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Análise das Obras Indicadas aos Vestibulares

Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto


Prof. Marco Antonio Mendonça

Modernismo:
O modernismo brasileiro foi um amplo movimento cultural que
repercutiu fortemente sobre a cena artística e a sociedade brasileiras
desde a primeira metade do século XX, e resultou, em grande parte, da
assimilação de novas tendências artísticas e culturais lançadas pelas
vanguardas européias anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Tradicionalmente, considera-se a Semana de Arte Moderna realizada em
São Paulo, em 1922, o ponto de partida do modernismo no Brasil.
Didaticamente, divide-se o Modernismo em três fases: a primeira fase, mais radical e fortemente oposta a tudo que foi
anterior, cheia de irreverência e escândalo; uma segunda mais amena, que formou grandes romancistas e poetas; e uma
terceira, também chamada Pós-Modernismo por vários autores, que se opunha de certo modo a primeira e era por isso
ridicularizada com o apelido de neoparnasianismo.
• Primeira Geração (1922-1930) Rebelde e iconoclasta.
Caracteriza-se por ser uma tentativa de definir e marcar posições. Período rico em manifestos e
revistas de vida efêmera. É a fase mais radical, justamente em conseqüência da necessidade de
definições e do rompimento de todas as estruturas do passado. Caráter anárquico e forte sentido
destruidor. Principais autores desta fase: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira,
Antônio de Alcântara Machado, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Guilherme de Almeida e
Plínio Salgado.
Características
Busca do moderno, original, irreverente e polêmico.
“Língua brasileira” - falada pelo povo nas ruas.
Paródias - tentativa de repensar a história e a literatura brasileira. Poema-Pílula e Poema -Piada.
• Segunda Geração (1930-1945) Social e politicamente engajada Duas fases de Tarsila do Amaral:
Estende-se de 1930 a 1945, sendo um período rico na produção poética e também na prosa. O acima o Abaporu (Antropofagia)
e ao lado, abaixo, Operários
universo temático se amplia e os artistas passam a preocupar-se mais com o destino dos homens, o (Social).
estar-no-mundo. “A segunda fase colheu os resultados da
precedente, substituindo o caráter destruidor pela intenção construtiva, “pela
recomposição de valores e configuração da nova ordem estética”. (Cassiano Ricardo)
A poesia prossegue a tarefa de purificação de meios e formas iniciada antes, ampliando
a temática na direção da inquietação filosófica e religiosa, com Vinícius de Moraes, Jorge
de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, ao
tempo em que a prosa alargava a sua área de interesse para incluir preocupações novas
de ordem política, social e econômica, humana e espiritual. À piada sucedeu a gravidade
de espírito, a seriedade da alma, propósitos e meios. Uma geração grave, preocupada com
o destino do homem e com as dores do mundo, pelos quais se considerava responsável,
deu à época uma atividade excepcional.
Características (Poesia)
Nova postura temática - questionar mais a realidade e a si mesmo enquanto indivíduo;
Tentativa de interpretar o estar-no-mundo e seu papel de poeta;
Literatura mais construtiva e mais politizada.
Surge uma corrente mais voltada para o espiritualismo e o intimismo (Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Vinícius
de Moraes);
Aprofundamento das relações do eu com o mundo (Carlos Drummond de Andrade)
Consciência da fragilidade do eu - "Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo" (Carlos Drummond de Andrade -
Sentimento do Mundo).
Características (Prosa)
Romances caracterizados pela denúncia social, verdadeiro documento da realidade brasileira, atingindo elevado grau de tensão
nas relações do eu com o mundo. O regionalismo ganha importância, com destaque às relações do personagem com o meio
natural e social.
Os escritores nordestinos Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e José [e Lins do Rego merecem destaque especial, por sua
denúncia da realidade da região pouco conhecida nos grandes centros. O 1° romance nordestino foi "A Bagaceira" de José
Américo de Almeida (1928). Esses romances retratam o surgimento da realidade capitalista, a exploração das pessoas,
movimentos migratórios, miséria, fome, seca etc.
• Terceira Geração (1945 - 1970) Existencial e introspectiva. Social.
A prosa, tanto no romance quanto nos contos, busca uma literatura intimista, de sondagem psicológica, introspectiva, com
destaque para Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. Ao mesmo tempo, o regionalismo adquire uma nova dimensão com
Guimarães Rosa e sua recriação dos costumes e da fala sertaneja, penetrando fundo na psicologia do jagunço do Brasil central.
Um traço característico comum a Clarice e Guimarães Rosa é a pesquisa da linguagem, por isso são chamados instrumentalistas ou
estruturalistas.
Na poesia, surge uma geração de poetas que se opõem às conquistas e inovações dos modernistas de 22. Assim, negando a
liberdade formal, as ironias, as sátiras e outras “brincadeiras” modernistas, os poetas de 45 buscam uma poesia mais “equilibrada
e séria”. Os modelos voltam a ser os Parnasianos e Simbolistas. Principais autores (Ledo Ivo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Geir
de Campos e Darcy Damasceno). No fim dos anos 40, surge um poeta singular, pois não está filiado esteticamente a nenhuma
tendência: João Cabral de Melo Neto.

