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TEORIA E PRÁTICA DO CURRÍCULO

AULA 7–

CURRÍCULO:
IDENTIDADE E
ALTERIDADE

Olá!

As concepções acerca da formação das identidades, assim como as teorias


curriculares, podem ser consideradas construções sociais, pois sofreram
modificações ao longo do tempo que propuseram novas visões e ampliaram os
conceitos pertinentes a seu âmbito. Assim, hoje, temos o conceito de identidades
pós-modernas, plurais e mutáveis, em contraposição às identidades modernas, que
eram consideradas fixas, únicas e centradas no indivíduo. O processo de formação
das identidades vai muito além da visão biológica, pois ocorre a partir das
experiências que o sujeito tem com as pessoas, nos grupos e instituições sociais
que frequenta desde o seu nascimento.
Assim, ao apropriar-se das culturas desses espaços, vai constituindo suas
identidades sociais e culturais, que podem alterar-se à medida que mudam as
representações em cada época. Dessa forma, a escola que deseje pôr em prática
um currículo que considere a identidade como foco deverá discutir e proporcionar
problematizações e práticas sobre os conceitos de diversidade, diferença,
alteridade e seus múltiplos temas correlatos.
Neste capítulo, você verá como o currículo escolar se relaciona com a
formação da identidade dos estudantes. Para isso, conhecerá as concepções sobre
identidade, diversidade, alteridade e suas articulações. Além disso, verá a
proposição de um currículo voltado para a formação de identidades pós-modernas.
7 O CURRÍCULO E A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE

As discussões em torno do processo de formação das identidades são atuais,


amplas, importantes e costumam ser realizadas nas áreas de pedagogia, sociologia,
antropologia, psicologia, psicanálise e psicopedagogia, entre outras, que se dedicam
a entender como ocorre o processo de formação do ser humano, ou seja, como o
sujeito se constitui, como adquire as características pessoais que o defi nem, enfi m,
como se transforma em si mesmo.
As teorias que tratam da formação da identidade também sofreram ressignifi
cações com o decorrer das décadas, acompanhando o próprio desenvolvimento das
ciências e da cultura humana. Assim, podemos dizer que temos, hoje, um conceito de
identidade contemporânea, pós-moderna, que serve como balizador para as ações do
currículo escolar. Hall (2006) utiliza três concepções de identidades para que
possamos entender esse processo histórico de mudança sobre o conceito de
identidade que comentamos. A seguir, as concepções de identidade do sujeito do
Iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno.

Sujeito do Iluminismo

A pessoa humana era totalmente centrada, unificada, dotada de capacidades


de razão, consciência e ação, cujo “centro” consistia em um núcleo interior que
emergia ao nascer e, com ele, desenvolvia-se, permanecendo essencialmente o
mesmo, idêntico, ao longo da vida. Esse núcleo era a identidade.

Sujeito sociológico

Reflete a complexidade do mundo moderno e a consciência de que esse núcleo


interior do indivíduo não era autônomo e autossuficiente, mas formado na relação com
outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores,
sentidos e símbolos — a cultura — dos espaços em que habitava. Assim, a identidade
é formada na interação entre o eu e a sociedade, porém, ainda contém um “eu real”,
interior. Assim, a identidade preenche o espaço entre o interior e o exterior, entre o
mundo pessoal e o mundo público.

Sujeito pós-moderno
Não tem mais uma identidade fixa, essencial ou permanente, vindo a ser
composto não somente por uma, mas por várias identidades, algumas vezes
contraditórias e não resolvidas. Assim, a identidade é formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. A identidade é definida
historicamente, e não biologicamente. O sujeito pode assumir diferentes identidades,
em diferentes momentos, que não são unificadas em torno de um “eu” unificado.

Com base nessas mudanças sobre o conceito das identidades, podemos


perceber com maior clareza a importância que tem o currículo para a formação dessas
identidades, uma vez que cabe a esse elemento proporcionar a contextualização das
mudanças sociais e culturais que o mundo tem observado e, assim, promover que as
múltiplas identidades dos estudantes sejam produzidas a partir das interações com o
“outro”, com a percepção das diferenças e a reflexão crítica sobre o que desejam ser
ou, ainda, como querem impactar o mundo e a sociedade a partir do que se tornarão.
Hall (2006), destaca ainda que:

Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de


processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no
momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre
sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”,
sempre “sendo formada”. (HALL, 2006, p. 16).

