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Drummond e os vestibulares

Por que Drummond está (e sempre estará) no vestibular? Por sua contribuição vasta, sempre e mais
ainda hoje, para a Literatura Brasileira.
Tendo enraizado seus primeiros livros – Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934) – no
modernismo irreverente e iconoclasta de 1922, Drummond acompanhou, a partir daí, todos os
desdobramentos da literatura moderna, incorporando à sua dicção personalíssima todos os temas e formas
em que se espraiou a poesia brasileira, em mais de meio século. Assim, a poesia de Drummond sintetiza (e
transcende), na multiplicidade de aspectos que abrangeu, a evolução de toda nossa poesia moderna: do
poema-piada à poesia participante; da poesia experimental às formas clássicas; dos exercícios lúdicos ao
lirismo intimista; da poesia de circunstância à poesia metafísica; do poeta social ao autofechamento; do
humanismo solidário ao niilismo; do poeta itabirano ao poeta universal; da “secura” à ternura; de Tânatos
(morte) a Eros (amor); do humorismo ao pessimismo; do moderno ao eterno. Drummond expressou, em
todas as suas vertentes, a sensibilidade moderna, isto é, a experiência existencial do homem da grande
cidade e da sociedade de massa, convertendo-a em alta literatura lírica, englobando a escrita de ruptura
radical e a tradição clássica.
Certamente, o autor de A rosa do povo e de Claro enigma não foi o iniciador do lirismo moderno no
Brasil; sabe-se o quanto ele deve à revolução estética dos primeiros modernistas e às conquistas de 1922.
Seu papel foi antes o de realizar a promessa literária do modernismo de choque, criando uma poesia rica e
substancial, superando os três defeitos maiores da literatura acadêmica de antes de 1922: o servilismo em
relação aos modelos europeus; a alienação no tocante à realidade social, concreta; e a superficialidade
intelectual.
A poesia acadêmica, anterior a 1922, era bem afastada tanto do Brasil quanto de seu século. Assim,
a primeira grande contribuição do verso drummondiano consistiu em apreender o sentido profundo da
evolução social e cultural de seu país. A partir de sua própria situação de filho de fazendeiro emigrado para
a grande cidade, justamente na época em que o Brasil começava a sua metamorfose de país agrário e com
predominância da população em zona rural para sociedade urbano-industrial, Drummond dirigiu o olhar do
lirismo para o significado humano de estilo existencial moderno. Desde então, tornou sua escrita
extraordinariamente atenta aos dois fenômenos de base desta mesma evolução histórica: o sistema patriarcal
e a sociedade de massa. Sua abertura de espírito, sua sensibilidade à questão social, sua consciência da
História impediram-no de superestimar as formas tradicionais de existência e de dominação, mas, ao mesmo
tempo, ele se serviu do “mundo de Itabira” – símbolo do universo patriarcal – para detectar, por contraste,
os múltiplos rostos da alienação e da angústia do indivíduo moderno, esmagado por uma estrutura social
cada vez menor em relação ao humanismo.
Profundamente enraizada numa época de transição, a mensagem poética de Drummond se elevou,
dessa forma, ao nível das significações universais. Nacional por sua linguagem e por sua inspiração, sua
obra nada tem de exótica; não é sequer “regionalista”, mesmo que se trate de um escritor importunado por
suas origens. Além de universal, a poesia de Drummond é muito atual. Poucos líricos de nosso tempo terão
mostrado tanta fidelidade aos movimentos essenciais do espírito moderno, às suas inquietações,
desconfianças, perplexidades, críticas, com legítimo desapreço pelos clichês ideológicos e pelas
pseudofilosofias. Nesse sentido, o humor de Drummond – na aparência inclinado ao niilismo – não passa,
no fundo, de uma estratégia intelectual radicalmente lúcida e liberadora.
Drummond é um dos primeiríssimos poetas brasileiros e o mais importante de sua época quanto ao
questiona - mento filosófico da vida, do homem e do mundo, constituindo uma lírica filosófica densa, ampla
e inesgotável. Cantor da terra e da cidade, analista sutil da criação poética, moralista, no sentido de análise
da condição humana, fascinado pelas paixões do homem e pela ordem do mundo, ele é, depois de Machado
de Assis – com quem divide tanto o humor desiludido quanto a atitude lúdica no tocante à forma e ao verbo
–, o principal exemplo, na poesia brasileira, da obra literária voltada à problematização da vida. “A única
função válida e legítima de um texto literário, pelo menos desde a Revolução Industrial, é justamente a
problematização do real”, diz José Guilherme Merquior, que temos seguido neste passo; e conclui: “Como
todo grande poeta (e não sendo senão poeta e somente poeta), Carlos Drummond de Andrade é muito mais
que um bom escritor. É um grande praticante da poesia como jogo do conhecimento e da sabedoria”
Ressalte-se que Drummond também foi cronista.