João Cabral de Melo Neto.


João Cabral de Melo Neto é o mais importante poeta da geração de 45. Nasceu em 1920, no Recife, e morreu em 1999, no Rio
de Janeiro. Filho e neto de donos de engenho, desde cedo apresentou interesse pela palavra,
pela literatura de cordel nordestina e desejava ser crítico literário.
“E da feira do domingo/ me traziam conspirantes/ para que os lesse e os explicasse/ um
romance de barbante./ Sentados na roda morta/ de um carro de boi, sem jante/ ouviam o
folheto guenzo,/ a seu leitor semelhante,/ com as peripécias de espanto/ preditas pelos
feirantes./ Embora as coisas contadas/ e todo o mirabolante,/ em nada ou pouco variassem/
nos crimes, no amor/ nos lances,(...)” (Descoberta da literatura in A Escola das Facas - 1980)
Tinha como primos dois nomes ilustres da cultura brasileira: Gilberto Freyre e Manuel
Bandeira. Aos vinte anos já lia no original os grandes poemas da literatura estrangeira, como
Apollinaire, Valéry e outros. Em 1942, apenas com o curso secundário concluído, muda-se
para o Rio de Janeiro e, para sobreviver, ingressa no funcionalismo público.
Trazia consigo seu primeiro livro, Pedra do Sono (1941), de tendência surreal. Três anos depois, num segundo concurso, ingressa
no Itamarati, passando a viver em várias cidades famosas do mundo, como Barcelona, Londres, Sevilha, Marselha, Genebra, Berna
e outras.
Cronologicamente, João Cabral situa-se entre os poetas da geração de 45, mas trilhou caminhos próprios, dando continuidade a
certos traços que já se delineavam na poesia de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, tais como a poesia substantiva, a
objetividade e a precisão dos vocábulos.
João Cabral escreveu diversas obras e segundo ele “escrever é estar no extremo de si mesmo”: Considerações sobre o poeta
dormindo, 1941; Pedra do sono, 1942; O engenheiro, 1945; O cão sem plumas, 1950;
O rio, 1954; Morte e vida severina, 1955; Quaderna, 1960; Poemas escolhidos, 1963; A educação pela pedra, 1966; Museu de
tudo, 1975; A escola das facas, 1980; Agreste, 1985; Auto do frade, 1986; Crime na Calle Relator, 1987; Sevilla andando, 1989.
Em sua obra encontram-se temas fundamentais:
• A preocupação cada vez maior com a realidade social, particularmente com o Nordeste,
• A reflexão permanente sobre a criação poética e artística (metalinguagem),
• O aprimoramento de sua poética já em construção, a poética da linguagem-objeto, isto é, que procura sugerir o assunto
retratado pela própria construção da linguagem, (presença de um despojamento cada vez maior de sua linguagem.
