Você está na página 1de 114

GRUPO DE

ESTUDOS

APOSTILA DIDÁTICA
SUMÁRIO
MÓDULO 1 - Infâncias e desenvolvimento
infantil
A compreensão da infância como construção socio-
historica
Fatores de risto e fatores de proteção ao
desenvolvimento infantil: uma revisão da área

MÓDULO 02 - Estruturando o processo


terapêutico
A psicoterapia infantil no setting clinico: uma revisão
sistemática da literatura
A família na psicoterapia infantil: uma revisão
integrativa

MÓDULO 03 - Psicopatologias da Infância


Instabilidade psicomotora ou hiperatividade? riscos
dos deslizamentos dos discursos sobre a
psicopatologia infantil

MÓDULO 04 - Recursos Lúdicos na clinica


infantil
A ludoterapia no processo do luto infantil: um estudo
de caso
Ludoterapia: O uso de brinquedos cantados no
processo psicoterapêutico
MÓDULO 1
Revista CES Psicología
ISSN 2011-3080
Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp. 126-137 Revisión de Tema

A compreensão da
infância como construção
sócio-histórica
The understanding of childhood as a social and historical
construction

La comprensión de la infancia como una construcción social e


histórica
Samuel Lincoln Bezerra Lins 1, Maria de Fátima Oliveira Coutinho da Silva 2,
Zoraide Margaret Bezerra Lins 32, Terezinha Féres Carneiro4
14
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2 3 Universidade Federal da Paraíba, Brasil

Forma de citar: Bezerra, SL., Coutinho da Silva M., Bezerra Z, ZM. & Féres C., T. (2014). A compreensão da infância como construção sócio-
histórica. Revista CES Psicología, 7(2), 126-137.

Resumo
O presente artigo teve o objetivo de fazer algumas reflexões acerca do conceito de infância, considerando
questões sociais e históricas. Procurou-se mostrar diversas perspectivas do conceito, a sua evolução ao
longo do tempo, bem como os principais teóricos e trabalhos desenvolvidos sobre a temática, na sociedade
ocidental, particularmente, no Brasil.

Palavras-chave: Infância, História, Psicologia Do Desenvolvimento.

Abstract
This article aimed to make some reflections about the concept of childhood, considering social and
historical issues. We tried to show different perspectives of the concept, its evolution over time, as well as
main theorists and work developed on the field, in Western society, particularly in Brazil.

Keywords: Childhood, History, Developmental Psychology.

1
Pos-doutorando em Psicologia na Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Psicologia
(Universidade do Porto, Portugal. Mestre em Psicologia Social (UFPB). Graduado em Administração (UFPB) Licenciado e
Formado em Psicologia (UFPB). samuel.bezerra.lins@gmail.com
2
Doutora em Psicologia Social. Professora do Departamento de Enfermagem, Saúde Pública e Psiquiatria, Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil. mfocoutinho@gmail.com
3
Doutora em Psicologia Social. Professora do Departamento de Enfermagem, Saúde Pública e Psiquiatria, Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil. zoraidelins@yahoo.com.br
4
Professora Titular do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Coordenadora do
Curso de Especialização em Terapia de Família e Casal da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
RJ, Brasil. teferca@puc-rio.br
Samuel Lincoln Bezerra L., Maria de Fátima Oliveira C., Zoraide Margaret Bezerra L., Terezinha Féres C.
A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

Resumen
Este artículo tiene como objetivo hacer algunas reflexiones sobre el concepto de la infancia, teniendo en
cuenta los temas sociales e históricos. Tratamos de mostrar diferentes perspectivas del concepto, su
evolución en el tiempo, así como los principales trabajos teóricos y hecho sobre el tema, en la sociedad
occidental, particularmente en Brasil.

Palavras-chave: Infancia, Historia, Psicología del Desarrollo.

Introdução como um “período de crescimento do ser


humano, que vai do nascimento até a
A preocupação com o ser humano em seus puberdade”. A criança, no mesmo
primeiros anos de vida ocupa um espaço dicionário, é definida como um “ser humano
importante na sociedade contemporânea e de pouca idade” (Ferreira, 2004).
nas pesquisas científicas (Bortolini & Vitolo, Etimologicamente, o termo ‘infância”, em
2010; Bustamante & McCallum, 2010; David, latim in-fans, significa sem linguagem. Por
Gelberg, & Suchman, 2012; Meins, sua vez, na tradição filosófica ocidental, não
Fernyhough, Arnott, Turner & Leekam, 2011, ter linguagem significa não ter pensamento,
Pinto, 2009). Discussões sobre a infância não ter conhecimento, e não ter
estão sendo realizadas por pesquisadores racionalidade, ou seja, a criança é
das mais diversas áreas, com o objetivo de compreendida como um ser menor, e como
compreender melhor como a sociedade alguém a ser adestrado, a ser moralizado, e
ocidental tem percebido a infância ao longo a ser educado (Castro, 2010).
dos anos (Duschinsky, 2013; Leifsen, 2009;
Punch, 2007; Tisdall & Punch, 2012). Percebe-se, no entanto, que a idade
cronológica não é suficiente para
Assim, surge a necessidade de investigar a caracterizar a infância. Khulmann Jr. (1998)
origem dos significados levando em conta o afirma que a infância tem um significado
contexto no qual a infância emerge e suas genérico e, como qualquer outra fase da
relações sociais, econômicas, históricas, vida, esse significado está vinculado às
culturais e políticas, como condições transformações sociais, visto que, cada
determinantes para retratar uma imagem da sociedade tem seu próprio sistema de
infância contextualizada. Neste sentido, este classes etárias que estão associadas a um
artigo se propõe apresentar uma sistema de status e de papéis
contextualização histórica do surgimento da desempenhados.
infância na literatura científica, como
também seu desenvolvimento no Brasil. Silveira (2000) aponta para o fato de que a
sociedade sempre está em movimento e,
O conceito histórico-social de infância desse modo, a vivência da infância
transforma-se de acordo com os paradigmas
Definir o termo infância é uma tarefa difícil, do contexto histórico, ou seja, pensar na
que pode se diferenciar de acordo com o infância é também articulá-la com outros
referencial que se escolhe. Segundo o domínios como a escola, a família e a
dicionário Aurélio, a infância é definida sociedade.

Revista CES Psicología ISSN 2011-3080 Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp.126-137
127
Samuel Lincoln Bezerra L., Maria de Fátima Oliveira C., Zoraide Margaret Bezerra L., Terezinha Féres C.
A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

A importância da criança dentro de uma invenção da modernidade, constituindo-se


comunidade varia conforme o período numa categoria social construída
histórico em que ela é considerada, uma vez recentemente na história da humanidade,
que cada período imprime na infância uma onde a emergência do sentimento de
significação específica, por vezes atrelada às infância, como uma consciência da
condições sociais, e não apenas à sua particularidade infantil, é decorrente de um
condição de ser biológica (Silveira, 2000). A longo processo histórico, não sendo uma
infância, sob essa ótica, registra-se como herança natural. Essa afirmação
condição da criança, isto é, caracteriza-se desencadeou grandes mudanças na
como uma condição social e historicamente compreensão da infância, já que ela era
construída (Kuhlmann, 1998). pensada como uma fase da vida, como
qualquer outra. Nesse sentido, a história da
Com efeito, a infância é um tempo específico infância surge como possibilidade para
o qual todos vivenciam, entretanto, sempre muitas reflexões sobre a forma como
se questionou qual era o tempo exato de entendemos e nos relacionamos atualmente
abrangência da infância e como era com ela.
percebida esta criança (Castro, 2010). Dessa
forma, resgatar os antecedentes da história Historiadores da infância como Charlot
é dar espaço a inúmeros documentos que (1983), Sarmento e Pinto (1997) e Tomás
revelam o papel da criança desempenhado (2001), explicam que as mudanças sociais,
na sociedade ao longo dos anos. Tais políticas e econômicas ocorridas na época
documentos agem como porta-vozes da pós-medieval, geraram subsídios para a
construção da história da infância e surgem percepção moderna da infância,
como possibilidade para muitas reflexões compreendida como campo da vida social
sobre a forma de como compreendemos e específico destacado do campo dos adultos.
nos relacionamos atualmente com a criança. Assim, a infância passou a ser reconhecida
como uma fase diferenciada do ciclo da vida
A importância da construção do conceito de e como algo novo na história da
infância teve um grande avanço com os humanidade. Confirma-se então, que a
estudos do pesquisador francês Philippe história da infância só começou a ser
Ariès, por ele ser o pioneiro nesta temática, narrada recentemente, por consequência do
com a publicação da obra História Social da anonimato em que a criança viveu no mundo
Criança e da Família, em 1960. Foi ele quem ocidental até o século XVIII. A partir desse
formulou um novo olhar historiográfico para século, a infância como categoria histórica,
o sentimento de infância no mundo contextualizada cultural e socialmente
ocidental, demonstrando que foi uma passou a apresentar diferentes imagens
concepção socialmente construída durante sociais ao longo da história.
a época moderna, e destacando aspectos
desde a consciência da infância até as A infância como conhecemos hoje foi uma
especificidades da criança, ou seja, aquilo criação de um tempo histórico e de
que a diferencia do adulto. condições socioculturais determinadas,
sendo um engano ousar analisar todas as
Segundo relata Ariès (1981), a infância foi infâncias de todas as crianças com o mesmo
um conceito historicamente construído e a enfoque. A compreensão da infância muda
criança, por muito tempo, não foi vista como com o tempo e com os diferentes contextos
um ser em desenvolvimento, com sociais, econômicos, geográficos, e até
características e necessidades próprias, e mesmo com as peculiaridades individuais
sim como um adulto em miniatura. Este (Ariès, 1981).
autor considera a infância como uma

Revista CES Psicología ISSN 2011-3080 Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp.126-137
128
Samuel Lincoln Bezerra L., Maria de Fátima Oliveira C., Zoraide Margaret Bezerra L., Terezinha Féres C.
A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

Heywood (2004) assinala que por volta do valorizado durante a idade média.
século XII, as condições gerais de higiene e Praticamente inexistia esse sentimento,
saúde eram precárias, situação que tanto da infância como da adolescência, fato
contribuía para elevar o índice de que perdurou até o século XVIII. Nesse
mortalidade infantil, porém, mesmo se as período, a criança logo que apresentasse
crianças sobrevivessem aos primeiros anos algum desenvolvimento misturava-se ao
de vida e atingissem certa idade, ainda mundo dos adultos, participando de
assim, não possuiriam identidade própria, atividades semelhantes, como festas, jogos
só vindo a tê-la quando conseguissem e brincadeiras. A família na Idade Média não
realizar atividades semelhantes àquelas tinha a função afetiva que tem hoje, “era
desempenhadas pelos adultos. uma realidade moral e social, mais que
sentimental” (Ariès, 1981, p.67).
Sendo assim, os cuidados especiais que as
crianças deveriam receber, ou mesmo Nos séculos XVI e XVII existia uma
quando os recebiam, eram destinados consciência de que as percepções de uma
apenas aos primeiros anos de vida e criança eram diferentes das percepções dos
reservados aos que possuíam uma situação adultos. Porém, só a partir do século XVII foi
socialmente e financeiramente privilegiada. possível seu reconhecimento em maior
Dos adultos, que cuidavam das crianças, não número onde as representações da infância
se exigia nenhuma preparação, e esse divergiam muito da realidade, onde as
cuidado era realizado pelas chamadas crianças eram representadas com
criadeiras, amas de leite ou mães expressões de adultos, musculosas e
mercenárias. vestidas com trajes de adulto. De acordo
com Ariès (1981), “a criança deixava os
Obviamente, isto não significa negar a cueiros, ou seja, a faixa de tecidos que era
existência social das crianças, significa enrolada em torno de seu corpo, ela era
reconhecer que, antes do século XVI, a vestida como os outros homens e mulheres
consciência social não admitia a existência de sua condição” (p. 81). Isto demonstra o
autônoma da infância como uma categoria quanto as crianças não tinham valor, e a
diferenciada do gênero humano. Uma vez infância era desconhecida, considerada
passado o estrito período de dependência apenas como um período de transição, que
física da mãe, esses indivíduos se logo se ultrapassava.
incorporavam plenamente ao mundo dos
adultos (Levin, 1997). Foi durante o século XVII que se generalizou
o hábito de pintar nos objetos e nas
No século XIII, atribuía-se à criança modos mobílias da casa uma data solene para a
de pensar e sentimentos anteriores à razão e família. Constata-se que foi na Idade Média
aos bons costumes. Era tarefa dos adultos que as idades da vida começaram a ter
desenvolver nela o caráter e a razão, e de importância. Durante esse período, então,
modo semelhante, a Igreja procurava existiam seis etapas de vida. As três
cumprir a tarefa de educação, colocando-as primeiras, que correspondiam à primeira
a serviço do monastério. Tais costumes idade (nascimento aos 7 anos), a segunda
podem ser observados facilmente através da idade (7 a 14 anos) e terceira idade (14 a 21
arte e iconografias que retratam este século anos), eram etapas não valorizadas pela
(Heywood, 2004). sociedade. Somente a partir da quarta idade,
a juventude (21 a 45 anos), as pessoas
O sentimento de infância, presente na começariam a ser reconhecidas
sociedade moderna, nem sempre foi socialmente. Ainda existindo a quinta idade

Revista CES Psicología ISSN 2011-3080 Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp.126-137
129
Samuel Lincoln Bezerra L., Maria de Fátima Oliveira C., Zoraide Margaret Bezerra L., Terezinha Féres C.
A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

(a senectude), referente à pessoa que não Enquanto que, para Rousseau, existia a
era velha, mas que já tinha passado da idéia de natureza boa, pura e ingênua da
juventude e a sexta idade (a velhice), dos 60 criança, e da necessidade de respeitá-la e
anos em diante até a morte. Tais etapas deixá-la livre para que a natureza pudesse
alimentavam desde esta época, a idéia de agir no seu curso normal, favorecendo o
uma vida dividida em fases (Ariès, 1981). pleno desenvolvimento saudável das
crianças. Já em relação às concepções
Ainda no século XVII, nas classes românticas da infância, apresentaram as
dominantes, surgiu a primeira concepção crianças como portadoras de sabedoria,
real de infância, a partir da observação dos sensibilidade, e estética apurada,
movimentos de dependência das crianças necessitando que se criassem condições
muito pequenas. O adulto passou, então, favoráveis para o seu pleno
desenvolvimento.
pouco a pouco, a preocupar-se com ela
como um ser dependente e fraco (Levin,
Assim, cabe destacar, que o tratamento
1997). Comenta o autor, que ultrapassar esta
diferenciado remetido à infância aparece
fase da vida só para quem saísse da entre os séculos XVI e XVIII. Até essa época
dependência, ou pelo menos dos graus mais a educação das crianças confundia-se com
baixos de dependência, desse modo a sua inclusão nas atividades da sociedade e
palavra infância passou a designar a nos espaços públicos, porém com a
primeira idade de vida, a idade da Revolução Industrial e a conseqüente
necessidade de proteção, que perdura até os urbanização, inicia-se o processo da família
dias de hoje. nuclear extensa do período feudal (Rabuske,
Oliveira & Aripini, 2005).
Percebe-se, portanto que até o século XVII, a
ciência desconhecia a infância, não havia Já no século XIX inaugura-se uma visão de
lugar para esta na sociedade, fato criança sem valor econômico, mas de valor
caracterizado pela inexistência de uma emocional inquestionável, criando uma
expressão particular a ela. Só então, a partir concepção de infância plenamente aceita no
das idéias de proteção, amparo, século XX. Na verdade, como é possível
dependência, que surge a infância. As perceber, “a história cultural da infância tem
seus marcos, mas também se move por
crianças passaram a ser vistas como seres
linhas sinuosas com o passar dos séculos: a
biológicos, que necessitavam de grandes
criança poderia ser considerada impura no
cuidados e de uma rígida disciplina, a fim de
início do século XX tanto quanto na alta
transformá-las em adultos socialmente Idade Média” (Heywood, 2004, p. 45).
aceitos.
Pode-se então afirmar que, a mudança de
Segundo Heywood (2004), ao analisar o paradigma no que se refere ao conceito de
século XVIII, a emergência social da criança infância está diretamente ligada ao fato de
nesse século aconteceu devido às obras de que as crianças sempre foram consideradas
John Locke, Jean Jacques Rousseau e dos adultos imperfeitos, sendo assim, essa
primeiros românticos. Cita o autor que foi etapa da vida seria de pouco interesse, visto
Locke que difundiu a idéia da tábula rasa que “somente em épocas comparativamente
para o desenvolvimento infantil e de que a recentes veio a surgir um sentimento de que
criança nascia apenas como uma folha em as crianças são especiais e diferentes, e,
branco, na qual, se poderia inscrever o que portanto, dignas de ser estudadas por si sós”
se quisesse. (Heywood, 2004, p.10).

Revista CES Psicología ISSN 2011-3080 Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp.126-137
130
Samuel Lincoln Bezerra L., Maria de Fátima Oliveira C., Zoraide Margaret Bezerra L., Terezinha Féres C.
A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

O que se observou no ocidente foi o transformações, principalmente no que diz


movimento de particularização da infância, respeito às concepções da condição da
ganhando forças a partir do século XVIII, a criança enquanto ser social e sujeito ativo,
esse respeito: ou seja, uma criança concreta que ocupa um
lugar na história através de relações sociais
A família sofre grandes transformações e que se estruturam a cada dia. É importante
criam-se novas necessidades sociais nas perceber que as crianças concretas, na sua
quais a criança será valorizada materialidade, no seu nascer, no seu viver ou
enormemente, passando a ocupar um morrer, expressam a inevitabilidade da
lugar central na dinâmica familiar. A história (Kuhlmann, 1998).
partir de então, o conceito de infância se
evidencia pelo valor do amor familiar: as Compreende-se então, que com a evolução
crianças passam dos cuidados das amas nas relações sociais que se estabeleceram
para o controle dos pais e, na Idade Moderna, a criança passa a ter um
posteriormente, da escola, passando pelo papel central nas preocupações da família e
acompanhamento dos diversos da sociedade. A nova percepção e
especialistas e das diferentes ciências organização social fizeram com que os laços
como Psicologia, Antropologia, entre adultos e crianças, pais e filhos,
Sociologia, Medicina, Fonoaudiologia, fossem fortalecidos. A partir deste
Pedagogia, dentre outras tantas (Frota, momento, a criança começa a ser vista como
2007, p.152). indivíduo social, dentro da coletividade, e a
família tem grande preocupação com a sua
Nesse sentido, foi através de Rousseau, saúde e a sua educação.
considerado um dos primeiros pedagogos
da História, que a criança começou a ser A ciência moderna, ao elaborar um conjunto
vista de maneira diferenciada do que até de características sobre a criança, reconhece
então existia, uma vez que ele propôs uma a infância como um momento do
educação infantil sem juízes, sem prisões e desenvolvimento humano, abrindo campo
sem exércitos (Levin, 1997). Assim, a partir para vários estudos e orientações no
da Revolução Francesa, em 1789, modificou- cuidado e educação desse grupo etário –o
se a função do Estado e, com isso, a universo infantil–. Entretanto, a análise da
responsabilidade para com as crianças e o produção existente sobre a história da
interesse por elas. A partir desse momento infância permite afirmar que a preocupação
os governos começaram a se preocupar com com a criança encontra-se presente somente
o bem-estar e com a educação das mesmas. a partir do século XIX, tanto no Brasil como
De fato, a infância e a criança tornaram-se em outros lugares do mundo.
objetos de estudos e de saberes de
diferentes áreas, constituindo-se num O conceito histórico-social de infância no
campo temático de natureza Brasil
interdisciplinar, independentemente da
forma como era analisada e do Resgatar a história social da infância no
posicionamento teórico que se tinha sobre Brasil é um fato recente. Se na Europa a
ela, a infância tornou-se visível como um historiografia sobre a criança só foi
estatuto teórico. produzida a partir de 1960, através de Ariès,
no Brasil, a compreensão da infância parece
Essa discussão nos remete à necessidade de ter realmente começado no século XIX,
pesquisas na área que possam aprofundar e intensificando-se nos séculos seguintes
elucidar as questões da infância e as suas (Frota, 2007). Portanto, é recente a

Revista CES Psicología ISSN 2011-3080 Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp.126-137
131
Samuel Lincoln Bezerra L., Maria de Fátima Oliveira C., Zoraide Margaret Bezerra L., Terezinha Féres C.
A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

preocupação dos historiadores brasileiros e educação das crianças eram determinadas,


sobre este tema, e apesar da História da principalmente, pela Igreja (Ribeiro, 2006).
Criança ter alçado destaque nos últimos O processo de transição do Brasil Colônia
anos, ainda está muito presa aos temas da para o Império teve como marco histórico a
história contemporânea. Declaração de Independência, em 1822. A
luta pela independência do Brasil contou
De fato, apenas a partir do ano de 1991 com diversos segmentos sociais, entre eles
surgiu a primeira publicação na os padres, os intelectuais e os escravos. Com
historiografia que se propôs a escrever a a emancipação política do País, no início do
história da criança brasileira. Esta obra foi século XIX, fez-se necessário a criação de
organizada por Mary Del Priore e reuniu uma uma Constituição. Assim, a primeira
coletânea de textos, de diversos autores, sob Constituição brasileira foi promulgada em
o título de História da Criança no Brasil. Em 1824. Nesta, contudo, mantiveram-se as
seu trabalho, Del Priore analisou como o características do Brasil Colônia, como:
sentimento de valorização da criança, trabalho escravo, dependência política do
corrente na Europa Moderna, identificado país em relação a Portugal e relações de
por Ariès, esteve presente na prática poder centralizadas no domínio dos grandes
educativa dos missionários jesuítas no proprietários e não havia nenhuma
Brasil Colônia. A infância, para estes, era referência à infância ou a práticas
vista como o momento oportuno para a relacionadas às crianças (Carvalho, 2008).
catequese, pois seria o período em que se
daria a aprendizagem de princípios e valores Mesmo assim, neste contexto,
que seriam adotados e seguidos por toda a intensificaram-se as intervenções médicas
vida (Del Priore, 1991). nas questões de saúde e higiene e,
consequentemente, os cuidados dedicados
à infância e à família. Este processo de
A constatação da crescente valorização
valorização da saúde ocorreu primeiro na
social da criança, que culminou no que Ariès
Europa, depois no Brasil, chegando ao
(1981) denominou descoberta da infância, século XIX com o foco na questão da
teve como fontes elementos provenientes mortalidade infantil e nas recomendações
da cultura européia. Os processos de de cuidados com as crianças. É neste
colonização, em terras das Américas e da período que se inicia a institucionalização
África, são repletos de demonstrações das dos saberes médicos e também psicológicos
influências dos modelos europeus nas aplicados à infância e, portanto, é quando
práticas sociais das populações colonizadas. podemos obter mais registros sobre práticas
e políticas dirigidas a meninas e meninos.
Dentre os primeiros registros encontrados
sobre este tema, enfatiza-se a iniciativa dos Assim, um processo a ser enfatizado na área
jesuítas. No século XVI, estes implantaram de atendimento à infância no Brasil e no
um sistema de educação direcionado aos mundo, caracteriza-se por medidas
povos indígenas e tinha o propósito de, higienistas-eugênicas, emergentes no fim
através do convívio com a doutrina a ser do século XIX e início do século XX. Embora
difundida pelos jesuítas, promover o higienismo e a eugenia advenham de
mudanças nos costumes da população movimentos diferentes e de circunstâncias
indígena, considerados inadequados na históricas e proposições teóricas próprias,
visão da Colônia e da Igreja (Cruz, 2006). Os suas idéias se aproximaram e se
cuidados especiais infância eram limitados sobrepuseram às políticas e práticas sociais
e as regras e recomendações acerca da vida brasileiras (Boarini & Yamamoto, 2004).

Revista CES Psicología ISSN 2011-3080 Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp.126-137
132
Samuel Lincoln Bezerra L., Maria de Fátima Oliveira C., Zoraide Margaret Bezerra L., Terezinha Féres C.
A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

A partir do século XIX, estes ditames dos estudos da infância (Müller & Hassen,
passaram a ser cada vez mais foco do saber 2009, Qvortrup, 2011)
considerado científico. As famílias,
especialmente as mães, passaram a receber Neste sentido, observa-se o aumento do
de modo mais sistemático, orientações interesse de investigadores brasileiros na
desses profissionais sobre saúde e cuidados realização de estudos destacando a
dirigidos às crianças (Heywood, 2004). importância da criança e a compreensão dos
Assim, a perspectiva da saúde compõe com seus significados (Silva, Luz & Faria Filho,
a religião e a moral construções de sentidos 2010), em diversos campos do
de infância, passando a normatizar e conhecimento como a Sociologia
interferir cotidianamente nos modos de (Abramowicz & Oliveira, 2010), a História
tratar e educar meninos e meninas. (Lage & Rosa, 2011; Poletto, 2012), a
Concomitantemente, é nesta época que a Assistência Social (Lockmann & Mota, 2013),
infância ganha maior visibilidade, pois é e a Psicologia (Degani-Carneiro & Jacó-
definida como objeto de intervenções Vilela, 2012).
públicas, devido à maior valorização da
mão-de-obra num mundo em franco
progresso da lógica capitalista e industrial Considerações finais
(Silva Santos, 2004).
A partir das reflexões sobre as diversas
Assim, no século XX, com o concepções de infância, surge uma
desenvolvimento tecnológico e a preocupação cada vez mais ampla e
mobilidade geográfica, o discurso científico sistemática com o estudo e compreensão da
médico-psicológico tornou-se o referencial criança e de seu desenvolvimento. A partir
para as práticas direcionadas ao cuidado do estudo científico da criança, que se
infantil passando a orientar a relação pais- iniciou, efetivamente, no século XIX, como
filhos (Alves, 1999). A ênfase atribuída, no legado maior das Teorias
século XX, às responsabilidades e ao papel Desenvolvimentistas, surgiu a compreensão
do adulto em relação à criança aconteceu a da criança como uma categoria científica,
partir da institucionalização da Declaração notadamente positivista, ou seja, a infância
Internacional dos Direitos da Criança, no passou a ser concebida como produto do
ano de 1959. Desse modo, os tempo, da natureza e da cultura.
comportamentos e atitudes socialmente
construídos adquiriram um caráter de lei, Pode-se ver que, numa perspectiva histórica
como pode ser observado com a instauração de milhares de anos, em que predominou o
do Estatuto da Criança e do Adolescente, no total desconhecimento da criança, a
Brasil, em 1990 (Almeida & Cunha, 2003). Psicologia do Desenvolvimento Infantil
encontrou no seu início diversas
O cuidado atual em estudos sobre a infância dificuldades para se impor como estudo
recai no evitar os reducionismos de importante e necessário. Hoje, o estudo do
qualquer ordem. Assim, é preciso não deixar desenvolvimento da criança é necessário e
a ideia de que a infância é uma construção indispensável para quem deseja trabalhar
unicamente social para abandonar o com essa fase da vida humana. Além disso,
reducionismo biológico e, dessa forma, a perspectiva extremamente positivista
substituí-lo pelo reducionismo sociológico assumida pela Psicologia do
(Prout, 2004). A criança deve ser vista como Desenvolvimento, que se preocupava
um ser completo, biopsicossocial, por isso, principalmente em observar, medir e
é preciso intensificar a interdisciplinaridade comparar as mudanças exibidas pelas

Revista CES Psicología ISSN 2011-3080 Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp.126-137
133
Samuel Lincoln Bezerra L., Maria de Fátima Oliveira C., Zoraide Margaret Bezerra L., Terezinha Féres C.
A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

crianças ao longo de sua trajetória de vida, consciência da infância exerceu enorme


foi substituída por uma perspectiva mais influência sobre a formação legislativa ao
histórica (Frota, 2007). longo dos séculos passados.

Atualmente, a criança e a infância são Entretanto, somente no final do século XX,


compreendidas como categorias foi possível romper, do ponto de vista
construídas historicamente, o que nos abre normativo, com aquele paradigma, quando
possibilidades de compreendê-las de modo se acolheu o atendimento às crianças e
concreto, na sua expressão de vida. O tempo adolescentes dentro das políticas públicas,
linear, cronológico e contínuo é superado reconhecendo-os como sujeitos de direitos
por um devir, um tempo que não se esgota fundamentais e especiais, decorrentes da
em si mesmo. sua peculiar condição de pessoas em
desenvolvimento, responsabilizando o
No que se refere à infância, identificamos, Estado, a sociedade e a família pela garantia
nesta trajetória histórica, diferentes e atendimento, com irrestrita prioridade, de
significados constituídos em distintos todas as suas necessidades.
contextos sociais. Do interesse limitado pela
criança na Idade Média, até a infância como O marco destes avanços se deu com a
foco das práticas sociais e formalmente criação do Estatuto da Criança e do
prioritária nas políticas públicas da Adolescente (ECA), instituído pela lei 8.069
atualidade, comprovando-se que houve um no dia 13 de julho de 1990, regulamentando
longo caminho de transformações políticas, os direitos das crianças, considerando a
econômicas e culturais. Neste sentido, proteção da infância como prioridade
significados e contextos estão intimamente absoluta, como determina a Constituição
relacionados. Federal Brasileira. Cabe destacar também a
influência das diretrizes da Organização das
Por outro lado, o estudo dessas perspectivas
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
históricas indica a necessidade de debater e
a Cultura (UNESCO) na proteção ao direito
compreender continuamente atribuições,
à infância, tendo em vista a elaboração de
lugares e responsabilidades que o presente
políticas públicas (Cecílio & Brandão, 2013).
nos impõe. Podemos ser protagonistas da
construção, assim como temos a chance de
participação na geração de espaços de Observa-se que a maneira de como a
cidadania. Tais possibilidades nos remetem infância é vista atualmente é consequência-
ao campo da ética e, consequentemente, da dessas constantes transformações pelas
constante reflexão crítica acerca das quais passamos, e que é de extrema
interlocuções entre as práticas construídas, importância nos darmos conta destas
nossos projetos político-sociais e os valores transformações para compreendermos a
que os contemplam. dimensão que a infância ocupa atualmente.
Como ressalta Bujes (2001), este percurso,
Assim, a partir do momento em que se ou seja, esta história, só foi possível porque
alcançou uma consciência sobre a também se modificaram na sociedade as
importância da infância, foram criadas várias maneiras de se pensar o que é ser criança e
políticas e programas que visaram a a importância que foi dada esta fase
promover e ampliar as condições específica do ciclo vital. Portanto, enquanto
necessárias para o exercício da cidadania pesquisadores e profissionais de saúde,
das crianças, que por sua vez, passaram a devemos ter sempre uma postura
ocupar lugar de destaque na sociedade. Essa progressista de avanço das descobertas

Revista CES Psicología ISSN 2011-3080 Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp.126-137
134
Samuel Lincoln Bezerra L., Maria de Fátima Oliveira C., Zoraide Margaret Bezerra L., Terezinha Féres C.
A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

científicas, mas sem desconsiderar a história serem conhecidas e compreendidas dentro


que nos trouxe até aqui. do contexto no qual foram produzidas. Tais
saberes, de diferentes disciplinas e origens
Desse modo, as diferentes concepções teóricas, devem ser convidados ao diálogo,
existentes sobre a criança, na produzindo frutos que podem ser ricos e
contemporaneidade ocidental, são peças oferecerem novos e variados elementos para
indispensáveis para comporem um quadro ajudarem na compreensão da infância na
geral sobre a infância atual, e necessitam pós-modernidade.

Referencias

Abramowicz, A., & Oliveira, F. (2010). A sociologia da infância no Brasil: uma área em construção.
Educação (UFSM), 35 (1), 39-52

Almeida, A. & Cunha, G. (2003). Representações sociais do desenvolvimento humano. Psicologia:


Reflexão e Crítica, 16 (1), 147-155.

Alves, Z. (1999). Relações familiares. Texto e Contexto, 8 (2), 229-241.

Ariès, P. (1981). História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar

Boarini, M. & Yamamoto, O. (2004). Higienismo e Eugenia: discursos que não envelhecem. Psicologia
Revista, 13 (1), 59-72.

Bortolini, A. & Vitolo, M. (2010). Importância das práticas alimentares no primeiro ano de vida na
prevenção da deficiência de ferro. Revista de Nutrição, 23 (6), 1051-1062.

Bujes, E. (2001). Escola infantil: pra que te quero. In: Craidy, Carmem & Kaercher, Gládis E. (orgs.).
Educação Infantil pra que te quero? Porto Alegre: Artmed,

Bustamante, V. & McCallum, C. (2010) O cuidado de grávidas e bebês no contexto do Programa de


Saúde da Família: um estudo etnográfico. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 14 (34), 607-
618.

Carvalho, J. (2008). Cidadania no Brasil: o longo caminho. (10ª ed.) Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.

Castro, M. (2010). Noção de criança e infância: diálogos, reflexões, interlocuções. Anais do Seminário
do 16º COLE. UFF. Rio de Janeiro/RJ.

Cecílio, M. & Brandão, E. (2013). O caminho das orientações da UNESCO para proteção do direito à
infância no Brasil a partir da década de 1990. Educar em Revista, 50, 223-235.

Charlot, B. (1983). A mistificação pedagógica. Rio de Janeiro, Zahar.

Revista CES Psicología ISSN 2011-3080 Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp.126-137
135
Samuel Lincoln Bezerra L., Maria de Fátima Oliveira C., Zoraide Margaret Bezerra L., Terezinha Féres C.
A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

Cruz, L. (2006). (Des)Articulando as políticas públicas no campo da infância: implicações da


abrigagem. Santa Cruz do Sul: EDUNISC.

David, D., Gelberg, L. & Suchman, N. (2012). Implications of homelessness for parenting young
children: A preliminary review from a developmental attachment perspective . Infant Mental Health
Journal, 33 (1), 1-9. doi:10.1002/imhj.20333

Degani-Carneiro, F., & Jacó-Vilela, A. (2012). O cuidado com a infância e sua importância para a
constituição da psicologia no Brasil. Interamerican Journal of Psychology, 46 (1), 159-170

Del Priore, M. (1991). O cotidiano da criança livre entre colônia e império. Em: História da infância de
criança no Brasil. Ed. Contexto.

Duschinsky, R. (2013). Augustine, Rousseau, and the idea of childhood. Heythrop Journal, 54 (1), 77-
88.

Ferreira, A. (2004). Novo dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Régis Ltda.

Frota, A. (2007). Diferentes concepções da infância e adolescência: a importância da historicidade para


sua construção. Estudo e Pesquisa em Psicologia. 7 (1), 147-160.

Heywood, C. (2004). Uma história da infância: da Idade Média á época contemporânea no Ocidente.
Porto Alegre: Artmed.

Kuhlmann, J. (1998). Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação.

Lage, M., & Rosa, M. (2011). Evolução da infância no Brasil: do anonimato ao consumismo. Revista
Eletrônica de Educação, IV (8), 1-19.

Leifsen, E. (2009). Childhoods in shifting analytical spaces: cross-cultural, biocultural, and human
ecological perspectives. Reviews in Anthropology, 38 (3), 197-216. doi:10.1080/00938150903110617

Levin, E. (1997). A infância em cena. Constituição do sujeito e desenvolvimento psicomotor.


Petrópolis, Rio de janeiro: Vozes

Lockmann, K, & Mota, M. (2013). Práticas de assistência à infância no Brasil: uma abordagem histórica.
Revista Linhas, 14 (26), 76 – 111. doi: 10.5965/198472381426201376

Meins, E., Fernyhough, C., Arnott, B., Turner, M. & Leekam, S. (2011). Mother- versus infant-centered
correlates of maternal mind-mindedness in the first year of life. Infancy, 16 (2), 137-165.
doi:10.1111/j.1532-7078.2010.00039.x

Müller, F. & Hassen, M. (2009). A infância pesquisada. Psicologia USP, 20 (3), 465-480.

Pinto, E. (2009). O desenvolvimento do comportamento do bebê prematuro no primeiro ano de


vida. Psicologia: Reflexão e Crítica, 22(1), 76-85.

Poletto, L (2012). A (des) qualificação da infância: a história do Brasil na assistência dos jovens.
Trabalho apresentado no IX Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sul.

Prout, A. (2004). Reconsiderar a nova sociologia da infância. Braga: Universidade do Minho; Instituto
de Estudos da Criança.

Revista CES Psicología ISSN 2011-3080 Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp.126-137
136
Samuel Lincoln Bezerra L., Maria de Fátima Oliveira C., Zoraide Margaret Bezerra L., Terezinha Féres C.
A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

Punch, S. (2007). Childhood and society: an introduction to the sociology of childhood. Children &
Society, 21(3), 235-236. doi:10.1111/j.1099-0860.2007.00090.x

Qvortru, J. (2011). Nove teses sobre a "infância como um fenômeno social". Pro-Posições [online]. 22
(1), 199-211. doi: 10.1590/S0103-73072011000100015.

Rabuske, M., Oliveira, D. & Arpini, D. (2005). A criança e o desenvolvimento infantil na perspectiva de
mães usuárias do Serviço Público de Saúde. Estudos de Psicologia (Campinas), 22(3), 321-331.

Ribeiro, P. (2006). História da Saúde Mental Infantil: a criança brasileira da Colônia à República Velha.
Psicologia em Estudo, 11 (1), 29-38.

