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FOLHETO_ALGUMA POESIA_Gabriela_2021.

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AULAS ESPECIAIS
PORTUGUÊS
OBRAS DA FUVEST

ALGUMA POESIA
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE A poesia acadêmica, anterior a 1922, era bem afastada
Itabira (MG), 1902 – Rio de Janeiro (RJ), 1987 tanto do Brasil quanto de seu século. Assim, a primeira
grande contribuição do verso drummondiano consistiu em
1. DRUMMOND: O MODERNO E O ETERNO apreender o sentido profundo da evolução social e cultural
de seu país. A partir de sua própria situação de filho de
E como ficou chato ser moderno. fazendeiro emigrado para a grande cidade, justamente na
Agora serei eterno. época em que o Brasil começava a sua metamorfose de
país agrário e com predominância da população em zona
Qual a contribuição da poesia de Drummond à rural para sociedade urbano-industrial, Drummond dirigiu
Literatura Brasileira? o olhar do lirismo para o significado humano de estilo
Tendo enraizado seus primeiros livros – Alguma Poesia existencial moderno. Desde então, tornou sua escrita
(1930) e Brejo das Almas (1934) – no modernismo extraordinariamente atenta aos dois fenômenos de base
irreverente e iconoclasta de 1922, Drummond acompanhou, desta mesma evolução histórica: o sistema patriarcal e a
a partir daí, todos os desdobramentos da literatura moderna, sociedade de massa. Sua abertura de espírito, sua
incorporando à sua dicção personalíssima todos os temas e sensibilidade à questão social, sua consciência da História
formas em que se espraiou a poesia brasileira, em mais de impediram-no de superestimar as formas tradicionais de
meio século. Assim, a poesia de Drummond sintetiza (e existência e de dominação, mas, ao mesmo tempo, ele se
transcende), na multiplicidade de aspectos que abrangeu, a serviu do “mundo de Itabira” – símbolo do universo
evolução de toda nossa poesia moderna: do poema-piada à patriarcal – para detectar, por contraste, os múltiplos
poesia participante, da poesia experimental às formas rostos da alienação e da angústia do indivíduo moderno,
clássicas, dos exercícios lúdicos ao lirismo intimista, da esmagado por uma estrutura social cada vez menor em
poesia de circunstância à poesia metafísica, do poeta social relação ao humanismo.
ao autofechamento, do humanismo solidário ao niilismo, Profundamente enraizada numa época de transição, a
do poeta itabirano ao poeta universal, da “secura” à ternura, mensagem poética de Drummond se elevou, dessa forma,
de Thanatos (morte) a Eros (amor), do humorismo ao ao nível das significações universais. Nacional por sua
pessimismo, do moderno ao eterno. linguagem e por sua inspiração, sua obra nada tem de
Drummond expressou, em todas as suas vertentes, a exótica; não é sequer “regionalista”, mesmo que se trate
sensibilidade moderna, isto é, a experiência existencial do de um escritor importunado por suas origens. Além de
homem da grande cidade e da sociedade de massa, universal, a poesia de Drummond é muito atual. Poucos
convertendo-a em alta literatura lírica, englobando a líricos de nosso tempo terão mostrado tanta fidelidade aos
escrita de ruptura radical e a tradição clássica. movimentos essenciais do espírito moderno, às suas
Certamente, o autor de A Rosa do Povo e de Claro inquietações, desconfianças, perplexidades, críticas, com
Enigma não foi o iniciador do lirismo moderno no Brasil; legítimo desapreço pelos clichês ideológicos e pelas
sabe-se o quanto ele deve à revolução estética dos pseudofilosofias. Nesse sentido, o humor de Drummond –
primeiros modernistas e às conquistas de 1922. Seu papel na aparência inclinado ao niilismo – não passa, no fundo,
foi antes o de realizar a promessa literária do modernismo de uma estratégia intelectual radicalmente lúcida e
de choque, criando uma poesia rica e substancial, liberadora.
superando os três defeitos maiores da literatura acadêmica Drummond é um dos primeiríssimos poetas brasileiros
de antes de 1922: o servilismo em relação aos modelos e o mais importante de sua época quanto ao questiona-
europeus, a alienação no tocante à realidade social, mento filosófico da vida, do homem e do mundo,
concreta, e a superficialidade intelectual. constituindo uma lírica filosófica densa, ampla e

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inesgotável. Cantor da terra e da cidade, analista sutil da evolução da lírica de Drummond, que acompanham de
criação poética, moralista, no sentido de análise da perto a evolução da própria poesia moderna brasileira, por
condição humana, fascinado pelas paixões do homem e mais de meio século.
pela ordem do mundo, ele é, depois de Machado de Assis Didaticamente, com os riscos de embaralhamento do
– com quem divide tanto o humor desiludido quanto a conjuntural e do estrutural na obra de Drummond, alguns
atitude lúdica no tocante à forma e ao verbo –, o principal livros escolares reconhecem quatro divisões, geralmente
exemplo, na poesia brasileira, da obra literária voltada à estipuladas como “fases” de sua poesia.
problematização da vida. “A única função válida e legítima
de um texto literário, pelo menos desde a Revolução I – Poesia irônica (1925-1940)
Industrial, é justamente a problematização do real”, diz
José Guilherme Merquior, que temos seguido neste passo; Marcado pela influência da atitude irreverente dos
e conclui: “Como todo grande poeta (e não sendo senão modernistas de 1922, o humor corrosivo de Drummond
poeta e somente poeta), Carlos Drummond de Andrade é revela uma forma mineiramente cautelosa, desconfiada,
muito mais que um bom escritor. É um grande praticante pessimista e reservada de refletir. À maneira de Oswald
da poesia como jogo do conhecimento e da sabedoria.” de Andrade e de Mário de Andrade (confessadamente o
Ressalte-se que Drummond também foi cronista. “mestre” do poeta mineiro), Drummond realiza o poema-
piada e assume uma certa atitude de “não-me-importismo”
1.1. Os temas drummondianos irônico. Esses primeiros poemas, dizia Drummond:
“traduzem uma grande inexperiência do sofrimento e uma
Ao organizar, em 1962, uma antologia, Drummond deleitação ingênua com o próprio indivíduo”.
demarcou a área temática de sua poesia, distribuindo-a Nessa categoria de “poesia irônica” incluem-se
pelos diversos motivos temáticos, considerados “pontos Alguma Poesia (1930) e Brejo das Almas (1934).
de partida ou matéria da poesia”. Deve-se objetar que o humor, a ironia, a escavação
I – O Indivíduo: “Um eu todo retorcido” poética do cotidiano, o compromisso com o real, a
II – A Terra Natal: “Uma província esta” consciência da “vida besta”, da estupidez do homem e do
mundo, a alternância humor/seriedade, solidarie-
III – Família: “A família que me dei”
dade/autofechamento e a estilística da repetição não são
IV – Amigos: “Cantar de amigos”
temas e atitudes privativas dessa fase, mas se desdobram
V – O Choque Social: “Na praça de convites” por toda a sua obra, com maior ou menor intensidade. Não
VI – O Conhecimento Amoroso: “Amar-amaro” são livros “inferiores”: integram-se aos demais e ganham
VII – A Própria Poesia: “Poesia contemplada” importância quando se lhes descobrem os elementos
VIII – Exercícios Lúdicos: “Uma, duas argolinhas” exegéticos vitais para a compreensão do conjunto.
IX – Uma visão, ou Tentativa, da Existência: “Tentativa de
exploração e de interpretação do estar-no-mundo” II – Poesia social (1940-1945)

