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Por que Drummond está (e sempre estará) no vestibular? Por sua contribuição vasta, sempre e mais
ainda hoje, para a Literatura Brasileira.
Tendo enraizado seus primeiros livros – Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934) – no
modernismo irreverente e iconoclasta de 1922, Drummond acompanhou, a partir daí, todos os
desdobramentos da literatura moderna, incorporando à sua dicção personalíssima todos os temas e formas
em que se espraiou a poesia brasileira, em mais de meio século. Assim, a poesia de Drummond sintetiza (e
transcende), na multiplicidade de aspectos que abrangeu, a evolução de toda nossa poesia moderna: do
poema-piada à poesia participante; da poesia experimental às formas clássicas; dos exercícios lúdicos ao
lirismo intimista; da poesia de circunstância à poesia metafísica; do poeta social ao autofechamento; do
humanismo solidário ao niilismo; do poeta itabirano ao poeta universal; da “secura” à ternura; de Tânatos
(morte) a Eros (amor); do humorismo ao pessimismo; do moderno ao eterno. Drummond expressou, em
todas as suas vertentes, a sensibilidade moderna, isto é, a experiência existencial do homem da grande
cidade e da sociedade de massa, convertendo-a em alta literatura lírica, englobando a escrita de ruptura
radical e a tradição clássica.
Certamente, o autor de A rosa do povo e de Claro enigma não foi o iniciador do lirismo moderno no
Brasil; sabe-se o quanto ele deve à revolução estética dos primeiros modernistas e às conquistas de 1922.
Seu papel foi antes o de realizar a promessa literária do modernismo de choque, criando uma poesia rica e
substancial, superando os três defeitos maiores da literatura acadêmica de antes de 1922: o servilismo em
relação aos modelos europeus; a alienação no tocante à realidade social, concreta; e a superficialidade
intelectual.
A poesia acadêmica, anterior a 1922, era bem afastada tanto do Brasil quanto de seu século. Assim,
a primeira grande contribuição do verso drummondiano consistiu em apreender o sentido profundo da
evolução social e cultural de seu país. A partir de sua própria situação de filho de fazendeiro emigrado para
a grande cidade, justamente na época em que o Brasil começava a sua metamorfose de país agrário e com
predominância da população em zona rural para sociedade urbano-industrial, Drummond dirigiu o olhar do
lirismo para o significado humano de estilo existencial moderno. Desde então, tornou sua escrita
extraordinariamente atenta aos dois fenômenos de base desta mesma evolução histórica: o sistema patriarcal
e a sociedade de massa. Sua abertura de espírito, sua sensibilidade à questão social, sua consciência da
História impediram-no de superestimar as formas tradicionais de existência e de dominação, mas, ao mesmo
tempo, ele se serviu do “mundo de Itabira” – símbolo do universo patriarcal – para detectar, por contraste,
os múltiplos rostos da alienação e da angústia do indivíduo moderno, esmagado por uma estrutura social
cada vez menor em relação ao humanismo.
Profundamente enraizada numa época de transição, a mensagem poética de Drummond se elevou,
dessa forma, ao nível das significações universais. Nacional por sua linguagem e por sua inspiração, sua
obra nada tem de exótica; não é sequer “regionalista”, mesmo que se trate de um escritor importunado por
suas origens. Além de universal, a poesia de Drummond é muito atual. Poucos líricos de nosso tempo terão
mostrado tanta fidelidade aos movimentos essenciais do espírito moderno, às suas inquietações,
desconfianças, perplexidades, críticas, com legítimo desapreço pelos clichês ideológicos e pelas
pseudofilosofias. Nesse sentido, o humor de Drummond – na aparência inclinado ao niilismo – não passa,
no fundo, de uma estratégia intelectual radicalmente lúcida e liberadora.
