Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
considerações
Léia Priszkulnik
RESUMO
Este artigo tem como objetivo dar alguns subsídios para se pensar sobre a criança sob a ótica da Psicanálise. Parte de
um breve trajeto pela história ocidental, indicando como a idéia e o conceito de criança e de infância têm se modificado
de acordo com visões de mundo peculiares a um determinado tempo e lugar. Chega até Freud que, com a Psicanálise, abre
um campo de investigação, antes desconhecido, e descortina uma concepção de criança muito peculiar, que abala uma
certa idealização da criança e da infância e que contesta tabus sociais, culturais, religiosos e científicos.
ABSTRACT
Child under a psychoanalysis optics: some considerations
This article aims to give some subsidies to think about child under psychoanalysis optics. It shows a brief course by
occidental history, indicating how the idea and concept of child and childhood have been changed according to visions
of world particular to a given time and place. It comes until Freud. He, with psychoanalysis, opens a unknown field of
investigation and bring to light a very peculiar conception of child, that affects a given idealization of child and childhood
and contests social, cultural, religious and scientific taboos.
A criança que Freud descortina sente tristeza, so- res a um determinado tempo e lugar. A idéia que te-
lidão, raiva, desejos destrutivos, vive conflitos e con- mos hoje de criança não é um dado atemporal. Pode-
tradições, é portadora de sexualidade, escapa ao se dizer que é uma “invenção” da Modernidade.
controle da educação e “[...] é capaz da maior parte Segundo o historiador francês Philippe Ariès (1981),
das manifestações psíquicas do amor, por exemplo, a no decorrer da História, a criança tem ocupado dife-
ternura, a dedicação e o ciúme” (Freud, 1907/1976a, rentes posições frente às expectativas dos pais e fren-
p.139). te à sociedade.
Essa representação de criança, que surge com Na sociedade medieval, como aponta Ariès (1981,
Freud, não existe desde sempre. Através dos séculos, p. 156), não se encontra o sentimento da infância, ou
a idéia e o conceito de criança e de infância têm se seja, “(...) a consciência da particularidade infantil,
modificado de acordo com visões de mundo peculia- essa particularidade que distingue essencialmente a
72 – PSIC - Revista de Psicologia da Vetor Editora, Vol. 5, nº.1, 2004, pp. 72-77
criança do adulto, mesmo jovem”. Ao se tornar mais ças e à família tornara-se um assunto sério e digno de
independente em relação à mãe, a criança passa a atenção. Não apenas o futuro da criança, mas tam-
fazer parte do grupo dos adultos, no qual participa das bém sua simples presença e existência eram dignas
mesmas atividades e freqüenta os mesmos espaços e de preocupação – a criança havia assumido um lugar
faz seu aprendizado para a vida. Não há uma preo- central dentro da família” (p. 164).
cupação com a educação. Conseqüentemente, a Uma das conseqüências dessa preocupação com
transmissão dos conhecimentos prescinde de institui- a educação da criança é a organização da escola nos
ções especializadas e de textos escritos. Em relação moldes mais próximos da que prevalece atualmente,
a isso, Ariès (1981) escreve que “[...] a escola era na ou seja, o inicio da separação dos alunos por idade e
realidade uma exceção [...] A regra comum a todos em classes regulares; a correspondência entre idade
era a aprendizagem” (p. 229). e classe escolar torna-se cada vez mais rigorosa nos
Com o passar do tempo, a situação começa a se anos subseqüentes, ou melhor, “[...] a preocupação
modificar. Ariès (1981, p.162) comenta que “[...] é com a idade se [torna] fundamental no século XIX e
entre os moralistas e os educadores do século XVII em nossos dias”, como afirma Ariès (1981, p. 166).
