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In: Moreira, A. S. P. (org.) Representações Sociais. Teorias e Práticas.

EDU, João Pessoa, 2001,


p.269-293.

O MITO DA MATERNIDADE: DISCURSO TRADICIONAL SOB


ROUPAGEM MODERNIZANTE?

Maria de Fátima de Souza Santos1


Aída Maria Novelino2
Anna Paula Nascimento3
O ETERNO VÍNCULO MULHER-MÃE
"Eu me senti mulher de verdade quando soube que
estava grávida". (Depoimento de Creuza)

Sem dúvida a situação sócio-político-afetiva da mulher mudou. Sua maior inserção no


mercado de trabalho e intensificação da participação na esfera política, entre outras coisas,
contribuíram consideravelmente para redefinir seu lugar na sociedade e alterar os padrões
reguladores do comportamento. Entretanto, uma observação mais atenta sobre essa nova
realidade revela que as alterações que vêm marcando a condição feminina em nossa cultura
têm limites bem estreitos já que se ancoram, ainda, numa rede de significações que se
caracteriza por circunscrever as categorias do feminino e do masculino dentro de
concepções valorativas, hierárquicas e assimétricas, além de associarem essas diferenças às
determinações da biologia.
A crença na existência do "eterno feminino", herdeira das perspectivas filosóficas
essencialistas, é bastante resistente à mudança, mantendo-se como parte integrante do
arsenal de concepções acerca das mulheres das mais diversas épocas. Difundida, apregoada
e interiorizada por homens e mulheres, a idéia de uma natureza feminina diferenciada -
deduzida de forma direta da especificidade biológica - invariante e responsável pelos traços
que caracterizam as mulheres, percorreu séculos e continua mantendo sua supremacia nos
dias de hoje. A capacidade reprodutiva constitui-se no conteúdo nuclear dessa crença, o que
leva a uma postura de consagração da função materna, estabelecida como representante
legítima e incontestável da feminilidade e fonte de realização inigualável. Mesmo os
discursos atuais de e sobre a mulher que enaltecem sua atuação na esfera pública apoiam-se
nesse núcleo percebido como um dado intocável e inquestionável.

1Professora Adjunto do Departamento de Psicologia da UFPE


2Professora Assistente do Departamento de Psicologia da UFPE
3Bolsista de Aperfeiçoamento do CNPq
Coolaboraram com esse trabalho Patrícia Freitas e Paula Andréa C. Castelo Branco como bolsista de
Iniciação Científica do CNPq
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Por conseguinte, a família conserva-se como o lugar socialmente destinado à mulher: é


na privacidade do lar que, prioritariamente, ela deverá encontrar a realização pessoal.
A maternidade, então, apesar de ser colocada e pensada como opcional em nossa época
mantém-se ancorada na noção de naturalidade e, enquanto tal, consiste numa "verdadeira
estrutura mítica" como argumenta Velázquez (1990), perpetuando-se como o componente
central e definidor da identidade feminina. O grupo social reafirma incessantemente - de
maneira explícita e implícita - a existência de um "instinto materno" que vincula a mulher
de forma inevitável à função de mãe. Assim, a função materna mantêm-se como o suporte
estrutural do feminino no imaginário e nas representações dos grupos sociais apesar do fato
de a mulher, hoje, ter a sua atuação garantida nos diversos setores do espaço público,
caracterizado como masculino desde os tempos da idade média como esclarece
Duby(1989).
A maternidade, então, longe de ser apenas um fenômeno biológico inscreve-se num
sistema de códigos articulado e estruturado ideologicamente, indissociável das concepções
correntes de homem, mulher, família, criança. E numa cultura que destaca gravidez, parto,
amamentação, vínculo mãe-filho como momentos privilegiados da trajetória feminina em
detrimento de outros, a experiência da maternidade só pode fundamentar-se enquanto meta
inevitável (Parseval,1986).
Com o intuito de investigar as representações que as mulheres têm da maternidade e o
grau de centralidade e de importância que ocupa essa função na estruturação da sua
identidade pessoal, entrevistamos mulheres-mães provenientes de níveis sócio-econômicos
diferentes. O quadro conceitual básico que nos conduziu desde a elaboração do projeto até
a análise final dos resultados foi o da Representação Social.

SOBRE AS REPRESENTAÇÕES

Introduzido por Serge Moscovici em 1961, o conceito de Representação Social é


considerado por ele como o objeto característico da Psicologia Social exatamente por
situar-se no ponto de confluência entre o psicológico e o social. É, portanto, um conceito
limite entre o individual e o coletivo pelo fato de referir-se a uma forma de pensamento
comum, de "conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, (...) forjando as
evidências da realidade consensual e servindo de base para a construção social da realidade
em que vivemos" (Jodelet,1985:473).
A representação social constitui-se num crivo de leitura do mundo, um prisma através
do qual o indivíduo observa e compreende não só os fatos ao seu redor mas, também, a
própria existência. Enquanto modalidade de conhecimento a formação de uma
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representação implica numa atividade ao mesmo tempo individual e coletiva; só a partir do