Algumas palavras são usadas sistematicamente na poesia deste autor: cana, pedra, osso, esqueleto, dente, gume,
navalha, faca, foice, lâmina, cortar, esfolado, baía, relógio, seco, mineral, deserto, asséptico, vazio, fome.)
• A Espanha, em uma comparação eterna com o seu Pernambuco natal,
• As diversas artes, sobretudo o surrealismo
Talvez se possa afirmar que a poesia de João Cabral tenha sido a primeira a estabelecer um corte profundo entre a poesia
romântica e a moderna. Ao tratar a mulher como tema amoroso, por exemplo, o poeta o faz de forma distanciada, sem cair no
sentimentalismo.
Morte e Vida Severina – Auto de Natal Pernambucano (1955)
Este é, sem dúvida, o mais famoso poema do autor, apesar de João Cabral referir-se a ele como “obra menor”, pois ele foi um
poema feito sob encomenda. Morte e Vida Severina é o ápice da temática da seca (engajamento) iniciada com a obra O Cão Sem
Plumas e desenvolvida no livro O Rio (as três obras poéticas tendo o rio
Capibaribe como eixo).
Apesar de no subtítulo lermos “o Auto de Natal Pernambucano” o poema –
originalmente - não teria sido escrito para se tornar peça de teatro; mas sua
expressividade dramática permitiu facilmente as adaptações posteriores.
Obs.: Não se esqueça que AUTO eram as peças de teatro ocorridas na Idade
Média e no Humanismo (Gil Vicente) de caráter moral e religioso. Além disso a
estrutura dos versos, com preferência para as “medidas velhas” (destaque
para a redondilha maior) também rementem ao modelo medieval.
Seguindo ainda a mesma temática abordada outrora pela Geração de 30 e
explorada em obras como O Quinze (Raquel de Queiroz) e Vidas Secas (Graciliano Ramos – com quem Cabral compartilha,
inclusive a mesma linguagem despojada e para quem dedica um poema no livro Serial, publicado
em 1961), João Cabral pode ser também ser considerado um escritor engajado e de temática
social.
Fugindo do sertão de Pernambuco e seguindo o curso do rio Capibaribe, Severino Retirante se
depara – “seguidamente com paisagens em que a morte exerce seu império, devido às injustiças
sociais que marginalizam os camponeses nordestinos”. Os mortos são todos “Severinos” como
ele, daí o nome do poema, pois na região inóspita em que vivem todos padecem da mesma vida e
da mesma morte sever(in)a; severa!
Em 1965, a pedido do escritor Roberto Freire, diretor do Teatro da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (TUCA), o compositor Chico Buarque musicou o poema para a montagem da
peça. A partir da década de 80 certos trechos, como é o caso de “funeral de um lavrador” são
considerados hinos do Movimento dos Sem Terra.