Drummond é um dos primeiríssimos poetas brasileiros e o mais importante de sua época quanto ao
questiona - mento filosófico da vida, do homem e do mundo, constituindo uma lírica filosófica densa, ampla
e inesgotável. Cantor da terra e da cidade, analista sutil da criação poética, moralista, no sentido de análise
da condição humana, fascinado pelas paixões do homem e pela ordem do mundo, ele é, depois de Machado
de Assis – com quem divide tanto o humor desiludido quanto a atitude lúdica no tocante à forma e ao verbo
–, o principal exemplo, na poesia brasileira, da obra literária voltada à problematização da vida. “A única
função válida e legítima de um texto literário, pelo menos desde a Revolução Industrial, é justamente a
problematização do real”, diz José Guilherme Merquior, que temos seguido neste passo; e conclui: “Como
todo grande poeta (e não sendo senão poeta e somente poeta), Carlos Drummond de Andrade é muito mais
que um bom escritor. É um grande praticante da poesia como jogo do conhecimento e da sabedoria”
Ressalte-se que Drummond também foi cronista.
Os temas drummondianos
Ao organizar, em 1962, uma antologia, Drummond demarcou a área temática de sua poesia,
distribuindo-a pelos diversos motivos temáticos, considerados “pontos de partida ou matéria da poesia”.
Esses temas se entrelaçam desde Alguma poesia (1930) a Amor natural (1988). Em alguns momentos,
há predominância de determinados temas e atitudes, mas não se pode propor uma segmentação temática
rigorosa, sem se incorrer em grave mutilação e intolerável reducionismo.
Sob diversas nomenclaturas, conforme o viés crítico e com algumas divergências inconciliáveis,
reconhecem-se três ou quatro etapas na evolução da lírica de Drummond, que acompanham de perto a
evolução da própria poesia moderna brasileira, por mais de meio século. Didaticamente, com os riscos de
embaralhamento do conjuntural e do estrutural na obra de Drummond, alguns livros escolares reconhecem
quatro divisões, geralmente estipuladas como “perfis” de sua poesia.
O poeta abandona quase completamente a forma fixa que cultivou durante certo período,
voltando ao verso que tem apenas a medida e o impulso determinados pela coisa poética a
exprimir. Pratica, mais do que antes, a violação e a desintegração da palavra, sem entretanto
aderir a qualquer receita poética vigente.
Enfim, há o poema-objeto.
A atitude lúdica, a opção concreto-formalista que Drummond realiza em Lição de coisas, é uma
radicalização de processos estruturais que sempre marcaram seu modo de escrever. A opção pelo prosaico,
pelo irônico, pelo antirretórico, pelo antilirismo intencional já tinha sido antecipada, nos livros iniciais de
Drummond, pela exploração dos elementos materiais da palavra (a letra impressa, o som, a disposição
espacial, o significante). Essas atitudes correm paralelamente ao trabalho experimental das vanguardas da
década de 1950 – Concretismo, Poema-Processo, Poesia Práxis –, mas isso não representou adesão do poeta
a nenhuma dessas vanguardas.
O processo básico é a linguagem nominal (“fazer as coisas e as palavras – nomes de coisas – boiar
nesse vácuo sem bordas a que a interrogação reduziu os reinos do ser”), através da desintegração do
vocábulo. O experimentalismo, a ruptura com a sintaxe, a adoção de frases nominais, a exploração dos
estratos sonoros (através das aliterações, assonâncias, coliterações, ecos, onomatopeias, rimas internas), a
exploração do visual, os jogos tipográficos e a atitude lúdica diante da palavra-coisa são pressupostos da
poética drummondiana desde o primeiro livro: correm na mesma direção do Concretismo, mas nada devem
a ele. Aliás, já estavam propostos desde a década de 1940. Basta ler este fragmento de Confissões de Minas:
À medida que envelheço, vou me desfazendo dos adjetivos. Chego a ver que tudo se pode
dizer sem eles, melhor que com eles. Por que “noite gélida”, “noite solitária”, “profunda
noite”? Basta “a noite”. O frio, a solidão, a profundidade da noite estão latentes no leitor,
prestes a envolvê-lo, à simples provocação dessa palavra “noite”.
Outra visão que já se incorporou à fortuna crítica de Drummond é a proposta por Affonso Romano
de Sant’Anna, fundada na crítica do estofo estruturalista e em métodos estatísticos, na pesquisa do “caráter
sistêmico” da construção poética drummondiana.
