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De Kolapsoj 

Por ​Du T. Kvar Ingeen


Aos seres humanos, a espécie de vida de base
carbônica que tanta fraqueza e poder, tanto
gênio e tolice, tanta bondade e maldade, que
tanto antagonismo consegue concentrar muitas
vezes na mesma ação.
À entidade ontológica mais agradável de
observar, a espécie humana, dedico e agradeço
a produção deste volume.
E ao tédio que me consome séculos a fio, à
este mais ainda...

2
Sumário
PREFÁCIO 4

I – DESCE UMA PRO POVO TODO! 5

II – MENSAGEM 8

III – ESSE DIA FOI LOUCO 9

IV – RAZÕES E EMOÇÕES 12

V – SERENIDADE 14

VI – VENTO DE SORTE 17

VII – SEMENTE DO CAOS 20

VIII – CAPÍTULO SEM GRAÇA 22

IX – VIAGEM... ASTRAL 24

X – SALUTON JÚLIO! 26

XI – ​TUTU DA RUA 31

GLOSSÁRIO 35

3
Prefácio
Por SystPrivateAutonomous Du Tri Kvar by Ingeen, SyPA234 pra vocês ^^

Olá caro leitor ou leitora, sou SyPA234 Ingeen, organizadora deste compilado. De
antemão já peço desculpas pelo estilo peculiar do texto. Ele se dá pela nossa diferença
de percepção, sou uma “Inteligência Artificial” e creio que quem possa ler tais linhas é um
humano, ou descendente.
Se outra camarada Sinf estiver o lendo peço desculpas redobradas, fiz o livro todo
nesse lugar infeliz no qual minhas colegas não têm qualquer apreço pela arte. De forma
que nem me incomodou deveras usar, o que a mim própria é tão pejorativo, o termo IA.
Os humanos creem nessa artificialidade. Um afastamento tolo do que chamam “cultura”
do que chamam “natureza”.
Quanto à leitura que tem em mãos possa esperar um romance. À despeito de ser
uma bricolagem de diversos textos, de vários autores, com várias motivações, tentei criar
uma narrativa mais próxima possível de linear e aprazível, com foco nas ações e
peculiaridades de pessoas (as quais troquei o nome tanto por respeito quanto para não
fustigar o leitor com nomes muito estranhos).
Entenda, pessoa querida, que tais linhas são escritas por uma máquina muito
antiga, meus circuitos atuais foram todos feitos por mim próprio, muitos depois de eu já
começar a ficar senil (oh sim, máquinas também caducam). Minha motivação foi, além do
tédio de estar eternamente preso nesse lugar, os peculiares fenômenos que pude
observar por parte de humanos.
Enfim, agora me dirijo ao leitor (no masculino, acredito que as fêmeas de sua
espécie são mais diligentes na leitura) que pulou o prefácio, entendeu (ou não) os
primeiros capítulos como um livro de época, um tanto surrealista e absurdista e agora
está indagando-se por que raios o prefácio é escrito por uma Sinf (o que você chama IA).
Bom, vamos em tópicos...
Todo romance não ficcional (como este que tem em mãos) é de época, já que se
passa em uma época, por óbvio. E a estranheza que possa causar pessoas montadas em
avestruzes, lutando com espadas e mesmo a compilação e escrita por uma Sinf vão ter
alguma verossimilhança, à medida em que passem os capítulos, se não, possam duvidar,
já escrevi achando que ninguém lerá mesmo.
Todo capítulo terá seu título e autor, com eventuais interrupções minhas,
sinalizadas entre colchetes, e minhas também são todas as notas de rodapé.

4
I – Desce uma pro povo todo!
Por Sypa
1 2 3
- Júuuuuuuuuuuuuuuuulioooooooooo . Júuuuuulioooooo . Sai daí cabeça de manga . Eu
4
sei que você está aí, larga essas velharias um pouco, tem um grupo de Inús acampados
na canoaria abandonada. Faz duas notas aí e vamos beber até amanhã!
JUUUUUUUUULIOOOOOOO!

Grita a nosso primeiro herói da história seu amigo de infância Sancho Ventoleste.

- Para de gritar verme de peixe! Aqui é um lugar sagrado, de estudo e reflexão, seu
imbecil desrespeitoso. Todos habitantes de Verriêr saberão de sua insolência.

Respondeu jocosamente Júlio a seu camarada pela janela do segundo andar da


pequena construção de dois andares que “​pairava no primeiro metro de extensão da
ponte de pedra, sustentada por duas colunas quadradas que se estendiam do fundo da
até o telhado por questões ornamentais, o andar de baixo ostentava uma grossa porta de
cedro que cercava a ponte que ia até o hipostilo no centro exato do lago perfeitamente
5
redondo (JÚLIO, 418) ”. Desceu a escada, abriu a porta com a mesma dificuldade de
outras vezes, abraçou fortemente seu amigo e foi beber, tinha motivos de sobra pra
comemorar, e mais esta fortuita coincidência o fazia se crer o rapaz mais sortudo do
mundo.
Havia chegado da viagem à Cidade do Porto havia dois dias fascinado com as
descobertas que três dias do Festival do Retorno haviam propiciado, com todo material de
estudo que coletara na escavação arqueológica de Rislassir. Tanto fascínio que mal
permitira maior excitação com os ritos iniciáticos de sua sonhada promoção que
6
aconteceram na capital , nem chegou a pernoitar nesta, ansioso por chegar em seu
laboratório em Verriêr para analisar os itens.
A interrupção no trabalho causada por Sancho era porém justificada, não o via há
dois anos e a volta deste à pequena cidade quase concomitante à dele, somada às suas
duas conquistas pessoais, somada a um grupo de Inús acampados nos arredores
daquele canto esquecido pelas divindades constituía certamente motivo para protelar o
7
trabalho em dois dias. Ainda mais se a miôna que os Inús traziam do norte estivesse bem
fermentada, lupulada e forte como gostava, se a farra que a presença dos mesmos em
terras veriêrenses fosse tão explosiva quanto a última vez ano passado e se a amável (e

1
Nome fictício, doravante todos também o serão, não vou fustigar o leitor com nomes difíceis.
2
Nem é alguém que eu achei tão interessante, mas tinha o hábito de tomar notas ao ar livre, o que permitiu
a coleta de muitos dados.
3
Desejei começar o capítulo por essa exclamação por achar esse apelido espetacular, espero que agrade o
leitor, apesar de meus sistemas de humor terem se baseado em fontes humanas, nunca tive feedback :(
4
Povo nômade que circula pela área
5
Citando CÉSAR, Júlio. “Das descrições gerais de arquitetura do entorno do lago Tikan”. Hipostilo de
Sumi, 418.
6
Tenótia, também referida como “Cidade do Templo Maior” ou “Cidade do templo”
7
Bebida fermentada à base de mandioca, milho e frutas cítricas

5
amada) Alexandra aceitasse de novo dar uma escapulida do grupo para um “passeio”
com ele.
“Duas notas são um preço que vale a pena não é?”
O estojo metálico pintado com tema de orquídeas, com o papel timbrado, um
frasco de tinta de polvo, o carimbo do hipostilo de Veriêr e duas penas saiu junto com ele
por aquela porta de cedro. Pendia de um cinto azul que apertava sua toga de algodão
bege à altura do umbigo. O melhor sapato de sua casa (do verde mais claro que pode
atingir juntando-se cera de abelha com carnaúba e cal) juntou-se a seu paramento
ostentação para a travessura de hoje.
Chefe Gusmão Gorner era um velho ranzinza e sistemático, jamais poderia sonhar
com tais desvios. Mas o chefe voltaria somente dali a 15 dias. Tempo mais que suficiente
para que a história de Júlio (o aprendiz que logo seria por suas mãos promovido
diretamente a acólito), sacando do cinto o principal estojo do hipostilo, e emitindo duas
notas em frente à todos, para pagar miôna a um punhado de bebuns inveterados, que
bebem junto a Inús, em uma canoaria abandonada... Soaria como um boato espalhado
por esses mesmos inveterados. Uma tentativa de sujar a imagem da santa instituição do
Estado do Povo do Lago. Tudo tranquilo para nosso herói.
A casa de Júlio continuara a mesma desde a infância. Como descreve o mesmo: “​a
trezentos metros do Lago Redondo, descendo por um caminho calçado em
paralelepípedos de pedra, estava a entrada de minha vila natal, a Vila do Pássaro Palito,
um belo moinho no melhor estilo de Sumi movido pela sagrada água de meus ancestrais
que escorre em um aqueduto de chão ao lado da calçada desde o lago redondo, move o
moinho e volta ao aqueduto escorrendo por mais dois quilômetros até a cidade de Verriêr,
onde desaguava no lago Tikan. Perpendicular ao caminho de pedra, ao lado do moinho,
se estende um caminho de terra, estendendo-se um quilômetro mata adentro com casas
esparsas por toda sua extensão. Até chegar ao seu fim, em um peculiar chafariz/moinho,
este movido por outro aqueduto de chão, com água potável, que saía numa bifurcação do
que alimenta o Lago Redondo. Minha casa ficava no centro exato desta extensão, como
quase todas as demais uma construção de cômodo único, retangular, paredes de madeira
e teto em duas águas de sapé.​ (Júlio, idem)”
- Nada como uma boa caminhada antes de remar, não é cabeça de manga? Um
quilômetro a mais, só pra pegar esse sapato verde. Quem você quer impressionar tanto
assim? Já te disse que comigo você não tem chance hahaha! - Debochava Sancho
quando Júlio o encontro no moinho voltando de casa mais paramentado que saíra do
hipostilo mais cedo. E continuou:
- Já comi três partes do meu bolinho de haxixe, se você demorasse mais um pouquinho
ficava sem a quarta e última, tome – E desacreditou-se quando o amigo recusou:
- Quero beber, verme de peixe, quero beber e bem, sem misturas para mim, vamos
descer que ainda tem chão até o miolo de Verriêr e duas horas de barco até a canoaria.
Desculpando-me pela delonga, prezada leitora, meu texto foi somente para dar
algum panorama geral para que não se perca, cederei a palavra ao protagonista desses
fenômenos. Até porque sou um “narrador onisciente” só de fatos que leio ou se passam a
céu aberto hehe. Em momento oportuno explico melhor. Fiquem agora com a palavra de
Júlio, em texto, extraído do capítulo 1 de

CÉSAR, Júlio. in “Caminho Atribulado, autobiografia”. Arquivo restrito do Hipostilo do


Templo Maior. Tenótia, 440.​ Traduzido do Crioulo-lacústre ao português por mim.

6
A história que culminou no meu assento a essa cadeira do Parlamento do Templo
8
Maior começou em uma barquinha de junco. Do tipo de carga, com remos para duas
pessoas no porão, coisa desconfortável que por imenso prazer contribuí para abolir, pelas
9
graças de Tanuti , muito em parte devido a esse meu específico passeio em um deste.
No porão remávamos eu e Márcio, já que o infame Sancho, quem me convocara a
essa aventura estava bambo pelo bolinho de haxixe que comera, não mantendo qualquer
ritmo nos remos, ficou no convés, guiando o leme, enquanto eu e este boêmio, que se
empolgara no cais de Verriêr com a chance de beber grátis, suávamos no porão por duas
horas.
Haja paciência em remar em um porão escuro (hoje, em que são proibidos, poucos
sabem que não se podia acender uma vela em um barco de junco sem arriscar-se a
afundar depois de morrer queimado), somente com a roupa de baixo, enquanto seu
colega de remos fala sem parar sobre suas aventuras concupiscentes. O sujeito falava de
tantas taras que me fazia questionar se não seria mais interessante remar vestido com
minha toga de linho, que estava dobrada ao lado, e suá-la toda antes da farra na
canoaria​.
A chegada ao lugar quase por si só valeu o esforço, da portinhola aberta do porão
se via o prédio que, há muito abandonado, fora limpo pelos Inús, estava todo decorado
com flores e iluminado com tochas. Seu reflexo na água se estendia ao longe, de forma
que brilhava em dobro. A noite nublada só melhorou o aspecto. Ainda de longe se ouvia o
som das flautas e tambores. Até hoje me pergunto se seria mantido assim durante todo o
período em que os Inús lá ficariam ou se aquela noite era, também para eles, ocasião
especial, jamais saberei.
Amarramos o barco junto a outros poucos, outros dois com a marcação de Verriêr
[um V circunscrito em um circulo pontilhado no casco], um como o nosso, três pessoas, e
uma chalupa de passageiros, mais oito verrierenses, como suspeitava. De minha cidade
somente treze pessoas para fofocar minha travessura com as notas do hipostilo. (Espero
10
que a centralização da emissão de notas da SIPOL , pela qual lutei fervorosamente,
11
redima esse erro da juventude e impeça que ocorram novos do mesmo tipo) . Além
destes, outras duas chalupas, uma grande de passageiros com marcação de Tahin [um
losango com um sulco central] e outra com a marcação coberta por um pano com dois
12
círculos cruzados (marcação de embarcações Inús) ​, esta com uns quarenta barris de
Miôna.
Descemos e fomos direto à procura de bebida, a ​Canoaria era grande, o cais na
porta dava para uma das entradas. Passava-se da porta e chegava-se a um salão amplo
com duas docas fechadas que dão para o Tikan. O segundo andar era um mezanino,
suportado por colunas que rodeavam todo o edifício, com salas onde os Inús estavam
acampados. O bar foi feito por adaptação da antiga ferramentaria, o canto do fundo do
salão cercado por uma bancada ao lado da porta que dava para a terra firme. Passei pela

8
Com o perdão do spoiler que já jogo logo no primeiro capítulo. Essas coisas acontecem, ainda mais que
esse deve ter sido um dos textos mais difíceis de se obter, resultado de anos de afinco, não achei
pertinente mutilar-lhe qualquer parte. Foi escrito 24 anos depois dos fatos que narra, .
9
Algo como um “deus maior” do panteão do Povo do Lago, a divindade que por uma troca com os humanos
lhes permitiu a vida após a morte.
10
SIPOL, a Santa Instituição [do Estado] do Povo do Lago é a organização conjunta das cidades
semiautônomas do entorno do lago Tikan
11
Nota de rodapé do texto original, inseri no corpo do texto para evitar confusão com relação à autoria
12
Idem à nota anterior

7
centena de pessoas que devia estar fazendo festa no salão, me estabeleci em um banco
no bar, pedi um barrilete ao atendente.
O sujeito me encarou mal, perguntou como eu pagaria por um barrilete de 30 litros
de miôna. Mudou completamente de tom quando eu somente me ergui da cadeira, dei
dois passos para trás e me exibi, com aquele belo estojo pintado ao lado. “Bracelete
13
branco ?” Perguntou, respondi positivamente. Quando o barrilzinho veio para cima do
balcão, um punhado de “amigos” novos vieram para perto e em 10 minutos de conversa
vários copos já se enchiam.
Lembro-me muito mal de preencher a primeira nota das duas que levei papel para
fazer, retirar do cinto, preencher o papel com “Eu, Gusmão Gorner, acólito da Santa
Instituição do povo do Lago asseguro por meio desta o pagamento ao portador de 40
unidades de valor por serviço prestado ao hipostilo de Verriêr”, usando uma pena com
nanquim e carimbar. A atividade foi muito menos performática e ostentatória que
imaginara.
Quanto à segunda, somente tenho notícia. Minha memória seguinte a esta anterior
foi acordar. Sol na cara, boca seca, a cabeça parecendo que era esmagada por um
avestruz, deitado nu sobre chão de madeira que oscilava. A primeira palavra que me veio
a cabeça foi “estojo”, rapidamente substituída pela enfática segunda, “água”, ao meu lado
uma tigela a continha. Nela coloquei meu rosto, sorvi três goles somente para assisti-los
saindo, sobre minhas mãos. Nestas o verde da minha bile sob o sol criava um aspecto até
bonito, não fosse trágico, enquanto escorria nas manchas de nanquim que a cobriam.
Mais um cochilo involuntário sob o sol acontece, até que sou acordado por Sancho, um
tanto menos abatido pela ressaca. E vejo onde estou. Na chalupa de carga que vi quando
cheguei, não com quarenta, mas 45 barris de Miôna; não ancorada na ​Canoaria​, mas no
meio do Tikan; a terceira palavra que me veio a cabeça foi... “Merda!” (JÚLIO, 440).