momento em que o indivíduo apropria-se e reconstrói os modos de pensamento e modelos
de conduta de sua sociedade é que tais representações consolidam-se subjetivamente
passando, então, a compor suas interpretações do mundo, de si mesmo e influindo em suas
práticas cotidianas. As representações têm assim, entre outras, a função de nortear as
pessoas em seu ambiente, servindo de guias referenciadores da ação. Representação social e
ação estão, por conseguinte, diretamente interconectadas numa operação de mútua
interferência: tanto a ação pode reconfirmar ou resignificar os conteúdos da primeira,
quanto esta pode perpetuar ou remodelar as maneiras habituais de atuação do indivíduo.
A Representação Social é, acima de tudo, uma construção do sujeito social - o que
significa que é elaborada no jogo relacional no qual está imerso - sobre os fatos, objetos e
informações que o circundam, e não uma mera reprodução. Esse conjunto de impressões,
afetos, cognições e imagens constituem uma espécie de rede organizada que vai ser
arquivada na memória de forma esquemática e coerente, estruturando-se numa "matriz"
cognitiva do objeto permitindo ao indivíduo compreendê-lo e agir sobre ele. Convém
salientar que as diversas representações mantêm-se em constante conexão umas com as
outras.
Ao nascer, o indivíduo depara-se com um universo simbólico previamente estruturado
e que demanda a sua aquiescência às regras, valores, padrões comportamentais e
representações. Convém ressaltar a originalidade de cada um nesse movimento de assumir
a realidade dos outros, que implica num processamento simultâneo de assimilação e
transformação dos conteúdos transmitidos. Isso resguarda o lugar da criatividade, das
redefinições, enfim, da mudança ao mesmo tempo que preserva o território da unicidade
inerente à socialização.
Entre as diversas representações circulantes numa sociedade pode-se sublinhar àquelas
relacionadas aos gêneros4 - masculino e feminino - uma vez que a nossa cultura estabelece
padrões diferenciados para homens e mulheres que irão, em última instância, delimitar os
respectivos crivos de leitura da realidade e a ação sobre o mundo apreendido. Versões
dessemelhantes acompanham o percurso existencial de cada gênero na medida em que
ênfases distintas são dadas durante a socialização no tocante às aspirações, desejos, papéis,
etc. e vão delineando as opções presentes e futuras.

4O termo gênero tem sido preferencialmente adotado para denominar as categorias de masculino e de
feminino com a intenção de destacar do sexo biológico as programações culturais que modelam homens e
mulheres. É compreendido aqui, então, como o conjunto de atributos socialmente construído onde agrupam-se
as características psicológicas, sociais e comportamentais definidoras do masculino e do feminino em um
determinado momento sócio histórico.
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O contraste entre a nuclearidade da atividade profissional na identidade masculina e da


maternidade como função definidora do feminino, foi ressaltado por Santos(1988;1990) em
estudos realizados em Pernambuco, onde são estabelecidas as relações entre papel
profissional e identidade pessoal. Tais resultados reforçam dados anteriormente obtidos por
Salem(1980) no Rio de Janeiro e por Sill(1980), na sociedade norte americana. Todas essas
análises apontam para a importância atribuída ao desempenho dos papéis exercidos dentro
do âmbito familiar para a realização da mulher, além de evidenciarem o enaltecimento da
experiência de maternagem como o seu ponto culminante.
Acontece que a lógica social não só funde mulher e maternagem mas, também, cria
critérios firmes sobre o que significa ser uma boa mãe. Novelino(1989) examinou a
imagem de mãe ideal que emerge dos enunciados produzidos pelos profissionais das
ciências psicológicas e que se dirigem ao leitor não acadêmico, onde mostra o lugar
hegemônico desses especialistas na elaboração do ideário sobre a maternidade. Nos
últimos séculos, as formulações provenientes da esfera psi vêm, paulatinamente, invadindo
o cotidiano das relações familiares através de "prescrições" acerca dos meios apropriados
ao exercício da função materna. Isso, porque, a noção contemporânea da maternidade
constroi-se em torno de um eixo explicativo que se caracteriza pela ênfase dada aos
processos psico-afetivos que envolvem a relação mãe-criança, domínio de atuação desses
especialistas; a eles é conferido o poder de definir e fixar os contornos adequados à
vivência afetiva.
Evidenciou-se, nessa investigação, que o discurso psicológico supõe um vínculo
inevitável mulher-mãe, assim como confere à mãe a responsabilidade integral pela criação
da prole sob o argumento de que a mulher é naturalmente dotada de um saber que a orienta
no desempenho dessa função. Predominantemente, esse discurso configura a imagem
idealizada de mãe: ela é terna, aconchegante, dedicada, amorosa, equilibrada, disponível,
devotada e executa todas as tarefas que competem à sua função com destreza, perspicácia,
prazer, felicidade e abnegação. Chama atenção o fato de essas afirmações serem
acompanhadas pela convicção da existência da culpa como sentimento inerente à vivência
da maternidade. O discurso especializado não só pressupõe a culpa mas a utiliza como base
para as suas elaborações.
Ora, a alusão recorrente a esse sentimento pode ser um fator de indicação da possível
defasagem entre as linhas configuradoras da mãe idealizada - que se impõe como modelo a
ser seguido - e as vivências concretas da maternidade. Significa também que as normas -
implícitas e explícitas - decorrentes do ideal da mãe perfeita, mesmo quando não
convertidas em práticas são assimiladas como guias confiáveis para o desempenho da
função materna.
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Isso quer dizer que o discurso psi especializado incorporou-se ao cabedal de cultura da
nossa sociedade firmando-se como versão legítima do universo e das relações sociais,
fornecendo um lastro interpretativo para a apreensão do cotidiano e a organização da
experiência humana (Berger,1980; Figueira,1985; Russo,1981; Santos,1988). Tais
formulações fazem parte, assim, do ethos cultural.
Pesquisar a representação social da maternidade significa, na verdade, buscar uma
tradução fidedigna dos modos de reconstrução das noções circulantes acerca dessa função
pelos sujeitos estudados. Para apreendermos essas representações optamos pelo método da
entrevista, uma vez que o discurso produzido, embora não constitua a totalidade da
representação social nem a esgote, como adverte Moscovici(1985), é uma via de acesso às
construções dos sujeitos. É através da fala - se bem que não de maneira exclusiva - que as
pessoas expressam suas concepções, valores e representações permitindo que outros
tenham acesso à sua subjetividade.

OS GRUPOS PESQUISADOS

A pesquisa O modelo assimilado: um estudo da representação social da maternidade


foi desenvolvida pelo grupo de Psicologia Social do Laboratório de Interação Social
Humana (LABINT) da Universidade Federal de Pernambuco. O universo estudado
consistiu de 27 mulheres: 13 pertencentes às camadas médias e 14 provenientes das
camadas de baixa renda5. Todas com filhos em idades que ainda requeriam cuidados de
maternagem e uma ação mais direta em termos de educação, e numa faixa etária que
variava entre os 25/35 anos.
A separação por níveis sócio-econômicos deve-se ao fato de se saber que, apesar de
existir um núcleo consensual de significações - composto de informações e emoções - em
torno do qual as representações estruturam-se (Abric,1994), ocorrem variações expressivas
entre os membros de uma determinada sociedade. Isso implica que tanto os diversos grupos
sociais quanto os indivíduos que deles participam ajustam, dinamicamente, as
representações às suas realidades: "o consenso não se reduz à uniformidade; nem, por outro
lado exclui a diversidade", lembra Moscovici (1985:92). Por isso, diferentes representações
de um mesmo objeto, que emergem de contextos vivenciais distintos, convivem numa
mesma sociedade.

