convite ao silêncio e à reflexão. Sentados num velho tronco de árvore, desenrolaram
cuidadosamente a folha do jornal, enquanto o crepitar da fogueira juntava ao firmamento
mil novas estrelas iluminando o grupo, atento a cada uma das letras que tinham sido
destacadas naquela edição do “Diário de Notícias” de 4 de Março de 1929 noticiando a
chegada de Baden Powell a Portugal.

.01-1:91 SACUL ME ARIEMIRP A ARUCORP .MIF MES ODASSAP MU ED E AIROTSIH AD SAMURB


SAN ,OATSE SADIDNOCSE .SALE ROP ADRAUGA OPMET OD LATROP O ,RATSIUQNOC A
SACEP OTIO ,RASSAPARTLU A SOIFASED OTIO .ORUTUF UET O RIURTSNOC SEREDOP ARAP
ODASSAP UET O ECEHNOC.

Não fazia sentido. Tinha de haver algo mais.

Enquanto percorriam novamente a página do jornal, Luísa afastou-se um pouco para


avivar a fogueira que tinha começado a esmorecer. Olhou para os seus amigos e deu por
si a pensar nos anos passados em conjunto. Apesar de tudo, sentia que não conhecia,
verdadeiramente, cada um deles. Sabia que Raquel falava pelos cotovelos, que adorava
doces, que Paulo era o atleta do grupo, o elemento escolhido sempre que um desafio
exigia destreza física, que Álvaro, o mais gorducho, adorava cozinhar e deixava o grupo
bem-disposto, que o António era mordaz nas observações sempre atempadas que fazia, e
Jaime, a enciclopédia ambulante como carinhosamente era tratado. Sabia muito de muita
coisa e era a ele que recorriam sempre que era necessário resolver um enigma ou um
código como aquele que tinham em mãos. Mas, na realidade, que faziam os seus amigos
nas horas em que não estavam juntos? Como tinha sido o passado de cada um deles?

“Descobri” gritou Jaime de entusiasmo. “Somos mesmo lerdinhos. Está mesmo à nossa
frente. Leiam de trás para a frente, de baixo para cima: Conhece o teu passado para
poderes construir o teu futuro. Oito desafios a ultrapassar, Oito peças a conquistar, O
Portal do Tempo aguarda por elas. Escondidas estão, nas brumas da história e de um
passado sem fim. Procura a primeira em Lucas 19:1-10.”
Foi António quem quebrou o silêncio em que o grupo ficou. “Aqueles planos não são de
uma máquina, mas sim de um Portal do tempo? Quer então dizer que precisamos de 8

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peças para fazer funcionar o Portal? E a primeira está escondida em “Lucas 19:1-10”. Não
percebo nada disto”. Paulo puxou do telemóvel e escreveu aquelas palavras no motor de
busca. “É a história de Zaqueu, de como ele subiu a um Sicómoro para ver Jesus”.

“Sicómoro?” questionou Jaime. “Sim”, disseram os outros. “Então já sei onde ela está.
Entre as árvores do jardim da mansão de Vicente está uma Figueira Brava, um Sicómoro.
Aposto que foi lá que Vicente escondeu a 1ª peça do Portal do Tempo”.

Do ribeiro até à mansão de Vicente eram apenas 20 minutos.

A escuridão trazia desafios acrescidos e as sombras que a noite de lua cheia projetava
sobre a casa, avivavam na memória de cada um, medos que julgavam esquecidos. O
silêncio da noite levava a que, instintivamente, procurassem o conforto junto uns dos
outros, buscando naquela proximidade a proteção que supunham ser essencial.

Avançaram assim, como um só, até ao local onde Jaime vira a Figueira Brava, tropeçando
aqui e ali num ramo caído ou num arbusto mais frondoso que a noite escura como breu
escondia. Os medos de cada um deles eram vencidos pela força, união e coragem que a
Equipa evidenciava em cada palmo de terreno percorrido. Ao cabo de alguns minutos,
que na mente de alguns pareceram horas, atingiram o seu objetivo: à sua frente erguia-se,
imponente, uma enorme Figueira Brava.

António foi o primeiro a avançar, logo seguido de Paulo que, de lanterna em punho, procurou
por todo o tronco e ramagem da árvore um qualquer lugar onde Vicente pudesse ter
escondido a primeira peça do Portal. Raquel aproximou-se um pouco enquanto Luísa e
Jaime procuravam tranquilizar o Álvaro que tremia de medo.

“Aqui, deste lado”, chamou Paulo de trás da árvore, “há uma pequena cavidade no
tronco”. Afoitos, correram para junto de Paulo que procurava iluminar a cavidade que
tinha descoberto. Tateando lentamente, enfiou a mão na cavidade, palpando cada
centímetro de madeira, até que detetou um objeto estranho. Retirou o objeto, que estava
cuidadosamente envolto num papel duro e rude e, com gestos certeiros e metódicos,
desfez o precioso embrulho, vislumbrando pela primeira vez, uma caixa de madeira negra.
Em cima, dobrado, um documento amarelado pelo tempo, foi guardado por Luísa na
mochila. Mais tarde teriam tempo de o analisar.

Olharam-se em silêncio durante breves momentos, até que Paulo abriu a pequena caixa.
Ao centro encontrava-se um objeto cilíndrico, com cerca de 10 cm, tendo gravado em
toda a volta uma série de pictogramas que desconheciam. Já tinham a primeira peça.

Uma coruja piou ali perto.

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VII - Descobrindo a coragem
Enquanto a lua se escondia por detrás de uma nuvem mais escura, era grande o sentimento
de satisfação que invadia a Equipa. Conquistar aquela peça não tinha sido especialmente
difícil, mas tinha provocado neles o desejo de ir mais além, sentiam reforçada a confiança
em si próprios e na capacidade que teriam para ultrapassar os obstáculos que haveriam
de chegar.

“A noite ia ser longa”, pensou Luísa, enquanto se preparavam para abandonar o jardim.
“Falta o Paulo”, alertou Raquel. Viraram-se para trás e deram com Paulo, parado no
caminho, a olhar atentamente para a caixa. “Vejam o que aqui está escrito”, chamou ele.
No lado de dentro da tampa encontrava-se gravada a frase: Para conquistares a segunda
peça, descobre a coragem que escondes dentro de ti.