Os temas drummondianos
Ao organizar, em 1962, uma antologia, Drummond demarcou a área temática de sua poesia,
distribuindo-a pelos diversos motivos temáticos, considerados “pontos de partida ou matéria da poesia”.

I – O Indivíduo: “Um eu todo retorcido”


II – A Terra Natal: “Uma província esta”
III – Família: “A família que me dei”
IV – Amigos: “Cantar de amigos”
V – O Choque Social: “Na praça de convites”
VI – O Conhecimento Amoroso: “Amar-amaro”
VII – A Própria Poesia: “Poesia contemplada”
VIII – Exercícios Lúdicos: “Uma, duas argolinhas”
IX – Uma visão, ou Tentativa, da Existência: “Tentativa de exploração e de interpretação do estar-
no-mundo”

Esses temas se entrelaçam desde Alguma poesia (1930) a Amor natural (1988). Em alguns momentos,
há predominância de determinados temas e atitudes, mas não se pode propor uma segmentação temática
rigorosa, sem se incorrer em grave mutilação e intolerável reducionismo.

As fases da poesia drummondiana

Sob diversas nomenclaturas, conforme o viés crítico e com algumas divergências inconciliáveis,
reconhecem-se três ou quatro etapas na evolução da lírica de Drummond, que acompanham de perto a
evolução da própria poesia moderna brasileira, por mais de meio século. Didaticamente, com os riscos de
embaralhamento do conjuntural e do estrutural na obra de Drummond, alguns livros escolares reconhecem
quatro divisões, geralmente estipuladas como “perfis” de sua poesia.

1º perfil - Poesia irônica (1925-1940)


Marcado pela influência da atitude irreverente dos modernistas de 1922, o humor corrosivo de
Drummond revela uma forma mineiramente cautelosa, desconfiada, pessimista e reservada de refletir. À
maneira de Oswald de Andrade e de Mário de Andrade (confessadamente o “mestre” do poeta mineiro),
Drummond realiza o poema-piada e assume uma certa atitude de “não-me-importismo” irônico. Esses
primeiros poemas, dizia Drummond: “traduzem uma grande inexperiência do sofrimento e uma deleitação
ingênua com o próprio indivíduo”.
Nessa categoria de “poesia irônica” incluem-se Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934).
Deve-se objetar que o humor, a ironia, a escavação poética do cotidiano, o compromisso com o real,
a consciência da “vida besta”, da estupidez do homem e do mundo, a alternância humor/seriedade,
solidariedade/autofechamento e a estilística da repetição não são temas e atitudes privativas dessa fase, mas
se desdobram por toda a sua obra, com maior ou menor intensidade. Não são livros “inferiores”: integram-
se aos demais e ganham importância quando se lhes descobrem os elementos exegéticos vitais para a
compreensão do conjunto.

2º perfil - Poesia social (1940-1945)


Como poeta de ação, a lírica participante de Drummond projeta-se principalmente nos livros
Sentimento do mundo (1940), José (1942) e A rosa do povo (1945). A luta contra o medo (“que esteriliza
os abraços”), contra o convencionalismo e contra a consciência de própria impossibilidade de luta (“eu
tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”) fundamenta-se na adesão ao real, no compromisso com
o outro.
Drummond é aqui o poeta de “Mãos dadas”, que se solidariza com o homem de seu tempo, vítima da
guerra e da ditadura Vargas. Para ele, só o real existe e é estupidamente errado. Manuel Bandeira buscou
na Pasárgada o consolo ou transcendência; Jorge de Lima amparou-se no Apocalipse das sugestões bíblicas,
no projeto de “restaurar a poesia em Cristo”; Vinicius de Moraes mergulhou em Eros, na paixão –
Drummond atirou-se na percepção prática do mundo para denunciar a estupidez, a instabilidade, a miséria
moral, mental e material. Para o poeta itabirano, nessa etapa de sua obra, o mundo é errado, não por acaso,
como queriam os existencialistas, mas porque assim o fazem.
José e A rosa do povo representam um notável amadurecimento técnico; conservando a originalidade
já conquistada nos primeiros livros, ampliam-se as opções formais, especialmente na composição do poema
longo, que Mário de Andrade já tentara e que Drummond realiza com maestria, contornando os riscos da
poesia declamatória e “demagógica” pela lucidez técnica do artista que dominou definitivamente seu
instrumento de trabalho: a palavra. E, sobre a palavra, Drummond lançou aqui o seu olhar penetrante, numa
densa posição metalinguística, num metalirismo agudo de que resultaram “O lutador”, “Consideração do
poema” e “Procura da poesia”.