Sarmento, M. & Pinto, M. (1997). As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo.
In: Sarmento, M. J. e Pinto, M. As crianças, contextos e identidades. Braga, Portugal. Universidade
do Minho. Centro de Estudos da Criança. Ed. Bezerra, Asa.

Silva Santos, E. (2004). (Des)construindo a ‘menoridade’: uma análise crítica sobre o papel da
Psicologia na produção da categoria “menor”. In: Gonçalves, H. S. & Brandão, E. P. (Org.). Psicologia
Jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: NAU.

Silva, I., Luz, I. & Faria Filho, L. (2010). Grupos de pesquisa sobre infância, criança e educação infantil
no Brasil: primeiras aproximações. Revista Brasileira de Educação, 15 (43), 84-97.

Silveira, J. (2000). Infância na Mídia: sujeito, discurso, poderes. (Dissertação de Mestrado) Porto
Alegre: FACED/UFRGS.

Tisdall, E. & Punch, S. (2012). Not so ‘new’? Looking critically at childhood studies. Children's
Geographies, 10 (3), 249-264. doi:10.1080/14733285.2012.693376

Tomás, C. (2001). A transformação da infância e da educação: algumas reflexões sócio-históricas.


Paidéia, 11 (20), 69-72.

Recibido: Febrero 27-2014 Revisado: Junio 27-2014 Aceptado: Septiembre 9-2014

Revista CES Psicología ISSN 2011-3080 Volumen 7 Número 2 Julio-Diciembre 2014 pp.126-137
137
Temas em Psicologia
ISSN: 1413-389X
comissaoeditorial@sbponline.org.br
Sociedade Brasileira de Psicologia
Brasil

Marcondelli Dias Maia, Joviane; Cavalcanti de Albuquerque Williams, Lucia


Fatores de risco e fatores de proteção ao desenvolvimento infantil: uma revisão da área
Temas em Psicologia, vol. 13, núm. 2, 2005, pp. 91-103
Sociedade Brasileira de Psicologia
Ribeirão Preto, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=513751425002

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
o
ISSN 1413-389X Temas em Psicologia — 2005, Vol. 13, n 2, 91 – 103

Fatores de risco e fatores de proteção ao


desenvolvimento infantil: uma revisão da área

Joviane Marcondelli Dias Maia


Universidade Federal de São Carlos

Lucia Cavalcanti de Albuquerque Williams


Universidade Federal de São Carlos

Resumo
O presente estudo teve como objetivo analisar a literatura existente sobre fatores de risco e
fatores de proteção ao desenvolvimento infantil, e destacar a importância de que os profissionais
que atuam junto à infância e adolescência conheçam tais fatores de forma a exercer sua prática
de modo mais efetivo, atuando preventivamente frente a problemas de comportamento na
infância e adolescência, bem como respeitando os direitos desta população. Destaca-se a vasta
literatura existente sobre os fatores de risco, porém, os estudos do desenvolvimento infantil
necessitam incluir os fatores de proteção, com a mesma ênfase dada aos fatores de risco,
visando promover a resiliência. Tal revisão da literatura deu subsídios para um estudo com o
objetivo de avaliar a capacitação de Conselheiros Tutelares no sentido de habilitá-los a
identificação de fatores de risco e de proteção ao desenvolvimento infantil.
Palavras-chaves: Fatores de risco, Fatores de proteção, Prevenção de problemas de
comportamento.

Risk and protective factors for child development

Abstract
A study was aimed at reviewing the existing literature on risk and protective factors for child
development, as well as to highlight the need for professionals, who work with children and
adolescents to know the above factors, so as to have a more effective practice, acting in a
preventative way towards children and adolescents’ behavior problems. The vast literature
concerning risk factors is emphasized. Nevertheless, child development studies need to include
protective factors with the same emphasis it is given to risk ones, in order to promote resilience.
The literature review described here gave basis for an intervention program to assess training of
Brazilian Child Protection Workers, teaching them to identify risk and protective factors for
child development.
Keywords: Risk factors, Protective factors, Prevention of problem behaviors.

Em 1990, entra em vigor, no Brasil, o que todo profissional das áreas social,
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, educação ou saúde, deva comunicar à
Lei Federal n. 8069, 1990), responsável por autoridade competente os casos de seu
muitas mudanças no cenário brasileiro, em conhecimento envolvendo suspeita ou
relação à visão dos direitos das crianças e confirmação de maus-tratos contra a criança
dos adolescentes, sendo esse um instrumento ou adolescente, cabendo pena prevista caso
importante para a proteção de crianças e tal comunicação não ocorra.
jovens. Cabe destacar a obrigatoriedade É necessário, porém, que todos os
estabelecida pelo ECA em seu artigo 245 de profissionais que atuem na área da infância e

Endereço para correspondência: Joviane Marcondelli Dias Maia, Laboratório de Análise e Prevenção da
Violência Doméstica (LAPREV), Universidade Federal de São Carlos. Via Washington Luis, Km 235.
Fone: 16- 33518745. www.cech.ufscar.br/laprev.htm. Email: joviane_marcondelli@yahoo.com.br
92 Maia, J. M. D. e Williams, L.C. A.

da adolescência tenham conhecimento dos Cabe salientar que os fatores de risco


direitos estabelecidos pelo ECA (1990), bem por si só não constituem uma causa
como dos fatores de risco envolvidos no específica, mas indicam um processo
prejuízo ao desenvolvimento infantil, para complexo que pode justificar a conseqüência
que possam intervir de forma precisa na de uma psicopatologia na criança (Holden,
prevenção e/ou interrupção do risco. Geffner & Jouriles, 1998). Por outro lado, os
O presente estudo teve como objetivo fatores de proteção podem ser definidos
analisar a literatura existente referente aos como aqueles fatores que modificam ou
fatores de risco ao desenvolvimento infantil, alteram a resposta pessoal para algum risco
bem como aos fatores de proteção, de forma ambiental que predispõe a resultado mal-
a promover uma maior compreensão do adaptativo, como por exemplo: o estágio do
próprio desenvolvimento, dos fatores do que desenvolvimento da criança, seu
possam prejudicá-lo, ou potencializá-lo. temperamento e a habilidade de resolução de
A busca da literatura nacional e problemas do indivíduo (Rutter, 1985).
internacional da área foi realizada através Hutz, Koller e Bandeira (1996, citado
das bases de dados PsycLIT, Scielo e por Reppold et al., 2002) sinalizam
Plataforma Lattes. As palavras-chaves mecanismos, fatores ou processos protetores
utilizadas foram: fatores de risco, fatores de como influências que melhoram ou alteram
proteção, fatores protetivos, risco, proteção, a resposta dos indivíduos a ambientes hostis,
desenvolvimento infantil, violência e que predispõem a conseqüências mal
resiliência. A maior parte da literatura adaptativas. Tais fatores são compreendidos
consultada foi de artigos científicos, como condições ou variáveis que diminuem
capítulos de livros, já monografias, a probabilidade de o indivíduo desenvolver
dissertações de Mestrado e Anais de problemas de externalização, tais como:
Congressos, representam a minoria desta agressão, uso de álcool ou drogas, raiva,
literatura consultada. desordem de conduta, crueldade para com
Segundo Reppold, Pacheco, Bardagi e animais, entre outros (Holden et al., 1998).
Hutz (2002), os fatores de risco são
condições ou variáveis associadas à alta
probabilidade de ocorrência de resultados Fatores de risco ao
negativos ou indesejáveis. Dentre tais desenvolvimento infantil
fatores encontram-se os comportamentos
que podem comprometer a saúde, o bem- Segundo Reppold et al. (2002), os
estar ou o desempenho social do indivíduo. eventos estressantes da vida, considerados
como quaisquer mudanças no ambiente que
Demais definições sobre fatores de
normalmente induzem a um alto grau de
risco são concordantes. Para Ramey e
tensão e interferem nos padrões normais de
Ramey (1998), crianças portadoras de
resposta do indivíduo, têm sido associados a
determinados atributos biológicos e/ou sob uma grande variedade de distúrbios físicos e
efeito de determinadas variáveis ambientais mentais. Barnett (1997) afirma que nenhum
têm maior probabilidade de apresentar outro fator de risco tem uma associação mais
distúrbio ou atraso em seu desenvolvimento, forte com a psicopatologia do
quando comparadas com crianças que não desenvolvimento do que uma criança
sofreram efeitos de tais variáveis. Estas maltratada, ou seja, o abuso e a negligência
variáveis são denominadas fatores de risco. causam efeitos profundamente negativos no
Para Garmezy (1985), os fatores de risco são curso de vida da criança. Segundo tal autor,
aqueles fatores que, se presentes, aumentam as seqüelas do abuso e da negligência
a probabilidade de a criança desenvolver abrangem grande variedade de domínios do
uma desordem emocional ou desenvolvimento, incluindo as áreas da
comportamental. Tais fatores podem incluir cognição, linguagem, desempenho
atributos biológicos e genéticos da criança acadêmico e desenvolvimento sócio-
e/ou da família, bem como fatores da emocional. As crianças maltratadas,
comunidade que influenciam, tanto o geralmente, apresentam déficit em suas
ambiente da criança quanto de sua habilidades de regular afeto e no
respectiva família. comportamento geral.
Risco e proteção infantil 93

A temática da violência intrafamiliar Segundo Hughes, Graham-Bermann e


está cada vez mais presente no cenário atual, Gruber (2001), vários estudos identificam
sendo freqüentemente divulgada pela mídia. características da personalidade dos pais
Diariamente, crianças e adolescentes vêm associadas ao comportamento abusivo.
sendo submetidos, em seus próprios lares, a Aqueles que cometeram abuso físico em
condições adversas, o que refletirá em crianças relataram mais raiva e tiveram
prejuízos no seu desenvolvimento. Entende- problemas no manejo desta raiva, quando
se como fatores de risco ao desenvolvimento comparados com os que não cometeram
infantil todas as modalidades de violência abuso físico. Os mesmos autores mencionam
doméstica, a saber: a violência física, a estudos sugerindo ligações entre adultos que
negligência e a violência psicológica, sendo abusam de crianças e características como:
que a última inclui a exposição à violência baixa tolerância à frustração, baixa auto-
conjugal (Brancalhone, Fogo & Williams, estima, rigidez, ausência de empatia, abuso
2004; Brancalhone & Williams, 2003; ou dependência de substâncias, depressão e
Cardoso, 2001; Maldonado & Williams, problemas físicos de saúde. Quando
2005) e a violência sexual (Azevedo & comparados com pais não abusivos, os pais
Guerra, 1989; Brino & Williams, 2006, abusivos possuíam menor compreensão da
Brino & Williams, 2003a; Brino & complexidade dos relacionamentos sociais,
Williams, 2003b; Deslandes, 1994). particularmente menor compreensão sobre o
papel parental e sobre o atendimento às
A violência física envolve maus tratos necessidades da outra pessoa. Tais pais
corporais (espancamento, queimaduras, apresentaram também, expectativa não
fraturas, contusões, etc). As conseqüências realista e percepção negativa de seus filhos.
da vitimização física de crianças abrangem Consideravam seu papel de pai como sendo
impactos deletérios para o desenvolvimento estressante e interagiam menos com seus
infantil (Barnett, 1997; Santos, 2001). filhos do que pais os não abusivos. Segundo
Widom (1989) assinala que, as crianças Williams (2003) pais que são portadores de
maltratadas fisicamente, foram identificadas deficiência mental tem maior probabilidade
por agências de assistência social, como de agredir seus filhos.
tendo o dobro de probabilidade (15,8%) em
Como características da criança que
relação às outras crianças (7,9%) de serem
aumentam sua vulnerabilidade para o abuso
presas mais tarde por cometerem crimes
físico, Hughes et al. (2001) destacam: idade
violentos. Maus tratos na infância
menor do que cinco anos, complicações no
constituem, deste modo, um fator que pode
nascimento, deficiências físicas e mentais e
aumentar a probabilidade futura de crimes
comportamentos considerados difíceis.
violentos. A violência doméstica é o fator
Como variáveis de relacionamento que
que mais estimula crianças e adolescentes a
podem aumentar a probabilidade de abuso,
viverem nas ruas.
os mesmos autores destacam: viver em um
Barnett (1997) destaca que as crianças lar no qual há violência doméstica ou
mais jovens ou bebês são mais vulneráveis a discórdia marital, crianças de famílias com
sofrerem abuso físico, pois não são capazes histórias intergeracionais de abuso e baixo
de escapar ou "apaziguar" pais status sócio-econômico. Finalmente, como
eminentemente abusivos. Segundo tal autor, fatores da comunidade relacionados com o
há várias razões para crer que os maus-tratos risco da criança vir a ser abusada
de crianças pequenas podem ser até mais fisicamente, Hughes et al. (2001) apontam
extensos do que o estimado, pois, no geral, para o senso de aprovação da violência pela
essas crianças não possuem contato diário sociedade, aprovação de punição corporal e
com professores que poderiam detectar e distribuição desigual de poder dentro da
comunicar suspeitas de abuso e negligência, família e da sociedade.
e também por ser difícil distinguir em A negligência, por sua vez, ocorre
crianças pequenas, maus-tratos de injúrias quando se priva a criança de algo que ela
acidentais. Vale destacar que tal tipo de necessite, quando isto é essencial para o seu
violência permanece como principal causa desenvolvimento sadio (alimentação,
de morte na infância (Azevedo & Guerra, vestuário, segurança, oportunidade de estudo
1995). etc). Seus efeitos podem levar à desnutrição,
94 Maia, J. M. D. e Williams, L.C. A.

ao atraso global no desenvolvimento e até sociais pobres, pais autoritários, perda da


mesmo à fatalidade (Monteiro, Abreu & empatia, estresse social, violência doméstica
Phebo, 1997a). e disfunção familiar (American Academy of
A violência psicológica ocorre quando Pediatrics, 2002).
alguém é submetido a ameaças, humilhações Uma criança que nasce em um lar
e privação emocional. Esta violência pode violento está exposta a fatores de risco ao
consistir em ameaças de vários tipos seu desenvolvimento (Koller, 1999). De
(suicídio, morte, danificação de propriedade, modo geral, mesmo não sendo vítima direta
agressão à vítima ou a seus entes queridos, da violência, a criança pode apresentar
entre outras) (França, 2003). Cabe problemas em decorrência da exposição à
mencionar que a pesquisa relativa a tal tema violência conjugal.
é ainda recente (O’Leary, 2001). Como Segundo Sinclair (1985), estudos
conseqüências da violência psicológica, o realizados indicaram que a observação da
Conselho Americano de Pediatria (American violência doméstica afeta e interfere no
Academy of Pediatrics, 2002) destaca desenvolvimento físico e mental das
prejuízos nas seguintes áreas: pensamentos crianças. Cardoso (2001) salienta que a
intrapessoais (medo, baixa-estima, sintomas criança que observa a violência doméstica
de ansiedade, depressão, pensamentos no lar vivenciará a ambivalência das
suicidas etc), saúde emocional (instabilidade emoções e reações entre amor e ódio, além
emocional, problemas em controlar impulso de confusões, conflitos e outras vivências
e raiva, transtorno alimentar e abuso de negativas. Outros efeitos nocivos da
substâncias), habilidades sociais exposição da criança à violência conjugal
(comportamentos anti-social, problemas de indicados na literatura são: a agressão, uso
apego, baixa competência social, baixa de drogas e/ou álcool, distúrbio de atenção,
simpatia e empatia pelos outros, baixo rendimento escolar (Brancalhone &
delinqüência e criminalidade), aprendizado Williams, 2003), ansiedade, depressão,
(baixa realização acadêmica, prejuízo Transtorno de Estresse Pós-Traumático e os
moral), e saúde física (queixa somática, problemas somáticos, entre outros (Barnett,
falha no desenvolvimento, alta mortalidade). 1997; Santos, 2001). Brancalhone, Fogo e
A mesma fonte destaca que a Williams (2004) salientam que crianças que
severidade das conseqüências da violência assistem à agressão do pai contra a mãe, no
psicológica é influenciada pela intensidade, geral, assistem rotineiramente essa
gravidade, freqüência, cronicidade e violência.
apaziguamento, ou realce dos fatores Para Sinclair (1985), uma criança que
relacionados aos cuidadores da criança, da convive com a violência ou ameaça do pai
própria criança ou do ambiente. O estágio do contra a mãe é uma criança que precisa de
desenvolvimento da criança pode também proteção, pois tem risco de ser ela própria
influenciar as conseqüências da violência física e sexualmente abusada. Para Holden et
psicológica (American Academy of al. (1998), a mulher agredida pode descontar
Pediatrics, 2002). sua raiva e frustração na criança, a criança
A violência psicológica é a mais difícil pode machucar-se acidentalmente tentando
de ser identificada, apesar de ocorrer com parar a violência ou proteger sua mãe e,
significativa freqüência. Ela pode levar a finalmente, a criança que testemunha a
pessoa a sentir-se desvalorizada, sofrer de agressão contra a própria mãe poderá tornar-
ansiedade e adoecer com facilidade. se um marido agressor ou uma mulher
Situações que se arrastam por muito tempo e agredida.
se agravam, podem provocar o suicídio Os efeitos da observação da violência
(Ministério da Saúde & Ministério da podem ser entendidos com base na teoria da
Justiça, 2001). Aprendizagem Social. Tal teoria sustenta
Como fatores de risco para a ocorrência que padrões aprendidos por crianças em um
da violência psicológica associados aos pais, lar violento agem como modelos de como se
pode-se destacar: habilidades parentais comportar em interações sociais (Bandura,
pobres, abuso de substâncias, depressão, 1976). Além disso, crianças expostas a
tentativas de suicídio ou outros problemas ambientes estressantes podem apresentar
psicológicos, baixa auto-estima, habilidades quadros de dissociação a ponto de gerar
Risco e proteção infantil 95

rupturas bruscas e patológicas com a intensidade da violência empregada (quanto


realidade (Caminha, 1999). Segundo o maior, pior o prognóstico), a topografia do
Manual Diagnóstico e Estatístico de ato sexual em si (havendo penetração oral,
Transtornos Mentais (American Psychiatric vaginal ou anal, os resultados são mais
Association, 2000), a característica essencial graves do que sem penetração), a duração do
dos transtornos dissociativos é uma abuso (quanto mais longo, maiores as
perturbação nas funções habitualmente dificuldades), a freqüência e o apoio dado à
integradas de consciência, memória, vítima pelo membro não agressor (no geral a
identidade ou percepção de ambiente. mãe da criança).
A violência sexual compreende toda No que se refere à identificação dos
situação na qual um ou mais adultos, do sintomas apresentados por uma criança que
mesmo sexo ou não, utilizam a criança ou sofreu abuso sexual, Caminha (1999)
adolescente com a finalidade de obter prazer destaca que os estudiosos da área parecem
sexual. Tal ato pode incluir desde conversas ter chegado a um consenso, porém,
ou telefonemas obscenos, passando por educadores, conselheiros tutelares e
exibição dos órgãos sexuais, até relações profissionais da saúde, ainda não estão
sexuais impostas (vaginais, anais ou orais) capacitados para identificar o fenômeno da
(CRAMI, 2000). violência infantil e tão pouco para lidar com
Segundo Monteiro, Abreu e Phebo eles. Padilha (2002) afirma que a
(1997b) tal tipo de violência pode abranger: peculiaridade do abuso sexual reside no fato
a) abuso sem contato físico - abuso sexual de não haver, muitas vezes, provas físicas de
verbal, telefonemas obscenos, sua ocorrência e pela idéia errônea do
exibicionismo, voyeurismo, mostrar para a abusador argumentar que não forçou a
criança fotos ou vídeos pornográficos, e criança a fazer nada.
fotografar crianças nuas ou em posições Barnett (1997) enfatiza quatro fatores
sedutoras; b) abuso sexual com contato de risco que estão associados à ocorrência de
físico - atos físico-genitais, relações sexuais abuso infantil crônico e negligência:
com penetração vaginal, tentativa de pobreza, história e personalidade dos pais e
relações sexuais, carícias nos órgãos habilidades dos mesmos. A pobreza é
genitais, masturbação, sexo oral e destacada por incluir todo um ambiente de
penetração anal; c) prostituição de crianças estresse gerando problemas situacionais que
e adolescentes - essencialmente casos de comprovadamente comprometam o
exploração sexual visando fins econômicos. desenvolvimento. Guralnick (1998)
Williams (2002) realizou uma revisão confirma que tal estado é um estressor
da literatura sobre os possíveis efeitos do freqüentemente associado a conseqüências
abuso sexual. A curto prazo podem aparecer sérias e globais para o desenvolvimento da
problemas tais como: comportamento criança. Aiello e Williams (2000) salientam
sexualizado, ansiedade, depressão, queixas que a grande desigualdade social brasileira
somáticas, agressão, comportamentos faz com que: "a população de crianças
regressivos (enurese, encoprese, birras, consideradas de risco torna-se gigantesca,
choros), comportamentos auto-lesivos, apenas levando-se em conta fator de
problemas escolares, entre outros. A longo condições econômicas" (Aiello & Williams,
prazo há risco de: depressão, ansiedade, 2000, p. 24).
prostituição, problemas com relacionamento Com relação à história dos pais, Barnett
sexual, promiscuidade, abuso de substâncias, (1997) destaca dados como: 30% das
ideação suicida entre outros. Azevedo e crianças maltratadas produzirão abuso ou
Guerra (1989), também destacaram efeitos negligência em suas crianças no futuro, já
similares do abuso sexual a curto e a longo 70% de pais que maltratam seus filhos foram
prazo. maltratados quando crianças. É importante
Como fatores que influenciam o destacar também fatores associados à
prognóstico dos casos de abuso sexual gravidez com aumento de risco de maus
infantil, pode-se destacar, segundo Williams tratos, como: gravidez de pais adolescentes
(2002), a proximidade do agressor em sem suporte social, gravidez não planejada
relação à vítima (os casos de incestos são os e/ou não desejada, gravidez de risco,
mais graves), o número de agressores, a depressão na gravidez, e falta de
96 Maia, J. M. D. e Williams, L.C. A.

acompanhamento pré-natal, bem como educativas parentais. Tais práticas poderão


pai/mãe com múltiplos parceiros, desenvolver tanto comportamentos pró-
expectativas demasiadamente altas ou sociais como anti-sociais, dependendo da
irrealista em relação à criança e prostituição. freqüência e intensidade que o casal parental
No que se refere à personalidade dos utiliza determinadas estratégias educativas.
pais, Barnett (1997) afirma que a maioria Em seu estudo sobre estilos parentais
dos pais possui características que podem Gomide (2003), selecionou variáveis
prejudicar seus filhos, no entanto, grande vinculadas ao desenvolvimento do
parte não permite que tais características comportamento anti-social, sendo as práticas
interfiram no cuidado destinado a eles. O educativas negativas: a) negligência -
autor destaca também, que as pesquisas têm ausência de atenção e afeto; b) abuso físico e
apontado para o egocentrismo e a psicológico - disciplina por meio de práticas
imaturidade de pais que maltratam, corporais negativas, ameaça ou chantagem
particularmente no que diz respeito ao de abandono ou humilhação do filho; c)
entendimento de seus papéis de cuidadores. disciplina relaxada - relaxamento das regras
Finalmente, no que se refere às habilidades estabelecidas; d) punição inconsistente - pais
dos pais, Barnett (1997) destaca que os pais que se orientam pelo seu humor para punir
que maltratam são menos positivos e dão ou reforçar e não pelo ato praticado; e e)
menos suporte na educação de suas crianças, monitoria negativa - excesso de instruções
sendo mais negativos, hostis e punitivos do independente de seu cumprimento, o que
que pais que não maltratam. Tais pais gera um ambiente de convivência hostil.
tendem a reagir mais negativamente do que
outros pais a desafios como o choro de uma No que se refere ao engajamento em
criança. atos infracionais, cabe salientar que as
crianças que iniciam precocemente
Ainda dentro da noção de risco,
comportamentos agressivos têm maior risco
Guralnick (1998) aponta para os estressores
de cometer tais atos infracionais ou
que podem afetar o desenvolvimento da
abusarem de drogas (Kumpfer & Alvarado,
criança, destacando: a) características
2003). Os fatores de risco para problemas
interpessoais dos pais - grau de depressão,
como atos infracionais por jovens têm sido
nível instrucional, experiências
tema de alguns estudos preocupados em
intergeracionais aprendidas sobre
identificar variáveis preditoras deste padrão.
habilidades parentais, incluindo expectativas
Reppold, Pacheco, Bardagi e Hutz (2002)
culturais; e b) características não
destacam a revisão de literatura de Loeber e
diretamente relacionadas a alguma
Dishion (1983) que culminou em quatro
deficiência da criança, como a qualidade do
principais preditores: práticas parentais,
relacionamento conjugal, o temperamento da
presença de problemas de comportamentos
criança, e fontes de apoio disponíveis,
durante a infância, ocorrência de
incluindo recursos e rede de apoio social da
comportamento anti-social em algum
família.
membro da família, e abandono ou pouco
Adicionalmente, outros fatores de risco envolvimento escolar (Gallo & Williams,
ao desenvolvimento psicológico e social 2005).
citados pela literatura são: pais portadores de
deficiência mental (Aiello & Buonadio, Silva e Hutz (2002) assinalam para o
2003; Santos, 2001; Turnbull & Turnbull, fato de a criança ter sido vítima de abuso
1990; Williams, 2003), baixa escolaridade (físico, sexual, psicológico e/ou negligência)
dos pais, famílias numerosas, ausência de como risco para o surgimento de atos
um dos pais, depressão materna, abuso de infracionais, aumentando as chances de que
drogas (Barnett, 1997; Fox & Benson, 2003; ela venha a apresentar tal comportamento.
Guralnick, 1998). Kumpfer e Alvarado (2003) ressaltam que a
Segundo Gomide (2003), a fim de probabilidade do jovem ter problemas no
cumprir o papel de agentes de socialização desenvolvimento aumenta rapidamente na
dos filhos, os pais utilizam-se de diversas presença de fatores de risco como: conflitos
estratégias e técnicas para orientar seus familiares, perda do vínculo pai-filho,
comportamentos que são denominadas por desorganização, práticas parentais
muitos autores pela expressão: práticas ineficazes, estressores e depressão parental.
Risco e proteção infantil 97

O Ministério da Saúde (2002) identifica Fatores de proteção ao


fatores de risco ao desenvolvimento infantil desenvolvimento infantil
referentes à família e à criança. Como
Garmezy (1985) classifica os fatores de
fatores de risco inerentes à família ele proteção em três categorias, que serão
destaca: a) famílias baseadas em uma discutidos no presente trabalho: a) atributos
distribuição desigual de autoridade e poder; disposicionais da criança - atividades,
b) famílias nas quais não há uma autonomia, orientação social positiva, auto-
diferenciação de papéis, levando ao estima, preferências, etc); b) características
apagamento de limites entre os membros; c) da família - coesão, afetividade e ausência
famílias com nível de tensão permanente, de discórdia e negligência etc); e c) fontes
manifestado por dificuldades de diálogo e de apoio individual ou institucional
descontrole da agressividade; d) famílias nas disponíveis para a criança e a família -
quais não há abertura para contatos externos; relacionamento da criança com pares e
e) famílias nas quais há ausência ou pouca pessoas de fora da família, suporte cultural,
manifestação positiva de afeto entre atendimento individual como atendimento
médico ou psicológico, instituições
pai/mãe/filho; e f) famílias que se encontram
religiosas, etc.
em situação de crise, perdas (separação do
casal, desemprego, morte, etc). Segundo Bee (1995), a família pode ser
destacada como responsável pelo processo
Como fatores de risco referentes à de socialização da criança, sendo que, por
criança, a mesma fonte menciona: crianças meio dessa, a criança adquire
com falta de vínculo parental nos primeiros comportamentos, habilidades e valores
anos de vida, distúrbios evolutivos, crianças apropriados e desejáveis à sua cultura. Nesse
separadas da mãe ao nascer por doença ou contexto, a internalização de normas e regras
prematuridade, crianças nascidas com mal- possibilitarão à criança um desempenho
formações congênitas ou doenças crônicas social mais adaptado e aquisição de
(retardo mental, anormalidades físicas, autonomia.
hiperatividade), baixo desempenho escolar e Se hostilidade e negligência parental
evasão (Ministério da Saúde, 2002). contribuem para o engajamento de
indivíduos com distúrbios de conduta em
No que se refere aos comportamentos grupos criminosos, por outro lado, práticas
de risco emitidos por adolescentes, a efetivas, um bom funcionamento familiar, a
Associação Americana de Psicologia aponta: existência de vínculo afetivo, o apoio e
fumo, abuso de álcool e/ou drogas, relações monitoramento parental são indicativos de
sexuais que podem levar à gravidez e fatores protetores que reduzem a
doenças sexualmente transmissíveis, evasão probabilidade de adolescentes se engajarem
escolar, uso de armas, violência sexual, em atos infracionais. Desse modo, a família
brigas etc. Fox e Benson (2003) apontam pode ser identificada como fator de risco ou
para a existência de pesquisas destacando o como fator de proteção, dependendo do
papel da comunidade como sendo, também, estilo parental utilizado (Reppold et al.,
uma influência no desenvolvimento da 2002).
criança, porém tais efeitos são complexos, No estudo anteriormente citado de
não lineares e mediados pelo Gomide (2003) sobre estilos parentais, além
comportamento parental e pelo processo das práticas educativas negativas, a autora
familiar. Tais autores realizaram um estudo destaca práticas educativas positivas que
relacionando práticas parentais e contexto de envolvem: a) uso adequado da atenção e
distribuição de privilégios, o adequado
relação com a comunidade, extraindo como
estabelecimento de regras, a distribuição
conclusões que as famílias com contínua e segura de afeto, o
características positivas podem oferecer acompanhamento e supervisão das
proteção às suas crianças dos riscos da atividades escolares e de lazer; e b)
comunidade, e famílias de alto risco podem comportamento moral que implica no
encobrir as vantagens oferecidas por uma desenvolvimento da empatia, do senso de
“boa” vizinhança ou bairro. justiça, da responsabilidade, do trabalho, da
98 Maia, J. M. D. e Williams, L.C. A.

generosidade e no conhecimento do certo e recipiente passivo que recebe as influências


do errado quanto ao uso de drogas, álcool e familiares, sendo ela agente no sentido de
sexo seguro. participar das transações familiares (Holden
Guralnick (1998) assinalou três padrões et al., 1998).
que podem ser identificados como essenciais Rae-Grant, Thomas, Offord e Boyle
na interação da família: a qualidade da (1989) identificam como fatores de proteção
interação dos pais com a criança; a medida da criança: o temperamento positivo, a
em que a família fornece à criança inteligência acima da média e a competência
experiências diversas e apropriadas com o social (realização acadêmica, participação e
ambiente físico e social ao seu redor; e o competência em atividades, habilidade de se
modo pelo qual a família garante a saúde e a relacionar facilmente, alta auto-estima e
segurança da criança, como, por exemplo, senso de eficácia). Como fatores familiares
levando a mesma para ser vacinada e dando- favoráveis, os autores destacam o suporte
lhe nutrição adequada. dos pais, a proximidade da família e um
Segundo Kumpfer e Alvarado (2003), ambiente de regras adequado. Finalmente,
práticas parentais efetivas constituem-se no como fatores da comunidade, os autores
mais poderoso meio de se reduzir problemas destacam: os relacionamentos que a criança
de comportamentos de adolescentes. Tais apresenta com seus pares (fora da família),
autores apontam para pesquisas com outros adultos significativos e com
longitudinais, sugerindo que os pais instituições com as quais ela mantenha
possuem um maior impacto nos contato, dentre outros.
comportamentos de saúde dos adolescentes Werner (1998) assinala algumas
do que previamente pensado. Os mesmos características de crianças que conseguem
autores salientam que, apesar da influência lidar de forma adequada com as
dos pares ser a principal razão para o adversidades. Tais indivíduos possuem
adolescente iniciar comportamentos senso de eficácia e autocompetência, são
negativos, uma análise mais cuidadosa socialmente mais perceptivos do que seus
apontou para a preocupação dos pares que não conseguem lidar com as
adolescentes com a desaprovação dos pais adversidades, são capazes de despertar
referente ao uso de álcool ou drogas, como atenção positiva das outras pessoas,
principal razão para não usá-los. possuem habilidades de resolução de
Kumpfer e Alvarado (2003) destacam problemas, possuem a habilidade de solicitar
algumas pesquisas salientando o ambiente ajuda de outras pessoas quando necessário e
familiar positivo como a principal razão para possuem a crença de que podem influenciar
os jovens não se engajarem em positivamente o seu ambiente.
comportamentos delinqüentes ou A mesma autora aponta, ainda, como
comportamentos não saudáveis. Como fator de proteção o vínculo afetivo com um
exemplo de ambiente familiar positivo, cuidador alternativo, tal como os avós ou
destacaram: relacionamento positivo entre irmãos. Tal pessoa pode se tornar um
pais e filho, supervisão e disciplina suporte importante nos momentos de
consistente e comunicação dos valores estresse promovendo, também, a
familiares. competência, a autonomia e a confiança da
A oportunidade de a criança interagir criança. Werner (1998) destaca, também, a
com os pares e com outras pessoas fora da importância da segurança e da coerência na
família, o grau de escolaridade materna e vida dessa criança, afirmando que crenças
seu baixo-nível de depressão, estilos religiosas (independente da religião)
parentais adequados, uma qualidade de oferecem a convicção de que suas vidas
interação boa com a comunidade e uma rede possuem um sentido e um senso de
social fortemente estabelecida, podem ser enraizamento e de coerência. Os amigos e a
destacados como exemplos de fatores escola, também, são citados como fatores de
positivos à proteção da criança, que podem proteção importantes no sentido de
diminuir a expectativa de conseqüências fornecerem suporte emocional, e os
negativas (Holden et al., 1998). Cabe, professores podem vir a ser um modelo
também, ressaltar que dentro do contexto positivo de identificação pessoal para uma
familiar a criança não é simplesmente um criança de risco (Werner, 1998).
Risco e proteção infantil 99

A Associação Americana de Psicologia processo de resiliência individual devem ser


(APA) destaca fatores que podem ajudar a direcionados para reduzir os fatores de risco
proteger pessoas jovens de problemas no familiares. Como principais fatores de
desenvolvimento, vivendo até mesmo em proteção familiares para promover
condições adversas, tais como a pobreza. comportamentos adolescentes saudáveis, os
Neste contexto a Associação destaca a autores apontam: um relacionamento
“resiliência” para se referir à ocorrência de positivo entre pais e criança, método
bons resultados apesar de sérias ameaças ao positivo de disciplina, monitoramento e
desenvolvimento saudável (Rutter, 1985). supervisão, comunicação de valores e
A Associação exemplifica como fatores expectativas pró-sociais e saudáveis.
associados a resiliência: a) o relacionamento Segundo tais autores, as pesquisas em
positivo com ao menos um adulto resiliência sugeriram como principais fatores
significativo (parente ou não); b) a de proteção: o suporte parental auxiliando
existência de uma âncora religiosa ou crianças a desenvolverem sonhos, objetivos,
espiritual (fornece senso de significado); c) e propostas de vida.
expectativa acadêmica alta e realista, e Uma revisão realizada por Kumpfer e
suporte adequado; d) ambiente familiar Alvarado (2003), sobre os programas de
positivo (limites claros, respeito pela treinamento de habilidades familiares e de
autonomia do adolescente etc); e) terapia familiar breve em programas de
inteligência emocional; e f) habilidade para prevenção para adolescentes de alto risco e
lidar com o estresse. seus jovens pares, concluiu serem tais
A APA ressalta que não são necessários métodos eficazes na redução de problemas
todos esses fatores para que o adolescente adolescentes, com base na promoção da
torne-se resiliente frente às adversidades, supervisão familiar e no monitoramento, na
porém uma forte tendência a resiliência tem facilitação da comunicação efetiva de
sido associada como tendo presente um expectativas, normas e valores familiares, e
número maior de tais fatores de proteção. na promoção do tempo que a família
Segundo Hughes et al. (2001), os permanece junto para aumentar o vínculo e
pesquisadores têm estudado crianças reduzir a influência inadequada dos pares.
resilientes há vinte anos, como crianças
advindas de situações adversas, que vivem
em abrigos, sob condições de pobreza, com Conclusão
transtorno parental, crianças nascidas
Pode-se destacar a vasta literatura
prematuramente ou com baixo-peso,
existente que aponta os fatores de risco ao
crianças sem lar, e crianças cujos pais se
desenvolvimento infantil. Porém, faz-se
divorciaram. Porém, não há, segundo os
necessário, que os profissionais que atuam
autores, investigações de resiliência em
junto à infância e adolescência, tomem
criança expostas à violência doméstica.
conhecimento de cada um desses fatores,
Para os autores, os fatores de proteção
minimizando crenças e questões pessoais
associados à derrota da adversidade por
que possam contradizer a identificação de tal
crianças expostas à violência doméstica
risco, bem como sejam conscientizados de
incluem particularidades da criança, dos pais
e do ambiente. Como uma característica da sua importância como possíveis analistas e
criança associada a baixo risco de resultados possam intervir denunciando, tendo como
negativos, pode-se destacar a idade acima de objetivo o bem-estar da criança ou do
cinco anos. Como fatores parentais para adolescente. Dentre tais profissionais pode-
proteger crianças que vivem em famílias que se destacar: médicos, psicólogos,
experienciam violência doméstica destacam- fisioterapeutas, fonoaudiólogos, assistências
se: a competência parental e saúde mental da sociais, professores ou responsáveis por
mãe. Finalmente, como fatores de proteção estabelecimento de atenção a saúde e ensino
associados a um amplo contexto ambiental fundamental, pré-escola ou creche, dentre
destacam-se: validade e força do suporte outros.
social (Hughes et al., 2001). Nesse contexto, destaca-se o papel
Para Kumpfer e Alvarado (2003), os ímpar do Conselheiro Tutelar, profissional
mecanismos familiares de proteção e o responsável por receber as notificações de
100 Maia, J. M. D. e Williams, L.C. A.

casos nos quais haja suspeita ou competências e recursos informais presentes


confirmação de maus-tratos contra criança na vida das pessoas, competências essas que
ou adolescentes. Tal profissional deve estar podem ser utilizadas para promover o
habilitado para identificar os riscos aos quais repertório da habilidade de resolução de
crianças ou adolescentes possam estar sendo problemas e aumentar a auto-estima.
expostos e os fatores de proteção inseridos
nesse contexto, e assim executar sua função, Nesse contexto, cabe mencionar a
aplicando medidas de proteção cabíveis. Psicologia Positiva, tão discutida nos tempos
atuais, que direciona a Psicologia para o
Segundo a Secretaria de Promoção
estudo das emoções positivas e
Social da Província de Ontário, no Canadá
potencialidades das pessoas. Possui três
(Ontario Ministry of Community and Social
pilares principais: o estudo da emoção
Services, 2001), os profissionais que cuidam
positiva (como confiança e esperança), o
do bem-estar da criança (equivalentes ao
estudo das características positivas
Conselheiro Tutelar no Brasil), podem ser
(habilidades como inteligência e atletismo) e
guiados na formulação de questões
o estudo de instituições positivas
relevantes quanto a estratégias de proteção
(democracia, famílias saudáveis e liberdade
da própria criança. Tal fonte afirma a
de expressão) (Seligman, 2002).
necessidade de que tais profissionais
identifiquem os pontos fortes, as fraquezas e Em tempos difíceis, a compreensão e
as habilidades de todos os membros da construção de forças e virtudes, como:
família para proteger de modo eficaz suas valores, perspectivas, integridade torna-se
crianças. No que se refere aos recursos da mais urgente. Neste sentido, as forças e
criança para se auto-proteger, a Secretaria virtudes funcionam como pára-choque
aponta que estes profissionais deveriam contra o infortúnio e desordens psicológicas,
formular questões importantes que e podem ser a chave para a construção da
explorem: o relacionamento adequado com a resiliência (Seligman, 2002).
mãe, com outro membro da família ou com
vizinhos, suporte do ambiente escolar e de
grupos da comunidade, e ainda, a extensão
em que a criança entende a violência Referências
experienciada. Finalmente, a Secretaria de
Ontário apontou que, a fim de avaliar os Aiello, A. L. R., & Buonadio, M. C. (2003).
recursos da comunidade para promover a Mães com deficiência mental: O retrato
de uma população esquecida. In: M. C.
segurança das crianças, os profissionais
Marquezine, M. A. Almeida, S. Omote,
deveriam estar atentos para suportes como
& E. D. O. Tanaka (Org.). O papel da
suporte cultural, tratamento acessível para o
família junto ao portador de
abuso de substâncias, sistema de saúde,
necessidades especiais (Coleção
serviços de bem-estar e social, incluindo
Perspectivas Multidisciplinares em
aconselhamento e apoio.
Educação Especial, v. 6). (pp. 131-146).
No que se refere, mais especificamente, Londrina: Eduel.
à literatura sobre fatores de proteção ao
desenvolvimento infantil, o presente Aiello, A. L. R., & Williams, L. C. A.
trabalho gostaria de enfatizar sua (2000). O Papel do Inventario Portage
importância, bem como a necessidade de Operacionalização em Programas de
que os estudos sobre o desenvolvimento Educação Precoce. Anais do 39º
infantil possam incluí-la com a mesma Encontro das APAES do Paraná.
atenção dada aos fatores de risco, visando Educação Especial: para ser e
promover a resiliência. compreender, v. 1. (pp. 22-35). Bela
Destaca-se neste contexto o Vista do Paraíso, Paraná.
apontamento de Werner (1998) para a
necessidade de que as intervenções não American Academy of Pediatrics (2002).
sejam focalizadas somente nos fatores de The psychological maltreatment of
risco presentes na vida das crianças e suas children-technical report. Pediatrics,
famílias, mas também incluir as 109(4), 1-3.
Risco e proteção infantil 101

American Psychiatric Association (2000). Brino, R. F., & Williams, L. C. A. (2006).