Dois hologramas minúsculos surgiram nos extremos da caixa. Eram pequenos guerreiros
indígenas a tocar tambor, de uma forma lenta, mas ritmada. Instantaneamente, num
dos cantos do jardim, outros tambores se fizeram ouvir. Assustados, olharam em redor
tentando vislumbrar de onde vinha aquele som, mas nada conseguiam ver. Fecharam a
caixa e de imediato o som dos tambores cessou. Olharam-se intrigados, mas ao mesmo
tempo curiosos. Vencendo o receio, voltaram a abrir lentamente a tampa daquela
estranha caixa de música e, como esperado, os dois pequenos hologramas surgiram e
começaram novamente a tocar os tambores. A um canto do jardim outros tambores
voltaram a juntar-se ao ritmo que os dois pequenos indígenas impunham. Aos poucos
outros tambores fizeram-se ouvir, vindos de todo o lado, envolvendo o grupo, como se mil
tambores tivessem de repente acordado.

Junto à Equipa um pequeno triângulo azulado começou a formar-se no vazio. Quanto


maior era o ritmo dos tambores, mais intensa era a luz que o triângulo emanava. Ao fim
de alguns momentos, um objeto também ele triangular, surgiu no centro do triângulo.
Olhavam-se uns aos outros, receosos, a confiança que ainda há pouco sentiam, caída por
terra. Foi então que, vencendo o temor que o dominava, o Álvaro se dirigiu para junto do
triângulo e, estendendo a mão, pegou na peça que ali se encontrava.
De imediato, a caixa fechou-se, o som dos tambores e o triângulo azulado desvaneceram-
se numa maré de silêncio.

Ora ali estava uma aventura digna de ser registada, recordada nas noites sem fim que
teriam pela frente, pensou Luísa, enquanto se reuniam à volta de Álvaro que, naquela
noite, descobrira a coragem que pensara nunca ter.

“Alguém tem alguma coisa que se coma?”, foram as primeiras palavras de Álvaro desde
que tinham saído da mansão de Vicente rumo à represa e aos restos da fogueira que os
aguardava. “Como é que tu podes pensar em comer”, respondeu-lhe António, “depois da
experiência fantástica que acabamos de viver?”

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“Sei lá eu?” continuou Álvaro, “Os nervos fazem-me fome!”. Raquel puxou-o para si e
enquanto lhe esfregava a farta cabeleira com vigor, deu-lhe para as mãos um pacote de
bolachas torradas, as suas preferidas. Enquanto Álvaro se sentava a devorar as bolachas,
juntaram-se ao pé da fogueira, agora mais viva graças aos ramos secos que Jaime lhe
juntara e analisaram o documento que tinham trazido da casa. Era um documento
antigo, já bastante amarelecido pelo tempo, escrito à mão. As letras estavam já bastante
esbatidas, quase impercetíveis.

“Não vos cheira a limão?” perguntou Álvaro enquanto terminava o pacote de bolachas.
“Uma limonada vinha mesmo a calhar”. “Este desgraçado só pensa em comer”, criticou
António. “Não, não” cortou Luísa, “ele tem razão, cheira a limão, e o mais estranho é que
à nossa volta não há um único limoeiro”. Olharam uns para os outros, a mesma resposta
a formar-se nos lábios de cada um. Paulo pegou no documento, aproximou-o do fogo
e, como por magia, uma imagem surgiu gravada no documento. Tinham ali a pista que
necessitavam para a próxima missão.

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VIII - O Túmulo
Vários meses tinham passado desde a descoberta da imagem gravada no documento. Só
naquela altura tinham conseguido reunir os meios necessários para se deslocarem até
Braga, local onde supunham estar guardada a terceira peça que faria funcionar o Portal
do Tempo, a invenção de Vicente. Sentados no comboio que os transportaria até à cidade
dos Arcebispos, reviram os documentos que os tinham trazido até ali.

“Ora bem”, começou Jaime desdobrando o documento que tinham encontrado juntamente
com a caixa de música e a primeira peça do portal, “este é o documento onde se concretiza
a fundação do primeiro agrupamento de escuteiros em Portugal em 27 de Maio de 1923
juntamente com a criação do Corpo Scouts Católicos Portugueses, o antecedente do atual
Corpo Nacional de Escutas. A imagem que foi gravada no documento com o recurso a
sumo de limão é a de um túmulo. Infelizmente não conseguimos ver com pormenor de
quem é esse túmulo. Se o documento se refere a Braga, é porque só em Braga poderemos
encontrar a resposta que necessitamos.”

Eram 11:30 quando o comboio deu entrada na Estação Ferroviária da cidade. Luísa formou
a sua Equipa no cais de embarque, empunhou a bandeirola e, em fila, foram em busca de
respostas. Percorreram as ruas intrincadas da cidade, mostrando a quem encontravam
uma cópia que tinham tirado da imagem que o calor do fogo tinha revelado, mas ninguém
reconhecia aquele túmulo. Horas mais tarde, já depois de terem parado um pouco para
almoçar, a solução chegou pelas mãos de Miguel, um jovem que, abeirando-se deles, se
deu a conhecer como pertencendo ao Agrupamento nº 1, da Sé de Braga e lhes perguntou
se a atividade estava a correr bem.

“Nem por isso”, respondeu António com a cópia na mão. “Andamos aqui às voltas em
busca de um túmulo, mas pelos vistos ninguém sabe onde fica”. “Posso ver?” perguntou
o jovem estendendo a mão. “Claro que sim”. Pegou na cópia, olhou demoradamente e,
sorrindo, disse-lhes: “Escutem, eu sei onde fica”.

Arrumaram apressadamente os pertences e seguiram o jovem. Pouco depois estavam


em frente à Sé de Braga. Acederam ao interior do templo e, virando à esquerda, deram
de frente com um portão de ferro aberto de par em par. “Aqui dentro”, sussurrou Miguel,
“está o túmulo que procuram. É o túmulo de D. Manuel Vieira de Matos, um dos fundadores
do CNE”.

Entraram em silêncio naquela divisão lateral da Sé e mais à frente surgia um novo


compartimento. Lá dentro adivinhava-se o túmulo que tanto tinham procurado. Alinhados
junto ao túmulo, olhavam em silêncio, procurando em redor um sinal, um indício que os
ajudasse a encontrar o local onde Vicente escondera a peça. Miguel, depois de desejar boa
atividade à Equipa, retirou-se alegremente.

Jaime pegou novamente no documento e aproximou-o da chama de uma vela que ali estava
acesa até que a imagem do túmulo se revelou novamente, com mais nitidez. Foi Raquel
quem reparou num pormenor interessante: por baixo da imagem do túmulo estava escrita

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uma palavra e um número “SINÁGRIO – 300”. Mas olhando para o túmulo, não viam em
nenhum lugar aquela palavra, apenas o nome do Arcebispo. Daquela vez foi Paulo quem
encontrou a resposta, pois ao entrarem, tinha reparado num conjunto de placas de metal
contendo diversos nomes e numerações. Entre elas constava o nome “SINÁGRIO – 300”.