Dentro desse processo de formação permanente, as instituições sociais se


fazem determinantes, sendo a escola o lugar que a grande maioria das pessoas
frequenta pelo maior número de anos ao longo de suas vidas. Perceba, seguindo
nesse raciocínio, como a seleção de saberes a serem aprendidos pelos estudantes,
realizada pelo currículo, reveste-se de grande importância nesse caso, pois pode
excluir alguns conhecimentos e análises em detrimento de outros.
Ao analisar a contribuição do currículo para a formação das identidades
humanas, buscando um conceito que seja adequado às características
contemporâneas, Moreira (2010, p. 11) destaca que “[...] o currículo constitui
significativo instrumento utilizado por diferentes sociedades tanto para desenvolver os
processos de conservação, transformação e renovação dos conhecimentos
historicamente acumulados como para socializar as crianças e os jovens segundo
valores tidos como desejáveis”.
Podemos afirmar que é dentro desse rol de valores desejáveis que compõe o
currículo que encontramos a contribuição direta para a formação da identidade dos
estudantes. Por isso, é cada vez mais importante e pertinente discutir o currículo e o
que o comporá, procurando ampliar as possibilidades de contato e análise dos alunos
tanto com os conhecimentos quanto com os aspectos da diversidade cultural.
Ao referir-se ao currículo, Apple (1995, p. 60) afirma que, para todo tipo de
currículo, sempre existe “[...] uma política do conhecimento oficial, que exprime o
conflito em torno daquilo que alguns veem simplesmente como descrições neutras do
mundo e outros, como concepções de elite que privilegiam determinados grupos e
marginalizam outros”.
Ou seja, o currículo nunca é neutro, pois costuma ser o resultado de conflitos e
tensões que busca estabelecer os sentidos mais apropriados sobre determinado fato,
conceito ou conhecimento histórico. Assim, a partir das “verdades” que veicula para
os estudantes, o currículo também constrói suas subjetividades, forma o seu eu,
produz sua identidade. Perceba, no exemplo a seguir, como isso pode ocorrer de
forma prática.
Com esse exemplo, podemos refletir sobre como se posicionariam os
estudantes ao ouvirem tal narrativa. Como essa história oficial contada pela escola,
dessa maneira não problematizada, produziria seus efeitos sobre aqueles que têm
sua origem étnica ligada a alguma nação europeia que tenha migrado para o Brasil
ou, então, para aqueles afrodescendentes e indígenas? Pensemos em uma criança
em formação do seu “eu”, de sua subjetividade, realizando aproximações com o
“outro”, com o qual interage para formar sua identidade — esses conceitos sobre o
que se diz, sobre o que significam e simbolizam os grupos culturais são importantes
e, muitas vezes, determinantes de sua constituição.
Esses aspectos tornam as análises sobre o currículo e a formação das
identidades contemporâneas complexas, uma vez que, conforme acrescenta Paraíso:

Um currículo está sempre cheio de ordenamentos, de linhas fixas, de corpos


organizados, de identidades majoritárias. Porém, um currículo também está
cheio de possibilidades de rompimento das linhas do ser; de contágios que
podem nascer e se mover por caminhos insuspeitados; de construção de
modos de vida que podem se desenvolver de formas particulares. É um
artefato com muitas possibilidades de diálogo com a vida; com diversas
possibilidades de modos de vida, de povos e seus desejos. É um artefato com
um mundo a explorar. Afinal, mesmo sendo um espaço disciplinar, por
excelência, muitas coisas podem acontecer em um currículo. (PARAÍSO,
2009)