5A primeira letra dos nomes fictícios atribuídos às entrevistadas separa suas proveniências sócio-econômicas:
os começados por "A" agrupam as mulheres das camadas médias e por "C" aquelas dos setores de baixa
renda.
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Esse caráter da plasticidade das representações sociais nos levou a uma análise dos
dados em dois tempos: inicialmente, um estudo de cada entrevista per se, onde buscava-se
apreender as concepções dos sujeitos, sobre a maternidade, em suas singularidades. Em
seguida, procurava-se mapear categorias de respostas que ressaltassem as semelhanças e
diferenças dos grupos entrevistados. Os itens que conduziram a análise foram os mesmos
que serviram de roteiro para as entrevistas, cujo objetivo foi o de abranger as relações entre
feminilidade e maternidade através de questões relativas: ao significado de ser mulher, aos
vínculos percebidos entre maternidade e feminilidade, à caracterização da função materna e
à averiguação das fontes de informação utilizadas como guias de orientação para o
exercício da maternagem.

SER MULHER É ...

Os dados obtidos são bastante sugestivos no tocante aos principais pontos enfocados nas
entrevistas, além de apresentarem numerosos elementos consonantes com os achados dos
estudos consultados sobre o tema. Percebe-se, claramente, nas opiniões expressas a força
do vínculo mulher-mãe - presente em todas as falas - o que nos autoriza a supor a existência
de um mesmo mapa referenciador que, até certo ponto, iguala a diversidade de
experiências, unificando-as sob o predomínio de um denominador comum. O seguinte
trecho da entrevista de Adelia resume a tônica que se repete em cada discurso proferido
acerca das ligações entre mulher e maternidade, deixando entrever os resíduos da crença
secular sobre o eterno feminino: "é uma coisa natural [a maternidade] que de pequena você
já gosta de brincar de boneca. Vai crescendo e tá sempre pensando em casar, ter filhos.
Então, de repente, você acha que não querer ter filhos é aguda coisa que não ficou
esclarecida na infância". Ou ainda na definição de Arlinda: "[ser mulher] é ... ser mãe. Eu
acho que o sentido maior de ser mulher é exatamente isso aí: a maternidade. Um papel que
é só nosso. É um papel importante, muito importante na família de ser esposa".
Por vezes essa definição remete ao próprio ato sexual, como o faz Celina: "O que é ser
mulher? Eu não sei responder essa pergunta não. Ser mulher pra mim é bom. Eu tou com
vergonha (risos). É ... fazer filhos". Aqui, vale ressaltar a força de um viés cultural da
região Nordeste, sobretudo das camadas menos favorecidas da população, onde "ser
mulher" é sinônimo de perda da virgindade, remetendo pois a um significado
exclusivamente sexual.
A ligação mulher-mãe é rompida, apenas, no discurso de três entrevistadas que definem
a mulher através de outro prisma, enquadrando-a no conceito mais geral de "ser humano"
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ou, até mesmo, apontando as modelagens sociais que produzem as suas especificidades.
Assim, por exemplo, enquanto Adalgisa sublinha as dificuldades que cercam o cotidiano
feminino localizando-as no contexto específico da realidade brasileira ao afirmar que ser
mulher é "penar no paraíso; é uma carga muito pesada, pelo menos no estilo social que a
gente vive no Brasil", Adeilda transpõe a questão para o plano mais geral respondendo que
a mulher "é um ser humano que tem uma definição biológica em termos de uma
reprodução.(...) É um ser humano que está procurando um objetivo de vida (...)". Nesse
sentido, essas mulheres trazem um elemento novo e que pode funcionar como
reestruturador das representações correntes de mulher, tão enraizadas nas concepções
naturalizantes que localizam na maternidade a essência da feminilidade. Sem dúvida as
transformações ocorridas nas condições sociais e culturais que afetam diretamente as
mulheres são acompanhadas por mudanças nas representações; muito embora os ritmos
não sejam, necessariamente, iguais. Como vimos anteriormente, entre a prática cotidiana e
as representações existe uma dinâmica de interinfluência.
Tanto a idéia de que a maternidade se impõe às mulheres como um desejo natural
quanto a assunção de que a inexistência desse desejo é um indicador de problemas
subterrâneos aí explicitados, são itens recorrentes na quase totalidade das respostas dadas.
Percebe-se, então, claramente a sutileza da recuperação de antigas convicções -
aparentemente abandonadas - por concepções condizentes com a nova situação social que
circunda a mulher: ao aprisionamento biológico da maternidade contrapõe-se a liberdade de
escolha (ver Dauster, 1990 e Almeida, 1987). A maternidade é vista como "opção"
imprescindível, como condição básica para a realização pessoal e a felicidade. E,
consequentemente, quem escolhe o caminho da infelicidade tem algum problema sério e
precisaria "fazer um tratamento" como afirma Adélia ou, como acredita Camila, está
ocultando dos outros ou de si mesma o seu desejo: "toda mulher quer ser mãe; mesmo que
diga o contrário é mentira". Diante de tal tipo de prova torna-se fácil entender os
procedimentos de manutenção da representação social da mulher como mãe.
Entre os extremos da anormalidade/mentira circulam explicações atenuantes sobre a não
opção pela maternidade desde que o vínculo mulher -mãe preserve sua inviolabilidade.
Situam-se nesse rol, por exemplo, as justificativas que atribuem à impossibilidade orgânica
a raiz da recusa em seguir o trajeto feminino normal que tem seu coroamento com o
nascimento de um filho - e nesse caso a mentira é entendida como uma defesa contra a
frustração de não realizar-se como mulher -. Aí a mulher é vista como digna de pena,
compaixão pelo fato de que jamais poderá sentir-se uma pessoa plena, completa. "Eu acho
que, às vezes, a vida te leva, leva as pessoas a pensarem assim, às vezes um fato orgânico,
que as pessoas tentam se convencer daquilo; eu acho que a pessoa se trabalha para aquilo,
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mas eu acho que no fundo, no fundo não existe naturalmente quem não tenha vontade de ter
um filho, não acredito" (Ana). Nessa situação, a mulher, para realizar-se, deverá lançar
mãos de meios substitutivos, seja adotando uma criança ou dedicando-se às pessoas
carentes, desde que o espaço destinado à maternagem seja preenchido.
Palavras tais como falta e vazio são usadas com freqüência pelas entrevistadas para
descreverem o estado psicológico das mulheres que não são mães. A frase de Creuza "eu
me senti mulher de verdade quando soube que estava grávida" expressa esse sentimento e,
se complementada pela opinião de Angela sobre aquela que não deseja ter filhos, nos
oferece a dimensão exata do espaço ocupado pela maternidade na subjetividade feminina:
"acho uma mulher vazia, que não tem nada". Aliás, essa categoria faz contraponto com a
anterior na medida em que epítetos como "vazias", "irresponsáveis", "egoístas", "más",
"frias" vão colorir outro grupo explicativo da não opção pela maternidade só que, nesse
caso, a condescendência dá lugar a um julgamento carregado de desprezo, já que a essas
mulheres são atribuídos problemas morais. O discurso de Ceres, que soa quase como uma
sentença, cristaliza essa acusação: "tanto o homem como a mulher, se ele foi escalado pra
não ser estas duas coisas [pai e mãe] algum problema ele tem pra merecer esse castigo. (...)
um pé de pau que não bota fruto, ele merece ser o que? Derrubado! Porque ele não tá
adiantando de nada na Terra, porque ele não vai deixar raiz, ele não vai deixar nada, não vai
deixar fruto, então por alguma coisa tá pagando".
Por vezes, entretanto, a mulher é desculpabilizada quando o seu não desejo de ser mãe é
atribuído à anormalidades psicológicas da ordem dos "traumas", "dificuldades na relação
com os pais" (sobretudo com a figura materna), "rejeições" sofridas na infância, etc. A
explicação reflete exatamente o tipo de processamento que caracteriza o movimento de
apropriação/transformação dos conteúdos científicos em teorias do senso comum: estes são
descontextualizados do quadro teórico onde se inserem, objetivados e ancorados num outro
universo de sentido. No caso, isenta a protagonista da culpa ao estabelecer uma relação
direta tipo causa-efeito entre as situações vividas no passado e a decisão atual: "eu penso
que ela não foi feliz na infância e alguma coisa deve estar errada com ela, algum trauma,
alguma coisa muito estranha que ela deve estudar pra ver o que é, pra ela não querer ser
mãe... Então, de repente, você achar que não quer ter filhos é alguma coisa que não ficou
esclarecida na infância", justifica Adélia. Ou como explica Arlinda: "ela [a mulher que não
quer ter filhos] tem algum problema por detrás disso. Deve ter alguma coisa por detrás
disso que a faz pensar dessa forma. Aspectos de trauma de infância, da própria ... de como
ela foi criada". São explicações que buscam na argumentação psicopatológica uma forma
de conciliar os elementos representacionais antigos - "toda mulher deseja ser mãe"- com
aqueles que o contradizem, mantendo assim o núcleo da representação.
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Vale ressaltar que mesmo entre as três entrevistadas que declararam ser a maternidade
uma opção, duas delas, embora aparentemente contrariem a lógica da "naturalidade" dessa
escolha, a reafirmam por uma via adicional: a de que o amor e a abnegação estão tão
fortemente presentes nas mulheres, que algumas renunciam à felicidade de ser mãe pelo
medo de "colocar uma criança nesse mundo violento" (Analice). Assim, essa opção
refletiria, na verdade, a expressão maior do amor materno que impele a proteger o filho
mesmo às custas de nunca tê-lo. Como salienta Adalgisa "é a preocupação, inclusive, com o
bem querer que tem com os filhos que não teve em função do mundo que vem por aí".
Parafraseando Chico Buarque, "se a vida maltratar as meninas, as minhas não!" (As
Meninas).