“Mas porquê esta e não outra qualquer?” pensou Jaime. “Tem de haver algo mais”.
Aproximou-se da placa, o olhar inquisidor, até que uma luz de alegria lhe iluminou o rosto.
Os dois 0 estavam mais salientes que os restantes números ali existentes. Carregou-lhes
ligeiramente e o impensável aconteceu: o triângulo que um capitel de pedra ali ao lado
tinha gravado, entrou pedra dentro revelando um compartimento secreto.

Ao centro uma nova peça do Portal aguardava-os bem como uma fotografia antiga
retratando tempos de um passado glorioso.

IX - Tuatahi
Quando saíram da Sé de Braga, era já noite cerrada.

Entraram em contacto com o Dirigente do Agrupamento que lhes abriria a porta da Sede
onde iriam pernoitar e, pouco depois, já com um banho retemperador tomado e a peça
do Portal bem guardada na mochila da Luísa, sentaram-se a jantar o delicioso esparguete
à bolonhesa que o Álvaro, o cozinheiro da Equipa, lhes tinha preparado. “Está supimpa”
dizia António, a boca cheia até mais não, enquanto discutiam os acontecimentos do dia.
“A pista para a próxima peça tem de estar na foto”, dizia Jaime por entre duas garfadas.
“Concordo inteiramente” acenou Raquel, enquanto Paulo se servia novamente.

Terminaram de jantar e, em círculo sentados no chão da sede, pegaram na fotografia


e analisaram-na. Era bastante antiga e nela figuravam dois jovens, unidos pelo abraço
cúmplice e fraterno de quem acabou de viver uma grande aventura naquele que pareciam
ser os primeiros tempos do escutismo. Ao fundo, viam-se outros jovens, de lenço ao
pescoço, e um edifício antigo, provavelmente um “Paço Arquiepiscopal”, referiu Jaime,
pois foi lá que ocorreram as primeiras reuniões de escuteiros em Portugal.

“Se Vicente nos deixou esta foto, com estes dois jovens, é porque eles são fundamentais
para descobrirmos a peça seguinte”, disse-lhes Luísa. “Na parte de trás da foto alguém
escreveu um ano – 1938. Ou seja, estes dois terão hoje cerca de 94 anos. Temos de descobrir
quem são.” A noite já ia longa pelo que decidiram guardar o resto das investigações para
o outro dia.

Na manhã seguinte, quando se prestavam para sair, apareceu Miguel para se despedir.
Mostraram-lhe a fotografia, segurando-a com cuidado, como se de um tesouro se tratasse.
Miguel olhou-os um a um, um sorriso travesso nos lábios, e apontando para um dos jovens
na foto, disse apenas uma palavra: “Tuatahi”. Que queria aquilo dizer, interrogavam-se os
outros? “Qualquer escuteiro aqui em Braga conhece a história dos Primeiros, os “Tuatahi”,
aqueles que trouxeram até aos dias de hoje as memórias do que foi o começo do escutismo

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em terras lusitanas, dos valores primordiais que lhes foram transmitidos em longas noites
cantadas em volta do fogo que aquecia o corpo e a alma. São 12 os Tuatahi que continuam
entre nós, a serem exemplo, espalhando o ideal da construção de um mundo melhor. Este
é um desses Tuatahi…e eu sei onde ele está. Venham comigo”.

Correram atrás de Miguel desbravando ruelas e travessas íngremes, chegando pouco


depois junto a uma casinha simples e singela, em frente da qual se sentava num pequeno
banco de madeira, um jovem ancião, cabelos brancos, já ralos, óculos de aros grossos, e
rosto arredondado. “Este”, apontou Miguel, “é o Chefe Barbosa, um dos Tuatahi.”
Do alto dos seus quase 94 anos, o velhote olhava-os sorridente e expectante. “Há 40 anos
que aguardo a vossa chegada” comentou ele. “Mas como assim”, perguntou Jaime, “se só
agora chegamos a Braga e o mais velho de nós tem apenas 15 anos?” “Sentem-se, que eu
conto-vos a história”.

“Há muitos anos atrás, ali bem próximo do ano de 1938, pouco depois de eu ter entrado
para os escuteiros, os Scouts de Braga como eram naquele tempo conhecidos, fui fazer
o meu primeiro acampamento. Naquela altura só podiam entrar rapazes e eu fiquei na
Patrulha Tigre com mais 7 companheiros. Os tempos não eram de fartura e eu não tinha
dinheiro para comprar a farda, pelo que optei por ir acampar com a roupa do dia-a-dia,
apenas tendo como agasalho mais forte, um casaco de lã. Depois de termos montado
campo, começaram os jogos e pouco depois o calor era tanto que eu e os outros tivemos
de tirar os casacos que deixamos espalhados pela erva. Quando foi altura de regressar às
tendas e aos afazeres de campo, vestimos novamente os casacos, mas qual não foi o meu
espanto, quando encontrei um monte de dinheiro num dos bolsos. Entretanto, outro dos
elementos da minha Patrulha começou a gritar dizendo que o tinham roubado, chamando
pelo Chefe Augusto que prontamente ocorreu. Aproximei-me para ver o que se passava
quando reparei que quem gritava tinha o meu casaco vestido e eu, pelos vistos, tinha
vestido o dele. Desfeita a confusão, apertamos as mãos, tendo ficado aquele momento
gravado numa fotografia que o Chefe Augusto nos tirou. Ficamos grandes amigos ao
longo de muitos anos, até que um dia ele saiu de Braga com os pais para ir viver para
outro ponto do país. Só o voltei a ver por volta do ano de 1980.” O Chefe Barbosa parou
por breves instantes, ordenando as memórias, para continuar o relato da história logo a
seguir, enquanto a Equipa, sentada à sua volta, o escutava atentamente.

“Estava um dia soalheiro, igual ao de hoje, quando um homem se aproximou e me


cumprimentou, chamando-me pelo meu nome. “Olá Barbosa”, disse ele, “os anos passaram
por ti, mas o teu sorriso é o mesmo, inconfundível.” Olhei-o por breves instantes e
reconheci nele o amigo que fizera naquele primeiro acampamento. “Vicente, és mesmo
tu?”, perguntei. Luísa olhou para os outros, o espanto pasmado no rosto. Não podia ser
uma coincidência. O Chefe Barbosa continuou. “Sim, sou eu mesmo, amigo Barbosa.
Desculpa não me demorar muito, mas tenho uma missão para ti e peço-te que confies
em mim e a executes sem pedir explicações. Apenas te posso dizer que é essencial para
que as memórias do passado não se percam para sempre. Daqui a 40 anos, uma Equipa de
escuteiros de uma terra distante virá ter contigo. A guia será uma rapariga de cabelo loiro
e olhos verdes, alta e esguia. Quando chegarem, dá-lhes esta carta e este objeto. Não te
preocupes, eles saberão o que fazer com eles.” O Chefe Barbosa tinha os olhos marejados

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de lágrimas ao relembrar aquele velho amigo. Passado um breve instante continuou.
“A seguir abraçou-me e com um “até sempre” partiu. Nunca mais o vi…”

“Pois bem”, recomeçou ele, “aqui está o que vieram buscar.” Abrindo o casaco retirou
do bolso interior um cubo e uma carta, entregando-os depois à Luísa que os guardou
sem demora na mochila. Aproximou-se do Chefe Barbosa, olhou-o nos olhos e por breves
instantes viu neles a alegria do explorador que não se cansa nunca de viver mais uma
aventura, correndo sobre a terra, trepando à mais alta das árvores para depois se baloiçar
de estrela em estrela rumo ao abraço apertado de um novo amigo.