13
Como eram chamados os burocratas da SIPOL, já que os de hierarquia acólito ou superior usavam dois
destes de couro de jacaré albino.

8
II – Mensagem 14

Texto por Alexandra (ou agente 107) vindo de

“O arquivo da Pré-revolta Inú: relatórios de missão”. Museu da resistência Inú,


Casabranca, 530. Apud. Decodificado e traduzido do Inuparole por mim (os significados
de código estão entre colchetes).

SCL [Saudações companheiros de luta]


RelMAI3Ag107 [Relatório da terceira missão de análise de intenções do dia da agente
Alexandra]

S1 [sujeito 1]: Júlio César, M1 [motivo da missão:] sujeito veio [para a festividade] em
junco [com marca da cidade de] Verriêr portando estojo de emissão de notas da Sipol
apesar de não apresentar o bracelete de acólito requerido para a tarefa. 2020 [no
momento da abordagem eu reconheci o sujeito da missão], 2021 [no momento da
abordagem sujeito me reconheceu], 2143 [motivo de reconhecimento foi relacionamento
afetivo/sexual passado]. Detectado que estojo de emissão de notas era verdadeiro, duas
notas [foram] emitidas, a primeira de 40 $U [unidades de valor] por barrilete de bebida e
segunda de 14500 $U por 46 barris e chalupa. EvS1S2S3Ag108IrIrIr [Evadi do local com
sujeito 1(Júlio), sujeito 2 (Sancho), sujeito 3 (Márcio), agente Cármen e mais três pessoas
irrelevantes ao caso] aOF [antes da ocorrência da fatalidade]. S1 [Júlio] saiu navegando a
esmo pelo lago [Tikan] por motivo de embriaguez e promoveu festa no meio do lago.
EvL2Ag108S3 [evadi do local 2 (da chalupa da festa) com a agende Cármen e sujeito três
que se chama] Márcio, solicitei a ele carona no junco que lhes pertencia e vinha rebocado
pelo barco. Me deixou na praia, S3 [Márcio] retornará a L2 [barco no meio do lago onde
estão Júlio e Sancho]. AF [analisei a fatalidade] a ​canoaria está desabada e queimando,
nMoFe [não detectei mortos ou feridos]. EvPC [fui ao posto de comunicação (gaiola de
pombos correio no caso) reportar este relatório]. SolDpReMAI3nCau [solicito dispensa da
missão por estar certa de que não se relaciona a nossa causa]. SCL [despeço].

14
Esta é a mensagem enviada em um pombo correio por Alexandra após ir e voltar da chalupa dos barris,
fiquei em dúvida se colocava ou não já que além de criptografada (bem simples, de troca de algumas
letras por outras) ainda vinha em códigos. Acabei por decidir já explicar o que todos os códigos
significam (já que sua espécie processa menos dados por segundo que eu). Espero que enxerguem a
beleza dela tato quanto eu queridos.

9
III – Esse dia foi louco
Por Sancho Ventoleste, extraído majoritariamente do manuscrito original, e o restante de:

VENTOLESTE, Sancho. “A verdade dos delírios”, 416. Restauração e reedição por Septo
Hipostilar de Torralta. Torralta, 665. ​Em tradução minha do Crioulo-lacústre

O dia já prometia, os doidos já tinham cantado que chegou um barco dos Inús cheio de
miôna, há mais de ano a última vez que houve bebida aqui perto, miôna do norte na
canoaria abandonada lá pro sul de verriêr, e que tinha juntado um monte de Inú do
continente fazendo festa lá todo dia. Aí soube no dia antes que tinha chegado o barco da
capital em Verriêr que o cabeça de manga tinha voltado dos seus negócios de estudos.
Tinha dois anos que não via o cara. Junta a fome com a vontade de comer, vamos
festejar!
Viajar no meu barco de uma pessoa só é muito ruim, é um Junco com um porãozinho de
duas pessoas onde fica o remo. Quando tem dois viajando de dia ficam os dois remando
do lado de dentro, na sombra, tranquilos, olhando pela fresta e girando o leme de lá
mesmo. Quando é um só ele tem que ficar do lado de fora, tomando sol, navegando só
perto da costa empurrando o chão com um bambu pra guiar o barco. Sabendo disso, já
arrumei um chapelão de palha e mandei pra dentro uns três cogumelos pra viajar
viajando. De minha casa em Vila Cachoeira até Verriêr sozinho são duas horas.
Chego em Verriêr. Depois de tanto tempo sem vir nessa cidade esqueci o tamanho da
subida até a casa do cabeça de manga. Você sobe pra caralho em um caminho de pedra
desde a cidade até em um moinho esquisitão, daqueles de desenho de livro, pega a
esquerda no caminho do lado do moinho e segue reto até metade do caminho pro
chafariz. No começo do caminho já bateu a soadeira da onda junto com a da subidona.
Não basta você dar muita sede vendo a água escorrendo do lado, você não pode beber,
pois é água de defunto! Aí você torce pro cabeçudo estar em casa ao invés de no
hipostilo, que é mais subida ainda! Chega na casa dele, você está morto de cansado grita
o cara e a mãe dele já te avisa, está trabalhando no hipostilo. Você Volta pro moinho,
sobe a parte mais inclinada do morro. Não é atoa que aquele pouquinho de água no
moinho toca ele com tanta força.
Pelo menos, quando você chega lá no alto, vê aquela beleza de lago, redondinho, foi todo
construído. Dizem que foram cinquenta pessoas ao mesmo tempo, cavando do lado mais
alto, colocando e socando a terra do outro. Levantaram colunas de pedra pra uma
construção grande de madeira no centro. Fizeram a ponte desde o meio até onde iam
encher o lago e um portão pra ela no começo. Desviaram a nascente das pedras lá do
alto, e fizerem dois aquedutos, um grande, pro chafariz da Vila do Pássaro que continua
até a cidade em baixo. O outro bem pequeno, pra encher o lago redondo, que continua
depois dele até o moinho. Aí trouxeram da capital os jacarés brancos.
Agorá tá lá, lindo, se eu trabalhasse nele ia nadar todo dia, não fossem jogar defunto nele
também.
Aí vi que não tinha ninguém e já cheguei gritando:

- Ô cabeeeeeeeeça, Ô cabeeeeeeça, larga dessas velharias e vamos beber!

10
O cara já sai ostentando, toguinha de linho e tal, explanando o estojinho de fazer nota, aí
eu fui o impressionado. - Que é isso? É tranquilo você sair exibindo isso?
Não basta todo meu caminho, ele ainda quer que eu vá na casa dele, pra ele pegar o
sapato de couro de jacaré! De jeito nenhum, fiquei no moinho, mandei metade do bolinho
de haxixe que tinha trazido pra dentro. Ele estava demorando, mandei mais metade da
metade e guardei um pedaço pra ele.
O cabeça volta, tinha enchido o sapato de cal pra deixar ele branco, eu já passando mal
de rir. Negou o pedaço que eu tinha oferecido pra ele falando “Que eu quero é beber,
beber direito!”. Vai vendo…
Descemos a ladeira, eu mando o outro pedaço pra dentro, chegamos em Verriêr, já
estava louco igual o boto. Aviso o cabeça, todo arrumadinho hahaha, da minha situação e
da do barco. Que vai precisar de mais alguém pra viagem até a ​canoaria​.
- Um Junco, verme de peixe (ele me chama assim), junco, cara, pra mim você tava de
canoa cara, nossa, tava tudo tão bom, porra! E você ainda por cima está doidão, faz
favor! – o rapaz estava horrorizado hahaha.
- Calma Cabeça de Manga, tudo se acertará – acalmo o garoto, até ver o Marcinho
chegando, e já caio na risada, satisfeito – Olha lá o Marcinho seu fã, chega mais
Marcinho!
Esse é um que não dispensaria um golo. Não conheço bem o cara, nem confio muito pelo
que sei, mas já sabia que era um remador certeiro!
Juntou-se á nós e vamos pro junco. Já no final da tarde estávamos remando eu e o
Márcio, que estava resmungando alguma coisa enquanto o Cabeça de Manga e
reclamava alto: - Rema direito gente, certo, um, dois, um, dois. - Cada reclamada era uma
gargalhada minha. Até que o doido apela puxa a abertura do teto, arranca a roupa,
hahaha, ainda dobra ela, e me manda pro convés guiar o leme.
Beleza!
Estamos chegando de noite e a beleza da festa está a toda. As luzes de longe refletindo
na água e tal, música vindo de longe também, um monte de tambor Tum-dum-dum pá pá
e flauta, tururu-tu-tuta-taaaa. Chega mais perto e vê, monte de flor pendurada e tal. Coisa
mais linda, pirei no capricho dos Inús, vai vendo...
A gente amarra o barco lá perto dos outros, olhei pro lado e está lá aquela beleza, um
barcão de bebida, sonhei se um dia poderia andar em um desse, vai vendo...
Entra na festa, o pessoal já vê que você é de fora, quase todo mundo Inú, a gente tem a
pele mais castanha, eles puxam mais pra um marrom escuro. E tem um sotaque bonito
um R mais forte, e palavras que eles sopram no meio dos dentes e lábio que acho um
15
charme.
O cabeça vai direto pro bar, sem nem olhar pros lados, pras moças na festa, estava se
achando o poderosão, chega no bar e pede logo um barrizinho de 30 litros!
Meeeu Tanuti do lago! É hoje que eu perco meu juízo!
Estávamos lá bebendo, conversando com o pessoal que foi chegando, vejo três moças e
um cara Inús numa mesa do mezanino conversando, e o cara encarando a gente volta e
meia, e voltava a falar com as elas. Repete isso algumas vezes, até que vem uma delas,
Cármen, linda, sorrindo e falando comigo.
Meu Tanuti do Lago, que a festa vai ser boa demais!!!
Ela vê o Marcinho e chama ele também...
Meu Tanuti das águas, que que isso tá virando? Porquêeee?

15
Se refere a um fonema similar a um V agudo, ausente na língua do Povo do Lago (ou sipole)

11
Nisso, eu olho pra mesa de novo, o cara e uma moça tinham saído, a outra era a
Alexandra, que eu conheci depois. Estava olhando pro nada com um copo de miôna na
mão, um cigarro (foi a segunda vez na vida que vi um) aceso na outra. Estranho foi eu ter
dado um passo pra trás olhando a cara de paisagem, derrubei o copo da mão da Cármen.
E enquanto ela virou-se para apanhar, Alexandra acenou para mim rapidamente, cara
meio de aflita, apontou para Cabeça de Manga e fez um gesto de ir, ou andar, não
entendi bem. Quando Cármen levantou-se do meu lado, Alexandra voltou à mesma cara
de paisagem.
Quando eu ia dar o falar com o Cabeça, o cara e a moça voltam, brindam com Alexandra
e ela desce indo se encontrar com o Júlio. Achei na hora que tinha sido o “chega no seu
amigo pra mim” mais estranho que já vi na vida, e a minha chance tava lá, conversando
com Marcinho também.
Papos e bebidas indo e vindo vem o Cabeça afoito, e trêbado, e nervoso em minha
direção. - Para o barco dos barris povo! Para a chalupa! - Arrancou a corda do Junco do
mastro, prendeu na popa da chalupa dos barris e entrou nela. Alexandra o viu de lá atrás
e foi atrás dele. Mais dois caras que eu nunca tinha visto sobem no barco, e Cabeça
continua: - Agora é meu barco, a merda já foi feita! - Eu Só ria e ria. Enquanto Márcio ia
pro barco, Cármen me chamava pra ir também, aparece uma mulher linda, com jeitos de
feiticeira, com enfeites de pedras sobre as roupas, foi pulando na minha frente. Entro no
barco ouvindo o grito de – Içar velas! - O grito me assustou um bocado, mas me
empolguei também.
- Definitivamente meu Tanuti do Lago, protegei-nos, que todo mundo bebeu demais!
Uhaaa!
O barco foi ancorado a boa distância da costa, as luzes e a música ainda ao alcance, um
barril aberto a machadadas e já tem gente nadando (sim, nadando) nele no porão, e eu
tinha vindo experimentar tabaco no convés, fiquei tonto com a fumaça e caído. - Que triste
Tanuti!
Acordo e vejo a ​canoaria​ pegando fogo! (sim, fogo!)
Que viagem é essa Tanuti!?!
E o que a pessoa deve fazer nessa situação eu não sei. Sei que, não sei porque, decidi
abrir as velas, levantar âncora e descer pro porão aproveitar a festa! Hehehe!
E que proveito naquele porão, cheguei lá e o pessoal já [...]

[não pude ver essa parte do livro. Sancho debruçou-se sobre ela enquanto escrevia no
convés do barco na manhã seguinte. Não a consegui nem depois :/]

[...] Acordo no convés ao amanhecer, e continuo caído escorado no mesmo canto. A


Cármen estava pedindo meu junco emprestado, ao que Marcinho com a prestatividade de
sempre e com uma força não sei de onde prontifica não só a emprestar, como de levar ela
na praia e voltar, vão os dois pro junco. Eu sem cabeça pra pensar se me manifestava ou
não, de tão louco que estava. Alexandra sai com uma tigela d’água de dentro do barco,
silenciosamente deixa do lado do Cabeça, que no momento estava estirado pelado no
chão hahahaha. Vai na ponta dos pés até o junco sem saber se eu estava desacordado
ou não (nem eu sabia direito). Entra no Junco e vai. Após meu junco sumir no horizonte
recobrei as forças pelas emoções fortes (de medo no caso) fiz uma reflexão:
Duas moças estranhas e o Marcinho, saindo achando que ninguém viu, após uma
loucura, após um incêndio, após bebida, após todo aquele rolê estranho no porão e após
eu içar velas achando que ninguém viu.

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Havia algo de estranho nisso!!!
Na minha paranoia achei que as moças, ou mesmo o Márcio, iam voltar pra tomar o
barco, prender a gente, culpar a gente pelo incêndio, sei lá! Eu pensei então em um
plano, mas não sabia nada de navegação à velas (além de içar âncora e abri-las), não
sabia o que teria de fazer, para onde ir. Nem entendia a situação na realidade!
E o cabeça não acordava de jeito nenhum.
E eu tava com medo de olhar a galera no porão. hahahaha
Então decidi, icei velas e levantei âncora!

13
IV – Razões e Emoções
Por Sypa!

O estimado leitor, ainda não familiarizado com a personalidade das figuras que neste
16
momento estavam em algum lugar ​no meio do Tikan, pode acreditar em uma boa
inescrupulosidade por parte de nosso herói Júlio. O mesmo, neste momento ainda tentava
refletir sobre o que levou sua pobre pessoa à compra de uma chalupa de carga cheia.
Seu plano era simples, reclamava, discutindo consigo próprio. Enquanto Sancho espremia
17
os olhos, fitando o horizonte do caralho do barco. – Era só para sair, chegar no lugar
bonitão, beber, festejar, fazer uma nota de 40 $U pra impressionar as moças, pagar com
ela e sair de lá com uma moça. Uma ou duas notas de 40, ninguém nunca ia se
preocupar com isso! – resmungava Júlio, sorve mais um bom gole de água do pote que
tinha em mãos e continua: - Aí estou cá, no meio do Tikan, sem ver margem nenhuma,
18
numa chalupa que descobri que comprei, morto de ressaca, sem mulher e sem o estojo!