Estrutura
O poema Morte e Vida Severina é dividido em 18 partes, como se fossem 18 “estações” visitadas pelo narrador, o “Severino
Retirante”. João Cabral preferiu estruturar seu longo poema utilizando-se de versos com ritmo e sonoridade da Medida Velha, ou
seja, dos versos mais simples que eram utilizados tanto na Idade Média, como na Literatura de Cordel, que tanto influenciou o
autor, desde seus primeiros anos enquanto leitor.
A simplicidade dos versos, atrelada a um enorme poder descritivo e à abordagem social/engajada, garantem ao poema um
destaque na moderna Literatura Brasileira.

1ª PARTE: O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI


O poema é aberto com uma metalinguagem (conversa com o leitor, que aparece em todo o poema) em que Severino
Retirante se apresenta, compara-se com todos os “Severinos” do Nordeste/Brasil e explica seu trajeto em direção ao Recife.
Perceba que a estrutura dos versos é a Medida Velha em Redondilha Maior – versos heptassílabos.

O/ meu/ no/me é/ Se/ve/ri/no, (7 e que foi o mais antigo Somos muitos Severinos
SP*) senhor desta sesmaria. iguais em tudo na vida:
Não/ te/nho/ ou/tro/ de/ pi/a. (7 Como então dizer quem falo na mesma cabeça grande
sílabas) ora a Vossas Senhorias? que a custo é que se equilibra,
Como há muitos Severinos, Vejamos: é o Severino no mesmo ventre crescido
que é santo de romaria, da Maria do Zacarias, sobre as mesmas pernas finas
deram então de me chamar lá da serra da Costela, e iguais também porque o sangue,
Severino de Maria. limites da Paraíba. que usamos tem pouca tinta.
Como há muitos Severinos Mas isso ainda diz pouco: E se somos Severinos
com mães chamadas Maria, se ao menos mais cinco havia iguais em tudo na vida,
fiquei sendo o da Maria com nome de Severino morremos de morte igual,
do finado Zacarias. filhos de tantas Marias mesma morte severina:
Mas isso ainda diz pouco: mulheres de outros tantos, que é a morte de que se morre
há muitos na freguesia, já finados, Zacarias, de velhice antes dos trinta,
por causa de um coronel vivendo na mesma serra de emboscada antes dos vinte
que se chamou Zacarias magra e ossuda em que eu vivia. de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença suando-se muito em cima, e melhor possam seguir
é que a morte severina a de tentar despertar a história de minha vida,
ataca em qualquer idade, terra sempre mais extinta, passo a ser o Severino
e até gente não nascida). a de querer arrancar que em vossa presença emigra.
Somos muitos Severinos alguns roçados da cinza. SP* - Sílabas Poéticas
iguais em tudo e na sina: Mas, para que me conheçam
a de abrandar estas pedras melhor Vossas Senhorias

O trecho principal começa quando o retirante diz: “Somos muitos Severinos/iguais em tudo na vida:/na mesma cabeça
grande/que a custo é que se equilibra, /no mesmo ventre crescido/sobre as mesmas pernas finas/e iguais também porque o
sangue, /que usamos tem pouca tinta.”. A partir daqui percebemos o quão difícil é a vida dos retirantes.

2ª PARTE: O RETIRANTE ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS
ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUEM MATEI NÃO!"

Severino se depara com a primeira morte (por emboscada) e trava um diálogo com os dois homens que carregam aquele
defunto embrulhado em uma rede, repetindo o triste refrão "irmãos das almas", para se referir a essas pessoas de “irmandades
religiosas” que se encarregavam dos mortos. Nesta parte percebe-se a denúncia contra os que, abusando do poder, matam
para tomar a terra e jamais são punidos:

— E o que guardava a emboscada, (7


SP) — E o que havia ele feito — E era grande sua lavoura,
irmão das almas (4 SP) irmãos das almas, irmãos das almas,
e com que foi que o mataram, (7 SP) e o que havia ele feito lavoura de muitas covas,
com faca ou bala? (4 SP) contra a tal pássara? tão cobiçada?

— Este foi morto de bala, — Ter uns hectares de terra, — Tinha somente dez quadras,
irmão das almas, irmão das almas, irmão das almas,
mas garantido é de bala, de pedra e areia lavada todas nos ombros da serra,
mais longe vara. que cultivava. nenhuma várzea.

— E quem foi que o emboscou, — Mas que roças que ele tinha, — Mas então por que o mataram,
irmãos das almas, irmãos das almas irmãos das almas,
quem contra ele soltou que podia ele plantar mas então por que o mataram
essa ave-bala? na pedra avara? com espingarda?

— Ali é difícil dizer, — Nos magros lábios de areia, — Queria mais espalhar-se,
irmão das almas, irmão das almas, irmão das almas,
sempre há uma bala voando os intervalos das pedras, queria voar mais livre
desocupada. plantava palha. essa ave-bala. (...)
3ª PARTE: O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR POR SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE (QUE ESTÁ SECO)
Ao se deparar com o rio Capibaribe seco, Severino percebe que existe um novo tipo de morte: a morte do rio, que desaparece
na estação seca. Não se esqueça de que ele estava usando o Capibaribe como guia para chegar ao Recife.