SER MÃE: AINDA PADECER NO PARAÍSO?

A concretização do anseio de maternidade, o exercício da maternagem, é pautado por


configurações precisas: a representação da mulher-mãe inscreve-se no quadro dos
contornos bem delineados da boa mãe. O desempenho da função materna, portanto, ocorre
à sombra de esquemas referenciadores que não só a substancializam como, acima de tudo,
normatizam essa experiência através de regras prescritivas cujo rompimento mobiliza
sentimentos e sensações numerosos tais como "frustração", "angústia", "auto-
recriminações", "culpabilização", "impotência", "sensação de imaturidade", etc. segundo as
denominações utilizadas.
Existe um modelo hegemônico que se depreende dos discursos de todas as mulheres
entrevistadas e é no confronto com esse modelo que a atuação junto aos filhos é abalizada.
Às vezes, o contraste interposto entre o ideal e a realidade é tão intenso que poderíamos
equipara-lo a uma espécie de mito revitalizado e resignificado pelas tentativas - inúteis - de
atingi-lo. Essa é a via interpretativa que nos aponta depoimentos como o de Analice,
entrevistada que, do começo ao fim do discurso manteve uma postura de afastamento
crítico do ethos cultural dominante: "eu acho que não existe boa mãe. Existe uma mãe
dedicada, amorosa mas uma boa mãe não existe. Eu acho que todo mundo é assim, mas
ninguém é na verdade uma boa mãe. É muito difícil ser uma boa mãe". Dedicação,
presença, amor e carinho, embora essenciais ao desempenho materno ainda não são
suficientes para qualificar a boa maternagem pelo fato de sempre se mostrarem eivados de
afetos negativos, nunca em estado puro - a impaciência é constantemente citada como
impeditiva da boa performance materna - e, também, pelo fato de outras atividades se
interporem no caminho mãe-filho pulverizando as atenções; o trabalho extra-doméstico, por
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exemplo, é constantemente acusado de obstacular uma maternagem mais eficaz. Mas,