Manual diagnóstico e estatístico de Brazilian teachers as agents to prevent
transtornos mentais (4a ed.). Porto child sexual abuse: An intervention
Alegre: Artes Médicas. assessment. In: D. Daro. World
Perspectives on Child Abuse (7a ed.).
Azevedo, M. A., & Guerra, V. N. A. (1989). (pp. 75-78) Chicago: ISPCAN –
Crianças vitimizadas: A síndrome do International Society for Prevention of
pequeno poder. São Paulo: Iglu. Child Abuse and Neglect.

Caminha, R. M. (1999). A violência e seus


Azevedo, M. A., & Guerra, V. N. A. (1995).
danos a crianças e ao adolescente. In:
A violência doméstica na infância e na
AMENCAR (Org.). Violência Doméstica
adolescência. São Paulo: Robe Editora.
(pp. 43-60) Brasília: UNICEF.
Bandura, A. (1976). Social learning theory. Cardoso, L. C. (2001). Impacto da violência
Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice- doméstica sobre a saúde mental das
Hall. crianças. Monografia de Conclusão de
Curso não publicada. Curso de
Barnett, D. (1997). The effects of early Graduação em Psicologia, Universidade
intervention on maltreating parents and Federal de São Carlos, São Carlos.
theirs children. In: M. J. Guralnick. The
effectiveness of early intervention. (pp. CRAMI. (2000). Centro Regional de
147-170). Baltimore: Paul Brookes. Atenção aos Maus Tratos na Infância.
São José do Rio Preto: Insight.
Bee, H. L. (1995). The developing child (7a Deslandes, S. F. (1994). Prevenir a
ed.). New York: HarperCollins College violência: um desafio para profissionais
Publishers. de saúde. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ/ENSP/CLAVES.
Brancalhone, P. G., & Williams, L.C.A.
(2003). Crianças expostas à violência Fox, G. L., & Benson, M. L. (2003).
conjugal: uma revisão de área. In: M. C. Children in violent households: risk and
Marquezine, M. A. Almeida, S. Omote, protective factors in family and
& E. D. O. Tanaka (Org.). O papel da neighborhood Contexts. II Congresso
família junto ao portador de Internacional de Violência na Infância e
necessidades especiais (Coleção na Família. República Tcheca.
Perspectivas Multidisciplinares em
Educação Especial, v. 6). (pp. 123-130) França, F. M. (2003). Os efeitos da denúncia
Londrina: Eduel. da mulher sobre a violência física e
psicológica do parceiro agressor.
Brancalhone, P. G., Fogo, J. C., & Williams, Monografia de Conclusão de Curso não
L. C. A. (2004). Crianças expostas à publicada, Curso de Graduação em
violência conjugal: avaliação do Psicologia, Universidade Federal de São
desempenho acadêmico. Psicologia: Carlos, São Carlos.
Teoria e Pesquisa, 20(2), 113-117.
Gallo, A. E., & Williams, L. C. A. (2005).
Adolescentes em conflito com a lei: uma
Brino, R. F., & Williams, L. C. A. (2003a). revisão dos fatores de risco para a
Concepções da professora acerca do conduta infracional. Psicologia: Teoria e
abuso sexual infantil. Cadernos de Prática, 7(1), 81-95.
Pesquisa, 119, 113-128.
Garmezy, N. (1985). Stress-resistant
Brino, R. F., & Williams, L. C. A. (2003b). children: the research for protective
Capacitação do educador acerca do abuso factors. In: J. E., Stevenson (Org.).
sexual infantil. Interação em Psicologia, Aspects of Current Child Psychiatry
7(2), 1-10. Research. Oxford: Pergamon.
102 Maia, J. M. D. e Williams, L.C. A.

Gomide, P. I. C. (2003). Estilos parentais e Monteiro, L., Abreu, V. I., & Phebo, L. B.
comportamento anti-social. In: A. Del (1997a). Maus tratos contra crianças e
Prette & Z. Del Prette (Orgs). adolescentes: proteção e prevenção: guia
Habilidades sociais, desenvolvimento e de orientação para profissionais.
aprendizagem (pp. 21-60). Campinas: Petrópolis: Autores & Agentes &
Alínea. Associados.

Guralnick, M. J. (1998). The effectiveness


of early intervention for vulnerable Monteiro, L., Abreu, V. I., & Phebo, L. B.
children: a developmental perspective. (1997b). Abuso sexual: mitos e realidade
American Journal on Mental (3a ed.) Petrópolis: Autores & Agentes &
Retardation, 102(4), 319-345. Associados.
Holden, G. W., Geffner, R., & Jouriles, E.
N. (1998). Children exposed to marital
O’Leary, K. D. (2001). Psychological abuse:
violence: theory, research, and applied
a variable deserving critical attention in
issues. Washington: American
domestic violence. In: K. D, O'Leary &
Psychology Association.
R. D., Maiuro. Psychological abuse in
Hughes, H. M., Graham-Bermann, S. A., & violent domestic relations (pp. 03-28).
Gruber. G. (2001). Resilience in children New York: Springer Publishing
exposed to domestic violence. In: S. J. Company.
Meisels & J. P. Shonkoff (Orgs).
Handbook of early childhood
intervention. (pp. 67-90). Nova York: Ontario Ministry of Community and Social
Cambridge University Press. Services (2001). Women abuse:
increasing safe for abused women and
Koller, S. H. (1999). Violência doméstica: their children. Ontário: Canadá.
uma visão ecológica. In: AMENCAR
(Org.). Violência doméstica (32-42).
Brasília: UNICEF. Padilha, M. G. S. (2002). Abuso sexual
contra crianças e adolescentes:
Kumpfer, K. L., & Alvarado, R. (2003). considerações sobre os fatores
Family-strengthening approaches for the antecedentes e sua importância na
prevention of youth problems behaviors. prevenção. Em: H. J.Guilhard; P. P.
Psychological Association, 58(6-7), 457- Queiróz; M. B. Madi & A. C. Scoz
465. (Orgs). Sobre comportamento ciência e
cognição: contribuições para a
Lei Federal n. 8069, de 13 de julho de 1990. construção da teoria do comportamento,
(1990, 13 de julho). Estatuto da Criança e Vol. 10 (pp. 209-220). Santo André:
do Adolescente. Diário Oficial da União. ESETEC.
Maldonado, D. P. A., & Williams, L. C. A.
(2005). O comportamento agressivo de
crianças do sexo masculino na escola e Rae-Grant, N., Thomas, B. E., Offord, D. R.,
sua relação com a violência doméstica? & Boyle, M. H. (1989). Protective
Psicologia em Estudo, 10(3), 353-362. factors, and the prevalence of behavior
and emotional disorders in children and
Ministério da Saúde (2002). Violência adolescents. Journal of American
intrafamiliar: orientações para a prática Academy of Child and Adolescent
em serviço. Brasília: Ministério da Saúde. Psychiatry, 28(2), 262-268.

Ministério da Saúde & Ministério da Justiça


(2001). Direitos humanos e violência Rammey, C. T., & Ramey, S. L (1998).
intrafamiliar. Brasília: Ministério da Early intervention and early experience.
Saúde. American Psychologist, 53, 109-120.
Risco e proteção infantil 103

Reppold, C. T., Pacheco, J., Bardagi, M., & Turnbull, A. P., & Turnbull, H. R. (1990).
Hutz, C. (2002). Prevenção de problemas Families with abuse: families,
de comportamento e desenvolvimento de professionals and exceptionality: a
competências psicossociais em crianças e special partnership (pp. 45-49). Ohio:
adolescentes: uma análise das práticas Merrill Publishing Company.
educativas e dos estilos parentais. In: C.
S., Hutz, (Org.), Situações de risco e Werner, E. E. (1998). Protective factors and
vulnerabilidade na infância e na individual resilience. In: S. J., Meisels, J.,
adolescência: aspectos teóricos e & P. Shonkoff (Orgs). Handbook of
estratégias de intervenção (pp. 7-51). Early Childhood Intervention. (pp. 97-
São Paulo: Casa do Psicólogo. 116). Nova York: Cambridge University
Press.
Rutter, M. (1985). Resilience in the face of
adversity. British Journal of Psychiatry, Williams, L. C. A. (2002). Abuso sexual
147, 598-611. infantil. In H. J. Guilhardi, M. B. B.
Madi, P. P. Queiroz, & M. C. Scoz
Santos, G. E. (2001). Intervenção com (Org.). Sobre comportamento e
famílias portadoras de necessidades cognição: Contribuições para a
especiais: o caso de pais agressores. construção da teoria do comportamento,
Dissertação de Mestrado não publicada. Vol 10 (pp. 155-164). Santo André:
Programa de Pós-Graduação em ESETec.
Educação Especial. Universidade Federal
de São Carlos, São Carlos. Williams, L. C. A. (2003). Sobre deficiência
e violência: Reflexões para uma análise
Seligman, M. E. P. (2002). Authentic de revisão de área. Revista Brasileira de
happiness: using the new positive Educação Especial, 9(2), 141-154.
psychology to realize your potential for
lasting fulfillment. New York: Free Press. Windon, C. S. (1989). The cycle of violence.
Science, 244, 160-166.
Silva, D. F. M., & Hutz, C. S. (2002). Abuso
infantil e comportamento delinqüente na
adolescência: prevenção e intervenção.
In: C. S., Hutz, (Org.). Situações de risco
e vulnerabilidade na infância e na
adolescência: aspectos teóricos e Enviado em Janeiro/2007
estratégias de intervenção (pp. 151-185). Revisado em Maio/2007
São Paulo: Casa do Psicólogo. Aceite final em Junho/2007
Sinclair, D. (1985). Understanding wife
assault: a training manual for counselors
and advocates. Toronto: Ontario.
Publishing Company.

Nota das autoras:


Trabalho apresentado na XXXVI Reunião Anual de Psicologia, em Salvador, 2006, na forma de sessão
coordenada: “Prevenção de problemas de comportamento na infância e adolescência”. Apoio Financeiro:
CAPES. Este trabalho é parte da Dissertação de Mestrado da autora: Joviane Marcondelli Dias Maia,
defendida no ano de 2002, no Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Universidade
Federal de São Carlos, com o título: “Capacitação de Conselheiros Tutelares: instruir para aprimorar”,
sob orientação da Profa. Dra. Lucia Cavalcanti de Albuquerque Williams. Joviane Marcondelli Dias Maia
- Psicóloga, Doutoranda em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos. Lucia
Cavalcanti de Albuquerque Williams - Psicóloga, Doutora em Psicologia pela USP, Professora Titular no
Curso de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Educação Especial, e Coordenadora do
LAPREV (Laboratório de Análise e Prevenção da Violência) na Universidade Federal de São Carlos.
MÓDULO 2
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020 ISSN 1983-3482
doi: 10.4013/ctc.2020.132.15

A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura

Child Psychoterapy in the Clinical Setting: A Systematic Review of the Literature

Rosa Angela Cortez Brito* / Sarah Montezuma / Anna Karynne Melo /


Virginia Moreira

Universidade de Fortaleza

________________________________________________________________________________________

Resumo: A psicoterapia destaca-se como modalidade de atendimento à criança.


Ressalta-se a importância de discutir sobre a psicoterapia infantil, pelo aumento da
procura por esse serviço. Com o objetivo de reconhecer como a psicoterapia infantil
tem sido conceituada e exercida, foi realizada uma revisão sistemática nas bases de
dados BVS, Science Direct e SAGE Pubs, no período entre 2008 e 2018. Dos estudos
encontrados, 67 artigos atenderam aos critérios de inclusão. Constatou-se que a
psicoterapia infantil vem se configurando como uma prática fundamental frente às
demandas existentes, bem como um campo de produção científica e de práxis voltada
às demandas em cada cultura. Verificou-se que as vivências infantis têm sido olhadas
com mais cuidado e com uma compreensão mais abrangente nesse campo de atuação.
Conclui-se que há abrangente discussão sobre os avanços da psicoterapia infantil,
assim como a permanente necessidade de investigação e de aprimoramento.

Palavras-chave: psicologia clínica; psicoterapia; psicoterapia infantil; revisão


sistemática.

Abstract: Psychotherapy stands out as a modality of childcare. It is important to


discuss child psychotherapy, by the increased demand for this service. To recognize
how child psychotherapy has been conceptualized and exercised, a systematic review
on BVS, Science Direct and SAGE Pubs databases was conducted in the period
between 2008 and 2018. Of the studies found, 67 articles met the inclusion criteria. It
was verified that child psychotherapy has been configured as a fundamental practice
face of the existing demands, as well as a field of scientific production and praxis
focused on the demands in each culture. It was verified that children's experiences
have been looked more carefully and with a more comprehensive understanding in
this field. It is concluded that there is a wide-ranging discussion on the advances of
child psychotherapy, as well as the permanent need for research and improvement.

Keywords: clinical psychology; psychotherapy; child psychotherapy; systematic


review.
________________________________________________________________________________________

* Correspondência para: Av. Washington Soares, 1321 - Edson Queiroz, Fortaleza - CE, 60811-905. E-mail: rosa@unifor.br
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

Introdução

A psicoterapia infantil destaca-se como uma modalidade de atendimento

psicológico de crianças, e conceitua-se como uma intervenção que visa a atender o

público infantil com questões diversas que possam causar estresse emocional e

interfiram no dia a dia da criança. Nessa intervenção podem interagir diversos fatores,

como a participação familiar e escolar, assim como a maneira que a criança se insere

nessas relações. Quaisquer destes fatores podem influenciar o curso da psicoterapia e o

resultado das intervenções (Deakin & Nunes, 2008; Cunha & Benetti, 2009; Brzozowski

& Caponi, 2013; Christon, McLeod, Wheat, Corona & Islam, 2016; Halfon, Goodman, &

Bulut, 2018).

Ariès (1981) chama a atenção de pesquisadores de diversas áreas, dentre elas, a

Psicologia, e sugere um olhar compreensivo e específico à história da infância, no qual

discute as concepções que as sociedades de cada época têm a respeito da infância. O

autor pontua que cada obra neste campo pode trazer indicativos das manifestações do

sofrimento infantil; e são estes trechos que são pertinentes e dão valência à psicoterapia

infantil.

A noção de infância tal como conhecemos na atualidade surgiu no século XIII,

mas o seu desenvolvimento e estabelecimento se consolidam apenas a partir do século

XVI e durante o século XVII. Contemporaneamente, a infância passou a ser reconhecida

como um período da constituição humana, que necessita de preparo e cuidados. Assim,

considera-se fundamental compreender e escutar as crianças frente às suas experiências,

com o intuito de acessar a sua vivência, de maneira contextualizada (Haubert & Vieira,

2014; Telles, 2014). Dentre os diversos contextos de escuta, destaca-se nesse trabalho a

psicoterapia.

Compreendida como uma estratégia de cuidado, discute-se na literatura que a

prática psicoterápica necessita se voltar para as demandas atuais de seus pacientes

(Alves, Machado, Gastaud e Nunes, 2013; Ayres & Barreira, 2014). Assim, ressaltam que
697
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

os psicólogos que atendem crianças devem atualizar suas ferramentas técnicas em

relação às dificuldades e aos sintomas da contemporaneidade.

Como a psicoterapia na psicologia é uma prática na qual a diversidade de

contextos de atuação é uma realidade (Oliveira, 2009; Ayres & Barreira, 2014),

compreende-se a importância de entende-la a partir do contexto de execução, haja vista

esse fator ser promotor de variações na atuação (Brito, 2008; Campos & Cury, 2009).

Segundo Holanda (2012), apesar de a psicoterapia ser constitutiva do saber psicológico,

tem sido um dos campos menos contemplados em pesquisas, debates e ações – por parte

da psicologia – no contexto brasileiro.

No desenvolvimento desse artigo, fez-se a opção de uma discussão delimitada na

psicoterapia infantil desenvolvida por psicólogos em setting ou âmbito clínico. Setting

será compreendido como ambiente dinâmico estabelecido para o desenvolvimento da

prática psicoterapêutica (Pechanski, 2015). No contexto clínico há um clima específico,

fenômeno que emerge da relação entre paciente e psicoterapeuta e que possibilita o

desenvolvimento da prática e a ocorrência de mudanças terapêuticas (Rogers, 1994).

A psicoterapia, como campo de atuação psicológica de âmbito clínico, é

conceituada como um método de tratamento do sofrimento psíquico por meios

essencialmente psicológicos (Doron & Parot, 1998). É um ato de escuta no qual o

psicoterapeuta volta-se para o cuidado do paciente e para a relação deste com seu

contexto relacional e social (Ayres & Barreira, 2014). A psicoterapia objetiva, ou fazer

desaparecer sintomas incômodos para o paciente, ou recompor o conjunto de seu

equilíbrio psíquico. Os critérios de cura variam conforme o procedimento adotado e a

teoria de base. Os métodos empregados se baseiam, ora no empirismo do terapeuta, ora

na teoria que garante sua coerência (Doron & Parot, 1998).

Prebianchi (2011) e Haubert e Vieira (2014) ressaltam a importância de fomentar

discussões sobre a psicoterapia com crianças, tendo em vista o aumento dos

encaminhamentos realizados por serviços de saúde para atendimentos infantis. Os


698
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

autores apontam ainda o aumento da demanda para atendimento individual e grupal

com crianças. Especificamente em contexto brasileiro, apesar de aumento de demanda

referido pelos autores, verifica-se que o número de estudos de revisão sistemática em

psicoterapia com crianças é bastante inferior ao produzido em outros países. Nesses

estudos, os temas relacionam-se com a psicoterapia pesquisada a partir de uma

abordagem ou de uma queixa (Passarela, Mendes & Mari, 2010) ou em elementos que

fazem parte da psicoterapia (Carvalho, Fiorini & Ramires, 2015), mas não do processo

como um todo, como ressaltado por Halfon, Goodman e Bulut (2018).

Diante da demanda crescente por atendimento, bem como da importância de

reconhecer a produção científica sobre a psicoterapia infantil – coloca-se em destaque

aqui a relevância de conhecer os estudos nacionais sobre o tema – considera-se

necessário verificar o que está sendo realizado nesse campo interventivo (Boaz, Nunes

& Hirakata, 2012; Halasz, 2017). Outro aspecto importante a ser destacado diz respeito

às mudanças perceptíveis na criança, a partir do processo terapêutico (Ramires,

Carvalho, Gastaud, Oliveira, & Godinho, 2019). Assim, o presente estudo tem como

objetivo reconhecer como a psicoterapia infantil tem sido conceituada e exercida em

setting clínico. Para tal, foi realizada uma revisão sistemática da literatura dos estudos

publicados entre os anos de 2008 a 2018. Justifica-se o período por compreender que este

forneceria maior quantidade de estudos para análise.

Método

Neste artigo, utilizou-se a Revisão Sistemática de Literatura (RSL), que viabiliza

a realização de uma síntese dos estudos sobre uma determinada temática. Ressalta-se

que esse é um tipo de estudo retrospectivo e secundário, ou seja, a RSL é usualmente

desenhada e conduzida após a publicação de muitos estudos sobre um tema (Berwanger,

Suzumura, Buehler, & Oliveira, 2007; Sampaio & Mancini, 2007).

699
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

A RSL seguiu as diretrizes do PRISMA (Moher, Liberati, Tetzlaff, Altman &

PRISMA Group, 2009) e todo o processo foi realizado por dois pesquisadores, de forma

independente. Na identificação foi realizada busca nas bases de dados eletrônicas BVS

– que engloba as redes Lilacs, Scielo, Cochrane, DeCs, Lis e Medline –, Science Direct e

SAGE Pubs, nos meses de dezembro de 2018 e janeiro de 2019. Os termos de busca

utilizados, com booleano OR, foram: Child Psychotherapy, Child Clinical Psychology,

Play Therapy e seus correlatos em português (Psicoterapia Infantil, Psicologia Clínica

Infantil, Ludoterapia), espanhol (Psicoterapia Infantil, Psicologia Clínica Infantil,

Terapia de Juego) e francês (Psychothérapie Infantile, Psychologie Clinique de L’Enfant,

Thérapie de Jeu D’Enfant). Os termos foram colocados entre aspas para um resultado

mais preciso na busca.

Na etapa de seleção, foram eliminadas as duplicidades e excluídos os estudos que

não contivessem no título, no resumo, nas palavras-chave, ou no assunto os termos

indicados acima. Não foram considerados livros, resenhas, teses, dissertações e artigos

de RSL. Os critérios de inclusão foram: estudos teóricos ou empíricos; textos completos

e gratuitos; publicados entre 2008 e 2018; em inglês, português, espanhol e francês; que

tratassem sobre psicoterapia infantil e que tivessem como especificidade a ocorrência

em setting clínico.

A terceira etapa do processo, de elegibilidade, consistiu na leitura do texto

completo. Nesta etapa foram excluídos os artigos que: apresentavam estratégias

interventivas diferentes da psicoterapia (apesar de apresentarem no texto o termo

“psicoterapia”); discutiam práticas psicoterápicas realizadas por médicos e outros

profissionais da saúde que não o psicólogo; descreviam práticas realizadas em contextos

de atuação diferentes do definido para esse estudo, tais como: escolas, hospitais e

serviços de atenção social.

A seguir, foi realizada releitura dos artigos incluídos e organizadas as temáticas

mais recorrentes nos estudos. Os estudos foram agrupados por categorias, a partir dos
700
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

temas que apareceram com maior frequência. Os temas agrupados e discutidos foram:

a diversidade de abordagens e as implicações para a psicoterapia infantil; a participação

da família na psicoterapia infantil; o brincar como comunicação na psicoterapia infantil.

Resultados

A busca inicial nas bases de dados totalizou 7836 artigos. Com a utilização dos

critérios de inclusão restaram 163 artigos que, posteriormente, ao passar pelos critérios

de exclusão, foram reduzidos a 67 estudos (Figura 1) para a leitura completa, estes

destacados com asterisco na lista de referências deste artigo.

Registros identificados por meio de Registros adicionais identificados por


pesquisa no banco de dados
Identificação

outras fontes
(n = 7836) (n = 0)

Registros de duplicações removidas


(n = 86)
Seleção

Registros Selecionados Registros excluídos


(n = 163) (n = 7587)

Artigos de texto completos


Artigos de texto completo avaliados excluídos, com motivos
Elegibilidade

para elegibilidade (n = 96)


(n = 163)

Estudos incluídos na síntese qualitativa


(n = 67)
Inclusão

Estudos incluídos na síntese


quantitativa (meta-análise)
(n = 67)

Figura 1. Etapas do processo de revisão sistemática (PRISMA)

701
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

Os resultados (Tabela 1) apontam os assuntos que aparecem com mais

frequência: as conceituações nas distintas abordagens e o manejo prático, apareceram

em 50,75 % (n = 34) dos estudos. Os artigos sobre a influência familiar na psicoterapia

infantil somaram 23,88% (n = 16) dos estudos e a discussão sobre o brincar na

psicoterapia, encontrada em 22,39% (n = 15) dos trabalhos. Outras temáticas menos

recorrentes representaram 2,98% (n=2).

Tabela 1
Categorias mais recorrentes
Categorias f %
Abordagens e as implicações
34 50,75
para a psicoterapia infantil
Participação familiar 16 23,88
Brincar como comunicação 15 22,39
Outros temas 2 2,98

Ao examinar os 67 estudos, constatou-se que aproximadamente 55,23% (n = 37)

das produções são escritas em língua inglesa, enquanto que 44,77% (n = 30) foram

publicadas em outros idiomas: 37,32% (n = 25) em português, 4,47% (n = 3) em francês e

2,98% (n = 2) em espanhol. Os estudos encontrados demonstram que mais da metade de

pesquisas estão em inglês, seguido dos estudos em português e das pesquisas

desenvolvidas em outros idiomas.

Na periodicidade de publicações, considerando o período entre 2008 e 2018, os

artigos são assim dispostos: 03 artigos (4,48%) em 2008, 08 artigos (11,94%) em 2009, 05

artigos (7,45%) em 2010, 06 artigos (8,96%) em 2011, 07 artigos (10,45%) em 2012, 07

artigos (10,45%) em 2013, 10 artigos (14,92%) em 2014, 07 artigos (10,45%) em 2015, 06

artigos (8,96%) em 2016, 07 artigos (10,45%) em 2017 e 01 artigo (1,49%) em 2018.

Observa-se linearidade na quantidade de publicações entre 2009 e 2013, seguido de

aumento em 2014 e nova linearidade entre 2015 e 2017. Em 2018, segue-se nova redução

nos estudos publicados.

702
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

Acerca das dificuldades que geram encaminhamento para psicoterapia, 17

estudos (25,37%) apresentam discussão sobre a psicoterapia e seu manejo, tomando com

base alguma problemática percebida na criança a ser atendida. Destes, 7 (10,44%)

estudos discutem a intervenção psicoterápica no acompanhamento de quadros

psicopatológicos, 7 (10,44%) artigos discutem sobre a psicoterapia com crianças que

apresentam algum problema comportamental ou de rendimento escolar e 3 (4,48%)

estudos tratam da psicoterapia com crianças que apresentam patologias de natureza

neuro-fisiológicas. Os artigos traçam, a partir do diagnóstico, manejos e intervenções

clínicas para uma boa evolução dos quadros apresentados pelas crianças acompanhadas.

Nos 67 artigos analisados, as temáticas estudadas abordam questões que vão

desde o contexto de surgimento da psicoterapia infantil, discorrendo sobre sua

historicidade, até discussões de casos específicos e contemporâneos, bem como as

práticas mais frequentes e os materiais lúdicos mais utilizados nos atendimentos, não

sendo possível articular um conceito único de psicoterapia, desvinculado de sua

perspectiva teórica.

Os artigos encontrados foram organizados objetivando visualizar, de forma mais

clara, como as temáticas foram abordadas nos últimos anos. A organização desses

achados, bem como a análise qualitativa ocorreu através das categorias discutidas

abaixo.

A diversidade de abordagens e as implicações para a psicoterapia infantil

Schneider e Torossian (2009), Boaz, Nunes e Hirakata (2012) e Weisz (2014)

apresentam a Psicoterapia Infantil como uma modalidade de atendimento que visa a

atender crianças com dificuldades emocionais que interfiram em seu cotidiano. Os

autores ressaltam que o processo psicoterapêutico da criança envolve múltiplos fatores,

como a participação da família e da escola, as relações estabelecidas pela criança, bem

como a sua experiência vivida.


703
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

Historicamente, desde os primórdios dos trabalhos clínicos com crianças

desenvolvidos por Melanie Klein ou em trabalhos posteriores, como os de Virginia

Axline (Landreth, 2012), assim como nos estudos analisados, a psicoterapia infantil

atende a uma variedade de condições que não necessariamente preenchem critérios

diagnósticos. Para além das categorias diagnósticas disponíveis na CID-10 (OMS, 1993),

de modo geral, a psicoterapia se constitui como intervenção destinada ao decréscimo da

angústia, de comportamentos considerados ruins e ao aumento (ou melhora) do

funcionamento pró-social (Waumsley & Swartz, 2011; Ruiz & Perete, 2015; Carvalho,

Godinho, & Ramires, 2016).

Foi constatado que as intervenções da prática clínica em psicoterapia infantil

diferem entre as abordagens teóricas da Psicologia. Há uma compreensão conceitual

ampla no que se refere ao objetivo dessa prática e que suas habilidades de

desenvolvimento técnico se apresentam pautadas em diferentes tipos de visão de

homem, como podemos ver nas discussões a seguir em cada abordagem (Moura, Grossi,

& Hirata, 2009).

Nadir, Hansel e Guillermo (2016) apontam que as psicoterapias cognitivas e

comportamentais têm como base de atuação a análise funcional, um quadro de

referência que auxilia na identificação dos possíveis efeitos dos comportamentos na

vivência do sujeito. A análise funcional busca as relações contingenciais que são

determinantes e mantenedoras de um determinado problema e possibilita a realização

de estratégias interventivas, proporcionando maior eficácia e melhora do cliente

(Barzegary & Zamini, 2011).

Na abordagem psicanalítica Brun (2015), Höfig e Zanetti (2016) e Silva e Reis

(2017) apontam que, na psicanálise, o mais relevante não são os fatos da infância em si,

mas sim a realidade psíquica, constituída pelos desejos inconscientes e pelas fantasias a

ela vinculadas, tendo como pano de fundo a sexualidade infantil. Os autores discutem

a infância pela lógica do inconsciente, distanciando-se de uma visão que parte de um


704
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

registro genético e cronológico. O efeito traumático está relacionado confrontação

passiva da criança com a sexualidade do adulto e que, através dos cuidados e do desejo

materno, a criança será introduzida no campo da sexualidade (Blunden & Nair, 2010;

Mees, 2016).

Nas abordagens humanistas discute-se que na psicoterapia infantil é a criança

que indica o caminho a ser seguindo pelo terapeuta; ou seja, a ênfase da terapia diz

respeito à experiência da criança. Os autores destacam a relação terapêutica como

promotora de mudanças na criança (O’Sullivan & Ryan, 2009; Goodman, Chung, Fischel

& Athey-Lloyd, 2017). Os julgamentos de valor, as predeterminações diagnósticas ou

algum a priori que o psicoterapeuta insista em inserir nos atendimentos pode contribuir

negativamente na relação com o cliente, prejudicando o avanço da psicoterapia, por se

tratar de um direcionamento do psicoterapeuta (Brito & Paiva, 2012; Conway, 2014; Lac,

2014).

Na psicoterapia humanista, se o contato que estabelecido com a criança não se dá

através da abertura à sua diferença, mas a partir de uma objetivação ou de conceitos

prévios, a sua alteridade pode se absorver no que já é conhecido. É preciso compreender

a experiência da criança que se apresenta para possibilitar o acesso a ela em sua absoluta

singularidade (Botha & Dunn, 2009; Brito & Paiva, 2012; Brito & Freire, 2014; Telles,

2014).

A participação da família na psicoterapia infantil

Para Green, Crenshaw e Langtiw (2009), Klinger, Reis e Souza (2011), Souza e

Mosmann (2013) e Pereira, Schmitz e Menezes (2015) a participação familiar na

psicoterapia infantil é fundamental. O desenvolvimento humano implica num caminho

que vai da inicial dependência do meio em direção a uma maior independência de si.

No processo de construção de subjetividade da criança nota-se a valorização da família

como promotora de saúde entre seus membros, mas também como propiciadora de
705
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

experiências de sofrimento. Assim, questões emocionais apresentadas pelas crianças

podem ter estreita relação com a dinâmica familiar, pelo entrelaçamento da criança com

o contexto no qual participa (Nelson, Shanley, Funderburk & Bard, 2012; Chown, 2013;

Chang & Yeh, 2015; Feijoo & Oliveira, 2016).

Para Coates (2008), Haubert e Vieira (2014) e Motataianu (2015), a inclusão do

discurso parental na psicoterapia infantil é relevante, pois situa a criança em relação ao

desejo dos pais e possibilita a criação de uma situação a qual a verdade escondida por

trás dos sintomas possa ser seja assumida pelo sujeito. A escuta realizada com os

familiares da criança atendida constitui-se também como uma triagem para a

psicoterapia. Contudo, o atendimento da família não deve se limitar à coleta de

informações, mas ser, também, um momento reflexivo e avaliativo do processo da

criança (Gerdes & Schneider, 2009; Pereira, Schmitz & Menezes, 2015; Falkus, Tilley &

Thomas, 2016; Skedgell, Fornander & Kearney, 2017).

Bolaños (2009) e Haubert e Vieira (2014) ressaltam que deve haver limitações na

interferência dos familiares na psicoterapia infantil, já que o atendimento familiar tem

como intuito uma aproximação das experiências da criança. Os autores apontam, como

implicações da participação familiar, a produção reflexiva e a tomada de consciência dos

familiares, acerca da influência exercida na organização psicológica e no

desenvolvimento da criança.

Oliveira, Pereira e Bottega (2017) afirmam que a ausência da limitação descrita

acima pode ocasionar idealizações e fantasias em torno dos resultados da psicoterapia.

Problemas no manejo com a família podem ser preditores de abandono dos

atendimentos. As atitudes e expectativas dos pais, assim como a percepção deles sobre

o processo psicoterapêutico são variáveis da relação família – psicoterapeuta que podem

afetar a disposição das famílias em persistir no tratamento ou mesmo em interrompê-lo

(Medeiros, 2013).