Apresentação desse estudo:
A visão segmentada da poética drummondiana, seja por aqueles que mal viram o conjunto,
seja por aqueles que se retiveram em pormenores, deve-se ao fato de não se ter percebido
um dado básico: a estrutura dramática dessa obra, onde há nitidamente um personagem
(o poeta gauche) disfarçado em heterônimos (José, Carlos, Carlito, K., Robinson Crusoé
etc.), descrevendo uma ação no tempo e no espaço, concebidos como um continuum (=
concebidos como uma sequência). O poeta se diversificou em egos auxiliares dentro da
própria cena, para conhecer os múltiplos aspectos de seu Ser, mas ao se disfarçar em
vários atores, não deixa nunca de ser espectador e crítico de seu próprio drama existencial.
I. Eu > mundo
Na primeira etapa, o personagem está postado num canto escuro, imóvel e torto, contemplando a cena
a distância e assumindo uma posição predominantemente irônica e egocêntrica. Vê os conflitos, reflete
sobre a “vida besta”, a província, a família, numa posição de equidistância, de irreverência. O sentimento
é contido, projetando-se num texto objetivo, seco e de versos curtos e descarnados, sem transbordamento
emocional. Refletindo a irreverência e a atitude iconoclasta dos modernistas de 1922, dos quais se confessa
seguidor, expande-se em inúmeros poemas-piada. É a fase de Alguma poesia e Brejo das almas.
III. Eu = mundo
Nessa terceira etapa, o poeta atinge o equilíbrio: sua poesia converte-se numa sistematização da
memória, numa maneira de se reunir através do tempo. O sujeito (gauche), que vinha interagindo com o
objeto (mundo), encontra o equilíbrio (relativo). A ironia inicial, que se entretinha no simples humorístico,
desenvolve sua dialética latente e transmuda-se num exercício metafísico, com um tom barroco de
desconsolo. Nessa etapa, o poeta já realizou grande parte de sua travessia no mar do tempo: experimentou
a morte alheia e sua morte parcial e aprendeu a recriar sua vida no plano poético da memória; sujeito e
objeto se interpenetram dialeticamente. O lirismo se torna mais autorreflexivo, filosófico. Dá-se a epifania
máxima de sua vida-obra e a “Máquina do Mundo”, famoso poema de Claro enigma, se abre, oferecendo-
lhe a possível solução de todos os enigmas, mas o eu lírico recusa-a. A poesia metafísica e a poesia objetual
que aparecem, respectivamente, em Claro enigma e Lição de coisas revelam, naquele, a busca metafísica,
como se nota nos processos de interrogação e negação, e, neste, a experimentação linguística e poética, que
retomam e ampliam, na plena maturidade expressiva e reflexiva do poeta, os temas e formas anteriores
indiciados na década de 30.
O primeiro lirismo de Drummond
Das diversas linhas interpretativas sobre a obra de Drummond, opta-se pela de José Guilherme
Merquior, em Verso Universo em Drummond. É a mais eclética e a que melhor se encaixa à diversidade da
obra do poeta mineiro, que não se pode acomodar dentro dos limites rígidos de abordagens específicas
(estruturalista, formalista, impressionista, marxista), que marcam as tendências de nossa produção
acadêmica. Municiado por uma larga erudição, mas sem pedantismo, num estilo límpido e agradável,
Merquior analisa a produção drummondiana de 1925 a 1968, na obra que resultou de sua tese de
doutoramento, aprovada pela Sorbonne, em junho de 1972. Aqui constam algumas citações e com o
acréscimo de algumas anotações aos textos da antologia, sem prejuízo do arcabouço geral da obra de
Merquior, a quem serve de indicação como leitura extra (para alunos interessados no aprofundamento,
muito além do que se possa exigir no vestibular):
Num esboço autobiográfico encomendado pela Revista Acadêmica, Drummond nos dá uma
interpretação sucinta de sua evolução lírica até Sentimento do mundo. Segundo ele, Alguma poesia traduz
uma “deleitação ingênua” no tocante ao indivíduo; em Brejo das almas, o individualismo se exacerba, mas
ao mesmo tempo é submetido a uma visão crítica; enfim, Sentimento do mundo resolve “as contradições
elementares” da poesia drummondiana.
A dedicatória de Alguma poesia – “a Mário de Andrade” – designa de forma inequívoca a corrente
literária a que se prendia Drummond: o Modernismo da fase heroica (1922-30), embora o poeta se situe na
Segunda Geração Modernista (1930-45). A linguagem poética drummondiana não se converteu – como a
de Manuel Bandeira, Jorge de Lima ou Cassiano Ricardo – à estética modernista: ela nasceu modernista.