mesmo longe do alcance, o ideal mantém sua força impulsionadora.
No relato dos sujeitos sobre as características percebidas como indispensáveis ao
exercício da função materna, prevalece a idéia de que assim como a maternidade é
condição natural de toda mulher, ser boa mãe é condição natural de toda mãe. As
equivalências não param aí; a equação completa-se com a incorporação de outro termo, o
amor, que como os outros, também repousa no argumento de naturalidade: a mãe ama o
filho por definição.
O amor é o elemento primordial do modelo. Sentimento básico, distintivo da
maternidade, é o predicado sine qua non ao exercício eficiente dessa missão e que a redime
da defasagem entre o modelo e a realidade. A boa mãe, em princípio, ama o filho e se esse
amor não a isentem de erros pelo menos funciona como atenuante dos possíveis efeitos
nocivos que deles possam advir: "na prática, eu acho que a mãe que quer ser boa mãe deve
aprender a errar, a saber que nem sempre o que ela vai fazer é certo e que existe por trás de
tudo, amor. Então, quando existe amor, a gente sabe errar, sabe errar não, a gente erra mas
está procurando fazer o melhor" (Adeilda). Eis a lógica que emerge das representações da
maternidade e que poderia ser resumida numa simples equação: maternidade = fonte
inesgotável e eterna de afeição, carinho e ternura.
Assim, amalgamados pelo sentimento de amor, delineiam-se os traços componentes do
perfil da mãe idealizada. Os requisitos, apesar de variados e numerosos, situam-se num rol
comum de adjetivos compartilhados e que vão diferenciar-se apenas pela referência
explícita que a maioria das mulheres de baixa-renda fazem aos cuidados materiais básicos
com os filhos - tais como alimentação, saúde e escolaridade - e raramente referidos pelas
entrevistadas das camadas médias, pelo fato de essas mulheres partirem do pressuposto de
que as condições infra-estruturais estão garantidas. Fora isso, todas enfatizam e privilegiam
os aspectos psicoafetivos que envolvem a relação mãe-filho. Assim, a boa mãe deve ser
compreensiva, carinhosa, ter uma presença de qualidade, educar respeitando os direitos do
filho, dar limites adequados ao crescimento saudável, saber conversar com sinceridade e
nunca puni-lo fisicamente, ser ponderada - pois "tudo demais mata" (Ceres) -, justa e
equilibrada. Enfim, "tem que ter amor para suprir todos os buracos, todas as lacunas que
existem na criança" (Alda).
Se maternidade é sinônimo de amor, a ausência desse sentimento não só é um indicativo
fidedigno de que algo está errado como é o apanágio das mães más. A ausência de amor só
encontra sentido no âmbito da patologia ou da moralidade, pois é inconcebível dentro dos
critérios de normalidade que pautam a mulher sadia. Quer seja vista como merecedora de
compaixão, tratamento psicológico ou de punição - as entrevistadas aludem a desvios
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psicológicos ou de caráter como justificativas para os procedimentos que, segundo suas


concepções, caracterizam as mulheres que não agem como boas mães - a figura da mãe má
suscita sempre avaliações depreciativas que, algumas vezes, se radicalizam num pólo de
extrema negatividade como no comentário de Carolina: "uma mãe má não deveria viver".
As modalidades de expressão de desamor apontadas pelas entrevistadas são variadas e
seguem, por oposição, a listagem que compõe o perfil da boa mãe. Mais uma vez, aqui, o
matiz sócio-econômico se interpõe ressaltando as diferenças: enquanto para o grupo de
baixa-renda o desamor é reiteradamente associado ao ato de bater no filho - e muitas
confessam, cheias de culpa, utilizarem-se desse meio corretivo -, nas camadas médias é a
ausência materna que se coloca como o par desse binômio (apenas Angela cita o ato de
bater ao falar da mãe má). Isto não significa que a punição física seja aceita como
procedimento corriqueiro e isento de condenação pelas entrevistadas desse segmento social,
ao contrário, demonstra o quanto ele é aberrante e inconcebível. A palmada - designação
preferencialmente utilizada - quando mencionada, só é admitida no contexto de uma ação
disciplinar, educativa, seguida de argumentos desculpabilizantes das causas que tornam
aceitável sua ocorrência. O depoimento de Angela traduz com fidelidade o
constrangimento que cerca o tema: "às vezes quando você bate ... eu mesma às vezes dou
uma palmada, com a mão mesmo, me arrependo, fico muito triste. Mas na hora eles
aperreiam tanto que a gente perde a cabeça. Mas sempre me arrependo". Ao mesmo tempo
que os discurso refletem as condições sócioculturais que separam o cotidiano de cada
grupo, também revelam a semelhança dos conteúdos que organizam as suas representações
em torno de um núcleo comum derivado do padrão educativo veiculado pelas ciências psi,
cuja máxima é o diálogo.
O exercício da função materna está, assim, vinculado ao cumprimento de determinados
esquemas comportamentais e sentimentais que dão corpo a um modelo idealizado de mãe
cuja essência estruturante é a abnegação; linha matriz que tece a execução dos encargos
maternais. Seu caráter extremamente normativo e sua influência hegemônica são derivados
de um suporte elementar: a instalação de um forte sentimento de culpa cada vez que ocorre
um desvio das regras impostas.
Não surpreende que, na busca de um desempenho compatível com o modelo adotado, as
dificuldades sejam quase insuperáveis; as mulheres têm que redimensionar toda a sua
existência além de refazerem seu cotidiano de acordo com a nova realidade: "depois que
tive filho, dediquei minha vida todinha a ele" confessa Creuza. A maternidade é percebida
como uma experiência que modifica radicalmente a vida das mulheres, reconhecem todas
as entrevistadas, centralizando os investimentos afetivos, capturando a atenção e
aprisionando-as ao cenário doméstico.
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Os depoimentos de como as diversas tarefas são implementadas e equilibradas na