“Obrigado por tudo”, disse-lhe Luísa e debruçando-se deu-lhe um singelo beijo na face.

Aquele tinha sido um excelente dia.

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X - Um conto de Natal
Dia de Natal.

A carta que o Chefe Barbosa lhes tinha entregado dizia “abrir no dia 25 de Dezembro”
pelo que a Equipa, respeitando o pedido, juntou-se naquele dia no seu canto para ler o que
Vicente lhes tinha escrito.

“Olá Equipa Leonardo da Vinci.

Dizem os mais antigos que para que algo de extraordinário aconteça, basta acreditar
que é possível. Hoje quero contar-vos a história a que alguns chamariam de milagre, que
presenciei há muitos, muitos séculos atrás numa das muitas viagens que fiz. Estava uma
noite fria, gelada até. Naquela altura eu era um simples pastor guardando um pequeno
rebanho de ovelhas, percorrendo montes e vales áridos, secos, desertos, em busca dos
últimos pastos do ano. Aqui e ali, pontificavam casebres, pobres como as gentes que ali
viviam, iluminados apenas pela luz de velas que mãos sábias e experientes fabricavam a
partir da gordura que o abate de uma ovelha para alimento da família lhes fornecia.

A meio de uma encosta ficava um estábulo e foi nesse estábulo que uma cotovia resolveu
fazer o seu ninho. Algum tempo depois, dos 3 ovos que a cotovia pôs, nasceram três
avezinhas, franzinas e ruidosas, pedinchando constantemente o alimento que o labor dos
pais ia trazendo, saciando a fome infinita que as atormentava e fazia crescer. Os dias
foram passando e no céu, lá ao longe, surgiu uma estrela que, num lento caminhar, iniciava
o seu percurso.

Entretanto, o estábulo ganhou novos habitantes. Uma família encontrou ali o abrigo
quente e sereno quando outras portas se fecharam. A manjedoura de uma bezerra que
ali estava guardada, aconchegou o bebé que a Mãe trazia ao colo embrulhada em panos
de lã, enquanto o pai, carpinteiro de profissão, procurava fechar as frestas que o estábulo
tinha, mantendo assim a família aquecida naquele lar improvisado. Dos alforges do burro
que os transportava, retiraram um pedaço de pão duro e um último queijo.

No alto de uma das travessas de madeira do estábulo, uma das pequenas crias de cotovia
olhava aquela família, fascinada, curiosa. Tinha crescido bastante nos últimos dias e sentia-
se impelida a treinar o seu bater de asas, o impulso que a levaria a sulcar o céu rumo a uma
nova vida. Num pulo saiu do ninho e ganhando coragem lançou-se no vazio indo aterrar
com sofreguidão no espaldar da manjedoura onde a criança repousava. A Mãe olhou-a
ternamente, enquanto a criança, de olhos bem abertos, abraçando o mundo novo que
a rodeava, sorria perante aquela inesperada visita. A cotovia olhou-a demoradamente,
sentindo no pulsar rápido do seu pequeno coração, um amor puro, inocente, grande e
único. Então, sabendo que tinha chegado a hora de partir, ganhou coragem e levantou
voo.

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Voou até às encostas que se avistavam ao longe quando deixou o estábulo e aquela família,
poisando aqui e ali para ganhar forças, cruzando o céu, aproveitando as correntes de ar
mais quentes, até que a aurora começou lentamente a despontar, levando a cotovia até
ao abrigo seguro no alto de uma oliveira. Sentia-se forte, confiante, as notas de um canto
primaveril a gotejarem no bico, como se fossem pingos de mel. Então, encheu o peito de
ar e pela primeira vez na vida cantou e na melodia do seu canto contou a história do amor
que tinha sentido ao olhar a criança que repousava no estábulo, a ternura dos gestos, a
doçura do olhar puro e humilde dos pais.

Cantou durante horas e quando finalmente o sol nasceu, uma nova Primavera tinha
ocorrido. Por todo o lado tinham brotado dálias, amores-perfeitos, rosas silvestres de
todas as cores, jasmins, lírios, narcisos, papoilas e margaridas. Os campos, outrora áridos,
encheram-se de erva fresca saciando fartamente os rebanhos que ocorriam em massa,
deixando inundados de surpresa anciãos e pastores. No espaço de horas nasceram
macieiras, pereiras, pessegueiros e cerejeiras carregadas de fruta fresca, doce, sumarenta.
De todo o lado chegavam gentes para verem aquele milagre que o canto da cotovia
produzira, abraçavam-se, esqueciam quezílias antigas, faziam novas amizades abrindo o
coração, e ao verem chegar a estrela que há muito iniciara o seu percurso souberam que a
resposta à pergunta que nascia na boca de cada um deles estava no estábulo e na criança
que repousava na manjedoura.

Aproximei-me da cerejeira mais frondosa que alguma vez vira e colhi um punhado de
cerejas, vermelhas como sangue. Provei uma e senti nascer em mim uma nova vida.
Guardei a restantes, entreguei o cajado e o rebanho aos amigos que me tinham acolhido
e empreendi a viagem de regresso.

Ao chegar, procurei refúgio num pequeno lugarejo junto ao rio Douro, a quem os locais
chamavam Porto de Rei, e ali deixei as cerejas que tinha trazido. Os anos foram passando
e a Mãe Natureza continuou cuidando do que é seu fazendo brotar da terra as sementes
que ali deixara, enchendo as encostas que se estendiam desde a margem do rio serra
acima. Muito tempo depois, quando a primavera chega, as encostas enchem-se de um
manto branco e um aroma único brinda as gentes da aldeia. Foi ali, naquele lugarejo, entre
as primeiras sementes de cereja, que deixei a peça do portal.

Quando lá chegarem, estejam atentos, pois dizem os mais antigos que quando a brisa
sopra mais forte, espalhando pelo ar milhares de flores de cerejeira, é possível ouvir, bem
baixinho, o canto de uma cotovia e a história de amor que contou ao mundo.

