O presente ensaio visa refletir acerca de duas possibilidades de identidades infantis, o ser
criança ao mesmo tempo do ser aluno. Buscamos aqui problematizar os conflitos e acordos,
refletindo sobre as imposições e sobreposições acerca destas identidades durante a vida de
crianças e adolescentes. Para tanto apresentaremos algumas questões pertinentes à identidade
sob a ótica dos estudos culturais, para então pensar como a ideologia e a experiência podem
interferir nessa identidade. Na sequência apontaremos como a sociologia da infância
contribuiu para esse novo olhar sobre a criança e o adolescente, revelando-os sujeitos de
direitos, para enfim, focar em dados empíricos sobre as identidades criança-aluno e aluno-
criança. A partir dessa compilação de dados teóricos e empíricos compreendemos que a
identidade do ser criança pode compor a escola, mas para isso algo novo precisaria surgir,
uma escola que percebe, reconhece e valoriza as transformações ocorridas perante o processo
de globalização. Dentre elas o entendimento de que o lazer, o brincar e as experiências lúdicas
sejam possibilidades educativas, com vistas à transformação de uma sociedade mais humana,
na qual a autonomia e a liberdade possam ser vias de formação humana dentro e fora das
escolas.
No trabalho Intelectual sério e crítico não existem “inícios absolutos” e poucas são
as continuidades inquebrantadas. [...] o que importa são as rupturas significativas
[...] Mudanças em uma problemática transformam significativamente a natureza das
questões propostas e as formas como são propostas[...] (2003, p.131)
Dessa forma, o início desse texto também não se faz absoluto, ele ocorre como uma
continuidade no trabalho de três professoras pesquisadoras brasileiras de pós-graduação, do
sul do país, com formação no campo pedagógico e sociocultural da Educação Física, com
uma recente ruptura significativa, o adentramento aos Estudos Culturais, com o objetivo de
olhar, a partir dessa ótica, os objetos que vem se constituindo como interessantes às pesquisas
relativas à infância, ao lazer, à cidade e à escola, produzindo assim uma tentativa de
transformação significativa.
1
Dados publicados na Monografia de conclusão de curso de Licenciatura em Educação Física de título “Os
espaços de lazer da cidade de Siqueira Campos/PR: Na defesa do direito do brincar como forma privilegiada do
desenvolvimento humano”, em 2018.
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Nosso recorte nesse texto se limita a duas dessas possibilidades ao tratarmos
especificamente sobre a infância, o ser criança e o ser aluno. Sabemos que para além dessas
identidades ainda há muitas outras, como as identidades de gênero, as étnicos-raciais, de
classes econômicas, da condição de pessoa com deficiência, religiosas, dentre outras. Para que
a devida discussão pudesse ser realizada ao olhar para essas identidades, um maior
aprofundamento teórico-empírico seria necessário.
Por hora, apresentaremos algumas questões pertinentes à identidade sob a ótica dos
estudos culturais, para então pensar como a ideologia e a experiência podem interferir nessa
identidade. Na sequência apontaremos como a sociologia da infância contribuiu para esse
novo olhar sobre a criança e o adolescente, revelando-os sujeitos de direitos, para enfim, focar
em dados empíricos sobre as identidades criança-aluno e aluno-criança.
Nem sempre escolhemos entre uma coisa ou outra, algumas vezes vivenciamos a
simultaneidade de uma coisa e outra (BAPTISTA, 2019), na qual a perspectiva da exclusão se
minimiza, enquanto a da inclusão de outros papéis, modos e estilos se confluem, misturando-
se e criando novas possibilidades. Hall nos esclarece que “as velhas identidades, que por tanto
tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado.” (2006, p.7)
Essa fragmentação, causada em grande parte pela globalização, a troca rápida e quase
instantânea de informações, práticas culturais e modos de existência, auxilia a gerar várias
identidades possíveis, que regularmente se sobrepõe umas às outras. Obviamente isso não
ocorre de forma pacífica todas as vezes, há momentos de acordos, mas também de
resistências, enfrentamentos e/ou mesmo táticas de desvios.
