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IDENTIDADES INFANTIS: O SER CRIANÇA

E O SER ALUNO NA PERSPECTIVA DOS


ESTUDOS CULTURAIS
Amanda Correia dos Santos1, Ms.Karine do Rocio Vieira dos Santos2,
Dra.Simone Rechia3
1,2,3
Universidade Federal do Paraná
¹e-mail: amandacs2677@gmail.com
²e-mail: karinesantos@ufpr.br
3
e-mail: simone@ufpr.br
RESUMO

O presente ensaio visa refletir acerca de duas possibilidades de identidades infantis, o ser
criança ao mesmo tempo do ser aluno. Buscamos aqui problematizar os conflitos e acordos,
refletindo sobre as imposições e sobreposições acerca destas identidades durante a vida de
crianças e adolescentes. Para tanto apresentaremos algumas questões pertinentes à identidade
sob a ótica dos estudos culturais, para então pensar como a ideologia e a experiência podem
interferir nessa identidade. Na sequência apontaremos como a sociologia da infância
contribuiu para esse novo olhar sobre a criança e o adolescente, revelando-os sujeitos de
direitos, para enfim, focar em dados empíricos sobre as identidades criança-aluno e aluno-
criança. A partir dessa compilação de dados teóricos e empíricos compreendemos que a
identidade do ser criança pode compor a escola, mas para isso algo novo precisaria surgir,
uma escola que percebe, reconhece e valoriza as transformações ocorridas perante o processo
de globalização. Dentre elas o entendimento de que o lazer, o brincar e as experiências lúdicas
sejam possibilidades educativas, com vistas à transformação de uma sociedade mais humana,
na qual a autonomia e a liberdade possam ser vias de formação humana dentro e fora das
escolas.

Palavras-chave: Escola. Estudos Culturais. Lazer. Identidade.


INTRODUÇÃO

O presente ensaio visa refletir acerca de duas possibilidades de identidades infantis, o


ser criança ao mesmo tempo do ser aluno. Buscamos aqui problematizar os conflitos e
acordos, refletindo sobre as imposições e sobreposições acerca destas identidades durante a
vida de crianças e adolescentes.
Partimos da convicção de que nada surge do nada, isto é, como Hall aponta

No trabalho Intelectual sério e crítico não existem “inícios absolutos” e poucas são
as continuidades inquebrantadas. [...] o que importa são as rupturas significativas
[...] Mudanças em uma problemática transformam significativamente a natureza das
questões propostas e as formas como são propostas[...] (2003, p.131)

Dessa forma, o início desse texto também não se faz absoluto, ele ocorre como uma
continuidade no trabalho de três professoras pesquisadoras brasileiras de pós-graduação, do
sul do país, com formação no campo pedagógico e sociocultural da Educação Física, com
uma recente ruptura significativa, o adentramento aos Estudos Culturais, com o objetivo de
olhar, a partir dessa ótica, os objetos que vem se constituindo como interessantes às pesquisas
relativas à infância, ao lazer, à cidade e à escola, produzindo assim uma tentativa de
transformação significativa.

Partiremos da reflexão das identidades infantis das brincadeiras na rua, ligadas à


autonomia que algumas crianças vivem em bairros residenciais de uma cidade de interior do
estado do Paraná (Brasil) 1. A outra é a identidade de alunos que as crianças assumem quando
estão sob a tutela da instituição escolar, algo comum a muitos sujeitos que vemos nas mais
diferentes escolas espalhadas pelo país.

Compreender esse movimento de diferentes identidades possíveis em diferentes


espaços sociais nos quais vivem, requer considerarmos esses sujeitos plurais, uma vez que
estão se constituindo (assim como também os adultos) em meio a uma sociedade pós-
moderna não mais com identidades fixas, mas em constante processo de deslocamento.

1
Dados publicados na Monografia de conclusão de curso de Licenciatura em Educação Física de título “Os
espaços de lazer da cidade de Siqueira Campos/PR: Na defesa do direito do brincar como forma privilegiada do
desenvolvimento humano”, em 2018.