Feliz Natal Equipa Leonardo da Vinci.

O vosso amigo,

Vicente”

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XI - Aljubarrota
O dia começara frio, mas nem isso impediu a Equipa de se deslocar até Porto de Rei.
Estavam no início de um novo ano, o ânimo reforçado pelas festividades natalícias, pelo
que o percurso até ao lugar onde Vicente escondera a peça, foi feito com boa disposição
e alegria.

Chegaram a Porto de Rei pouco antes das 9 horas, as terras cobertas pelo manto branco
da geada, a serra debruada por um manto imenso de cerejeiras ganhando no frio a força
que na primavera as levaria a dar ao mundo a imagem inesquecível de um mar ondulante
de flores brancas, abraçando a mais ligeira das brisas. Mas eram tantas as cerejeiras que
não sabiam por onde começar a procurar.

Decidiram começar na margem do Douro onde vieram a descobrir os tocos de uma


cerejeira que, a julgar pela largura dos mesmos, deveriam ser bastante antigos. Mas houve
um que lhes despertou instantaneamente a atenção pois tinha gravado na superfície a
imagem de uma cotovia. Rodearam o tronco, procurando em cada uma das cavidades até
que, deslocando uma pedra negra que ali tinha sido colocada, descobriram uma pequena
cavidade e, escondida, a peça do Portal do Tempo que tinham vindo buscar. Na base da
peça, estava colada a insígnia respeitante ao 1º Acampamento Nacional, realizado em
Aljubarrota. Era para ali que tinham de se dirigir para encontrar a peça seguinte.

Aguardaram serenamente a chegada do autocarro que os iria levar até à estação de


comboios. Quando a viagem começou, Jaime contou-lhes o que sabia sobre aquele 1º
acampamento nacional. Tinha durado 9 dias e despertado o interesse dos jovens escuteiros
oriundos das Regiões criadas até àquela data, Braga, Leiria, Portalegre, Açores, Coimbra,
Lisboa e o Núcleo do Porto. O sucesso daquele acampamento e a visibilidade, alimentada
pela imprensa que ali esteve presente, foi tal que rapidamente o escutismo se alastrou
por todo o país.

A chegada ao campo onde se realizou o 1º Acampamento, bem pertinho do campo de


Aljubarrota, aconteceu já ao final da tarde. Começaram a pesquisa na Capela de São
Jorge, pela placa que os escuteiros ali deixaram aquando do acampamento, mas nada
encontraram. Mais à frente, já em pleno campo, viram um grupo de turistas a espreitarem
entusiasmados por um dos cronotelescópios, um dos muitos aparelhos espalhados
pelo campo de batalha e que permitia ver aos visitantes imagens da batalha. Curiosos,
aproximaram-se, também eles interessados em conhecer um pouco mais da história
daquele acontecimento.

Jaime colou os olhos ao aparelho para descobrir uma das muitas cenas da batalha, mas,
repentinamente, a imagem transformou-se surgindo em seu lugar um pequeno filme.
Nesse filme, era visível Nuno Álvares Pereira junto de um ferreiro, pedindo-lhe que fizesse
da sua espada, uma espada semelhante à “Excalibur” do Rei Artur. O ferreiro assim fez e
alguns dias depois entregou a Nuno Álvares Pereira uma espada completamente renovada,
recortada em alguns sítios da lâmina para lhe conferir mais leveza e uma inscrição que
o defensor do reino lhe tinha pedido: “excelsus super omnes gentes Dominicus”, o quer

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dizer “Acima dos homens o Deus Excelso”. O filme terminava assim, com Nuno Álvares
Pereira, a receber a espada das mãos do ferreiro, mas, num último instante, quando o
ferreiro mostra a face, Jaime reconheceu nele um ainda jovem Vicente.

Sorridente, Jaime contou aos outros tudo quanto tinha visto naquele curto filme e a
ideia que tinha de que a pedra que procuravam estaria de algum modo ligada à espada
de Nuno Álvares Pereira. Seguiram aquela pista e dirigiram-se ao museu do campo de
batalha, pensando que ali poderiam encontrar a espada do nobre português. Ali chegados,
informaram-nos que ali só existia uma réplica, pois a espada original estava no Museu
Militar em Lisboa. Aproximaram-se da réplica da espada e constataram que a intuição
de Jaime fazia sentido pois no punho da espada estava incrustada uma peça redonda, em
tudo semelhante às peças do portal do tempo que tinham vindo a recolher. Mas aquela
não podiam levar.

Foi Luísa quem encontrou a solução, pois num cesto de vime junto ao balcão encontravam-
se dezenas de peças semelhantes à que estava incrustada na espada e que eram vendidas
aos visitantes como recordação da visita ao campo de Batalha de Aljubarrota.

Por apenas 2€, tinham conquistado mais uma peça do portal do tempo.

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XII - A Caixa do Ti Ramiro
“Vejam o que encontrei”, gritou Jaime assim que entrou na Sede do Agrupamento e foi ter
com a Equipa que ali se encontrava reunida, vendo se conseguiam encontrar na peça que
tinham trazido de Aljubarrota algum indício que lhes fornecesse a pista que necessitavam
para poder continuar a demanda a que se tinham proposto.

Jaime trazia nas mãos uma revista editada em 1980 e nela constava, contou ele, um artigo
sobre o estranho desaparecimento de todo um conjunto de objetos antigos das mais
diversas áreas um pouco por todo o mundo e de como, na tentativa de descobrir a causa
do fenómeno, foi chamado um velho investigador que, depois de tudo analisar, concluía
que a causa estava no desinteresse que todos manifestavam em conhecer o passado.
“Conhece o teu passado para poderes construir o teu futuro!”, dizia ele, só assim era
possível recuperar esses objetos antigos, mas para isso, uma vez que muitos deles tinham
já desaparecido a solução passaria por viajar no tempo. Esse cientista, continuou Jaime,
chamava-se Vicente e, numa foto da altura, a Equipa reconheceu, agora mais velho e já
com cabelos brancos, o jovem que na fotografia que tinham encontrado na Sé de Braga,
estava abraçado ao Chefe Barbosa.

“Espetacular”, disse António, alguns minutos depois. “Parece que o Vicente planeou tudo
muito bem, mas com que propósito?” “A resposta a essa pergunta”, recomeçou Jaime,
“está nos documentos que temos vindo a recolher. Lembram-se que tanto o recorte do
jornal, como o documento relativo à fundação do agrupamento nº 1, como a fotografia
que encontramos e que nos trouxeram até aqui estavam muito desfocados, desgastados,
quase a desaparecer? Pois bem, vejam como estão agora” e colocou à frente deles, os
mesmos documentos mas agora, pareciam que tinham sido impressos há apenas alguns
instantes. “Amigos, esta nossa jornada, para além de nos colocar na senda das peças do
portal, também tem servido para conhecermos um pouco a história, no nosso caso, a
história do próprio CNE, desde o Agrupamento nº 1 a surgir em Portugal, passando por
alguns dos elementos mais antigos ainda em atividade, o 1º ACANAC, etc. Foi isso que
contribuiu para a recuperação destes documentos e acredito que, quando tivermos todas
as peças do Portal do Tempo, e pudermos viajar, muitos mais documentos e objetos vão
ficar recuperados. Lembrem-se da frase de Vicente: “Conhece o teu passado para poderes
construir o teu futuro!”