Assim, mesmo que o currículo se apresente como uma tecnologia educacional


que pretende disciplinar os estudantes e formatá-los por meio da fixação de conteúdos
seletivos vistos como mais apropriados por determinados grupos culturais mais
privilegiados, em sala de aula, como educadores, podemos estabelecer as conexões
e reflexões que considerarmos mais oportunas para que nossos estudantes tenham
melhores possibilidades de análise e crítica sobre tais conhecimentos, reforçando a
construção de suas identidades.
Ao estudar as articulações entre o corpo, as identidades e a escola, buscando
problematizar a forma como as identidades culturais vistas como diferentes se
encontram no ambiente escolar, Louro (2000, documento on-line) destaca que “[...]
não há identidade fora do poder, todas o exercitam e, simultaneamente, todas sofrem
sua ação. As identidades fazem parte dos jogos políticos, ou melhor, as identidades
se fazem em meio a relações políticas”.
Dessa forma, é também no interior da escola, frente às múltiplas relações e
interações realizadas com professores, colegas e demais membros da comunidade
escolar, que as identidades encontram seu espaço de constituição. Assim, o outro, as
diferenças, a diversidade cultural e a alteridade são peças importantes nesse
processo, conforme veremos a seguir.

7.1 Identidade, diversidade, alteridade e o currículo contemporâneo

Para que tenhamos melhores condições de analisar como o currículo escolar


causa impacto na formação das identidades dos estudantes que frequentam a escola,
precisamos conhecer mais detalhadamente o mecanismo de formação da identidade
e suas características recorrentes. Para isso, precisamos retomar o conceito de
cultura, que, neste caso, pode ser utilizado “[...] para se referir a tudo o que seja
característico sobre o ‘modo de vida’ de um povo, de uma comunidade, de uma nação
ou de um grupo social” (HALL, 2016, p. 19). Isso nos remete à reflexão sobre os vários
aspectos antropológicos e sociológicos presentes na cultura que não a restringem
exclusivamente a “[...] um conjunto de coisas — romances e pinturas ou programas
de TV e histórias em quadrinhos — mas, sim, a um conjunto de práticas” (HALL, 2016,
p. 20).
Dessa forma, podemos considerar a escola como uma instituição social que
faz parte do universo cultural da grande maioria da população e afirmar que os
indivíduos que partilham da mesma cultura tendem a apresentar uma interpretação
do mundo semelhante, uma atribuição de sentido sobre as coisas similar, pois
aprenderam no interior das práticas cotidianas dos grupos sociais e instituições nas
quais interagem a respeito desses conceitos e seus significados.
Para compreender melhor como ocorre a formação das identidades, podemos
analisar algumas características inerentes a esse processo, conforme esquematiza a
Figura 1.
Figura 1. Mecanismo de formação da identidade.

NEGAÇÃO

RELAÇÃO DIFERENÇA

Fonte: Adaptada de Woodward (2000).

É interessante constatar que constituímos nossa identidade a partir da negação


daqueles que não somos, ou seja, sou “branco”, porque não sou “negro” ou “amarelo”;
sou um sujeito “calmo”, pois não sou “nervoso” ou “agressivo”. Esse mesmo
mecanismo que me faz definir quem eu sou (ou pretendo ser) exclui as demais
possibilidades de minha existência, normalmente inserindo-me dentro de um sistema
de classificação social que tem representações simbólicas sobre essas diferentes
categorias. Ou seja, quando minha identidade se posiciona como a de alguém
“branco”, por exemplo, assumo todos os significados que essa classificação me
proporciona, incluindo as questões de ter historicamente mais privilégios, de me
encontrar em uma posição que simbolicamente denota maior confiança ou que
associa minha cor às questões de competência profissional, dentre outras.
O segundo ponto é que a identidade é produzida também a partir da marcação
da diferença. Assim, sou da forma como sou porque sou diferente dos demais, com
os quais não me enquadro ou identifico. Aqui, o exercício da alteridade, da percepção
do outro, da experiência atravessada pelo outro é fundamental. Dessa forma, a
identidade “[...] não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença” e
demonstra como as diferenças se estabelecem por meio de sistemas classificatórios
(WOODWARD, 2000, p. 40). É importante salientar que “[...] a diferença é um
elemento central dos sistemas classificatórios por meio dos quais os significados são
produzidos” (WOODWARD, 2000, p. 68).
O problema com a questão da diferença ocorre quando ela é utilizada dentro
desse sistema classificatório para realizar juízo de valor e construir representações
ruins, negativas e que inferiorizem algumas identidades. As diferenças são
marcadores que nos constituem, tornam-nos seres singulares e especiais e, dessa
forma, deveriam ser reconhecidas, valorizadas socialmente e fazer-se presentes nos
currículos escolares e suas práticas.
O terceiro componente é o caráter relacional da identidade: nossa identidade é
produzida a partir das relações que temos nos grupos sociais e nas instituições que
fazem parte de nossas experiências como seres humanos. Assim:

“[...] participamos dessas instituições ou ‘campos sociais’, exercendo graus


variados de escolha e autonomia, mas cada um deles tem um contexto
material e, na verdade, um espaço e um lugar, bem como um conjunto de
recursos simbólicos (WOODWARD, 2000, p. 29)

Ao falarmos sobre esses campos sociais que são importantes e decisivos para
que as relações e interações sociais ocorram e, assim, contribuam para que possamos
produzir nossas identidades, temos que marcar a escola como importante instituição
que as crianças frequentam de forma obrigatória a partir dos quatro anos de idade no
Brasil e que acolhe os mais diversos grupos étnicos e culturais. Assim, as escolas
também possuem seus contextos particulares e seus simbolismos — por exemplo,
uma escola pública pode apresentar-se muito diferente de uma escola privada nas
questões estruturais, curriculares e, até mesmo, em relação ao público que atende.
Ao reforçarmos a importância do outro para a formação da identidade, convém
marcarmos que “[...] é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo
que não é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de
seu exterior constitutivo, que o significado ‘positivo’ de qualquer termo — e, assim,
sua ‘identidade’ — pode ser construído” (HALL, 2000, p. 110).
Pensando sobre os mecanismos de constituição das identidades que viemos
analisando, fica fácil perceber como a alteridade é importante para a nossa formação
humana, afinal, como seríamos sem a convivência, a interação e a interdependência
social que experienciamos cotidianamente nos grupos culturais dos quais
participamos?
Ao refletir sobre o currículo escolar na perspectiva de experiências que
propiciassem um encontro com os desejos dos estudantes, Paraíso (2009), esclarece
que “[...] a experiência é algo que se dá solitariamente, mas que outros vêm cruzá-la,
atravessá-la, compor com ela. Na experiência saímos sempre transformados; e o
mundo também se transforma”. Dessa forma, ainda que a experiência seja subjetiva,
tenha efeitos internos, muitas vezes depende de um exercício de alteridade, do apoio
ou oposição do outro para que ocorra. Assim, que bom seria que os estudantes
experienciassem no currículo escolar oportunidades de realizar trocas com os
múltiplos aspectos da diversidade que habita a escola, seja ela étnica, religiosa, de
gênero, de classe social ou orientação sexual — com isso, certamente, o mundo
poderia vir a transformar-se em algo melhor e mais humano.
É importante, portanto, que possamos colocar em prática nas escolas o
exercício da alteridade, do reconhecimento da importância do outro, com a potência
de suas diferenças e semelhanças para a formação de todos ali presentes; que o outro
possa deixar de ser visto como nas visões modernas do currículo, das quais Skliar
alerta:

As conclusões, já conhecidas, sobre a relação entre modernidade, educação


e escola são evidentes: o tempo da modernidade e o tempo da escolarização
insistem em ser, como decalques, temporalidades que só desejam a ordem,
que teimam em classificar, em produzir mesmidades homogêneas, íntegras,
sem fissuras, a salvo de toda contaminação do outro; espacialidade da
modernidade e o espaço escolar insistem em ser, como irmãs de sangue,
espacialidades que só buscam restringir o outro para longe de seu território,
de sua língua, de sua sexualidade, de seu gênero, de sua idade, de sua raça,
etc. (Skliar, 2003).

Dessa forma, se queremos investir em um currículo que possa formar os


estudantes para um convívio social condizente com as características da sociedade
contemporânea, em que todos os grupos culturais e identitários tenham espaço igual
de aceitação e oportunidades, temos que propor discussões e práticas nas quais o
outro seja percebido em toda a sua diversidade.