706
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

Mantovani, Marturano e Silvares (2010) salientam ainda que é fundamental na

psicoterapia infantil conhecer e caracterizar as famílias que buscam o serviço para suas

crianças. Esse conhecimento viabiliza o planejamento de ações visando à prevenção de

possíveis abandonos, formando um engajamento das famílias durante o processo de

atendimento. Com isso, adequa-se o atendimento, tornando-o mais efetivo para atender

à demanda, contribuindo para aumentar a adesão ao tratamento. Consequentemente,

tanto as crianças quanto suas famílias podem ser beneficiadas com a continuidade do

tratamento até a alta clínica (Nunes, Silvares, Marturano & Oliveira, 2009; Guimarães &

Yoshida, 2014).

O brincar como comunicação na psicoterapia infantil

Nos textos pesquisados, as diferenças sociais na concepção de ser criança

reverberam em alterações da noção de brincar. Para compreender a complexidade do

‘brincar contemporâneo’, denominação feita por alguns autores, é necessário olhar para

a construção histórica da brincadeira, buscando observar suas características em cada

contexto histórico (Kekae-Moletsane, 2008; Rodrigues & Nunes, 2010; Botha & Dunn,

2015).

Nessa compreensão contextual é importante entender que o brincar está

vinculado aos fatores históricos e culturais que propiciaram seu aparecimento. Na

evolução da humanidade é possível perceber que o brincar representa um processo de

aprendizagem e descoberta do ser humano, que contribui de forma direta na construção

das relações sociais e expressões individuais (Post, Ceballos & Penn, 2012; Höfig &

Zanetti, 2016).

Para Armstrong e Kimonis (2013), é por meio da brincadeira que as crianças

aprendem regras e limites, de forma voluntária e prazerosa. O brincar, além de ser um

passatempo para a criança, expressa processos íntimos, desejos, problemas, ansiedades.

Na brincadeira a criança afirma seu ser, possibilita e proclama sua autonomia e explora
707
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

o mundo em sua linguagem, a partir de meios lúdicos. No brincar a criança faz ensaios,

compreende e assimila gradualmente regras e padrões, absorve o mundo em pequenas

doses, toleráveis a ela.

No esteio desse entendimento sobre o brincar e suas potencialidades expressivas,

o processo lúdico aparece como um dos principais eixos da psicoterapia infantil, através

do qual a criança, brincando, projeta seu modo de ser no atendimento. O objetivo é

ajuda-la, através da brincadeira, a expressar com maior facilidade a si, seus conflitos e

dificuldades (Menezes, López & Delvan, 2010; Dionne & Martini, 2011; Jäger, 2012;

Nijnatten & Doorn, 2013).

Um dos principais componentes do brincar é o aprender a manipular símbolos e

a pensar abstratamente, o que abre possibilidades para a comunicação. A partir da

brincadeira como linguagem e do uso do brinquedo, a criança se conscientiza de si

mesma como agente ativo e criativo nos atendimentos. Isso promove a ela um

desenvolvimento gradativo em sua comunicação, já que esta atividade produz e

reproduz emoções, possibilitando nomear e organizar melhor seu mundo (Jäger, 2012;

Höfig & Zanetti, 2016).

Nijnatten e Doorn (2013) e Botha e Dunn, (2015) discutem que a verbalização,

modo de acesso ao vivido infantil, pode ser introduzida via brincadeiras e do brinquedo.

Ou seja, trazendo a esse brinquedo o valor de ferramenta de mediação terapêutica e, por

meio deste, inicia-se a criação de um contato e a construção e fortalecimento da relação

psicoterapêutica.

No ato de brincar há inúmeros aspectos que caracterizam o ser e o estado de cada

criança, das suas emoções, dificuldades, vivências, formas de relacionar-se com o

mundo e do seu desenvolvimento físico, mental e emocional. A utilização de recursos

lúdicos tem o intuito de facilitar o processo de desenvolvimento da criança, partindo do

entendimento de desenvolvimento em seu caráter de multidimensionalidade e como

708
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

processo que se dá na relação (Rodrigues & Nunes, 2010; Ryan & Edge, 2011; Barzegary

& Zamini, 2011).

Discussão

Com os resultados encontrados compreende-se que a psicoterapia infantil

realizada em âmbito clínico tem apresentado constante evolução no modo como vem

sendo exercida e discutida nos últimos anos. Percebe-se essa evolução em aspectos como

integração de diferentes técnicas, protocolos e teorias (Parish-Plass, 2008; Boyer, 2010;

Ruiz & Perete, 2015; Westrhenen, Fritz, Oosthuizen, Lemont, Vermeer, & Kleber, 2017),

manejo com instrumentos inovadores (Botha & Dunn, 2009; Lac, 2014), tempo de

processo terapêutico (Haugvik, 2012; Farrell, Kershaw, & Ollendick, 2018),

desenvolvimento de estudos de eficácia da psicoterapia (Barzegary & Zamini, 2011; Han,

Lee, & Suh, 2017), ampliação da participação familiar no processo (Chang & Yeh, 2015;

Falkus, Tilley, & Thomas, 2016) e mesmo compreensão de fatores limitadores do

processo terapêutico (O’Sullivan & Ryan, 2009; Guimarães & Yoshida, 2014).

Nesse panorama verifica-se que a pesquisa em psicoterapia com crianças tem

apresentado significativos avanços, como apontado por Ramires, Godinho, Carvalho,

Gastaud e Goodman (2017), o que demonstra que há a presença nos estudos de uma

discussão sobre os conceitos que fundamentam os atendimentos, bem como acerca das

intervenções realizadas, nas diferentes abordagens e dos elementos que convergem para

uma melhora da criança atendida (Sori & Schnur, 2014; Weisz, 2014; Farrell, Kershaw,

& Ollendick, 2018). Contudo, como apontado por Halfon, Goodman e Bulut (2018),

verifica-se que a discussão sobre o processo terapêutico infantil como uma totalidade e

o processo de mudança da criança atendida ainda precisa ser mais desenvolvida.

Os artigos analisados apresentam casos clínicos com diagnósticos que têm

aparecido com frequência na atualidade, e verifica-se nos estudos uma tendência de

enfatizar a conceituação da psicoterapia infantil e a maneira como esta é exercida em


709
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

cada teoria. Contudo, essa ênfase é identificada com menor frequência nos trabalhos

empíricos, nos quais o foco passa a ser o manejo interventivo em quadros clínicos

específicos como o autismo, o TDAH, a depressão, a síndrome de Asperger, crianças

com dificuldades escolares, dentre outros (Prebianchi, 2011; Haubert & Vieira, 2014;

Rodrigues, Sei & Arruda, 2013; Accurso & Garland, 2015).

A partir dos pontos discutidos acima, percebe-se a busca por compreender

elementos e preditores para a eficácia ou o fracasso da psicoterapia, algo destacado na

literatura sobre psicoterapia com crianças (Midgley, O’Keefe, French, & Kennedy, 2017).

Também compreende-se um importante destaque ao acompanhamento de

psicopatologias, ora com discussão crítica acerca da ênfase no diagnóstico (Post,

Ceballos, & Penn, 2012; Alves, Machado, Gastaud, & Nunes, 2013), como ressaltado por

Hoffman (2020), ora limitando o estudo ao como proceder com aquela patologia

específica, tornando secundária discussões acerca de aspectos sociais e culturais

envolvidos na problemática apresentada pela criança (Barzegary & Zamini, 2011;

Conway, 2014), restringindo o olhar para o fenômeno multifacetado da infância ou

mesmo convergindo para a patologização da infância.

A consideração da multiplicidade de fatores envolvidos nas vivências infantis

traz à tona um olhar maior para a experiência da criança, no campo da pesquisa em

psicoterapia infantil (Nashat & Quartier, 2014). Nos artigos, é essa visualização mais

abrangente que possibilita o reconhecimento das experiências vividas pelas crianças,

considerando-as como uma construção que ocorre de maneira gradativa e entrelaçada a

diversos fatores (Scaglia, Mishima & Barbieri, 2011; Souza & Mosmann, 2013; Carvalho

et al., 2015).

As pesquisas demonstram uma ampliação na compreensão acerca dos ‘sintomas’

da criança, atentando para as relações entre a sintomatologia e a dinâmica familiar e

promovendo discussões sobre os limites e alcances do trabalho com os pais na

psicoterapia infantil. Os estudos refletem um olhar investigativo maior para a dinâmica


710
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

familiar, trazendo essa instância como colaboradora para o entendimento dos

psicodinamismos da criança e para melhores resultados na psicoterapia (Gordon &

Cooper, 2016). As temáticas encontradas discutem as interferências familiares no

processo infantil, a avaliação dos resultados da psicoterapia e as variáveis envolvidas

considerando a família (Bolaño, 2009; Haugvik, 2012; Pereira, Schmitz & Menezes, 2015;

Christon et al., 2016).

Outro fator abordado nos estudos é a compreensão do brincar na psicoterapia

infantil. Segundo Rodrigues e Nunes (2010), o brincar aparece como via principal para

expressão da singularidade e acesso àquilo que é trazido pela criança e que antes fora

apreendido em seu meio. Há uma relevância do reconhecimento e estabelecimento da

dimensão lúdica no processo de psicoterapia infantil, sendo este um fundamental meio

de expressão da criança e de suas questões (Campos & Cury, 2009; Post et al., 2012; Botha

& Dunn, 2015).

Apesar dos pontos mais recorrentes, ressalta-se que não há uma padronização

dos atendimentos e das técnicas utilizadas na psicoterapia infantil. Nos artigos

analisados, visualiza-se que as intervenções no âmbito clínico diferem no que diz

respeito às abordagens teóricas. Observa-se ainda que, da amplitude de teorias, os

desenvolvimentos técnicos fundamentam-se principalmente na visão de homem das

perspectivas (Moura et al., 2009; Gastaud, Carvalho, Goodman, & Ramires, 2015; Nadir,

Hansel & Guillermo, 2016).

Com o desenvolvimento da clínica psicoterápica com crianças e a crescente busca

por esse atendimento (Cunha & Benetti, 2009), os estudos demonstram a necessidade de

criação de alternativas para a comprovação da eficácia e efetividade das técnicas

utilizadas para esse público. Ressalta-se a busca de constante aprimoramento dos

métodos de pesquisa, na tentativa de contribuir para uma maior fundamentação

científica na área da psicoterapia infantil (Deakin & Nunes, 2008; Prebianchi, 2011;

Nashat & Quartier, 2014).


711
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

Considerações finais

A presente revisão sistemática objetivou o reconhecimento de como a

psicoterapia infantil tem sido conceituada e exercida em setting clínico. O estudo

contemplou o período de 2008 a 2018 e encontrou, dentre pesquisas disponíveis em

língua inglesa, portuguesa, espanhola e francesa, 67 artigos, teóricos e empíricos. A

partir dos artigos encontrados na pesquisa e da discussão promovida, compreende-se

que os dados encontrados contemplaram o objetivo proposto.

Destaca-se que a psicoterapia com crianças vem se configurando como uma

prática fundamental frente à demanda existente na contemporaneidade. Essa atuação

apresenta-se também como um campo de produção científica do conhecimento e de

elaboração de uma práxis que tem se voltado às demandas cada vez mais

contextualizadas em cada cultura, às suas especificidades e necessidades. Dados como

esses amplificam a necessidade de estudos cada vez interligados com os aspectos

culturais e sociais que permeiam e atravessam a vida da criança, na medida em que estes

constituem aqueles que chegam aos atendimentos de psicoterapia infantil.

Os resultados indicam a relevância da discussão sobre a psicoterapia infantil e de

relaciona-la aos fatores sociais e culturais que apontam a forma como a criança é

compreendida também em termos de saúde e adoecimento. Os estudos apontam um

entrelaçamento entre o aumento da demanda por atendimentos infantis os

comportamentos considerados parte desse período da vida, bem como aqueles

comportamentos e sintomas causadores de prejuízos para a criança ou que causem

preocupação àqueles que convivem com ela, o que abre um campo de discussão sobre a

influência da cultura na vida das crianças e suas implicações nos encaminhamento para

a psicoterapia, bem como no desenvolvimento dos atendimentos realizados com a

criança.

712
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

Os estudos encontrados discutem a importância de não se enxergar a criança

como alguém que vivencia as relações sociais e culturais como o adulto, nem como

alguém que teria compreensão deslocada deste contexto. Ao mesmo tempo, as

pesquisas afirmam que as vivências infantis são singulares, não sendo possível a

homogeneização dessas experiências. A compreensão do caráter de singularidade da

infância, abordada nos estudos, rompe com um olhar meramente comparativo entre

modelos de infância ou mesmo com a dinâmica do adulto.

Os resultados disponíveis em diversos idiomas e culturas apresentam um

panorama importante e múltiplo acerca da psicoterapia infantil. Os dados discutidos

nesse artigo possibilitam o reconhecimento dessa atuação em várias nacionalidades,

apontando seus aspectos relevantes e a eficácia da intervenção psicoterapêutica com o

público infantil. Também é possível, com a presente revisão perceber pontos que podem

ser mais desenvolvidos no contexto da psicoterapia com crianças. Pesquisas dessa

natureza contribuem tanto para o desenvolvimento científico, lançando luz em aspectos

que podem ser alvo de futuras pesquisas, bem como aprimorar a prática de

psicoterapeutas que atuam em setting clínico.

O presente estudo, mesmo contemplando um período extenso e abarcando

pesquisas de muitas nacionalidades, apresenta limitações como em relação ao período

temporal que precisa ser demarcado, deixando sem verificação estudos anteriores (que

poderiam fornecer um panorama histórico relevante) e posteriores (que destacariam

mais atualidades nas intervenções). Como o propósito desse estudo era o de reconhecer

o processo como um todo da psicoterapia infantil, aspectos mais específicos, relativos à

linhas teóricas ou técnicas específicas não puderam ser explorados com mais

profundidade.

Verifica-se que os artigos discutem os avanços técnicos e teóricos da psicoterapia

infantil, apontando novas práticas e abordagens, mas ressaltam recorrentemente a

necessidade de constante investigação, teórica e empírica, sempre relacionada com o


713
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

contexto da criança. Dessa forma, sugere-se em futuras pesquisas acerca da psicoterapia

com crianças que possam contemplar maiores discussões sobre a relação entre cultura,

sociedade, adoecimento e suas implicações na intervenção psicoterapêutica com

crianças em setting clínico.

Referências

*Accurso, E. C. & Garland, A. F. (2015). Child, Caregiver, and Therapists Perspectives


on Therapeutic Alliance in Usual Care Child Psychotherapy. Psychological
Assessment, 27(1), 347-352. doi:10.1037/pas0000031
*Affonso, R. (2012). Avaliação cognitiva do processo psicoterápico de crianças
psicóticas. Boletim de Psicologia, UniFMU – SP, 137(1), 201-220. Retrieved from
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/bolpsi/v62n137/v62n136a08.pdf
*Alves, C.; Machado, C.; Gastaud, M. & Nunes, M. (2013). Crianças atendidas por
problemas de aprendizagem em psicoterapia psicanalítica. Revista Latinoamericana
de Psicología, 31(2), 432-442. Retrieved from
http://www.scielo.org.co/pdf/apl/v31n2/v31n2a10.pdf
Ariès, P. (1981). História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar.
*Armstrong, K. & Kimonis, E. (2013). Parent–Child Interaction Therapy for the
Treatment of Asperger’s Disorder in Early Childhood: A Case Study. Clinical Case
Studies, 12(1), 60–72. doi:10.1177/1534650112463429
Ayres, L. S. M. & Barreira, M. C. B. (2014). Diálogos entre a ética e a psicoterapia. In
Ayres, L. S. M., Amendola, M. F., Arantes, E., Barreira, M. C. B., Maia, M. A. B., Silva,
C. O., et al. (2014). Ética e Psicologia: Reflexões do Conselho Regional de Psicologia do Rio
de Janeiro (pp. 37-44). Rio de Janeiro: Conselho Regional de Psicologia.
*Barzegary, L. & Zamini, S. (2011). The effect of play therapy on children with ADHD.
Procedia - Social and Behavioral Sciences, 30(1), 2216–2218.
doi:10.1016/j.sbspro.2011.10.432
Berwanger, O.; Suzumura, E.; Buehler, A. & Oliveira, J. (2007). Como avaliar
criticamente revisões sistemáticas e metanálises? Revista Brasileira de Terapia
Intensiva, 19(4), 475-480. doi:10.1590/S0103-507X2007000400012
*Blunden, S. & Nair, D. (2010). An unusual clinical phenomenon: A case of bedtime
ritual with apparent sexual overtones. Clinical Child Psychology and Psychiatry, 15(1),
55-64. doi:10.1177/1359104509339090
*Boaz, C.; Nunes, M & Hirakata, V. (2012). A problemática do desenvolvimento de
crianças assistidas por clínicas-escola brasileiras mudou no decorrer das décadas?
Psico, 43(3), 334-340. Retrieved from
http://revistaseletronicas.pucrs.br/revistapsico/ojs/index.php/
714
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

revistapsico/article/download/
*Bolaño, M. A. (2009). Intervención con Padres en Clínica de Niños. Clínica y Salud,
20(3), 291-300. Retrieved from
http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S 1130-
52742009000300010&lng=es&nrm=iso
*Boyer, W. (2010). Getting to Know O’Connor: Experiencing the Ecosystemic Play
Therapy Model With Urban First Nation People. The Family Journal, 18(2), 202-207.
doi:10.1177/1066480710364090
Brito, S. (2008). A Psicologia Clínica – Procura de uma Identidade. Revista do Serviço de
Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca, 5(1), 63-68. doi:10.25752/psi.4086
*Brito, R. & Freire, C. (2014). Ludoterapia Centrada na Criança – uma leitura a partir
da ética de Emmanuel Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica, 20(1), 118-127.
Retrieved from http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/21408
*Brito, R. & Paiva, V. (2012). Psicoterapia de Rogers e ludoterapia de Axline:
convergências e divergências. Revista do NUFEN, 4(1), 102-114. Retrieved from
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-
25912012000100009
*Botha, E. & Dunn, M. (2009). A board game as Gestalt assessment tool for the child in
middle childhood years. South African Journal of Psychology, 39(2), 253-262.
doi:10.1177/008124630903900210
Brzozowski, F. & Caponi, S. (2013). Medicalização dos Desvios de Comportamento na
Infância: Aspectos Positivos e Negativos. Psicologia: Ciência e Profissão, 33(1), 208-221.
doi:10.1590/S1414-98932013000100016
*Brun, A. (2015). La rencontre analytique dans les dispositifs à mediations
thérapeutiques, aux limites de l’analyse. Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental, 18(2), 234-252. doi:10.1590/1415-4714.2015v18n2p234.4
Campos, A. & Cury, V. (2009). Atenção psicológica clínica: encontros terapêuticos com
crianças em uma creche. Paidéia, 19(42), 115-121. doi:10.1590/S0103-
863X2009000100014
Carvalho, C.; Fiorini, G. & Ramires, V. (2015). Aliança Terapêutica na Psicoterapia de
Crianças: Uma Revisão Sistemática. Psico, 46(4), 503-512. doi:10.15448/1980-
8623.2015.4.19139
*Carvalho, C.; Godinho, L. & Ramires, V. (2016). Processo Psicoterapêutico de uma
Criança: Análise Baseada no Child Psychotherapy Q-Set. Temas em Psicologia, 24(3),
1153-1167. doi:10.9788/TP2016.3-19
*Chang, J. & Yeh, T. (2015). The influence of parent-child toys and time of playing
together on attachment. Procedia Manufacturing, 3(1), 4921-4926.
doi:10.1016/j.promfg.2015.07.628
*Chown T. (2013). When the child proof cap has been left off the medicine bottle –
Dramatherapy with young people affected by parental drug and alcohol problems.
715
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

Dramatherapy, 35(3), 174-185. doi:10.1080/02630672.2013.863378


Christon, L.; McLeod, B.; Wheat, E.; Corona, R. & Islam, N. (2016). Using a Health
Behavior Model to Inform Understanding of Therapy Engagement in Child
Therapy: A Qualitative Study. Journal of Emotional and Behavioral Disorders, 25(3),
157-169. doi:10.1177/1063426616641401
*Coates, S. W. (2008). Intervention pour des garçons d’âge préscolaire ayant um
trouble de l’identité de genre. Neuropsychiatrie de l’enfance et de l’adolescence, 56(1),
386-391. doi:10.1016/j.neurenf.2008.03.011
*Conway, F. (2014). The Use of Empathy and Transference as Interventions in
Psychotherapy With Attention Deficit Hyperactive Disorder Latency-Aged Boys.
Psychotherapy, 51(1), 104-109. doi:10.1037/a0032596
Cunha, T. R. S. & Benetti, S. P. C. (2009). Caracterização da Clientela Infantil numa
Clínica-Escola de Psicologia. Boletim de Psicologia, LIX(130), 117-127. Retrieved from
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/cclin/v10n2/v10n2a02.pdf
Deakin, K. & Nunes, T. (2008). Investigação em psicoterapia com crianças: uma revisão.
Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 30(1). doi:10.1590/S0101-
81082008000200003
Doron, R. & Parot. F. (1998). Dicionário de Psicologia. São Paulo: Ática.
*Emanuel, R.; Catty, J.; Anscombe, E.; Cantle, A. & Muller, H. (2014). Implementing an
aim based outcome measure in a psychoanalytic child psychotherapy service:
Insights, experiences and evidence. Clinical Child Psychology and Psychiatry, 19(2)
169–183. doi:10.1177/1359104513485081
*Falkus G.; Tilley, C. & Thomas, C. (2016). Assessing the effectiveness of parent–child
interaction therapy with language delayed children: a clinical investigation. Child
Language Teaching and Therapy, 32(1), 7-17. doi:10.1177/0265659015574918
*Farrell, L. J.; Kershaw, H. & Ollendick, T. (2018). Play-Modified One-Session
Treatment for Young Children with a Specific Phobia of Dogs: A Multiple Baseline
Case Series. Child Psychiatry Hum Dev, 49(1), 317-329. doi:10.1007/s10578-017-0752-x
*Feijoo, L. & Oliveira, D. (2016). Privações afetivas e relações de vínculo: psicoterapia
de uma criança institucionalizada. Contextos Clínicos, 9(1), 72-85.
doi:10.4013/ctc.2016.91.06
*Gastaud, M. B.; Carvalho, C.; Goodman, G. & Ramires, V. R. R. (2015). Assessing
levels of similarity to a “psychodynamic prototype” in psychodynamic
psychotherapy with children: case study approach. Trends in Psychiatry and
Psychotherapy, 37(3), 161-165. doi:10.1590/2237-6089-2014-0059
*Gerdes, A. C. & Schneider, B. W. (2009). Evidence-Based ADHD Treatment With a
Spanish-Speaking Latino Family. Clinical Case Studies, 8(3), 174-192.
doi:10.1177/1534650109334819
*Guimarães, L. P. M. & Yoshida, E. M. P. (2014). Criteria of Progress in Psychotherapies
Accordind to Psychotherapists. Paidéia, 24(57), 95-104. doi:10.1590/1982-
716
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

43272457201412
*Goodman, G.; Chung, H.; Fischel, L. & Athey-Lloyd, L. (2017). Simulation modeling
analysis of sequential relations among therapeutic alliance, symptoms, and
adherence to child-centered play therapy between a child with autism spectrum
disorder and two therapists. Clinical Child Psychology and Psychiatry, 22(3), 455-466.
doi:10.1177/1359104517691082
Gordon, H. & Cooper, L. (2016). A Case Study of Parent–Child Interaction Therapy:
Flexible Client-Centered Adaptation of an EST. Virginia Polytechnic Institute and
State University, Clinical Case Studies, 15(2), 126-142. doi:10.1177/1534650115603819
*Green E.; Crenshaw, D. & Langtiw, C. (2009). Play Theme-Based Research with
Children. The Family Journal: Counseling and Therapy for Couples and Families, 17(4),
312-317. doi:10.1177/1066480709347358
*Halasz, G. (2017). Special population – child and adolescent psychotherapy.
Australasian Psychiatry, 25(3), 222-224. doi:10.1177/1039856216689622
*Han, Y. N.; Lee, Y. & Suh, J. H. (2017). Effects of a sandplay therapy program at a
childcare center on children with externalizing behavioral problems. The Arts in
Psychotherapy, 52(1), 24-31. doi:10.1016/j.aip.2016.09.008
Halfon, S.; Goodman, G. & Bulut, P. (2018). Interaction structures as predictors of
outcome in a naturalistic study of psychodynamic child psychotherapy.
Psychotherapy Research, 30(2), 251-266. doi: 10.1080/10503307.2018.1519267
*Haubert, C. & Vieira, A. (2014). Símbolos, complexos e a construção da identidade na
psicoterapia com crianças. Aletheia, 45(1), 222-237. Retrieved from
https://www.redalyc.org/pdf/1150/115048474017.pdf
*Haugvik, M. (2012). Structured parallel therapy with parents in time-limited
psychotherapy with children experiencing difficult family situations. Clinical Child
Psychology and Psychiatr, 18(4), 504–518. doi:10.1177/1359104512460859
Hoffman, L. (2020). How can I help you? Dimensional versus Categorical Distinctions
in the Assessment for Child Analysis and Child Psychotherapy. Journal of Infant,
Child, and Adolescent Psychotherapy, 19(1), 1-15. doi: 10.1080/15289168.2019.1701866
*Höfig, J. A. G. & Zanetti, S. A. S. (2016). O setting suficientemente bom e o manejo
clínico na psicoterapia infantil: relato de caso. Estilos de Clínica, 21(1), 45-62.
doi:10.11606/issn.1981-1624.v21i1p45-62
Holanda, A. F. (2012). O campo das psicoterapias: reflexões atuais. Curitiba: Juruá.
*Jäger, J. (2012). Facilitating children’s views of therapy: An analysis of the use of play-
based techniques to evaluate clinical practice. Clinical Child Psychology and Psychiatry,
18(3), 411–428. doi:10.1177/1359104512455816
*Kekae-Moletsane, M. (2008). Masekitlana: South Africa Traditional Play as a
Therapeutic Toll in Child Psychotherapy. South Africa Journal of Psychology, 38(2),
367-375. doi:10.1177/008124630803800208
*Klinger, E.; Reis, B. & Souza, A. (2011). A inclusão dos pais da clínica das psicoses
717
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

infantis. Estilos da Clínica, 16(1), 96-115. doi:10.11606/issn.1981-1624.v16i1p96-115


*Lac, V. (2014). Horsing Around: Gestalt Equine Psychotherapy as Humanistic Play
Therapy. Journal of Humanistc Psychology, 56(2), 194-209.
doi:10.1177/0022167814562424
Landreth, G. (2012). Play Therapy: The art of relationship. New York: Routledge.
*Mantovani, C.; Marturano, E. & Silvares, E. (2010). Abandono do atendimento em
uma clínica-escola de psicologia infantil: variáveis associadas. Psicologia em Estudo,
Maringá, 15(3), 527-535. doi:10.1590/S1413-73722010000300010
*Medeiros, A. (2013). O abuso sexual infantil e a comunicação terapêutica: Um estudo
de caso. Pensando Famílias, 17(1), 54-62. Retrieved from
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/penf/v17n1/v17n1a06.pdf
*Mees, P. (2016). A psychoanalytic child psychotherapy contribution to generic
assessments. Clinical Child Psychology and Psychiatry, 21(1), 133-144.
doi:10.1177/1359104514567580
*Menezes, M.; López, M. & Delvan, J. (2010). Psicoterapia de criança com alopecia
areata universal: desenvolvendo a resiliência. Paidéia, 20(46), 261-267.
doi:10.1590/S0103-863X2010000200013
Midgley, N.; O’Keefe, S.; French, L., & Kennedy, E. (2017). Psychodynamic
psychotherapy for children and adolescents: an updated narrative review of the
evidence base. Journal of Child Psychotherapy, 43(3), 307-329. doi:
10.1080/0075417X.2017.1323945
*Motataianu, I. (2015). Parent-child connection – emotional synchronization and
playing; a possible model to combat the child's unsafe attachment. Procedia - Social
and Behavioral Sciences, 180(1), 1178-1183. doi:10.1016/j.sbspro.2015.02.238
*Moura, C. B.; Grossi, R. & Hirata, P. (2009). Análise funcional como estratégia para a
tomada de decisão em psicoterapia infantil. Estudos de Psicologia, Campinas, 26(2),
173-183. doi:10.1590/S0103-166X2009000200005
*Nadir, D. Hansel, H. & Guillermo, C. (2016). Terapias cognitivas y Psicología Basada
en la Evidencia. Rev. electrónica de estudiantes Esc. de psicología, Univ. de Costa Rica,
11(1), 19-38. doi:10.15517/wl.v1i1.24074
*Nashat, S. & Quartier, V. (2014). La formulation de cas: un modèle d’évaluation
psychologique de l’enfant et de l’adolescent. Neuropsychiatrie de l’enfance et de
l’adolescence, 62(1), 422-430. doi:10.1016/j.neurenf.2014.08.001.
*Nelson, M.; Shanley, J.; Funderburk, B. & Bard, E. (2012). Therapists’ Attitudes
Toward Evidence-Based Practices and Implementation of Parent–Child Interaction
Therapy. Child Maltreatment, 17(1), 47-55. doi:10.1177/1077559512436674
*Nijnatten, C. & Doorn, F. (2013). The role of play activities in facilitating child
participation in psychotherapy. Discourse Studies, 15(6), 761-775.
doi:10.1177/1461445613490012
*Nunes, M.; Silvares, E.; Marturano, E. & Oliveira, M. (2009). Crianças em risco:
718
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

abandono de psicoterapia. Psico, 40(3), 359-365.


*Oliveira, A. P.; Pereira, V. A. & Bottega, D. C. (2017). Influências Familiares no
Processo de Psicoterapia Infantil: Enurese Diurna e Noturna – Estudo de Caso.
Pensando Famílias, 21(1), 50-62. Retrieved from
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/penf/v21n1/v21n1a05.pdf
Organização Mundial de Saude. (1993). Classificação Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde (CID-10). Décima versão. Porto Alegre: Artes Médicas.
*O’Sullivan, L. & Ryan, V. (2009). Therapeutic Limits from an Attachment Perspective.
Clinical Child Psychology and Psychiatry, 14(2), 215-235.
doi:10.1177/1359104508100886
*Parish-Plass, N. (2008). Animal-Assisted Therapy with Children Suffering from
Insecure Attachment Due to Abuse and Neglect: A Method to Lower the Risk of
Intergerational Transmission of Abuse? Clinical Child Psychology and Psychiatry,
13(1), 7-30. doi:10.1177/1359104507086338
Passarela, C. M.; Mendes, D. D. & Mari, J. J. (2015). Revisão sistemática para estudar a
eficácia de terapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes abusadas
sexualmente com transtorno de estresse pós-traumático. Archives of Clinical
Psychiatry, 37(2), 60-65. doi:10.1590/S0101-60832010000200006
Pechanski, I (2015), Setting Psicoterápico: Neutralidade, Abstinência e Anonimato. In
Eizirik, C. L.; Aguiar, R. W. & Schestatsky, S. S. Psicoterapia de Orientação Analítica:
fundamentos teóricos e clínicos (pp. 224-237). Porto Alegre: ArtMed.
*Pereira, L.; Schmitz, N. & Menezes, M. (2015). Perspectivas parentais sobre a
sexualidade de crianças atendidas em clínica-escola de psicologia. Psicol. Argum.,
33(81), 226-237. doi:10.7213
*Post, P.; Ceballos, P. & Penn. S. (2012). Collaborating With Parents to Establish
Behavioral Goals in Child-Centered Play Therapy. The Family Journal: Counseling and
Therapy for Couples and Families, 20(1), 51-57. doi:10.1177/1066480711425472
*Prebianchi, H. (2011). Atenção psicológica infantil: compreensão de usuários e
estagiários do serviço-escola. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, 17(2), 322-339.
Retrieved from http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v17n2/v17n2a11.pdf
Ramires, V. R. R.; Carvalho, C.; Gastaud, M. B.; Oliveira,L. R. F., & Godinho, L. B. R.
(2019). Mudanças na psicoterapia psicodinâmica na visão de pais e mães. Avances
en Psicología Latinoamericana, 37(1), 29-46. doi:
10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.5458
Ramires, V. R. R.; Godinho, L. B. R.; Carvalho, C.; Gastaud, M., & Goodman, G. (2017).
Child psychoanalytic psychotherapy: a single case study. Psychoanalytic
Psychotherapy, 31(1), 75-93. doi: 10.1080/02668734.2017.1280692
*Rodrigues, F., Sei, M., & Arruda, S. (2013). Ludoterapia de Criança com Síndrome de
Asperger: Um estudo de caso. Paidéia, 23(54), 121-127. doi:10.1590/1982-
43272354201314
719
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
A Psicoterapia Infantil no Setting Clínico: Uma Revisão Sistemática de Literatura
__________________________________________________________________________________________

*Rodrigues, P. & Nunes, A. (2010). Brincar: um olhar gestáltico. Revista da Abordagem


Gestáltica, 16(2), 189-198. Retrieved from
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rag/v16n2/v16n2a09.pdf
Rogers, C. R. (1994). As condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica
de personalidade. In Wood, J. Abordagem Centrada na Pessoa (pp. 155-177). Vitória:
Ed. Fundação Ceciliano Abel de Almeida.
*Ruiz, F. J. & Perete, L. (2015). Application of a relational frame theory account of a
psychological flexibility in young children. Psicotherma, 27(2), 114-119.
doi:10.7334/psicothema2014.195
*Ryan, V. & Edge, A. (2011). The role of play themes in non-directive play therapy.
Clinical Child Psychology and Psychiatry, 17(3), 354-369.
doi:10.1177/1359104511414265
Sampaio, R. & Mancini, M. (2007). Estudos De Revisão Sistemática: um guia para
síntese criteriosa da evidência científica. Revista Brasileira de Fisioterapia, 11(1), 83-89.
doi:10.1590/S1413-35552007000100013
*Scaglia, A.; Mishima, F. & Barbieri, V. (2011). Entrevista familiar como facilitadora no
processo de triagem de uma clínica escola. Estilos da Clínica, 16(2), 404-423.
doi:10.11606/issn.1981-1624.v16i2p404-423
*Schneider, R. &Torossian, S. (2009). Contos de Fadas: de sua origem à clínica
contemporânea. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, 15(2), 132-148. Retrieved from
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v15n2/v15n2a09.pdf
*Silva, J. M. & Reis, M. E. B. T. (2017). Psicoterapia psicanalítica infantil: O lugar dos
pais. Temas em Psicologia, 25(1), 235-250. doi:10.9788/TP2017.1-15Pt
*Skedgell, K. K.; Fornander, M. & Kearney, C. A. (2017). Personalized Individual and
Group Therapy for Multifaceted Selective Mutism. Clinical Case Studies, 16(2), 166-
181. doi:10.177/153465011685619.
*Sori, C. F. & Schnur, S. (2014). Trauma-Focused Integrated Play Therapy: An
Interview With Eliana Gil, Part I. The Family Journal, 22(1), 113-118.
doi:10.1177/1066480713505280
*Souza, F. & Mosmann, C. (2013). Crianças e adolescentes encaminhados para
psicoterapia pela escolar: percepções de genitores e professores. Revista da
SPAGESP, 14(2), 39-54. Retrieved from
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677 -
29702013000200004&lng=pt&nrm=iso
*Telles, T. (2014). A infância na fenomenologia de Merleau-Ponty: Contribuições para
a psicologia e para educação. Revista do NUFEN, 6(2), 4-14. Retrieved from
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rnufen/v6n2/a02.pdf
*Waumsley, S. & Swartz, S. (2011). Individual psychotherapy as treatment of choice:
preliminary findings from the UCT Child Guidance Clinic. South African Journal of
Psychology, 41(3), 279-287. doi:10.1177/008124631104100303
720
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
Rosa Angela Cortez Brito, Sarah Montezuma, Anna Karynne Silva Melo, Virginia Moreira
__________________________________________________________________________________________

*Weisz, J. (2014). Building Robust Psychotherapies for Children and Adolescents.