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Ao observar nosso objeto desse ponto, trazemos uma narrativa do senso comum
referente à escola na atualidade, segundo a qual, antes da virada cultural, que teve como ponto
de inflexão o maio de 68, os alunos obedeciam a seus professores, seguiam as regras,
respeitavam e cumpriam o que lhes era requisitado. Uma identidade fixa, verdade tácita,
imutável, na qual o ser aluno significava invariavelmente ser uma figura subalterna à figura
docente e às regras da instituição.
Estabelece-se uma cisão do que era e não é mais, uma crise escolar que questiona
inclusive a necessidade da continuidade da existência dessa instituição. Essa crise existiu e
continua a existir, não somente na escola, mas na própria credibilidade das instituições.
Certeau (2006) fala da “revolução do crível”, daquilo que já não se pode crer pois não possui
correspondência com a vida real, e Hall corrobora quando diz que
Esse abalo nos quadros de referência ocorre na medida em que o poder deixa de se
fundamentar apenas em polos específicos, como a Igreja, o Estado, bem como a Escola e o
Professor. Mesmo esses polos continuando a existir e exercendo ainda muito poder, ele se
descentra, descentrando também as subjetividades dos sujeitos, fragmentando-o em inúmeras
identidades possíveis.
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O REPENSAR SOBRE A CRIANÇA NO SÉCULO XX: A SOCIOLOGIA DA
INFÂNCIA
Um ponto de relevância nesse panorama de quebra de paradigmas foi o repensar a
criança a partir do desenvolvimento da sociologia da infância, movimento oriundo da França
e Inglaterra, que tiveram como precursores Sirota (2001) e Montandon (2001). Apesar de
recente em termos de produção e de constituição enquanto área de estudos e pesquisas, a
Sociologia da Infância contribuiu de maneira significativa para o rompimento da concepção
uniformizadora que se admitia até então sobre a infância e instaurou uma nova perspectiva
para os estudos em torno do fenômeno social relacionada a esta fase da vida (NASCIMENTO
et al, 2013).
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Essa recém-cidadã, a criança, agora fruía direitos que antes não possuía. Tem estatuto
de pessoa e desse modo precisa ser respeitada como um ser pensante, ativo, que interage e
produz cultura. Uma gama de adjetivos conflitantes com a então fixa identidade de ser aluno.
IDEOLOGIA E EXPERIÊNCIA
não há correspondência necessária, [...]. Significa que não há lei que garanta que a
ideologia de uma classe esteja gratuita e inequivocamente presente ou corresponda a
posição que essa classe ocupa nas relações econômicas de produção capitalista
(HALL, 2003, p.165)
De acordo com os culturalistas citados por Hall2 o que os atores sociais fazem na
estrutura que a ideologia organiza origina-se da experiência individual, compreendida como
fonte de cultura, da qual nasce o que a realidade nos apresenta como materialidade do que nos
é possível viver. Um “Solo, terreno do vivido em que [interagem] condição e a consciência”
(p.147) que se materializa na prática.
2
Em oposição aos chamados “estruturalistas”, Hall mostra que os Culturalistas viam na cultura o polo que
impulsiona a história humana. Para Hall (2003, p. 153), o Culturalismo “insistiu, corretamente, no momento
afirmativo de desenvolvimento da organização e da luta consciente como elemento necessário a análise da
história, da ideologia e da consciência”.
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A prática é a forma como uma estrutura é ativamente reproduzida. Contudo, ambos
os termos [estrutura e experiência] são necessários para que se evite o risco de tratar
a história como nada mais do que o produto de uma máquina internamente
estruturalista que se auto-impulsiona. (HALL,2003, p.167)
Dessa forma, mesmo com as fixações arbitrárias da ideologia, a fonte da prática social
seria a experiência dos sujeitos. Fica a questão: E se esses sujeitos forem crianças e
adolescentes sob a obrigatoriedade da frequência escolar, como a prática interage com a
estrutura?
ANÁLISE E DISCUSSÕES
Utilizaremos em conjunto esses termos ao refletir que ao ser criança, esse sujeito
também se encontra na condição de aluno. Isso faz parte do seu conjunto de características
que conferem a ele identidade, a escola onde estuda, a série, como é seu comportamento
(estudioso, bagunceiro, displicente). Também se é uma escola grande, ou uma pequena,
pública ou privada, dentre outros atributos.