Esses temas se entrelaçam desde Alguma Poesia (1930) Como poeta de ação, a lírica participante de
a Amor Natural (1988). Em alguns momentos, há Drummond projeta-se principalmente nos livros Senti-
predominância de determinados temas e atitudes, mas não mento do Mundo (1940), José (1942) e A Rosa do Povo
se pode propor uma segmentação temática rigorosa, sem se (1945). A luta contra o medo (“que esteriliza os abraços”),
incorrer em grave mutilação e intolerável reducionismo. contra o convencionalismo e contra a consciência de
Observaremos, através da antologia que selecio- própria impossibilidade de luta (“eu tenho apenas duas
namos, a evolução que esses temas apresentam e as mãos e o sentimento do mundo”) fundamenta-se na
diferentes formas em que foram versados, remetendo-nos adesão ao real, no compromisso com o outro.
sempre à proposição do próprio poeta. Drummond é aqui o poeta de “Mãos Dadas”, que se
solidariza com o homem de seu tempo, vítima da guerra
1.2. As fases da poesia drummondiana e da ditadura Vargas. Para ele, só o real existe e é
estupidamente errado. Manuel Bandeira buscou na
Sob diversas nomenclaturas, conforme o viés crítico Pasárgada o consolo ou transcendência; Jorge de Lima
adotado pelo intérprete, e com algumas divergências amparou-se no Apocalipse das sugestões bíblicas, no
inconciliáveis, reconhecem-se três ou quatro etapas na projeto de “restaurar a poesia em Cristo”; Vinicius de

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Moraes mergulhou em Eros, na paixão – Drummond Drummond, no período pós-1946, teve alguns
atirou-se na percepção prática do mundo para denunciar a entreveros com o maniqueísmo de alguns intelectuais
estupidez, a instabilidade, a miséria moral, mental e engajados, intolerantes, que, em nome da divisa segundo
material. Para o poeta itabirano, nessa etapa de sua obra, a qual os fins justificam os meios, transgrediam a ética e
o mundo é errado, não por acaso, como queriam os criavam constrangimentos insuportáveis ao caráter reto do
existencialistas, mas porque assim o fazem. poeta mineiro; isso aguçou sua antiga antipatia ao
José e A Rosa do Povo representam um notável fanatismo ideológico. Foi o que ocorreu com a eleição da
amadurecimento técnico; conservando a originalidade já mesa diretora da Associação Brasileira de Escritores em
conquistada nos primeiros livros, ampliam-se as opções 1949. Drummond foi tachado de “traidor”, “reacionário”.
formais, especialmente na composição do poema longo, Nessa eleição, o autor de Alguma Poesia apoiou os que
que Mário de Andrade já tentara e que Drummond realiza defendiam a isenção ideológica, opondo-se à chapa que
com maestria, contornando os riscos da poesia propunha o proselitismo político.
declamatória e “demagógica” pela lucidez técnica do Acresce que o recrudescimento da “guerra fria”
artista que dominou definitivamente seu instrumento de também colaborava para o desencanto, para a
trabalho: a palavra. E, sobre a palavra, Drummond lançou negatividade, para o autofechamento do poeta.
aqui o seu olhar penetrante, numa densa posição Drummond concentra-se agora na escavação do real,
metalinguística, num metalirismo agudo de que mediante um processo de interrogações e negações que
resultaram “O Lutador”, “Consideração do Poema” e acabam revelando o vazio à espreita do homem. O mundo
“Procura da Poesia”. define-se como “um vácuo atormentado”, abolindo toda a
crença, negando toda a esperança.
III – Poesia metafísica (1946-1958) É importante enfatizar que o estilo “clássico” de Claro
Enigma nada deve ao formalismo e ao neoparna-
Novos Poemas, Claro Enigma, Fazendeiro do Ar e sianismo estetizante da Geração 45. Enquanto o
A Vida Passada a Limpo constituem uma etapa específica classicismo realizado por Drummond é pleno de invenção,
da poesia de Drummond, uma segunda maturidade, um de originalidade e de densidade intelectual, o
segundo apogeu, em nada inferior ou menos complexo neoparnasianismo da Geração 45 é estilisticamente
que o canto solidário de A Rosa do Povo. A crítica mais reacionário, prenhe de vulgaridade e nada tem de
atualizada já superou a falsa oposição que alguns moderno. Exclua-se, é claro, da Geração 45, o poeta João
postulavam entre a poesia social e a poesia metafísica, Cabral (herdeiro declarado de Drummond), que, apesar
entre o Drummond participante e o Drummond tido como de contemporâneo dessa geração, se afastou da linguagem
alienado aos problemas imediatos. Essa oposição foi afetada e pedante.
supervalorizada por certa crítica preconceituosa, que
cobra e julga ideologicamente numa atitude de banimento, IV – Poesia objetual (1962-1968)
de “cancelamento” e, em vez de descrever, prefere
vociferar preferências políticas. Lição de Coisas representa uma ruptura em relação à
Nesses livros que formam o “quarteto metafísico” de poesia da fase anterior. O próprio Drummond procurou
Drummond, como diz José Guilherme Merquior, o lirismo explicar a mudança:
filosófico reveste-se de um estilo “clássico”, de um
O poeta abandona quase completamente a
“classicismo moderno” ou, antes, de um “modernismo
forma fixa que cultivou durante certo período,
classicizado”.
voltando ao verso que tem apenas a medida e o
O abandono da óptica sociológico-realista e da
impulso determinados pela coisa poética a
representação social-concreta pelo autofechamento
exprimir. Pratica, mais do que antes, a violação
abstrato provocou manifestações decepcionadas da crítica
e a desintegração da palavra, sem entretanto
marxista que tinha se empolgado com Sentimento do
aderir a qualquer receita poética vigente.
Mundo, José e a Rosa do Povo e que se mostrou pouco
sensível à profundidade dessa nova fase de Drummond. Enfim, há o poema-objeto.
Esse tipo de julgamento submete-se aos equívocos de A atitude lúdica, a opção concreto-formalista que
uma estética panfletária, sempre incapaz de aceitar a Drummond realiza em Lição de Coisas, é uma
independência intelectual da literatura que não é radicalização de processos estruturais que sempre
maniqueísta. marcaram seu modo de escrever. A opção pelo prosaico,