3º perfil - Poesia metafísica (1946-1958)


Novos poemas, Claro enigma, Fazendeiro do ar e A vida passada a limpo constituem uma etapa
específica da poesia de Drummond, uma segunda maturidade, um segundo apogeu, em nada inferior ou
menos complexo que o canto solidário de A rosa do povo. A crítica mais atualizada já superou a falsa
oposição que alguns postulavam entre a poesia social e a poesia metafísica, entre o Drummond participante
e o Drummond tido como alienado aos problemas imediatos. Essa oposição foi supervalorizada por certa
crítica preconceituosa, que cobra e julga ideologicamente numa atitude de banimento, de “cancelamento”
e, em vez de descrever, prefere vociferar preferências políticas.
Nesses livros que formam o “quarteto metafísico” (segundo José Guilherme Merquior), o lirismo
filosófico reveste-se de um estilo “clássico”, de um “classicismo moderno” ou, antes, de um “modernismo
classicizado”.
O abandono da óptica sociológico-realista e da representação social-concreta pelo autofechamento
abstrato provocou manifestações decepcionadas da crítica marxista que tinha se empolgado com Sentimento
do mundo, José e A rosa do povo e que se mostrou pouco sensível à profundidade dessa nova fase de
Drummond. Esse tipo de julgamento submete-se aos equívocos de uma estética panfletária, sempre incapaz
de aceitar a independência intelectual da literatura que não é maniqueísta.
Drummond, no período pós-1946, teve alguns entreveros com o maniqueísmo de alguns intelectuais
engajados, intolerantes, que, em nome da divisa segundo a qual os fins justificam os meios, transgrediam a
ética e criavam constrangimentos insuportáveis ao caráter reto do poeta mineiro; isso aguçou sua antiga
antipatia ao fanatismo ideológico. Foi o que ocorreu com a eleição da mesa diretora da Associação
Brasileira de Escritores em 1949. Drummond foi tachado de “traidor”, “reacionário”. Nessa eleição, o autor
de Alguma poesia apoiou os que defendiam a isenção ideológica, opondo-se à chapa que propunha o
proselitismo político.
Acresce que o recrudescimento da “guerra fria” também colaborava para o desencanto, para a
negatividade, para o autofechamento do poeta. Drummond concentra-se agora na escavação do real,
mediante um processo de interrogações e negações que acabam revelando o vazio à espreita do homem. O
mundo define-se como “um vácuo atormentado”, abolindo toda a crença, negando toda a esperança.
É importante enfatizar que o estilo “clássico” de Claro enigma nada deve ao formalismo e ao
neoparnasianismo estetizante da Geração 45. Enquanto o classicismo realizado por Drummond é pleno de
invenção, de originalidade e de densidade intelectual, o neoparnasianismo da Geração 45 é estilisticamente
reacionário, prenhe de vulgaridade e nada tem de moderno. Exclua-se, é claro, da Geração 45, o poeta João
Cabral (herdeiro declarado de Drummond), que, apesar de contemporâneo dessa geração, se afastou da
linguagem afetada e pedante.

4º perfil - Poesia objetual (1962-1968)


Lição de coisas representa uma ruptura em relação à poesia da fase anterior. O próprio Drummond
procurou explicar a mudança:

O poeta abandona quase completamente a forma fixa que cultivou durante certo período,
voltando ao verso que tem apenas a medida e o impulso determinados pela coisa poética a
exprimir. Pratica, mais do que antes, a violação e a desintegração da palavra, sem entretanto
aderir a qualquer receita poética vigente.