tentativa de que todos os requisitos sejam cumpridos, ressaltam as diversas facetas que,
juntas, compõem o modelo de mãe. Estas facetas, matizadas de acordo com a
predominância de um conjunto de características requeridas na atuação junto ao filho e dos
tipos de cuidados específicos dirigidos a ele, foram organizadas em três amplas categorias:
mãe provedora, mãe renunciadora e mãe polivalente.
A mãe provedora, acentua a responsabilidade integral no atendimento das necessidades
básicas do filho; como diz Ana, "é uma reponsabilidade muito grande, e é eterna, até
morrer". Sinaliza a abrangência de funções e atividades imputadas à maternagem e
desdobra-se em duas esferas principais de atendimento e preocupação: ora assume a forma
da mãe facilitadora, encarregada de proporcionar as condições adequadas ao
desenvolvimento psicológico saudável da criança - "é saber fazer as coisas na hora certa, no
momento exato ... tem que se equilibrar o máximo possível para não ser desajustada e
passar isso para o filho" (Alda); ora aparece como a mãe tarefeira, ocupada com os
cuidados higiênicos, alimentares e educacionais: "é saber tudo. Saber dar banho, dar
comida, ter cuidado com a roupa dele, ter muito cuidado...Tem que ter muito cuidado com
menino novinho...tem que cuidar bem; uma criança precisa de carinho, não é só dar comida
e jogar numa rede não" (Creuza).
Bem, para por em prática a listagem infindável dos encargos que lhes cabem e
desenvolve-los a contento, a mãe vê-se impelida a restringir sua participação em outros
setores da vida, fixando-se no espaço doméstico. Esse é o solo onde vai figurar a mãe
renunciadora, cuja marca característica é a cobrança da dedicação exclusiva ao filho; tudo
em sua vida é condicionado e secundarizado em função das atividades maternas: "ser mãe é
ficar ligada as 24 horas (...) com filhos você é uma mulher com horas marcadas. Você não
vai a todo lugar porque depende do seu filho; eu não deixo meu filho com empregada para
ir a um lazer, eu os levo e por leva-los é que eu tenho hora de chegar e de sair de qualquer
lugar. E uma lugar que não é conveniente leva-los, eu não vou" (Arlete). Ou num nível
mais abrangente ainda, como o colocado por Adeilda: "eu pretendi me dedicar muito ao
meu primeiro filho, então eu parei de estudar, parei de trabalhar, na época isso foi um
amadurecimento, um mergulho numa piscina que eu não sabia se estava cheia ou vazia, foi
um mergulho bem forte; era descobrir o que era ser mãe".
Finalmente, pelo fato de o papel de mãe, apesar de superdimensionado, coexistir com
outros que, por sua vez, também requerem graus variados de investimento intelectual e
afetivo, procura-se estabelecer algum tipo de balanceamento que possibilite organiza-los
em torno da maternidade: eis a mãe polivalente. A conciliação dos múltiplos papéis
desempenhados - dona de casa, esposa, profissional, etc. - e a sensação de cansaço e
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fragmentação resultante de tal proeza são a tônica imprimida à faceta polivalente, ilustrada
com precisão por Amanda: "se você tem um filho você se divide em dois, se tem três, você
se divide em três. Se você quiser viajar, trabalhar, você já está dividida: tem que pensar
com quem vai deixar, como é que vai ser, você passa o dia inteiro pensando neles porque a
responsabilidade maior é da gente.(...) Se eu tenho um trabalho e vou chegar às 8 horas da
noite, eu que tenho que ficar ligando pra ver quem pode ir buscar na escola, quem pode
levar, quem pode fazer isto e aquilo. (...) Hoje em dia eu só trabalho depois das 10 da noite
quando todas [as filhas] estão dormindo, porque quando estão acordadas eu não consigo
estar sentada, elas estão me solicitando, uma quer uma coisa outra quer outra. Então eu
deixei de fazer muita coisa que eu gosto para fazer em função delas". Ou, ainda, no
sugestivo discurso de Analice: "a subdivisão que ela [a mulher com filhos] tem na
sociedade é muito grande. Ela tem um peso muito grande nas coisa, ela é mãe, é dona de
casa, trabalha, ela é esposa, é amante. Eu acho que esse papel tão polivalente, às vezes
deixa ela em certas ocasiões muito amarga".
É, no mínimo, paradoxal o contraste entre o tom queixoso dos relatos acerca da renúncia
pessoal, aprisionamento e excesso de responsabilidade implicados na maternidade e a
supervalorização dessa experiência.. Todas as entrevistadas são esfuziantes em suas
qualificações acerca do significado da função materna em suas vidas. É freqüente que os
discursos onde são ressaltadas as privações pessoais e a redução do espaço de atuação
sejam concluídos com a exaltação da maternagem, dando a impressão de uma novela cujo
final foi acrescentado abrupta e artificialmente. Eis alguns exemplos: "ser mãe é muito
desgastante psicologicamente, mas é muito gratificante sem sombra de dúvidas, é muito
bom ser mãe" (Analice); "foi muito duro para mim [no início] ser mãe; umas experiências
muito brutas, grosseiras, mas a gente vai se acostumando e é uma situação muito gostosa. É
uma coisa tão especial que eu nem sei" (Adalgisa); "[o filho altera a vida] em todos os
sentidos. No sentido de passear que diminui mais, no sentido do trabalho, você tem que
diminuir o ritmo de trabalho lá fora (...). Ser mãe é ótimo" (Augusta); "ser mãe é renunciar
a tantas coisas... ela até esquece dela mesma, até de se cuidar... deixa de comprar para si e
compra pros filhos... é sentir aquele prazer que toda mãe tem, eu acho que a maioria das
mães sente" (Catarina).
Essa felicidade sofrida que se depreende dos comentários acima adquire seu sentido
dentro do contexto que envolve as relações entre mulher e maternidade. Contraditória na
aparência, ela evidencia a lógica própria da organização dos elementos componentes de
uma representação - lógica natural - cujo eixo regulador é o sentimento de compartilhar
com os grupos de referência um conjunto de significações tomadas como verdadeira.
Convém salientar, que a representação social obedece a uma dupla lógica: uma cognitiva e
14

outra social. São, segundo Abric, "construções sócio-cognitivas regidas por regras próprias"
(1994:14).