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pelo irônico, pelo antirretórico, pelo antilirismo intencional política provinciana emolduram os jogos, os medos, os
já tinha sido antecipada, nos livros iniciais de Drummond, animais, a escola, os primeiros livros, a morte e, mais
pela exploração dos elementos materiais da palavra (a tarde, o erotismo, e também temas da infância e
letra impressa, o som, a disposição espacial, o adolescência que o poeta revisita com uma ternura
significante). Essas atitudes correm paralelamente ao temperada de ironia. O gauche, o desajeitamento
trabalho experimental das vanguardas da década de 1950 existencial, deita raízes na infância rural.
– Concretismo, Poema-Processo, Poesia Práxis –, mas isso A Falta que Ama retoma o lirismo filosofante e a
não representou adesão do poeta a nenhuma dessas reflexão existencial. Esse livro refloresce o erotismo.
vanguardas. Menino Antigo e Esquecer para Lembrar inscrevem-se na
O processo básico é a linguagem nominal (“fazer as mesma linha de Boitempo, fundindo a memória, a ficção
coisas e as palavras – nomes de coisas – boiar nesse vácuo e a reflexão.
sem bordas a que a interrogação reduziu os reinos do A Paixão Medida, Corpo, Amar se Aprende Amando
ser”), através da desintegração do vocábulo. e Amor Natural representam o último lirismo de
O experimentalismo, a ruptura com a sintaxe, a adoção Drummond, marcado pela libertação da libido, pelo
de frases nominais, a exploração dos estratos sonoros erotismo, já exorcizado do recato, da culpa e do
(através das aliterações, assonâncias, coliterações, ecos, abafamento imposto pela infância reprimida. Observa
onomatopeias, rimas internas), a exploração do visual, os José Guilherme Merquior que, no entardecer da vida, o
jogos tipográficos e a atitude lúdica diante da palavra-coisa poeta já não mais aspira à felicidade ascética, fria, na
são pressupostos da poética drummondiana desde o primeiro silenciosa imobilidade do nirvana, já não quer se reverter
livro: correm na mesma direção do Concretismo, mas nada à mãe-terra. O que explode, na direção oposta, é o
devem a ele. Aliás, já estavam propostos desde a década de erotismo, Eros ultrapassando Tanatos, a morte.
1940. Basta ler este fragmento de Confissões de Minas: Transcrevemos a lúcida observação de Merquior, in
Verso e Universo de Drummond, sobre esse reflores-
À medida que envelheço, vou me desfazendo dos cimento da vida e do corpo:
adjetivos. Chego a ver que tudo se pode dizer
sem eles, melhor que com eles. Por que “noite Em um fragmento de Passeios na Ilha,
gélida”, “noite solitária”, “profunda noite”? Drummond faz esta reflexão desiludida:
Basta “a noite”. O frio, a solidão, a profun- “Primeira fase: o poeta imita modelos célebres.
didade da noite estão latentes no leitor, prestes Última fase: o poeta imita-se a si mesmo.
a envolvê-lo, à simples provocação dessa Naquela, ainda não conquistou a poesia: nesta,
palavra “noite”. a perdeu”.

V – Os últimos livros de Drummond (1968-1987) 1.3. A dialética Eu versus Mundo

A partir de Lição de Coisas, o lirismo de Drummond Outra visão que já se incorporou à fortuna crítica de
não assume uma tendência definida ou unidirecional, o Drummond é a proposta por Affonso Romano de
que não quer dizer que decaia. Mantendo-se nos elevados Sant’Anna, fundada na crítica do estofo estruturalista e
patamares a que se alçou em A Rosa do Povo, Claro em métodos estatísticos, na pesquisa do “caráter
Enigma e Lição de Coisas, Drummond reelabora alguns sistêmico” da construção poética drummondiana.
temas e formas dos primeiros livros, acrescenta algumas Transcrevemos a apresentação desse estudo:
vertentes novas: a poesia de circunstância e o erotismo.
Boitempo é todo consagrado à memória de Itabira, de A visão segmentada da poética drummondiana,
Minas, da infância, da puberdade e da família, para seja por aqueles que mal viram o conjunto, seja
“ludibriar os fantasmas itabiranos”. A ironia e o humor, por aqueles que se retiveram em pormenores,
opondo-se ao patético, esfriam a temperatura emocional deve-se ao fato de não se ter percebido um dado
do diálogo do “homem triste de Itabira”, do “fazendeiro básico: a estrutura dramática dessa obra, onde
sem fazenda”, do “fazendeiro do ar”, com suas origens. há nitidamente um personagem (o poeta
A sociedade patriarcal e a infância, o olhar sociológico e gauche) disfarçado em heterônimos (José,
a lírica individual se entrecruzam: o poder dos Carlos, Carlito, K., Robinson Crusoé etc.), des-
fazendeiros, a casa senhorial, os ecos da escravidão e a crevendo uma ação no tempo e no espaço,