Perspectives on Psychological Science, 9(1), 81-84. doi:10.1177/1745691613512658
*Westrhenen, N.; Fritz, E.; Oosthuizen, H.; Lemont, S.; Vermeer, A. & Kleber, R. J.
(2017). Creative arts in psychotherapy treatment protocol for children after trauma.
The Arts in Psychotherapy, 54(1), 128-135. doi:10.1016/j.aip.2017.04.013

Submetido em: 22.11.2019


Aceito em: 01.09.2020

721
Contextos Clínicos, v. 13, n. 2, mai./ago. 2020
10.33208/PC1980-5438v0032n03A09
ISSN 0103-5665  599

A família na psicoterapia infantil:


Uma revisão integrativa das abordagens
humanistas e fenomenológicas
The family in child psychotherapy: An integrative
review of humanistic and phenomenological approaches

La familia en psicoterapia infantil: Una revisión


integradora de los enfoques humanísticos y fenomenológicos

Manuela de Albuquerque Rocha Siqueira (1)


Lucas Bloc (2)
Virginia Moreira (3)

Resumo
Este estudo teve como objetivo realizar uma revisão integrativa sobre a
produção científica brasileira a respeito da participação das famílias no pro-
cesso psicoterapêutico infantil dentre as abordagens inspiradas no pensamento
humanista e/ou fenomenológico. Foi realizada uma busca de artigos publica-
dos no período entre janeiro de 2008 e outubro de 2018 nas bases de dados
PEPsic e Capes, por meio de descritores que dessem conta da multiplicidade de
abordagens e nomenclaturas destas. Após a aplicação dos critérios de inclusão,
estabelecidos previamente, foram selecionados 11 artigos para análise. Na aná-
lise, os artigos foram divididos em duas categorias: uma contendo os estudos
que descrevem as percepções dos próprios psicólogos ou das famílias sobre o
assunto, e outra com aqueles que descrevem como ocorreu a atuação junto
aos responsáveis durante a psicoterapia infantil. Os resultados apontam para
uma concordância entre os estudos atuais e o arcabouço teórico, mostrando o

(1)
Psicóloga pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Mestranda do programa de pós-graduação em psicologia da
Universidade de Fortaleza (PPGP/UNIFOR), Fortaleza, CE, Brasil. email: manuelarochasiqueira@gmail.com
(2)
Doutor em Psicopatologia e Psicanálise pela Université Paris Diderot (Paris VII), Professor do Curso de Graduação
em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, CE, Brasil. email: lucasbloc@yahoo.com.br
(3)
Pós-Doutora em antropologia médica pela Harvard Medical School, Doutora em psicologia clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Professora do programa de pós-graduação em psicologia da Universida-
de de Fortaleza (PPGP/UNIFOR), Fortaleza, CE, Brasil. email: virginiamoreira@unifor.br

Esta pesquisa está vinculada ao projeto PQ-1D “Fenomenologia Clínica da Intersubjetividade no mundo vivido
(Lebenswelt) psicopatológico”, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


600  A família na psicoterapia infantil

lugar relevante da participação das famílias na psicoterapia infantil. Sugere-se


a ampliação das pesquisas e publicações sobre o tema, além do investimento
na qualificação dos psicoterapeutas infantis para este tipo de trabalho, que tem
sido pouco explorado e demonstra ser uma área que demanda grande atenção e
aprimoramento dos psicólogos.
Palavras-chave: psicoterapia infantil; famílias; pais e mães; fenomenologia;
clínica humanista.

Abstract
This study aimed at presenting an integrative review of the Brazilian scien-
tific production regarding the participation of families in the child psychothera-
peutic process among the approaches inspired by humanistic and/or phenom-
enological thinking. The PEPsic and Capes databases were searched for articles
published between January 2008 and October 2018, using descriptors that al-
lowed for the multiplicity of approaches and nomenclatures in those. After ap-
plying the inclusion criteria, which were previously established, 11 articles were
selected for analysis. For the analysis, the articles were divided into two catego-
ries: one containing the studies that describe the perceptions of the psychologists
themselves or of the families about the process, and another category with stud-
ies describing how was the participation of families in the child psychotherapy.
Results point to a concordance between the current studies and the theoretical
framework, showing how relevant the families’ participation is. It is suggested
that research and publications on the subject be expanded, in addition to invest-
ing in the qualification of children’s psychotherapists for this type of work, which
has not been much explored and proves to be an area that requires great attention
and improvement by psychologists.
Keywords: child psychotherapy; families; fathers and mothers; phenome-
nology; humanist psychology.

Resumen
Este estudio tuvo como objetivo realizar una revisión integrativa sobre la
producción científica brasileña acerca de la participación de las familias en el
proceso psicoterapéutico infantil entre los enfoques que poseen inspiración en
el pensamiento humanista y/o fenomenológico. Se realizó una búsqueda de ar-
tículos publicados en el período entre enero de 2008 y octubre de 2018 en las
bases de datos PEPsic y Capes, por medio de descriptores que dieran cuenta de la

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


A família na psicoterapia infantil  601

multiplicidad de abordajes y nomenclaturas de éstas. Después de la aplicación de


los criterios de inclusión, establecidos previamente, se seleccionaron 11 artículos
para análisis. En el análisis, los artículos fueron divididos en dos categorías: una
conteniendo los estudios que describen las percepciones de los propios psicólogos
o de las familias sobre el tema, y otra con aquellos que describen cómo ocurrió
la actuación junto a los responsables durante la psicoterapia infantil. Los resul-
tados apuntan a una concordancia entre los estudios actuales y el marco teórico,
mostrando el lugar relevante de la participación familiar en la psicoterapia infan-
til. Se sugiere la ampliación de las investigaciones y publicaciones sobre el tema,
además de la inversión en la calificación de los psicoterapeutas infantiles para este
tipo de trabajo, que ha sido poco explorado y señala ser una área que demanda
gran atención y perfeccionamiento de los psicólogos.
Palabras clave: psicoterapia infantil; familias; padres y madres; fenomeno-
logía; clínica humanista.

Introdução

O início dos trabalhos em psicoterapia infantil remonta ao momento da


criação da psicanálise por Sigmund Freud (1856-1939), com a noção de que as
primeiras experiências podem ser tão críticas que até mesmo as crianças podem
ter necessidades de intervenção (Weisz et al., 2005). A psicoterapia com crian-
ças se desenvolveu durante o século XX, inicialmente com enfoque psicanalítico,
ao qual trabalhos sob outras abordagens se seguiram. No final do século, a psico-
terapia infantil já se mostrava em marcante expansão em sua variedade e alcance
(Weisz et al., 2005).
Atualmente, após todo um processo de desenvolvimento teórico e me-
todológico, as diferentes abordagens de psicoterapia infantil apresentam suas
diferenças em termos de visão do ser humano e metodologia de atuação. Po-
rém, algumas características podem ser consideradas como típicas da clínica com
crianças, como a possibilidade de trabalho com crianças de qualquer faixa etária,
os métodos lúdicos com uso de brinquedos e demais recursos, o entendimento de
que o brincar é a forma de expressão e ação criativa da criança no meio, de que a
problemática apresentada pela criança faz parte de contextos mais amplos, como
o familiar (independentemente de sua configuração), o escolar, o social, dentre
outros (Aguiar, 2005). A participação das famílias, ou mesmo a sua necessidade,
é uma das características da psicoterapia infantil, principalmente se partirmos
da consideração que são as famílias que, geralmente, identificam as demandas

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


602  A família na psicoterapia infantil

das crianças e as conduzem para o acompanhamento psicológico (Klinger et al.,


2011; Bazanelli-Prebianchi, 2011). De forma direta ou indireta, a família, em suas
diferentes configurações, participa dos atendimentos do início ao fim (Gordon &
Cooper, 2016) e possui um papel determinante para que se alcancem os objetivos
da clínica psicológica com crianças (Post et al., 2012).
O processo psicoterapêutico infantil geralmente inclui sessões individu-
ais ou grupais com as crianças. Periodicamente, são também realizadas sessões
com a família (pais, mães e outros familiares com maior proximidade), assim
como podem ocorrer sessões conjuntas com a criança e sua família. Os aten-
dimentos com os responsáveis têm o intuito de oferecer acolhimento e escuta,
fornecer orientações e informações sobre o desenvolvimento infantil que pos-
sam constituir dúvidas, sensibilizar para a compreensão das questões da criança
e até mesmo favorecer a comunicação entre os membros da família, sempre ten-
do como foco principal o benefício da criança que está sendo atendida (Aguiar,
2005; Oaklander, 1980).
Em estudo exploratório com psicoterapeutas infantis de diferentes abor-
dagens, Oliveira et al. (2018) encontraram que todos os participantes costumam
incluir os pais na psicoterapia da criança, a maioria (76,3%) com regularida-
de e os demais (23,7%) de acordo com a necessidade do caso, variando entre
periodicidade semanal (2,6%), quinzenal (27,6%), mensal (57,9%) ou variável
(11,8%). As principais técnicas utilizadas pelos psicoterapeutas no momento das
entrevistas com as famílias foram escuta aberta, coleta de informações sobre a
criança e aconselhamento e orientação aos pais. Esta pesquisa também se preocu-
pou em descrever categorias relacionadas a dificuldades e benefícios relacionados
à participação dos pais, constituindo dificuldades: a criança como sintoma dos
conflitos familiares ou do casal; a resistência dos pais à psicoterapia e às mudan-
ças; e o cumprimento do contrato pelos pais (p. 41). Os benefícios identificados
foram: a aliança terapêutica; a compreensão da dinâmica familiar e dos sintomas
da criança; e o fortalecimento dos vínculos entre pais e filhos.
A importância da participação das famílias na psicoterapia da criança se
explica pela função essencial desempenhada por elas na formação e no desen-
volvimento do indivíduo. A criança, quando nasce, adentra um contexto fami-
liar específico que pode favorecer ou dificultar determinados comportamentos.
Inicialmente, é nesse contexto que ela começa a adquirir suas características
pessoais e singulares, ao assumir e diferenciar papéis, além de aprender mode-
los de comportamento social e receber bases para seu aprendizado emocional
(Benedito et al., 1988). Com isso, as dificuldades apresentadas no trabalho com

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


A família na psicoterapia infantil  603

a criança necessariamente se encontram relacionadas a dificuldades nos vínculos


familiares (Benedito et al., 1988; Aguiar, 2005).
Ao entender que a família é uma totalidade autorregulada e que conse-
quentemente, ao se trabalhar com uma criança na clínica psicológica infantil,
intervém-se no equilíbrio dessa totalidade familiar, evidencia-se que esse aspecto
deverá ser levado em conta durante a compreensão diagnóstica e o processo tera-
pêutico (Aguiar, 2005). Ao longo desse processo, cabe ao psicoterapeuta infantil
acompanhar as famílias das crianças que atende, oferecendo o suporte necessário
para que o sistema familiar possa lidar de forma mais satisfatória com as mudan-
ças e atingir um novo equilíbrio (Aguiar, 2005).
Costa e Dias (2005), em estudo com psicoterapeutas infantis das aborda-
gens gestáltica, centrada na pessoa e psicodrama, levantaram que estas já experi-
mentaram sentimentos de frustração, solidão e impotência em relação à depen-
dência desse processo para com pais ou a rede social. De acordo com as autoras,
os pais podem vir a acreditar que serão apontados pelo psicoterapeuta como cul-
pados pelos problemas da criança, e a resistência por eles expressada pode decor-
rer daí. As autoras afirmam ainda que, provavelmente, isso ocorre por conta de
práticas que privilegiam o saber do psicólogo e desqualificam o saber dos pais,
focando mais nas deficiências do que nas competências destes.
Muitas vezes a possibilidade de reconfiguração familiar, advinda das mu-
danças da criança em psicoterapia, pode ser vivida pela família como ameaça ao
seu equilíbrio e, percebendo-se sem suporte para dar continuidade ao processo
terapêutico, pode vir a acontecer uma interrupção precoce e inesperada do pro-
cesso. Ao contrário, quando a família encontra apoio para vivenciar e superar os
desequilíbrios momentâneos que podem ocorrer durante a psicoterapia infantil,
ela tem possibilidades de crescer e se reconfigurar para formas mais saudáveis de
se relacionar (Aguiar, 2005).
Partindo da premissa que a psicoterapia infantil é atravessada diretamente
pela participação da família no processo psicoterapêutico, questiona-se a pro-
dução científica que envolve a participação da família na psicoterapia infantil.
Assim, este artigo tem como objetivo analisar a produção científica sobre a par-
ticipação de pais, mães e outros familiares no processo psicoterapêutico infantil.
Diante da diversidade de abordagens psicoterápicas e suas especificidades, e da
prática clínica dos autores do artigo, optou-se por focar em artigos que utili-
zam como base as abordagens humanistas e/ou fenomenológicas em psicoterapia.
Foram contempladas, portanto, as seguintes abordagens clínicas: gestalt-terapia,
abordagem centrada na pessoa, ludoterapia, psicoterapia humanista, psicoterapia
humanista-fenomenológica, psicoterapia fenomenológico-existencial e psicodra-

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


604  A família na psicoterapia infantil

ma. Ainda que o psicodrama não seja considerado uma abordagem ligada direta-
mente ao movimento humanista e/ou fenomenológico em psicologia, para fins
deste estudo, incluímos essa abordagem por suas afinidades com esta perspectiva.
A escolha deste caminho visa, de um lado, a contemplar as perspectivas oriundas
da psicologia humanista – considerada a terceira força em psicologia, que sur-
ge na primeira metade do século XX no contexto norte-americano e tem como
principais representantes autores como Carl Rogers, Rollo May, Frederick Perls,
entre outros –, e, de outro, a lente fenomenológica – filosofia que surge no início
do século XX com Edmund Husserl e que tem fornecido, ao longo das décadas,
contribuições teórico-metodológicas para a clínica, além de ter influenciado e
estabelecido um diálogo com a psicologia humanista e de se apresentar como
método qualitativo de investigação empírica. Surgidas no período pós-guerra,
as perspectivas humanista e/ou fenomenológica inauguraram novas formas de se
entender o homem e serviram de base para o surgimento de propostas psicotera-
pêuticas voltadas para o público infantil.

Método

Este estudo utilizou como método a revisão integrativa de literatura, que


permite sintetizar o estado do conhecimento científico acerca de determinado
tema, aponta possíveis lacunas e possibilita extrair conclusões gerais. Este mé-
todo de pesquisa oferece a possibilidade de adquirir informações aprofundadas
sobre determinado assunto, baseando-se em estudos anteriores e analisando-os
criticamente, podendo ser eficaz para o profissional que o consulta, em vez
de precisar recorrer às fontes originais, muitas vezes em grande quantidade
(Mendes et al., 2008).
Apresentaram-se neste artigo os resultados das buscas por artigos disponí-
veis nas bases de dados Capes e PEPsic publicados nos últimos dez anos a respeito
do tema esboçado. O levantamento foi realizado no início do mês de outubro de
2018. A pesquisa foi realizada por meio da combinação de diversas palavras-chave,
utilizando os operadores booleanos AND e OR. Inicialmente, foram utilizados
os descritores que se referem ao processo terapêutico infantil (psicoterapia infantil
OR psicoterapia de crianças OR psicoterapia da criança OR ludoterapia), que em
seguida foram combinados por meio do operador AND com os descritores que se
referem aos responsáveis pela criança (pais OR família).
Tendo em vista a diversidade de abordagens psicológicas vinculadas às
práticas que serão abordadas neste trabalho, foram utilizados também como

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


A família na psicoterapia infantil  605

descritores aqueles que identificam as abordagens (gestalt-terapia OR abordagem


centrada na pessoa OR psicodrama OR psicoterapia humanista OR psicoterapia
fenomenológico-existencial OR psicoterapia humanista-fenomenológica), as quais
foram combinadas com os descritores referentes ao atendimento infantil (crian-
ças OR infância).
Como critérios de inclusão, foram considerados: (1) data de publicação de
janeiro de 2008 a outubro de 2018; (2) escritos em português, espanhol ou inglês;
(3) exclusivamente artigos empíricos disponíveis eletronicamente; (4) fazerem
referência a abordagens de inspiração humanista e/ou fenomenológica ou que
utilizem um método fenomenológico de pesquisa; (5) fazerem referência direta à
prática clínica com crianças, de avaliação, de manejo das sessões ou técnicas; (6)
mencionarem a participação dos pais e/ou familiares no processo psicoterapêutico.
Após consulta às bases de dados, foram identificados 187 artigos, 127 na
base de dados Capes e 60 na base PEPsic. Primeiramente, foi realizada a leitura de
resumos e palavras-chave. Com a aplicação dos critérios de inclusão/exclusão na
leitura dos resumos e a eliminação dos repetidos, foram selecionados 29 artigos.
Em seguida, os artigos selecionados foram lidos na íntegra e excluídos aqueles
que não atendiam ao objetivo da pesquisa, isto é, não tratavam da participação
dos pais, mães e/ou familiares no processo psicoterapêutico infantil com aborda-
gens humanista e/ou fenomenológica. Foram incluídos estudos que não indica-
ram abordagem, assim como aqueles que indicavam apoio em abordagens mistas.
Os estudos com adolescentes que continham crianças também foram contempla-
dos. Ao final, restaram selecionados onze artigos, que tiveram suas informações
registradas, culminando na descrição e análise dos estudos que atenderam aos
objetivos propostos.

Resultados

Observou-se que, nas bases de dados consultadas, quanto ao período, fo-


ram publicados até três artigos por ano, como é o caso de 2011, período de maior
concentração de publicações. Nos anos de 2008, 2012 e 2013 não foram encon-
tradas publicações com as características pretendidas. As técnicas empregadas na
coleta de dados foram relatos de experiência (5 artigos), estudo de caso ou relato
de caso clínico (2), encontros terapêuticos (1) e observação participante (1). Nos
estudos com foco nos próprios psicólogos, utilizou-se questionário com pergun-
tas abertas e fechadas enviado por e-mail (2) e a entrevista semiestruturada (1).
A Tabela 1 apresenta a caracterização dos artigos contemplados.

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


606  A família na psicoterapia infantil

Tabela 1 — Características dos artigos analisados


Natureza da Técnicas
Autor/ano Título
pesquisa empregadas
Campos e Cury Atenção psicológica clínica: encontros Encontros
Qualitativa
(2009) terapêuticos com crianças em uma creche terapêuticos
Questionário
Rodrigues e Nunes
Brincar: um olhar gestáltico Qualitativa com perguntas
(2010)
semiestruturadas
Bazanelli-Prebianchi Atenção psicológica infantil: compreensão de Entrevistas
Qualitativa
(2011) usuários e estagiários do serviço-escola semiestruturadas
Campos et al. Clínica gestáltica infantil e integralidade em Relato de
Qualitativa
(2011) uma unidade básica de saúde experiência
Wechsler et al. Psicodrama com crianças: das intervenções Relato de
Qualitativa
(2014) clínicas às psicossociais experiência
Avaliação psicológica no atendimento infantil: Relato de caso
Santos (2015) Qualitativa
Uma perspectiva gestáltica clínico
Relato de experiência: avaliação psicológica
Bérgamo e Relato de
de uma criança vítima de abuso sexual Qualitativa
Bernardes (2015) experiência
fundamentada no psicodrama
Atendimento de crianças com queixas
Andrade et al. associadas: dificuldade de aprendizagem e Relato de
Qualitativa
(2017) problemas de comportamento através do experiência
psicodrama moreniano
Contribuições do pensamento sistêmico,
Bittencourt e Böing Relato de
da gestalt-terapia e de práticas da psicologia Qualitativa
(2017) experiência
para o trabalho em um CAPSi
Questionário com
Participação dos pais na psicoterapia da
Oliveira et al. (2018) Mista questões abertas
criança: práticas dos psicoterapeutas
e fechadas
Pajaro e Andrade Estudo de caso em gestalt-terapia: leituras
Qualitativa Estudo de caso
(2018) fenomenológicas do desenho infantil

Em seguida, foi realizada a análise dos principais achados a respeito do tema


proposto, ou seja, do trabalho com os responsáveis na psicoterapia infantil, subdi-
vididos em duas categorias: (1) Percepções de psicólogos e dos responsáveis sobre
sua participação na psicoterapia infantil; e (2) Relatos de sessões/intervenções.

Percepções de psicólogos e responsáveis sobre a participação das famílias na


psicoterapia infantil

Compõem essa categoria os estudos que se preocuparam em compreen-


der a percepção das pessoas que participam de sessões familiares na psicoterapia

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


A família na psicoterapia infantil  607

infantil, sejam as famílias, seja o psicoterapeuta, sejam as crianças. Os artigos


desenvolvem pesquisas empíricas que têm como foco os agentes participantes do
processo psicoterapêutico. Rodrigues e Nunes (2010) desenvolveram uma pes-
quisa fenomenológica com gestalt-terapeutas infantis que foram consultados para
relatar suas experiências sobre o brincar, assim como suas possibilidades, as habi-
lidades necessárias e as dificuldades vivenciadas por eles. Para a coleta de dados,
os autores utilizaram um questionário estruturado, que buscava explorar a expe-
riência dos gestalt-terapeutas, tendo como objetivo principal buscar o significado
do brincar para estes. Na análise dos dados, os autores se basearam no método
proposto por Amadeo Giorgi e nas contribuições de Antônio Coppe. A relação
com os responsáveis pelas crianças em atendimento foi mencionada como a prin-
cipal dificuldade vivenciada pelos participantes desse estudo, principalmente suas
expectativas e sua colaboração com o processo terapêutico, ou ainda as dificulda-
des do próprio terapeuta em desenvolver essa relação.
O estudo de Bazanelli-Prebianchi (2011) preocupou-se em avaliar os ser-
viços de uma clínica-escola que oferece psicoterapia infantil nas abordagens com-
portamental, humanista e psicanalítica, realizando entrevistas com os estagiários
de psicologia que atendem as crianças e com os responsáveis por elas. Foi encon-
trado que os estagiários se queixam da incompreensão dos responsáveis a respeito
do serviço prestado. Em contrapartida, esses reclamam da falta de comunicação
com os estagiários, o que acaba por excluí-los do processo e pode, portanto, dimi-
nuir o entendimento sobre ele. Os autores chamam a atenção para a importância
dos atendimentos com os responsáveis, já que existem concepções sociais e cul-
turais em relação ao corpo, à saúde e à doença que diferem do entendimento dos
psicólogos. Além disso, como a clientela é encaminhada por outros profissionais
de saúde, geralmente apresentam-se com diferentes expectativas e crenças do que
sejam o tratamento psicológico, a doença, suas causas e as possibilidades de cura.
É apontado que a exclusão dos responsáveis pelas crianças do processo terapêutico
minimiza o trabalho colaborativo, dificulta a parceria entre o psicólogo e a rede
social da criança e torna o processo vulnerável ao abandono. Em suas conclusões,
a autora afirma que a formação clínica que privilegia o individual e o intrapsí-
quico em detrimento de um olhar histórico e social pode trazer estas e outras
consequências negativas ao processo terapêutico. Apesar de incluir na pesquisa
estagiários que atendem sob diversas perspectivas, a teoria utilizada, assim como a
análise dos resultados, é fundamentada no referencial humanista. Na análise dos
dados, também é utilizada a análise de conteúdo de Bardin.
Oliveira et al. (2018) desenvolveram um estudo exploratório de levan-
tamento com psicoterapeutas infantis de diferentes abordagens. Encontra-

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


608  A família na psicoterapia infantil

ram que todos os participantes costumam incluir os pais na psicoterapia da


criança. Nos resultados da fase exploratória de sua pesquisa, criou categorias
que diziam respeito às dificuldades e benefícios que os psicólogos atribuíram
à participação dos responsáveis na psicoterapia infantil. Como dificuldades,
uma categoria chama-se “a criança como sintoma dos conflitos familiares ou
do casal”, indicando que os psicólogos percebem como dificuldade comum
os casos em que a criança é representante de um problema que é familiar ou
conjugal. Nesses casos, percebem dificuldades por parte dos responsáveis em
reconhecerem seus próprios conflitos e se implicarem no processo. Eles podem
experimentar o sentimento inconsciente de culpa pelos problemas do filho,
mas o expressam demonstrando competitividade com o terapeuta, acabando
por atribuir a ele toda a responsabilidade de resolver os problemas da criança.
Outra categoria foi nomeada “resistência dos pais à psicoterapia e às mudan-
ças”, relacionada ao comportamento dos responsáveis de não responderem de
forma saudável à melhora da criança ou ao surgimento de suas próprias di-
ficuldades, interrompendo bruscamente o processo ou deixando de cumprir
combinados. Também alegaram perceber nos pais (homens) uma maior difi-
culdade em participar do processo.
A categoria “cumprimento do contrato pelos pais” indicou a ocorrência
de faltas, atrasos, descumprimento de obrigações de pagamento, sigilo e outras
relacionadas a tal assunto. Como benefícios, a categoria “aliança terapêutica” diz
respeito à percepção de que, quando os responsáveis e os psicólogos estabelecem
uma boa relação, se favorece uma melhor adesão da criança ao processo, melhor
vínculo com o terapeuta e melhor aporte de informações. A “compreensão da
dinâmica familiar e dos sintomas da criança” é citada como benefício, que advém
da participação dos responsáveis nas reuniões de acompanhamento, possibilitada
por um melhor entendimento de pais e mães sobre suas expectativas, desejos e
preocupações, contribuindo também para a consolidação das mudanças que vão
acontecendo. Por fim, a categoria “fortalecimento dos vínculos pais-filhos” refe-
re-se à percepção pelos psicólogos de que o trabalho com os responsáveis possibi-
lita que haja melhor comunicação e compreensão entre a família, com melhora
nas relações estabelecidas entre seus membros.
Os autores concluem que perceberam um consenso sobre a importân-
cia desse tipo de participação na psicoterapia infantil, incluindo a flexibilidade
com que isso pode acontecer, dentre outros achados. Este estudo utilizou ques-
tionário como instrumento de coleta de dados, foi feita uma análise descritiva
da parte quantitativa e análise de conteúdo de Bardin da parte dissertativa.
Dentre os psicoterapeutas participantes do estudo, apenas um identificou-se

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


A família na psicoterapia infantil  609

como gestalt-terapeuta e outros 14 com abordagens mistas, enquanto os demais


dividiram-se entre as abordagens psicanalíticas e comportamentais. Não existem
outras referências às abordagens de inspiração humanista e fenomenológica.

Relatos de sessões/intervenções

Entre os resultados, encontram-se estudos que abordam diretamente as


intervenções clínicas com as famílias durante as sessões familiares ou conjuntas.
Os artigos se centram na dimensão prática que envolve a participação familiar na
psicoterapia e as possíveis intervenções propostas. Campos e Cury (2009) descre-
vem um estudo fenomenológico com o objetivo de realizar e analisar encontros
terapêuticos e seu enquadramento como possibilidade para a criação de um espa-
ço de acolhimento e escuta em ambiente institucional (uma creche da rede pú-
blica). Os encontros terapêuticos eram realizados individualmente com crianças
de 3 a 6 anos, por iniciativa da própria criança e sob a perspectiva da psicologia
humanista. É citado que foram realizadas reuniões com os responsáveis no início
e no final da pesquisa, além de esclarecimentos aos que os procuravam durante o
trabalho. Porém, é importante ressaltar que no artigo não houve a preocupação de
detalhar essas reuniões. O estudo utiliza o referencial teórico da Abordagem Cen-
trada na Pessoa de Carl Rogers e da Ludoterapia Centrada na Criança de Virginia
Axline. A coleta de dados ocorreu por meio dos próprios encontros terapêuticos.
Foi realizada uma análise fenomenológica das narrativas das crianças que partici-
param dos encontros, a partir do acontecer clínico que emergiu desses encontros,
buscando apreender o significado das experiências vividas.
O artigo de Campos et al. (2011) apresenta um relato de experiência de
gestalt-terapia infantil de grupo no contexto da saúde pública. Nesse modelo
de trabalho, optou-se pelo atendimento em conjunto (crianças e responsá-
veis) a cada três encontros apenas com as crianças, começando pelo primeiro
encontro, em que tanto pais quanto crianças expuseram suas queixas iniciais,
e finalizando com o encerramento do grupo. Os objetivos dos encontros em
conjunto se relacionavam a desmistificar crenças sobre o processo terapêutico
e verificar expectativas, observar o diálogo e a relação entre crianças e responsá-
veis, realizar apontamentos sobre o que estava sendo observado visando a pro-
mover discussões e awareness. Em suas considerações finais, aponta a família
como representando grande influência sobre a criança em seu campo holístico
e que a participação dos responsáveis no processo psicoterapêutico infantil está
ligada a intervenções mais satisfatórias relacionadas ao autoconhecimento e ao

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


610  A família na psicoterapia infantil

possível diálogo entre os envolvidos. Nesse estudo, a fenomenologia e o hu-


manismo são representados pela abordagem gestáltica, utilizada pelos autores
como referencial clínico.
O artigo de Wechsler et al. (2014) apresenta práticas de intervenções psi-
codramáticas com foco clínico e socioeducacional. No foco clínico, relata uma
intervenção em que se procura atendimento para uma criança de três anos. Entre-
tanto, são identificados conflitos familiares e indicada terapia familiar. É descrita
também uma sessão de psicoterapia familiar, com pai, mãe e a criança e, nas con-
clusões, é reconhecido o desserviço que seria trabalhar apenas com a criança, pois
a identidade infantil é produto das relações intersubjetivas com os grupos, o pri-
meiro dos quais é constituído pela família. A técnica da Realidade Suplementar é
apresentada como possibilidade de atuação nessa demanda, permitindo a elabo-
ração de questões e solução de conflitos por intermédio de personagens imaginá-
rios. Ainda no foco clínico, as autoras relatam brevemente um atendimento em
grupo com cinco crianças de idades entre seis e oito anos, porém sem informar
sobre o manejo junto aos responsáveis pelas crianças. No foco socioeducacional,
relata brevemente sobre o trabalho numa instituição, com um grupo com mães
de crianças que estavam em tratamento contra o câncer, servindo de espaço de
escuta, acolhimento ao sofrimento e convivência. Um segundo grupo de mães foi
criado, porém, assim como o primeiro, passou por um esvaziamento que já era
recorrente nesse tipo de trabalho naquela instituição. Não descreveu com detalhes
o manejo dos grupos. Ambos, após o esvaziamento, se transformaram em outros,
de acordo com as demandas que surgiam espontaneamente, que foram acolhi-
das como oportunidades de não enrijecimento frente ao instituído. O segundo
grupo passou a atender crianças e adolescentes, trabalhando também questões
relacionadas a como lidar com a doença. As autoras analisaram, por meio do
relato de experiência, as práticas relatadas à luz do psicodrama como abordagem
psicoterapêutica.
Em estudo com fundamentação também no psicodrama, Bérgamo e Ber-
nardes (2015) apresentam o relato de experiência de uma avaliação psicológica
de uma criança vítima de abuso sexual. Descrevem brevemente sessões com a
criança e com a mãe, informando que o pai e o padrasto (acusado de praticar os
abusos contra a criança) foram convidados, mas não compareceram. Apresen-
tam interpretações acerca da dinâmica familiar identificada na avaliação, assim
como dos efeitos sobre a mãe de uma sessão conjunta entre ela e a filha. O final
da avaliação indicou psicoterapia tanto para a mãe como para a criança. Nesse
relato de experiência, a abordagem psicodramática foi utilizada pelos autores
como base teórico-metodológica.

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


A família na psicoterapia infantil  611

O artigo de Santos (2015) tem como objetivo promover reflexões sobre o


processo de avaliação psicológica de fundamentação gestáltica, utilizando o méto-
do fenomenológico e tendo como ilustração um caso clínico. A autora demonstra
a importância do processo de avaliação inicial, para que possa definir de que
forma realizará o manejo com a criança, seus pais e a escola. Aborda principal-
mente a participação dos pais da criança durante a avaliação do caso clínico, com
descrições a respeito das expectativas apontadas pelos responsáveis, o que iden-
tificava neles e como respondeu a eles. Descreve também como ocorreu a sessão
devolutiva, sua importância para informar aos pais sobre a criança, como também
para implicá-los no processo terapêutico que seria indicado. Relata brevemente
sobre as mudanças percebidas na relação deles com a criança após dois anos de
psicoterapia com sua filha. A autora afirma que seu vínculo com os pais tem papel
fundamental no processo de avaliação psicológica e psicoterapia, compreenden-
do que os responsáveis têm a atribuição de informar sobre a criança, mas que
também estão implicados nos sintomas. A autora utiliza a gestalt-terapia como
aporte central, destacando também seu caráter fenomenológico. Menciona, por
exemplo, o método fenomenológico na prática da avaliação psicológica infantil,
a importância de estar com a criança sem aprioris, ainda que reconheça a impos-
sibilidade de suspendê-los completamente. A visão humanista é ainda apontada
como tendo influenciado uma mudança na forma como as avaliações psicológicas
eram feitas e que, sob outros referenciais, tendiam a reforçar um desequilíbrio de
poder entre o psicólogo e o cliente.
No estudo de Andrade et al. (2017) é apresentado um modelo de interven-
ção em um grupo formado por crianças de 9 a 11 anos, com queixas associadas a
dificuldades de aprendizagem e a problemas de comportamento. Nos encontros
grupais era utilizada como abordagem teórico-metodológica o psicodrama mo-
reniano. Quanto à atuação com os pais ou responsáveis pelas crianças, é citada
apenas uma entrevista de anamnese, realizada também num grupo com eles.
Bittencourt e Böing (2017) apresentam o relato de experiência da atuação
em um Centro de Atenção Psicossocial para Infância e Adolescência (CAPSi) em
grupos de crianças, adolescentes e familiares. As experiências relatadas tiveram como
base epistemológica o pensamento sistêmico e como base teórico-metodológica as
visões sistêmica e gestáltica. A entrada da criança nos grupos era precedida de uma
entrevista de anamnese individual com a família, com o objetivo de verificar a quei-
xa inicial, a história da criança e seu desenvolvimento psicomotor. Também eram
realizadas sessões com as famílias no entendimento de que, além das características
individuais, deve-se focalizar as relações e o contexto de vida da criança. Essas ses-
sões familiares eram realizadas tendo como base a perspectiva sistêmica e não foram

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


612  A família na psicoterapia infantil

fornecidas maiores informações sobre o manejo clínico, mas sim a respeito da teoria
e da convergência entre as duas abordagens. Promover o engajamento das famílias
nos processos de diagnóstico e intervenção foi um dos fatores citados como dificul-
tadores do processo psicoterapêutico. A gestalt-terapia é apontada como abordagem
cujas bases se fundamentam, dentre outras teorias, na fenomenologia. As autoras
apoiaram-se na visão humanista na diferenciação entre a psicologia e as demais áre-
as, nas equipes multidisciplinares.
O estudo de Pajaro e Andrade (2018) relata o processo psicoterápico de
uma criança, tendo como objetivo apresentar a leitura fenomenológica do de-
senho como metodologia de trabalho na psicoterapia. Para isso, foi realizado
um estudo de caso, utilizando como método a pesquisa documental dos diários
de campo da psicoterapeuta e dos desenhos do cliente. As autoras descrevem
como foram realizadas as leituras fenomenológicas de sete desenhos da criança
e apontam de que forma este método pode refletir nas intervenções clínicas em
gestalt-terapia. São abordados atendimentos com a mãe, que tinham o objetivo
de favorecer nela o acolhimento ao sofrimento da criança. Fala-se em “acompa-
nhamento contínuo”, porém sem especificar a periodicidade, os participantes e as
características do manejo clínico nessas sessões.

Discussão

Os resultados encontrados mostram, de forma geral, o lugar relevante da


participação das famílias, em suas diferentes configurações, na psicoterapia in-
fantil. No que tange às abordagens humanistas e fenomenológicas, esses resul-
tados sugerem dois caminhos distintos. O primeiro caminho é centralizado no
uso do método fenomenológico como estratégia de investigação qualitativa que
foca na experiência daqueles que estão envolvidos. Estes estudos são importantes
por trazerem de forma próxima a experiência dos envolvidos como norte de pos-
síveis intervenções e reflexões do contexto infantil. O segundo caminho se volta
para as intervenções de base humanista e fenomenológica, mostrando como tais
abordagens têm desenvolvido uma prática clínica com crianças. Podem ser desta-
cados os estudos, de cunho empírico, que trazem intervenções do psicodrama e
da gestalt-terapia. Vale ressaltar que esses dois caminhos, ainda que distintos, são
fundamentais para se lançar um olhar amplo sobre o fenômeno infantil e para o
sofrimento que o envolve, compreendendo-se todo o campo envolvido. Quanto
mais a participação da família é deixada de lado, mais se contribui para um cen-
tramento na criança como um problema.