3
Num sentido mais generalizado, levando em conta aquela na qual os direitos básicos são respeitados como
alimentação, educação, saúde e segurança, isto é, aquela criança que se encontra numa situação na qual se
alimenta todos os dias, vai à escola, possui roupas confortáveis e limpas e convive com segurança em uma
família. Sabemos que no Brasil essa não é a realidade de todas as crianças e adolescentes.
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racial, local de residência, sua organização familiar, classe econômica, dentre outros. E a
condição que ressaltamos aqui é a de ser criança (ou adolescente), na qual a brincadeira, a
ludicidade estão evidenciadas e a noção de futuro ainda não é palpável. Tudo isso se imbrica
na escola.
Ao pensar nessas identidades, ora sobrepostas, ora cambiantes, iniciemos pela criança-
aluno, que como já vimos, é sujeito de direitos e expressa-se através de sua cultura, sobretudo
a lúdica, por meio dos jogos, brincadeiras e fantasia. Para materializar essa identidade,
trazemos os dados de um estudo qualitativo, no qual foram observados dois locais distintos de
uma mesma cidade do interior do Paraná. Uma praça localizada num bairro residencial (Praça
da Gruta) e a outra no centro da cidade (Rua das Flores).
Houve uma grande diferença dos espaços em relação a autonomia das crianças ao se
deslocarem até os parquinhos, uma vez que na Praça da Gruta a maioria das crianças se
direcionavam a ela sem o acompanhamento dos pais ou responsáveis, de forma autônoma, e
se reuniam por meio dos grupos de afinidade para juntos brincarem durante a tarde, enquanto
na Rua das Flores as crianças estavam sempre acompanhadas de uma responsável.
Essas diferentes formas de apropriação das crianças para com o espaço da cidade,
nesse caso praça e parquinho, demonstram certa possibilidade de liberdade. Na pesquisa em
questão, de acordo com as entrevistas com os responsáveis, a iniciativa por ir aos espaços era
das crianças, o que ocorria em geral duas vezes por semana.
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Imagem 1: Crianças brincando de bolinha de gude na praça da gruta
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em pé, as quais deveriam estar sentadas, bem como os brinquedos de casa complementando a
estrutura de areia do espaço.
A regularidade e a iniciativa das crianças nos permitem pensar que brincar e jogar
nesses espaços é importante para elas, faz parte do seu modo de se expressar, inclusive
corporalmente e de forma mais livre do que em espaços institucionais, como a escola.
Quando fui assistir a uma aula, lembrei logo do tédio que são as aulas
expositivas. Uma pessoa fala na frente e todos ficam ouvindo, mas
ninguém decide sobre o que será lido ou sobre o que será discutido,
Ensino Médio Bahia mas vai se seguindo o programa predefinido, sabe-se lá por quem. Aos
estudantes cabem responder às perguntas feitas pelo(a) professor(a)
quando este(a) permite a palavra. (MORAES, 2000, p.59)
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Com as descrições vemos similaridades entre as rotinas, revelando uma forma escolar
comum. É relevante salientar que são descrições de diferentes anos, diferentes (e distantes)
estados do Brasil, bem como diferentes níveis de ensino, mostrando uma regularidade na
forma escolar, marcada pela passividade, pela docilidade e pelo controle.
Essas atitudes, não raro, geram sanções aos alunos. As práticas e a estrutura que
exigem da criança a identidade de ser aluno na maior parte do tempo, deixando apenas
pequenos, e insuficientes, interstícios de tempos e espaços, disponíveis para a vivência do ser
criança.
Se na escola essas crianças são vistas primordialmente como alunos, com todas as
características que essa nomenclatura acarreta, e que desse modo devem se portar, vemos aí
uma crise anunciada, pois esses sujeitos não deixam suas identidades no portão ao adentrarem
a escola, mas sim carregam consigo e quando percebem brechas as expressam de variadas
formas. No máximo escondem essa identidade para que, no primeiro momento possível,
possam expressá-la.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao pensarmos nas crianças, ora possuem mais liberdade de escolher onde estar e o que
fazer, como na rua quando brincam com seus pares, ora menos liberdade, como quando estão
na escola, por exemplo. Embora na rua não sejam completamente livres, pois possuem
limitações de horários, locais e companhias; também na escola não são completamente
privados de liberdade, pois podem encontrar (e encontram!) brechas que os permitem escapes
na disciplina cotidiana, como, por exemplo, pedir para ir ao banheiro, mesmo sem a
necessidade fisiológica, e aproveitar a saída para um pequeno (mas presente) passeio na
escola.