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concebidos como um continuum (= concebidos II – Eu menor que o mundo


como uma sequência). O poeta se diversificou
em egos auxiliares dentro da própria cena, para Não, meu coração não é maior que o Mundo.
conhecer os múltiplos aspectos de seu Ser, mas É muito menor.
ao se disfarçar em vários atores, não deixa (“Mundo Grande”, in Sentimento do Mundo)
nunca de ser espectador e crítico de seu próprio
drama existencial. Na segunda etapa, o personagem já se deslocou do
canto-província e, à medida que a enorme realidade pesa
O espetáculo do teatro do mundo fascina esse sobre seus ombros, vai-se sentindo diminuto e
personagem-autor de linhagem existencialista, com quebrantado. Descobre o tempo-espaço, locomove-se das
alguns traços do homem barroco. Os três atos do drama montanhas fechadas de seu Ser para o mar do tempo;
existencial do gauche (= desajeitado) poderiam ser expõe-se ao desgaste, debate-se entre o claro e o escuro
resumidos como três momentos inseparáveis de sua das horas, descobre as mil e uma dobras de aparente
trajetória: divisão presente-passado-futuro. Inicia, então, uma
“viagem” pelo “secreto latifúndio” de seu Ser, depois de
EU MAIOR QUE O MUNDO se ter percebido como um “Ser para a morte”.
EU MENOR QUE O MUNDO O “sentimento do mundo” desabrocha, mascarado
EU IGUAL AO MUNDO pela solidão, pela impotência do homem diante de um
mundo frio que o reduz a objeto. O aprofundamento da
Observa-se aí a fidelidade à oposição básica Eu versus prospecção do “eu” corre paralelamente com a sondagem
o Mundo, que é a síntese de um vasto sistema de do mundo, com a poesia social, focalizando a política, a
oposições da obra: claro x escuro, província x metrópole, guerra e o sofrimento do homem, com o qual se solidariza.
essência x aparência, tudo x nada, esquerda x direita, Sentimento do Mundo, A Rosa do Povo e José configuram
instante x eternidade, construção x destruição, humor x essa etapa.
seriedade, solidariedade x autofechamento, vida x morte.
Aquela oposição fundamental – Eu versus o Mundo – se III – Eu igual ao mundo
poderia chamar em linguagem mais técnica e estruturalista
de modelo fundamental; e, às suas três derivações, (...)
modelos parciais, de cuja interação resulta o caráter Mas as coisas findas
sistêmico de sua poesia. Muito mais que lindas
essas ficarão.
I – Eu maior que o mundo (“Memória”, in Claro Enigma)

Mundo mundo vasto mundo Nessa terceira etapa, o poeta atinge o equilíbrio: sua
mais vasto é meu coração. poesia converte-se numa sistematização da memória,
(“Poema de Sete Faces” numa maneira de se reunir através do tempo. O sujeito
– Primeiro poema de Alguma Poesia) (gauche), que vinha interagindo com o objeto (mundo),
encontra o equilíbrio (relativo). A ironia inicial, que se
Na primeira etapa, o personagem está postado num entretinha no simples humorístico, desenvolve sua
canto escuro, imóvel e torto, contemplando a cena a dialética latente e transmuda-se num exercício metafísico,
distância e assumindo uma posição predominantemente com um tom barroco de desconsolo. Nessa etapa, o poeta
irônica e egocêntrica. Vê os conflitos, reflete sobre a “vida já realizou grande parte de sua travessia no mar do tempo:
besta”, a província, a família, numa posição de experimentou a morte alheia e sua morte parcial e
equidistância, de irreverência. O sentimento é contido, aprendeu a recriar sua vida no plano poético da memória;
projetando-se num texto objetivo, seco e de versos curtos sujeito e objeto se interpenetram dialeticamente. O lirismo
e descarnados, sem transbordamento emocional. se torna mais autorreflexivo, filosófico. Dá-se a epifania
Refletindo a irreverência e a atitude iconoclasta dos máxima de sua vida-obra e a “Máquina do Mundo”,
modernistas de 1922, dos quais se confessa seguidor, famoso poema de Claro Enigma, se abre, oferecendo-lhe
expande-se em inúmeros poemas-piada. É a fase de a possível solução de todos os enigmas, mas o eu lírico
Alguma Poesia e Brejo das Almas. recusa-a. A poesia metafísica e a poesia objetual que