Enfim, há o poema-objeto.
A atitude lúdica, a opção concreto-formalista que Drummond realiza em Lição de coisas, é uma
radicalização de processos estruturais que sempre marcaram seu modo de escrever. A opção pelo prosaico,
pelo irônico, pelo antirretórico, pelo antilirismo intencional já tinha sido antecipada, nos livros iniciais de
Drummond, pela exploração dos elementos materiais da palavra (a letra impressa, o som, a disposição
espacial, o significante). Essas atitudes correm paralelamente ao trabalho experimental das vanguardas da
década de 1950 – Concretismo, Poema-Processo, Poesia Práxis –, mas isso não representou adesão do poeta
a nenhuma dessas vanguardas.
O processo básico é a linguagem nominal (“fazer as coisas e as palavras – nomes de coisas – boiar
nesse vácuo sem bordas a que a interrogação reduziu os reinos do ser”), através da desintegração do
vocábulo. O experimentalismo, a ruptura com a sintaxe, a adoção de frases nominais, a exploração dos
estratos sonoros (através das aliterações, assonâncias, coliterações, ecos, onomatopeias, rimas internas), a
exploração do visual, os jogos tipográficos e a atitude lúdica diante da palavra-coisa são pressupostos da
poética drummondiana desde o primeiro livro: correm na mesma direção do Concretismo, mas nada devem
a ele. Aliás, já estavam propostos desde a década de 1940. Basta ler este fragmento de Confissões de Minas:

À medida que envelheço, vou me desfazendo dos adjetivos. Chego a ver que tudo se pode
dizer sem eles, melhor que com eles. Por que “noite gélida”, “noite solitária”, “profunda
noite”? Basta “a noite”. O frio, a solidão, a profundidade da noite estão latentes no leitor,
prestes a envolvê-lo, à simples provocação dessa palavra “noite”.

Momento final - Os últimos livros de Drummond (1968-1987)


A partir de Lição de coisas, o lirismo de Drummond não assume uma tendência definida ou
unidirecional, o que não quer dizer que decaia. Mantendo-se nos elevados patamares a que se alçou em A
rosa do povo, Claro enigma e Lição de coisas, Drummond reelabora alguns temas e formas dos primeiros
livros, acrescenta algumas vertentes novas: a poesia de circunstância e o erotismo. Boitempo é todo
consagrado à memória de Itabira, de Minas, da infância, da puberdade e da família, para “ludibriar os
fantasmas itabiranos”. A ironia e o humor, opondo-se ao patético, esfriam a temperatura emocional do
diálogo do “homem triste de Itabira”, do “fazendeiro sem fazenda”, do “fazendeiro do ar”, com suas
origens. A sociedade patriarcal e a infância, o olhar sociológico e a lírica individual se entrecruzam: o poder
dos fazendeiros, a casa senhorial, os ecos da escravidão e a política provinciana emolduram os jogos, os
medos, os animais, a escola, os primeiros livros, a morte e, mais tarde, o erotismo, e também temas da
infância e adolescência que o poeta revisita com uma ternura temperada de ironia. O gauche, o
desajeitamento existencial, deita raízes na infância rural.
A Falta que ama retoma o lirismo filosofante e a reflexão existencial. Esse livro refloresce o erotismo.
Menino antigo e Esquecer para lembrar inscrevem-se na mesma linha de Boitempo, fundindo a memória,
a ficção e a reflexão.
A Paixão medida, Corpo, Amar se aprende amando e Amor natural representam o último lirismo de
Drummond, marcado pela libertação da libido, pelo erotismo, já exorcizado do recato, da culpa e do
abafamento imposto pela infância reprimida. Observa José Guilherme Merquior que, no entardecer da vida,
o poeta já não mais aspira à felicidade ascética, fria, na silenciosa imobilidade do nirvana, já não quer se
reverter à mãe-terra. O que explode, na direção oposta, é o erotismo, Eros ultrapassando Tânatos, a morte.

Esquema didático - A dialética “Eu vs. Mundo”

Outra visão que já se incorporou à fortuna crítica de Drummond é a proposta por Affonso Romano
de Sant’Anna, fundada na crítica do estofo estruturalista e em métodos estatísticos, na pesquisa do “caráter
sistêmico” da construção poética drummondiana.
Apresentação desse estudo:

A visão segmentada da poética drummondiana, seja por aqueles que mal viram o conjunto,
seja por aqueles que se retiveram em pormenores, deve-se ao fato de não se ter percebido
um dado básico: a estrutura dramática dessa obra, onde há nitidamente um personagem
(o poeta gauche) disfarçado em heterônimos (José, Carlos, Carlito, K., Robinson Crusoé
etc.), descrevendo uma ação no tempo e no espaço, concebidos como um continuum (=
concebidos como uma sequência). O poeta se diversificou em egos auxiliares dentro da
própria cena, para conhecer os múltiplos aspectos de seu Ser, mas ao se disfarçar em
vários atores, não deixa nunca de ser espectador e crítico de seu próprio drama existencial.