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Nosso recorte nesse texto se limita a duas dessas possibilidades ao tratarmos
especificamente sobre a infância, o ser criança e o ser aluno. Sabemos que para além dessas
identidades ainda há muitas outras, como as identidades de gênero, as étnicos-raciais, de
classes econômicas, da condição de pessoa com deficiência, religiosas, dentre outras. Para que
a devida discussão pudesse ser realizada ao olhar para essas identidades, um maior
aprofundamento teórico-empírico seria necessário.

Por hora, apresentaremos algumas questões pertinentes à identidade sob a ótica dos
estudos culturais, para então pensar como a ideologia e a experiência podem interferir nessa
identidade. Na sequência apontaremos como a sociologia da infância contribuiu para esse
novo olhar sobre a criança e o adolescente, revelando-os sujeitos de direitos, para enfim, focar
em dados empíricos sobre as identidades criança-aluno e aluno-criança.

A IDENTIDADE SOB A ÓTICA DOS ESTUDOS CULTURAIS

Um dos marcos dos estudos culturais foi reconhecer as identidades na pós-


modernidade como plurais e cambiantes, tudo isto de forma simultânea num mesmo sujeito.
Em determinados tempos e espaços somos de um jeito, assumimos certos valores, enquanto
em outros, isso se modifica, ou mesmo se sobrepõe.

Nem sempre escolhemos entre uma coisa ou outra, algumas vezes vivenciamos a
simultaneidade de uma coisa e outra (BAPTISTA, 2019), na qual a perspectiva da exclusão se
minimiza, enquanto a da inclusão de outros papéis, modos e estilos se confluem, misturando-
se e criando novas possibilidades. Hall nos esclarece que “as velhas identidades, que por tanto
tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado.” (2006, p.7)

Essa fragmentação, causada em grande parte pela globalização, a troca rápida e quase
instantânea de informações, práticas culturais e modos de existência, auxilia a gerar várias
identidades possíveis, que regularmente se sobrepõe umas às outras. Obviamente isso não
ocorre de forma pacífica todas as vezes, há momentos de acordos, mas também de
resistências, enfrentamentos e/ou mesmo táticas de desvios.

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Ao observar nosso objeto desse ponto, trazemos uma narrativa do senso comum
referente à escola na atualidade, segundo a qual, antes da virada cultural, que teve como ponto
de inflexão o maio de 68, os alunos obedeciam a seus professores, seguiam as regras,
respeitavam e cumpriam o que lhes era requisitado. Uma identidade fixa, verdade tácita,
imutável, na qual o ser aluno significava invariavelmente ser uma figura subalterna à figura
docente e às regras da instituição.

A partir da década de 60 e com mais força na década de 70, inicia-se um repensar


dessa relação, que, ainda sob o entendimento do sendo comum, gera uma noção
diametralmente oposta na escola. A desvalorização e desrespeito à instituição escolar e ao
papel docente.

Estabelece-se uma cisão do que era e não é mais, uma crise escolar que questiona
inclusive a necessidade da continuidade da existência dessa instituição. Essa crise existiu e
continua a existir, não somente na escola, mas na própria credibilidade das instituições.
Certeau (2006) fala da “revolução do crível”, daquilo que já não se pode crer pois não possui
correspondência com a vida real, e Hall corrobora quando diz que

A assim chamada “crise de identidade" é vista como parte de um processo mais


amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das
sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos
uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2006, p.7)

Esse abalo nos quadros de referência ocorre na medida em que o poder deixa de se
fundamentar apenas em polos específicos, como a Igreja, o Estado, bem como a Escola e o
Professor. Mesmo esses polos continuando a existir e exercendo ainda muito poder, ele se
descentra, descentrando também as subjetividades dos sujeitos, fragmentando-o em inúmeras
identidades possíveis.