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


A família na psicoterapia infantil  613

Foram identificados três estudos (Rodrigues e Nunes, 2010; Bazanelli-Prebianchi,


2011; Oliveira et al., 2018) que descreveram a percepção dos psicólogos so-
bre o trabalho com os responsáveis na psicoterapia infantil. Nesses trabalhos,
os psicólogos reconhecem: a necessidade da participação das famílias; a impor-
tância de uma condução de qualidade desse momento para o fortalecimento da
relação de confiança entre a família, o psicólogo e a criança; e os ganhos referentes
ao nível de informações sobre o caso, o comprometimento dos responsáveis com
o cumprimento do contrato, com o andamento da terapia e com uma maior
abertura para as possibilidades de mudanças que podem advir desse processo. Es-
ses achados confirmam visões presentes na literatura sobre o tema (Aguiar, 2005;
Oaklander, 1980) e reconhecem o caráter imprescindível da participação familiar
na psicoterapia infantil. As intervenções não são percebidas como um comple-
mento, mas como uma dimensão efetiva que compõe esse tipo de trabalho.
A vivência dos psicólogos infantis indica a necessidade de um maior su-
porte teórico-prático para o manejo das sessões com as famílias. Um dos estudos
(Bazanelli-Prebianchi, 2011), em sua conclusão, afirma que o conhecimento a
respeito do processo psicoterapêutico é dos psicólogos, e não necessariamente dos
pais, cabendo aos primeiros o cuidado nos esclarecimentos e ajustes de expecta-
tivas. Costa e Dias (2005) afirmam que a maturidade emocional e o acúmulo de
experiência profissional do terapeuta contribuem para uma melhor articulação
entre teoria e prática, com consequente melhora no manejo da relação com as
famílias e favorecendo um processo mais efetivo. Esta articulação pode e deve
ser facilitada por uma produção científica que explore a participação familiar no
processo. Ainda que se reconheça a relevância, o aprofundamento teórico-prático
parece ainda ser limitado. E, por mais que a literatura de forma geral e comum
reconheça a relevância da participação familiar, a carência de estudos dificulta
uma maior apropriação dos profissionais envolvidos.
Foi encontrado apenas um estudo que trata das percepções das famílias
sobre o processo, com informações de que existiam dificuldades na comunica-
ção com os terapeutas. São, portanto, dados que se complementam: de um lado
as famílias que se sentem desassistidas e desinformadas; de outro, psicólogos
que se sentem incapazes ou incompreendidos. Não foram encontradas nesses
estudos informações sobre atitudes de compreensão e empatia para com os res-
ponsáveis pelas crianças, conforme verificou-se na literatura, acerca de seus sen-
timentos, dificuldades, frustrações como pais, mães, pessoas com suas próprias
histórias. As famílias estão também imersas em diversos contextos e recorrem ao
psicólogo para obter ajuda, ainda que, em vários casos, essa ajuda seja percebida
por eles como necessidade da criança. Isso pode ser papel difícil para o psicó-

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


614  A família na psicoterapia infantil

logo infantil, pois está ali pela criança, conhece suas dores e é porta-voz dela.
Porém, o reconhecimento de que os próprios pais e mães têm suas histórias,
suas dores e justificativas pessoais para o seu comportamento (Axline, 1986),
e a aceitação de que criticar e julgar os pais não é nosso papel (Aguiar, 2005)
pode contribuir para entendê-los como colaboradores do processo, ainda que
comumente não saibam como fazê-lo. O discurso comum e consensual acerca
da necessidade da participação da família na psicoterapia destoa da aparente
dificuldade em situá-los nesse processo.
Não foram encontrados estudos que abordem a percepção das próprias
crianças sobre a participação de suas famílias no processo terapêutico, o que surge
como um paradoxo, já que na psicoterapia infantil, o principal foco é na criança.
Considerou-se importante verificar como as sessões familiares ou conjuntas são
entendidas pela criança. Ainda que se reconheça a dificuldade para o desenvolvi-
mento desse tipo de pesquisa, é fundamental que ela seja ouvida para que estraté-
gias efetivas sejam desenvolvidas.
No que diz respeito à categoria “Relatos de sessões/intervenções”, foram
identificados estudos que abordam a participação das famílias no processo psi-
coterapêutico em diferentes fases da psicoterapia. No entanto, eles não especifi-
cam claramente como ocorre esse trabalho. Dois estudos (Wechsler et al., 2014;
Bittencourt e Böing, 2017) que não se concentraram em descrever como ocor-
reu o acompanhamento às famílias informaram, ainda, que houve dificuldades
relacionadas a esse aspecto, sem informar quais. Os demais estudos trouxeram
descrições de sessões com os responsáveis, manejo técnico e suporte teórico, com
indicações de técnicas e fazendo reflexões. Apesar de restritos em quantidade, per-
cebe-se a diversidade das intervenções propostas, com possibilidades de atuação
junto às famílias individualmente, em grupo ou em sessões conjuntas. Os estudos
encontrados relatam experiências em coerência com as abordagens pesquisadas,
preservando o foco no benefício da criança, o seu sigilo e o entendimento que
seus problemas fazem parte de um contexto mais amplo, do qual é dependente.
Esse tipo de estudo pode servir de inspiração para a prática, além de oferecer
apoio ao psicólogo infantil que, de acordo com Costa e Dias (2005), pode viven-
ciar sentimentos de frustração, solidão e impotência em relação à atuação com as
famílias das crianças. O compartilhamento de experiências por meio do relato de
outros psicólogos pode contribuir para diminuir a solidão profissional citada por
essas autoras, já que chegaram em sua pesquisa à percepção de que existem poucos
psicólogos infantis que atuam segundo as abordagens estudadas (gestalt-terapia,
psicodrama e abordagem centrada na pessoa).

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


A família na psicoterapia infantil  615

Não foram encontrados estudos que apontem situações de falhas ou in-


sucessos vinculados à relação com as famílias no processo terapêutico infantil.
A importância desses pode ser uma alternativa para o acolhimento e suporte aos
profissionais que passam por essa experiência sozinhos em seus consultórios, em-
bora sejam situações comuns. A convivência em uma sociedade que privilegia
ideais de sucesso, desempenho, rapidez e perfeição também pode afetar esse pro-
fissional, que, por estar imerso nesses mesmos valores, pode deixar de estar próxi-
mo da criança e de promover o espaço necessário à reflexão das famílias sobre seus
valores e estilos de vida (Mattar, 2010).

Considerações finais

Considerando as duas bases de dados consultadas e o período de tem-


po utilizado, foi encontrada uma quantidade restrita de trabalhos que abordam
com mais profundidade o trabalho junto aos pais e demais familiares no proces-
so psicoterapêutico infantil. Apenas onze artigos preocuparam-se em informar
que houve um acompanhamento às famílias das crianças e, ainda assim, somente
cinco estudos indicaram com maiores detalhes como efetivamente ocorreu este
acompanhamento. Tais detalhes permitiram a percepção de que existem várias
formas de realizar esse tipo de intervenção, com ações individuais, grupais, con-
juntas, com apenas um dos responsáveis ou com vários, periodicamente ou es-
poradicamente, utilizando leituras de histórias, desenhos, dramatizações, dentre
outras das mais variadas técnicas.
Percebe-se que existe nos estudos um consenso sobre a importância da
participação das famílias para que o processo psicoterapêutico infantil seja viá-
vel e tenha resultados mais efetivos. Infelizmente, esse momento da psicoterapia
infantil parece ainda ser encarado mais como um ônus pelos psicólogos do que
como um trabalho valioso e que também implica formação, atenção, preparo e
dedicação. Sugere-se aos psicólogos infantis maior atenção à sua própria qualifica-
ção para atuação junto às famílias das crianças e que se busque trocar experiências
com outros profissionais sobre o assunto, sejam de sucesso, sejam de fracasso,
tanto tendo em vista o conhecimento, quanto a diminuição da solidão que se
pode experienciar.
Sugere-se o investimento em pesquisas, publicações de estudos e experiên-
cias sobre o trabalho com as famílias na clínica infantil, tendo em vista que este
campo tem sido pouco explorado e é uma área que demanda grande atenção e
aprimoramento dos psicoterapeutas.

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


616  A família na psicoterapia infantil

Referências

Aguiar, L. (2005). Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. São Paulo: Livro Pleno.
Andrade, A.; Ruiz, J.; Freitas, S. (2017). Atendimento de crianças com queixas associadas: Difi-
culdade de aprendizagem e problemas de comportamento através do psicodrama moreniano.
Temas em Educação e Saúde, 3, 85-98. https://‌periodicos.fclar.unesp.br/‌tes/‌article/‌view/‌9867
Axline, V. (1986). Dibs: Em busca de si mesmo. Rio de Janeiro: Agir.
Bazanelli-Prebianchi, H. (2011). Atenção psicológica infantil: Compreensão de usuários e
estagiários do serviço-escola. Psicologia em Revista, 17(2), 322-339. http://‌pepsic.bvsalud.
org/‌scielo.php?‌script=sci_arttext&‌pid=S1677-11682011000200011
Benedito, V. I.; Baptista, T. T.; França, M. R. C.; Vero, J. (1988). Rematrizando a relação
pais-filhos. In: Gonçalves, C. S. (Org.). Psicodrama com crianças: Uma psicoterapia possível.
São Paulo: Ágora.
Bérgamo, L. N.; Bernardes, M. P. (2015). Relato de experiência: Avaliação psicológica de uma
criança vítima de abuso sexual fundamentada no psicodrama. Revista Brasileira de Psicodra-
ma, 23(2), 67-74. https://‌doi.org/‌10.15329/‌2318-0498.20150008
Bittencourt, I. G.; Böing, E. (2017). Contribuições do pensamento sistêmico, da ges-
talt-terapia e de práticas da psicologia para o trabalho em um CAPSi. Nova Perspectiva
Sistêmica, 26(57), 53-68. http://‌pepsic.bvsalud.org/‌scielo.php?‌script=sci_arttext&‌pid
=S0104-78412017000100005
Campos, A. P. de S.; Cury, V. E. (2009). Atenção psicológica clínica: Encontros tera-
pêuticos com crianças em uma creche. Paidéia (Ribeirão Preto), 19(42), 115-121.
https://‌doi.org/‌10.1590/‌S0103-863X2009000100014
Campos, B. G.; Toledo, T. B. de; Faria, N. J. de (2011). Clínica gestáltica infantil e integra-
lidade em uma unidade básica de saúde. Revista da Abordagem Gestáltica, 17(1), 23-29.
http://‌pepsic.bvsalud.org/‌scielo.php?‌script=sci_arttext&‌pid=S1809-68672011000100005
Costa, M. I. M.; Dias, C. M. S. B. (2005). A prática da psicoterapia infantil na visão de tera-
peutas nas seguintes abordagens: Psicodrama, Gestalt terapia e centrada na pessoa. Estudos de
Psicologia (Campinas), 22(1), 43-51. https://‌doi.org/‌10.1590/‌S0103-166X2005000100006
Gordon, H. M.; Cooper, L. D. (2016). A case study of parent-child interaction therapy:
Flexible client-centered adaptation of an EST. Clinical Case Studies, 15(2), 126-142.
https://‌doi.org/‌10.1177/‌1534650115603819
Klinger, E. F.; Reis, B. K. dos; Souza, A. P. R. de (2011). A inclusão dos pais na clínica
das psicoses infantis. Estilos da Clínica, 16(1), 96-115. http://‌pepsic.bvsalud.org/‌scielo.
php?‌script=sci_arttext&‌pid=S1415-71282011000100006
Mattar, C. M. (2010). Três perspectivas em psicoterapia infantil: Existencial, não direti-
va e Gestalt-terapia. Contextos Clínicos, 3(2), 76-87. http://‌pepsic.bvsalud.org/‌scielo.
php?‌script=sci_arttext&‌pid=S1983-34822010000200001

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


A família na psicoterapia infantil  617

Mendes, K. D. S.; Silveira, R. C. de C. P.; Galvão, C. M. (2008). Revisão integrativa: Método


de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto & Contex-
to – Enfermagem, 17(4), 758-764. https://‌doi.org/‌10.1590/‌S0104-07072008000400018
Oaklander, V. (1980). Descobrindo crianças: A abordagem gestáltica com crianças e adolescentes.
São Paulo: Summus.
Oliveira, L. R. F.; Gastaud, M. B.; Ramires V. R. R. (2018). Participação dos pais na psicote-
rapia da criança: Práticas dos psicoterapeutas. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(1), 36-49.
https://‌doi.org/‌10.1590/‌1982-3703000692017
Pajaro, M. V.; Andrade, C. C. (2018). Estudo de caso em gestalt-terapia: Leituras feno-
menológicas do desenho infantil. Revista da Abordagem Gestáltica, 24(2), 204-214.
https://‌doi.org/‌10.18065/‌RAG.2018v24n2.9
Post, P. B.; Ceballos, P. L.; Penn, S. L. (2012). Collaborating with parents to establish
behavioral goals in child-centered play therapy. The Family Journal, 20(1), 51-57.
https://‌doi.org/‌10.1177/‌1066480711425472
Rodrigues, P.; Nunes, A. L. (2010). Brincar: Um olhar gestáltico. Revista da Abordagem
Gestáltica, 16(2), 189-198. http://‌pepsic.bvsalud.org/‌scielo.php?‌script=sci_arttext&‌pid
=S1809-68672010000200009
Santos, T. Q. de A. (2015). Avaliação psicológica no atendimento infantil: Uma perspecti-
va gestáltica. IGT na Rede, 12(22), 8-27. http://‌pepsic.bvsalud.org/‌scielo.php?‌script=sci_
arttext&‌pid=S1807-25262015000100002
Wechsler, M. P. da F.; Santos, T. F. dos; Santos, M. A. dos; Silveira, M. N. (2014). Psico-
drama com crianças: Das intervenções clínicas às psicossociais. Revista Brasileira de Psi-
codrama, 22(2), 25-35. http://‌pepsic.bvsalud.org/‌scielo.php?‌script=sci_arttext&‌pid
=S0104-53932014000200004
Weisz, J. R.; Doss, A. J.; Hawley, K. M. (2005). Youth psychotherapy outcome research:
A review and critique of evidence base. Annual Review Psychology, 56, 337-363.

Recebido em 12 de fevereiro de 2019


Aceito para publicação em 14 de fevereiro de 2020

Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 599 – 617, set-dez/2020


MÓDULO 3
49

INSTABILIDADE PSICOMOTORA OU HIPERATIVIDADE?


RISCOS1 DOS DESLIZAMENTOS DOS DISCURSOS
SOBRE A PSICOPATOLOGIA INFANTIL
Anne Thevenot
Université Louis Pasteur – Strasbourg – France
Claire Metz
Université Louis Pasteur – Strasbourg – France

Resumo: Há alguns anos novos significantes, tais como a hiperatividade, os tocs, dentre outros,
aparecem no campo da psicopatologia infantil. Apresentada como uma nova patologia, a
hiperatividade parece realmente remeter à instabilidade psicomotora. Esse novo termo caracteriza
uma conduta centrada nos transtornos de comportamento e na redução deles, em detrimento de
uma abordagem psicodinâmica complexa do sujeito. Ora, ligar-se apenas nas expressões
comportamentais, sem levar em conta sua dimensão sintomática, leva a negligenciar a
complexidade dos fenômenos conscientes e inconscientes, que agem no sujeito tomado na sua
dimensão singular e familiar. Propomos, com base em uma pesquisa feita com uma população de
crianças rotuladas “hiperativas”, interrogar essa dimensão sintomática e assinalar em qual quadro
essa mudança nosográfica intervém, bem como os riscos desse novo significante veiculado nos
discursos sobre a psicopatologia infantil.
Palavras-chave: Psicopatologia infantil, Diagnóstico, Sintoma, Instabilidade psicomotora.

Há alguns anos, novas terminologias apareceram no campo da psicopatologia


infantil. Elas estão vinculadas ao uso da palavra “transtorno”, que demonstra
um importante incremento: “transtorno” do comportamento, “transtorno”
das condutas, “transtornos” obsessivo-compulsivos (TOCs), “transtornos”
oposicionais2 com provocação (TOPs). Apresentada como uma nova
patologia, a hiperatividade, que especificaria certos transtornos do
comportamento, parece realmente remeter à instabilidade psicomotora, tal
como foi descrita por diferentes autores (Winnicott, 1971; Berger, 2005). Em
1925 Henri Wallon já intitulava um de seus trabalhos de “A criança turbulenta”
(1925). Então, essa turbulência patológica da criança não é nova (Mannoni,
1965; Ajuriaguerra, 1970) e os sintomas já estão descritos desde o século XIX:
“mobilidade intelectual e física extrema”, “necessidade de uma vigilância
contínua”. A novidade reside na maneira de conceituar essa “turbulência” no
campo da psicopatologia, mas também no campo social. Na França, o plano
de prevenção da delinqüência e o relatório INSERM sobre os transtornos das
condutas na criança e no adolescente oferecem testemunhos recentes.
Assim, a substituição da hiperatividade pela instabilidade psicomotora não
resulta de uma simples mudança de termo, mas de outra concepção da
psicopatologia que está ligada à extensão das classificações nosográficas
internacionais (DSM-IV, CIM 10). Se, como lembra Serge Lesourd (2006a, p.
165), “o sujeito do inconsciente é efeito do discurso, a expressão dos fracassos

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


50 Anne Thevenot / Claire Metz

da construção subjetiva far-se-á nas formas aceitáveis pelo discurso


organizador do laço social ao qual ele está preso”, parece-nos importante
interrogarmo-nos sobre os riscos clínicos e sociais que essas mudanças
subentendem.

Transtorno ou sintoma?
Hoje, o transtorno designa “o estado do que cessa de estar em ordem”; seu uso
em certos discursos sociais e médicos nos interroga: de qual (quais) desordem
(desordens) nossos pacientes dão testemunho? Parece que, definido assim, o
transtorno é o que escapa ao controle, ao domínio; dito de outro modo, a
ordem é mais perturbada que o próprio paciente. Ele não é no fundo apenas um
bagunceiro? O risco de um controle social sob os cuidados médicos foi
amplamente percebido pelos oponentes, além da comunidade dos
profissionais referidos, até o relatório coletivo sobre o “transtorno das
condutas”. Com o DSM-IV, o uso da noção de transtorno tende a impor-se no
campo da psicopatologia: não se corre o rico de “psiquiatrizar” os que
atrapalham a ordem social?
Além dessa primeira interrogação sobre o uso social da noção de transtorno,
perguntamo-nos como se inscrevem as referidas manifestações na organização
psíquica do sujeito. Realmente, a noção de transtorno corresponde
atualmente, no relatório INSERM e no DSM-IV, a uma quantificação de
comportamentos observáveis, em detrimento de uma abordagem dinâmica
complexa do paciente. Ela leva em conta, em particular, os conceitos de
estrutura psíquica e de sintoma, expressão de um conflito inconsciente que fica
para ser decodificado. As modalidades de tratamento dos sujeitos, e que
decorrem dessas duas abordagens, são radicalmente diferentes.
Realmente, debates recentes, ao mesmo tempo científicos e políticos,
aconteceram na França. Eles colocam em evidência a importância dos
pressupostos adotados para tratar da questão dos “transtornos de
comportamento”. Duas correntes, em particular, se opõem, repletas de
conseqüências sobre o destino dos sujeitos em questão e sobre a sociedade de
maneira mais geral.

Um transtorno a reduzir?
A corrente exposta no relatório INSERM, relativa ao “transtorno das
condutas na criança e no adolescente”, amplamente debatida, considera que
os “transtornos de comportamento” correspondem a um disfuncionamento
específico que revela um conjunto de sinais pretensiosamente observáveis de
modo objetivo. Esses sinais são sintomas no sentido médico do termo: “Toda
manifestação de uma afecção ou de uma doença que contribui para o

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


Instabilidade psicomotora ou hiperatividade?
Riscos dos deslizamentos dos discursos sobre a psicopatologia infantil 51

diagnóstico, e mais particularmente todo fenômeno percebido como tal pelo


doente” (Dictionnaire Medical Larousse).
O transtorno, nesse caso não existe nem para elucidar nem para recolocar em
um quadro geral complexo e multidimensional; ele existe para reduzir,
eventualmente, a ajuda do medicamento. Nessa lógica, é importante poder
reconhecer os sinais precoces do aparecimento dos transtornos. Assim
preconiza o grupo de experts do relatório INSERM: marcar desde a idade de
36 meses as manifestações comportamentais incriminadas (“brigas”, “recusar
a obedecer”...) e inscrevê-las no carnê de saúde.
Uma leitura apoiada no modelo das neurociências considera esses transtornos
como um disfuncionamento e propõe encarregar-se de sua redução, por meio
de medicamentos e/ou de terapias cognitivas comportamentais (TCC): por
uma “conduta pragmática, trata-se de provocar uma mudança de registro dos
pensamentos e das representações mentais e aumentar as possibilidades de
autogestão do sujeito [...] com um controle das reações emocionais”
(Quotidien du médecin 28/5/2005). Nessa abordagem, as referências
psicopatológicas, tais como as noções de estrutura, de sintoma, de
modalidades defensivas, não são levadas em conta (Bergeret, 1996).

Um sintoma a escutar
Numerosos psicanalistas (Kulien, 1991; Hurstel, 1996; Lebrun, 1997, 2007;
Lesourd, 2006) relacionam as formas atuais de expressão da psicopatologia à
evolução da nossa sociedade, em particular a um lento e progressivo
questionamento de uma ordem social, demonstrada por meio da evolução de
mais de um século dos status jurídicos dos homens, das mulheres e das
crianças. Assim a sintomatologia poderia ser entendida como uma
manifestação de um mal-estar do sujeito na cultura. Entretanto, além do
impacto da cultura, toda abordagem psicanalítica interessa-se pela
singularidade de cada sujeito, o sintoma produzido constituindo a expressão
de um conflito inconsciente.
Segundo a abordagem psicanalítica, as “desordens” do comportamento não
são “transtornos” no sentido de uma doença caracterizada, mas podem ser
formações do inconsciente. Para Maud Mannoni (1967, p. 48), “o sintoma vem
no lugar de uma palavra que falta, criada com a atenção do interlocutor”.
Contrariamente à abordagem comportamental, o sintoma aqui é uma
modalidade de expressão do sujeito. Suprimir o sintoma de uma só vez faz com
que sua mensagem não seja escutada.
No mais, segundo Jacques Lacan (1973, p. 32), o sintoma contém sua parte de
gozo: “il est claire que ceux à qui nous affaire, les patients, ne se satisfont pas, comme on
dit, de ce qu'ils sont. Et pourtant, nous savons que tout ce qu'ils sont, tout ce qu'ils vivent,
leurs symptômes mêmes, relève de la satisfaction.” 3 Por essas razões, não se trata de

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


52 Anne Thevenot / Claire Metz

tomar o sintoma de frente, mas de permitir aos sujeitos em sofrimento ter


acesso à palavra: o sintoma então pode ceder...
Para certos sujeitos, o sintoma tem uma função de prótese enodando o
simbólico, o real e o imaginário. Ele é, então, um efeito da estrutura do sujeito,
que Lacan nomeia sinthome. Ele distingue assim o sinthoma que não cai, do
symptôme que cai de surcroît (Lacan, 1962, p. 70).
Por outro lado, parece útil lembrar que essas “desordens” comportamentais
fazem, freqüentemente, parte do desenvolvimento normal da criança e que a
vigilância se impõe diante dos riscos de um diagnóstico precoce.
Assim, é necessário situar essas manifestações na organização psicodinâmica
da personalidade senão, como Misès (2005) precisa, esse balizamento pelo
sintoma “transtorno do comportamento” leva a reagrupar em uma mesma
categoria sujeitos extremamente diferentes, do ponto de vista psicopatológico,
para os quais os tratamentos são diferenciados. Ele insiste na importância de se
referir à estrutura dos sujeitos e de diferenciar os quadros de inscrição das
manifestações sintomáticas: transtornos reacionais, transtornos neuróticos,
psicoses, patologias limites ou narcísicas. Prender apenas as expressões
comportamentais, sem levar em conta a estrutura psíquica, leva a negligenciar
a complexidade dos fenômenos conscientes e inconscientes que agem no
sujeito tomado na dimensão singular e familiar, e a abandonar a necessidade
de um tratamento multidimensional, crucial para a evolução do sujeito.
Desejamos concluir este primeiro ponto sublinhando que nos parece
importante não limitar nosso questionamento ao impacto das mudanças de
registros dos discursos sobre a psicopatologia. Trata-se, igualmente, de nos
interrogarmos sobre a evolução da expressão da psicopatologia.

Novos olhares ou novos comportamentos?


Discernimos, realmente, uma evolução na nossa prática de psicólogos no
Centro Médico Psicopedagógico (CMPP), lugar de consultas que acolhe os
pais e suas crianças pelas dificuldades, dependendo com mais freqüência do
registro da psicopatologia da vida quotidiana: há alguns anos, as dificuldades
de comportamento das crianças e dos adolescentes constituem um motivo
crescente de consulta. Recebemos cada vez mais pais inquietos, desamparados
diante do comportamento de suas crianças, com freqüência em idade cada vez
mais precoce. Os pais queixam-se da desobediência, da raiva, de violências
verbais, de agitação, de falta de concentração... “Ele é hiperativo”, é o que
dizem de vez em quando.
As crianças em questão são freqüentemente muito jovens, de 4-5 anos, ou
crianças em torno de 10 anos, que não entraram ainda nas mudanças da
adolescência. Nossa observação condiz com o que se observa no nível

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


Instabilidade psicomotora ou hiperatividade?
Riscos dos deslizamentos dos discursos sobre a psicopatologia infantil 53

internacional, onde as consultas com as crianças muito jovens revelam


sintomatologias mais freqüentes e mais precoces que, antes, agitação,
transtornos de atenção, agressividade, segundo os resultados da investigação
Eap elaborada em 2002 com 93 psicólogos da pequena infância (Cognet,
2004).
Além dos comportamentos referidos, o que nos interroga na maior parte dessas
situações refere-se à confusão, à angústia, à impotência de um e até mesmo dos
dois pais em relação às crianças mais jovens. Vários deles fazem de si próprios
o laço com o espectro da adolescência: “Se agora já é assim, o que faremos
quando ele for maior?” Assim as dificuldades atuais e o temor de tormentos
por vir os motivam a consultar.
Vamos agora, com base em uma pesquisa feita com uma população de crianças
diagnosticadas “hiperativas” por neuropsiquiatras, interrogar essa dimensão
sintomática e marcar os riscos desse novo significante, veiculado nos discursos
sobre a psicopatologia infantil.
Apresentação da pesquisa4
Por meio de associações de pais, encontramos 20 famílias nas quais havia pelo
menos uma criança com o diagnóstico de hiperatividade (com referência ao
DSM-IV). No momento da pesquisa, as crianças – 4 meninas e 16 meninos
(distribuição que corresponde às cifras nacionais) – tinham entre 8 e 12 anos.
Os dados dessa pesquisa estão sendo analisados; apresentaremos aqui apenas
resultados parciais.

idade atual
8
idade do diagnóstico
7
6
5
4
3
2
1
0
4 5 6 7 8 9 10 11 12 13

Quadro 1. Distribuição das crianças em função da idade

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


54 Anne Thevenot / Claire Metz

Para cada família, encontramos os pais (às vezes um só) com os quais fizemos
uma entrevista semidiretiva. Num segundo tempo, tivemos uma entrevista e
realizamos testes projetivos com a criança: o Rorschach e o TAT (as fábulas de
Düss para as crianças com menos de 10 anos).
Todas as crianças têm um percurso médico-psicológico relativamente
complexo: freqüentemente, várias tentativas de psicoterapia, reeducações
ortópticas e/ou psicomotoras, de ortofonia, durante vários anos, e desde a
idade de 6 anos todas estiveram ou estão ainda sob tratamento medicamentoso
(ritalina).

120

100
porcentagem

80

60

40

20

to
a
e

a
ica

ni
ad

pi

en
pt

fo

ra
id

m

to

te
ric

ica
ico
or

or
ot

ed
ps
m

m
ico
ps

Quadro 2. Distribuição dos tipos de tratamento

Mesmo se após o ocorrido os pais sublinham a precocidade das dificuldades


encontradas com sua criança: Ele não dormia, ele mexia muito, era agitado... .
Entretanto, é quase sempre a escola que pediu as consultas. Na maior parte dos
casos é essa indicação da instituição escolar que parece ser o ponto de origem
da doença: Na maioria das vezes, isso nos é dito do grupo de crianças do maternal /
Quando ele entrou no CP a professora disse que era preciso consultar... . Em seguida, as
dificuldades de adaptação e de integração da criança no sistema escolar vão
cristalizar o conjunto de prognósticos feitos sobre ela. De fato, em geral, os
anos escolares servem, freqüentemente, de referências temporais para os pais;
logo, nessas entrevistas a relação com a escola é onipresente. É ainda mais
impressionante para essa pesquisa encontrar crianças e pais fora do quadro
escolar e durante as férias. Então, no discurso dos pais, a criança aparece em
primeiro lugar como aluno antes de ser criança. Podemos talvez aqui já marcar

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


Instabilidade psicomotora ou hiperatividade?
Riscos dos deslizamentos dos discursos sobre a psicopatologia infantil 55

o efeito de um discurso social, o do campo escolar, que é particularmente


normativo, sobre a maneira pela qual pais podem apreender sua criança.
Vamos agora, com base nas análises das entrevistas realizadas com os pais,
centrarmo-nos nos efeitos desse diagnóstico de hiperatividade na
representação da criança que, ao nosso ver, vai influenciar na relação com ela.
Para essa exposição, retivemos três pontos característicos do conjunto das
entrevistas: o discurso dos pais abriga sob sua autoridade uma divisão da
criança, seu desaparecimento como sujeito e um apaziguamento da
culpabilidade parental.

Uma divisão da criança


Considerando os pressupostos neurocientíficos do DSM-IV, o diagnóstico de
hiperatividade implica, quase automaticamente, um tratamento
medicamentoso. Foi assim para o conjunto das crianças encontradas – uma
prescrição de ritalina seguiu de perto o diagnóstico médico. A maior parte das
crianças (17 em cada 20) faz uso do medicamento desde a idade de 6 anos. Esse
tipo de medicamento tem como particularidade modificar consideravelmente
o comportamento da criança, pelo menos durante sua ação. Os pais descrevem
realmente uma criança que apresenta duas faces: por um lado uma criança
ideal, por outro lado uma criança irritada: Era dia e noite / A professora não a
reconhecia mais e nós também não, diz, por exemplo, a mãe de Célia. Essa criança
de duas faces aparece em dois níveis no discurso parental, segundo o que está
em questão antes ou durante o tratamento, mas também no decorrer de cada
dia, de acordo com o tempo de ação do medicamento: Quando ela não está sob o
efeito da ritalina, ela é viva demais e quando ela está sob o efeito da ritalina ela se torna
particularmente calma. Essa fala da mãe de Louis deixa perceber o sentimento de
estranheza que a invade em relação a seu filho vivo demais / particularmente
calmo. Outros pais, como os de Célia, procuram fora soluções para se
encarregarem de sua filha: Como a ritalina não fazia mais efeito, quando ela voltava
da escola, e como na hora dos deveres era um conflito permanente, encontramos uma
solução, nós a colocamos na ajuda aos deveres com outras crianças... .
Podemos também nos interrogar sobre o efeito desse discurso parental sobre a
construção subjetiva da criança. Os pais instituem, assim, uma representação
dividida da criança considerada como um bom ou mau objeto, uma vez que ela
está ou não sob o efeito do tratamento: Ela o toma às 7 horas da manhã /, e faz efeito
às 8 horas, / às 15 horas o efeito tinha acabado / ela pula por todo lado, / ela corre por
todo lado, / ela grita por todo lado (mãe de Louis). Aqui a criança boa não é
somente a que é calma e não é repreendida na escola, mas ainda uma criança
dócil que não se opõe mais às exigências dos adultos. Este último aspecto nos
conduz a uma segunda característica dos discursos parentais que é certa
objetivação de sua criança.

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


56 Anne Thevenot / Claire Metz

Um desaparecimento do sujeito
Alguns trabalhos assinalam o efeito objetivante5 da nosografia do DSM-IV, que
reduz certas produções infantis a transtornos comportamentais. Se não
ignoramos que solicitar aos pais as crianças, deliberadamente, no quadro de
uma pesquisa pode ter como efeito colocar a criança como “objeto de estudo”,
fomos questionados, contudo, pelo pouco lugar que esses pais atribuíam à
palavra e ao ressentimento de suas crianças. Realmente, em nossas entrevistas,
os pais descrevem essencialmente o comportamento da criança, sem jamais
interrogá-los. Os pais não se questionam e não parecem questionar a criança;
ela também é atriz sem ser autora de seus atos: Quando seu filho a chama de
puta, enfim de coisas bastante difíceis de ouvir / bem ele / é que ele não sabe
bem que não pode. Se essas injúrias fazem a mãe de Thibaut sofrer, ela não
pergunta pelo que pode estar em jogo entre ela mesma e seu filho. Ou, ainda,
quando a mãe de Louis encontra a professora ou a treinadora esportiva para
explicar o comportamento de seu filho – Apesar de ter explicado bem a ele, e
lhe dizer para explicar isso aos outros (camaradas, colegas), ele não conduziu
bem as coisas –, ela não parece considerar interpelar Louis para falar com ele
sobre o que se passa com seus colegas ou com seus professores. Ela aumenta o
número das condutas para falar de seu filho aos que vão ter que gerí-lo, e as
dificuldades são atribuídas a eles, pois não compreenderam ou não quiseram
compreender “sua doença”. Assim o discurso sobre a criança substitui a
palavra da criança. Em várias entrevistas a criança é apresentada como
“incapaz” de se concentrar, “incapaz” de não se agitar, os pais parecem estar
diante de uma criança regida pela sua hiperatividade, uma criança que não
pode responder pelos seus atos. O comportamento instável, que poderia ser
considerado uma conseqüência sintomática de um conflito psíquico
inconsciente, está aqui invertido por causa das dificuldades da criança. É a
hiperatividade que se torna a única responsável pelos seus problemas: É essa
doença, nos dizem vários pais.
Podemos nos perguntar se esse apagamento da criança como sujeito de seu
discurso é um efeito do diagnóstico de hiperatividade, ou se ele preexistia antes
e o diagnóstico contribuiria apenas para reforçar esse apagamento. Realmente
certas situações nos interrogaram quanto à particularidade do enodamento do
laço mãe/criança desde as primeiras semanas da vida da criança. Tivemos uma
relação muito fusional,6 dizem várias mães, não sem certa complacência.
Podemos nos perguntar se a redução da criança a seu comportamento não
contribui para deixar a criança no lugar de objeto da mãe:

Ela vinha, a partir de dezembro, durante a noite em


minha cama e tornou-se sonâmbula, / mas, como eu a
encontrei quatro ou cinco vezes dormindo no corredor
sobre o ladrilho / na minha porta / e como logo ela pegou
uma pneumonia, eu então acabei aceitando, pois disse a

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


Instabilidade psicomotora ou hiperatividade?
Riscos dos deslizamentos dos discursos sobre a psicopatologia infantil 57

mim mesma que um dia graves aborrecimentos poderiam


vir a ocorrer a ela; então eu escolhi o menor e a coloquei na
minha cama quando ela vinha / e eu não a peguei por
obrigação.

O fim dessa citação da mãe de Émilie revela que ela não ignora a reprovação
que pesa sobre o pai, que aceita a criança em sua cama; é por isso que ela se
defende e se justifica. Esse primeiro elemento nos mostra a questão da
culpabilidade dos pais diante das dificuldades de sua criança.

Uma abstenção da culpa dos pais


Paradoxalmente, a teorização da hiperatividade proposta pelo DSM-IV
objetivando a criança e seus transtornos contribui para desculpabilizar os pais:
Ela me tranqüilizou completamente me dizendo que, provavelmente, Louis tinha um
problema de hipercinesia... / O diagnóstico do doutor X chegou dizendo que era uma
criança que tinha um problema de déficit de atenção com hiperatividade. Então, a
hiperatividade é uma doença e a criança, um doente. Se os pais não parecem
particularmente assustados com as conseqüências desse diagnóstico, é
provavelmente porque ele introduz uma causa aparentemente orgânica nas
dificuldades da criança. É interessante marcar que nenhum dos pais ressalta
que o diagnóstico e o tratamento que acompanham a criança resolveram suas
dificuldades. Temporariamente, a ritalina torna a criança mais sensata, mas as
dificuldades estão sempre presentes. A satisfação trazida pelo diagnóstico está
essencialmente ligada ao fato de dar a eles uma resposta objetiva. Não é
surpreendente que os pais digam ter freqüentemente convivido mal com outro
tipo de discurso que tendia implicá-los nos transtornos de sua criança:

O psiquiatra me disse, não se pode dizer que seu filho tem


alguma coisa, / se eu tivesse problemas com ele eu teria
que me cuidar. / Isso foi muito agradável [mãe de
Thibaut]; e efetivamente / tudo é culpa da mãe / então eu
tive um estalo imediatamente / é / meu filho era uma
criança médico / uma criança curadora, ela designava
isso. [Mãe de Louis]

Eles se sentiram implicados, e até mesmo acusados, não compreendendo o


procedimento terapêutico quando o psicoterapeuta desejava trabalhar apenas
com os pais: Ele não falava jamais com meu filho, era unicamente comigo. Se parece
claro que a perspectiva do DSM-IV convém melhor a certos pais que não se
sentem então implicados, seria, entretanto, útil perguntar sobre o modo pelo

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


58 Anne Thevenot / Claire Metz

qual é possível implicar os pais no trabalho terapêutico. A maneira pela qual


nós vamos ouvir sua queixa, sem pegar o sintoma de frente, é fundamental.

Conclusão
O discurso sobre a hiperatividade aparece como efeito das mutações sociais.
As modalidades de expressão da construção subjetiva (aqui desordens
comportamentais) se fazem nas formas aceitas pelo discurso organizador do
laço social. Os primeiros resultados dessa pesquisa nos mostram como pais e
crianças se encontram presos pelos significantes que lhes são propostos e como
esses vão estar a trabalho nas suas relações.
No mais, mesmo se não tivéssemos desenvolvido neste escrito a análise das
entrevistas e dos testes efetuados com as crianças, isso indicaria que os
sintomas desenvolvidos por cada um se inscreveriam em uma problemática e
em uma estrutura psíquica particulares. O exemplo de Emilie mostra que seus
transtornos de atenção têm um sentido de escapar a uma dependência múltipla
de processos primários, compostos de idéias profundamente angustiantes que
se impõem em seu espírito. Os transtornos de atenção aqui tomam lugar em
um quadro mais geral de transtornos da personalidade que um medicamento
não saberia suprimir. Enquanto a agitação de Thibaut se inscreve em um
registro neurótico, ela vem colocar em cena angústias ligadas a um
questionamento sobre a morte.
A abordagem comportamental e neurocientífica, que serve de base a essas
novas classificações, se faz em detrimento da consideração da singularidade de
todo sujeito humano. A noção de hiperatividade, que consiste em encarregar-
se da dificuldade apresentada pela criança ou por seus pais como expressão de
um desregramento funcional ou orgânico, quando se trata da expressão de um
conflito psíquico, corre o risco de se deslocar ou de reforçar o sintoma ao invés
de aliviar o sofrimento psíquico. Preferimos, então, a noção de instabilidade
psicomotora, que conserva a dimensão sintomática das desordens
comportamentais. A dimensão familiar do sintoma sublinha a complexidade
dos riscos contidos nesse sintoma e o perigo de querer erradicá-lo de uma só
vez, tendo em vista que esse perigo é um tanto maior na clínica da criança,
onde a dimensão inconsciente do sintoma é negligenciada não só na criança,
mas também nos pais.