O espetáculo do teatro do mundo fascina esse personagem-autor de linhagem existencialista, com


alguns traços do homem barroco. Os três atos do drama existencial do gauche (= desajeitado) poderiam ser
resumidos como três momentos inseparáveis de sua trajetória:

EU > MUNDO EU < MUNDO EU = MUNDO


Observa-se aí a fidelidade à oposição básica Eu versus o Mundo, que é a síntese de um vasto sistema
de oposições da obra: claro x escuro, província x metrópole, essência x aparência, tudo x nada, esquerda x
direita, instante x eternidade, construção x destruição, humor x seriedade, solidariedade x autofechamento,
vida x morte. Aquela oposição funda mental – Eu versus o Mundo – se poderia chamar em linguagem mais
técnica e estruturalista de modelo fundamental; e, às suas três derivações, modelos parciais, de cuja
interação resulta o caráter sistêmico de sua poesia.

I. Eu > mundo

Mundo mundo vasto mundo


mais vasto é meu coração.
(“Poema de Sete Faces” – Primeiro poema de Alguma poesia)

Na primeira etapa, o personagem está postado num canto escuro, imóvel e torto, contemplando a cena
a distância e assumindo uma posição predominantemente irônica e egocêntrica. Vê os conflitos, reflete
sobre a “vida besta”, a província, a família, numa posição de equidistância, de irreverência. O sentimento
é contido, projetando-se num texto objetivo, seco e de versos curtos e descarnados, sem transbordamento
emocional. Refletindo a irreverência e a atitude iconoclasta dos modernistas de 1922, dos quais se confessa
seguidor, expande-se em inúmeros poemas-piada. É a fase de Alguma poesia e Brejo das almas.

II. Eu < mundo

Não, meu coração não é maior que o Mundo.


É muito menor.
(“Mundo Grande”, in Sentimento do Mundo)

Na segunda etapa, o personagem já se deslocou do canto-província e, à medida que a enorme realidade


pesa sobre seus ombros, vai-se sentindo diminuto e quebrantado. Descobre o tempo-espaço, locomove-se
das montanhas fechadas de seu Ser para o mar do tempo; expõe-se ao desgaste, debate-se entre o claro e o
escuro das horas, descobre as mil e uma dobras de aparente divisão presente-passado-futuro. Inicia, então,
uma “viagem” pelo “secreto latifúndio” de seu Ser, depois de se ter percebido como um “Ser para a morte”.
O “sentimento do mundo” desabrocha, mascarado pela solidão, pela impotência do homem diante de
um mundo frio que o reduz a objeto. O aprofundamento da prospecção do “eu” corre paralelamente com a
sondagem do mundo, com a poesia social, focalizando a política, a guerra e o sofrimento do homem, com
o qual se solidariza. Sentimento do mundo, A rosa do povo e José configuram essa etapa.

III. Eu = mundo

Mas as coisas findas


Muito mais que lindas
essas ficarão.
(“Memória”, in Claro enigma)

Nessa terceira etapa, o poeta atinge o equilíbrio: sua poesia converte-se numa sistematização da
memória, numa maneira de se reunir através do tempo. O sujeito (gauche), que vinha interagindo com o
objeto (mundo), encontra o equilíbrio (relativo). A ironia inicial, que se entretinha no simples humorístico,
desenvolve sua dialética latente e transmuda-se num exercício metafísico, com um tom barroco de
desconsolo. Nessa etapa, o poeta já realizou grande parte de sua travessia no mar do tempo: experimentou
a morte alheia e sua morte parcial e aprendeu a recriar sua vida no plano poético da memória; sujeito e
objeto se interpenetram dialeticamente. O lirismo se torna mais autorreflexivo, filosófico. Dá-se a epifania
máxima de sua vida-obra e a “Máquina do Mundo”, famoso poema de Claro enigma, se abre, oferecendo-
lhe a possível solução de todos os enigmas, mas o eu lírico recusa-a. A poesia metafísica e a poesia objetual
que aparecem, respectivamente, em Claro enigma e Lição de coisas revelam, naquele, a busca metafísica,
como se nota nos processos de interrogação e negação, e, neste, a experimentação linguística e poética, que
retomam e ampliam, na plena maturidade expressiva e reflexiva do poeta, os temas e formas anteriores
indiciados na década de 30.
O primeiro lirismo de Drummond

