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UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

GRUPO DE PESQUISA: SEMINÁRIO TEMÁTICO

PESQUISAS NARRATIVAS: FUNDAMENTOS TEÓRICOS E


ESPISTEMOLÓGICOS

Resenha do texto:
A transformação de si a partir da
narração de histórias de vida
MARIE-CHRISTINE JOSSO

PROF.ª DRª ECLEIDE CUNICO FURLANETTO


PROF.ª DRª MARIA DA CONCEIÇÃO PASSEGI

DOUTORANDA: IVANICE NOGUEIRA DE CARVALHO GONÇALVES


No texto “A transformação de si a partir da narração de histórias de vida”
percebemos como as narrativas podem ser formativas por toda a vida e por
meio das múltiplas maneiras de ser e estar na singularidade e coletividade das
interações conhecemos a nós mesmo em todos os sentidos. Assim, a
“invenção de si”, é uma forma poderosa de cada um descobrir sua
singularidade, cultivá-la na vida social e cultural, formando-se ao longo da vida.
Por isso, Josso afirma que os lugares educativos formais ou informais acolhem
pessoas com expectativas e motivações distintas que atuam na sociedade em
constante mutação, envolvendo posicionamento, ação e compreensão. E isso
exige um projeto de formação reflexiva que considere a existencialidade
associada à construção da identidade dos envolvidos nos processos
formativos, dando sentido ao projeto formativo para si e para os outros,
validando a voz e o acesso aos que se formam mutuamente.
A questão da construção da identidade precisa envolver a solidariedade
como forma de não exclusão, de inclusão, equidade e dignidade, por isso, esta
pesquisa se deu a partir de histórias centradas na formação de si, na
perspectiva de evidenciar e questionar heranças, a continuidade e a ruptura, os
projetos de vida, os múltiplos recursos ligados às aquisições das experiencias.
Além disso, permitiu estabelecer a medida das mutações sociais e culturais na
singularidade, relacionando-a com a evolução dos contextos de vida
profissional e social, com isso, as subjetividades expressas foram confrontadas
nos contextos em mutação, priorizando a formação em geral e o trabalho de
narração de histórias de vida em particular.
Os cursos de formação que visavam aquisição de novas competências
sociais e profissionais eram mais procurados por adultos mais ou menos
jovens. A partir da singularidade e coletividade das formações, as pessoas
narraram suas questões, preocupações e inquietações, abandonando silêncios
profundos e a solidão, começaram a refletir acerca do desenvolvimento de
novos recursos, estratégias e solidariedades. Evidenciaram também a
pluralidade, fragilidade e mobilidade de suas identidades ao longo da vida. Os
impactos sociais dessas formações promoveram uma evolução na geração,
ampliação e desenvolvimento de competências diversas, novas socializações,
reformulação dos projetos de vida e consequentemente uma identidade

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evolutiva, por considerar também todas as dimensões existenciais:
psicossomáticas e socioculturais em constantes mutações.
O processo evolutivo e permanente de construção da identidade num
movimento constante “vir-a-ser”, sofrem muitos impactos por mudanças
sociais, econômicas, políticas e históricas, provocando uma recomposição
identitária. Isso requer novas formas de olhar para os processos formativos,
incorporando os contextos contemporâneos para escutar as manifestações
existenciais dos envolvidos na formação.
Outra revelação da pesquisa a partir das histórias de vida foi a exigência
metodológica de pensar a construção da identidade por meio das crenças
cientificas, religiosas e esotéricas, incluindo as diferentes formas como as
pessoas pensam e as dimensões de ser no mundo. Essas energias positivas e
negativas, psicossomáticas, psicológicas, sociológicas, antropológicas,
sociohistóricas e espirituais interferem na evolução da existência e identidade,
exigindo que as ações formativas sejam espaço e tempo nos quais o cotidiano
dos envolvidos possa ser tratado em diferentes registros, facilitando a visão da
coletividade, intervenções apropriadas no modo de ser e estar em sociedade e
nas interações.
A partir daí, a autora se desdobra em apresentar uma síntese dos pilares
essenciais que ancoram essa reflexão acerca da concepção experiencial da
formação em geral e em particular na sua dimensão existencial. A saber, essa
concepção experiencial se articula com a construção da identidade, trazendo à
luz vivencias refletidas e conscientizadas, integrando as dimensões de “sermos
no mundo”, com nossos registros de expressões, competências diversas e
posições existenciais.
Para garantir sua continuidade, os grupos sociais construíram conceitos
de socialização e de formas de se apropriarem da cultura, nas modalidades de
conformação às normas e de adaptação dos sujeitos às atividades materiais e
simbólicas na interdependência entre as individualidades e a coletividade
desses grupos. Dessa forma, o conceito de educação reagrupou o conjunto
das modalidades formais pelas escolas e outras instituições de formação e das
modalidades não formais, como contextos familiares, ambientais e midiáticos.
A conformação e adaptação das pessoas se dá nas formas como são
moldadas pelos deveres e solicitações, conferindo a elas funcionalidade na