“Excelente Jaime”, exclamou Luísa enquanto lhe dava uma valente palmada nas costas.
“Excelente trabalho meu amigo, mas agora estamos presos nesta etapa, pois ainda faltam
duas peças e não sabemos por onde começar a procurar a próxima. A única coisa que
trouxemos de Aljubarrota foi uma cópia da peça original. Não encontramos mais nada.”
Jaime pegou na peça que Luísa tinha na mão, “se foi esta que trouxemos” disse ele “então
é porque a pista está nela. Temos de a observar com mais atenção”.

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A peça era uma espécie de esfera encimada por um outro elemento que, para Jaime, mais
parecia um peão de xadrez. Jaime rodou a peça, carregou no topo, virou-a ao contrário
e nada aconteceu. No entanto, ao virar a peça, reparou que na base estavam escritas
algumas letras e números: 3E – 4D. O que quereria aquilo dizer? Voltou a colocar a peça
na sua posição correta perante o olhar interrogativo dos restantes elementos da Equipa,
quando, repentinamente, lhe surgiu uma ideia. Pegou na peça que lhe parecia um peão
de xadrez e deu 3 voltas completas para a esquerda. De imediato se fez ouvir um clique.
A seguir rodou a mesma peça quatro voltas completas para a direita e, novamente, um
clique se fez ouvir, enquanto Jaime ficava nas mãos com as duas peças, agora separadas.
No interior da esfera estava uma pequena mensagem que tinha escritas apenas duas
palavras: Ti Ramiro.

Olharam-se, sorridentes. Afinal o Ti Ramiro sabia mais do que dizia saber.

No fim de semana seguinte, a Equipa deslocou-se novamente até à aldeia. Ali chegados,
foram ter com o Ti Ramiro que, como era costume, lá estava sentado no regaço da porta
vendo quem por ali passava. Ao ver a Equipa deixou escapar um sorriso matreiro e sem
mais delongas atirou: “sabia que haveriam de voltar. Aqui têm o que vieram à procura” e
entregou-lhes uma estranha caixa de madeira.

Juntaram-se para analisar aquele objeto, enquanto o Ti Ramiro se retirava para junto
do fogo que ardia na lareira pois naquela época do ano, o frio apertava. A caixa tinha
9 faces e por cima de cada uma das faces, no topo, uma roda dentada e à sua volta as
letras do abecedário. Em cada uma das faces a caixa tinha gravada a imagem de uma
personalidade que, inicialmente, não reconheceram. Foi Paulo quem, depois de olhar um
pouco mais demoradamente, os identificou, pois algumas das imagens representavam
figuras recentes da história do CNE: “olhem bem, são as caras dos 9 Chefes Nacionais que
o CNE já teve.”

Tentaram abrir a caixa, mas não conseguiram. À semelhança da esfera, também ali existia
um mecanismo que, só depois de colocada a devida chave, iria permitir abri-la. Tentaram
várias hipóteses, até que Jaime resolveu experimentar usando para o efeito a letra inicial
do nome de cada um dos Chefes e, com um ligeiro estalido, a caixa abriu-se revelando no
seu interior a 7ª peça do Portal do Tempo.

Agora, só faltava uma.

XIII - O Jovem Misterioso


A caixa onde Vicente escondera a 7ª peça escondia algo mais.

Assim que retiraram a peça, a caixa desmontou-se deixando ver no seu interior duas frases
gravadas a fogo: “Um abraço de mar à tua Promessa”, e noutro lado “procura deixar este
mundo um pouco melhor do que o encontraste”.

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Conheciam aquela última frase, pois era para todos eles o lema de vida que adotaram
desde que tinham entrado para os escuteiros, mas a outra era desconhecida. Paulo
colocou a frase no motor de busca do telemóvel, tendo alguns segundos depois surgido
uma resposta: Centro Nacional de Formação Ambiental do CNE, em São Jacinto. Aquela
frase era o lema do campo. Já tinham um lugar onde procurar pelo que decidiram preparar
tudo para poderem viajar até Aveiro.

Um mês depois, encontravam-se no Forte da Barra aguardando pela chegada do Ferry


que os haveria de levar até São Jacinto, no outro lado da Ria. Enquanto esperavam, Raquel
reparou num grupo de jovens que também ali estava a aguardar e, sentado no rebordo
de um muro, num miúdo que era alvo de troça constante por parte dos outros. Ela
tinha bem enraizado um código de valores pelo qual guiava a sua vida, um código que a
levava a defender causas que considerava fundamentais e aquela era uma delas pelo que
rapidamente se aproximou do grupo e interveio tentando pôr fim à situação. Dois dos
jovens não gostaram da intervenção de Raquel, mas a alma e a firmeza com que defendeu
a sua posição rapidamente sanou a situação levando a que o grupo se afastasse deixando
o pequeno sozinho.

“Vem connosco”, pediu Raquel. “Nós fazemos-te companhia”. O pequeno aceitou. Deveria
ter uns 12 anos, o rosto tisnado pelo sol e um sorriso cativante. Os modos simples que
empregava, denotavam uma origem humilde, educada. A sua mochila reunia “todos os
seus haveres”, confidenciara ele. Vinha de longe, de muito longe, para conhecer aquelas
paragens e as gentes do lugar, dormia aqui e ali, onde calhava, fazendo pequenos trabalhos
a troco de uma refeição quente. Não soube nunca quem tinham sido os seus pais, e desde
muito cedo que se habituara a não ter um destino definido, mas primava sempre por ser
honesto e educado com todos aqueles que iam aparecendo no seu caminho.

Já dentro do ferry e prestes a atracar no pequeno ancoradouro da aldeia, perguntou-


lhes quem eram e o que faziam ali, e depois de Raquel lhe explicar que eram escuteiros
procurando ajudar a construir um mundo melhor, Daniel, era esse o seu nome, abriu a
mochila e retirou um livro e entregou-lho pedindo que só o abrisse quando chegassem ao
Centro de Formação. “Como sabes que vamos para o Centro de formação?” questionou
ela. Daniel afastou-se para longe da Equipa rumo a outras paragens, deixando Raquel sem
resposta.