Notas
1. NT: Em francês, enjeux, que pode ser entendido também como “o que está
em jogo”.
2. NT: Em francês, oppositionnels, traduzido por oposicionais, termo não
dicionarizado em português.

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


Instabilidade psicomotora ou hiperatividade?
Riscos dos deslizamentos dos discursos sobre a psicopatologia infantil 59

3. Citação de Lacan, conforme informado no texto O seminário: Livro 11: Os


quatro conceitos fundamentais da psicanálise, já traduzido para o português.
4. Estudo efetuado no quadro da pesquisa coordenada pelo Pr. Demont (ULP),
que sustenta sobre as “Dificuldades na aprendizagem da leitura e dos
transtornos da atenção com hiperatividade. As crianças hiperativas são todas
más leitoras?”
5. NT: Em francês, objectivante, traduzido por objetivante, termo não
dicionarizado em português.
6. NT: em francês, fusionnelle, termo não dicionarizado em francês nem em
português, traduzido livremente por “fusional”

Referências
Ajuriaguerra, J. de (1970). Manuel de psychiatrie de l'enfant. Paris: Masson.
Bergeret, J., (1996). La personnalité normale et pathologique: Les structures mentales,
le caractère, les symptômes. (3ème edition). Paris: Dunod.
Berger, M. (2005). L'enfant instabl: Approche clinique et thérapeutique (2ème edition).
Paris: Dunod.
Brun, D. (1998). Du discours sur l'enfant au discours de l'enfant. In L'entretien
en Clinique. Paris: In press éditions, 281-287.
Cognet, G. (2004). Les nouvelles symptomatologies de l'enfant. Psycho Média,
1, 19-24.
Freud, S. (1909/1990). Cinq psychanalyses. Paris: PUF.
Hurstel, F. (1996). La déchirure paternelle. Paris: PUF.
Hurstel, F. (2001). Quelle autorité pour les parents aujourd'hui?. Comprendre, 2,
207-222.
Julien, P. (1991). Le manteau de Noé: Essai sur la paternité. Paris: Desclée de
Brouwer.
Lacan, J. (1962). Le séminaire. Livre X: L'angoisse. Paris: Seuil.
Lacan, J. (1973). Le séminaire. Livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de
la psychanalyse. Paris: Seuil.
Lacan, J. (1986). Deux notes sur l'enfant. Ornicar? Revue du Champ Freudien, 37,
13-14.
Lebrun, J. P. (1997). Un monde sans limite: Essai pour une clinique psychanalytique
du social, Ramonville-Saint-Agne, Erès.

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


60 Anne Thevenot / Claire Metz

Lebrun, J. P. (2007). La perversion ordinaire: Vivre ensemble sans autrui. Paris:


Denoël.
Lesourd S. (2006). Comment taire le sujet? Des discours aux parlottes libérales. Paris:
Erès.
Mannoni, M. (1965). Premier rendez-vous avec le psychanalyste. Paris: Denoël.
Mannoni, M. (1967). L'enfant, sa maladie et les autres. Paris: Seuil.
Misès, R. (2005). A propos de l'expertise INSERM relative au "trouble des
conduites chez l'enfant et chez l'adolescent. La Lettre de Psychiatrie Française,
149, 13-15.
Théry, I. (1993). Le démariage. Paris: Odile Jacob.
Wallon H. (1925). L'enfant turbulent. Paris: PUF.
Wallon H. (1949). Les origines du caractère de l'enfant Paris: PUF.
Winnicott D.W. (1971). L'enfant et sa famille. Paris: Petite Bibliothèque Payot.

PSYCHOMOTOR INSTABILITY OR HYPERACTIVITY? RISKS OF THE MISTAKES


IN THE DISCOURSES ABOUT CHILD PSYCHOPATHOLOGY
Abstract: Some years ago new significants, as hyperactivity, and OCD, appeared in child
psychopathology field. Presented as a new pathology, hyperactivity seems to really point to a
psychomotor instability. This new term defines a behavior disorder and its decrease, in spite of a
complex psychodynamic vision of the subject. Well, to pay attention only to behavior expressions,
without considering its symptomatic dimension, leads to the neglect of the complexity of the
conscious and unconscious phenomenons, that acts in the subject in his singular and familiar
dimension. We propose, based in a research with a child population labelled as hyperactive, to
question this symptomatic dimension and mark in which picture this nosography chance interfere
and the risks of this new significant in the child psychopathology discourse.
Keywords: Child psychopathology, Diagnosis, Symptom, Psychomotor instability.

¿INESTABILIDAD PSICOMOTORA O HIPERACTIVIDAD?


RIESGOS DE LOS ERRORES DE LOS DISCURSOS SOBRE
LA PSICOPATOLOGÍA INFANTIL
Resumen: Hay algunos nuevos significantes, tales como hiperactividad, los tocs.., aparecen en el
campo de la psicopatología infantil>Presentada como una nueva patología ,la hiperactividad
parece realmente remitir a la inestabilidad psicomotora. Este nuevo término caracteriza una
conducta centrada en los trastornos del comportamiento y en la reducción de ellos, en detrimento
de un abordaje psico-dinámico complejo del sujeto. Por un lado, apegarse apenas en las
expresiones de comportamiento, sin tomar en cuenta su dimensión sintomática, lleva a descuidar
la complejidad de los fenómenos conscientes e inconscientes, que actúan en el sujeto tomado por la
dimensión singular y familiar. Proponemos , a partir de una investigación hecha con una población
de niños rotulados “hiperactivos”, interrogar esa dimensión sintomática y apuntar en cual cuadro
ese cambio nosográfico interviene, y los riesgos de ese nuevo significante dirigido en los discursos

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


Instabilidade psicomotora ou hiperatividade?
Riscos dos deslizamentos dos discursos sobre a psicopatologia infantil 61

sobre la psicopatología infantil.


Palabras Ilave: Psicopatología infantil, Diagnóstico, Síntoma, Inestabilidad psicomotora.

INSTABILITÉ PSYCHOMOTRICE OU HYPERACTIVITÉ?


ENJEUX DES GLISSEMENTS DES DISCOURS SUR
LA PSYCHOPATHOLOGIE INFANTILE
Résumé: Depuis quelques années de nouveaux signifiants, tels que l'hyperactivité, les tocs…,
apparaissent dans le champ de la psychopathologie infantile. Présentée comme une nouvelle
pathologie, l'hyperactivité nous semble en fait renvoyer à l'instabilité psychomotrice. Ce nouveau
terme caractérise une démarche centrée sur les troubles du comportement et leur réduction, au
détriment d'une approche psychodynamique complexe du sujet. Or ne s'attacher qu'aux
expressions comportementales sans prendre en compte leur dimension symptomatique conduit à
négliger la complexité des phénomènes conscients et inconscients qui se jouent pour le sujet pris
dans sa dimension singulière et familiale. Nous proposons, à partir d'une recherche menée sur une
population d'enfants étiquetés "hyperactifs", d'interroger cette dimension symptomatique et de
repérer dans quel cadre intervient ce changement nosographique et les enjeux de ce nouveau
signifiant véhiculé dans les discours sur la psychopathologie infantile.
Mots-clés: Psychopathologie infantile, Diagnostic, Symptôme, Instabilité psychomotrice.

Recebido em: 22/5/2007 - Aprovado em: 30/5/2007.

Sobre as autoras
Anne Thevenot – Professor Adjunto em psicologia clínica, HDR, Unidade de Pesquisa em
Psicologia : Subjetividade, Conhecimentos e Laço Social (EA 3071), Universidade Louis Pasteur.
Strasbourg - France. Endereço eletrônico: anne.thevenot@psycho-ulp.u-strasbg.br
Claire Metz – Professor Adjunto da IUFM, psicóloga, psicanalista. Unidade de Pesquisa em
Psicologia : Subjetividade, Conhecimentos e Laço Social (EA 3071), Universidade Louis Pasteur.
Strasbourg - France. Endereço eletrônico: anne.thevenot@psycho-ulp.u-strasbg.br

EPISTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte] • v. IV • n. 02 • ago/dez 2007 • p. 49-61


62
MÓDULO 4
A LUDOTERAPIA NO PROCESSO DO LUTO INFANTIL:
UM ESTUDO DE CASO

Marilise Vanusa Rocha*


Jorgiana Baú Mena Barreto**

Resumo

A morte de um ente querido leva a processos de luto dolorosos e, no caso de crianças que perdem uma figura parental,
esse sofrimento pode se agravar pelo fato de serem ainda dependentes física e emocionalmente de seus pais. Neste
artigo, procurou-se compreender como a criança reage à situação de luto e como esta pode se refletir em seu processo
de relacionamento. Para tanto, foi utilizado um caso atendido em psicoterapia, em que a abordagem ludoterápica possi-
bilita ao indivíduo expressar com maior facilidade seus conflitos e dificuldades, o que ocorre de forma simbólica.
Palavras-chave: Luto. Criança. Ludoterapia.

1 INTRODUÇÃO

A Ludoterapia é a psicoterapia destinada a crianças e tem como objetivo proporcionar ao indivíduo a capaci-
dade de resolução de seus problemas de forma saudável, permitindo que a criança seja ela mesma, sem que se sinta
pressionada a mudar ou agir diferente. Há um reconhecimento e esclarecimento das atitudes expressas a partir da
reflexão sobre o que é apresentado pela criança.
Klein (1981, p. 31) afirma que:

As crianças, frequentemente, expressam, em seus brinquedos, a mesma coisa que acabaram de nos
contar em um sonho; ou fazem associações a um sonho no brinquedo que se lhe segue, pois brincar
é o meio de expressão mais importante da criança. Ao utilizarmos essa técnica lúdica, logo descobri-
mos que a criança faz tantas associações aos elementos isolados de seu brinquedo quanto o adulto
aos elementos isolados de seus sonhos.

A brincadeira é universal e é própria da saúde, o brincar promove o crescimento e, assim, a saúde, conduzindo
aos relacionamentos grupais e sendo uma forma de comunicação na psicoterapia (WINNICOTT, 1975).
Conforme Ribeiro (2002, p. 56), “[...] através das atividades lúdicas a criança assimila valores, adquire com-
portamentos, desenvolve diversas áreas de conhecimento, exercita-se fisicamente e aprimora habilidades motoras.”
Machado e Paschoal (2008, p. 57) afirmam que:

Podemos dizer que o brincar é um meio pelo qual a criança se relaciona com o mundo adulto, pro-
curando descobrir e ordenar as coisas ao seu redor. Ao vivenciar as brincadeiras, a criança desenvol-
ve afetividade, interage com o mundo em que vive, mediante a fantasia e o encanto.

Segundo Axline (1984, p. 22), a “[...] ludoterapia é baseada no fato de que o jogo é o meio natural de auto-
-expressão da criança. É uma oportunidade dada à criança de se libertar de seus sentimentos e problemas através do
brinquedo.”
Almeida (2003, p. 37-38) afirma: “O brinquedo faz parte da vida da criança, simboliza a relação pensamento-a-
ção e torna possível o uso da fala, do pensamento e da imaginação. O mundo do brinquedo é um mundo composto,
que representa o apego, a imitação, a representação e faz parte da vontade de crescer e desenvolver-se.”

*
Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade do Oeste de Santa Catarina; marilise.rocha@yahoo.com.br
**
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina; Professora do Curso de Psicologia da Universidade do Oeste de Santa Catarina;
jorgiana.bau@unoesc.edu.br
7
Pesquisa em Psicologia | Anais Eletrônicos
Marilise Vanusa Rocha, Jorgiana Baú Mena Barreto

É importante que a criança se sinta segura e adaptada ao ambiente do consultório e ao próprio terapeuta. O
processo terapêutico pode não ter efeito positivo sem que antes ocorra a formação de vínculo. Para Fiorini (1985), a
formação do vínculo na relação terapêutica deve ser entendida sob duas vertentes: a adequação do vínculo às necessi-
dades particulares de cada paciente e a utilização das competências e atitudes reais do terapeuta a serviço do processo.
Segundo Coppolillo (1990, p. 212), há cinco importantes conquistas na primeira fase da psicoterapia:

1. A criança atinge um grau de bem-estar que a permite ser produtiva nas sessões;
2. A criança se comunica normalmente;
3. A criança e o terapeuta atingem uma aliança de trabalho ou aliança terapêutica;
4. A criança se torna consciente de que algumas das suas atividades mentais são geradas interna-
mente, em vez de tiradas do mundo externo;
5. A criança e o terapeuta começam a dividir modos de representar seus estados internos com pa-
lavras, imagens e símbolos.

Dessa forma, as atitudes de cada um, terapeuta e paciente, surgem por meio do vínculo terapêutico. As trans-
formações que ocorrem estão ligadas à interação profissional, que detém consigo ampla parcela da responsabilidade
sobre o bom andamento de uma psicoterapia, assim, a possibilidade de sentirem-se em sintonia promove o esta-
belecimento do vínculo terapêutico, que se estabelece em um dos subsídios essenciais para aumentar o sucesso da
terapia (OTERO, 2001).
Quando uma criança é encaminhada para atendimento psicológico, durante as primeiras sessões é esperado
que demonstre comportamento oprimido e desconfiado, pois imagina que o terapeuta atue da mesma forma que os
demais adultos. De acordo com Axline (1984, p. 35), “[...] nota-se que a criança mora num mundo todo seu e poucos
são os adultos que a compreendem realmente.”
Grunspun (1997, p. 2) coloca que “O processo terapêutico é a intenção dinâmica de todos os aspectos feno-
menológicos do procedimento da terapia, englobando todas as expressões abertas ou encobertas dos sentimentos,
pensamentos e ações ocorridas durante um tempo.”
A ludoterapia estabelece um ambiente em que a criança seja encorajada “[...] a ser criativa mantendo seu pró-
prio jogo mesmo com um mínimo de verbalização ou interpretação do terapeuta. Brincar facilita o desenvolvimento.”
(GRUNSPUN, 1997, p. 21).
Garbarino (1992 apud BOMTEMPO, 1997, p. 69) destaca:

É através de seus brinquedos e brincadeiras que a criança tem oportunidade de desenvolver um


canal de comunicação, uma abertura para o diálogo com o mundo dos adultos, onde ela restabele-
ce seu controle interior, sua auto-estima e desenvolve relações de confiança consigo mesma e com
os outros.

Pedro el al. (2007, p. 112) consideram que “O brincar deve auxiliar a criança a superar as adversidades. Além
disso, pode ser um recurso capaz de fortalecer relações e estreitar o contato humano entre o profissional de saúde e
o usuário.” Françani et al. (1998, p. 28) reiteram que:

A perspectiva da utilização do brinquedo é de servir como meio de comunicação entre os profissio-


nais e a criança, e detectar a singularidade de cada uma. Para a criança promove o desenvolvimento
físico, psicológico, moral e social; libera medos, frustações, raiva e ansiedade. Ajuda a criança ainda a
revelar seus pensamentos e sentimentos promovendo satisfação, espontaneidade e diversão.

A criança chega ao atendimento trazendo as representações de seu cotidiano para se comunicar, diante
disso, “[...] a ludoterapia criou condições para aproveitar os momentos importantes deste jogo cotidiano infantil. A
suposição é de que a criança se empenha em jogar para fora seus problemas se lhe for dada esta oportunidade.”
(GRUNSPUN, 1997, p. 17).
Torna-se necessário um espaço adequado e aconchegante, que possa proporcionar ao paciente conforto e
segurança quanto à manifestação de seus conteúdos.
De acordo com Axline (1984, p. 28):
8
Pesquisa em Psicologia | Anais Eletrônicos
A ludoterapia...

A sala de ludoterapia é um bom lugar de crescimento. Na segurança dessa sala, onde a “criança” é a
pessoa mais importante, onde ela está no comando da situação e de si mesma, onde ninguém lhe
diz o que deve fazer, ninguém critica o que faz, ninguém importuna, faz sugestões, estimula-a ou
intromete-se em seu mundo particular, subitamente ela sente que pode abrir suas asas, pode olhar
diretamente para dentro de si mesma, pois é aceita completamente.

É importante destacar que a Ludoterapia se faz de grande valia em casos de crianças que perderam algum
familiar, pois a criança enlutada sofre implicações psíquicas com o luto familiar, tornando-se mais marcante quando
é de um membro da família nuclear.
De acordo com Kovács (2007), a psicoterapia com crianças enlutadas apresenta-se como forma de cuidado, já
que a comunicação das crianças não se restringe à forma oral, a comunicação é fundamental e requer uma maneira
especial de escutar a criança e acompanhá-la em suas brincadeiras, desse modo, o contato deve ser livre de censura
ou julgamentos prévios, proporcionando um espaço para expressão de sentimentos, uma vez que a criança se sente
acolhida e compreendida e percebe que seus sentimentos estão sendo respeitados.

2 ESTUDO DE CASO

O caso aqui apresentado se refere a uma criança, aluno de uma escola particular do Município de Joaçaba,
SC. A tia dessa criança buscou atendimento na Clínica de Psicologia da Universidade do Oeste de Santa Catarina de
Joaçaba. Essa Clínica tem caráter eminentemente social, com o compromisso de atender à população carente da
região, que necessite de auxílio psicológico, o que não significa que não possa atender a outras pessoas que necessi-
tem. A Clínica tem como objetivos servir de local de estágio e aprendizagem para os alunos, para aplicação de conhe-
cimentos; servir à comunidade externa, prestando serviços psicológicos a crianças, adolescentes, adultos e idosos,
por meio de aplicação de técnicas terapêuticas e preventivas, tanto individual quanto grupal; desenvolver trabalho
interdisciplinar mediante intercâmbio com outros profissionais e instituições e promover a saúde mental e a melhora
na qualidade de vida da população.
A tia de V. F. (9 anos de idade) buscou atendimento relatando que o paciente perdeu a mãe quando tinha sete
meses de vida, vítima de leucemia, a partir de então, morou com tias e avós maternos até os quatro anos, quando os
avós faleceram, então foi morar com o pai, pois as tias precisavam trabalhar. O pai de V. F. trabalha em uma empresa
em que os horários são alternados, sendo períodos diurnos e noturnos, sábados e domingos, dessa forma, ele não
dispõe do tempo necessário para cuidar do filho. Para amenizar a situação, pai e filho foram morar com uma tia, irmã
paterna, a qual é separada e tem uma filha de nove anos de idade. O paciente começou a apresentar medo de dormir
sozinho com a luz apagada, acorda chorando durante a noite e agride a prima. Diante das queixas relatadas pela tia,
cria-se a hipótese que o paciente apresenta tais comportamentos por não saber lidar com a situação da morte da mãe
e do rompimento de vínculo com a tia que o criou até os quatro anos. Assim, pode-se compreender que essas manei-
ras de se comportar são a forma encontrada por ele para expressar seus sentimentos, principalmente, na casa da tia.
Por meio do acolhimento inicial, observou-se que existia outra questão a ser trabalhada, além do sonambu-
lismo e da agressividade. Ao iniciar esse atendimento, com uma estagiária de Psicologia da Clínica, primeiramente
foi lido e explicado à tia do paciente sobre o Contrato Terapêutico, o qual apresenta cláusulas a serem seguidas em
relação a faltas, atrasos, dia de atendimento e duração da sessão; em específico, destaca-se que, por se tratar de uma
clínica-escola outros acadêmicos e professores do Curso de Psicologia poderão assistir ao processo psicoterapêutico
que acontecerá na sala de espelho, sempre respeitando o Código de Ética da Psicologia, mas sem, necessariamente,
a comunicação prévia.
Iniciando o tratamento psicoterápico, as queixas sobre V. F. se referiam, principalmente, à agressividade com
a prima e ao medo de dormir sozinho. O comportamento do paciente era fechado, não conversava muito, porém,
no decorrer das sessões começou a se soltar e a conversar; reclamava muito da prima, que pega no seu pé, irrita-o o
tempo todo e fala que aquela casa é dela e de sua mãe. Em determinada sessão, V. F. relatou que havia perdido a mãe
quando ainda era bebê e que sente saudades dela, contou que morou um tempo na casa da tias maternas e depois

9
Pesquisa em Psicologia | Anais Eletrônicos
Marilise Vanusa Rocha, Jorgiana Baú Mena Barreto

foi morar com o pai, agora mora na casa da tia, irmã de seu pai, relatou que não fica muito tempo com o pai e às vezes
fica triste, porque já perdeu pessoas demais em sua vida e por não lembrar de sua mãe.
No que se refere à sua história de vida, analisou-se que V. F. vem de uma família desestruturada, pois ocorreu
uma quebra de vínculos duas vezes, não tem a figura da mãe, o relacionamento com o pai é pobre e ocorrem brigas na
casa da tia. Em horários vagos, o paciente se prende ao computador ou videogame, e acredita que a melhor solução
seria morar em outra casa, para pararem as brigas. Percebe-se uma grande tristeza quando se abordam assuntos rela-
cionados à morte da mãe, ele demora para se abrir, mas de alguma forma, mesmo sucinta, colabora com as sessões.
O objetivo principal da terapia foi buscar maneiras de auxiliar o paciente nas questões relacionadas às brigas
com a prima, ao medo de dormir sozinho, e a superar o sofrimento escondido pela morte da mãe e dos avós. Por meio
de jogos, brincadeiras de quebra-cabeça, recorte e colagem, desenho livre, leituras de livrinhos terapêuticos, além de
cartinhas para a mãe e para os avós, o paciente pôde sentir-se acolhido, em um espaço único para ele realizar suas
brincadeiras, aproximar-se de sua mãe e dos avós, mesmo que por meio de cartas e expressar seu sentimento de an-
gústia e preocupação em saber se estavam bem. V. F. relata que depois que iniciou o atendimento fez um juramento
que nunca mais iria bater na prima, pois aprendeu o quanto é importante amarmos as pessoas. O paciente encontra-
-se em atendimento semanal, apresentando uma melhora significativa de comportamento.

3 LUTO INFANTIL

É sabido que a morte acontece com todas as pessoas, o que torna necessário que ela seja abordada com impor-
tância e como algo concreto, considerando-se a idade e o estágio de desenvolvimento em que a criança se encontra.
Segundo Torres (1999, p. 119):

O processo e os resultados das reações da criança ao luto dependerão de vários fatores, tais como a
idade, a etapa do desenvolvimento em que a criança se encontra, de sua estabilidade psicológica e
emocional e da própria significação da perda, isto é, da intensidade e diversidade dos laços afetivos.

Bromberg (2000) explica que o conceito de morte pode variar segundo duas abordagens: a forma como os
adultos encaram a morte e a relação que a criança tinha com a pessoa falecida. Pode-se entender, então, que a criança
precisa de uma atenção especial ao perder um dos pais, pois de acordo com Raimbault (1979), quando a criança per-
de um dos genitores, além de perder um objeto de amor, ela também perde uma base identificadora.
A morte repentina de um genitor gera, ainda, uma série de mudanças que transpõem o desaparecimento da
pessoa, a criança perde também os pais da maneira como eram anteriormente, visto que o sobrevivente se modifica
em seus aspectos emocionais, comportamentais e nos papéis que necessitam ser readaptados (RAIMBAULT, 1979).
O primeiro e mais persistente vínculo afetivo é o da mãe e seu filho, é o vínculo que nem mesmo a morte
dissocia. Para Winnicott (1982), a ausência materna e a falta de apego provocam na criança uma necessidade da busca
de um objeto transitório; essa criança pode apresentar comportamentos desajustados, como insônia, comportamen-
tos de regressão, tendência antissocial, carência e até uma propensão à delinquência.
Confrontar-se com a morte de alguém que se ama é um processo difícil em qualquer idade, sobretudo, quan-
do ainda não se possuem recursos internos para superar esse momento. Segundo Raimbault (1979), quanto mais
jovem é a criança, maiores serão os efeitos que essa morte acarretará.
Para que a criança consiga assimilar de fato o que é morte, é necessário que ela entenda dois conceitos
fundamentais: o de irreversibilidade e o de universalidade. Segundo Torres (1999), a irreversibilidade diz respeito à
compreensão de que o corpo físico não pode viver depois da morte, ou seja, quando se morre não se torna a viver,
e a universalidade refere-se à compreensão de que tudo que possui vida está suscetível à morte. As crianças que vi-
venciam a morte são afetadas de diferentes formas e o problema não é a morte em si, mas o que se segue após ela,
ou seja, o luto.
Schoen et al. (2004 apud LIMA, 2007, p. 26) apresentam uma definição pertinente de luto quando afirmam:

10
Pesquisa em Psicologia | Anais Eletrônicos
A ludoterapia...

Luto é o processo pelo qual alguém passa quando uma perda é experienciada. As experiências que
fazem parte desse processo ocorrem em diferentes sequências e intensidades e, assim como sua
duração, dependem do indivíduo. Respostas de luto vão também depender de quão significativa
é a perda.

O processo de luto é diferente para cada indivíduo e, para a criança, torna-se ainda mais complexo.
Segundo Bromberg (2000, p. 60):

O luto infantil é freqüentemente considerado um fator de vulnerabilidade a muitos distúrbios psi-


cológicos na vida adulta. Esses distúrbios vão desde a excessiva utilização de serviços de saúde, por
tê-la com freqüência debilitada, até aumento no risco de distúrbios psiquiátricos.

Conforme Viorst (1986), a lamentação da perda de um ente querido é relativa ao modo como sentimos a per-
da, o que depende da idade tanto de quem sofreu a perda quanto daquele que partiu e, ainda, de toda uma história
compartilhada. Embora possa existir uma fase de aceitação e novas buscas, a saudade e a tristeza podem retornar “[...]
tornando o luto gradual e nunca totalmente concluído.” (KOVÁCS, 1992, p. 157).
A dificuldade de falar sobre a morte tem relação direta com a nossa cultura, pois representa perda, abandono,
medo, desconhecido. E do mesmo modo é difícil falar sobre os sentimentos despertados pela morte, uma vez que se
necessita “falar com o coração.” (HISATUGO, 2000, p. 16).
Não falar da dor não significa não a sentir, muitas vezes, as crianças podem estar sofrendo e não lidando com
a perda de modo saudável. Para que isso ocorra, é necessário que a criança vivencie os sentimentos do luto; ela deve
ser encorajada a falar sobre o que está sentindo, para conseguir elaborar esse luto, impedindo que ele se mantenha
indefinidamente (MAZORRA, 2001).
Conforme Del Prette e Del Prette (2007, p. 119), falar sobre sentimentos e nomear as emoções são habilida-
des importantes, pois “[...] ajudam a criança a transformar uma sensação assustadora e incômoda em algo definível e
natural, o que pode ter um efeito calmante imediato.”
Para Ferreira e Wiezzel (2005), perder alguém importante implica a necessidade de adaptação a viver sem ela,
e, para a criança, a perda de um dos pais influencia em seu desenvolvimento. Essas influências podem ser tanto na
convivência social, na forma de encarar a vida, quanto na área emocional e afetiva, podendo desencadear um senti-
mento de inferioridade por acreditar que somente ela não possui um pai ou uma mãe.
Segundo Ferreira e Wiezzel (2005, p. 8):

O bebê privado de certas coisas, como o contato afetivo, tende a desenvolver perturbações no seu
desenvolvimento emocional que serão reveladas futuramente através de dificuldades pessoais. A
mãe é necessária como pessoa viva que apresenta o mundo ao bebê (sua presença causa bem-estar
e segurança) e também à tarefa de desilusionamento (os desejos nem sempre são saciados quando
se quer).

Entretanto, na ausência da figura da mãe existe alguém que também é muito importante para a criança: o pai.
Conhecê-lo, saber o que ele é capaz de fazer, perceber seus defeitos, saber mais sobre sua vida e trabalho são aspectos
importantíssimos para qualquer criança (WINNICOTT, 1982).
Bowlby (1985) destaca que o rompimento de uma relação ou uma perda desencadeia sentimentos e compor-
tamentos diversos, podendo levar o enlutado ao entorpecimento e à melancolia, em um período de desorganização
e prostração, até que possa iniciar um trabalho de elaboração desta perda, retomando a organização da própria vida.
Segundo Nunes (1998, p. 15), nas semanas seguintes à perda, as crianças podem apresentar tristeza profunda
ou acreditar que o familiar que morreu permanece vivo. Se, no entanto, evitar mostrar tristeza ou persistir em longo
prazo negando a morte de seu familiar querido, poderá ter sérios problemas no futuro.
Segundo Raimbault (1979), o sofrimento não elaborado pode se traduzir em distúrbios de atenção, diminui-
ção da acuidade escolar, distúrbios da fala, ou ainda em todo um conjunto de sinais de ansiedade, como fobias, ritos,
tiques, agressividade, apatia e medo do escuro e do estranho.
Hisatugo (2000, p. 18-19) afirma que:

11
Pesquisa em Psicologia | Anais Eletrônicos
Marilise Vanusa Rocha, Jorgiana Baú Mena Barreto

Falando claramente sobre a morte de alguém, permite-se maior segurança e amadurecimento in-
fantil. Enganar a criança é privá-la de desenvolver-se e pode causar sérios danos psicológicos. A
idéia de poupar a criança sobre a morte muitas vezes é um argumento adulto para não tratar do
assunto. É claro que não há necessidade de contar fatos mórbidos ocorridos com o falecido, mas é
importante explicar sobre a finitude humana, a irreversibilidade e nossos sentimentos em relação
à morte.

Para elaborar o luto, conforme Kovács (2007, p. 74), é indispensável que as crianças recebam informações
abertas sobre a morte de uma pessoa querida, do contrário, abre-se espaço para o medo e para a culpa, ou seja, “[...]
as tentativas de ocultar o fato ou diminuir sua importância tendem a dificultar a compreensão.”
De acordo com Torres (1999), a maneira mais saudável de ajudar as crianças que perderam alguém significa-
tivo é promover uma comunicação aberta e segura, proporcionando a elas o tempo suficiente para expressar seus
sentimentos.
Segundo Franco e Mazorra (2007), além do apoio psicológico à criança, em ocorrência de luto infantil por
morte de genitores, seria necessário também um atendimento à família, pois ela se encontra em um momento de
crise e desorganização, uma vez que, de forma geral, a possibilidade de a criança elaborar o luto está associada ao
processo de elaboração do luto familiar.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo de caso refere-se à importância da Ludoterapia no processo de luto infantil; a criança ao seu
modo compreende a morte desde o início da infância, mas essa compreensão pode não ser identificada pelos adul-
tos, porque é sempre expressa com os recursos próprios da idade, nem sempre a criança fala sobre morte, mas pode
representá-la lúdica ou graficamente, ou, até mesmo, na forma de um sintoma. Por meio da Ludoterapia, é possível
avaliar aspectos emocionais, afetivos, sociais, familiares e outros nos pacientes. Por meio do lúdico, a criança pode
expressar seus sentimentos e emoções que ainda não consegue verbalizar. O brincar torna-se instrumento para a
criança expor situações ou vivências que a afligem.
A vida consiste de várias perdas e separações e uma perda no início da infância pode ocasionar à criança trau-
mas posteriores. Ao se estudar o luto infantil, percebe-se que a maior perda que uma criança pode sofrer é a morte
de um dos pais. Faz-se necessário, independentemente da idade da criança, informá-la sobre o evento, adaptando o
linguajar e a complexidade da explicação ao seu nível de compreensão. Para que haja a elaboração da perda, é ne-
cessário, portanto, que o indivíduo possa expressar e lidar com os mais diferentes sentimentos suscitados pela morte.
Por intermédio da revisão de literatura, associada ao estudo de caso, pode-se perceber a importância do
apoio psicológico à criança que perdeu um ente querido, oferecendo-a um ambiente específico para tratar dos sen-
timentos, por vezes pouco demonstrados, respeitando seu tempo e suas limitações, auxiliando-a a alcançar um equi-
líbrio emocional e promovendo a capacidade ela desenvolva essas competências e se torne psicologicamente mais
saudável.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Paulo Nunes de. Educação lúdica. Técnicas e jogos pedagógicos. 11. ed. São Paulo: Loyola, 2003.

AXLINE, Virgínia Mae. Ludoterapia: dinâmica interior da criança. 2. ed. Belo Horizonte: Interlivros, 1984.

BOWLBY, John. Apego, perda e separação. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

BROMBERG, Maria Helena. A Psicoterapia em situações de perdas e luto. Campinas: Livro Pleno, 2000.

BOMTEMPO, Edda. A brincadeira de faz-de-conta: lugar do simbolismo, da representação, do imaginário. In: KISHI-
MOTO, Tizuko Morshida (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1997.

12
Pesquisa em Psicologia | Anais Eletrônicos
A ludoterapia...

COPPOLILLO, Henry. Psicoterapia Psicodinâmica de crianças: uma introdução à teoria e às técnicas. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1990.

DEL PRETTE, Almir; DEL PRETTE, Zilda. Psicologia das habilidades sociais da infância: teoria e prática. Petrópolis:
Vozes, 2005.

FRANÇANI, Giovana Muler et al. Prescrição do dia: infusão de Alegria. Utilizando a arte como instrumento na assis-
tência à criança hospitalizada. Revista Latino Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 6, n. 5, p. 27-33, dez.
1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rlae/v6n5/13857.pdf>. Acesso em: 16 ago. 2015.

FRANCO, Maria Helena Pereira; MAZORRA, Luciana. Criança e luto: vivências fantasmáticas diante da morte do geni-
tor. Estudos de Psicologia, v. 24, p. 503-511, 2007.

FERREIRA, Larissa David; WIEZZEL, Andréia Cristiane S. Agressividade infantil: entre os fatores emocionais e am-
bientais. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia)–Universidade Estadual Paulista, Presidente
Prudente, 2005.

FIORINI, Hector Juan. Teoria e técnica de psicoterapias. 6. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1985.

GRUNSPUN, Haim. Psicoterapia Lúdica de Grupo com Crianças. São Paulo: Atheneu, 1997.

HISATUGO, Carla Luciano Codani. Conversando sobre a morte. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

KLEIN, Melanie. Psicanálise da criança. Tradução Pola Civelli. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1981.

KOVÁCS, Maria Júlia. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.

KOVÁCS, Maria Júlia. Perdas Precoces. Revista Viver Mente e Cérebro, São Paulo, n. 175, p. 74, ago. 2007.

LIMA, Vanessa Rodrigues. Morte na família: um estudo exploratório acerca da comunicação à criança. 2007. 191
p. Dissertação (Mestrado em Psicologia)–Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em: <http://www.
teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/.../LimaDissertacao.pdf>. Acesso em: 19 jun. 2015.

MACHADO, Maria Cristina Gomes; PASCHOAL, Jaqueline Delgado. Imagens da infância na modernidade: da infân-
cia que temos à infância que queremos. Maringá: UEM, 2007.

MAZORRA, Luciana. A criança e o luto: vivências fantasmáticas diante da morte do genitor. Dissertação (Mestrado
em Psicologia Clínica)–Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.

NUNES, Deise Cardoso et al. As Crianças e o Conceito de Morte. Porto Alegre: Instituto de Psicologia UFRGS, 1998.

OTERO, Vera Regina Lignelli. “Psicoterapia funciona?” In: WIELENSKA, Regina C. (Org.). Sobre Comportamento e
Cognição – questionando e ampliando a teoria e as intervenções clínicas e em outros contextos. Santo André:
Editores Associados, 2001. v. 6.

PEDRO, Iara Cristina da Silva et al. O brincar em sala de espera de um ambulatório infantil na perspectiva de crian-
ças e seus acompanhantes. Revista Latino Americana de Enfermagem, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 111-119, mar./abr.
2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/pt_v15n2a15.pdf>. Acesso em: 16 ago. 2015.

RAIMBAULT, Ginette. A criança e a morte: crianças doentes falam da morte: problemas da clínica do luto. Tradução
Roberto Cortes Lacerda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

RIBEIRO, Paula Simon. Jogos e brinquedos tradicionais. In: SANTOS, Santa Marli Pires dos. Brinquedoteca: o lúdico
em diferentes contextos. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

TORRES, Wilma da Costa. A criança diante da morte: desafios. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

VIORST, Judith. Perdas Necessárias. Tradução Aulyde Soares Rodrigues. 25. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1986.

WINNICOTT, Donald Woods. O Brincar & a Realidade. Tradução José Octávio de Aguiar Abreu e Vane de Nobre. Rio
de Janeiro: Imago, 1975.
13
Pesquisa em Psicologia | Anais Eletrônicos
Marilise Vanusa Rocha, Jorgiana Baú Mena Barreto

WINNICOTT, Donald Woods. A Criança e o seu Mundo. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.