Tais identidades manifestam-se nos diferentes espaços sociais, territórios das


manifestações culturais, privilegiando algumas e minimizando outras, dentre elas as infantis, e
possuem uma organização que nos revela grandes marcas de disputas de poder e conflitos
institucionais, ideológicos, econômicos e sociais que se acirram cada vez mais no pensar e
repensar sobre o que é importante e o que, paulatinamente, deixa de ser.

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O REPENSAR SOBRE A CRIANÇA NO SÉCULO XX: A SOCIOLOGIA DA
INFÂNCIA
Um ponto de relevância nesse panorama de quebra de paradigmas foi o repensar a
criança a partir do desenvolvimento da sociologia da infância, movimento oriundo da França
e Inglaterra, que tiveram como precursores Sirota (2001) e Montandon (2001). Apesar de
recente em termos de produção e de constituição enquanto área de estudos e pesquisas, a
Sociologia da Infância contribuiu de maneira significativa para o rompimento da concepção
uniformizadora que se admitia até então sobre a infância e instaurou uma nova perspectiva
para os estudos em torno do fenômeno social relacionada a esta fase da vida (NASCIMENTO
et al, 2013).

Foi também por meio da implementação de estatutos e documentos oficiais


internacionais, como a Declaração sobre os Direitos da Criança de Genebra (DDC, 1924),
Declaração sobre os Direitos da Criança (DUDC, 1959) e a Convenção Internacional dos
Direitos da Criança (CDC, 1989), esta última ratificada no Brasil em 24 de setembro de 1990
(FERRONATO e BATISTA, 2013), que a criança se legitima como sujeito de direitos.

A Convenção Internacional dos Direitos da Criança (CDC), em 1989, foi um marco


expressivo e transpôs barreiras relacionadas aos direitos da criança. De acordo com
Hammarberg (apud SOARES, 1997, p. 106), os direitos da criança estabelecidos na CDC
(1989) podem ser classificados como: 1) direitos relativos à provisão: reconhecem-se os
direitos sociais (saúde, educação, segurança social, cuidados físicos, vida familiar, recreio e
cultura); 2) direitos relativos à proteção: trata-se de proteger a criança da discriminação, abuso
físico e sexual, da exploração, da injustiça e do conflito; e 3) direitos relativos à participação:
são aqueles direitos civis e políticos, tais como o direito ao nome e à identidade, o direito à
liberdade de expressão e de opinião e o direito a tomar decisões em seu proveito.

Sarmento, Abrunhosa e Soares (2007, p. 59) nos apontam que,

A ideia de criança como sujeito de direito, como cidadã, especificamente detentora


de um conjunto de direitos de participação, os quais lhe conferem legitimidade para
intervir nos assuntos relacionados com a sua vida, embora continue sendo muito
pouco referenciada, é uma das principais conquistas que a Convenção dos Direitos
da Criança (CDC) acrescentou a concepção de uma infância ativa e participativa.

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Essa recém-cidadã, a criança, agora fruía direitos que antes não possuía. Tem estatuto
de pessoa e desse modo precisa ser respeitada como um ser pensante, ativo, que interage e
produz cultura. Uma gama de adjetivos conflitantes com a então fixa identidade de ser aluno.

IDEOLOGIA E EXPERIÊNCIA

Ao introduzir a discussão referente às identidades, Hall nos mostra o quanto o conceito


de ideologia é importante, pois “Para haver algum sentido ou significado no mundo há de se
ter algumas fixações arbitrárias, as ‘articulações’. A ideologia tem a tarefa de fixá-las.”
(HALL, 2003, p.164).

Ao olhar nosso objeto, vemos necessidade de pensar essas articulações, pois se a


escola é tal como é, isso ocorre porque há uma ideologia que postula sobre isso. Sobre quais
atributos são necessários, a estrutura física, social, como as pessoas devem se portar nesse
local e tantas outras características que fazem da escola ser uma escola. Essa fixação arbitrária
acaba por influenciar nas subjetividades de todas as pessoas que tomam contato com essa
instituição, de forma a condicionar suas identidades.