4ª PARTE: NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM
HOMEM, DO LADO DE FORA, VAI PARODIANDO A PALAVRAS DOS CANTADORES
Mesmo com receio de perder, Severino segue sua viagem. Ouvindo uma ladainha e seguindo o som desta cantoria, Severino
Retirante se depara com um velório de “outro nordestino de vida Severina”. No momento das “excelências”, dois homens
começam a imitar o som das vozes dos que rezam.

— Finado Severino, — Finado Severino,


quando passares em Jordão quando passares em Jordão
e os demônios te atalharem e os demônios te atalharem
perguntando o que é que levas... perguntando o que é que levas...

— Dize que levas cera, — Dize que levas somente


capuz e cordão coisas de não:
mais a Virgem da Conceição. fome, sede, privação. (...)

5ª PARTE: CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR TRABALHO ALI ONDE
SE ENCONTRA
Severino retirante, cansado, interrompe a viagem e procura um trabalho. Severino volta a explicar os motivos que o fizeram
partir: está à procura da vida, pois em sua região de origem só existe a morte.
— Desde que estou retirando (aquela vida que é menos ao menos até que as águas
só a morte vejo ativa, vivida que defendida, de uma próxima invernia
só a morte deparei e é ainda mais Severina me levem direto ao mar
e às vezes até festiva; para o homem que retira). ao refazer sua rotina?
só a morte tem encontrado Penso agora: mas por que Na verdade, por uns tempos,
quem pensava encontrar vida, parar aqui eu não podia parar aqui eu bem podia
e o pouco que não foi morte e como Capibaribe e retomar a viagem
foi de vida Severina interromper minha linha? quando vencesse a fadiga. (...)

6ª PARTE: DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ
Severino vê uma senhora em uma janela e vai conversar com ela para saber se existe trabalho. Ela pergunta a ele o que ele
sabe fazer e ele explica, mas ela argumenta que nada daquilo serve ali. Ela é uma “rezadeira”, ou seja, uma mulher que reza, dá
bençãos, mas também reza pelos mortos. uma mulher.

Muito bom dia senhora, rezadora titular.


que nessa janela está — Pois se o compadre soubesse
sabe dizer se é possível rezar ou mesmo cantar, — E ainda se me permite
algum trabalho encontrar? trabalhávamos a meias, mais outra vez indagar:
que a freguesia bem dá. é boa essa profissão
Trabalho aqui nunca falta em que a comadre ora está?
a quem sabe trabalhar — Agora se me permite
o que fazia o compadre minha vez de perguntar: — De um raio de muitas léguas
na sua terra de lá? como senhora, comadre, vem gente aqui me chamar;
pode manter o seu lar? a verdade é que não pude
Pois fui sempre lavrador, queixar-me ainda de azar.
lavrador de terra má — Vou explicar rapidamente, — E se pela última vez
não há espécie de terra logo compreenderá: me permite perguntar:
que eu não possa cultivar. como aqui a morte é tanta, não existe outro trabalho
vivo de a morte ajudar. para mim nesse lugar?
Isso aqui de nada adianta, — E ainda se me permite
poucos existe o que lavrar que volte a perguntar: — Como aqui a morte é tanta,
mas diga-me, retirante, é aqui uma profissão só é possível trabalhar
o que mais fazia por lá? trabalho tão singular? nessas profissões que fazem
Também lá na minha terra da morte ofício ou bazar. (...)
de terra mesmo pouco há — É, sim, uma profissão,
mas até a calva da pedra e a melhor de quantas há:
sinto-me capaz de arar. (...) sou de toda a região

7ª PARTE: O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM
A Zona da Mata já tem um clima mais ameno e um solo mais rico, onde há plantio de lavouras. O verde e a beleza da região
empolgam Severino que não tinha conhecimento de tamanha riqueza.

Mas não avisto ninguém, somente naquela várzea tão fácil, tão doce e rica,
só folhas de cana fina um bangüê velho em ruína. não é preciso trabalhar
somente ali à distância Por onde andará a gente todas as horas do dia,
aquele bueiro de usina que tantas canas cultiva? os dias todos do mês,
Feriando: que nesta terra os meses todos da vida (...)