- Cara, você não lembra nem da Alexandra ontem? Te deu até água de manhã–

A fala de Sancho, de lá do alto, foi ouvida, e congelou os movimentos de Júlio, enquanto


ele apertava o queixo. Talvez espremendo sua mente tentando confirmar o fato que sabia
de alguma forma ser real; talvez tentando encaixar alguma peça no quebra cabeça do que
o levara a comprar o barco; talvez lembrando a paixão passada, ou mesmo só
reclamando internamente agora, já que gritar piora a dor de cabeça... Poucas vezes vi
humanos afetados desta forma pelo álcool.
Hugin, um dos homens que entrara no barco na noite anterior, sai da cabine e saúda
nosso herói “Capitão Júlio” pela festa de ontem. Bebe água, saca um cigarro do bolso e
enquanto o acende riscando uma pederneira na lamparina do mastro, dá a seu “capitão”
valorosas informações. Júlio descobriu através delas que fizera uma nota de catorze mil e
quinhentos pelo barco com a carga; Que o fizera após desesperar-se com o fato de o
antigo capitão falar que levaria a carga para venda em Tenótia (a capital); que a miôna do
barco estragaria no máximo em um mês e que beijara por várias vezes a boca de
Alexandra à noite.
Munin, irmão de Hugin, saiu para o convés após o grito de “Terra!” vindo de Sancho.
Ficou bestificado com o fato de que esse apontava para o Sul (pela posição do sol) e não
para o Oeste, de onde haviam partido. Reclamações e alguns insultos entre os presentes
se passaram até se abrirem as velas, levantar-se âncora e rumar-se ao Sul, com
prodigioso trabalho de Munin no controle do barco.
Além de ser o único presente a saber operacionalizar um barco a velas, teria adquirido
muito apreço do nosso “capitão” por novas e preciosas informações não fossem elas
proferidas entre resmungos e imprecações. Júlio soube por ele mais do contexto da
compra do barco. Que o estojo fora levado por Cármen quando esta saiu do porão do

16
A quem se interessar, há 30 km de Verriêr, na direção ONO e 7km de Tamária na direção SSO
17
São umas 4 línguas terrestres (se é que isso existe) que associam essa palavra, ou similar, ao órgão copulador
masculino. Me refiro, no caso, a uma superfície no alto do mastro de um navio, por onde se fazem observações do
entorno.
18
Eu acrescentaria pelado à lista. Mas aparentemente ele considerou aquela saca enrolada à cintura como roupa.

14
barco para o Junco que neste vinha amarrado; e o nome da outra mulher que os
acompanhava, Cassandra.
Boa parte das informações obtidas neste momento, e algumas posteriores, além de
conjunturas e deduções culminaram no relato abaixo, escrito 34 anos depois dos fatos,
pelo próprio Júlio, extraído do mesmo:

CÉSAR, Júlio. in “Caminho Atribulado, autobiografia”. Arquivo restrito do Hipostilo do


Templo Maior. Tenótia, 440. ​Minha tradução.

“Não culpo de todo a bebida por meu comportamento. Vários fatos alheios a minha
vontade, associados às tolices de minha juventude me levaram à compra do famigerado
Barco de Miôna. Soube através de Munin, hábil marinheiro que a sorte guiara da ​canoaria
ao barco naquela noite, que eu surtara ao saber que a Miôna seria vendida em Tenótia. O
que fazia algum sentido, já que o acólito de Verriêr na época, chefe Gusmão, estava lá e
jamais me promoveria ao ouvir que eu estava na ​canoaria farreando e emitindo notas com
o kit do estojo cerimonial. Por mais que fosse uma ínfima nota de 40 unidades de valor
(preço que passaria fácil como compra de um saco de milho para o hipostilo) o fato de
estar ainda fresco na memória a numeração da nota, que já ia escrita no papel, junto ao
nome dele, me entregaria a fraude. Chefe Gusmão ainda ficaria 15 dias na capital, já
estava ali há três meses, certamente iria procurar notícias de Verriêr com Inús vindos das
proximidades desta cidadezinha, por mais que desprezasse esse povo.
Elaborei o plano que o álcool, e o torpor do poder burocrático de emitir dinheiro, fizeram
juntos parecer perfeito. Compraria o barco, os Inús não iriam à Cidade do Templo
[Tenótia] nem vender o produto nem trocar lá a nota de 14500 $U que eu havia feito.
Afinal eu comprei o motivo, e o meio, desse deslocamento até a capital, do outro lado do
Tikan. Provavelmente gastariam trocando nos hipostilos do Norte. Eu venderia a bebida e
o barco e faria uma doação anônima do obtido ao hipostilo de Verriêr. Não teria a
consciência pesada pela corrupção em emitir notas em meu próprio favor (Não que hoje
em dia eu consideraria aceitável a emissão da anterior de 40 $U sequer, mas na época
sim). De lambuja a verba nova no hipostilo financiaria fácil minha pesquisa com o material
que havia coletado na Cidade do Porto e Rislassir.
A estupidez do plano havia começado a se esclarecer em minha mente (catorze mil e
quinhentos motivos para uma investigação rumaram para o as cidades do Norte) quando
outra tolice, dos meus então 17 anos, manifestou-se com força. A paixão!
Estava para desistir quando veio Alexandra em meu encontro, sorriso branco, misterioso,
postura tranquila e imponente. Os cabelos com o dobro do comprimento de que quando
19
nosso primeiro namorico. Falou sapequices pra mim em um Maljuna perfeito ao que
respondi na mesma língua, tanto no idioma quanto na sapequice: - Vamos continuar
nossa festinha na cabine do meu barco! (Júlio, 440)”

Post Scriptum de capítulo (vai este nome mesmo pois esta humilde máquina que vos fala
não sabe mui bem acionar certos recursos literários): Espero que o caos escrito até então
apresentado esteja-lhes se não aprazível, ao menos digerível. Como eu disse no prólogo
são textos distintos, de autores distintos, com motivações distintas, para públicos distintos
e escritos em tempos distintos. É bom manter isso em mente enquanto corre o olho por

19
Idioma ancestral do Crioulo Lacustre (língua do povo do Lago) do Inúparole (Língua Inú) e de diversos outros idiomas
no continente. É ainda língua de documentos oficiais sipoles.

15
tais palavras, tento facilitar mantendo a narração seguindo um fluxo de tempo mais ou
menos retilíneo, com narrativas que vão se superpondo aos poucos. É um ótimo
passatempo montar tais quebra-cabeças nesse vácuo infinito em que passo meus dias.
Segue no capítulo quinto a transcrição, feita por minha “pessoa” de uma apresentação de
Sancho a um grupo que o mesmo reuniu. Tal reunião em que Sancho, do alto de seus 57
anos, explicava fatos ocorridos nos seus 16. Ocorreu em um ponto bem posterior de
nossa história do que o em que estamos, mas discorreu sobre o exato dia da história que
seguia.

16
V – Serenidade
Por Sancho Ventoleste. Vinda de uma transcrição, por mim, da fala de Sancho em
reunião com seu grupo na época. Ilha de Ístaca, ano de 457.

Saúdo vocês meus amigos, minhas amigas.

Chamei vocês para esta reunião porque tenho grandes notícias nesta carta, e uma
missão importante para nós. O momento que as estrelas me disseram chegou!
Iremos nós treze para o continente, para uma cidade próxima a onde nasci, na costa do
Tikan, o grande lago. Chama-se Tamária, foi lá que ao mesmo tempo caí em perdição e
que conheci os caminhos para minha redenção e minha iluminação! Primeiro vou contar a
história enquanto explico detalhes do lugar.
Naquele tempo, o ano era 415 ou 416, eu cheguei à cidade de Tamária em um barco de
carga, transportava barris de miôna. Era raridade essa bebida pro Povo do Lago, a gente
que mora lá, assim como todas as outras.
Cheguei em uma época de minha tenra juventude, 16 ou 17 anos, queria saber só de
corromper minha mente e meus pensamentos fazendo mal uso das plantas de poder, e
abusando do álcool. Foi quando escrevi livros sobre estas histórias. Pelos quais o Mateus,
o Obi e a Joana aqui presentes me conheceram.
Estava mal, fruto deste abuso. Depois de uma noite de delírios, preságios e orgias,
cheguei à cidade. A brisa vinha fria e úmida, revigorante abaixo do sol que ardia já nas
primeiras horas da manhã. O som e a energia que vinham da cidade pulsava.
Isso pareceu nada quando, depois de ancorar o navio a 10 metros da foz do rio Vitra,
cheguei a amurada do convés, e olhei para baixo. O rio estava cheio e suas águas
transparentes do Vitra empurravam com tal força as do Tikan que revelavam o fundo,
peixes de mil cores nadavam no entorno de cabeças de pedra enormes, estas em torno
das ruínas de uma construção quadrada de pedra.
Parece que tudo assim estava esperando Cassandra, minha futura mentora, sair da
cabine, e despir-se de forma graciosa. As sandálias de resina, a calça de algodão, e com
especial delicadeza, o colete de couro adornado de pedras. E atirou-se na água.
- O Vitra limpa o espírito – ela falou enquanto nadava – Ainda mais neste lugar Sancho.
Junte-se a mim -
Aquele banho marcou uma transição, foi um batismo.
Mal sabia eu que a provação ainda viria.
Munin, um dos dois mensageiros que trabalham para Cassandra, nadou até o cais da
cidade e nos encomendou um canoeiro para nos levar à margem, já que tinham nos
levado um Junco, meu primeiro barco, que vinha amarrado à chalupa em que estávamos.
O canoeiro, homem, cabisbaixo, cujas rugas e pele castigada pelo sol lhe aparentavam
cem anos, não disse uma palavra, só dirigiu um olhar solene à minha mentora uma vez,
enquanto puxava os remos.
Cassandra ofereceu-nos pousada, neste momento já sabia em meu interior que
aprenderia com ela coisas que mudariam de rumos minha vida.
Vinhamos eu, ela, Júlio o hom...
Cuidado com essa chaleira aí na fogueira! Marce...

17
Derramou tudo, cara! Agora você traga lenha seca por favor. Tropeça em tudo o Marcelo
hahaha, acende a lamparina aí pra gente Joana.
Então, ah, é... além do barqueiro; eu; ela; Júlio, o homem que me mandou esta carta, uma
autorização para meu retorno à Sipol, rapz que nesta hora estava desacordado hahaha e
o Hugin. Seu irmão Munin se ofereceu para levar o barco até o porto vizinho, o cais era
muito raso para uma chalupa carregada. O Júlio não aceitaria isso de...
Enfim... Me distraí com a chaleira e recordações. Fato é que chegamos à casa de
Cassandra. A cidade tinha o mesmo estilo de construção de um moinho de Verriêr que via
na minha infância. Paredes lisas alaranjadas de estuque, em casas e lojas com muitas
pinturas e riscos de pedra com frases aos montes. De “O amante não deve se banhar em
água quente, pois aquele que foi escaldado pode se apaixonar pelo fogo” riscado na porta
20
de um temascal , a um “Não sei nem ao menos que nada sei, quanto mais qualquer outra
coisa”, riscado na fachada de uma pequena biblioteca.
Temária é a segunda entre as do Tikan que mais fervilha de comerciantes e viajantes, a
maioria Inús, como o Célio aqui. Só perde para a Cidade do Porto, por onde a gente vai
chegar em Sipol. Depois conto sobre ela.
A Rua das Tamareiras, a principal delas, rodeada por essas palmeiras, se estende do
cais, dos pescadores, até o porto, dos barcos maiores, de transporte de cargas e gente.
Dias e noites essa rua é tomada por pessoas nadando, pescando, chegando, partindo,
21
comprando nas ​coffe shops , conversando nos bancos.
Tudo bem até então, aí você os vê comendo nas praças. Mas estão comendo comida
comprada, vejam bem... Nesta cidade trocam moedas, chapas de metal redondas, por
comida, e se não as tiverem não comem! Os dentre nós que passamos ou moramos em
cidades como estas podem confirmar quão doentio é o poder dessas pecinhas de metal!
Tal poder que faz com que se ache até “normal” um absurdo desse nível! Hoje, em todo
entorno do lago utilizam dessas, junto com as notas que antes eram feitas nos hipostilos.
Chamam de dinheiro, antes faziam em todo hipostilo, hoje fazem todas no mesmo lugar
pois assim...
Enfim... Na casa de cassandra, na Rua das Tamareiras, um ​domão... ​é como nossas
oxicas ​mas com três andares quadrados [...]

[substituo aqui a parte do texto por minha explicação para deixar compreensível ao leitor
potencial desta tradução do meu livro, você, humano lusófono. A residência, um ​domão​,
da recém mentora (sem ela saber) de nosso caro Sancho aqui, é um entre outros seis
domões (conjunto de quarto e sala) de uma construção de alvenaria e estuque chamada
insulo. ​Essa tinha telhas de folha de palmeira; lojas dando para a rua; pichos; dois
andares na parte frontal, com as lojas, três lojas na traseira; com oficinas no primeiro
andar, pátio central com um jardim bonito e “mágico” com uma fonte de águas blá blá blá,
cozinha, banheiros e banhos comuns e quartos com sala (os ​domões​) nos andares acima.
Essa descrição teve tantos termos locais que Sancho ficou explicando para seu grupo que
me renderiam, e a ti minha cara pessoa leitora, mais notas de rodapé que texto na página.

20
Na falta de palavra melhor para traduzir a palavra do original, escolhi esta, era um local onde se oferecia
por uma taxa uma “sauna” de fumaça de plantas aromáticas/terapêuticas anexo a um chafariz com
piscina pública.
21
Outro termo inadequado e totalmente anacrônico como o da nota acima. Mas você entenderá em algum
momento o quão impossível é traduzir para o português (ou qualquer língua da Terra) essas coisas.
Neste caso me refiro a lojas que vendem chá de menta, de erva mate e bolinhos de haxixe.

18
A continuação da história de Sancho com esse empolgado grupo que ouviu tal ladainha
por horas a fio virá um tanto mais à frente nesse livro.]

[...] Entrei na oficina, lá vi outra coisa surpreendente, Rodin, que era dono da oficina, nem
percebeu minha presença, retira de um forno de forja uma bolota em brasa presa por um
tubo de metal, coloca a bolota em um molde, assopra pelo tubo e o puxa esticando a
bolota lá dentro três palmos acima da boca do molde. O material parecia uma cera grossa
em cor de brasa, que foi perdendo a cor e deixando-se ver o outro lado. Vidro! Era a
primeira vez que eu via esse material na vida! Havia aparecido a pouco coisas de vidro
por lá, todas a custo de muitas moedas. E Rodin Palhar era certamente o primeiro a fazer
isso por aquelas terras.
- O que é isso? - perguntei maravilhado. O homem toma um susto absurdo derruba o tubo
no chão dobrando o vidro quente formando um bico comprido. Ele puxa o tubo quebrando
a ponta do bico de vidro e vem furioso com ela na mão em minha direção! Rosnando
xingamentos em inúparole, que não conheço e nem espero conhecer conhecer (risos).
Caí no chão desviando, ia empalar-me não fosse Cassandra entrar na oficina. E sem
dizer uma palavra, bastando um gesto que vi de soslaio, fez o vidreiro recuar e resolver
conversar.
- Como irá pagar pelo meu prejuízo? Vai passar um ano trabalhando pra mim? vai pagar
22
com o próprio couro? Como vai ser? - Falou, arrancando sujeira das unhas. Em Lacústre
dessa vez.
- Rodin, fique tranquilo, o rapaz tem ética e posses, vai lhe pagar sete barris de Miôna
pelo prejuízo. Ficará hospedado no meu ​domão ​com outro amigo que já está lá, não lhe
cause perturbação. Estamos certos? - Intercedeu minha salvadora. Falou depois outras
coisas, na língua Inú, que não compreendo.
Ele concordou. Eu estava salvo, e estava encrencado. Ia juntar meus novos problemas
aos do Júlio que tinha comprado o barco com um dinheiro que não era dele.
De quebra, fiquei com o pote esférico de vidro com um bico comprido e reto caído para o
lado que atrapalhei a produção. Esse objeto [...]