Apesar de condicionar, essas articulações não determinam a realidade. Hall


complementa o argumento acerca do alcance das ideologias na execução das práticas sociais
ao reconhecer que

não há correspondência necessária, [...]. Significa que não há lei que garanta que a
ideologia de uma classe esteja gratuita e inequivocamente presente ou corresponda a
posição que essa classe ocupa nas relações econômicas de produção capitalista
(HALL, 2003, p.165)

De acordo com os culturalistas citados por Hall2 o que os atores sociais fazem na
estrutura que a ideologia organiza origina-se da experiência individual, compreendida como
fonte de cultura, da qual nasce o que a realidade nos apresenta como materialidade do que nos
é possível viver. Um “Solo, terreno do vivido em que [interagem] condição e a consciência”
(p.147) que se materializa na prática.

2
Em oposição aos chamados “estruturalistas”, Hall mostra que os Culturalistas viam na cultura o polo que
impulsiona a história humana. Para Hall (2003, p. 153), o Culturalismo “insistiu, corretamente, no momento
afirmativo de desenvolvimento da organização e da luta consciente como elemento necessário a análise da
história, da ideologia e da consciência”.

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A prática é a forma como uma estrutura é ativamente reproduzida. Contudo, ambos
os termos [estrutura e experiência] são necessários para que se evite o risco de tratar
a história como nada mais do que o produto de uma máquina internamente
estruturalista que se auto-impulsiona. (HALL,2003, p.167)

Dessa forma, mesmo com as fixações arbitrárias da ideologia, a fonte da prática social
seria a experiência dos sujeitos. Fica a questão: E se esses sujeitos forem crianças e
adolescentes sob a obrigatoriedade da frequência escolar, como a prática interage com a
estrutura?

ANÁLISE E DISCUSSÕES

As identidades criança-aluno e aluno-criança

A partir de um recorte específico de certo tipo de infância3, os dados a seguir


procuram ampliar o olhar para a convivência de duas possíveis identidades infantis a que
estamos chamando de ser criança, mais ligada à certa liberdade e autonomia ao escolher suas
experiências, convivências e modos de ser e estar, sabendo de antemão, que essa autonomia
sempre será limitada pela própria condição infantil da necessidade de tutela. E a segunda, a
identidade de ser aluno, vista de uma perspectiva tradicional de educação, como um ser
passivo, dependente da figura do professor, subalterno e seguidor de regras, que recebe os
conhecimentos e os armazena para utilizá-los no futuro.

Utilizaremos em conjunto esses termos ao refletir que ao ser criança, esse sujeito
também se encontra na condição de aluno. Isso faz parte do seu conjunto de características
que conferem a ele identidade, a escola onde estuda, a série, como é seu comportamento
(estudioso, bagunceiro, displicente). Também se é uma escola grande, ou uma pequena,
pública ou privada, dentre outros atributos.

No outro sentido, o aluno da escola carrega consigo suas experiências, vivências e


características e todas os significados que estas possuem. Seu gênero, sua condição étnico-

3
Num sentido mais generalizado, levando em conta aquela na qual os direitos básicos são respeitados como
alimentação, educação, saúde e segurança, isto é, aquela criança que se encontra numa situação na qual se
alimenta todos os dias, vai à escola, possui roupas confortáveis e limpas e convive com segurança em uma
família. Sabemos que no Brasil essa não é a realidade de todas as crianças e adolescentes.

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racial, local de residência, sua organização familiar, classe econômica, dentre outros. E a
condição que ressaltamos aqui é a de ser criança (ou adolescente), na qual a brincadeira, a
ludicidade estão evidenciadas e a noção de futuro ainda não é palpável. Tudo isso se imbrica
na escola.