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aparecem, respectivamente, em Claro Enigma e Lição de a) a versificação variada, herética, de seus poemas;
Coisas revelam, naquele, a busca metafísica, como se nota b) o papel do humor (até o poema-piada);
nos processos de interrogação e negação, e, neste, a c) a frequência com que são tratados os problemas
experimentação linguística e poética, que retomam e humanos numa ótica em que há o efeito do
ampliam, na plena maturidade expressiva e reflexiva do estranhamento poético.
poeta, os temas e formas anteriores indiciados na década d) a escrita mesclada (correlato estilístico da ótica
de 30. dessacralizadora), bastante permeável às associações
surrealistas;
e) finalmente, o uso de “efeitos de distanciamento”
2. DA “VIDA BESTA” AO testemunha uma concepção não empática, antilírica.
SENTIMENTO DO MUNDO (1925-1940)
A gama temática da primeira poesia de Drummond
2.1. O primeiro lirismo de Drummond compreende, sobretudo, a figuração humorístico-realista
da vida cotidiana, as recordações da vida da província e os
Das diversas linhas interpretativas sobre a obra de quadros críticos explícitos ou tácitos na erosão dos valores
Drummond, optamos pela de José Guilherme Merquior, estabelecidos, dos clichês morais do establishment
em Verso Universo em Drummond. É a mais eclética e a burguês e brasileiro. Os poemas centrados em estados de
que melhor se encaixa à diversidade da obra do poeta alma individuais e o lirismo erótico se combinam, muitas
mineiro, que não se pode acomodar dentro dos limites vezes, com as linhas temáticas que acabamos de enumerar,
rígidos de abordagens específicas (estruturalista, o que leva à despetrarquização do poema de amor e a toda
formalista, impressionista, marxista), que marcam as uma estratégia desidealizante na apresentação lírica do eu.
tendências de nossa produção acadêmica. Municiado por O polo subjetivo do quadro existencial dos dois
uma larga erudição, mas sem pedantismo, num estilo primeiros livros (Alguma Poesia e Brejo das Almas) é o
límpido e agradável, Merquior analisa a produção motivo do gauche (palavra francesa que significa
drummondiana de 1925 a 1968, na obra que resultou de inadaptado, esquisito, esquerdo, avesso). O polo objetivo
sua tese de doutoramento, aprovada pela Sorbonne, em é o motivo da “vida besta” num mundo sem sentido.
junho de 1972. Mutilamos algumas citações e Em sua dimensão mais íntima, a poesia da vida
acrescentamos algumas anotações aos textos da antologia, cotidiana emerge como uma interpretação artística da
sem prejuízo do arcabouço geral da obra de Merquior, a existência do homem. O eu gauche de Drummond
quem remetemos o aluno interessado no aprofundamento, revelará uma postura muito refratária às alienações do
muito além do que se possa exigir no vestibular: estilo existencial contemporâneo, pois a experiência
Num esboço autobiográfico encomendado pela traumatizante do jovem fazendeiro, burocratizada
Revista Acadêmica, Drummond nos dá uma interpretação posteriormente nas capitais, e a ambivalência dos
sucinta de sua evolução lírica até Sentimento do Mundo. sentimentos do “itabirano”, atraído pela urbs viciosa e
Segundo ele, Alguma Poesia traduz uma “deleitação inumana e, ao mesmo tempo, desgostoso dela, predispu-
ingênua” no tocante ao indivíduo; em Brejo das Almas, o seram-no a apreender em profundidade o sentido psíquico
individualismo se exacerba, mas ao mesmo tempo é e moral do destino do homem moderno: a tensão. Ora, o
submetido a uma visão crítica; enfim, Sentimento do conteúdo sociológico do lirismo drummondiano é tanto
Mundo resolve “as contradições elementares” da poesia mais rico pelo fato de sua aventura pessoal – o filho do
drummondiana. fazendeiro tornado burocrata na grande cidade – coincidir
A dedicatória de Alguma Poesia – “a Mário de com a evolução social do Brasil. E, com efeito, é em torno
Andrade” – designa de forma inequívoca a corrente da década 1920-30 que se inicia a modernização da
literária a que se prendia Drummond: o Modernismo da sociedade brasileira. Só nessa época, as estruturas sociais
fase heroica (1922-30), embora o poeta se situe na e culturais do velho colosso agrário e patriarcal começam
Segunda Geração Modernista (1930-45). A linguagem a ceder, irreversivelmente, à pressão das classes urbanas,
poética drummondiana não se converteu – como a de concentradas principalmente no Rio de Janeiro e em São
Manuel Bandeira, Jorge de Lima ou Cassiano Ricardo – à Paulo, cada vez mais povoadas e poderosas.
estética modernista: ela nasceu modernista. Várias A poética do jovem Drummond repousa na equação
indicações já se encontram, no jovem Drummond, que o poesia = vivência. A ideia clássica e ao mesmo tempo
ligam à literatura de vanguarda: contemporânea de que a poesia é antes de tudo arte ainda