8ª PARTE: ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E


OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO
CEMITÉRIO
No entanto, Severino não vê os trabalhadores e termina a parte
anterior indagando onde estariam as pessoas. Nisto aparecem os
trabalhadores para mais um enterro. Ou seja, nem em solo fértil há
vida!! Esta passagem é a mais considerada pelo MST, pois quando os
trabalhadores falam da terra que querias ver dividida e agora vai
descansar nela, estão se referindo à reforma agrária e às mortes
provenientes de conflitos.
Essa cova em que estás, mas estarás mais ancho
com palmos medida, Não é cova grande. que estavas no mundo.
é a cota menor é cova medida,
que tiraste em vida. é a terra que querias é uma cova grande
ver dividida. para teu defunto parco,
é de bom tamanho, porém mais que no mundo
nem largo nem fundo, é uma cova grande te sentirás largo. (...)
é a parte que te cabe para teu pouco defunto,
neste latifúndio.

9ª PARTE: O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE


Severino, que só encontra morte no caminho, quer chegar logo aos seu destino: o Recife. Nesta parte ele reitera os motivos
que o fizeram migrar: tentar encontrar vida e fugiu do cenário inóspito de sua região, onde a morte era a dominadora.

— Nunca esperei muita coisa, a vida de cada dia: esperei, devo dizer,
é preciso que eu repita. que sempre pás e enxadas que ao menos aumentaria
Sabia que no rosário foices de corte e capina, na quartinha, a água pouca,
de cidade e de vilas, ferros de cova, estrovengas dentro da cuia, a farinha,
e mesmo aqui no Recife o meu braço esperariam. o algodãozinho da camisa,
ao acabar minha descida, Mas que se este não mudasse ao meu aluguel com a vida. (...)
não seria diferente seu uso de toda vida,

10ª PARTE: CHEGANDO AO RECIFE O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E
OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS
Severino finalmente chega a seu destino: o Recife. Para um pouco para descansar na sombra de um muro (de um
cemitério) e ouve a conversa de dois coveiros sobre o exaustivo trabalho deles. No final um deles diz que os
retirantes só saem do sertão para morrerem ali. Em resumo, a morte não abandona o retirante.

O dia hoje está difícil Se trabalhasses no de Casa Amarela os defuntos que ainda hoje
não sei onde vamos parar. não estarias a reclamar. vão chegar (ou partir, não sei). (...)
Deviam dar um aumento, De trabalhar no de Santo Amaro
ao menos aos deste setor de cá. deve alegrar-se o colega — E esse povo de lá de riba
porque parece que a gente de Pernambuco, da Paraíba,
As avenidas do centro são melhores, que se enterra no de Casa Amarela que vem buscar no Recife
mas são para os protegidos: está decidida a mudar-se poder morrer de velhice,
há sempre menos trabalho toda para debaixo da terra. encontra só, aqui chegando,
e gorjetas pelo serviço é que o colega ainda não viu cemitério esperando.
e é mais numeroso o pessoal o movimento: não é o que se vê.
(toma mais tempo enterrar os ricos). — Não é viagem o que fazem
pois eu me daria por contente Fique-se por aí um momento vindo por essas caatingas, vargens;
se me mandassem para cá. e não tardarão a aparecer aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.

11ª PARTE: O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE


Severino chega às margens do rio Capibaribe no Recife e confessa que não esperava muito, somente uma
pequena melhora nas condições de sobrevivência da população: com água, farinha e um pouco mais de expectativa
de vida.