7.2 Um currículo voltado para a formação da identidade

Aprendemos anteriormente que o currículo escolar não é um terreno neutro,


uma vez que é fruto de conflitos, tensões e disputas em torno dos signos, símbolos
de significados que farão parte da formação da identidade dos alunos. Logo, cabe
dizer que existe um jogo de poder envolvido com a questão curricular, poder daqueles
grupos que podem determinar e impor como regra os saberes a serem aprendidos, a
forma como isso será feito e o projeto de pessoa que será, a partir dessas práticas
curriculares, constituída. Vamos analisar, agora, como deveria ser um currículo pós-
moderno, que se preocupe com a formação das identidades de seus estudantes. Esse
currículo deveria conter elementos como, por exemplo: alteridade; empatia;
diversidade cultural; colonialidade; interculturalidade; diferenças; inclusão;
experiência; resistência; resiliência; criticidade; dialogicidade.
Embora possa parecer algo simples, é preciso entender que a alteridade é
fundamental para o despertar, para o reconhecimento de quem nós somos a partir do
outro. Esse exercício de alteridade apresenta uma resistência por parte de muitos
grupos culturais que ainda endossam as características da busca por um ser
padronizado típico da modernidade. Ao analisar a alteridade e sua relação com a
diversidade, Duschatzky e Skliar (2001, p. 120) destacam três versões discursivas que
são utilizadas para tratar o tema nos dias atuais: “[...] o outro como fonte de todo o
mal”, “[...] o outro como sujeito pleno de um grupo cultural”, “[...] o outro como alguém
a tolerar”. Acompanhe as características de cada uma dessas versões:

O outro como fonte de todo o mal:

É a visão que impera ao longo do século XX, quando houve conflitos bélicos,
genocídios, matanças étnicas, apartheid, ditaduras militares, violência contra
imigrantes, etc. Também se constroem mecanismos de regulação internos por meio
de leis e normas que fazem com que o outro se invisibilize, estando ausente também
dos acontecimentos e discussões históricas em prol dos privilegiados. Assim, regula-
se o outro a partir das políticas do conhecimento oficial estabelecidas também na
escola

O outro como sujeito pleno de um grupo cultural

Nesta perspectiva, as culturas representam comunidades homogêneas de


crenças e estilos de vida, como se fossem redes perfeitamente tecidas capazes de
capturar tudo e todos. Assim, passamos a entender que todos vivem suas culturas do
mesmo modo. Cada sujeito adquire identidades plenas a partir de únicas marcas de
identificação, como se, por acaso, as culturas se estruturassem independentemente
de relações de poder e hierarquia.