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não tem, aos olhos do poeta, maior significação (o que não As casas espiam os homens
o impede de compor em outro padrão estético, mais 5 que correm atrás de mulheres.
formal e sem rupturas, seus versos). A poesia é captar o A tarde talvez fosse azul
acontecimento; não o dos jornais, bem entendido, mas o não houvesse tantos desejos.
acontecimento verdadeiramente humano: a revelação
súbita das violências da vida, ou pelo menos do sentido O bonde passa cheio de pernas:
oculto de seu curso “normal”. Mas eis que o poeta, gauche pernas brancas pretas amarelas.
por maldição, de um “anjo torto” e rural, logo descobre 10 Para que tanta perna, meu Deus, pergunta
“que esta vida não presta” [meu coração.
(Epigrama para Emílio Moura) Porém meus olhos
não perguntam nada.
Individualista, ele cultiva, portanto, a evasão, mesmo
em se tratando de fugas emolduradas por essa “vacuidade O homem atrás do bigode
do ideal”, característica da literatura moderna. Não é sério, simples e forte.
obstante, no terceiro livro, com o advento do “sentimento 15 Quase não conversa.
do mundo”, o individualismo é renegado; há uma ética do Tem poucos, raros amigos
engajamento – que, entretanto, não exclui a solidão. É o homem atrás dos óculos e do bigode (3).
então que o poema drummondiano se afasta do humor
ambíguo. Enquanto um verso livre bem maleável substitui Meu Deus, por que me abandonaste
os metros curtos ou de maiores extensões ritmadas de se sabias que eu não era Deus
Alguma Poesia e de Brejo das Almas, os “efeitos de 20 se sabias que eu era fraco.
distanciamento” do estilo mesclado dão lugar a uma visão
patética que, apesar de bastante discreta e contida, nem por Mundo mundo vasto mundo, (4)
isso se afasta menos da perspectiva estranha dos livros se eu me chamasse Raimundo
precedentes. Estas vias estilísticas – Modernismo “nu e seria uma rima, não seria uma solução.
cru”, de ruptura (Alguma Poesia, 1930), e Modernismo de Mundo mundo vasto mundo,
tendência social (Sentimento do Mundo, 1940) – irão 25 Mais vasto é meu coração (5)
desembocar em seguida, com grandes modificações, na
obra-prima de estilo maduro que é A Rosa do Povo (1945).
2 A perspectiva “grotesca”, estranha apoia-se na comicidade, mas
2.2. Alguma Poesia (1930) não elimina a consideração séria, problemática do mundo.
Drummond se vê como inadaptado incompreendido, ridículo,
Esta obra, com 49 poemas, reúne a produção em verso maldição de um obscuro anjo torto. O eu lírico é um pobre coitado,
desde 1925, por vezes disseminada em jornais e revistas fraco, distante dos outros (versos 13 a 20).
3 O poema não tem um desenvolvimento lógico. A descontinuidade
literárias do primeiro tempo modernista, como ocorreu
é uma característica do simultaneísmo cubofuturista, que Mário de
com o poema “No Meio do Caminho”, impresso na revista Andrade chamava "polimorfismo". A sucessão de imagens e ideias
mais radical do Modernismo paulistano — Revista de é imprevisível: o retrato do gauche (versos 1 a 3) vem seguido de
Antropofagia (1928-1929) –, da qual Drummond foi uma tomada de rua (versos 4 e 5), através de uma prosopopeia
irônica, que é seguida de uma notação da tarde (versos 6 e 7), da
colaborador esporádico. O livro começa com o “Poema
cena do bonde (versos 8 a 10), do autorretrato (versos 13 a 17) e
de Sete Faces”, que transcrevemos a seguir: assim sucessivamente, como uma colagem cubista.
4 Outro procedimento importante é a repetição da palavra “mundo”
por seis vezes (versos 21 e 24). A “estilística da repetição”
POEMA DE SETE FACES
(constante em Drummond) visa à apreensão do objeto poético e,
nesse caso, também reforça a ironia da rima.
Quando nasci, um anjo torto 5 O antilirismo intencional também está presente: observe que os
desses que vivem na sombra versos de 18 a 21 (com apóstrofes “Meu Deus” e “Mundo mundo
disse: Vai, Carlos! Ser gauche (1) na vida (2). vasto mundo”) criam um crescendo emocional, subitamente
truncado no verso 23 (as rimas não são soluções existenciais —
condenação ao esteticismo, ao beletrismo neoparnasiano da Belle
1 Gauche: adjetivo francês que significa “sem jeito”, desajeitado, Époque). Isso é comum em Drummond: quando o poema começa
indivíduo desajustado, à esquerda dos acontecimentos. É a palavra a resvalar para o sentimentalismo, para a emoção solta, a visão
em que se cristalizou a essência da personalidade estética do poeta crítica do poeta interrompe o crescendo lírico, pela interposição
e que sintetiza sua postura em face de si e do mundo. do humor corrosivo, do antilirismo.
–7
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Eu não devia te dizer Lá longe meu pai campeava


mas essa lua no mato sem fim da fazenda.
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo (6) (7). E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

INFÂNCIA
A Abgar Renault CONSTRUÇÃO

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Um grito pula no ar como foguete.
Minha mãe ficava sentada cosendo. Vem da paisagem de barro úmido, caliça e
Meu irmão pequeno dormia. [andaimes hirtos.
Eu sozinho menino entre mangueiras O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.
lia a história de Robinson Crusoé, (8) O sorveteiro corta a rua.
Comprida história que não acaba mais. (9)
E o vento brinca nos bigodes do construtor. (10)

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu


a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha TOADA DO AMOR
café gostoso
café bom. E o amor sempre nessa toada:
briga perdoa perdoa briga.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim: Não se deve xingar a vida,
— Psiu... Não acorde o menino. a gente vive, depois esquece.
Para o berço onde pousou um mosquito. 5 Só o amor volta para brigar,
E dava um suspiro... que fundo! para perdoar,
amor cachorro bandido trem. (11)

Mas, se não fosse ele, também


que graça que a vida tinha?
6 O poema é composto em versos livres, não metrificados. Mas, em
alguns versos (4 a 7, por exemplo), a métrica permanece.
Drummond vale-se de um ritmo muito elástico, que vai da 10 Mariquita, dá cá o pito,
regularidade canônica à dissonância áspera. Não é uma poesia para no teu pito está o infinito. (12)
ser cantada; a rigor, não é sequer poesia para ser falada — é antes
um texto para ser lido.
7 Observe que os elementos de conotação cômica (versos 1, 4-5,
21-25) não chegam a suprimir a atitude angustiada, explícita na
apóstrofe dos versos 18 e 21, mas na verdade subentendida em 10 O despojamento desse poema, centrado na vida cotidiana, lembra
todo o poema, na problematização dos costumes (2a e 3a estrofes), a simplicidade de Manuel Bandeira. As imagens sucedem-se em
no contraste entre a seriedade burguesa e a debilidade do eu lírico comparação ou símile (verso 1) e prosopopeia (verso 5). O eu lírico
(versos 13-20), na afirmação final do “coração” separado do se ausenta do texto.
“mundo” (versos 24-25) e, enfim, no epílogo de expansão 11 O tratamento do tema amoroso nessa toada é típico da irreverência
etílico-sentimental. Instala-se uma ambiguidade entre o riso e a dessacralizadora do Primeiro Tempo Modernista e se aproxima do
preocupação, entre a comédia e o problema vivido, ambiguidade poema-piada: “amor cachorro bandido trem”. O lirismo
que o poema se inclina antes a explorar que a resolver. drummondiano é sempre contido pela ironia, pelo antilirismo;
8 Robinson Crusoé: protagonista do romance homônimo de Daniel salvo nos últimos livros do poeta, em que Eros irrompe com toda
Defoe, escrito em 1719, personagem náufrago que vive numa ilha. a força. Em “Toada do Amor”, há um lirismo ausente de ternura,
9 A infância itabirana vai reaparecer em quase toda a obra de de idealização de confissões amorosas, empregando-se vocábulos
Drummond, especialmente em Boitempo. A ternura pela terra é populares, distantes do tom solene dedicado a esse tema.
aqui versada de forma bem modernista, em versos livres e imagens 12 Provérbio ou frase feita do coloquial mineiro que fecha o poema,
soltas. rompendo a tensão lírica dos versos 8 e 9.
8–
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POLÍTICA LITERÁRIA CIDADEZINHA QUALQUER


