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Aspectos gerais da obra de Carlos Drummond de Andrade

A lírica de Drummond se define pelo “combate constante da natureza emocional, desde Alguma
poesia, com a sua inteligência” (Otto Maria Carpeaux)

As fases da poesia drummondiana

● 1ª fase – Humorista
Alguma Poesia, Brejo das almas.
- Agudeza reflexiva e irônica.
- Feição modernista: linguagem coloquial, verso livre, uso do poema-piada, galhofa, o gosto pela
polêmica.

● 2ª fase – Experiência coletiva


Sentimento do mundo, A rosa do povo.
- Poesia de alcance social.
- Tom mais grave ligado aos grandes conflitos internacionais dos anos 1930 e 1940 (2ª Guerra
Mundial).
- Interesse pelas questões sociais e políticas; aproximação com as utopias de igualdade e o
socialismo.
Sentimento do mundo

interior e exterior

● 3ª fase – Meditativo e existencial


Claro enigma, Fazendeiro do ar.
- Interrogação sobre a condição humana.
- Lirismo reflexivo e mergulho psicológico.
- Visão pessimista e humanista.
- Dicção filosófica, variando entre formas clássicas e verso livre.
- Alta densidade de imagens e ritmos.

● 4ª fase – Mescla de tons e experimentos formais


Lição de coisas, As impurezas do branco.
- Exploração dos limites do verso, a desintegração da palavra, espacialidade da página em
branco, aproximação com o Concretismo.
- Observação crítica e humorística dos pequenos e grandes acontecimentos no Brasil e no mundo.

● 5ª fase – Retorno à memória da infância


Boitempo, Menino Antigo
- Dimensão biográfica como alternativa ao pessimismo da poesia madura.
- Retomada do discurso lírico, mas ainda marcado pelo caráter reflexivo e humorístico que
caracterizam toda a poesia do autor.
Os grandes temas da poesia de Drummond

● O indivíduo: o “eu” todo retorcido.


● A família.
● Os amigos.
● A província: a terra natal.
● O choque social.
● Uma visão da existência.
● Amor-amaro: o conhecimento do amor.
● Exercícios lúdicos.
● A própria poesia - metalinguagem

“Um poeta mineiro de rara sensibilidade”


Por Manuel Bandeira

Agora o poeta comparece em livro. E esse livro nos revela, logo ao primeiro exame, um dos
mais puros e belos da nossa poesia. Não pode haver dúvida: Carlos Drummond de Andrade é um dos
grandes poetas do Brasil. Grande pelo fundo de sensibilidade e lirismo como grande pela técnica
impecável de seus poemas. Aliás esses dois aspectos são inseparáveis nos versos de Alguma Poesia
(assim se intitula o seu livro).
Na expressão esse poeta é sempre simples, natural, quotidiano. Vê-se como ele vive, meio
amolado com aquele anjo torto que lhe disse quando ele nasceu “Carlos vai ser gauche na vida”. Fala
pouco e não diz, pelo menos intencionalmente, nada que possa parecer sublime. Antes tem ele um
senso de humor sempre vigilante e pronto a cortar as asas a tudo que possa indicar uma atitude menos
desabusada.
O lirismo é uma coisa perigosa. Faz a gente dizer bestidades, extravagâncias,
sentimentalonidades. O pior são os lugares-comuns [...] em que o desgraçado poetinha parece querer
virar gênio. Com o senhor Carlos Drummond de Andrade não se corre nunca esse risco.

A Província, 25 de maio de 1930.

“Autobiografia para uma revista”


Carlos Drummond de Andrade

Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se
de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato
com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da
leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo,
um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. Infelizmente, exige-se pouco do
nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista…

Revista Acadêmica. In: Confissões de Minas. 1944.


Alguma Poesia

“Meu primeiro livro, Alguma Poesia (1930), traduz uma grande inexperiência do sofrimento e
uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo.” (Carlos Drummond de Andrade)

Publicação

Dedicado a Mário de Andrade (cujo papel como amigo e crítico do poeta mineiro está registrado
nas longas cartas que trocaram por mais de duas décadas), Alguma Poesia reúne 49 poemas, escritos
entre 1925 e 1930, e selecionados meticulosamente por Drummond.
Embora o título pareça indicar um ajuntamento simples e sem muito critério dos primeiros
poemas de um iniciante, é, mais acertadamente, uma escolha cuidadosa após uma longa maturação
dos textos. Por isso, para um livro múltiplo tanto na linguagem (da cantiga ao poema-piada) quanto
nos tons (do sentimental ao sarcástico), o pronome indefinido “Alguma” é extremamente coerente com
a multiplicidade de faces.

Situação do livro no Modernismo brasileiro

Ainda que Drummond seja tradicionalmente considerado um autor da segunda fase modernista
– a chamada geração de 30 –, pelas páginas de Alguma Poesia cintilam características típicas da
primeira geração modernista:

● poemas-pílula, textos muito curtos.


● versos livres, sem padrão métrico.
● versos brancos, sem rima.
● a linguagem coloquial.
● os temas prosaicos.
● o bom humor.