14
Pesquisa em Psicologia | Anais Eletrônicos
54
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

LUDOTERAPIA: O USO DE BRINQUEDOS CANTADOS NO


PROCESSO PSICOTERAPÊUTICO INFANTIL

Lucia Costa
luciabrcostta@gmail.com

RESUMO

Este artigo aborda o uso de brinquedos cantados no processo terapêutico a partir do que a
literatura cientifica evidencia sobre o quanto esse recurso pode ser essencial ao processo
terapêutico de crianças para ajudá-las a melhorar a interação com o mundo que a cerca e
consigo mesmo. A questão/problema do estudo busca saber de que modo a utilização dos
brinquedos musicados, no processo terapêutico, pode influenciar os diferentes aspectos da
formação do indivíduo, incluindo as dimensões humana, física, social e cognitiva. Por isso, a
hipótese do estudo afirma que a riqueza de experiências com os brinquedos e,
consequentemente, com as atividades baseadas nesse recurso constituirá o banco de dados de
imagens culturais utilizados nas situações interativas. Os objetivos do estudo consistem em
compreender a eficácia dos brinquedos cantados no processo terapêutico, além de se
descrever as ações terapêuticas que podem ser colocadas em pratica pelo psicólogo com base
nos brinquedos musicados. A metodologia do estudo baseou-se na revisão da literatura com
foco em autores que se reportam à centralidade do tema no contexto da Psicologia Infantil e
da Ludoterapia. Após o estudo, inferiu-se que a realização de um trabalho terapêutico, com
base nesse recurso, requer um projeto pessoal maior do profissional quanto à sua proposta,
além de um envolvimento efetivo quanto às mudanças para se adaptar às necessidades da
criança, bem como de um maior investimento em recursos lúdicos avançados, pois, durante o
desenvolvimento desse estudo, detectou-se que apesar da eficácia dos brinquedos cantados no
processo terapêutico, atividades baseadas nesses expedientes ainda não são utilizadas com a
frequência necessária o que poderia apresentar maior resolutividade para o trabalho
desenvolvido junto à criança atendida pelo psicólogo infantil.

Palavras-chave: Brinquedos cantados. Lúdico. Intervenção. Psicologia.

ABSTRACT

This article discusses the use of toys sung in the therapeutic process from which the scientific
literature evidences how much this resource can be essential in the therapeutic process of
children to help them to improve the interaction with the world that surrounds it and with
itself. The question / problem of the study seeks to know how the use of musical toys in the
therapeutic process can influence the different aspects of the formation of the individual,
including the human, physical, social and cognitive dimensions. Therefore, the hypothesis of
the study states that the wealth of experiences with toys, and consequently with activities
based on this resource, will constitute the database of cultural images used in interactive
situations. The objectives of the study are to understand the effectiveness of toys sung in the
therapeutic process, as well as to describe the therapeutic actions that can be put into practice
by the psychologist based on the musical toys. The methodology of the study was based on a
review of the literature focusing on authors who report on the centrality of the theme in the
context of Child Psychology and “Ludoterapia”. After the study, it was inferred that the
accomplishment of a therapeutic work based on this resource requires a greater personal
55
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

project of the professional regarding its proposal, besides an effective involvement in the
changes to adapt the needs of the child, in addition to greater investment in advanced play
resources, because during the development of this study it was detected that despite the
effectiveness of the toys sung in the therapeutic process, activities based on these dossiers are
still not used with the necessary frequency which could present greater resolution for the work
developed with the child attended by the child psychologist.

Keywords: Sung toys. Playful. Intervention. Psychology.

1 INTRODUÇÃO

Observam-se em livros, artigos publicados, e nas mais variadas instituições (escolas,


creches, centros de reabilitação, consultórios) que as práticas com atividades lúdicas no Brasil
estão sendo desenvolvidas constantemente. Porém alguns jogos e brinquedos infantis
precisam ser investigados e explorados por pesquisadores da área da Psicologia e da
Educação, no sentido de verificar com maior rigor metodológico, as consequências desses
recursos e seus conteúdos, estabelecendo parâmetros que possam ser utilizados para nortear o
seu uso pelas crianças, parâmetros esses transmissíveis pelos componentes da família e
profissionais dos mais diversos campos que lidam diariamente com crianças.
A infância passa, hoje, por um processo de mudança quanto aos desafios enfrentados
pelo mundo contemporâneo. Diante de tantas dificuldades, muitos profissionais que lidam
com o processo terapêutico têm feito esforços para utilizar recursos ou instrumentos que
visam ajudar crianças a ter um desenvolvimento sadio e equilibrado. Em decorrência desse
quadro, é necessário conhecer as mudanças terapêuticas que podem favorecer as crianças, no
sentido de torná-las mais propensas a enfrentar desafios, sejam esses educacionais, morais,
psicológicos, uma vez que os fatores que influenciam seu comportamento e desenvolvimento
são os mais variados possíveis.
Diante do exposto, o brincar surge como uma atividade que contribui para que o
profissional em Psicologia Infantil avalie e faça intervenções adequadas com o uso dos
brinquedos cantados. Nesse sentido, é necessário que o Psicólogo seja proativo no sentido de
apresentar a criança, no processo terapêutico, o maior número de recursos possíveis capazes
de auxiliar a criança superar desafios e estar pronta para lidar com o meio em que vive de uma
forma produtiva e satisfatória.
Tomando como base essa premissa, faz-se necessário direcionar esse artigo a todos os
profissionais no campo da Psicologia para que busquem otimizar ações que, de fato,
estabeleça uma aprendizagem que contemple o desenvolvimento de habilidades e
56
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

competências das crianças, não só no campo cognitivo, mas afetivo, cultural, histórico. É com
base nessa condição que o processo terapêutico com base na utilização dos brinquedos
cantados surge como uma estratégia capaz de auxiliar no desenvolvimento do individuo e seu
equilíbrio psicológico e emocional.
Em razão desses pressupostos, pode-se afirmar que o estudo possui relevância para o
curso, uma vez que será possível contribuir para que o conhecimento a respeito do tema seja
ampliado e aprofundado a ponto de estimular outros acadêmicos a dar continuidade ao debate
em torno do assunto, tornando-o um dos aspectos importantes que o psicólogo deve dar
atenção no desenvolvimento de seu trabalho cotidiano.
Para a academia a abordagem da temática também se justifica, pois é necessário
produzir literatura atualizada para que pesquisadores tenham a disposição material relevante a
ser utilizado em outros estudos voltados para a utilização da Ludoterapia no processo
psicoterapêutico infantil.
Finalmente, a elaboração e divulgação do trabalho beneficiam a sociedade, uma vez
que, ao tomar conhecimento do conteúdo, a comunidade passa a compreender que a formação
e o desenvolvimento da criança passam por questões que precisam ser debatidas de modo a
favorecer a aquisição do conhecimento a respeito dos processos que desencadeiam sua
compreensão do mundo e a aquisição da autonomia.
Assim, a questão/problema que norteia o estudo busca saber: O uso de brinquedos
cantados pode contribuir no processo psicoterapêutico infantil? Como hipótese, pressupõe-se
que os brinquedos cantados tornam-se recursos apropriados no processo terapêutico infantil,
porque combinam prazer, ludicidade e criatividade, estimulando a criança a se mostrar
receptiva ao trabalho do Psicólogo.
Os objetivos do estudo consistem em compreender a eficácia dos brinquedos cantados
no processo psicoterapêutico infantil; descrever a origem e desenvolvimento da ludoterapia na
prática psicoterapêutica; apontar as dificuldades que o psicólogo enfrenta para utilizar os
brinquedos cantados no processo psicoterapêutico infantil e apresentar os brinquedos cantados
e suas variadas formas de utilização pelo psicólogo na prática terapêutica.

2 MÉTODOS

A pesquisa é de natureza qualitativo-descritiva, com embasamento na pesquisa


bibliográfica, explicitando as concepções de diferentes autores sobre o uso dos brinquedos
cantados no processo psicoterapêutico. "Trata-se de uma leitura atenta e sistemática que se faz
57
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

acompanhar de anotações e fichamentos que, eventualmente, poderão servir à fundamentação


teórica do estudo" (FORTE, 2006, p. 22), utilizando-se livros, revistas, artigos científicos e
periódicos, o que permite o aprofundamento sobre o estudo.
A pesquisa bibliográfica seja desenvolvida com base em material já elaborado,
constituído de livros, artigos científicos, teses e dissertações. A principal vantagem deste tipo
de pesquisa reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos
(GIL, 1999). Richardson (1999, p. 80), mencionava que "os estudos que empregam uma
metodologia qualitativa podem descrever a complexidade de determinado problema, analisar
a interação de certas variáveis, compreender e classificar processos dinâmicos vividos por
grupos sociais".
Para situar a discussão, consideram-se os estudos de alguns autores que se fazem
fundamentais no embasamento deste estudo que contribuem significativamente com estudos e
propostas relacionados a tal fenômeno. Logo após a seleção e obtenção das obras, em número
suficiente, para a realização da pesquisa, seguiu-se a leitura dos mesmos para a obtenção de
respostas ao problema proposto. A leitura do material seguiu uma ordem, proposta, por Gil
(2002), em que se desenvolveu uma leitura exploratória, que tem como objetivo verificar o
quão útil esse conteúdo é para a pesquisa. Logo após, iniciou-se a leitura seletiva, onde
determinou-se o material, que de fato interessou ao estudo.

3 RESULTADOS

3.1 LUDICIDADE

Na atualidade, constitui um consenso, nos meios acadêmicos, que o lúdico


(brincadeiras, jogos e brinquedos) é essencial para o desenvolvimento da personalidade das
crianças (SANTOS, 2011).
Sobre a forma adequada dos profissionais lidarem com os recursos lúdicos nas
instituições, na rotina diária, Placco (2013, p. 14), exorta “entendo que um local com os mais
variados recursos lúdicos, principalmente o brinquedo, poderia, com facilidade, ampliar as
possibilidades interdisciplinares e terapêuticas inseridas nos brinquedos e brincadeiras”.
Entende-se que, com base nessa observação, jogos, brinquedos e brincadeiras são
imprescindíveis à vida das crianças por promover o desenvolvimento físico, mental, social,
cultural, e também às habilidades de comunicação, expressão corporal e oral da criança. Por
se acreditar que as atividades lúdicas são importantes no desenvolvimento da criança,
psicólogos que lidam diariamente com criança devem estar prontos a intervir
58
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

terapeuticamente não podendo ficar alheios ao brinquedo, ao jogo, às brincadeiras, pois tais
atividades são o veículo do crescimento da criança, possibilitando-a explorar o mundo,
descobrir-se, entender-se e posicionar-se em relação a si mesma e à sociedade de uma forma
natural. Segundo Santos (2012), um dos aspectos que marcam a infância é o brinquedo, e este
é para a criança aquilo que o trabalho é para o adulto, isto é, sua principal atividade.
Portanto, os jogos, brinquedos e brincadeiras fazem parte do mundo das crianças, já
que o brincar está presente na humanidade desde tempos imemoriais. Para Didonet (2014), o
brincar antecede à humanidade, “pois os animais também brincam, embora o ser humano, ser-
de-cultura, brinque diferente”. Desde os povos primitivos já eram desenvolvidas essas práticas
na forma de dança, música, pesca, caça e lutas.
Na contemporaneidade, vários teóricos de renome buscaram compreender e difundir
suas descobertas em relação às fases de desenvolvimento da criança. Entre estes um dos mais
importantes foi Piaget. Este teórico ofereceu grande contribuição com sua teoria construtivista
e dedicou-se a estudar os jogos e brincadeiras, chegando a estabelecer uma classificação deles
de acordo com a evolução das estruturas mentais que são: jogos de exercício – 0 a 2 anos –
sensório-motor; jogos simbólicos – 2 a 7 anos – pré-operatório; jogos de regras - a partir de 7
anos (PICONEZ, 2012)
Compreende-se que esse conhecimento sobre a evolução das estruturas mentais da
criança, de acordo com cada faixa etária, quando, aplicado ao contexto de uso dos brinquedos,
possibilita àquele que os utilizam junto à criança conhecer algo a mais do ser em
desenvolvimento: aquilo que não está dado simplesmente pela estrutura cognitiva, mas que se
insere no seu mundo subjetivo.
Na realidade, esse conhecimento amplia a ação do profissional que lida
terapeuticamente com a criança, na medida em que possibilita ao profissional psicólogo ou
terapeuta infantil, estabelecer uma sequência lógica e sistematizada de intervenções
psicológicas que resultam em transformações progressivas no comportamento da criança no
decorrer do processo terapêutico de modo a subsidiar a adoção de outros procedimentos para
melhorar o comportamento infantil (MOURA; VENTURELLI, 2014).
Atualmente, profissionais que trabalham no campo do desenvolvimento infantil
analisam várias teorias para seguirem seu trabalho. É importante que se faça um breve
comentário sobre Piaget, que diz que o brincar deve obedecer alguns estágios. Verderi (2012,
p. 55) cita:

a) Brincar sensório-motor (nascimento até 2 anos): neste estágio o bebê, apresenta


um tipo de funcionamento intelectual inteiramente prático, vinculado à ação.
59
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

b) Brincar Simbólico (2 a 6 anos): que corresponde ao estágio pré-operacional em


que a criança começa a entrar no mundo dos símbolos, é capaz de reproduzir música
que alguém cantou e de reconhecer objetos. As crianças usam a imaginação.
c) Grupo de Jogos com regras (6 aos 12 anos): estágio das operações concretas. A
criança descobre uma série de regras para interagir com o mundo.

Pode-se compreender a importância de destacar que a sociedade, hoje, encontra-se


numa época quando a criança não tem mais liberdade de brincar como antigamente, nas ruas,
nas praças, seja por falta de espaços, seja por falta de segurança nos espaços disponíveis. De
acordo com Santos (2012), o desenvolvimento social das crianças é um assunto importante e
deve ser tratado de forma adequada, pois a criança que vive em comunidade adquire valores
de grupo. Neste ponto, a brincadeira tem participação especial.
Para criança, a brincadeira é a melhor maneira de se comunicar, um meio para
perguntar e explicar, um instrumento que ela tem para se relacionar com outra criança. Para
Marinho (2012, p. 31), a presença do amor e da agressão nas brincadeiras infantis
correspondem às tentativas de descoberta do eu da criança. Portanto, o amor e a agressão são
componentes de um todo na formação da sua personalidade. Além de ser uma extensão
indefinida de conhecimento sobre o mundo externo, é através do lúdico que a criança também
pode conviver com seus sentimentos internos.
A maioria dos adultos mostra-se capaz de expressar sob a forma verbal seus
sentimentos, frustrações e angústias, no entanto, a criança, por ainda não ter facilidade
cognitiva e verbal, utiliza os brinquedos como palavras, portanto, como linguagem. Entende-
se, então que o brincar é uma forma de atividade complexa, que envolve a criança física,
mental, social e emocionalmente, revelando os seus sentimentos, experiências e reações a
essas mesmas experiências (desejos, receios, percepção de si própria, entre outros) (HOMEM,
2010).

3.2 BRINQUEDOS CANTADOS: UMA INTERFACE DA LUDICIDADE

Os brinquedos representam elementos que estimulam a criança a se situar no mundo, a


partir da ampliação de seus aspectos cognitivos, emocionais e psicológicos. Sendo assim, se o
jogo é utilizado pela criança pelo simples prazer de brincar ou ainda se a criança se apropria
de qualquer material investindo um sentido lúdico, o brinquedo se torna um fim em si mesmo.
No entanto, é preciso ressaltar que os brinquedos criados pelo mundo adulto, concebido
especialmente para brincadeiras infantis, não passam de meros objetos se a criança não pode
manipulá-los ou utilizá-los como suporte da brincadeira (VERDERI, 2012).
60
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

Em complemento a isso, Kishimoto (2012), explica que o brinquedo visto como um


recurso importante, desenvolve e educa de maneira prazerosa. Possui fins educacionais e
terapêuticos remetendo-nos para a relevância desse material em situações de aprendizagem e
de desenvolvimento infantil. A relevância de brinquedos como indispensáveis à criação da
situação imaginária revela que esse aspecto só se desenvolve quando se dispõe de
experiências que se reorganizam na mente da criança.
Por isso, é comum afirmar que a riqueza de experiências com os brinquedos e,
consequentemente, com a atividade de brincar, constituirá o banco de dados de imagens
culturais utilizados nas situações interativas. Dispor de tais imagens é fundamental para
instrumentalizar a criança para a sua socialização, aprendizagem e a superação de eventuais
dificuldades de natureza emocional ou psicológica.
Em se tratando especificamente dos brinquedos cantados é possível afirmar que a
literatura científica evidencia o quanto esse recurso pode ser essencial no processo terapêutico
de crianças para ajudá-las a melhorar a interação com o mundo que a cerca e consigo mesma,
uma vez que a música tem o poder de ajudar a criança a interagir com o meio que a cerca,
estimulando-a inclusive a estabelecer uma comunicação corporal com o mundo externo.
Por exemplo, Verderi (2012) explica que o brinquedo cantado é um meio de propor a
criança o estímulo ao movimento do corpo, seja mediante à expressão vocal, às palavras, às
frases que podem ser cantadas tanto pelo adulto quanto pela própria criança remetendo um ou
outro a cantigas do passado ou melodias mais atuais. Por fazerem parte da cultura musical,
independente da época, são facilmente reconhecíveis pelo indivíduo, posto que foram
transmitidas de geração a geração, ganhando inclusive muita repercussão na sociedade por
causa do que se convencionou denominar de tradição oral.
Quando se utiliza em conjunto o brinquedo com a música, então tem-se o cenário
propicio para ajudar uma criança a superar desafios, a enfrentar problemas relacionados a
personalidade ou a aprendizagem. Os brinquedos cantados, assim, podem influenciar de
forma positiva diferentes aspectos da formação do indivíduo, incluindo as dimensões humana,
física, social e cognitiva.
Percebe-se também que os brinquedos cantados, por sua origem e desenvolvimento,
são vistos, por muitos estudiosos, como um recurso completo do ponto de vista terapêutico,
pois une canto ou dança, ou mesmo ambos simultaneamente, utilizando um brinquedo
especifico como suporte que represente concretamente o teor da música, além de possibilitar
ao profissional que lida com os processos terapêuticos recursos que são essenciais para dar
apoio emocional e psicológico à criança (ZOBOLI, 2013).
61
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

Um desses meios consiste na análise do conteúdo (letras) é parte integrante dos


brinquedos cantados. Estas, em consonância com a orientação do profissional, motivam as
crianças a utilizar sua motricidade ampla, o equilíbrio, o ritmo, a lateralidade. Além disso, nos
aspectos cognitivos, tanto o conteúdo quanto as coreografias possibilitam a criança dar vazão
a sua criatividade, imaginação e à atenção a tudo aquilo que acontece ao seu redor.
Os brinquedos cantados são ferramentas adequadas para que se trabalhem processos
terapêuticos e educacionais junto às crianças. Porém, é necessário admitir que sua utilização
em campos do conhecimento, como a Psicologia, é recente, mas com comprovada eficácia
principalmente pela sua simplicidade (BASTOS, 2014).
Por isso, apesar de todos os recursos tecnológicos existentes para avaliar os
processos terapêuticos em crianças, os brinquedos cantados se sobressaem como uma
alternativa simples, fácil de trabalhar e rápida no sentido de criar uma identificação com a
criança. Paiva (2010, p.75), é bem objetivo ao dizer que “Os Brinquedos Cantados falam à
alma da criança e concorrem para uma intensificação dos sentimentos de amor, participação e
respeito”.
Como parte essencial dos brinquedos cantados, a música vem desempenhando, ao
longo da história, um importante papel no desenvolvimento do ser humano, seja no aspecto
moral, seja no campo social, contribuindo para a aquisição de hábitos e valores indispensáveis
ao exercício de cidadania. Bastos (2012) informa que a palavra música vem do grego –
“Mousikê” – e designava, juntamente com a poesia e a dança, a “Arte das Musas”. O ritmo,
denominador comum das três artes, fundia-as numa só. Como nas demais civilizações antigas,
os gregos atribuíam aos deuses sua música, definida como uma criação e expressão integral
do espírito, um meio de alcançar a perfeição.
O reconhecimento do valor formativo e terapêutico da música fez com que surgissem,
no decorrer dos séculos, as primeiras iniciativas com o uso do canto. Assim, a música requer
uma instrução que ultrapassa o caráter puramente estético; torna-se um recurso indispensável,
um objeto de maestria, proporciona a medida dos valores éticos, tornando-se um meio de
obter “sabedoria” (LIMA, 2013).
De forma progressiva, “mousikê” passou a abranger tudo o que concernia ao cultivo
da inteligência, assim como “gymnastike” resume tudo quanto se referia ao desenvolvimento
físico, ao movimento e ao trabalho com o corpo, principalmente com o uso da ginástica.
Receberam experiências musicais não significavas, portanto, envolviam primariamente a
escuta e assimilação das cantigas elaboradas e difundidas nos grupos familiares e sociais
(PALHARES, 2012).
62
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

Segundo Barbosa (2012), a música pode ajudar o indivíduo no sentido de contribuir,


principalmente, para que a criança esteja aberta a novos conhecimentos, tornando possível
que ocorra o desenvolvimento cognitivo mais profundo.
Além disso, a experiência musical é vista por Platão como pré-requisito ao
conhecimento e à superação de dificuldades intimas, que sem a base da cultura musical se
aprofundaria. Por isso, ele reconhecia a primazia da música sobre as outras artes, uma vez
que, a seu ver, são o ritmo e a harmonia os que mais fundo penetram no íntimo da alma, e os
que dela se apoderam com mais força, infundindo-lhe e comunicando-lhe uma atitude nobre
(JAEGER, 2016).
Portanto, é visível a contribuição dos brinquedos cantados nos processos terapêuticos
uma vez que se pode observar, como já dito, visível melhoria por parte das crianças que
passam por algum tipo de experiência negativa, mas que mantiveram contato com a música,
seja ela educação musical propriamente dita ou simplesmente quando o profissional utiliza-se
da música para auxiliar no processo terapêutico (SILVA, 2010).

4 DISCUSSÃO

Para se utilizar os brinquedos cantados, no processo terapêutico, é importante que se


considere sua centralidade na atenção e cuidado dispensados às crianças que necessitam da
intervenção de um profissional como o Psicólogo. Mas antes de discorrer sobre esse
atendimento é necessário entender que a atividade do brincar terapêutico tem constituído
elemento de pesquisa de diferentes segmentos teóricos que ora convergem, ora divergem
quanto à forma em que devem ser usados os brinquedos cantados.
No processo terapêutico, entende-se o brinquedo cantado como um recurso
potencializador da criança, além de contribuir para que sejam facilitados tanto a observação
quanto o atendimento da criança, uma vez que, revelam-se experiências do indivíduo
marcadas por muitos significados. Ao mesmo tempo, Parsons (2011), afirma que o lúdico se
torna necessário para compreender a realidade psíquica e pode auxiliar na resolução de
conflitos daquele que se submete ao processo terapêutico. Campos também destaca que a
observação do brincar permite que o psicólogo entenda melhor o funcionamento de seu
paciente.
Quando se trata de compreender o processo terapêutico com o uso dos brinquedos
cantados é importante que se reconheça que sempre haverá uma relação, um “feedback”, entre
a criança e o profissional, sendo que o brinquedo constitui o objeto de atenção dos dois.
63
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

Nessas situações, o imaginário entra em ação, pois torna as relações mais ou menos próximas,
podendo ser expressas como forma de acesso aos conflitos. Nessa perspectiva, o brincar
associado ao cantar é considerado como um meio de promover a relação da criança com seu
inconsciente tornando-o pronto para evidenciar suas alegrias suas tristezas, seus desejos e
angústias.
Sendo assim, é importante refletir a respeito das contribuições da atividade com os
brinquedos cantados mediante à perspectiva terapêutica. Para entender isso é essencial
recorrer a Winnicott (2012) que, com sua obra “O Brincar e a Realidade”, estabeleceu
parâmetros realistas em relação às possibilidades que o brinquedo tem de tornar as
experiências da criança muito mais enriquecedoras.
Não se deve ficar indiferente ao fato que os brinquedos utilizados no processo
terapêutico, especialmente quando apresentam-se com características musicais, podem
auxiliar a manter sob controle atitudes agressivas, ajudar a manter o equilíbrio da criança
evitando-se a ansiedade, facilitar o contato com seus pares, realizar a integração da
personalidade, para que o contato verbal com os outros ocorra de forma inteligível. Além
disso, o uso dos brinquedos cantados pode favorecer muito a compreensão dos aspectos
referentes aos objetos transicionais (PARSONS, 2011).
A respeito disso, é importante compreender, também, que os brinquedos cantados
transportam a criança a um imaginário que a auxilia a estabelecer correlações entre a
realidade e os conteúdos musicais. Conti e Souza (2010, p. 80), explicam que os brinquedos
cantados podem assumir características de elementos reais, porém, transformam-se em
instrumentos para o controle de acontecimentos que geram traumas.
Desse modo, o brinquedo passa a assumir uma importância estratégica para vivenciar
situações prazerosas e doloridas que a criança não tem possibilidade, por si mesma, de
reproduzir no mundo concreto
Ciente disso, o profissional que utiliza os brinquedos cantados precisa entender que
existem modalidades diversificadas para se atender uma criança no contexto terapêutico. Mas
isso deve ser determinado a partir de uma avaliação inicial feita junto a criança. O objetivo
principal será, então, o de identificar os problemas ou necessidades daquela criança e dos
elementos que aprofundam sua dificuldade, levando em consideração sempre seu nível de
aprendizagem e sua faixa etária, sua vivência familiar e/ou social, além de variáveis genéticas,
culturais, familiares, psicológicas (PARSONS, 2011).
Uma vez que se tenha certeza da dificuldade da criança, o profissional deve saber
reconhecer a extensão em que aquilo está afetando a aprendizagem ou as relações que o
64
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

indivíduo estabelece com aqueles que fazem parte do seu cotidiano. Para que se conheça
então até que ponto isso está interferindo em sua vida. Para isso, existem critérios que o
psicólogo deve levar em consideração. Esses indicadores seriam capazes de orientar o
profissional para prestar o devido apoio à criança, dando destaque ao processo terapêutico
com os brinquedos cantados.
Schimidt e Nunes (2014) informam que é necessário analisar alguns fatores para que
se utilize adequadamente os brinquedos cantados na prática terapêutica com crianças. Entre
eles pode-se mencionar o tipo de brinquedo ou brincadeira que podem evidenciar a maneira
como o ego vai demonstrar a função simbólica que sistematiza a atividade de brincar. Além
disso, a personificação atribuída ao brinquedo deve ser levada em consideração, bem como a
motricidade, a criatividade e a capacidade simbólica que é evidenciada no ato de brincar.
Com base nesses critérios, o profissional estará preparado para atender adequadamente
na medida em que novos aspectos e mudanças estruturais surgem com base na ação do
terapeuta e com base nos brinquedos cantados. Desse modo, levando-se em conta a
necessidade da introdução dos brinquedos cantados no processo terapêutico, enquanto uma
linguagem legítima de desenvolvimento, torna-se imprescindível a formulação e efetivação de
propostas que transformem em conhecimento prático e acessível aos profissionais diretamente
responsáveis por utilizar os brinquedos cantados ao realizar o atendimento de crianças, ou
seja, os psicólogos e todos aqueles interessados em compreender a ludicidade enquanto
recurso eficiente e mediador, nas interações com indivíduos de diferentes faixas etárias na
infância (ALVES, 2010).
Por esse motivo é de suma importância que, no ambiente onde a criança é atendida,
exista um espaço rico em atividades com brinquedos cantados e um ambiente que seja um
reflexo do ambiente social. Esse ambiente com recursos materiais suficientes e uma atmosfera
social é que permitirá à criança comprovar ter uma formação sólida (CONTI; SOUZA, 2010).
Os materiais do ambiente onde se desenvolve um processo terapêutico com o uso dos
brinquedos cantados podem consistir em objetos já elaborados ou em outros produzidos pelas
próprias crianças. Assim, a utilização de uma bola, de um bastão, de cones ou mesmo de
brinquedos eletrônicos pode ajudar a criança a desenvolver-se cognitivamente, culturalmente
com base em atividades significativas fundamentadas nos brinquedos cantados.
A iniciativa de usar os brinquedos cantados e essencial para consolidar o processo
terapêutico marcadamente lúdico, mais resolutivo, principalmente, no que se refere à
superação de traumas ou mesmo de perdas afetivas que a criança porventura tenha provado.
Apesar de se reconhecer a importância das atividades terapêuticas é comum que muitos
65
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

psicólogos ou psicoterapeutas não considerem a possibilidade de trabalhar com a ludo terapia


no cotidiano da prática profissional. Por isso, acredita-se que a utilização mais frequente de
brinquedos cantados no atendimento de crianças facilitaria e dinamizaria o trabalho ludo
terapêutico (CONTI; SOUZA, 2010).
Uma vez que os brinquedos cantados constituem um suporte que agrega a
possibilidade de se trabalhar com vários conhecimentos de forma interativa e construtiva,
compreende-se que esses recursos de interação-ação são próprios não somente da atividade
terapêutica, mas da identidade social, cultural e lúdica. Com a utilização regular e frequente
dos brinquedos cantados, a criança pode dispor de forma rotineira, livre e criativa de
diferentes meios de acesso à brincadeira. Com isso, o ambiente onde acontece o atendimento
terapêutico pode possibilitar o auxílio psicológico mais pleno aos pacientes (CONTI;
SOUZA, 2010).
O desenvolvimento da criança extrapola os limites do uso de brinquedos cantados,
mas as possibilidades que estes recursos oferecem são significativos. Neste aspecto: brincar
de forma espontânea, escolher livremente tanto os brinquedos quanto os parceiros é
transformar o espaço. Enfim, construir seu mundo através dos brinquedos associados à
música.
Segundo Schimidt e Nunes (2014), a atividade de brincar vai impulsionando a
criança para o que se denomina de zona de desenvolvimento proximal onde existe um
empenho para projetar ações que extrapolam o mundo concreto, incentivando-a a alcançar
objetivos posteriores. É por isso que é comum a afirmação de que os brinquedos cantados
incentivam o desenvolvimento infantil.
De fato, uma proposta terapêutica que seja centrada na criatividade, na imaginação e
na capacidade de encantar, centrada principalmente nos brinquedos cantados, pode auxiliar na
articula de diversas emoções destacando-se uma convivência em que a tolerância às
diferenças seja a regra. Mediante o processo terapêutico com brinquedos cantados reforça-se o
encontro humano, sendo que cada momento passa a ser singular, subjetivo e prazeroso.
Trabalhar com brinquedos cantados é um importante meio de ajudar a criança a ganhar
autonomia, enfatizar suas conquistas e ajudá-la a superar eventuais desafios que para os
adultos podem ser considerados incompreensíveis.
Finalmente, as atividades com brinquedos cantados têm sido reconhecidas como um
recurso terapêutico que estimula o desenvolvimento humano em todas as suas dimensões
(cognitiva, afetiva, social, cultural). Por isso é comum que se recomende a utilização dessa
66
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

metodologia para auxiliar no aprimoramento de diversas capacidades da criança e como parte


intrínseca do dia a dia das pessoas com diferentes utilidades.

5 CONCLUSÃO

Os brinquedos cantados tornam-se, na atualidade, recursos propícios para consolidar


um trabalho terapêutico coroado de êxito, unindo prazer, ludicidade e criatividade, uma vez
que a criança passa a se mostrar receptiva ao trabalho do Psicólogo, o que equivale dizer que
o profissional deve ser favorável à inserção dessa estratégia terapêutica no cotidiano de sua
prática.
Destaca-se que a realização de um trabalho com base nos brinquedos cantados requer
um projeto pessoal maior do profissional quanto a sua proposta, considerável envolvimento
quanto às mudanças necessárias para se adaptar às necessidades da criança, além de maior
investimento nos recursos mais avançados, pois durante o desenvolvimento do estudo de
revisão da literatura, detectou-se que, apesar da eficácia dos brinquedos cantados no processo
terapêutico, atividades baseadas nos recursos lúdicos ainda não são implementadas de forma
mais frequente.
A hipótese levantada fora confirmada, pois o estudo de revisão da literatura tornou
claro que os brinquedos cantados tornam-se recursos apropriados no processo terapêutico
infantil, uma vez que combinam prazer, ludicidade e criatividade, estimulando a criança a se
mostrar receptiva ao trabalho do Psicólogo.
Os objetivos do estudo também foram alcançados, já que foi possível compreender a
eficácia dos brinquedos cantados no processo psicoterapêutico infantil, além de se ter obtido
sucesso em descrever a origem e desenvolvimento da ludo terapia na prática psicoterapêutica,
além de se perceber que os brinquedos cantados em suas variadas formas podem ser
plenamente utilizados pelo psicólogo na prática terapêutica para se obter êxito no atendimento
às crianças de 5 a 10 anos de idade.
Para concluir, é importante considerar que os brinquedos cantados podem ser
utilizados como elementos de ilustração prática que referenda a teoria, podendo inclusive
desafiar as crianças durante o transcorrer do processo terapêutico, proporcionando inclusive
agregar outros conhecimentos como a observância de regras, a transparência no diálogo, a
promoção de vínculos de amor e afeto, a confiança, bem como a adesão a valores como o
companheirismo, a afetividade, a disciplina e o compartilhamento de experiências.
67
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

Entretanto para que isso se concretize e necessário que outros trabalhos acadêmicos
sejam elaborados e divulgados ajudando outros pesquisadores a trilhar caminhos possíveis no
contexto da ludo terapia para auxiliar crianças no processo de desenvolvimento global. Além
disso, a própria revisão da literatura indica a necessidade de se buscar a capacitação
profissional contínua, investindo sempre em recursos diferenciados para atender ao público
infantil

REFERÊNCIAS

ALVES, Antônio Viana de. A participação em atividades lúdica: o compartilhamento de


responsabilidades. São Paulo: Cortez, 2010.

BARBOSA, Aparecida. A música como um instrumento lúdico de transformação. Periódico


de Divulgação Científica da FALS, São Paulo, Ano VI, n.14, dez. 2012.

BASTOS Luís A. É preciso Cantar: Musicoterapia, Cantos e Canções. Rio de Janeiro:


Enelivros, 2012.

CERVO, A; BERVIAN, M. Metodologia do trabalho cientifico. 3 ed. Rio de Janeiro:


Guanabara Koogan, 2002.

CONTI, Norma F; SOUZA, Alfredo. Para entender a criança: chaves psicanalíticas. São
Paulo: Instituto Langage, 2010.

DIDONET, Cacilda Gonçalves. Brincar, o despertar cognitivo . Rio de Janeiro: Sprint,


2004.

HOMEM, Catarina. A ludoterapia e a importância do brincar: reflexões de uma educadora de


infância. Caderno de Educação de Infância, n. 88, dez. 2009.

JAEGER, Eliza. Quando brincar é dizer: A experiência psicanalítica na infância. Rio de


Janeiro: Relume Dumará, 2006.

KISHIMOTO, Tizuko M. Brinquedo e brincadeira – uso e significações dentro de contextos


culturais. In: SANTOS, Santa M. Pires dos. (org). Brinquedoteca: o lúdico em diferentes
contextos. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 32.

LAKATOS, Eva Maria. Metodologia e pesquisa cientifica: Normatizações e procedimentos.


São Paulo: Atlas, 2008.

LIMA, Ione Maria R. Brinquedos cantados. Rio de Janeiro: Sprint, 2013.

MARINHO, Mary D. Brincadeiras espontâneas na primeira infância: Do nascimento aos


seis anos. São Paulo: Manole, 1992.

MINAYO, L. C. Metodologia da pesquisa cientifica: Teses, dissertações e artigos


68
Revista Eletrônica Estácio Papirus, v.5, n.1, p. 54-68, jan./jun. 2018. ISSN 2448-2080

científicos. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2004.

MOURA, Cynthia Borges de; VENTURELLI, Marlene Bortholazzi. Direcionamentos


para a condução do processo terapêutico comportamental com crianças. Rev. Bras. Ter.
Comport. Cogn., São Paulo, v.6, n.1, jun. 2004.

PAIVA Carlos Daniel. Corpo, Música e terapia. São Paulo: Cultrix, 2010.

PALHARES, A. C. Seis estudos de psicologia. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2012.

PARSONS, Peter A. Vecino. Questões sobre o brincar cantando: Letra freudiana. Ano X,
n.9. 2011.

PLACCO, Clarice Moura. O Despertar para o outro: Musicoterapia. São Paulo: Summus,
2003.

SANTOS, Santa Marli Pires dos Brincadeira e musica: Um encontro na aprendizagem.


Petrópolis: Vozes, 2009.

SCHIMITT, Leonardo C; NUNES, Clarice Moura. O Despertar para o outro:


Musicoterapia. São Paulo: Summus, 2014.

SILVA, Lucia Nazaré da. Brinquedos cantados. São Paulo: Cortez, 2010.

VERDERI, Carlos Daniel. Corpo, Música e terapia. São Paulo: Cultrix, 2012.

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 2012.

Você também pode gostar