Das diversas linhas interpretativas sobre a obra de Drummond, opta-se pela de José Guilherme
Merquior, em Verso Universo em Drummond. É a mais eclética e a que melhor se encaixa à diversidade da
obra do poeta mineiro, que não se pode acomodar dentro dos limites rígidos de abordagens específicas
(estruturalista, formalista, impressionista, marxista), que marcam as tendências de nossa produção
acadêmica. Municiado por uma larga erudição, mas sem pedantismo, num estilo límpido e agradável,
Merquior analisa a produção drummondiana de 1925 a 1968, na obra que resultou de sua tese de
doutoramento, aprovada pela Sorbonne, em junho de 1972. Aqui constam algumas citações e com o
acréscimo de algumas anotações aos textos da antologia, sem prejuízo do arcabouço geral da obra de
Merquior, a quem serve de indicação como leitura extra (para alunos interessados no aprofundamento,
muito além do que se possa exigir no vestibular):

Num esboço autobiográfico encomendado pela Revista Acadêmica, Drummond nos dá uma
interpretação sucinta de sua evolução lírica até Sentimento do mundo. Segundo ele, Alguma poesia traduz
uma “deleitação ingênua” no tocante ao indivíduo; em Brejo das almas, o individualismo se exacerba, mas
ao mesmo tempo é submetido a uma visão crítica; enfim, Sentimento do mundo resolve “as contradições
elementares” da poesia drummondiana.
A dedicatória de Alguma poesia – “a Mário de Andrade” – designa de forma inequívoca a corrente
literária a que se prendia Drummond: o Modernismo da fase heroica (1922-30), embora o poeta se situe na
Segunda Geração Modernista (1930-45). A linguagem poética drummondiana não se converteu – como a
de Manuel Bandeira, Jorge de Lima ou Cassiano Ricardo – à estética modernista: ela nasceu modernista.
Várias indicações já se encontram, no jovem Drummond, que o ligam à literatura de vanguarda:
a) a versificação variada, herética, de seus poemas;
b) o papel do humor (até o poema-piada);
c) a frequência com que são tratados os problemas humanos numa ótica em que há o efeito do
estranhamento poético.
d) a escrita mesclada (correlato estilístico da ótica dessacralizadora), bastante permeável às
associações surrealistas;
e) finalmente, o uso de “efeitos de distanciamento” testemunha uma concepção não empática,
antilírica.

A gama temática da primeira poesia de Drummond compreende, sobretudo, a figuração humorístico-


realista da vida cotidiana, as recordações da vida da província e os quadros críticos explícitos ou tácitos na
erosão dos valores estabelecidos, dos clichês morais do establishment burguês e brasileiro. Os poemas
centrados em estados de alma individuais e o lirismo erótico se combinam, muitas vezes, com as linhas
temáticas que acabamos de enumerar, o que leva à despetrarquização do poema de amor e a toda uma
estratégia desidealizante na apresentação lírica do eu.
O polo subjetivo do quadro existencial dos dois primeiros livros (Alguma poesia e Brejo das almas)
é o motivo do gauche (palavra francesa que significa inadaptado, esquisito, esquerdo, avesso). O polo
objetivo é o motivo da “vida besta” num mundo sem sentido.
Em sua dimensão mais íntima, a poesia da vida cotidiana emerge como uma interpretação artística da
existência do homem. O eu gauche de Drummond revelará uma postura muito refratária às alienações do
estilo existencial contemporâneo, pois a experiência traumatizante do jovem fazendeiro, burocratizada
posteriormente nas capitais, e a ambivalência dos sentimentos do “itabirano”, atraído pela urbs viciosa e
inumana e, ao mesmo tempo, desgostoso dela, predispuseram-no a apreender em profundidade o sentido
psíquico e moral do destino do homem moderno: a tensão. Ora, o conteúdo sociológico do lirismo
drummondiano é tanto mais rico pelo fato de sua aventura pessoal – o filho do fazendeiro tornado burocrata
na grande cidade – coincidir com a evolução social do Brasil. E, com efeito, é em torno da década 1920-30
que se inicia a modernização da sociedade brasileira. Só nessa época, as estruturas sociais e culturais do
velho colosso agrário e patriarcal começam a ceder, irreversivelmente, à pressão das classes urbanas,
concentradas principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, cada vez mais povoadas e poderosas.
A poética do jovem Drummond repousa na equação poesia = vivência. A ideia clássica e ao mesmo
tempo contemporânea de que a poesia é antes de tudo arte ainda não tem, aos olhos do poeta, maior
significação (o que não o impede de compor em outro padrão estético, mais formal e sem rupturas, seus
versos). A poesia é captar o acontecimento; não o dos jornais, bem entendido, mas o acontecimento
verdadeiramente humano: a revelação súbita das violências da vida, ou pelo menos do sentido oculto de
seu curso “normal”. Mas eis que o poeta, gauche por maldição, de um “anjo torto” e rural, logo descobre
“que esta vida não presta” (“Epigrama para Emílio Moura”)
Individualista, ele cultiva, portanto, a evasão, mesmo em se tratando de fugas emolduradas por essa
“vacuidade do ideal”, característica da literatura moderna. Não obstante, no terceiro livro, com o advento
do “sentimento do mundo”, o individualismo é renegado; há uma ética do engajamento – que, entretanto,
não exclui a solidão. É então que o poema drummondiano se afasta do humor ambíguo. Enquanto um verso
livre bem maleável substitui os metros curtos ou de maiores extensões ritmadas de Alguma poesia e de
Brejo das almas, os “efeitos de distanciamento” do estilo mesclado dão lugar a uma visão patética que,
apesar de bastante discreta e contida, nem por isso se afasta menos da perspectiva estranha dos livros
precedentes. Estas vias estilísticas – Modernismo “nu e cru”, de ruptura (Alguma poesia, 1930), e
Modernismo de tendência social (Sentimento do mundo, 1940) – irão desembocar em seguida, com grandes
modificações, na obra-prima de estilo maduro que é A rosa do povo (1945).