que vemos formar-se outro sentimento da infância”, No século XIX, uma nova concepção de criança e
ou seja, “o apego à infância e à sua particularidade se de educação se consolida. A infância, encarada como
exprimia [...] por meio do interesse psicológico e da fraqueza que necessita da humilhação para ser me-
preocupação moral”, visando à disciplina e à raciona- lhorada, cede lugar à idéia da criança precisar ser pre-
lidade dos costumes. A criança passa a ser vista como parada para a vida adulta; preparação que exige
imperfeita e, com isso, surge a necessidade de conhe- cuidados e uma formação com disciplina rigorosa e
cê-la melhor para poder corrigi-la e torná-la um “adulto efetiva, sem as surras de antigamente, mas ainda re-
honrado”. A educação, agora nos estabelecimentos correndo a castigos corporais mais suaves. Com isso,
de ensino, torna-se um importante meio de formação a importância moral e social da educação aumenta e
moral e intelectual por meio de uma disciplina rígida a formação metódica da criança em instituições es-
que adota o castigo corporal (até surras) quando ne- pecializadas é adaptada às novas finalidades. A in-
cessário. A preocupação maior é, segundo Ariès, “[...] fância, então, acaba sendo prolongada até quase toda
fazer dessas crianças pessoas honradas e probas e a duração do ciclo escolar. Ariès (1981) assinala que
homens racionais” (p.163). A crescente preocupação “[...] nossa civilização moderna, de base escolar, [é]
moral acaba gerando a idéia da inocência infantil para então definitivamente estabelecida” (p. 233).
“proteger” a criança e, conseqüentemente, as con- A crescente preocupação moral e educativa, a
versas e os contatos físicos associados a assuntos partir do século XVII, faz com que as instituições es-
sexuais passam a ser proibidos para não “corrompê- colares se organizem cada vez mais e que apareça a
la” nessa inocência. forte ligação entre criança, educação e escola. Surge,
Apesar de surgir a preocupação de separar e dis- então, esse novo lugar para a criança. Segundo as pa-
tinguir a criança do adulto, os critérios usados para lavras de Clastres (1991, p. 137), psicanalista francês:
marcar a diferença em relação ao mundo dos adultos [...] esse novo lugar dado à criança tem como
merecem ser destacados. Como bem assinala Ariès efeito cristalizar o conjunto familiar, recentrá-lo
(1981), a diferença começa “[...] pelo sentimento mais em torno dessa nova criança em surgimento, ‘a
elementar de sua fraqueza, que a rebaixava ao nível criança escolar’. Esse deslocamento em nome
das camadas sociais mais inferiores”, ou seja, come- do ideal do ‘adulto aprimorado’ vai dizer respei-
ça pela humilhação; essa “[...] preocupação em hu- to à sociedade em sua totalidade.
milhar a infância para distingui-la e melhorá-la se
atenuaria ao longo do século XVIII” (p.181). Tam- No final do século XIX, a ciência que se desen-
bém nesse século XVIII, o sentimento da criança volve começa a mostrar uma criança mortalmente
ser uma frágil criatura de Deus que precisa ao mes- atingida pelas doenças infecciosas e vítima do regime
mo tempo ser preservada e disciplinada, passa para a escolar. A higiene infantil, então, começa o combate
vida familiar. Além disso, surge também a preocupa- à mortalidade, e os novos conhecimentos começam a
ção com o corpo que goza de boa saúde, ou seja, com questionar os princípios educativos. Inicia-se uma sé-
a higiene e a saúde física da criança. Para apontar o rie de estudos e pesquisas tendo a criança como te-
novo lugar que a criança passa a ocupar na família, mática, ou seja, a criança passa a ser objeto específico
Ariès (1981) escreve: “Tudo o que se referia às crian- de estudo das várias áreas de conhecimento. Um ou-
74 – PSIC - Revista de Psicologia da Vetor Editora, Vol. 5, nº.1, 2004, pp. 72-77
Freud, então, propõe a noção de pulsão (trieb) sexual, freudiano e a linguagem, Lacan (1985) vai afirmar
em que o objeto não é fixo, nem os fins são “naturais” que o inconsciente é “estruturado, tramado, encadea-
e é característica da sexualidade humana. Com a do, tecido de linguagem; e não somente o significante
descoberta da sexualidade infantil, Freud descobre o desempenha ali um papel tão grande quanto o signifi-
corpo erógeno: é o corpo representado investido se- cado, mas ele desempenha ali o papel fundamental”
xualmente; é o corpo representado originário ou a (p. 139).
imagem que se tem do corpo, marcado pela pulsão, Um significante pode produzir várias significações,
“no qual as manifestações somáticas surgem articu- ou seja, uma mesma imagem acústica pode querer
ladas à fantasmática do sujeito e suas vicissitudes” dizer coisas diferentes para sujeitos diferentes; posso
(Cukiert & Priszkulnik, 2000, p. 57). querer dizer uma palavra com determinada significa-
Como conseqüência, a noção de corpo para a Psi- ção, mas quando falo, falo sem saber e sempre mais
canálise tem uma especificidade que merece ser men- do que sei (além do conhecimento consciente), por-
cionada, pois é bem diferente da noção de corpo para tanto ao falar posso estar dando à palavra uma signi-
a Biologia. ficação diferente daquela que realmente queria dar.