Alguns minutos depois, o Centro Nacional de Formação Ambiental de São Jacinto surgia à
frente da Equipa. Entraram no campo e depois de fazerem o check-in e montado as tendas,
Raquel lembrou-se do livro que Daniel lhe tinha dado e do pedido que ele fizera. Afastou-
se um pouco do grupo, retirou o livro da mochila, abriu-o e o espanto inundou-lhe a face.
Logo na 1ª página, escrito à mão, estava algo que ela conhecia muito bem: a fórmula da
promessa escutista. Nas páginas seguintes, estavam os artigos da Lei do Escuta, um por
folha, e sempre que ela abria o livro, as páginas reescreviam-se, fornecendo-lhes ações
concretas em consonância com o artigo da Lei que ali estava e que, se seguidos, poderiam
contribuir para que cada um deles pudesse desempenhar um papel mais construtivo na
sociedade. Era como se o livro estivesse a ser escrito, de propósito para eles, naquele

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preciso instante. Mas na última folha, uma simples frase, diferente de tudo o resto,
chamou-lhe a atenção: “Nem sempre é um pote de ouro o que se esconde no fim do
arco-íris.”

Raquel olhou para a sua Equipa, ocupada a finalizar a montagem de campo, quando por
entre o canto dos Chapins e do voo saltitante dos Gaios, um arco-íris inundou de cor os
pinheiros bravos do Centro. Soube nesse preciso instante onde estava escondida a última
peça do Portal do Tempo. Assim que a Equipa viu Raquel a correr, também eles souberam
que ela tinha descoberto algo e lançaram-se atrás dela.

Era apenas uma simples clareira, debruada pela erva fresca, mas era nela que o arco-íris
parecia terminar. Raquel ajoelhou-se e começou a escavar na areia, abrindo rapidamente
um buraco. Quando os restantes elementos da Equipa a alcançou, Raquel tinha nas mãos
uma pedra em forma de um pequeno coração. Aquela era a última peça do Portal.

Ao final do dia, já depois de terem jantado e arrumado o campo, quando se prestavam


para sair do Centro para irem conhecer a aldeia, Raquel fechou a pequena cancela de
madeira e olhou para a praia que surgia ao fundo, no instante em que o sol estava prestes
a terminar a sua descida em direção ao mar. Foi nesse instante, nesse precioso momento,
que ela viu mais uma vez o pequeno Daniel, de mochila às costas a caminhar rumo ao pôr
do sol. No cimo da duna, Daniel parou, olhou para Raquel e sorriu.

Raquel sentiu naquele sorriso, toda a bondade do mundo.

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XIV - Uma Última Missão
Um sorriso mostrava-se matreiro na face de Luísa e os olhos verdes pareciam absorver o
mundo com a avidez de quem tinha saboreado intensamente todas as aventuras da vida.
Sentada à porta de casa, observava as andorinhas fazendo mais um voo rasante sulcando
o ar, sorvendo a vertigem, subindo no último instante para poisarem alegremente no
beiral do telhado observando os últimos trabalhos agrícolas nos campos preparando as
sementeiras de outono.

Luísa pensou no labor daquelas gentes do campo, no seu regresso constante a casa após
mais uma jornada de trabalho e recordou os últimos meses que tinha vivido com a sua
Equipa. Tal como aqueles modestos agricultores, também eles tinham trabalhado imenso
no último ano que passara desde a descoberta do Baú misterioso na represa da aldeia. Foi
ali que tudo começou e vieram-lhe à memória todos os desafios que tão brilhantemente
tinham superado, os obstáculos ultrapassados, as pistas que Vicente tinha deixado e
que tinham conseguido decifrar e assim reunir todas as peças que necessitavam para
poderem colocar a funcionar o Portal do Tempo. Tinham sido etapas duras, mas também
ricas de conhecimento, aprendizagem, de preparação para o seu futuro, pois só assim,
conhecendo o passado, podiam começar a preparar o futuro.

Mas apesar de todos os esforços, faltava ainda conhecer a localização do Portal do Tempo
e nem o último desafio que tinham ultrapassado lhes tinha fornecido uma pista que fosse
para o poderem encontrar. Estavam num beco sem saída.

Quando por fim o sol se escondeu atrás da mansão de Vicente, Luísa recolheu-se em casa,
ajudando a mãe na preparação do jantar. Estava exausta, apetecia-lhe um bom banho
para depois poder analisar tudo mais uma vez, procurando um sinal, uma pista que lhes
tivesse passado despercebida.

Terminadas as tarefas dirigiu-se para o quarto de banho, ligou o chuveiro, olhou-se ao


espelho e foi então que reparou que, no espelho completamente embaciado pelo vapor
de água, vários números iam sendo desenhados como se uma mão invisível ali estivesse.
Olhou para trás de si, mas nada viu, olhou novamente para o espelho e a mão invisível
continuava a sua tarefa. Correu para o quarto, pegou num caderno e num lápis e apontou
os números: 39.92554,-7.18410.

Afastou-se um pouco e os números apagaram-se subitamente. Pouco depois a mão invisível


recomeçou a sua tarefa, mas agora escrevia pequenas frases que Luísa imediatamente
apontou:
- Conheceste a importância do passado.
- Agora é tempo de te conheceres a ti própria, de descobrires as tuas capacidades.
- Só assim poderás ser uma construtora do amanhã.
- Procura a tua última missão na Sede do teu Agrupamento.

29
Luísa mal conseguia respirar enquanto as últimas palavras desapareciam do espelho.
Parecia que o mundo tinha parado por breves instantes e só após alguns minutos conseguiu
ganhar a presença de espírito suficiente para correr para o telemóvel e contar o ocorrido
aos membros da sua Equipa. Ficaram eufóricos e, como sempre, foi Jaime quem acalmou
as hostes encontrando as respostas para as perguntas que todos faziam. “Os números são
coordenadas. Aposto que é lá que está o Portal do Tempo!” disse ele. “Quanto às frases, só
há uma maneira de saber se são verdade. Temos de ir à Sede do Agrupamento”.

Saíram de casa a correr e quando lá chegaram, abriram lentamente a porta para


descobrirem em cima da mesa da Equipa, uma singela Rosa Vermelha acompanhada de
um pequeno rolo de pergaminho.

Afinal, a aventura ia continuar.

30
APÊNDICES
Conselho da Aldeia
Fazia frio em Ombú.

Das chaminés das casas, saiam espirais de fumo branco que, num latejar cortante,
circundavam a noite dando à aldeia uma espessura de mistério que impregnava a
imaginação de todos aqueles que, por este ou aquele motivo, tinham de abandonar o
borralho e aconchego quente da lareira.