O outro como alguém a tolerar

Aqui, busca-se o exercício ambíguo da tolerância em que o que se tolera são


os grupos, deixando de lado os aspectos dos indivíduos. Assim, é por meio da
assimilação e do reconhecimento dos outros grupos que se consegue alguns direitos.
A conquista da cidadania de judeus, operários, mulheres, negros e imigrantes
significou um passo decisivo no terreno dos direitos humanos. Porém, o princípio do
reconhecimento se sustentou na homogeneidade, na igualação, e não na diferença.
Ser cidadão no caráter de indivíduo igual, e não no caráter de sujeito diferente, é o
que precisa ser modificado.
Muitas vezes, no interior das escolas, temos a oportunidade de levar os alunos
a experienciar a alteridade, fazendo com que se relacionem, interajam e produzam
algo junto a seus colegas a partir da percepção de seus traços culturais, de suas
marcas identitárias. No entanto, acabamos fixando-nos nos livros didáticos e em seus
conteúdos ou nos conhecimentos dos quais temos que dar conta ao longo de um dia
letivo, não é mesmo? Assim, podemos estar reduzindo o conceito da alteridade a
simples exercícios de empatia, que também são importantes, porém, incapazes de
produzir sozinhos uma sociedade melhor e mais igualitária.
A diversidade cultural surge na contemporaneidade como um grande
enunciado que passa a constituir as políticas públicas educacionais, sobretudo com a
intenção de criar uma escola universal, que todos possam frequentar sem distinções
ou problemas de nenhuma ordem. Embora essa possa ser a intenção dos discursos
das políticas educacionais, as práticas escolares nem sempre se apresentam dessa
maneira, e a diversidade pode acabar por ofuscar as discussões em torno das
diferenças entre as pessoas. Assim, a diversidade cultural não deve reduzir-se à falta
existente nos outros, ao déficit que possuem em comparação com os demais; pelo
contrário, deve buscar a problematização das assimetrias de poder e saber existentes
nos grupos culturais, reivindicando seu equilíbrio, conforme o que aspira a
interculturalidade.
Outro ponto importante a integrar o currículo que se volta para a produção de
identidades contemporâneas é discutir o conceito de colonialidade, ou seja, como as
relações coloniais estabelecidas ainda mantêm resquícios hoje que pautam o
comportamento dos grupos sociais, principalmente considerando as relações
econômicas capitalistas. Assim, devemos investir em uma abordagem pedagógica
decolonial e antirracista, uma vez que o conceito de raça pode ser visto como uma
abstração, uma invenção moderna criada para classificar e posicionar grupos sociais.
Oliveira e Candau (2010, documento on-line) esclarecem, em referência ao termo
raça, que “[...] esse conceito operou a inferiorização de grupos humanos não-
europeus, do ponto de vista da produção da divisão racial do trabalho, do salário, da
produção cultural e dos conhecimentos”, fator que, em alguns casos, parece estar em
funcionamento até os dias de hoje.
Ao analisar a identidade e suas relações com as diferenças que nos constituem,
Silva (2000, documento on-line) esclarece que “[...] em uma primeira aproximação,
parece ser fácil definir ‘identidade’. A identidade é simplesmente aquilo que se é: ‘sou
brasileiro’, ‘sou negro’, ‘sou heterossexual’, ‘sou jovem’, ‘sou homem’”. Vendo por essa
perspectiva, a identidade é positivada, pois nos permite dizer o que somos de forma
plena e autossuficiente.
Isso também ocorreria com a diferença, pois “também a diferença é concebida
como uma entidade independente. Apenas, neste caso, em oposição à identidade, a
diferença é aquilo que o outro é: ‘ela é italiana’, ‘ela é branca’, ‘ela é homossexual’,
‘ela é velha’, ‘ela é mulher’”. Embora não pareça, “[...] identidade e diferença estão em
uma relação de estreita dependência” (SILVA, 2000, documento on-line). Dessa
forma, um currículo que se volte para a identidade deverá estar constantemente
mapeando e proporcionando análises acerca das diferenças sociais.
É nesse cenário das diferenças que temos vivenciado na contemporaneidade
o discurso da inclusão escolar, considerada por alguns autores como um processo de
in/exclusão, pois, se alguém precisa ser aceito, incluído, é porque está vivendo alheio,
excluído pelos outros e pela sociedade, não é mesmo? Esse discurso, presente
inclusive no documento que norteia nossos currículos da educação básica na
contemporaneidade, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), envolve todos,
sejam grupos identitários diversos ou, ainda, aqueles que possuem algum tipo de
deficiência. Ao comentar sobre a necessidade de uma preparação prévia para a
inclusão escolar, Lopes (2007), afirma que:

Se todos vivemos momentos de in/exclusão, se pessoas de distintas raças/


etnias, religiosidades, gênero, etc. já estão na escola, desde há muito tempo,
a inclusão já começou. Nesse sentido, não posso curvar-me, negando-me a
trabalhar com estes sujeitos. Concordo que somente dedicação, habilidades
específicas e entendimento da tarefa de ensinar como uma missão não são
atributos para desencadear um processo melhor articulado que trabalhe com
um mínimo de condições de “sucesso”. Precisamos ter saber sobre aqueles
com os quais trabalhamos. Saberes que vão além da minha leitura sobre as
condições de vida de meus alunos, ou seja, preciso de saberes que me
possibilitem trabalhar desencadeando processos de aprendizagem. (LOPES,
2007, p. 27).

Acompanhando a reflexão da autora, o currículo que se volte para a formação


de identidades que propomos deveria compreender que os professores também
precisam ser renovados em termos de saberes e práticas pedagógicas, pois
necessitam compreender como ocorrem os processos de subjetivação de seus
alunos, como a diferença e a identidade são independentes e como uma postura não
problematizada de inclusão poderá produzir mais marcas e estigmas naquele
“incluído” do que antes, reforçando, dessa maneira, sua exclusão.
Cabe aos professores permitir o diálogo sobre as diferenças, analisando
possíveis formas de resistência e enaltecendo a resiliência apresentada por muitos
alunos que experienciam situações de preconceito e discriminação sociais por suas
características identitárias que se desviam das normas socialmente aceitas. Deve-se
buscar o exercício da criticidade com os alunos e o desenvolvimento de uma visão de
mundo mais abrangente, em que as realidades sociais sejam analisadas com o intuito
de produzir um mundo melhor.
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