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sociedade e na continuidade da cultura. Nessa perspectiva de se moldar para
se encaixar numa determinada sociedade ou cultura, as pessoas buscam
formação para o desenvolvimento de competências que lhes permite ser e
estar nos contextos. A própria Josso, busca amparo em Berger e Luckmann
(1986) para sustentar seus argumentos quanto à modalidade da conformização
e adaptação na construção da identidade. E critica a abordagem de construção
da identidade pelo viés dos critérios de rotulação que definem status, papeis e
posições numa hierarquia social e dos comportamentos individuais
correspondentes, visto que não compreendem como as pessoas vivem do seu
interior, esses status, rotulações e comportamentos conformistas, ignorando a
existencialidade como movimento vital, assim como a invenção de si como
ruptura e ligação com os contextos sociais e históricos e suas heranças do
fazer, pensar, sentir, agir, comunicar, entre outras.
A questão da identidade pelo viés da imagem de si mesmo foi abordada
pela psicologia com um conjunto de descrições psíquicas consciente e
inconsciente da pessoa, sua forma de ser e como pode é afetada pelas
mudanças. Isso resulta em “carteiras de identidade” que servem como base
para construção de testes e avaliações psicológicas, atividades de orientação,
avaliações escolares e profissionais, dos famosos testes de QI até aos testes
de projeção. A autora afirma que, quem contraria essa abordagem é a teoria
piagetiana, a qual compreende a construção da identidade a partir dos estágios
do desenvolvimento pré-definidos com seus esquemas e operações, pelos
processos de assimilação e acomodação do conhecimento construído.
A vida psíquica inconsciente foi estudada por alguns pesquisadores
como Freud, Jung ou Laing e seus sucessores, e pelo viés do desejo a pessoa
articula a vida psíquica com a vida social e cultural, organizando e orientando
suas ações com intencionalidade. Esse estudo do inconsciente pela
abordagem do desejo, localizou os comportamentos que perturbam as regras
de transações e interrelações, ao ponto de serem perigosas para si e para os
outros. Surgindo então, as abordagens no campo da psicopatologia médica,
com seus quadros clínicos e sintomatológicos que permitem uma rotulação das
individualidades.
A autora justifica que embora a narração de histórias em processos
formativos não seja usada como prioridade na construção de identidade, sua

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pesquisa com o trabalho biográfico de escrita de narrativas de histórias de vida
com análise e interpretação coletiva, possui abordagem central na
compreensão dos processos formativos, de conhecimento e de aprendizagem
com foco na questão da identidade. Dessa forma, a escrita da história de vida
se torna mediação do conhecimento de si em sua existencialidade, fornecendo
ao seu autor/narrador a oportunidade de tomar consciência sobre seus
registros de expressão e representação de si, bem como sobre suas ações que
influenciam sua formação.
Para Josso, essa pesquisa formação a partir da experiência, só é
possível com a “construção da narração da história da formação de cada um,
da narração das experiências com as quais o autor-ator aprendeu, da sua
maneira de operar escolhas, de se situar em suas pertenças e de definir seus
interesses, valores, aspirações.” Em sua pesquisa, a autora aborda a
existencialidade por meio do enredo singular e original na coletividade
compartilhada.
Nesse cenário de pesquisa formação, na primeira fase, os participantes
construíram suas histórias em etapas alternadas de trabalho individual e
coletivo num processo de conhecimento de si e as reflexões acerca desse
processo formativo se tornam produtivas quando os participantes investem em
si mesmos e nas interações no grupo. Dessa maneira, cada participante
“contribui para a formação dos participantes no plano das aprendizagens
reflexivas e interpretativas,” questionam o passado e antecipam o futuro em
seus projetos de vida e suas demandas formativas e são convidados a expor
no grupo seus interesses para formular um projeto de formação.
Na fase de escuta dos narradores, organizados em pequenos grupos,
cada participante narra suas experiências em seu percurso de vida,
explicitando sempre em quê exatamente cada uma delas foi formadora ou
fundadora.” Os demais participantes questionam o narrador sobre os detalhes
das situações e dos acontecimentos narrados.
Na terceira fase, cada participante escreve sua história individualmente e
nessa transposição da narrativa oral para a escrita, foram percebidas algumas
modificações nas informações anteriormente relatadas, que foram
questionadas, explicadas e compreendidas. Ainda nessa fase, cada história
escrita foi analisada para perceber suas articulações, valores, escolhas,