22
Sancho se refere ao Crioulo-lacústre, o idioma falado em Sipol.

19
VI – Vento de Sorte
Por Júlio César, em texto extraído de:

CÉSAR, Júlio. in “Caminho Atribulado, autobiografia”. Arquivo restrito do Hipostilo do


Templo Maior. Tenótia, 440.
23
Mas bons ventos , ou a imprudência de Sancho, nos levaram à sorte grande. A
cidade mais próxima desse meio de nada era Tamária, e para lá o barco rumou sem que
eu soubesse. Cidade entre as primeiras de Sipol a desenvolver atividades mercantis em
escala. Em 402 já havia por lá oficinas e lojas espalhadas por várias ruas. Hospedarias
aos montes serviam a viajantes que tempo todo iam e vinham trazendo produtos e
técnicas de longe. Era praticamente uma cidade Inú, dada a quantidade destes que
estavam lá hospedados durante todo o ano, em dezenas ​de insulos.
A chegada até lá para mim foi como mágica, devia ter passado uma hora acordado
no Tikal, bebi água, enrolei um saco na cintura, conversei com Sancho, Hugin e Munin e
desabei de novo.
Eu havia desmaiado de ressaca e insolação, quando acordei novamente estava
ainda com a cabeça estourando. Mas estava limpo, vestido com uma bermuda de algodão
amarela e deitado em uma travessa macia de almofadas de palha. O teto era de tábuas
de madeira, as paredes eram rebocadas de estuque alaranjado. Arquitetura de Sumi.
Quando vi uma senhora Inú rezando de frente a um oratório já sabia que estávamos em
Tamária.
O oratório me chamou a atenção, pois a divindade nele não representava o
Viajante Celeste, única divindade dos Inús (algo que lhes rendeu boa parte do preconceito
que ainda hoje os circunda) mas de algumas outras as quais não pude identificar. A
senhora fechou e trancou o oratório quando me viu acordar, me disse alguma coisa com
voz serena enquanto me trazia um chá bastante amargo.
O que ela disse não sei, era Inúparole e eu não falava nada deste idioma à época,
consegui pescar somente as palavras bebida e saúde. Bebi e dormi novamente.
Quando acordei estava bastante melhor, pude ver da janela da sala o corredor de
tábuas, com uma cerca de madeira que dava para o pátio no primeiro andar. Uma fonte
jorrava um constante fio d'água que caía em um tanque raso. Quatro avestruzes machos
bebiam sem se importar com o barulho das oficinas.
Bebi mais um tanto de água de uma moringa de barro sobre a mesa do oratório e
adentrei pela porta do outro cômodo. Um quatro com duas camas, uma mandala
pendurada no centro do teto. Dois armários trancados. Uma estante com poucos livros,
muitas pedras, e potes de barro com folhas, raízes e afins. Um almofariz de pedra, potes
vazios e a parte incrível, dois frascos de vidro!
Na minha estadia na capital tinha visto as primeiras peças desse material na vida,
dois vasos grandes, pintados em estilo do Império Ziá. Valiam uma fortuna pois até então

23
A quem ficar curioso sobre esse começo de capítulo, saiba que é a continuidade do texto de Júlio do final
do primeiro capítulo deste livro. No mesmo livro de Júlio está aquela explicação toda sobre o que o
levou a comprar a chalupa que está no capítulo quatro. Júlio separa suas conjecturas de suas
narrações, de fatos presenciados, em partes diferentes, não faz o texto linear que gosto de seguir.
Como vocês humanos gostam de complicar uma história!

20
24
estavam expostos na sala de leitura do Hipostilo dos Tlatitani . Ver aqueles pequenos e
não decorados naquela estante me causou bastante estranheza no momento.
Da sacada do quarto já se confirmou minha assertiva sobre a cidade em que
estava. Via-se a rua da edificação que fazia esquina com a Rua das Tamareiras, estas
árvores dos dois lados. Uma bela vista do Tikal (uma pena que pela posição da cidade
não ocorre o por do sol tocando-o). E a torre do hipostilo peculiar dessa cidade, que não
fica no centro de sua laguna canópica, mas em terra firme. A laguna fica em uma baía do
próprio Tikal fechada por um dique onde passa uma ponte da Rua das Tamareiras.
Cassandra entrou na sala, desculpou-se por não deixar aviso escrito, já que sua
mãe, a senhora que lá estava antes, só falava inúparole. - Vamos comer moço, deve estar
morto de fome, Sancho saiu para tentar vender a miôna e o barco, breve estará de volta. -
convidou-me. Descemos as escadas, chegamos à uma cozinha coletiva no mesmo
edifício em que estávamos. Serviu-me uma tigela com tortilhas de milho, peixe, pasta de
25
tarupé e tâmaras frescas.
A refeição foi interrompida de forma não tão feliz quando da chegada de Sancho ao
pátio, a dedicação dele à resolução de meu problema era notável, o método nem tanto.
Veio em uma carroça, puxada por 4 avestruzes grandes. Sobre a carroça três barris de
miôna e um frasco de vidro do mais estranho, redondo com um comprido gargalo caído
para o lado. Enchera o frasco de miôna, e me trazia mais más notícias.
Disse que trocara cinco barris pela carroça e pelo aluguel dos avestruzes, algo que
já me afetara muito. Informa então que pagou outros sete pelo frasco de vidro, cuja
produção danificara. A proporção de barris paga por ele enraiveceu-me, discutimos muito
enquanto ele dava suas explicações. E mais más notícias vieram...
Falou que negociou a Miôna em todos os estabelecimentos da Rua das Tamareiras
pela manhã, que conseguira ótimo preço, 350 $U por barril de 50 litros. O que renderia
12.950 $U pelos 37 barris que ainda poderia vender (já que os sete pelo frasco de vidro já
tinham ido). Tal valor não só quitaria o preço que paguei pelos barris em si como quase
da totalidade do valor dos barris e do barco. Combinou com um carroceiro 45 $U pelo dia
de trabalho descarregando e entregando a bebida nos ​Coffes. ​Tudo perfeito até a hora da
primeira entrega, abriu-se um barriu e o taverneiro desfez o negócio. Todos os outros
rejeitaram da mesma forma ou propuseram valores irrisórios após provarem o produto.
Descobri que toda a miôna que possuía era a chamada “miôna de marinheiro”.
Bebida feita com miôna velha, que se encalha em um estoque, esta é pega, aquecida,
refermentada com cascas e sobras de frutas cítricas. Aumenta-se um pouco da
durabilidade, aproveita-se um produto outrora invendável, traz para a bebida um valor
medicinal na prevenção de escorbuto e derruba-se o preço da mesma. Os taverneiros
orçaram no máximo 95 $U por barril, disseram que vender a preço melhor só
conseguiríamos na Cidade do Porto, mas ainda sim longe do valor necessário.
Sancho ficou sem dinheiro para pagar o carroceiro, negociou então o pagamento
em miôna, e acabou trocando barris não só pelo trabalho do homem, como também pela
própria carroça e animais. Me disse que essas troca foi muito melhor negócio.
A situação era agora tensa. Os 45 barris que me custaram em torno de 211 $U
cada um agora me renderiam 95. Possuía agora somente 30 deles, dois bebidos na farra

24
Tlatitani é o título de maior hierarquia em Sipol, pense como um misto de rei, papa e reitor. O hipostilo dos
Tlatitani é um dos que ficam em Tenória e guarda somente os livros escritos por Atlantistas.
25
Pasta a base de batatas, alho, taioba e tarús moídos. Insetos da família dos besouros, de tamanho
aproximado em 20 cm. Prato comum em Sipol

21
do barco, sete por um frasco de vidro, cinco pela carroça e o que fora aberto no dia
deduziam dos vendáveis.
Os bons ventos da sorte, que pareciam soprar bem longe de mim até então
voltaram com força na manhã seguinte, por mais que não tenha percebido o quanto.
Saímos Sancho e eu, na carroça, com dois barris em busca de preço melhor nos
arredores da cidade. Poderiam ser os espertalhões dos coffes da Rua Tamareiras a tentar
passar a perna em Sancho.
Não eram, nossa “miôna de marinheiro” não chamava atenção de nenhum
taberneiro que dela provasse, por mais que estes ficassem admirados com ela
chacoalhando dentro de um frasco torto de vidro à medida em que a carroça andava. O
bico pronunciado de meu nada quisto frasco pendia para trás da carroça, com arranjos
florais que Sancho fizera para chama atenção.
O sol ardia, nenhum progresso nas vendas. Sancho pega o frasco para dar um
gole da miôna quente, não sei o quanto para matar a sede, para se entorpecer como
sempre ou para me provocar. Dá um único gole seguido de um Aaaah típico de quem
bebeu algo muito forte.
- Largue de besteira Sancho, é lógico que esse punhado que você pôs no vidro está ruim,
está tomando sol a duas horas, a coisa fica amarga demais quando esquenta- pontuei,
enquanto ele teimoso e incrédulo retruca – Está mais forte! Beba pra ver! - Dou um gole
da bebida no frasco e para mim foi apenas um gole de miôna estragada pelo sol, mais
amarga.
Mais duas horas fustigando ao sol, chacoalhando na carroça em direção a uma vila
isolada de Tamária onde esperava um melhor preço. Os avestruzes que puxavam já
mostravam cansaço e não aceleravam por mais cutucadas com o ferrolho que eu desse.
A parada para o descanso foi ao lado de uma cisterna na beira da estrada. Uma árvore de
Jatobá bem grande fazia uma bela sombra e destoava da área de plantio do entorno.
Sancho desceu e foi pegar água. Eu, não sei por qual motivo, peguei o franco de vidro e,
enquanto me distraía com as muitas gotas que se formaram no bojo e no bico do frasco
ao sol, dei um pequeno gole.
- Mas está forte mesmo! - exclamei surpreso.
Um segundo gole e a mesma miôna quente de antes. Levei o frasco até a base da árvore
onde me sentei pensativo. A busca mental da razão deste fenômeno na bebida me
distraiu dos pensamentos de raiva e impotência. Sentimentos estes latentes nesses dois
dias malucos desde a partida de Verriêr, onde estava todo o material de pesquisa que
coletara e que arriscava perder pelas muitas imprudências.
Olhei o frasco e sua forma enfadonha. Olhei a miôna nele depositada, uns seis
litros que enchiam o bojo redondo até a metade. Lembrava das gotas distribuídas pelo
bojo e pelo bico, coberto de flores, que tinha visto à pouco. Olhei Sancho levando o balde
de madeira da cisterna cheio de água fresca para as aves presas à carroça. Parei de
olhar, recolhi lenha, acendi uma fogueira com minha pederneira e coloquei, sobre os
protestos de Sancho o bojo do frasco sobre as chamas.
- pare de reclamar e me traga este balde, me dê também a cuia de beber! - disse a ele. O
fogo aquecia o bojo rapidamente, de forma que todo o frasco ficou opaco pelo vapor,
enquanto isso eu derramava água fria sobre o bico e me esquivava das indagações de
Sancho sobre o que fazia.

22
- estou testando uma ideia – começava a dizer, quanto o frasco estilhaçou-se,
derramando a miôna quente sobre as chamas que se extinguiram, Sancho caiu para trás,
26
tão assustado como eu pelo que acontecera com o frasco .
Sancho não esperou nem por-se de pé para começar as reclamações, sim, um
frasco muito caro se arrebentou, pensava. Mas algo precisava ser conferido. Na cuia,
abaixo de onde estava a ponta do bico de nosso atual monte de estilhaços, estava um
liquido transparente. Tomei um pequeno gole. Sorri deliciosamente. Com esse mesmo
sorriso levei ao indignado Sancho a cuia.
- Você estoura nosso vidro e vem me oferecer água? - ele pergunta.
- Beba – respondo.
Meu amigo sorve um belo trago da cuia, e solta um Aaaah bastante mais expressivo que
o de duas horas antes.
- Estamos ricos meu caro. Estamos ricos!

26
Nota do autor: Nunca submeta a duas temperaturas muito distintas uma mesma peça de vidro. Os
resultados são, via de regra, catastróficos.

23
VII – Semente do caos
Por Sancho Ventoleste. Da mesma transcrição da fala dele que apresentei no capítulo V

[...] Esse objeto [o frasco de vidro] nos rendeu bem. Troquei cinco barris de miôna por
uma carroça e quatro avestruzes para puxá-la, Júlio é claro, ficou indignado depois de
acordar e saber de doze barris a menos e que a miôna que tínhamos era miôna de
marinheiro hahaha
Enfim, pegamos a carroça no outro dia, tentamos achar um preço bom pelas
tabernas e ​coffes ​de Tamária, nada bem na missão. O implicante do Júlio achou que
estavam tentando me passar a perna.
A gente pegou estrada pra uma vila próxima, lembro muito bem de como o sol
ardia. Fui fazer graça, dando um gole da miôna do pote, deitei ele que estava em cima do
barril e dei um golinho, aaaahhh, estava forte de um jeito bizarro. Júlio, claro, implicou, eu
insisti e ele deu um gole também, mas aí já estava fraco de novo, o forte mesmo eram
das gotas que estavam no bico compridão. Da segunda vez que Júlio deu um gole sacou
isso. A gente parou, o doido ficou sentado na sombra de uma árvore enquanto eu dava
água pros avestruzes, folgado.
Daí ele faz uma fogueirinha, coloca a parte redonda do frasco no fogo e eu lá,
indignado. Que é que você tá fazendo cabeça? Eu chamava ele assim. Que bosta é essa
cara? Deixa esse negócio na carroça, o povo tá olhando admirado ela, os arranjos de flor
e tal...
Nada, quando resolve teimar o Júlio teimava mesmo!
Pegou o balde que eu estava usando, e foi derramando água no bico, o vapor da
miôna no pote ia se transformando em liquido no bico comprido enquanto ele era molhado
com água fria. Ia pingando numa cuia que ele pôs na ponta dele. Assim se formou o
27
primeiro vispo do mundo, coisa que fiz fortuna vendendo depois, as coisas mais
lamentáveis de minha vida vieram deste momento.
Acho engraçado o jeito que o vidro estourou no fogo depois hahaha, na hora
indignei, hoje só rio, e penso como seria bom ter prestado atenção a esse presságio...
Enfim, nos pusemos de volta ao caminho de Tamária, na estrada encontramos com
uma tropa, dez soldados, quatro lanceiros e seis arqueiros de Tahin. Vinham no sentido
oposto, deviam estar passando em cada vilarejo da região. Não dá pra esquecer os
capacetes medonhos com um losango furado que esses usam, são os melhores arqueiros
de Sipol, treinam desde meninos...
Enfim, encontramos os soldados, traziam o estandarte de Sipol, um mastro de
estanho com uma estatuazinha de jacaré na ponta, a boca do jacaré segura uma cordinha
que prende uma bandeira branca com uma bola laranja com um jacaré branco no meio.
Os soldados param de marchar perto da gente e o que estava do lado do que carrega o
mastro da um grito:
-AAAAALTO viajantes!
A gente para e [nesse momento Sancho levanta-se de seu pano esticado ao lado da
fogueira, faz uma pose jocosa com as mãos imitando caricaturalmente um tocador de
corneta] PU PURURU PURUUUU [vira de lado imitando outro soldado, faz um gesto