Alguma poesia (1930)

Esta obra, com 49 poemas, reúne a produção em verso desde 1925, por vezes disseminada em jornais
e revistas literárias do primeiro tempo modernista, como ocorreu com o poema “No meio do caminho”,
impresso na revista mais radical do Modernismo paulistano — Revista de Antropofagia (1928-1929) –, da
qual Drummond foi colaborador esporádico.
Alguns comentários:

Sobre “Poema de sete faces”


O termo “gauche” deriva do francês, adjetivo que significa “sem jeito”, desajeitado, indivíduo
desajustado, à esquerda dos acontecimentos. É a palavra em que se cristalizou a essência da personalidade
estética do poeta e que sintetiza sua postura em face de si e do mundo. A perspectiva estranha da primeira
estrofe apoia-se na comicidade, mas não elimina a consideração séria, problemática do mundo. Drummond
se vê como inadaptado incompreendido, ridículo, maldição de um obscuro anjo torto. O eu lírico é um
pobre coitado, fraco, distante dos outros (versos 13 a 20).
O poema não tem um desenvolvimento lógico. A descontinuidade é uma característica do
simultaneísmo cubofuturista, que Mário de Andrade chamava "polimorfismo". A sucessão de imagens e
ideias é imprevisível: o retrato do gauche (versos 1 a 3) vem seguido de uma tomada de rua (versos 4 e 5),
através de uma prosopopeia irônica, que é seguida de uma notação da tarde (versos 6 e 7), da cena do bonde
(versos 8 a 10), do autorretrato (versos 13 a 17) e assim sucessivamente, como uma colagem cubista. Outro
procedimento importante é a repetição da palavra “mundo” por seis vezes (versos 21 e 24). A “estilística
da repetição” (constante em Drummond) visa à apreensão do objeto poético e, nesse caso, também reforça
a ironia da rima.
O antilirismo intencional também está presente: observe que os versos de 18 a 21 (com apóstrofes
“Meu Deus” e “Mundo mundo vasto mundo”) criam um crescendo emocional, subitamente truncado no
verso 23 (as rimas não são soluções existenciais — condenação ao esteticismo, ao beletrismo neoparnasiano
da Belle Époque). Isso é comum em Drummond: quando o poema começa a resvalar para o
sentimentalismo, para a emoção solta, a visão crítica do poeta interrompe o crescendo lírico, pela
interposição do humor corrosivo, do antilirismo.
O poema é composto em versos livres, não metrificados. Mas, em alguns versos (4 a 7, por exemplo),
a métrica permanece. Drummond vale-se de um ritmo muito elástico, que vai da regularidade canônica à
dissonância áspera. Não é uma poesia para ser cantada; a rigor, não é sequer poesia para ser falada — é
antes um texto para ser lido.
Observe que os elementos de conotação cômica (versos 1, 4-5, 21-25) não chegam a suprimir a atitude
angustiada, explícita na apóstrofe dos versos 18 e 21, mas na verdade subentendida em todo o poema, na
problematização dos costumes (2a e 3a estrofes), no contraste entre a seriedade burguesa e a debilidade do
eu lírico (versos 13-20), na afirmação final do “coração” separado do “mundo” (versos 24-25) e, enfim, no
epílogo de expansão etílico-sentimental. Instala-se uma ambiguidade entre o riso e a preocupação, entre a
comédia e o problema vivido, ambiguidade que o poema se inclina antes a explorar que a resolver.
Sobre “Infância”: Robinson Crusoé: protagonista do romance homônimo de Daniel Defoe, escrito
em 1719, personagem náufrago que vive numa ilha. A infância itabirana vai reaparecer em quase toda a
obra de Drummond, especialmente em Boitempo. A ternura pela terra é aqui versada de forma bem
modernista, em versos livres e imagens soltas.