A Manuel Bandeira
Casas entre bananeiras
O poeta municipal mulheres entre laranjeiras
discute com o poeta estadual pomar amor cantar.
qual deles é capaz de bater o poeta federal.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Enquanto isso o poeta federal
Um burro vai devagar.
tira ouro do nariz. (13)
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus. (16)

SENTIMENTAL
QUADRILHA (17)
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão. João amava Teresa que amava Raimundo
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
E debruçados na mesa todos contemplam que não amava ninguém.
esse romântico trabalho. João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Desgraçadamente falta uma letra, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto
uma letra somente [Fernandes
que não tinha entrado na história. (18)
para acabar teu nome!

– Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!


FAMÍLIA

Eu estava sonhando... Três meninos e duas meninas,


E há em todas as consciências um cartaz amarelo: sendo uma ainda de colo.
Neste país é proibido sonhar. (14) A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.
POESIA
A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
Gastei uma hora pensando num verso o cigarro, o trabalho, a reza,
que a pena não quer escrever. a goiabada na sobremesa de domingo,
No entanto ele está cá dentro o palito nos dentes contentes,
inquieto, vivo. o gramofone rouco toda noite
Ele está cá dentro e a mulher que trata de tudo.
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
16 A reminiscência da infância itabirana em Alguma Poesia e Brejo
inunda minha vida inteira. (15)
das Almas vem sempre acompanhada da ironia, do ressentimento.
O poeta não tem nenhuma indulgência com a “vida besta” ou
13 Poema-piada ironizando a “hierarquia” poética. O tom de piada, interiorana.
gaiato, não oculta, porém, o sentido crítico à literatura inútil, 17 O título alude à dança popular, em que os pares entram em cena
provinciana, ainda quando urbana, da roda vazia dos cafés, com encadeados, mas alternam-se como ocorre no poema.
discurso afetado, vazio e pretensioso.
18 O poema-piada, em versos livres, é uma desvalorização irônica do
14 A mistura da visão humorística e surrealista sobre a existência casamento. A única que se casou foi a que não amava ninguém —
cotidiana é a marca desse poema em versos livres. Lili. O nome de seu marido, J. Pinto Fernandes, sugere que Lili se
15 O metalirismo, metapoesia, ou poesia metalinguística é a reflexão casou por interesse, sem intimidade (observe que J. Pinto
sobre a própria poesia. Nesse texto, Drummond parece ainda preso Fernandes lembra pessoa jurídica, firma, tem status para o
a uma concepção “romântica” do exercício poético. casamento patriarcal).
–9
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O agiota, o leiteiro, o turco, Depois fui pirata mouro,


o médico uma vez por mês flagelo da Tripolitânia.
o bilhete todas as semanas Toquei fogo na fragata
branco! mas a esperança sempre verde. onde você se escondia
A mulher que trata de tudo da fúria de meu bergantim.
e a felicidade. (19) Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal da cruz
e rasgou o peito a punhal...
ANEDOTA BÚLGARA Me suicidei também.

Era uma vez um czar naturalista Depois (tempos mais amenos)


que caçava homens. fui cortesão de Versailles,
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas espirituoso e devasso.
[e andorinhas, Você cismou de ser freira...
ficou muito espantado Pulei muro de convento
e achou uma barbaridade. (20) mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,


BALADA DE AMOR ATRAVÉS remo, pulo, danço, boxo, (22)
DAS IDADES tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
Eu te gosto, você me gosta (21) boxa, dança, pula, rema.
desde tempos imemoriais. Seu pai é que não faz gosto.
Eu era grego, você troiana, Mas depois de mil peripécias,
troiana mas não Helena. eu, herói da Paramount,
Saí do cavalo de pau te abraço, beijo e casamos. (23)
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano, COTA ZERO


perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba Stop
encontrei-te novamente. A vida parou
Mas quando vi você nua Ou foi o automóvel? (24)
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

22 Boxo: neologismo derivado do verbo boxear, lutar boxe.


19 A enumeração das coisas e dos seres que compõem o cotidiano 23 A sátira à modernidade é evidente na alusão aos modismos
mineiro permite o efeito de distanciamento com que o poeta hollywoodianos, aos clichês do cinema. O amor, até a maturidade
focaliza o “quadro” realista. A montagem, por livre associação de do poeta, será uma temática recorrente, revisitada com olhos que
imagens e ideias, retoma a técnica cubista. vão da pura negação à ironia e da cautelosa reflexão ao império
20 Os germens da poesia social participante são aqui recobertos pelo erótico dos sentidos.
humor corrosivo do poema-piada. Ironiza-se o absurdo da banali- 24 Esse poema lembra os poemas-minuto de Oswald de Andrade. O
dade do mal. poeta ironiza a dependência do homem à tecnologia, como se parar
21 O falar coloquial, antigramatical, é incorporado com frequência na o automóvel causasse a impressão de se ter cessado a vida. São
primeira fase da poesia drummondiana e modernista. fenômenos da mesma grandeza e natureza: vida e tecnologia.
10 –
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Exercícios
Texto para as questões 1 e 2. Texto para a questão 3.