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humanidades, experiências, dialéticas, atitudes, aprendizagens e
conhecimentos ao longo da vida.
A autora reagrupou esse conjunto de conhecimento no percurso de vida
de cada participante em quatro categorias segundo a teoria proposta em
Cheminer vers soi:
 Aprendizagens existenciais são constitutivas do conhecimento de si
como ser psicossomático em nossas dimensões de ser no mundo,
nossos registros de expressão e nossas competências genéricas
transversais particulares;
 Aprendizagens instrumentais reúnem os processos e procedimentos
em todos os domínios da vida prática numa dada cultura e num dado
momento histórico;
 Aprendizagens relacionais são as aquisições de comportamentos, de
estratégias de trocas e de comunicação com o outro, do saber-ser em
relação consigo, com o outro e com o mundo;
 Aprendizagens reflexivas permitem a construção do saber-pensar nos
referenciais explicativos e compreensivos.
Como o percurso de vida se mostra numa linha do tempo ao longo da
qual a pessoa age intencionalmente em vários contextos ajustando-se a eles
momentaneamente ou de maneira duradoura, Josso identificou três dialéticas
que fundamentam e compõem a dinâmica das narrativas do percurso de vida:
 Singularização/conformização – o indivíduo passa por diferentes
formas de se conformar com as situações, ligação com a família, com
o saber, com a escolha profissional, do estilo de vida, entre outras.
 Responsabilização/dependência – o indivíduo se deixa levar ou
influenciar-se pelo grupo nas atividades, nas relações com o outro,
nas situações, podendo também criar uma independência interativa
ou sujeitar-se, no plano relacional, econômico ou social.
 Interioridade/exterioridade – o indivíduo vive tensões, conflitos
internos, sonhos, projetos, desejos e imagens de si mesmo e dos
outros, nas diversas interações. Essa dinâmica interior que vai ao
encontro, com mais ou menos felicidade, das condições do exterior,
leva o sujeito a gerenciar a identidade de si e para os outros.

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Nesse processo de formação, que caracteriza o percurso de vida de
cada um, o ser-sujeito da formação, “toma forma psicossomaticamente,
psicologicamente, sociologicamente, economicamente, culturalmente,
politicamente, espiritualmente,” num movimento de querer e poder ser e vir-a-
ser.
Segundo Josso, a abordagem formação existencial pelo viés da
experiência deve ser vista de várias faces:
 Como um processo evolutivo de integração/desintegração de saber
pensar, de conhecimentos, de representações, de valores, de
comportamentos, de saber-fazer;
 Como um processo de dar sentido às aprendizagens formais e
informais, às experiências e aos projetos de si;
 Como um processo de tomadas de consciência de si e de suas
potencialidades;
 Como um processo de concretização de uma intencionalidade em
projetos;
 Como uma transformação permanente – e às vezes imperceptível-
do si psicossomático.
Josso traz ainda em seu texto o conceito das dimensões de “ser no
mundo, nossa forma de existir e ser na vida, ser em ligação, em relação com”
que favorece o conhecimento de si em todos os registros, dimensões e faces.
A autora agrupou a formas de ser em oito dimensões:
O Ser de carne é o corpo biológico no qual se manifesta as outras sete
características. É a parte que nos liga ao ecossistema terrestre pela nossa
pertença biológica ao reino animal e está presente nas histórias de vida sob
diferentes formas, como na saúde e a doença, a maternidade e a paternidade,
entre outras.
O Ser de atenção é o ego, consciente torna possível o desenvolvimento,
a percepção e a construção de um conhecimento de si, pois é nossa
capacidade de aprender ao longo da vida e está intimamente ligado ao ser de
carne, formando “um só corpo”. A qualidade dessa atenção consciente resulta
de uma escolha, de um trabalho, de uma vontade perseverante, de uma
disciplina. A falta de atenção é um perigo para nossa sobrevida, por isso há o