— Nunca esperei muita coisa, a vida de cada dia: esperei, devo dizer,
é preciso que eu repita. que sempre pás e enxadas que ao menos aumentaria
Sabia que no rosário foices de corte e capina, na quartinha, a água pouca,
de cidade e de vilas, ferros de cova, estrovengas dentro da cuia, a farinha,
e mesmo aqui no Recife o meu braço esperariam. o algodãozinho da camisa,
ao acabar minha descida, Mas que se este não mudasse ao meu aluguel com a vida. (...)
não seria diferente seu uso de toda vida,
12ª PARTE: APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A
ÁGUA DO RIO
É um importante momento de transição, pois Severino se encontra com um senhor chamado José (mestre
Carpina/carpinteiro, como o pai de Jesus – mais um indicativo do subtítulo do poema ser “Auto de Natal”). No
entanto, o retirante quer saber se o rio ali é fundo, pois ele pensa em dar cabo da própria vida. Em um mundo com
tantas desgraças, no qual a morte fez seu império, só resta a ele cometer suicídio.

— Seu José, mestre carpina, — Seu José, mestre carpina, — Severino, retirante,
que habita este lamaçal, para cobrir corpo de homem não sei bem o que lhe diga:
sabes me dizer se o rio não é preciso muito água: não é que espere comprar
a esta altura dá vau? basta que chega o abdome, em grosso tais partidas,
sabes me dizer se é funda basta que tenha fundura mas o que compro a retalho
esta água grossa e carnal? igual à de sua fome. (...) é, de qualquer forma, vida.

— Severino, retirante, — Seu José, mestre carpina, — Seu José, mestre carpina,
jamais o cruzei a nado; e que interesse, me diga, que diferença faria
quando a maré está cheia há nessa vida a retalho se em vez de continuar
vejo passar muitos barcos, que é cada dia adquirida? tomasse a melhor saída:
barcaças, alvarengas, espera poder um dia a de saltar, numa noite,
muitas de grande calado. comprá-la em grandes partidas? fora da ponte e da vida?

13ª PARTE: UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ
Enquanto os dois estão ali conversando, do mocambo em que saiu o Mestre Carpina José, sai uma mulher para
anunciar a ele a chegada de seu filho, a simbologia cristã do renascer (NATAL) da esperança. O filho do carpinteiro,
"saltou para dentro da vida".

— Compadre José, compadre, Estais aí conversando Saltou para dento da vida


que na relva estais deitado: em vossa prosa entretida: ao dar o primeiro grito;
conversais e não sabeis não sabeis que vosso filho e estais aí conversando;
que vosso filho é chegado? saltou para dentro da vida? pois sabeis que ele é nascido.
14ª PARTE: APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS, ETC
Os vizinhos do carpinteiro aparecem para celebrar o nascimento do menino, cantando louvores. Fazem
predições, trazem presentes, como que reconstituindo - no lamaçal (presépio) ribeirinho - o milagre da vida.
Severino é colocado fora da cena, como mero observador em contato com a alegria que faz o povo esquecer um
pouco do sofrimento.

— Todo o céu e a terra a lama ficou coberta


lhe cantam louvor. e o mau-cheiro não voou. — E a língua seca de esponja
Foi por ele que a maré que tem o vento terral
esta noite não baixou. — E a alfazema do sargaço, veio enxugar a umidade
ácida, desinfetante, do encharcado lamaçal. (...)
— Foi por ele que a maré veio varrer nossas ruas
fez parar o seu motor: enviada do mar distante.

15ª PARTE: COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO


Tal qual os reis magos, os vizinhos e amigos oferecem presentes (pobres) ao menino que simboliza o renascer
da esperança.

Minha pobreza tal é Minha pobreza tal é Minha pobreza tal é


que não trago presente grande: que coisa alguma posso ofertar: que não tenho presente melhor:
trago para a mãe caranguejos somente o leite que tenho trago este papel de jornal
pescados por esses mangues para meu filho amamentar para lhe servir de cobertor
mamando leite de lama aqui todos são irmãos, cobrindo-se assim de letras
conservará nosso sangue. de leite, de lama, de ar. vai um dia ser doutor.

16ª PARTE: FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS
Ao tomarem a palavra, as duas ciganas tecem suas previsões. A primeira antecipa o mesmo destino de seu pai:
viver no mangue, sujo de lama, caçando caranguejos e se alimentando de restos. Já a segunda cigana diz que ele
terá um destino melhor para a criança “lá para os lados” do Beberibe: será um operário e estará sujo da lama das
fábricas.