Ao pensar nessas identidades, ora sobrepostas, ora cambiantes, iniciemos pela criança-
aluno, que como já vimos, é sujeito de direitos e expressa-se através de sua cultura, sobretudo
a lúdica, por meio dos jogos, brincadeiras e fantasia. Para materializar essa identidade,
trazemos os dados de um estudo qualitativo, no qual foram observados dois locais distintos de
uma mesma cidade do interior do Paraná. Uma praça localizada num bairro residencial (Praça
da Gruta) e a outra no centro da cidade (Rua das Flores).

Houve uma grande diferença dos espaços em relação a autonomia das crianças ao se
deslocarem até os parquinhos, uma vez que na Praça da Gruta a maioria das crianças se
direcionavam a ela sem o acompanhamento dos pais ou responsáveis, de forma autônoma, e
se reuniam por meio dos grupos de afinidade para juntos brincarem durante a tarde, enquanto
na Rua das Flores as crianças estavam sempre acompanhadas de uma responsável.

Eram também distintas as formas de apropriação nos próprios equipamentos


disponíveis nos parquinhos, os quais mesmo com objetivos e fins pré-determinados de uso,
foram ressignificados pelas crianças de diversas maneiras, por meio dos sentidos
estabelecidos a partir da imaginação e criatividade.

Essas diferentes formas de apropriação das crianças para com o espaço da cidade,
nesse caso praça e parquinho, demonstram certa possibilidade de liberdade. Na pesquisa em
questão, de acordo com as entrevistas com os responsáveis, a iniciativa por ir aos espaços era
das crianças, o que ocorria em geral duas vezes por semana.

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Imagem 1: Crianças brincando de bolinha de gude na praça da gruta

FONTE: SANTOS, A. C., 2018.

Imagem 2: Crianças brincando e ressignificando o uso dos equipamentos

FONTE: SANTOS, A. C., 2018.

As fotos destacadas nos mostram crianças e adolescentes fruindo de maneiras diversas


do espaço. De um gramado desprovido de grama, se faz um campo para o jogo de bolinhas de
gude. Da mureta de contenção, um banco para esperar sua vez no jogo. Enquanto o parquinho,
mesmo um local planejado para uma determinada ação, é ressignificado ao receber crianças

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em pé, as quais deveriam estar sentadas, bem como os brinquedos de casa complementando a
estrutura de areia do espaço.

A regularidade e a iniciativa das crianças nos permitem pensar que brincar e jogar
nesses espaços é importante para elas, faz parte do seu modo de se expressar, inclusive
corporalmente e de forma mais livre do que em espaços institucionais, como a escola.

Na escola, em contrapartida, encontramos outra realidade. Trazemos, na tabela a


seguir, três trechos de diários de campo de pesquisas etnográficas que descrevem rotinas das
salas de aula em cotidianos escolares.

TABELA 1: Descrições de Rotinas de salas de aulas em pesquisas etnográficas


Faixa etária dos
Estado da
sujeitos de Citação
pesquisa
pesquisa

Quando fui assistir a uma aula, lembrei logo do tédio que são as aulas
expositivas. Uma pessoa fala na frente e todos ficam ouvindo, mas
ninguém decide sobre o que será lido ou sobre o que será discutido,
Ensino Médio Bahia mas vai se seguindo o programa predefinido, sabe-se lá por quem. Aos
estudantes cabem responder às perguntas feitas pelo(a) professor(a)
quando este(a) permite a palavra. (MORAES, 2000, p.59)

Orientados pela professora, todos se aconchegam, aos poucos, em suas


carteiras, dispõem o caderno, lápis, borracha e lápis de cor sobre a
carteira, prontificando-se para o início de suas tarefas escolares. A
1º ciclo do Ensino professora, no dia de nossa coleta de dados, após o “Bom dia!”
Belo horizonte
Fundamental tradicional, escreve no quadro “verde” um texto que trabalha a
recuperação de fatos históricos e folclóricos na memória de seus
alunos. (CAVALCANTE e JUNIOR, 2005, p.49)