O largo da aldeia, a Praça do Futuro, ali bem juntinho à Quinta da Boa Semente, estava
vazia. Alguns dias antes, encontrava-se repleta de famílias que tinham aproveitado as
festividades do Natal e Ano Novo para se deslocarem à terra dos seus avós e ali partilharem
momentos, saudades da sua meninice, saboreando o cheiro doce das ruas, revivendo as
marcas que o tempo não apagara, sorrisos e camaradagens que a distância apenas tinha
avivado, mas não esquecido, enquanto o madeiro ia ardendo num hino à alegria por entre
desejos de Boas Festas e de um futuro melhor. Com a partida de todos eles, a aldeia
voltara à sua quietude.

Ali perto, o Ti Ramiro, sentado como sempre no regaço da porta, escutava, indiferente
ao frio, as conversas incessantes de um velho carvalho e de um jovem salgueiro, que,
num restolhar de folhas velhas, contavam um ao outro as novidades que o vento norte
lhes tinha dado. Os anos tinham passado por ele, as mãos calejadas já não tinham o vigor
de outrora, mas a memória continuava com a mesma vivacidade da juventude: havia ali,
entre aquela conversa secular, uma voz, um simples sussurro, que o fazia recordar um
amigo e um compromisso assumido há muitos anos, quando Jeremias, o seu gato, era
ainda uma simples cria.

“Está na hora” sussurra essa voz, “está na hora”.

“Mais alguém terá ouvido?” pensou ele. “Será que é chegado o momento?” Ergueu-se,
pousou Jeremias no chão e caminhou para junto do Pelourinho. Olhou em seu redor,
sorridente, vendo que as portas das casas da aldeia se iam abrindo dando-lhe a resposta
que ansiava. O primeiro a chegar foi Gabriel, o comandante do posto da GNR, logo seguido
de Lucas o responsável por abastecer a aldeia de tudo quanto fosse necessário. Pouco
depois surgiu Dona Catarina, a curandeira da aldeia. Era a ela que todos recorriam quando
se tratava de tratar com mezinhas os achaques que, de vez em quando, os acometiam.
Ivo, o presidente da Junta de Freguesia, veio logo a seguir acompanhado do Ti Manel, o
tesoureiro, enquanto lá ao longe já se avistava o Padre Luís deixando para trás a Capela,
símbolo icónico da aldeia. Outros mais iam surgindo, como que chamados por uma força
invisível, que os puxava para aquele lugar. Desciam a colina da Alegria, o Monte Ousadia,
atravessavam o Prado da Coragem deixando para trás as Terras da Felicidade. Todos
rumavam ao centro da aldeia.

39
Olhavam-se num silêncio cúmplice, feito de sorrisos e de brilho dos olhos, sentindo que a
hora de cumprirem com o que tinham acordado com um velho amigo de outras eras tinha,
por fim, chegado. Todos tinham ouvido aquele sussurro, o chamamento que os convidava
a construir um empreendimento único, grandioso, um lugar onde os jovens de todo o país
iriam aprender a ser os construtores de um novo amanhã. Esse foi o pedido. Esse foi o
compromisso assumido por todos eles.

Por fim chegou o mestre Célio. Corria-lhe nas veias um saber feito de vida e era ele o
responsável por coordenar o projeto que iriam edificar ao longo dos próximos meses.
Olhou-os um a um, buscando em todos eles a determinação que iriam necessitar. Satisfeito,
encaminhou-se para o meio do povo.

“Ti Ramiro” chamou ele, “É preciso chamar quem não pode vir. Tenho comigo uma
mensagem de Vicente para partilhar com todos vós. É chegada a hora de nos reunirmos
e preparar um futuro que nos devolva a esperança, a magia e o sonho”.

O Conselho da Aldeia vai começar.

40
Jovens Construtores
A noite tinha um brilho estranho.

Junto ao Pelourinho da aldeia de Ombú, o povo reunia-se em Conselho respondendo a


um chamamento que só eles escutavam. Em casa, por entre as cortinas e portadas das
janelas, crianças e jovens procuravam escutar o que ali se passava, enquanto olhavam
atentamente o brilho azulado que vinha da Praça do Futuro recordando histórias antigas
contadas junto à lareira que falavam de um inventor e de um portal que lhe permitia
atravessar os tempos em busca de conhecimento e novas aventuras. Indiferente aquele
brilho, o Conselho da Aldeia continuava.

A coberto da escuridão, saíram de casa e foram em busca de respostas para as muitas


perguntas que juntos formulavam. No caminho tinham apenas a companhia do piar
do mocho e do uivo distante de um lobo. Chegados à Praça do Futuro, descobriram,
encantados, a razão daquele brilho: um imenso círculo de luz azul girava num movimento
certo, constante. Ao centro, destacava-se a figura de um homem.

Enquanto observavam fascinados, o homem saiu daquele círculo de luz e foi colocar-se
no meio deles. Confirmando as suspeitas, contou-lhes quem era, de onde vinha e qual
era o propósito daquela visita. Falou-lhes de tempos antigos, dos tempos em que as
memórias se transformavam em lendas e de lendas que perduravam no tempo. Falou-
lhes de Galahad, de Gawain, de Lancelot e de Artur, de uma Távola Redonda, da ideia e da
missão daqueles jovens cavaleiros, da alma pura que os tornava dignos de combater em
prol da construção do ideal de um mundo novo onde todos pudessem ser iguais, onde a
paz, o amor, a fraternidade pudessem ser as sementes que, depois de deitadas à terra,
nascessem para serem colhidas num novo amanhã, de como a magia do mago Merlin dava
sentido à existência de cada um deles.

E depois, olhando à sua volta, contou-lhes que iriam ter como missão o mesmo propósito
da existência daquela Távola Redonda e dos cavaleiros que se sentavam em seu redor:
a criação de um mundo melhor. Para isso iriam ser chamados a aconselhar, a discutir,
a debater ideias e ideais, e, disse-lhes ele, a sua voz iria ser escutada por todos aqueles
que no Conselho da Aldeia, preparavam com afinco e rigor o plano que há muito tempo
idealizara. Eles eram únicos, a juventude e inocência da sua alma pura, a razão para terem
sido escolhidos para aquela missão.

Por fim contou-lhes que a cada um deles iria ser entregue uma peça que para além de os
identificar como membros daquele conselho de Jovens Construtores, quando encaixada
no seu lugar correto lhes daria acesso a um portal do tempo especial, um portal que lhes
iria permitir estar onde mais fossem necessários.

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Antes de partir, olhou-os uma última vez e deixou-lhes uma frase que dali para a frente os
iria para sempre acompanhar:

“Hoje será sempre o dia para construir um novo amanhã”.

Depois entrou no portal e partiu deixando no escuro da noite, uma pequena luz que se
esvaziava lentamente, enquanto, lá ao longe, a Estrela Polar adquiria um novo brilho.

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