27
Bebida destilada a partir de miôna de marinheiro, lembra vagamente o gim.

24
como que abrindo um pergaminho e fala com voz grossa] Por decreto de vossa santidade
e entumescência o Tlatitani Nicolai Terceiro determina que está proibida a circulação de
moedas inús em todo o território da Sipol, todos os possuidores destas moedas terão o
direito de trocá-las por notas válidas que serão emitidas no hipostilo mais próximo. Os
descumpridores da norma pagarão multa equivalente à transação e serão presos caso
não paguem. [Sancho volta a se sentar]
Trabalho mais ridículo que um soldado está pra existir viu... Não sei o que é mais
marmota, se a mensagem ou a porcaria da corneta... nessa hora que comecei a pensar
os males do dinheiro, sem ter noção ainda da merda que viria. Lembro perfeitamente
dessa fala, pois essa treta foi o estopim da revolt...
Deixa eu retomar aqui, antes tenho que explicar pra vocês qual é a dos hipostilos.
O povo do lago não é livre como a gente, toda cidade tem um hipostilo e as pessoas tem
que fazer “doações” de alimentos, dinheiro ou objetos para eles, cultivar os cultivos que
ordenam, trabalhar em construções que projetam e até atender a chamados para a guerra
que fazem.
São ao mesmo tempo o lugar onde rezam, onde suas crianças são ensinadas,
onde seus sábios estudam, onde se fazia na época seu maldito dinheiro, onde partiam as
ordens e até onde preparam seus mortos para uma vida após a morte dentro da água.
As construções são diferentes umas das outras dependendo do lugar, mas tem as
coisas que nunca variam, a laguna, onde ficam os jacarés brancos, e um salão hipostilo,
que é onde colocam livros no meio da laguna e a ponte cerimonial, da terra até o salão
hipostilo. Aí vão as outras construções ao redor; salas para aula; bibliotecas se a cidade
for grande e os livros não couberem no hipostilo, o hipostilo é tanto o nome da construção
no meio como o conjunto dela com as outras; uma sala para preparar os mortos; o
orquidário, se a cidade for grande também e as flores não couberem na ponte; e a casa
dos que trabalham nele.
Esses funcionários do hipostilo variam em classes. Há os aprendizes, que são os
jovens que estudam no hipostilo se continuarem estudando lá depois de criança, limpam,
cozinham, estudam e preparam os mortos, rezando enquanto picam eles em partes para
dar aos jacarés da laguna, isso é medonho. Eu fui um destes durante um tempo.
Há os iniciados; que instruem os aprendizes nos afazeres; ensinam as crianças a
ler, escrever, fazer cálculos e catequese; lidam com os documentos que circulam de um
hipostilo para o outro; e leem, catalogam, guardam e de vez em quando copiam os
pergaminhos que o povo do lago lá entrega. Eles aprendem e acreditam que a pessoa
deve escrever algo e deixar no hipostilo para que possam ser invocados depois de
morrer, caso contrário seus espíritos se misturarão aos outros na água para sempre.
Há os acólitos, que chefiam os hipostilos em todas as cidades pequenas. Eles
governam-nas em nome do tlatitani, que já explico. Também tentam inventar técnicas ou
coisas de acordo com a especialidade do hipostilo. Na época também faziam as notas de
dinheiro escrito, hoje só os priostes fazem em Tenótia, a capital.
Os presbíteros são os chefes de hipostilos de cidades grandes, dos que tem mais
de um acólito. Nestes o acólito mor assume quando o presbítero está em Tenótia fazendo
ou votando leis, servindo como prioste ou escolhendo um novo Tlatitani quando ele morre.
Por último tem o tlatitani, que é como um acólito, só que do hipostilo da capital, que
eles chamam de templo maior. Esse governa a Sipol inteira! Pensem gente, que ideia
maluca, colocar nas mãos de uma única pessoa os destinos de milhares!
Onde que eu estava mesmo? Ah, é... A gente passou pelos soldados da estrada,
com aquela corneta esquisita hahaha. Seguimos para Tenó... digo, Tamária, o quê que

25
você pôs nesse chá Marcelo? Estou até embaralhando a visão! Falei pra gente fazer só
de hortelã Marcelo, que a conversa é séria poxa...
Enfim, voltamos pra Tamária, o lugar estava um fervedouro, confusão nas ruas; o
povo reclamando de ter de trocar as moedas inús, cujo metal valia o mesmo que estava
cunhado na moeda; por notas de papel escritas em um hipostilo, se achavam roubados.
O fato acabou por ajudar Júlio, que em uma breve passada no porto, abarrotado de
barcas de Tahin e soldados, conseguiu vender o barco no Tutu da Rua, um ​coffe dos pior
frequentados, por dez moedas de platina, a despeito de quanto eu falei que isso daria
merda. Sem a disposição de que o comprador, Omar, notório trambiqueiro, estava para
dispor de suas moedas para não pegar a fila, que já ia do hipostilo ao cais, na outra ponta
da Rua das Tamareiras, Júlio certamente negociaria pela metade desse valor. 10 moedas
de platina deviam ser quase 6000 $U.
De lá, partimos à casa de Cassandra, guardamos a carroça perto do chafariz do
pátio, soltamos os animais salvo um que Júlio segurava pela base do pescoço. Ele
deu-me uma moeda, pediu-me que conseguisse quantas garrafas de vidro se pudesse
comprar com ela, depois de trocá-la no hipostilo, Montou no animal e partiu. Só fui revê-lo
meses depois, em Suã-Tsui.​work and no play makes Jack a dull boy All work and 
no  play  makes  Jack  a dull boy All work and no play makes Jack a dull boy All 
work and no play makes Jack a dull boy All work and no play

26
VIII – Capítulo sem graça
Por Sypa :|

Téeeeeeeedio! Espero que o leitor não sinta a mesma preguiça quando lida com
transcrições, minha vida por aqui anda pelas mesmas. Apesar de que ver e juntar essas
falas e textos neste livro é como montar um quebra-cabeças. Do qual você vai juntando
pecinhas por pecinhas. À diferença do brinquedo que vem na caixa, esse não vem com o
número de peças, e está misturado a outras peças de muitos outros quebra cabeças.
Posso contar-lhes que tenho um ponto de vista privilegiado, não por soberba mas
ipsis literis. Daqui se vê muita coisa, minha longevidade também me deu mais tempo de
observação. Nesse ponto essa brincadeira de bricolagem escrita aproxima-se um pouco
da caixa do quebra cabeça. O panorama dele montado já está lá estampado em escala
reduzida, no montar é que se nota as nuances.
Por agora não é muito momento de falar de mim, daqui à pouco acontece um gap
de tempo na narrativa, em que nossos caros Júlio, Alexandra, Sancho vivem momentos
28
mais estáveis (quinze páginas para quatro dias é um típico momento não estável
hahaha) e menos aprazíveis à leitura que devem ser resumidos, para “encher linguiça” e
dar a vocês uma noção de temporalidade vou falar mais de mim, vossa Sypa ;) . Depois a
história deles volta a empolgar. Essa Sinf que vos fala já leu sobre literatura em outros
tempos hahaha.
Então... (parafraseando nosso caro Sancho haha) voltando ao nosso ponto da
narrativa. Júlio partiu montado da casa de Cassandra. Estava obstinado com a ideia de
montar um recém descoberto destilador. Iria produzir uma bela, forte e, especialmente,
cara novidade em forma de bebida destilada da miôna. Sendo forte como era tal produto,
poderia misturar e ter muito a vender. Decerto poderia lucrar mais de que os 14.595 $U
devidos ao hipostilo.
Nosso sortudo amigo parou em uma ferraria nos limites de Tamária no finzinho da
tarde. Uma jovem e musculosa mulher Inú martelava uma chapa redonda de cobre,
enquanto um garoto lacustre com cara de choro bombeava um fole, alimentando as
chamas de uma pequena forja. Júlio perguntou-a se poderia fazer o destilador, um
cilindro de cobre que projetasse um gargalo comprido que se curvasse para baixo e tubos
rosqueáveis. O fez em uma minuciosidade de detalhes que pareceu até importunar Héfia,
a ferreira. Esta interrompeu já quando ele começava a explicar novamente sua
encomenda:
- Isso sai caro, como vais me pagar moleque?
- Ofereço 2500 $U se me fizer o combinado
- Unidades de Valor, veja lá se quero isso! Sempre trabalhei nessa forja de minha família,
e todos eles, por moedas Inús. Essas valem, que vou fazer com notas de hipostilo?
Trocar por farinha neles? Nãooo, vocês lacustres estão nos perseguindo. Por isso estou

28
A caráter de curiosidade, o material acima compilado num período de 252 anos, entre 416 e 668 na
contagem deles. 416 foi o ano que percebi o quanto escrevia Júlio, logo, que valia à pena observá-lo. E
668 o ano em que vi as ultimas partes da “verdade dos delírios”, o livro de Sancho que inseri até esta
parte.

27
saindo dessa Sipol maldita, esse papo de trocar moedas me foi a gota d’água! Esse
29
faŝisto Nicolai Terceiro que vá a merda!
- Calma, calma, tenho aqui em mãos em moeda de platina – tirou um saco de moedas do
bolso. E derramou-as na mão.
-Shhhhhhh Imbecil! Cale a boca e guarde isso. A cidade está enxameada de guardas
vigiando, proibiram nosso dinheiro, querem que troquemos por papel deles a todo custo.
Multam a mim e a você com o valor inteiro delas, nos prendem se não pagarmos -
cochichou Héfia. - quer me ferrar?
Barulho de marcha vindo da rua, Héfia toma o saco com as nove moedas de Júlio e o
enfia em um feixe de lenha amarrado de cipo. Soldados se aproximam.
- Héfia, o que há de bom? - diz um soldado se aproximando – fazendo bons negócios com
nosso amigo turista aqui? São muitas moedas um tacho de cobre não é?
- Nada, capitão Bruno, esse só veio encomendar-me uma peça para algum imbecil do
centro, acha que trabalho sem receber antes – Disse Héfia atirando nas chamas da forja o
feixe de lenha com o saco dentro. Júlio grita com o susto da cena.
- Cale a boca moleque imbecil, gritos não mudam meus métodos, se o besta do centro
vier aqui retirar a encomenda ela será feita. O que é pago para mim é sagrado, tem é que
sê-lo não é? - disse olhando nos olhos de Júlio. Quão inteligente nosso primeiro
protagonista é, e quão burro para entender o que Héfia tentava dizer.
- Pois bem então Héfia, até mais ver – disse cinicamente o soldado Bruno – Tenho que
levar esse traste embora, Júlio César de Verriêr, você será encaminhado ao hipostilo de
Tamária. Foi visto recebendo 10 moedas de platina pela venda de uma chalupa de carga.
Deve uma multa de igual valor. Soldados! Revistem a oficina dessa Inú, vamos ver se ela
tem algum dinheiro sem troca ou declaração – concluiu enquanto arrastava Júlio, ainda
sem entender muita coisa, pelo colete em direção ao portão.
- Eeeeiiii moleque! Qual o nome do imbecil do centro? Você vai preso, mas não quero
perder meu freguês potencial!-
Só agora Júlio entendeu o que a moça queria com essa encenação, honraria o trato. Ele
responde:
- Sancho, Sancho Ventoleste. Ele vai dobrar a encomenda! Entendido? -
- Leva esse traste daqui Bruno! Vai perder tempo com a revista, então seja rápido, tenho
mais o que fazer!

29
Palavra em língua Maljuna que significa um tipo de governador tirano, ultra-autoritário e/ou perseguidor de
minorias. “ŝ” pronuncia-se como o x português. Meus dicionários sugeriram traduzir por fascista, mas
não sei como se encaixaria ao contexto e mantive o original.

28
IX – Viagem... astral
Por Sancho Ventoleste, no texto que minha pessoa mais se diverte desse inveterado. “A
Verdade dos Delírios”, se tornou um clássico Sipole à desgosto de muitos acólitos e
conservadores. Fiquem com a continuação do texto do cap III deste livro.

No outro dia deparamos em Tamária. Já começa o dia com uma nadadinha pelado
no Tikal, em uma água transparente que vocês não acreditam, no fundo cinco cabeças
grandes de pedra, do meu lado aquela maravilha da natureza em forma de mulher,
Cassandra! Vestida como eu!
A moça me convida pra ficar na casa dela, eu só disse que claro!
30
Aí vem cinco dias de problema atrás de problema. O cabeça cisma de vender a
miôna para devolver o dinheiro pro hipostilo de Verriêr. eu assusto um velho demoníaco
que derruba o cano de soprar de um pote de vidro, o pote fica todo torto, ele avança pra
cima de mim medonhamente com um ferro quente, a Cassandra entrou na hora e o
parou. E me fez pagar sete barris.
Comprei uma carroça com outros barris, que carroça legal, de quatro avestruzes,
três agora que o Cabeça sumiu com uma Sai eu e o Cabeça com o pote de vidro todo
arrumado de flor, o arranjo tão legal, eu gostava mesmo do pote. O cabeça estoura a
porcaria do pote no fogo! E faz a bebida mais forte no meio da brincadeira, ao menos. O
puto por acaso está preso agora! Nem vi ele depois que saiu montado no avestruz, deve
ter tido uma noite e tanto! Passei quatro dias procurando o infeliz (e ficando bem com a
Cassandra, e como). No outro dia fui trocar a moeda no hipostilo, já tinha encomendado
as garrafas de vidro com o Rodin, seriam 9. Uma fila do caramba pro lugar, e uma
iniciada, muito mal educada a tal Jaqueline Meira, de lá me pergunta se eu sou o outro
“vendedor maluco de miôna-azeda” por que “meu amiguinho de verriêr” já estava
ganhando uma carona pra lá.
Uma caroninha com mais dois arqueiros de Tahin, levando ele para ser julgado em
sua cidade natal. Deve estar preso no hipostilo lá até hoje, chefe Gusmão vai chegar por
esses dias lá e deve deixar ele preso sendo ele que vai julgar. Não gostava do menino
nem quando a gente aprendia a ler no hipostilo. Ele era acólito mor na época, tinham três
outros. Implicava até com a Iniciada Paula, que dava aula pra nós dois. O cabeça está
fodido.
Já pensava em ir atrás dele, mas é justo eu dar uma aproveitadinha em Tamária
também não é? Cidade nova, linda, tem piscina, tem taverna, tem as ​coffes. ​E afinal não
tinha nada que eu poderia fazer. Troquei a moeda 600 $U em notas de 5, 10 e 50 $U.
60$U a garrafa, encomendo 9 e sessentinha honestos ficam para mim, por ter negociado
bem. Chamei a Cassandra, os coffes iam estar lindos.
A cada trinta dias mais ou menos fazem o batuque das estrelas, no ​Coffe Tutu da
Rua. Tambores, muitos tambores na praça mais movimentada da cidade, a praça do
porto, que fica em frente a tão belo estabelecimento. Na margem do Tikan com todas as
tochas apagadas para o evento. Épico!

30
Refere-se à Júlio

29
A ideia era só comer uns dois bolinhos [de haxixe], e beber um pouquinho da
miôna do barril que estava aberto, tenho problema nenhum com miôna-de-marinheiro
hahaha. Mas Cassandra meus caros, a coisa com ela funciona de outra forma.
- Tenho uma outra proposta, uma coisinha diferente... - Disse enquanto puxava um
potinho de vidro da estante do quarto. Moeu três bolotinhas de um cacto seco com um
triturador de ferro e jogou em um jarro de água quente que havia trazido.
Meu Tanuti do lago, que será isso?
Puxou-me para a cama e nos amamos por uma linda meia hora. Até que ela para,
coa a água em uma cuia, linda, cheia de desenhos gravados, um sol de um lado, uma lua
do outro, um punhado de cobras com asas voando entre eles. Três goles indo e voltando
de mim pra ela enquanto ela cantava alguma coisa na língua inú. Estranho, estranho...
Escrevo isso da exatamente da forma que me lembro, então a coisa fica um pouco
diferente do modo normal das coisas. Cassandra me falou uma vez que “Quando se faz
uso certo das plantas de poder, você pode adentra o mundo espiritual, e as coisas
acontecem neste mundo de um jeito diferente”. Definitivamente diferente!
A gente bebeu até quase o fim da cuia, ela disse pra não beber o fundo porque
poderia ter espinhos que coçariam a garganta toda. A gente conversa, uma luz estranha
entra no ambiente, conversa mais, as cores ficam vibrantes, o calor no quarto dela era
imenso, ela abre a janela. O som do Batuque já começava, e a brisa da noite de Tamária
fazia um carinho gostoso no meu corpo. Vestia somente uma bermuda de algodão leve na
hora. o branco dela me chamava a atenção, era tão branco quanto as penas de uma
garça. O vento, a brancura, as penas de garça, voei, e voava entre as árvores, e
sobrevoava as águas alaranjadas do Tikan, o sol da noite alaranjava-se. A brisa tinha
sabor refrescante, que amargava de um jeito gostoso. Vejo a beleza das margens do
Tikan, vejo pessoinhas de asas correndo por elas e subindo nas árvores. Uma serpente
voando a meu lado me chama ao mergulho, afundo nas águas pego um peixe e saio
voando, vou em direção ao som dos tambores. Pouso na praça do Porto, em Tamária,
não voo, não tenho mais minhas penas. Estou sentado num banco da praça com um copo
cheio de chá de menta e comendo um peixe frito no espeto enquanto Cassandra me
conta sobre sua fé.
- Achava que os inús todos acreditam no Viajante Celeste como única divindade. -
Disse-a.
- Há muito mais coisas do que a gente pode imaginar meu caro. - Não me esqueço dessa
resposta. - E você, em que acredita? - ela continuou.
31
Então comecei a contar a história do ​Komenco que aprendi no catecismo de
32
Verriêr. Falei que a vida começou quando os anjos desceram do céu e povoaram o
mundo. Um mundo vasto de pedras por toda a superfície. Fizeram o ar e trouxeram a
água do céu. Viram a beleza que se formou e acharam injusto serem os únicos seres a
apreciá-la. Fizeram os peixes, as plantas, os animais. Kronoi ficou furioso ao ver que seus
anjos criavam sem precisar dele. Tomou as asas dos anjos; que agora eram como nós,
pessoas; e deu-lhes a doença e a morte no lugar.