Chegamos na sala da turma do 2º ano (turma 2001), a turma tem ar


condicionado e está em silêncio. Todos pegam o caderno e começam a
copiar a matéria do quadro: Energia Livre de Gibbes, matéria da turma
de 2º ano. Também há alunos e alunas com o celular e fone de ouvido.
2ª e 3ª séries do
Rio de Janeiro Copiam a matéria do quadro. Há bastante silêncio na sala, mas uma
Ensino Médio aluna se engasga. Ela permanece em sala de aula e passa bem, mas cria
um agito na turma. [...] O professor começa a fazer a chamada. Espera
3 minutos e começa a falar do conteúdo. Alguns alunos dormem,
reclamam do horário de verão. (Relatório de campo – dia 20/10/2015).
(Borges 2018, p.76)

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Com as descrições vemos similaridades entre as rotinas, revelando uma forma escolar
comum. É relevante salientar que são descrições de diferentes anos, diferentes (e distantes)
estados do Brasil, bem como diferentes níveis de ensino, mostrando uma regularidade na
forma escolar, marcada pela passividade, pela docilidade e pelo controle.

Como nesse modelo da passividade e de “educação bancária”, como denominou Paulo


Freire, pode caber uma identidade infantil, ou até mesmo adolescente? Como vemos na
terceira descrição, a mais recente, essa identidade cabe quando encontra brechas na forma.
Brechas, como a do sono, do celular, do fone de ouvido e da agitação por um acontecimento
qualquer para se expressar.

Essas atitudes, não raro, geram sanções aos alunos. As práticas e a estrutura que
exigem da criança a identidade de ser aluno na maior parte do tempo, deixando apenas
pequenos, e insuficientes, interstícios de tempos e espaços, disponíveis para a vivência do ser
criança.

Com isso, percebemos que ao observarmos as identidades criança-aluno e aluno-


criança, vemos que a primeira pode ser compreendida como uma identidade que prepondera
fora da escola, na rua, na cidade, nas quais os sujeitos podem experimentar algumas
possibilidades de liberdades. Sobre a segunda, a identidade de dentro da escola, entendemos
que esses mesmos sujeitos são vistos agora como estudantes, com uma identidade clara de
condição social, a qual valoriza a obediência, a ordem, a disciplina e a prerrogativa do
“estudar”. A ordem dos adjetivos nos indica a identidade preponderante, acrescida de uma que
não só complementa a primeira, mas a modifica profundamente.

Se na escola essas crianças são vistas primordialmente como alunos, com todas as
características que essa nomenclatura acarreta, e que desse modo devem se portar, vemos aí
uma crise anunciada, pois esses sujeitos não deixam suas identidades no portão ao adentrarem
a escola, mas sim carregam consigo e quando percebem brechas as expressam de variadas
formas. No máximo escondem essa identidade para que, no primeiro momento possível,
possam expressá-la.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola é, sobretudo, um espaço de confluência de identidades. Pensar nessa mescla


no bojo da pós-modernidade a qual estamos vivenciando é, no mínimo difícil, pois além de
serem diversas, essas identidades se alteram de modo rápido.

Ao pensarmos nas crianças, ora possuem mais liberdade de escolher onde estar e o que
fazer, como na rua quando brincam com seus pares, ora menos liberdade, como quando estão
na escola, por exemplo. Embora na rua não sejam completamente livres, pois possuem
limitações de horários, locais e companhias; também na escola não são completamente
privados de liberdade, pois podem encontrar (e encontram!) brechas que os permitem escapes
na disciplina cotidiana, como, por exemplo, pedir para ir ao banheiro, mesmo sem a
necessidade fisiológica, e aproveitar a saída para um pequeno (mas presente) passeio na
escola.

O conflito é inevitável quando essas identidades adentram a escola e divergem daquilo


que a escola entende como identidade estudantil, nesse caso, uma pessoa que obedece às
regras da instituição e a sua lógica, a tempos pré-determinados e modos específicos de ensinar
e aprender.