Primeira Cigana - o mesmo destino do pai


Atenção peço, senhores, na lama, como goiamuns, com os porcos nos monturos,
para esta breve leitura: e a correr o ensinarão com os cachorros no lixo.
somos ciganas do Egito, o anfíbios caranguejos, Vejo-o, uns anos mais tarde,
lemos a sorte futura. pelo que será anfíbio na ilha do Maruim,
Vou dizer todas as coisas como a gente daqui mesmo. vestido negro de lama,
que desde já posso ver Cedo aprenderá a caçar: voltar de pescar siris
na vida desse menino primeiro, com as galinhas, e vejo-o, ainda maior,
acabado de nascer: que é catando pelo chão pelo imenso lamarão
aprenderá a engatinhar tudo o que cheira a comida fazendo dos dedos iscas
por aí, com aratus, depois, aprenderá com para pescar camarão.
aprenderá a caminhar outras espécies de bichos:

Segunda Cigana à um novo destino


Atenção peço, senhores, há de ser sempre daninha. que vemos aqui vestido
também para minha leitura: Enxergo daqui a planura de lama da cara ao pé.
também venho dos Egitos, que é a vida do homem de ofício, E mais: para que não pensem
vou completar a figura. bem mais sadia que os mangues, que em sua vida tudo é triste,
Outras coisas que estou vendo tenha embora precipícios. vejo coisa que o trabalho
é necessário que eu diga: Não o vejo dentro dos mangues, talvez até lhe conquiste:
não ficará a pescar vejo-o dentro de uma fábrica: que é mudar-se destes mangues
de jereré toda a vida. se está negro não é lama, daqui do Capibaribe
Minha amiga se esqueceu é graxa de sua máquina, para um mocambo melhor
de dizer todas as linhas coisa mais limpa que a lama nos mangues do Beberibe.
não pensem que a vida dele do pescador de maré
17ª PARTE: FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES, ETC
Todos aqueles que ali se encontravam elogiam a beleza do menino, que – verdadeiramente não existe – pois
ele é magro, guenzo, MAS já tem a marca de homem, de ser humano.

— De sua formosura nas suas já se adivinha.


já venho dizer: — Sua formosura
é um menino magro, deixai-me que cante: — De sua formosura
de muito peso não é, é um menino guenzo deixai-me que diga:
mas tem o peso de homem, como todos os desses mangues, é belo como o coqueiro
de obra de ventre de mulher. mas a máquina de homem que vence a areia marinha.
já bate nele, incessante.
— De sua formosura — De sua formosura
deixai-me que diga: — Sua formosura deixai-me que diga:
é uma criança pálida, eis aqui descrita: belo como o avelós
é uma criança franzina, é uma criança pequena, contra o Agreste de cinza.
mas tem a marca de homem, encrenque e setemesinha,
marca de humana oficina. mas as mãos que criam coisas

18ª PARTE: O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE DE NADA
No último trecho, após a celebração da vida da criança; José, o mestre carpina toma a palavra e diz a Severino
que mesmo frágil, pobre, sofrida, SEVERINA, a VIDA se REFAZ e merece ser vivida. Por isso o Auto (métrica simples
em Media Velha) de Natal (nascimento de uma criança simbolizando o renascer da esperança para todos)
Pernambucano (pois é ambientado naquele estado, apesar da universalidade da temática do renascer da
esperança). Além disso, ainda há em destaque a questão social relacionada às questões da seca e às disputas de
terra.

É difícil defender, com sua presença viva. vê-la brotar como há pouco
só com palavras, a vida, E não há melhor resposta em nova vida explodida
ainda mais quando ela é que o espetáculo da vida: mesmo quando é assim pequena
esta que vê, severina vê-la desfiar seu fio, a explosão, como a ocorrida
mas se responder não pude que também se chama vida, como a de há pouco, franzina
à pergunta que fazia, ver a fábrica que ela mesma, mesmo quando é a explosão
ela, a vida, a respondeu teimosamente, se fabrica, de uma vida severina.

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