Várias indicações já se encontram, no jovem Drummond, que o ligam à literatura de vanguarda:
a) a versificação variada, herética, de seus poemas;
b) o papel do humor (até o poema-piada);
c) a frequência com que são tratados os problemas humanos numa ótica em que há o efeito do
estranhamento poético.
d) a escrita mesclada (correlato estilístico da ótica dessacralizadora), bastante permeável às
associações surrealistas;
e) finalmente, o uso de “efeitos de distanciamento” testemunha uma concepção não empática,
antilírica.
Esta obra, com 49 poemas, reúne a produção em verso desde 1925, por vezes disseminada em jornais
e revistas literárias do primeiro tempo modernista, como ocorreu com o poema “No meio do caminho”,
impresso na revista mais radical do Modernismo paulistano — Revista de Antropofagia (1928-1929) –, da
qual Drummond foi colaborador esporádico.
Alguns comentários:
Sobre “Construção”: O despojamento desse poema, centrado na vida cotidiana (retratada por flashes
de fotos), lembra a simplicidade de Manuel Bandeira. As imagens (de forma cubista, uma em cada verso)
sucedem-se em comparação ou símile (verso 1) e prosopopeia (verso 5). O eu lírico se ausenta do texto.
Sobre “Toada do amor”: O tratamento do tema amoroso nessa toada é típico da irreverência
dessacralizadora do Primeiro Tempo Modernista e se aproxima do poema-piada: “amor cachorro bandido
trem”. O lirismo drummondiano é sempre contido pela ironia, pelo antilirismo; salvo nos últimos livros do
poeta, em que Eros irrompe com toda a força. Em “Toada do Amor”, há um lirismo ausente de ternura, de
idealização de confissões amorosas, empregando-se vocábulos populares, distantes do tom solene dedicado
a esse tema. Os versos que fecham o poema pertencem a um provérbio ou frase feita do coloquial mineiro,
promovendo como efeito ao fim do texto um rompimento da tensão lírica dos versos anteriores.
Sobre “Política literária”: Poema-piada ironizando a “hierarquia” poética. O tom de piada, gaiato,
não oculta, porém, o sentido crítico à literatura inútil, provinciana, ainda quando urbana, da roda vazia dos
cafés, com discurso afetado, vazio e pretensioso.
Sobre “Quadrilha”: O título alude à dança popular, em que os pares entram em cena encadeados,
mas alternam-se como ocorre no poema. O poema-piada, em versos livres, é uma desvalorização irônica
do casamento. A única que se casou foi a que não amava ninguém — Lili. O nome de seu marido, J. Pinto
Fernandes, sugere que Lili se casou por interesse, sem intimidade (observe que J. Pinto Fernandes lembra
pessoa jurídica, firma, tem status para o casamento patriarcal).
Sobre “Família”: A enumeração das coisas e dos seres que compõem o cotidiano mineiro permite o
efeito de distanciamento com que o poeta focaliza o “quadro” realista. A montagem, por livre associação
de imagens e ideias, retoma a técnica cubista.
Sobre “Anedota búlgara”: Os germens da poesia social participante são aqui recobertos pelo humor
corrosivo do poema-piada. Ironiza-se o absurdo da banalidade do mal.
Sobre “Balada do amor através das idades”: O falar coloquial, antigramatical, é incorporado com
frequência na primeira fase da poesia drummondiana e modernista. Boxo: neologismo derivado do verbo
boxear, lutar boxe. A sátira à modernidade é evidente na alusão aos modismos hollywoodianos, aos clichês
do cinema. O amor, até a maturidade do poeta, será uma temática recorrente, revisitada com olhos que vão
da pura negação à ironia e da cautelosa reflexão ao império erótico dos sentidos.
Sobre “Cota zero”: Esse poema lembra os poemas-minuto de Oswald de Andrade. O poeta ironiza
a dependência do homem à tecnologia, como se parar o automóvel causasse a impressão de se ter cessado
a vida. São fenômenos da mesma grandeza e natureza: vida e tecnologia.