O corpo biológico é um corpo objetivado (objeto da Quem ouve, pode dar à mesma palavra uma outra
ciência), um organismo, para ser estudado em termos de significação bem diferente da minha, da qual também
suas funções (digestão, respiração, etc.), do funciona- não tem conhecimento. Essa situação também abala
mento específico dos vários órgãos e seus tecidos, do a ilusão do ser humano de saber perfeitamente o que
funcionamento das células. O corpo para a Psicanálise é está falando, de ter certeza que o outro ser humano
um corpo tecido e marcado pela sexualidade e pela lin- está entendendo plenamente o que está sendo falado
guagem (Priszkulnik, 2000, p. 20). e de ter a convicção que é possível uma comunicação
Freud, portanto, propõe uma nova leitura da cor- sem ambigüidades. A fala tem a característica de ser
poreidade, que acaba oferecendo uma nova leitura da inevitavelmente ambígua.
construção do sujeito humano. Lacan, nas suas formulações, também se refere
A Psicanálise freudiana enfatiza a palavra e o poder ao corpo marcado pela linguagem, o corpo que pode
da palavra. Freud (1926/1976c) destaca isso quando es- ser “tocado” por meio da palavra. Essa idéia da pala-
creve: “Não desprezemos a palavra; afinal de contas, vra poder “tocar” e modificar o corpo, aparece em
ela é um instrumento poderoso; é o meio pelo qual trans- Freud num texto onde ele discorre sobre o tratamento
mitimos nossos sentimentos a outros, nosso método de psíquico. Ele escreve que um leigo sem dúvida acha-
influenciar outras pessoas; as palavras podem fazer um rá difícil compreender de que forma os distúrbios pa-
bem indizível e causar terríveis feridas” (p. 214). tológicos do corpo e da mente podem ser eliminados
A palavra nomeia, ordena, alivia, consola, cura; por ‘meras’ palavras. Ele achará que lhe estão pedindo
chega a criar quando nomeia algo. que acredite em mágica (1905/1972, p. 297).
O poder da palavra e o fato do sujeito humano estar Agora, então, com esses parâmetros – inconscien-
inserido na linguagem e falar merecem de Jacques te, sexualidade, corpo, linguagem – como pensar a
Lacan, um nome de peso no universo psicanalítico, um criança para a Psicanálise?
desenvolvimento teórico considerável. Esse autor, se- A criança que Freud descortina é um sujeito dese-
guindo o espírito da obra freudiana, mostra de forma jante, ela está submetida às leis da linguagem que a
enfática a importância da linguagem para a constitui- determinam, demandando amor e não só os objetos que
ção do sujeito humano, já que somos humanos porque satisfaçam as necessidades. Não é a criança “inocen-
falamos. O inconsciente, como formulado por Freud, te”, aquele ser em quem o “demônio da sensualidade”
se revela na fala, mesmo que o sujeito não queira, e não provoca abalos, inquietações e perturbações.
além de seu conhecimento consciente, ou seja, a lin- A construção desse sujeito humano criança come-
guagem opera fora de nosso controle consciente. Para ça antes mesmo de ela nascer biologicamente. Antes
estudar o discurso humano, já que o humano é um de vir ao mundo, ela já é falada pelos outros, já é mar-
sujeito falante, Lacan (1985) recorre à lingüística e ao cada pelo desejo inconsciente dos pais e ocupa um
signo lingüístico (esse signo comporta duas faces: o lugar no imaginário desses pais (esses pais têm as
significado ou conceito da palavra e o significante ou a marcas dos pais deles, esses últimos têm as marcas
imagem acústica do som material), reexamina o cam- dos respectivos pais e, assim, sucessivamente). Ela é
po da linguagem e centra esse campo sobre o concei- esperada de determinado jeito, já representa algo para
to de significante. Procurando articular o inconsciente um e outro dos pais em função da história de cada um,
76 – PSIC - Revista de Psicologia da Vetor Editora, Vol. 5, nº.1, 2004, pp. 72-77
Pensar na criança implica necessariamente o adulto cados pelo inconsciente (o inconsciente freudiano) e
com suas concepções ou com seus preconceitos em por nossas relações serem mediadas pela linguagem.