Sobre “Construção”: O despojamento desse poema, centrado na vida cotidiana (retratada por flashes
de fotos), lembra a simplicidade de Manuel Bandeira. As imagens (de forma cubista, uma em cada verso)
sucedem-se em comparação ou símile (verso 1) e prosopopeia (verso 5). O eu lírico se ausenta do texto.

Sobre “Toada do amor”: O tratamento do tema amoroso nessa toada é típico da irreverência
dessacralizadora do Primeiro Tempo Modernista e se aproxima do poema-piada: “amor cachorro bandido
trem”. O lirismo drummondiano é sempre contido pela ironia, pelo antilirismo; salvo nos últimos livros do
poeta, em que Eros irrompe com toda a força. Em “Toada do Amor”, há um lirismo ausente de ternura, de
idealização de confissões amorosas, empregando-se vocábulos populares, distantes do tom solene dedicado
a esse tema. Os versos que fecham o poema pertencem a um provérbio ou frase feita do coloquial mineiro,
promovendo como efeito ao fim do texto um rompimento da tensão lírica dos versos anteriores.

Sobre “Política literária”: Poema-piada ironizando a “hierarquia” poética. O tom de piada, gaiato,
não oculta, porém, o sentido crítico à literatura inútil, provinciana, ainda quando urbana, da roda vazia dos
cafés, com discurso afetado, vazio e pretensioso.

Sobre “Sentimental”: A mistura da visão humorística e surrealista sobre a existência cotidiana é a


marca desse poema em versos livres.

Sobre “Poesia”: O metalirismo, metapoesia, ou poesia metalinguística é a reflexão sobre a própria


poesia. Nesse texto, Drummond parece ainda preso a uma concepção “romântica” do exercício poético.

Sobre “Cidadezinha qualquer”: A reminiscência da infância itabirana em Alguma poesia e Brejo


das almas vem sempre acompanhada da ironia, do ressentimento. O poeta não tem nenhuma indulgência
com a “vida besta” ou interiorana.

Sobre “Quadrilha”: O título alude à dança popular, em que os pares entram em cena encadeados,
mas alternam-se como ocorre no poema. O poema-piada, em versos livres, é uma desvalorização irônica
do casamento. A única que se casou foi a que não amava ninguém — Lili. O nome de seu marido, J. Pinto
Fernandes, sugere que Lili se casou por interesse, sem intimidade (observe que J. Pinto Fernandes lembra
pessoa jurídica, firma, tem status para o casamento patriarcal).

Sobre “Família”: A enumeração das coisas e dos seres que compõem o cotidiano mineiro permite o
efeito de distanciamento com que o poeta focaliza o “quadro” realista. A montagem, por livre associação
de imagens e ideias, retoma a técnica cubista.

Sobre “Anedota búlgara”: Os germens da poesia social participante são aqui recobertos pelo humor
corrosivo do poema-piada. Ironiza-se o absurdo da banalidade do mal.

Sobre “Balada do amor através das idades”: O falar coloquial, antigramatical, é incorporado com
frequência na primeira fase da poesia drummondiana e modernista. Boxo: neologismo derivado do verbo
boxear, lutar boxe. A sátira à modernidade é evidente na alusão aos modismos hollywoodianos, aos clichês
do cinema. O amor, até a maturidade do poeta, será uma temática recorrente, revisitada com olhos que vão
da pura negação à ironia e da cautelosa reflexão ao império erótico dos sentidos.

Sobre “Cota zero”: Esse poema lembra os poemas-minuto de Oswald de Andrade. O poeta ironiza
a dependência do homem à tecnologia, como se parar o automóvel causasse a impressão de se ter cessado
a vida. São fenômenos da mesma grandeza e natureza: vida e tecnologia.

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