DAS DIFICULDADES E DOS CONSELHOS

Sobrecarregadas pelas reponsabilidades afetivas e econômicas - principalmente no caso


do grupo de baixa renda -, as entrevistadas demonstram a insatisfação por não conseguirem
colocar em prática a imagem ideal que funciona como um abalizador constante do seu
desempenho embora, tampouco, consigam desvencilhar-se dela. E, dentre os numerosos
impecilhos apontados no percurso de construção da boa maternagem, figura como inimigo
número um a atividade profissional, responsabilizada com freqüência pelo afastamento dos
filhos. O trabalho - denominação exclusivamente imputada à atividade extra-doméstica e
remunerada -, campo de realização pessoal e crescimento para as mulheres das camadas
médias e fator de sobrevivência para o grupo de baixa renda, apesar de encaixar-se nos
projetos de vida de todas elas é, acima de tudo, referido enquanto fonte de conflito e
obstáculo ao pleno exercício da maternagem. Sem exageros, podemos afirmar que nas
primeiras fases de vida das crianças ele é visto como um mal necessário pelas mulheres das
camadas de baixa renda e tolerado, sob argumentos de ordem econômica, pelo grupo das
camadas médias: "eu converso com a minha filha desde novinha, que ficou em creche,
porque eu precisava trabalhar (...) e quando não estou com ela, ela sabe que é porque eu
preciso trabalhar para poder pagar colégio e ajudar o pai", esclarece Arlete em tom de
justificativa. Nesse grupo, como a situação financeira permitia, duas mulheres optaram por
abandonar seus planos profissionais em função da maternidade e algumas, premidas por
necessidades inadiáveis, postergaram seus sonhos de realização nessa área.
Além do trabalho, outro empecilho ao desempenho do papel materno destaca-se no
discurso das mulheres: a impaciência. Dessa vez o inimigo situa-se no interior,
evidenciando a amplitude e a eficácia do modelo. A impaciência é o sentimento que rompe
a rede afetiva calcada no amor e na abnegação, denunciando a impossibilidade de
concretização de uma relação idílica e harmoniosa, garantia do crescimento saudável do
filho. Subjacente à impaciência, a culpa, velada ou explicitamente reconhecida, por se
deixarem afetar por emoções que levam ao distanciamento do esquema idealmente visado e
perturbarem as manifestações de amor maternal. Longe de se oporem, os dois grandes
impecilhos apontados - impaciência e trabalho - configuram o inimigo supremo que
compromete a completa submersão na função materna, demanda que deriva diretamente da
imagem idealizada.
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A apropriação dos conceitos psicológicos no universo de representações das


entrevistadas é evidente, embora poucas admitam recorrer a ajuda dos profissionais da área
para solucionar suas dúvidas acerca das dificuldades encontradas no desempenho da função
materna. O recurso contínuo às formulações próprias desse mapa interpretativo - se bem
que muito mais flagrante nas camadas médias -, perpassa as diferentes respostas. Convém
lembrar que estes conteúdos longe de serem apreendidos em sua dimensão "científica", ou
melhor, como produto de um setor específico de conhecimento, são assimilados sem que
sua proveniência seja freqüentemente indicada. Na verdade, o que parece ocorrer é menos o
desconhecimento das fontes de aconselhamento do que a predominância da crença
firmemente estabelecida de que a mãe, intuitivamente, sabe o que é melhor para o filho,
corolário da premissa de que as mulheres são dotadas de um "instinto materno". Assim, as
noções derivadas dos postulados psi são amalgamadas àquelas que postulam a existência de
uma natureza feminina cujo eixo regulador é a maternidade e, naturalizadas, adquirem
realidade empírica. É dessa maneira que são absorvidas e reelaboradas.
As perguntas que procuravam avaliar se a orientação dos profissionais da área era
procurada de maneira direta ou indireta (através de livros e revistas especializados)
raramente foram respondidas afirmativamente - a não ser em casos de necessidade -, pois
os fatores decisivos no exercício da boa maternagem situam-se no interior da pessoa: amor,
compreensão, paciência, bom relacionamento são os itens invariavelmente citados. A fala
de Anete é ilustrativa: "Eu acho que esse negócio de psicólogo ajuda, mas não é uma
coisa... Eu acho que toda mãe sabe o que é melhor para o seu filho, agora às vezes aparece
um problema muito sério e se eu achar que é necessário a ajuda de um médico, de alguém,
não vai fazer mal a ninguém". Retornamos, então, ao ponto de partida: não só o desejo de
ter filhos é inerente ao feminino como, também, o amor que guia a mãe no caminho certo.
É nesse sentido que algumas mulheres de nível social mais elevado colocam em
categorias distintas a boa mãe e a educadora: a primeira, diz respeito ao relacionamento
mãe-filho com suas trocas afetivas e, por isso mesmo, desempenhado sem maiores
dificuldades já que é condição "natural" de toda mulher-mãe; a segunda, refere-se ao papel
de educadora e constitui tarefa de difícil execução por implicar, principalmente, no
estabelecimento de regras e limites às crianças com os subsequentes sofrimentos e
frustrações que podem advir de tais medidas. A dificuldade decorre da incompatibilidade
percebida entre os dois tipos de exigências: o de proporcionar prazer e o de submeter a
criança ao princípio de realidade. Avaliação que reflete concepções amplamente adotadas
nas sociedades modernas e que reservam à família o lugar das trocas amorosas transferindo
para outras instituições as tarefas disciplinadoras. Lacsh(1991) discorreu longamente sobre
o processo que converteu a família norte-americana num pretenso espaço de refúgio, amor
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e proteção ao mesmo tempo em que a atrela aos cuidados dos profissionais especializados,
estes sim, sabedores do certo e do errado em matéria de educação. Como se vê, o alcance
dessas concepções parece se estender muito além dos limites geográficos.
Ainda sobre a busca de conselhos vale ressaltar que, se por um lado as diferenças sócio-
econômicas orientam o tipo de profissional consultado - da área psi para as camadas
médias, enquanto as de baixa-renda citam os pediatras e ginecologistas como fontes de
informação -, por outro, indistintamente, todas referem-se às suas famílias de origem -
basicamente às mães - como fonte efetiva de consulta. Esse dado é importante na medida
em que estudos anteriores apontam para o corte radical na continuidade de procedimentos
de maternagem entre a geração atual e a sua antecessora (Salem,1980; Almeida,1987). Tais
estudos mostram o desprezo que as mulheres que estão experimentando pela primeira vez a
maternidade têm pelos conhecimentos das suas mães, além da ojeriza a qualquer forma de
conselho, sempre identificado como uma interferência indevida ou intromissão inadequada
no espaço privado. Se bem que o reconhecimento da ajuda das avós não signifique ausência
de conflitos entre as duas gerações evidencia, pelo menos, uma passagem mais suave das
práticas tradicionalmente adotadas para o universo impregnado de conceituações
psicologizantes dos dias de hoje. Talvez as especificidades sócioculturais que contribuem
para as diferentes matizações regionais das formas de família - as pesquisas mencionadas
foram realizadas no sudeste brasileiro - possam explicar esses dados mas, por enquanto,
podemos apenas supor essa influência.