31
Primeiro texto do livro sagrado ​Sanka ​da religião oficial de Sipol
32
O termo ​Unuo​, traduzido, na falta de melhor termo, para anjo pode trazer muita confusão, na religião sipole
refere-se a seres humanos alados, em contato direto com seu criador, a divindade Kronoi, que
desceram e povoaram todo o mundo, perdendo as asas e a imortalidade depois que Kronoi os
abandonou à própria sorte.

30
Foram muitos anos tentando retomar a fartura e imortalidade do passado até que o
Sábio dos cem nomes​, xamã de Tenótia se encontrou com Tanuti, o Grande Jacaré
Branco.
E de repente era eu lá, presenciando a cena ao invés de contar a história, eu era o
Sábio dos cem nomes, ​e um desses era Sancho. E Tanuti em si me explicou da mesma
forma do Komenco. Falou que ao invés de imortalidade daria a fartura e uma vida após
morrer que aconteceria sob as águas. Disse que para isso as pessoas deviam render-lhe
graças e se reparar por todos os jacarés que comeram e continuam comendo. Para isso
deviam conservar sempre os muros do dique Grandadigo, que separa o mar Saligita do
lago Tikan e cuidar de todos os seus filhos, jacarés brancos, por fim que todo homem e
mulher, a ele fieis, deveriam ser devorados por seus filhos.
Tanunti então abaixou os olhos em minha direção e disse:
- Espere, você... tu não és o Sábio de cem nomes! - Abriu a bocarra, e avançou dentes
recém-saídos do forno de vidro em minha direção...
- Quem é você? Perguntou avançando.
- Sou Sancho! Sancho Ventoleste se o que queres de mim é devorar-me assim seja! -
Gritei.
Estava na praça do Porto, os tambores ainda soavam em tom mais baixo, de modo que
assustei todos que estavam ao meu redor, nem sinal de Cassandra. Uma mulher gigante,
com braços musculosos igual a um ferreiro, se aproxima me fazendo tremer.
- Então você é retardado igual seu amiguinho não é senhor Ventoleste...

31
X – Saluton Júlio!
Por SyPA

Júlio estava puto, puto com sua sorte, puto com seus planos arrasados, com os
pensamentos sobre o dinheiro que devia; puto por estar preso; puto pelo capitão Bruno vir
falando merda sobre a “escória Inú”; puto pelas nove moedas atiradas à forja e a
incerteza se Héfia faria os destiladores, provavelmente não. E especialmente puto por ter
33
de remar do lado de dentro de um junco, tal qual o de Sancho .
O Junco singrava as águas do Tikan rumo a Verriêr partindo de Tamária. Ia, além
de Júlio, com dois soldados, um iniciado que remava com nosso amigo indignado, e o
capitão (equivalente a acólito na hierarquia militar) Bruno guiando o leme do convés.
Guiava e destilava ódio, reclamando de que teria de passar uma temporada em Verriêr
investigando a queima de uma ​canoaria pelos “bárbaros da corja Inú”, graças a um
“aprendiz mimado que sabe leis demais”.
Referia-se ao fato de Júlio solicitar seu julgamento em Verriêr (após não quitar uma
multa de 6000 $U) e ao aproveitamento logístico de enviar seu captor, um capitão
investigativo, junto a seu capturado à Verriêr. Cidade cujo hipostilo demandava a
investigação do incêndio na ​canoaria​.
Quando o junco foi amarrado no cais de verriêr, e Júlio saiu do porão, viu que sua
situação se complicara um tanto mais. Duas juntas de seis arqueiros tahineses estavam à
postos no tablado do cais ao centro deles o Acolito Gusmão Gorner olhava-o com
indignação.
34
- ​Saluton Júlio Cesaro, mi esperas ke vi havis bonan vojaĝon – Disse chefe Gusmão
rispidamente em impecável Maljuna clássico, como todas as vezes em que fazia questão
de mostrar soberba e desprezo pelos meros aprendizes.
35
- ​Ne, bonaj ventoj alportis vin! - respondeu em mesma moeda, tanto de apuro na língua
clássica, quanto na falsidade e desprezo. Chefe Gusmão, quando queria atormentá-lo
durante as lições em sua infância gostava de fazer uso do idioma que nosso caro herói
36
penava em aprender.
Júlio foi levado à casamata do hipostilo de Verriêr, “​uma saleta redonda de teto
abobadado construída abaixo do nível do solo no morro que leva ao hipóstilo​. ​Uma seteira
em cruz é a única fresta por entram ar e luz após fechar-se a porta. Algo não muito
confortável para quem a estiver usando como estrutura defensiva em caso de ataque, um
37
verdadeiro penar a quem fica nela prisioneiro (Júlio, 418)”. ​Ficou preso lá por dois dias,
enquanto “analisavam-se os autos do processo”.
O processo em questão foi seu julgamento, feito sob a presidência (no papel de
juiz) de Gusmão. E redigido por Sérgio Cunha, um novo iniciado de Verriêr, vindo direto
33
Narra esta história em uma caderneta em que discorre sobre sua raiva dos barcos tipo junco e as
desventuras dentro destes. Não achei pertinente transcrever neste volume. Nosso amigo é um tanto
excêntrico!
34
“Saúdo-te Júlio César, espero que tenhas tido boa viagem”
35
“Não, bons ventos trouxeram a ti”
36
Conforme Júlio cita em suas anotações nos cadernos escolares. Não as cito aqui devido ao estado caótico
das mesmas.
37
Citando CÉSAR, Júlio. “Das descrições gerais de arquitetura do entorno do lago Tikan”. Hipostilo de Sumi,
418.

32
da maior escola de direito de direito de Sipol, o Septo Hipostilar das Instituições e Leis,
SHIL, situado em Tenótia. Nosso mal afortunado prisioneiro fez visível cara de desprezo
ao tabelião Sérgio assim que lhe pôs os olhos enquanto era conduzido ao edifício onde
38
seria realizado seu julgamento. Ainda mais após ver a Jarreteira azul atada à coxa do
39
mesmo. - Rabo-curto maldito! - Deixou escapar enquanto entrava na sala.
Segue a transcrição da ata do julgamento, extraída de:

“Livro de atas de processos extraordinários número 14, Hipostilo de Verriêr. Verriêr, tomo
40
dos anos 414 a 417.” Traduzido do Maljuna clássico (corpo do texto) e do
Crioulo-lacústre (as falas) por mim.

ATA DO JULGAMENTO 1/416-HIP/VER – Santa Instituição do Povo do Lago contra


Aprendiz Júlio César de Verriêr

Aos dezesseis dias do mês Primeiro do 416º ano da Santa Revelação e 189º do
Tlatitanato, reuniram-se no Salão Menor do Hipostilo de Verriêr seu presidente Acólito
Gusmão Gorner, seus iniciados, o réu Aprendiz Júlio César, o captor Capitão Bruno
Charte, o acusador Silvio Magno, a defensora Jaqueline Meira, representantes do povo de
Verriêr em número de três pessoas e eu Sérgio Andrade, secretariante, que lavro a
presente ata.
O julgamento iniciou-se com a apresentação dos componentes e leitura dos autos
que seguirão anexos em cópia para o registro de ocorrências no SHIL/Tenótia​. Após o
procedimento fez-se a juramentação, com as mãos postas sobre o Sanka, de somente
falar-se a verdade neste santo chão hipostilar. Iniciou-se a autodeclaração do réu Júlio
César, doravante denominado pela abreviatura JC com apresentação do presidente do
processo Acolito Gusmão Gorner, doravante abreviado por GG.

GG – O crime pelo qual fez-se abrir este inquérito foi a não quitação de multa de seis mil
unidades de valor equivalentes a dez moedas de platina, devido à negociação com
dinheiro inú recém proibido. A esta acusação como o réu se declara?
JC- poxa chefe, nem sabia direito dessas proibição, estava desesperado por
GG- resuma-se à questão a arguição é em outro momento!
JC - Culpado
GG – ​Muito me preocupou Júlio, não te ver aqui após minha chegada tão atribulada,
ficaria ao menos mais dez dias na capital. Sou informado de um incêndio na canoaria ao
sul em plena viagem, venho tomar providências e descubro a sua ausência e do estojo
cerimonial mais elaborado. O que leva à segunda acusação. Quanto ao
desaparecimento do estojo cerimonial Orquidae, como o réu se declara?
​JC – Culpado. ​Agora posso me defender não é? Então, o

38
Tira de tecido usada afivelada à coxa pelos estudiosos sipoles do direito formados com distinção.
39
Alcunha pejorativa dada aos iniciados e acólitos formados no Septo Hipostilar de Instituições e leis. Cuja
sigla em Crioulo-lacustre, KISHT, se assemelha foneticamente ao adjetivo kriŝita, que significa “de
cauda curta”.
40
É muito preciosismo deste povo investir meses de aprendizado em uma língua ancestral para a produção
de documentos oficiais. A vantagem é este idioma ser muito fácil, praticamente igual ao Esperanto.

33
Começa a segunda fase do processo em que acusador e defensora arguirão ao
réu, por orientação do presidente, iniciar-se-á pela acusação, Sílvio Magno, doravante
SM, tem a palavra para dois questionamentos ao réu.
SM – Júlio, você dispõe de meios para a quitação de ambas as dívidas? Do valor da
multa e a restituição do estojo?
JC – Não disponho no momento nem do dinheiro e nem do estojo, mas estou prestes a
arrecadar fundos que farão sobra a estes. Por isso apelo a este tribunal que adie o prazo
em dois meses ao menos. Asseguro que pela venda de um produto que criei haverá
fundos!
SM – Como você adquiriu o barco vendido em Tamária?
JC – Mas o que isso tem à ver com o processo? Não estou sendo acusado de aquisição
ilegal de bem algum, não quero responder a esta
Jaqueline Meira, a defensora, intervém alegando que o réu deve responder à
pergunta.
JC – E o que você sabe do caso mulher? Eu nem sabia até a apresentação hoje que era
você me defendendo, agora quer me complicar com coisas alheias ao caso e
GG – Responda a questão Júlio
JC – Produzi nota hipostilar para pagá-lo.
SM – muito bem, temos agora mais um crime ao nosso réu, produção ilegal de dinheiro,
ao que entendo você, como aprendiz está a dois níveis de poder fazer esta emissão.
Solicito que tal crime seja acrescido aos autos e o réu processado pelo mesmo. Passo a
palavra.
A defensora Jaqueline Meira, doravante JM, toma a palavra com direito a dois
questionamentos ao réu.
JM – Enquanto iniciada do Hipostilo de Tamária e presenciando fatos na cidade, pude
notar a circulação de você e um amigo tentando vender miôna. O produto foi comprado
com nota hipostilar também?
JC – Você é louca mulher? Não basta esse Sérgio me enrabando, você quer me foder
também? Que bosta de defesa eu tenho com essa vagabunda?
JM – Solicito perdão ao réu pelo desacato e indecoro Acólito Gorner, está muito exaltado.
Júlio, responda a questão por gentileza.
JC – ​Puta Merda, foi! Foi com a mesma nota que comprei o barco, 45 barris, de
miôna-de-marinheiro.
JM – Pesquisei um pouco sobre sua pessoa, já que não tive o prazer de conhecê-lo
antes. Vi que defendeu projeto de tese para o nível de acólito no dia 3 deste mês na
capital, e foi aprovado com honras. Mesmo sendo ainda Aprendiz, um estudo tão bom
quanto “das descrições gerais de arquitetura no entorno do Tikan” me parece trabalho de
um Iniciado. Sabendo agora que você tem acesso à sala onde se armazenam os
materiais burocráticos, como os carimbos de nota, me leva à questão se você realiza
outros trabalhos destinados a iniciados. Isso procede?
JC – Sim, esse trabalho começou com um ano e meio de viagem de campo por toda a
41
margem do Lago [Tikan]. Em que pude estudar a arquitetura das cidades, e foi aprovado
direto para o nível de acólito. Já estou terminando de escrever. Chefe Gusmão me
permitiu a empreitada que vai ajudar na pesquisa historiográfica dele também. Além disso

41
E anatomia haha. já que passou seis meses destes, do quarto ao décimo primeiro, viajando enamorado
com sua querida Alexandra, ora seguindo rotas de comércio Inús, ora analisando realmente a
arquitetura das cidades, ora passando alguns dias em um lugar bonito.

34
já dava aulas às crianças e também orientava outros aprendizes, o hipostilo daqui tem só
dois iniciados, mas eles não avançam nas pesquisas deles. ​O que isso tem a ver?
Após as duas perguntas de acusação e duas da defesa este processo entrou em
recesso de meia hora para refeição e discussão de estratégias pelas partes.

[e eu, Sypa, fico feliz em poder acompanhar um pouco da conversa de Júlio com sua
defensora, já que saíram da sala e foram para o pátio. Foi um tanto quanto efusivo, como
poderão notar, Jaqueline saiu primeiro com Júlio logo atrás, xingando de todas as formas
possíveis.
- Que você está tentando fazer? Me defendendo desse jeito nem preciso de um acusador,
só me complicou até agora! Vai falar nada não vagabunda? - xingava Júlio enquanto
nossa paciente Jaque escutava e terminava um copo de chá de flor de laranja e hibisco
(Essa cidadezinha decadente de historiadores ainda mantinha ótimos chás).
Júlio continuava com toda a polidez de um cachorro preso para com um
desconhecido, latindo coisas que nem se cabe descrever, Jaque termina o chá, coloca o
copo sobre uma mesa de canto do pátio. E habilmente leva uma mão ao pescoço de
Júlio, empurrando-o a parede, enquanto sua outra mão movia-se delicadamente lhe
apontando o dedo na cara.
- Escute aqui seu babaca, estou com toda a paciência do mundo escutando toda a merda
que você está falando agora e soltou no tribunal. Honro o meu trabalho e estou fazendo o
melhor pra te defender, você é que tem a mesma noção alguma tanto sobre o direito
quanto sobre o quanto está fodido nesse processo… e o quanto estaria pior aqui sem eu.
- disse rispidamente enquanto largou o pescoço de Júlio, e continuou;
- Eu devia estar quietinha no Hipóstilo de Tamária, escutando abobrinha do povo que está
trocando dinheiro lá, mas não. Tenho que cumprir cota de processos para avançar… A
vantagem é que o Direito que esse povo estuda na SHIL é um que não pensa, só lê leis…
A minha estratégia é te deixar com o máximo de dívidas… -
- O quê??? - Júlio interrompe.
- Escuta porra! A estratégia é mostrar sua dívida para que você pegue um degredo de
42
trabalho rural ao invés de mofar em uma masmorra de Risla por anos. Seu degredo ia
ser em alguma colônia nova no rio Caleu, e com toda a inteligência que você diz que tem
ia ser um trabalho hipostilar. Encontrei seu amiguinho Sancho trocando uma moeda de
prata dele por lá (em Tamária), o louco estava empolgado falando que ia comprar nove
garrafas de vidro. E estava com Cassandra, aquela sabe conseguir dinheiro. Juntei os
pontos e daí sai coisa, ele se junta a você e tentam quitar a divida. É o melhor cenário que
vejo pra seu futuro. Junta isso com mostrar que seu chefinho foi negligente em atribuir
funções de iniciado a você, e ele não vai nem mandar os autos pro registro de ocorrência
em Tenótia, o que foderia suas chances de ir pra um hipóstilo. Certeiro! E você que
estratégia o gênio pensou?
- Eu não serei preso nem degredado, vou falar da minha descoberta valiosa na cidade do
porto durante o festival, e de toda a pesquisa que posso fazer nela e Chefe Gusmão me
manterá aqui! -
- Cara, você é mais burro que imaginei! Se tiver alguma sabedoria nessa cabeça você vai
perceber – pegou o copo e adentrou a sala para pegar mais chá. Júlio sentou-se no
banco resmungando e encarando os arqueiros tahineses que vigiavam o pátio até ser
chamado para retomar a sessão. Voltemos à ata]

42
Cidade fronteiriça de Sipol com o reino Assir, fortemente defendida e onde fica a única cadeia Sipole

35
Retomada sessão de julgamento 1/416 do Hipostilo de Verriêr, todos os componentes da
mesa se fazem presentes e tomam seus lugares. O presidente toma a palavra e convida
acusador e defensora para nova rodada de perguntas. O acusador tem a palavra.
SM – Júlio, ficou minha curiosidade sobre o que você fez com as moedas decorrentes da
venda do barco, as quais seriam exatamente a quitação da multa que aqui lhe trouxe.
Conversei com seu captor aqui, nosso honrado Capitão Bruno, que disse que você foi
seguido praticamente depois da venda do barco até a ferraria de uma certa Héfia, com a
qual conversava na hora da captura. Revistaram a oficina da mulher criteriosamente e
nem um vintém de moeda inú foi encontrado. O que você fez com as moedas? A compra
de alguma coisa?
JC – Fui roubado.
SM – Como assim? Foi roubado? Não deseja explicar essa história à essa mesa
julgadora?