Como aponta Rechia (2019), ao tratarmos as práticas sociais pela ótica dos estudos
culturais a soma “um mais um dificilmente resulta em dois, ela geralmente soma três”, isto é,
quando duas práticas culturais distintas são mescladas algo novo é formado, algo diferente
que nasce da diversidade, da interlocução e principalmente da permeabilidade dos sujeitos que
as praticam.
Enfim compreendemos que a identidade do ser criança pode compor a escola, mas aí
uma terceira coisa precisaria surgir: uma escola que percebe, reconhece e valoriza as
transformações ocorridas perante o processo de globalização. Dentre elas, o entendimento de
que o lazer, o brincar e as experiências lúdicas sejam possibilidades educativas, com vistas à
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transformação de uma sociedade mais humana, na qual a autonomia e a liberdade possam ser
vias de formação humana dentro e fora das escolas.
RESUME
This essay aims to reflect on two possibilities of children's identities: being a child at the same
time as being a student. Here we seek to problematize conflicts and agreements, reflecting on
the impositions and overlaps about these identities during the lives of children and
adolescents. For this purpose, we will present some pertinent questions about identity from
the perspective of cultural studies, and then think about how ideology and experience can
interfere in this identity, then we will point out how the sociology of childhood contributed to
this new look at children and adolescents, revealing -the subjects of rights, in short, focus on
empirical data on the identities of child-student and student-child. From this compilation of
theoretical and empirical data, we understand that the identity of being a child can compose
the school, but for this, something new would need to emerge, a school that perceives,
recognizes and values the transformations that have occurred in the face of the globalization
process. Among them, the understanding that leisure, playing and playful experiences are
educational possibilities, with a view to transforming a more humane society, in which
autonomy and freedom can be ways of human formation inside and outside schools.
RESUMEN
Este ensayo tiene como objetivo reflexionar sobre dos posibilidades de las identidades de los
niños: ser un niño al mismo tiempo que ser un estudiante. Aquí buscamos problematizar
conflictos y acuerdos, reflexionando sobre las imposiciones y superposiciones sobre estas
identidades durante la vida de niños y adolescentes. Para este propósito, presentaremos
algunas preguntas pertinentes sobre la identidad desde la perspectiva de los estudios
culturales, y luego pensaremos en cómo la ideología y la experiencia pueden interferir en esta
identidad, luego señalaremos cómo la sociología de la infancia contribuyó a esta nueva
mirada a los niños y adolescentes, revelando -los sujetos de derechos, en resumen, se centran
en datos empíricos sobre las identidades de niño-estudiante y estudiante-niño. A partir de esta
compilación de datos teóricos y empíricos, entendemos que la identidad de ser un niño puede
componer la escuela, pero para esto, sería necesario que surgiera algo nuevo, una escuela que
perciba, reconozca y valore las transformaciones que se han producido frente al proceso de
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globalización. Entre ellos, la comprensión de que el ocio, el juego y las experiencias lúdicas
son posibilidades educativas, con miras a transformar una sociedad más humana, en la que la
autonomía y la libertad pueden ser formas de formación humana dentro y fuera de las
escuelas.
REFERÊNCIAS
BORGES, Luís Paulo Cruz. O futuro da escola: uma etnografia sobre a relação dos jovens
com o conhecimento escolar. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Faculdade de Educação. 151 f. 2018.
CAVALCANTE, Edemar Amaral. JÚNIOR, Adail Sebastião Rodrigues. A sala de aula sob o
olhar etnográfico: Um estudo de caso. Presença Pedagógica.v.11. n.63. maio/jun. 2005
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Liv Sovik (org); Trad.
Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da
Unesco no Brasil, 2003.
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MONTANDON, Cléopâtre. Sociologia da infância: balanço dos trabalhos em língua inglesa.
Cadernos de Pesquisa [online]. 2001, n.112, pp.33-60. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-
15742001000100002.
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