NO CAMINHO DA REDEFINIÇÃO

Observa-se em todos os depoimentos que a maternidade permanece soberana em seu


papel fundante das representações de mulher. Nem mesmo as transformações que vêm
marcando a vida das mulheres nas últimas décadas foram suficientes para desconfirmarem
a crença de que a experiência da maternagem é a meta legítima e natural do percurso
feminino, embora a este tenham sido agregados outros objetivos menores.
A forte aderência dessa crença no universo da subjetividade feminina nos remete às
formulações de Abric(1994) sobre o movimento de reorganização dos componentes
representacionais diante das novas informações provenientes da realidade. Ele identifica na
representação social dois conjuntos de elementos que, apesar de complementares, têm
funções diferenciadas: um núcleo central estável, consensual, estruturante e um sistema
periférico que, embora em posição de dependência do anterior, possibilita a integração das
experiências individuais com os objetos. Isto explica a lentidão do processo de mudança
das representações pois são, exatamente, os componentes centrais os principais
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responsáveis pela dinâmica interna de resignificação/manutenção que acompanha cada


prática.
De qualquer modo a mudança acontece e, segundo Abric(1994), ela pode ocorrer de três
maneiras: pela transformação apenas dos elementos periféricos sem que o núcleo central
seja atingido (Transformação Resistente); pela integração progressiva no núcleo central de
esquemas ativados por novas práticas para formar um novo núcleo central (Transformação
Progressiva); ou, ainda, pela alteração radical do núcleo central, quando as novas práticas
provocam o questionamento do significado central da representação (Transformação
Brutal).
O segundo tipo de procedimento parece aplicar-se aos achados desta pesquisa. O
descompasso entre o desempenho efetivo das mulheres nos numerosos setores da vida
social e as definições de feminilidade oferecidas, sinalizam o andamento de um processo
progressivo de mudança em curso, se bem que moroso. Lembramos que apenas no relato de
três entrevistadas o vínculo mulher-mãe foi desmanchado. Por outro lado, percebe-se uma
modificação mais incisiva no que diz respeito aos traços configuradores da boa mãe, agora
completamente impregnados pelas concepções psicologizantes acerca dos modos
apropriados de sentir e agir na relação com o filho.
Os indicadores nos levam a crer que, sob a pretensão de desarrumar velhos critérios,
esconde-se um forte apego aos seus ditames: a mãe moderna "escolhe" centrar sua vida em
torno das necessidades do filho. A "opção” pela maternidade reveste-se assim de um caráter
obrigatório para a mulher. Diz Arlinda: "então, é muito diferente se você realmente tá
sendo mãe não por acidente, por uma contingência , mas assumir como eu assumo. Eu fiz a
opção de deixar qualquer coisa e me dedicar a ele [o filho]. Você se anula um pouco, mas
tem que ser uma coisa bastante consciente". Toda essa operação de redefinição constitui, ao
mesmo tempo, uma estratégia para garantir à mulher os seus direitos e o respeito dos
grupos de referência sem ferir os padrões hegemônicos de feminilidade e assegurar a
independência para empreender um caminho compatível com as alternativas que se
apresentam. Em outras palavras, na ânsia de atualizar o viés naturalizante das concepções
tradicionais com as demandas de realização profissional e autonomia, reverte-se o sentido
da sujeição em poder, como conclui Dauster(1990).
Se o trabalho aparece como um item importante do perfil feminino - seja por
necessidade de sobrevivência ou por realização pessoal - é a maternidade o traço central
que reinterpreta todos os demais; ela continua sendo, por excelência, a experiência que
define a mulher. Mesmo assim, o trabalho desponta como um indicador - e impulsionador -
da alteração do antigo perfil pelo fato de desalojar a mulher da cena doméstica e, ao obrigá-
la a reorganizar rotinas e expectativas, proporcionar elementos para a reconstrução das
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antigas pautas. A realização profissional já tem um lugar garantido nas descrições da


mulher moderna.
Outro fator que aponta para a reestruturação dos antigos padrões é a exigência,
manifestada de forma quase unânime pelas entrevistadas, de uma participação igualitária do
companheiro nas tarefas e responsabilidades afetivas com os filhos. O pai,
reconhecidamente ausente dos encargos cotidianos, é instado a abandonar o lugar de
coadjuvante e assumir um papel mais próximo em termos afetivos e mais ativo no que se
refere aos cuidados básicos (Arlete chega a ser enfática ao responder que o pai deve
assumir "totalmente, totalmente, totalmente" as mesmas responsabilidades que a mãe). As
mães não creditam só à sua atuação o bom andamento da saúde física e psíquica das
crianças e por isso reivindicam uma paternidade que se traduza concretamente na
disponibilidade de dividir os deveres implicados na rotina doméstica.
A demanda de outra modalidade de paternidade insere-se num contexto mais amplo de
mudança das representações; corresponde, sem dúvida, aos ajustes sofridos pelas
representações de masculinidade, feminilidade, família, etc., em virtude das condições
sócioculturais instaladas nas últimas décadas. As mulheres já não compartilham a idéia de
assumir toda a quota de reponsabilidade que lhes coube até então, por razões as mais
diversas, inclusive, pelo simples fato de encontrarem-se sobrecarregadas pelo acúmulo de
atividades resultantes da sua atuação nas duas esferas: pública e privada. Encarada sob este
ângulo, a reclamada presença do pai junto à atividade profissional, parece ser agente
catalisador, de peso, no processo de mudança.

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