Ao mesmo tempo, Drummond realiza já no seu primeiro livro um avanço ou um deslocamento


em relação aos caminhos modernistas, pois se apropria da liberdade de criação que dinamitou o
monumento das convenções poéticas acadêmicas para dar maior aprofundamento lírico e crítico
àquelas perspectivas. Assim, Alguma Poesia tem como principais contribuições ao Modernismo:

● Ângulo de observação independente, distanciado e não-participativo.


● Lirismo essencialmente crítico e reflexivo.
● Individualidade profunda e em tensão com o mundo.
● Ampliação dos temas e da crítica social.
● Nacionalismo desconfiado e irônico não exalta o Brasil nem suspira pela Europa.
● Linguagem mais espontânea.
● Mistura de formas tradicionais e modernas rima e métrica + verso livre

Adaptado de Luiz Prado. “Em ‘Alguma Poesia’, sujeito é chave para observar o Brasil.”
Jornal da USP, 23/06/2021.
Temas principais

● O sujeito gauche – um eu lírico torto, deslocado e fragmentado, mas também lúcido e irônico:

a perspectiva gauche, aparecendo primeiramente como deficiência existencial e psicológica, é


uma forma de se mostrar descompromissado com qualquer projeto consistente e, ao mesmo
tempo, exercer a liberdade de “projetar-se em todas as faces do real”, protegido pela ironia.
(Alcides Villaça)

● A tensão entre a expressão sentimental, a timidez e o raciocínio.


● As contradições da vida burguesa e do intelectual.
● Os choques entre a vida provinciana do interior e o progresso desordenado da metrópole.
● O amor, o desejo e o sexo – marcados muitas vezes pela impossibilidade ou repressão.
● Metapoema – o poema que fala do próprio poema: a dificuldade para escrever, seja porque
inspiração e técnica não são suficientes, seja porque o próprio mundo e a realidade do país são
obstáculos à criação.

Questões

1. (UNEMAT) Um dos temas presentes em Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, é a crítica
a um tipo de poesia convencional e provinciana, de forte teor antimodernista.

Assinale a alternativa que serve como exemplo dessa postura crítica.

a) Era a sombra de meu bem / que morreu há tanto tempo


b) A mão que escreve este poema / não sabe que está escrevendo
c) Gastei uma hora pensando um verso / que a pena não quer escrever
d) A saparia toda de Minas / coaxa no brejo humilde
e) Mariquita, dá cá o pito, / no teu pito está o infinito

2.
Cidadezinha qualquer

Casas entre bananeiras


mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.


Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.


ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia
São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Levando-se em consideração os aspectos modernistas presentes no poema, é incorreto afirmar que
apresenta

a) reaproveitamento do popular e do coloquial, a partir de uma linguagem próxima à oralidade.


b) concepção do texto poético como discurso que oferece multiplicidade de sentidos e interpretações.
c) depreciação do mundo rural e primitivo, distante do progresso industrial.
d) uso do corte brusco e da fragmentação de ideias para promover humor irônico.
e) interesse poético pelo homem comum e pela vida cotidiana.

3. (FUVEST)

I
O sobrevivente

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.


Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
[…]

II
Cota zero

Stop.
A vida parou.
Ou foi o automóvel?

Sobre esses versos, extraídos de Alguma Poesia, pode-se dizer que:

a) Os dois textos podem ser aproximados quanto ao tema (mecanização do cotidiano); entretanto,
enquanto o primeiro apresenta uma visão crítica sobre o tema, o segundo faz uma apologia bem-
humorada do progresso urbano.
b) Os textos assemelham-se não apenas quanto ao tema (automatização da vida humana), mas também
quanto à linguagem: ambos apresentam a brevidade e a descontinuidade sintática características de
Alguma Poesia.
c) A crítica à mecanização excessiva que caracteriza a vida moderna evidencia-se, no texto I,
especialmente no emprego da antítese no primeiro verso, e, no texto II, no emprego do estrangeirismo,
ou barbarismo (stop).
d) O texto II apresenta, através de uma linguagem marcada pela concisão telegráfica, a crítica presente
no texto I, uma vez que os termos zero, stop e parou indicam a total dependência da vida moderna em
relação às máquinas.
e) A máquina como assunto poético pode ser verificada nos dois textos, o que torna evidente a influência
exercida, sobre o autor, da vanguarda artística conhecida como futurismo.
4. (FUVEST)

Sweet Home

Quebra-luz, aconchego.
Teu braço morno me envolvendo.
A fumaça de meu cachimbo subindo.

Como estou bem nesta poltrona de humorista inglês.

O jornal conta histórias, mentiras...

Ora afinal! a vida é um bruto romance


e nós vivemos folhetins sem o saber.

Mas surge o imenso chá com torradas,


chá de minha burguesia contente.
Ó gozo de minha poltrona!
ó doçura de folhetim!
Ó bocejo de felicidade!

Carlos Drummond de Andrade. Alguma Poesia.

a) Por que a expressão em inglês Sweet home suscita, no título do poema, um teor de ironia?
b) Na circunstância do poema, os termos “bruto romance” e “folhetins”, como formas literárias,
representam diferentes visões de mundo, estabelecendo entre si um contraste simbólico. Comente.

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