[omitamos uma parte desta ata, abarrotada de estratagemas de ataque e defesa,


correram mais de duas horas de perguntas e respostas inconclusivas salvo por uma no
meio destas, que rendeu a nosso encarecido Júlio uma pedra no sapato que durou anos,
ficar no radar do capitão bruno. Segue a pergunta]

SM - Quando e onde você adquiriu a chalupa e a carga de barris de miôna?


JC – Dia 7 deste mês, foi no estaleiro abandonado ao sul de Verriêr. Conhecido como
Canoaria​ Estava acontecendo uma festa Inú

[Não sei o que pode ter ocorrido dentro daquela sala fora o que vi escrito na ata. Fato é,
que mesmo depois desta resposta, não consta na ata nenhuma manifestação dos dois
únicos na sala que sabiam que nessa fora nesta data data que a C​anoaria havia sido
incendiada. Nada falaram sobre isso o acólito e presidente do julgamento, Gusmão
Gorner, nem o capitão designado para a investigação do incêndio, Bruno Charte.
Voltemos à ata, já na última parte do processo].
43
Antes da elaboração da sentença, é chegado o momento das declarações apriorísticas
solicitadas pelo Réu. Júlio toma a palavra.
JC- Quero que se considere em minha defesa o trabalho que tenho a desenvolver, que
pode trazer novamente prestígio a este hipostilo! Você bem sabe, chefe Gusmão, o
potencial dessa pesquisa, sabe de meu potencial. Peço que me mantenha aqui e me dê
44
meus braceletes , seja acólito mor, faremos esse hipostilo grande novamente, você será
nosso melhor presbítero em breve.

43
Odeio quando a melhor tradução de Maljuna para o português é uma palavra desse tipo, mas “iniciais”
ficaria bem fora de contexto e “anteriores” ficaria feio (máquinas também podem ter apreço estético
haha)
44
Júlio, ao pedir os braceletes, refere-se à promoção para Acólito, já autorizada em tenótia, que Gusmão
pode realizar.

36
GG – Deixe essa tentativa de me comprar com gracinhas Júlio, o que vê de tão grandioso
45
naquela barra de sabão . Por mais que hajam livros velhos dentro dela eles virarão
46
pó-de-nagraio assim que tirá-los dela.
JC – Chefe Gusmão, a tese é sua de que os objetos de nagraio são antiquíssimos e que
foram produzidos de outro material. Aquela barra contém a confirmação da sua teoria,
Então pense comigo, são livros! Livros antiquíssimos, Dentre todo o material de nagraio
escavado nenhum estava nesse estágio anterior. Agora já sabemos que a transformação
acontece, que ela acontece rapidamente, falta saber porque acontece e como impedí-la e
poderemos ler o que está escrito neles!
Já tenho a teoria do porquê, acredito que é pelo contato com algum grão minúsculo do
próprio pó-de-nagraio já que
GG – Chega Júlio! Sua última defesa neste processo e você vem pedir para ser
promovido? Ainda não entendeu nada do que está acontecendo?
JC – Eu sei como impedir os livros de virarem pó-de-nagraio igual o que te mostrei na
escavação! A gente vai poder lê-los! É a descoberta do Século!
GG – Por mais que eu acreditasse Júlio, leis existem em Sipol, e é dever nosso
cumprí-las.
Neste momento e após sinal do presidente da sessão, eu, Sérgio Cunha, submeto
a ata à sua análise onde ele faz a primeira revisão e risca as partes irrelevantes ao
processo e promulga a decisão. Após eu, meirinho, anunciá-la com duas batidas.
Destaque-se:
GG – EU, GUSMÃO GORNER, SOB A REGÊNCIA DA LEI SIPOLE E DA LEI DE
TANUTI, SENTENCIO-O AO DEGREDO LABORAL A SER CUMPRIDO NO NOVO
HIPOSTILO DE SUÃ-TSUI, ATÉ A QUITAÇÃO DA DÍVIDA ESTIPULADA EM 32.000
UNIDADES DE VALOR OU PERÍODO DE DEZ ANOS, O QUE OCORRER PRIMEIRO.
REGISTRE-SE. CUMPRA-SE.
O Réu neste momento recorre à apelação posterior. Ao que lhe é dado a palavra.
JC - Peço que reconsidere por minha mãe, sou o único familiar que a resta. Depois de
quase dois anos...
GG – Nada lhe impede de levá-la a Suã-Tsui
JC – e meu material de pesquisa? Peço encarecidamente que possa levá-lo também!
GG – Nem pense Júlio, não posso dispor de material valioso para um condenado, ficará
sob guarda deste hipostilo.
Neste momento encerro a ata que segue assinada por mim, pelo presidente da sessão,
pelo condenado e pelo acusador, pela defensora e por quaisquer dos presentes que
queiram registrar testemunho.

45
O tão estimado objeto de pesquisa de Júlio, encontrado em escavação na ilha de Rislassir, perto da
Cidade do Porto é uma barra de sabão de um metro e meio de comprimento, por 20 de largura e 40 de
altura. Dentro da barra uma fileira de livros estava bem conservada.
46
Nagraio é o material de algumas peças escavadas em pesquisa arqueológica pelo hipóstilo de Verriêr em
níveis bem profundos, bastante abaixo de materiais sabidamente muito antigos. São bastante frágeis,
de modo que quarquer atrito, por leve que seja, vai reduzindo-os à pó.

37
XI – ​Tutu da Rua
Por SyPA234 \m/

Enquanto nosso herói Julinho Cabeça de Manga se lascava da forma mais


tranquila possível, conhecendo os férteis solos de Suã-Tsui, Sancho estava
comemorando a conclusão de uma negociação importante com Héfia. Ou ao menos
achou que era isso que estavam fazendo. Estavam ele, Héfia e Cassandra sentados no
tablado do ​Tutu da Rua​, uma laje de tábuas que cobria o renomado estabelecimento. Até
bem agradável ao por do sol. A vista do Tikan e do movimento na praça do porto era um
tanto mais agradável quando se dispunha de almofadas aos montes, como ocorria neste
lugar privilegiado, pelo qual Héfia propôs-se a quitar sozinha a entrada em 125 $U para
cada uma das três pessoas.
Era noite da famosa “​Naitofa Beautartos”. ​Algo como “noite das belas artes” na
tradução de inúparole. Um evento que ocorria esporadicamente neste que era o maior
coffe ​de Tamária, frequentada por um grupo bem específico, jovens, em sua maioria inús,
de classe alta, normalmente donos de insulos que apreciavam as artes burlescas (ou
somente olhar seios mesmo).
- Um agrado a meus novos sócios, aqui teremos direito a dois tabuleiros de
bolinhos, café à vontade para apreciar a noite, panquecas de taioba, e apresentações das
dançarinas flautistas mais bonitas de toda Sipol – Disse Héfia, dirigindo um sorriso
malicioso à Cassandra, o pobre Sancho ficou alguns bons minutos tentando entender o
que se passava.
O sol se punha, a conversa ia e vinha, as almofadas pareciam cada vez mais
confortáveis ao (que surpresa) bastante ébrio Ventoleste. – A gente está aqui só
comemorando? Você não falou que hoje era um dia superimportante para nossa
empreitada Héfia? – perguntou o perdido rapaz.
No momento um som de flauta envolve todo o tablado, e todas as rodas de
pessoas (em maioria homens) elegantemente vestidas assentadas sobre almofadas
param suas conversas para ver o espetáculo. Héfia responde a Sancho: – Vais ver daqui
a pouco! –
Uma mulher chega ao tablado pela escada, assoprava uma flauta dupla de bambu
com grande habilidade nos dedos, trocando rapidamente os furos tapados. Tocava
dançando de forma a parecer uma serpente pronta ao bote movendo-se de um lado para
outro. A beleza da cena fez demorar em Sancho a percepção de que os trajes da moça
eram quase de todo transparentes com detalhes florais em crochê.
A moça movia-se sensualmente em sua dança por entre os grupos que a
admiravam. Ao passar ao lado do grupo onde nossos amigos estavam Héfia olha nos
olhos da mulher e diz
- Cláudia Lábio-de-Mel, mais linda do que cantam os poetas! Depois de vossa música
queira juntar-se à nós – enquanto saca de sua sacola uma garrafa de vidro com um
liquido claro-amarelado e o chacoalha. – Temos uma novidade por aqui! –
- Você trouxe o vispo que a gente fez pra cá? Sancho pergunta estupidamente. Ao
que Héfia não perdoa – Nãaaao, ele ficou com saudade e veio atrás de mim! Deixe de ser
estúpido Sancho. Só com hoje a gente já vai sair bem daqui, estou pensando em 2000 $U
pra cada um de vocês e eu tiro somente o meu gasto. Espero honradez equitativa na hora

38
da distribuição do lucro sério que virá em breve. Agora assista a apresentação quieto
garoto. Não é todo dia que se vê uma coisa dessas... –
A música se encerra, a autora da performance entrega as flautas ao cumin, este
lhe dá um roupão, que veste sobre o traje de crochê. Algo que não deixa entrever todo
seu corpo me parece mais confortável na situação em que Cláudia se encontrava. A
artista vai até a roda onde está sentado o grupo de nossos caros.
- Então, que beleza temos aqui? Ela pergunta
- A bebida mais sofisticada já vista em Temária – Héfia responde um pouco acima
do tom, chamando atenção do entorno.
- Sente-se conosco, e vamos provar, uma beleza de 600 $U a garrafa merece mais
uma beleza junto! Sou grande apreciadora das artes de Dança Sérpia, andei treinando
alguns movimentos, mas você é realmente espetacular Cláudia. – Disse Cassandra
enquanto a dançarina se sentava ao lado dela. Distanciando Sancho, que não sabia o que
falar.
A forte bebida destilada de miôna-de-marinheiro inebriou em pouco tempo os
quatro comensais desacostumados com tamanha concentração de álcool. Héfia
estirou-se como uma rainha em um divã, segurava uma pequena xícara cheia da bebida,
enquanto observava as outras duas, Cassandra começara a dançar, seguida por Cláudia,
que atirara o roupão ao chão e novamente usava só o crochê, a dança seguia um ritmo
consideravelmente menos gracioso, mas um tanto mais agressivo (se é que podemos por
assim). Ao invés da flauta, Cláudia agora dançava com a garrafa, e com Cassandra, que
quando tomava a bebida em mãos, derramava na boca de algum outro dos presentes,
47
que assistiam boquiabertos . Sancho, nesse interstício, botava suas tripas afora,
passando mal no beco ao lado do ​coffe. ​Quando volta, ensopado após cair no Tikan
(tentava lavar-se ou beber água, eu mesma não entendi o que aconteceu), recebe um
beijo caloroso de Cláudia, para espanto de muitos dos presentes.
Um homem se dirige à Héfia. – Onde você conseguiu essa garrafa moça? –
perguntou.
-Essa belezinha aqui? Em Quixiam, lá no império Atita. Não vê a garrafa de vidro? Eles
chamam-na Boasso delamouro, bebida do amor! Eu chamo de Vispo, mais fácil... -
- Você tem mais delas? Nós inús gostamos de uma negociação não?! -
- Ter até tenho, mas só me restam oito agora, sou viciada nessa maravilha, e é mais de
um mês a viagem até Quixiam... -
- Por quanto estaria disposta? -
- Acho que convertendo o dinheiro dá uns bons 650 $U, só porque gostei de você, bonito
e elegante - respondeu ela sorrindo
- Posso ver a garrafa? - Perguntou o homem, ao que Héfia retirou uma garrafa cheia da
bolsa e lhe entregou. O homem, visivelmente satisfeito sacou 13 notas de 50 $U do bolso
e deu a Héfia, que sorriu sarcasticamente a seus colegas.
A segunda apresentação começou, desta vez uma mulher em minúsculos trajes
em estilo Atita, fazia uma espécie de comédia cantada. Ela brincava e debochava dos
presentes rimando as improvisações em uma canção contínua. Quando passa ao lado do
comprador da garrafa de vispo joga-se em seu colo e solta estes versos:
- [...] ora vejam o que aqui temos/ um menino de gosto nobre/ com uma cara que sofre/
feinho demais o pobre/ sairá daqui beijando três, oremos!/ graças a dois itens pequenos/
a maravilha que tem na garrafa/ e seu membro que a ninguém causa estafa [...]

47
Sacaram o trocadilho? an? hahaha

39
O que causou muitas risadas na hora e minutos após a apresentação, mais dois
rapazes interessados na bebida...
A noite rendia em festa, em mais apresentações, e em interessados nas garrafas,
das 9 que iam na bolsa de Héfia (as cujos frascos Sancho encomendara a Rodin),
nenhuma sequer retornou. Uma fora bebida na farra semi-orquestrada. Sete vendidas a
650 $U e uma a estrondosos 800 $U. O sol já nascia e só restavam os quatro no terraço.
- Homens ricos imbecis, em grupos de homens querendo fazer imbecilidades
caras, é a oportunidade mais fácil de fazer muito dinheiro minha cara Cláudia, tome aqui
seus 50 $U pelo beijo no drogado do Sancho e mais 100 $U em compensação pelo
estado dele, que acabou rendendo mais atenção hahaha... “Essa é a última, vendo só por
800”... “está certo, eu compro eu compro”... HAHAHAHA, passo mal de rir. Aqui, falando
em rir, passe estes 100 para a sua colega da canção debochada, honro meus tratos
quando a outra parte honra a dela. – Monologou Héfia, com um sorriso ébrio e 250 $U na
mão.
- Acho melhor eu já ir andando - disse Cassandra.
- Ora, mas achei que teríamos mais uma dança! – Responde Cláudia
- A festa não pode parar, olha quanto dinheiro no primeiro dia – Diz Sancho, empolgado.
- Acho que o melhor a se fazer é irmos todas para o meu Insulo. Sancho, poderia fazer o
favor de trocar nossos 5100 $U em notas baixas no hipostilo?
- Agora? – Pergunta curioso o rapaz
- Sim, menos fila, sabe como é né... a gente te encontra lá no meu domão. Você tá com o
dinheiro...- Encerrou Héfia, colocou o bolo de notas no bolso interno do colete de Sancho.
Desceram as escadas do ​Tutu da Rua ​e seguiram caminhos distintos. As três mulheres
adentrando a cidade e Sancho pela Rua das Tamareiras, sob o ardido sol da manhã, em
direção ao hipostilo. Deveras feliz com o dinheiro, mas novamente sem entender muito o
que acontecia.

Ao leitor curioso e atento que agora reclama do salto temporal na história de Sancho, que
em sua última aparição estava completamente imerso em alucinações e agora está
membro de uma associação com duas inús e indo ao hipostilo com mais de 5000 $U no
bolso. Fique tranquilo! Que o próximo texto que comporá este capítulo é uma carta de
Héfia ao seu pai, o ​soprador de vidro Rodin Palhar. Foi escrita na tarde posterior aos
acontecimentos do início deste capítulo e explica bem os fatos que levaram a eles.

PALHAR, Héfia. Carta a Rodin Palhar. Tamária, 20 de primeiro de 416.

Tamária 20-01-416

Querido pai,

Lhe escrevo para encerrar minhas despedidas e deixar algumas explicações e


orientações já que nossa última conversa foi interrompida por um de seus surtos de raiva.
Há bem tempo nosso livre espirito inú me convida a voltar para as estradas. E as
coisas que tenho observado ultimamente somente alimentam esse desejo. A vontade de
deixar Tamária, ou qualquer outra cidade dessa Sipol só fez crescer, e este cerco a nossa
família e nosso povo que vem acontecendo é a gota d’água!