Como aponta Rechia (2019), ao tratarmos as práticas sociais pela ótica dos estudos
culturais a soma “um mais um dificilmente resulta em dois, ela geralmente soma três”, isto é,
quando duas práticas culturais distintas são mescladas algo novo é formado, algo diferente
que nasce da diversidade, da interlocução e principalmente da permeabilidade dos sujeitos que
as praticam.

Essa permeabilidade, seja consensual e/ou conflitante é condição para o nascimento de


novas identidades, quando as culturas permanecem herméticas vemos a instalação da
indiferença, da aversão ao outro, a fobia social e o apartamento dos sujeitos. Cenário comum
nas escolas, quando a identidade do ser criança não é levada em conta, como algo sem
importância e indiferente no cotidiano escolar.

Enfim compreendemos que a identidade do ser criança pode compor a escola, mas aí
uma terceira coisa precisaria surgir: uma escola que percebe, reconhece e valoriza as
transformações ocorridas perante o processo de globalização. Dentre elas, o entendimento de
que o lazer, o brincar e as experiências lúdicas sejam possibilidades educativas, com vistas à

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transformação de uma sociedade mais humana, na qual a autonomia e a liberdade possam ser
vias de formação humana dentro e fora das escolas.

CHILD IDENTITIES: BEING A CHILD AND BEING A STUDENT FROM THE


PERSPECTIVE OF CULTURAL STUDIES

RESUME

This essay aims to reflect on two possibilities of children's identities: being a child at the same
time as being a student. Here we seek to problematize conflicts and agreements, reflecting on
the impositions and overlaps about these identities during the lives of children and
adolescents. For this purpose, we will present some pertinent questions about identity from
the perspective of cultural studies, and then think about how ideology and experience can
interfere in this identity, then we will point out how the sociology of childhood contributed to
this new look at children and adolescents, revealing -the subjects of rights, in short, focus on
empirical data on the identities of child-student and student-child. From this compilation of
theoretical and empirical data, we understand that the identity of being a child can compose
the school, but for this, something new would need to emerge, a school that perceives,
recognizes and values the transformations that have occurred in the face of the globalization
process. Among them, the understanding that leisure, playing and playful experiences are
educational possibilities, with a view to transforming a more humane society, in which
autonomy and freedom can be ways of human formation inside and outside schools.

Keywords: School. Cultural Studies. Leisure. Identity.

IDENTIDADES INFANTILES: SER NIÑO Y ESTUDIANTE DESDE LA


PERSPECTIVA DE LOS ESTUDIOS CULTURALES

RESUMEN

Este ensayo tiene como objetivo reflexionar sobre dos posibilidades de las identidades de los
niños: ser un niño al mismo tiempo que ser un estudiante. Aquí buscamos problematizar
conflictos y acuerdos, reflexionando sobre las imposiciones y superposiciones sobre estas
identidades durante la vida de niños y adolescentes. Para este propósito, presentaremos
algunas preguntas pertinentes sobre la identidad desde la perspectiva de los estudios
culturales, y luego pensaremos en cómo la ideología y la experiencia pueden interferir en esta
identidad, luego señalaremos cómo la sociología de la infancia contribuyó a esta nueva
mirada a los niños y adolescentes, revelando -los sujetos de derechos, en resumen, se centran
en datos empíricos sobre las identidades de niño-estudiante y estudiante-niño. A partir de esta
compilación de datos teóricos y empíricos, entendemos que la identidad de ser un niño puede
componer la escuela, pero para esto, sería necesario que surgiera algo nuevo, una escuela que
perciba, reconozca y valore las transformaciones que se han producido frente al proceso de
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globalización. Entre ellos, la comprensión de que el ocio, el juego y las experiencias lúdicas
son posibilidades educativas, con miras a transformar una sociedad más humana, en la que la
autonomía y la libertad pueden ser formas de formación humana dentro y fuera de las
escuelas.

Palabras-clave: Escuela. Estudios culturales. Ocio. Identidad.

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