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conselho: “preste atenção a...”, com o qual pontuamos a educação de nossas
crianças atesta sua importância vital.
O Ser de sensibilidades envolve os cinco sentidos e por meio deles
experimentamos todos os sentimentos bons ou ruins e apreendemos sobre nós
mesmo e sobre os outros. Essa percepção associada a uma intencionalidade
se dá por intermédio do olfato, gosto, tato, audição e visão. Para ilustra essa
ideia a autora cita o escritor José Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira:
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Então, o Ser de atenção consciente
entra em cena neste momento.
O Ser de emoções está diretamente ligado ao Ser de sensibilidades, em
estado desperto, bem entendido. Mas ele é também mobilizado pelos impactos
do Ser de afetividade, do Ser cognitivo e do Ser de imaginação.
O Ser de afetividade nos faz entrar no universo dos laços construídos,
mantidos ou rompidos, em torno dos valores que nós interiorizamos não
conscientemente, ou que escolhemos após uma reflexão. Ele pode tomar
diversas formas: o ser dos envolvimentos, o ser que deseja, o ser dos ideais, o
ser dos compromissos, o ser dos sentimentos, o ser de vontade e de
perseverança. Está intimamente associado ao Ser de cognição.
O Ser de cognição nos leva a abordar outras formas de laços e de
manifestação de nossa existencialidade. Pela aquisição da linguagem, o
desenvolvimento das inteligências, a aquisição de estratégias de pensar e dos
diversos conhecimentos das ciências do humano e da natureza, nós entramos
numa “gramática” dos laços possíveis ou impossíveis no contexto de uma
epistemologia , seja ela de uma disciplina do pensamento e da ação ou de uma
lógica cultural organizada a partir de uma visão do mundo.
Ser de imaginação e a importância das obras artísticas (música, letras,
artes plásticas, artes decorativas, dança, etc..), realidades imaginárias e bem
concretas, são como alimento de vida interior, fontes de referência para
simbolizar situações, acontecimentos impossíveis de verbalizar, descobertas
de outros universos possíveis.
O Ser de ação corporal é sem dúvida a dimensão de nosso ser no
mundo que permite tornar tangíveis com mais evidência as formas de laços e
de realizações que ele envolve, é a existencialidade em suas facetas
aparentes, visíveis. O Ser de ação corporal combina, mobiliza, põe em ação

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todas as outras dimensões do ser, a fim de se completar em seu movimento,
em seu deslocamento, em sua transformação desejada, de tal maneira que
esse movimento, esse deslocamento, essa transformação, levem à sua melhor
finalização, ao melhor resultado possível.
A autora conclui que as “práticas para reflexão de si se apresentam
como laboratórios de compreensão da aprendizagem do ofício de viver num
mundo móvel, globalmente não dominado e, no entanto, parcialmente
dominável na medida das individualidades, que se faz e se desfaz sem acessar
e que põe em cheque a crença em uma “identidade adquirida”, em benefício de
uma existencialidade sempre em obra, sempre em construção.”
Ela explica a dimensão do singular plural que deu a suas metodologias
reflexivas, interativas, co-interpretativas os olhares cruzados, um status
particular na construção de saberes sobre as dinâmicas, recursos, estados
evolutivos, dos seres humanos ao longo de sua existência e sobretudo o relato
discursivo, ele mesmo evolutivo, que as pessoas engajadas em nossos
seminários mantêm com os acontecimentos que elas acreditam serem
constitutivos e criadores de sua existência. Eu mostra, por uma opção de
escrita biográfica, a fecundidade do paradigma do singular plural, associado ao
paradigma do experiencial, pelo viés da abordagem biográfica.
E afirma que esse paradigma do singular plural, assim como o do
experiencial, da complexidade e o paradigma sistêmico, não pertence a
nenhuma disciplina em particular, apesar de cada uma tentar apropriar-se dele,
ignorando a contribuição das outras áreas.
Levando em conta as diferentes formas do sensível em nossa formação,
é possível fazer emergir dimensões escondidas de si que redinamizam o
projeto de si porque recompõem os recursos e a coerência pessoal.

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