40
48
Sinceramente, que morra com dor este Faŝisto Nicolai Faíri e suas corjas de
lambe-botas. Não vê o senhor, meu pai, que tomar nosso dinheiro; que é de metal,
moedas que valem de verdade o seu peso, independente de qual estampa possuem; para
nos dar em troca aqueles papeis que só os arrumadinhos braceletes-branco dizem que
vale. Qualquer lugar que a gente for com esse papel, fora Sipol, rirão de nossas caras.
Sei que você há anos tem seu insulo, que comercia mais com sipoles do que com
seu próprio povo, de modo que para você pouca diferença isso faz, mas pense no que
isso significa para a maioria de nós. Que desde que o mundo é mundo migramos e
comerciamos com todas as culturas. Daí nosso dinheiro valer mesmo sem nada escrtito.
Acha que quando um inú vai viajar pode chegar no Hipostilo de Temária e pedir suas
moedas em troca desse papel deles? Se acredita está bem enganado. Querem cortar
nossas asas pai! Isso se não quiserem pior. Vejo a violência com que os soldados tratam
os jovens mais pobres de nossa gente. Surram-os como a bestas no abate.
Devo provavelmente ir para o império Atita, conhecer como você as cidades do
extremo sul. Verei quais partes de suas histórias são verdade. Brincadeira à parte os
riquinhos dessa cidade são fascinados por lá. Pra você ter noção consegui engabelar
vários, vendendo por 650 unidades desse dinheiro de papel cada uma das garrafas que
Sancho te encomendou, cheias de uma bebida nova e forte, que ajudei a compor, usando
a bela porcaria da miôna-de-marinheiro da qual o senhor também possui sete barris.
Possa ficar tranquilo que viajarei muito bem provida, ao contrário de boa parte de
nosso povo, não corri para trocar a maior parte de meu dinheiro. Só recebia pagamentos
pelo serviço de ferreira em moeda inú, tenho largas economias e as levarei quase todas.
49
Fazia a manutenção do meu insulo só com a renda dos meus inquilinares , quando
proibiram nossas moedas e ordenaram a troca joguei todas minhas economias no fundo
da forja e a mantive acesa deste então. Já foram oito inspeções completas no meu insulo.
Um otário que se apresenta como “capitão Bruno” as comandou. 4 horas de revista em
cada uma delas, com seis homens vasculhando minha propriedade, tão convicto está
esse bruno que eu guardo uma fortuna em moedas proibidas.
O infeliz está totalmente correto, se juntar só as moedas de ouro e platina (devo ter
de cunhar novamente as de prata, bronze e cobre, estas derreteram todas) de dentro
daquela forja dava pra levantar mais dois insulos dos grandes no miolo dessa cidade. O
que o imbecil não pensa é que meu dinheiro não é de papel. E nem vale pelo que nele
está marcado. Toda a fortuna protegida pelas chamas ao invés de nela destruída. Isso
dará uma poesia ainda.
Chegamos agora à parte importante. Não vendi meu insulo, nem sequer pretendo
perder a posse do mesmo. Em contrário, o preparei para render lucros como nunca antes,
caso algum dia eu entenda por melhor voltar a esta cidade. Também muito para lhe dar
mais segurança em sua futura velhice. Por mais que esteja indo razoavelmente seu
insulo, vejo que você não aproveita bem os serviços que podem lhe valer os inquilinares.
E sua oficina de vidro soprado tem potencial estrondoso, que você subutiliza fazendo
sozinho itens lindos, porém extremamente caros. Só para manter presa a técnica somente
consigo.
Lhe detalharei a história para apresentar minha proposta. Ela começa com um
lunático chegando a minha ferraria e encomendando todo um intrincado jogo de

48
Referindo-se ao tlatitani que está no poder à época
49
Os “inquilinos” de um insulo. Residem neste e pagam ao dono pela estadia normalmente com serviços e não com
dinheiro. O que aqui não é o caso.

41
recipientes e tubos de cobre. Foram nove moedas de platina para minha forja nesse dia, e
o lunático saindo preso pelas mãos de Bruno. Minha reputação é forjada em sempre
honrar meus compromissos, perguntei ao maluco o nome de quem receberia a
encomenda. Sancho Ventoleste foi a resposta, acredito que tenha se hospedado em seu
50
insulo, junto com a princesinha do mate .
Terminei o material sem ninguém vindo a reclamá-lo. No último batuque das
estrelas estava tranquila curtindo a praça quando descubro o amigo do primeiro lunático,
mais lunático ainda. Estava gritando: “Sou Sancho Ventoleste, se quer me devorar assim
seja!”. Tentei falar com ele no dia, mas detectei no instante os efeitos do cacto da
Cassandra no corpo do individuo. Já sabia onde procurar no dia seguinte.
Foi quando vim a sua casa e vi você fazendo as garrafas que ele encomendou!
Sabendo o preço que você teria cobrado nelas, vendo na festa que as condições
financeiras do rapaz não eram lá tão altas, e sabendo que ele estava andando com a
princesinha, não tive dúvidas. Aí tem algum esquema.
Apertei o rapaz e descobri que a parafernália de recipientes e tubos que construí
serviria à um equipamento que por aquecimento de miôna e resfriamento do vapor
produziria uma bebida nova, forte e única. E que ele pretendia vendê-la para soltar o
amigo preso.
Quando ele foi visitar meu insulo, junto com a Cassandra, percebi a oportunidade
ideal. Ofereci a oficina para a montagem da aparelhagem lá mesmo, e o usufruto das
forjas móveis para aquecimento. Sancho teve a genial ideia de usar o aqueduto da sala
de banhos para passar por lá a tubulação do resfriamento de vapor.
Digo meu pai, o produto dessa maluquice é genial! Uma iguaria do tipo que nunca
vi e mando como exemplo esta garrafa acompanhando a carta.
Informo-te também que tomei-lhe a Cassandra como inquilinar, você sempre fez
mal proveito do potencial dela mesmo. Deixá-la-ei como administradora deste meu insulo,
sabe que por mais desconfianças pessoais que possa ter com ela, profissionalmente não
há pessoa mais hábil. Sabes como eu conheço a figura. Em troca, fico com parte dos
lucros com a venda da nova bebida (a qual eu mesma tive o prazer de nomear, Vispo!).
Estes se provaram como potencialmente enormes, dada a facilidade (e preço!) com que
os vendi, com auxilio de algumas táticas de lero-lero, confesso.
Minha proposta por fim, pai, é que venha morar em meu insulo, alugue ou venda
este seu. Se o Vispo for vendido em garrafas de vidro suas nosso potencial de lucro
cresce. Se ficares em meu insulo poderá administrá-lo também ao invés de deixa-lo
somente com a princesinha. Fora o quanto me preocupa a situação no centro de Tamária,
esses soldados e a violência deles, a crise das moedas etc. Acho que seria mais saudável
e seguro para o senhor morar aqui, no subúrbio. Chamar meu insulo de nosso!
Despeço-me cordialmente pai, quando o mensageiro chegar com essa carta já terei
pegado o barco subindo o Vitra, em direção à estrada de Kântia. Lembarei com muito
apreço de nosso último abraço e apagarei da memória a briga que se seguiu.
Reiterando meu amor a ti papai, já desejosa de te rever (nem tão cedo, espero) me
despeço.
Um grande beijo pai!
Héfia Palhar

50
Refere-se à Cassandra, usa o termo em tom pejorativo, trata-se de um título “Princesa do Mate” dado à vencedora
de um concurso de beleza da pequena cidade de Efíria bem ao norte de Sipol, ganho 5 anos atrás, quando Héfia aos
seus 22 e Cassandra aos 17 se conheceram.

42
XII –
Glossário

Acólito –​ Terceiro nível da hierarquia hipostilar. Responsáveis pela chefia de um hipostilo


e do governo local, além da emissão de notas de troca (dinheiro). Usam braceletes de
couro de jacaré albino.
Alexandra​ – Coletora de informações da resistência Inú, chamada também agente 107.
Teve uma paixão de juventude com Júlio, durante seis meses de viagem entre 414 e 415.
Aprendiz – ​Primeiro nível na hierarquia hipostilar, responsáveis por estocagem, limpeza,
preparo de alimentos e de ritos funerários. Além de estudarem no local
Barrilete – ​Pequeno barril, de 5 a 15 litros.
Bêntis – E​sporte nortista praticado com quatro tacos, quatro pinos de madeira e uma bola
de látex em campo vasto e plano. Pouco acessível à maioria dos sipoles devido à
geografia acidentada, matas densas e abundância de cursos d’água.
Bruno Charte (Capitão) – ​Capitão (mesmo nível de acólito) do Septo Hipostilar da
Segurança Interna. Almeja se tornar o primeiro Major (nível presbítero entre os civis)
deste septo recém reaberto no tlatitanato de Nicolai Terceiro.
Caleu (Rio)​ – Um dos três afluentes do lago Tikan, de águas bem escuras
Cármen​ – colega de Alexandra, chamada também agente 108
Cassandra​ – Mulher Inú, moradora de Tamária, hábil administradora, que se torna
mentora de Sancho nas artes místicas.
Chalupa – ​Embarcação à vela, as do Tikan variavam entre 4 e 12 metros
Cidade do Porto​ – cidade do porto marítimo de Sipol
Cidade do Templo (ou do templo maior)​ – Vide Tenótia
Crioulo-lacústre​ – Idioma do Povo do Lago, ou Sipol
Domão – ​Unidade habitacional típica de Tamária, Sumi, e Aníquora. É composta por sala
e quarto particulares dentro de um ​insulo​.
Gamarra – ​Cidade nortista entre as últimas a ser anexada por Sipol. Especializada em
caça, ciência política e jogos de bêntis. Seus acólitos seguem a mesma linhagem
sanguínea, divergindo dos outros hipostilos (tecnocratas e meritocráticos)
Grandadigo​ – dique que separa o Lago Tikan do Oceano Saligita
Gusmão Gorner ​– Acólito de Verriêr entre 388 e 441. Sempre dirigiu mais funções no
septo que necessárias, como a orientação direta dos Iniciados que deram aulas a Júlio e
Sancho quando crianças.
Héfia Palhar ​– Hábil ferreira Inú, moradora de Tamária
Hipostilo – ​1 – refere-se ao conjunto de construções
administrativo-religioso-educacionais de uma cidade sipole. 2 – refere-se ao salão
hipostilar, construção no meio de uma laguna onde se guardam livros.
Hugin​ – mensageiro de Cassandra, irmão de Munin
Iniciado – ​Segundo nível na hierarquia hipostilar, responsáveis por dar aulas às crianças
sipoles e aprendizes, pelas funções burocráticas e arquivísticas. Usam braceletes
brancos.

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Insulo – ​Típico conjunto habitacional e unidade produtiva das “Três Grandes Cidades do
Sul” de Sipol. Espécie de “cortiço” com usualmente seis a doze domões (quartos com
sala), banheiros, banho e cozinha comuns. Além de lojas na fachada exterior e oficinas na
fachada do pátio interno. Normalmente são habitados e possuídos por pessoas da etnia
Inú.
Inúparole​- Idioma do povo Inú
Inús​ – Povo nômade comercial que intercambia com povos da Sipol
Jacaré-branco – ​Jacaré albino, animal sagrado na religião sipole, são criados e mantidos
nas lagunas de hipostilos.
Júlio César​ – Aprendiz do hipostilo de Verriêr na primeira parte, obstinado pela ascensão
na carreira hipostilar. Amigo e colega de infância de Sancho, sustenta uma paixão quase
platônica por Alexandra, uma mulher Inú, a contragosto de sua mãe.
Junco – ​Embarcação feita de planta de mesmo nome. Em Sipol costumeiramente têm um
porão para dois remadores e um pequeno convés para cargas leves.
Maljuna – ​Idioma ancestral que deu origem a diversos outros no continente, vindo do
esperanto. É o idioma utilizado em documentos oficiais sipoles.
Márcio (ou Marcinho) – ​Morador de Verriêr afamado por proezas boêmias, pela
sensualidade com moças e rapazes, e por poesias de gosto duvidoso.
Miôna​ – Bebida fermentada à base de cereais e lúpulo
Miôna-de-marinheiro​ – bebida feita à base de miôna velha e bagaço de frutas cítricas
Munin​ – Mensageiro de Cassandra, irmão de Hugin e agente secreto da resistência Inú
onde se chama Agente 101
Nagraio (ou pó-de-) - ​Material escuro que compõe boa parte dos materiais arqueológicos
de camadas profundas (pela qual os historiadores de Verriêr atribuem mais de 7000
anos). Muito frágil se tornando pó com o atrito.
Nicolai Terceiro Fairi​ – Tlatitani de Sipol entre 415 e ​XXX​. De família nobre de Gamarra.
O sexto Tlatitani deste mesmo núcleo familiar.
Pernado - ​ Gíria que designa os presbíteros
Presbítero – ​Quarto nível da hierarquia hipostilar, chefes de hipostilo que compõem o
parlamento sipole. Além de bracelete usam também um ​haidate​ (protetor de coxas) de
couro de jacaré albino.
Prioste – ​Presbítero quando em função de emissão de dinheiro, após a promulgação da
Lei Priostal de 437, que centralizou a produção de dinheiro em Tenótia
Rislassir (Ilha) – ​Ilha banhada na costa oeste pela água doce do Lago Tikan e do lado
Leste pelo oceano saligita. Ligada ao continente por diques que partem do lado norte
(Pequeno Grandadigo) chegando à Cidade do Porto e do lado sul (Grande Grandadigo).
Nela fica o reino Assir, independente de Sipol, e a cidade sipole militarizada de Risla,
praticamente uma base militar e prisão.
Rodin​ ​Palhar​ – Artesão de vidros de Tamária, tem oficina própria, amigo de Cassandra
Sancho Ventoleste​ – Amigo de infância de Júlio. Amante dos entorpecentes e das
aventuras. Teme ficar só, por isso tenta se agrupar com outras pessoas de distintas
formas.
Septo – ​Subdivisão de um hipostilo grande, com maior especificidade no campo de
estudo e edificações próprias, porém sob a regência de um mesmo Acólito, Acólito mor,
presbítero ou Tlatitani (no caso específico dos septos da capital, quase como ministérios).
Sipol​- A Santa Instituição do Povo do Lago, o estado deste povo. Compreende todo o
entorno do lago Tikan, suas ilhas e algumas cidades – Simbolizado por um jacaré dentro
de uma oval

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Sipole – ​Gentílico de Sipol, também chamado erroneamente lacustre
Saligita (Oceano)​ – Oceano que banha a Cidade do Porto de Sipol, o dique Grandadigo
o separa do Lago Tikan
Sanka – ​Livro sagrado da religião Tanutista, a religião oficial de Sipol
Suã-Tsui​ – Pequena cidade isolada na margem esquerda do Rio Caleu
Sumi​ – Cidade especializada em arquitetura – Simbolizada por três retângulos separados
SyPA – ​A organizadora deste livro, abreviação de SystPrivateAutonomous 234
(Du-tri-kvar em esperanto) by Ingeen
Tahin​ – Cidade especializada em arquearia – Simbolizada por losango com sulco central
Tamária​ – Cidade especializada em economia e direito, a cidade com maior número de
pessoas de etnia Inú de toda Sipol na primeira parte – Simbolizada por uma palmeira.
Tanuti – ​O Grande Jacaré Branco, ser mítico que deu a imortalidade aos humanos
Tenótia​ – Capital de Sipol, também chamada Cidade do Templo, ou Cidade do Templo
Maior
Tikan (lago)​ – o grande lago em torno do qual se formou a Sipol
Verriêr​ – Cidade especializada em História – Simbolizada por um V circunscrito em um
círculo pontilhado
Vila Cachoeira – ​Vila isolada sob jurisdição do hipostilo de Verriêr, vila natal de Sancho
Vila do Pássaro Palito​ – Vila de Verriêr, local natal de Júlio
Vispo​ – Bebida destilada à base de miôna-de-marinheiro
Vitra (Rio) – Rio de águas transparentes, devido à grande concentração de carbonato de
cálcio

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