relação à infância. Construir um ideal para a criança, O que Freud afinal descortina é uma concepção de
implica necessariamente construir um ideal para o criança muito peculiar, ou seja, “[...] não a criança po-
adulto. Se existe a idéia da criança como “um adulto liciada, educada, disciplinada, e sim a criança visada pelo
em miniatura”, o adulto é o padrão a ser atingido e, gozo, gozo que deixa seus traços no adulto, em seus su-
conseqüentemente, a criança pode ser vista como “in- cessos e seus fracassos, suas perversões ou suas subli-
ferior” enquanto não atingir o padrão esperado. Se a mações” (Clastres, 1991, p.138). Ele postula um sujeito
criança é vista como “uma tábula rasa”, ela é vista que escapa ao controle da educação ao propor uma
como “um pedaço de barro” (algo “menor”), que pre- criança dotada de uma sexualidade perverso-polimorfa.
cisa ser moldado pelo adulto provedor e protetor. Se Desfaz a aura de imaculada castidade erguida ao redor
ela é vista como “inocente”, ela precisa da proteção das crianças, porque se supunha que o estado de pureza
do adulto e da disciplina imposta pelo adulto para não era o seu estado natural, e abala essa idealização da
se deixar corromper pelas tentações do mundo. As- infância. Contesta a concepção de infância como sendo
sim, independentemente de como a criança é vista, um período calmo e tranqüilo ao enfatizar que as crian-
existe o padrão de adulto a ser atingido. Dito de outra ças também precisam achar sentidos para muitas ques-
maneira, o adulto idealiza a criança sem perceber que tões e enigmas que geram muita ansiedade, como “de
também está construindo um ideal para ele; pode ser onde viemos”, “para que estamos aqui”, “para onde va-
um ideal de pai ou mãe, de aluno(a), de professor(a), mos”, “o que é a morte, o sexo, a maldade, a rejeição, o
de trabalhador(a), etc. desejo, o limite, o amor”, ou seja, enfatiza que elas tam-
A Psicanálise, ao trazer um novo discurso sobre o bém vivem conflitos e contradições diante de questões
ser humano, destaca que qualquer relação entre su- essenciais do ser humano diante de si mesmo e dos gran-
jeitos traz à baila desentendimentos, choques entre des mistérios da vida e do universo.
idéias, sentimentos de amor e ódio, culpas, ternura Com o poder de sua obra e com a amplitude e a
mútua, etc., toda a vasta gama de emoções e afetos audácia de suas especulações, Freud abalou e revolu-
que existem em cada um de nós. Conseqüentemente, cionou o pensamento e as vidas de uma era. Com seu
a relação entre sujeitos não existe sem tropeços e es- trabalho, ele contestou e continua contestando tabus
ses tropeços são inevitáveis por sermos sujeitos mar- sociais, culturais, religiosos e científicos.
Encaminhado em 03/05/04, Revisado em 23/06/04, Aceito em 30/07/04
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ariès, P. (1981). História social da criança e da família. Rio de janeiro: LTC.
Chauí, M. (1996). Convite à filosofia. São Paulo: Ática.
Clastres, G. (1991). A criança no adulto. In: J. Miller (Org.), A criança no discurso analítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Cukiert, M., & Priszkulnik, L. (2000). O corpo em Psicanálise: algumas considerações. Psychê, 4 (5), 53-63.
Freud, S. (1972). Tratamento psíquico (ou mental). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 293-327). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1905).
Freud, S. (1974). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 85-119). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1914).
Freud, S. (1976a). O esclarecimento sexual das crianças. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud (Vol. 9, pp. 135-144). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1907).
Freud, S. (1976b). Um estudo autobiográfico. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud (Vol. 20, pp. 13-92). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em [1924 ou 1925]).
Freud, S. (1976c). A questão da análise leiga. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud (Vol. 20, pp. 205-293). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1926).
Lacan, J. (1985). O Seminário Livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Laplanche, J., & Pontalis J. B. (1976). Vocabulário da Psicanálise. Lisboa: Moraes.
Priszkulnik, L. (2000). Clínica(s): diagnóstico e tratamento. Psicologia USP, 11 (1), 11-28.
Sobre autora:
Léia Priszkulnik: Psicóloga Clínica, Psicanalista, Profa. Dra. do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP,
Docente e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do IP-USP.