Casas entre bananeiras Quando nasci, um anjo torto


Mulheres entre laranjeiras desses que vivem na sombra
Pomar amor cantar. disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens


Um homem vai devagar.
que correm atrás de mulheres.
Um cachorro vai devagar.
A tarde talvez fosse azul,
Um burro vai devagar.
não houvesse tantos desejos.
Devagar… as janelas olham.
O bonde passa cheio de pernas:
Eta vida besta, meu Deus. pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu
[coração.
1. (UEL-MODIFICADO) – O poema acima faz parte
do primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, Porém meus olhos
Alguma poesia, publicado em 1930, e tem como título não perguntam nada.
“Cidadezinha Qualquer”. Sobre esse texto, é correto
(ANDRADE, Carlos Drummond de.
afirmar que
Alguma Poesia.)
a) denuncia de forma irônica e com uma linguagem
sintética a monotonia e o tédio que predominam em
3. O poema acima está marcado pelo espírito do
pequenas cidades do interior.
Primeiro Tempo Modernista, o que se percebe pela
b) mostra com sentimento piedoso o desajuste existen-
a) ironia na abordagem da paisagem brasileira.
cial do homem diante da vida.
b) disposição aparentemente desconexa entre as estrofes.
c) retrata de modo triste e melancólico a desventura
c) iconoclastia na tematização do amor romântico.
amorosa do poeta na cidade de Itabira, onde nasceu.
d) euforia diante dos símbolos nacionais de progresso.
d) apresenta de maneira predominante uma nostalgia por
e) oposição entre subjetividade e questões sociais.
meio de uma linguagem simples e despojada de
elementos estéticos.
e) expressa uma preocupação de ordem social e política
que sintetiza o “sentimento do mundo” do eu lírico.
Texto para a questão 4.

POLÍTICA LITERÁRIA
O poeta municipal
2. (FAMIH-MG-MODIFICADO) – Todas as carac- discute com o poeta estadual
terísticas modernistas citadas abaixo podem ser
identificadas no poema de Drummond, exceto: qual deles é capaz de bater o poeta federal.
a) reaproveitamento da cultura popular e do coloquial, Enquanto isso o poeta federal
uso de uma linguagem simples, fácil, próxima da tira ouro do nariz.
expressão oral. (Carlos Drummond de Andrade,
b) concepção do poético como um texto aberto; um Alguma poesia)
discurso que oferece multiplicidade de sentidos e
interpretações. ANEDOTA BÚLGARA
c) crítica ao mundo rural, ao universo primitivo, distante
do progresso, da civilização mecânica e industrial. Era uma vez um czar naturalista
d) exploração do imprevisível, do inesperado; o corte que caçava homens.
brusco, a fragmentação possibilitando o surgimento Quando lhe disseram que também se
do humor. [caçam borboletas e andorinhas,
e) valorização do homem comum, da ordem social e da ficou muito espantado
vida cotidiana.
e achou uma barbaridade.
(Carlos Drummond de Andrade,
Alguma poesia)

– 11
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4. Costuma-se reconhecer que estes poemas, Texto para a questão 5.


pertencentes ao Modernismo, apresentam aspectos
característicos do “poema-piada”, modalidade QUADRILHA
bastante praticada nesse período literário.
a) Identifique um recurso de estilo tipicamente João amava Teresa que amava Raimundo
modernista que esteja presente em ambos os poemas. que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
Explique-o sucintamente. que não amava ninguém.
b) Considere a seguinte afirmação: João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
O poema-piada visa a um humorismo instantâneo Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
e, por isso, esgota-se em si mesmo, não indo além
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto
desse objetivo imediato.
A afirmação aplica-se aos poemas aqui reproduzidos? [Fernandes
Justifique brevemente sua resposta. que não tinha entrado na história.
(ANDRADE, Carlos Drummond de.
Alguma Poesia.)

5. Com base na leitura do poema, responda ao que se


pede.
a) Como o título alude a elementos formais e temáticos
do poema?
b) Que crítica pode ser inferida no fato de Lili, a perso-
nagem que não amava ninguém, ser a única a se
casar?

12 –
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GABARITO
PORTUGUÊS
OBRAS DA FUVEST

ALGUMA POESIA
1) É inquestionável que a linguagem de “Cidadezinha c) o título do texto já deixa claro que não se trata
qualquer” se apresenta de maneira sintética, o que de um ambiente rural, mas urbano;
é, aliás, marca drummondiana. Além disso, seu e) a caracterização da vida provinciana como
aspecto irônico é garantido pelo final, que, em “besta” invalida a ideia de que haja no poema
anticlímax humorístico, rompe o tom do resto do uma “valorização do homem comum, da ordem
texto. Por meio desses procedimentos, o eu social e da vida cotidiana”.
poemático denuncia a vida das pequenas cidades Resposta: D
do interior do país (representadas em uma
“cidadezinha qualquer”) em que as ações são
sempre as mesmas (“vai devagar”), havendo 3) Cada estrofe apresenta um tema diferente: a
apenas mudança do sujeito (um homem, um primeira lida com a apresentação simbólica do
burro, um cachorro). nascimento do eu poemático; a segunda, com a
Erros das demais alternativas: ideia de que os desejos podem distorcer a
b) o poema não apresenta tom piedoso, tampouco consciência que se tem da realidade; a terceira,
um desajuste existencial, mas apenas um com o espanto diante do mundo. Dessa forma,
confronto entre a perspectiva urbana e a ocorre uma aparente desconexão entre essas
provinciana; estâncias.
c) não há elementos no texto que permitam inferir Resposta: B
que se trate de Itabira, muito menos que se
esteja tematizando uma decepção amorosa;
d) a nostalgia não é tema do poema; além disso, 4) a) Ambos os poemas são compostos em versos
sua linguagem, marcada por paralelismos chamados “livres”, pois não se conformam às
sintáticos, mostra uma preocupação consciente convenções da métrica tradicional, isossilábica
com a elaboração literária a representar a (isto é, na qual os versos “medem” o mesmo
mesmice existencial; número de sílabas). Em ambos os poemas, o
e) não há elementos políticos no texto, tampouco o registro de linguagem é coloquial, ou seja,
desenvolvimento do tema do “sentimento do próprio da conversação, despido dos traços
mundo”; aliás, não é do mundo (abordagem retóricos que caracterizam o discurso de
universal) que o eu poético fala, mas da registro “elevado”, típico da tradição literária
província (abordagem local). de que o Modernismo de então procurava
Resposta: A afastar-se. Em ambos os poemas, o humor
(outro ingrediente de predileção modernista) é
essencial ao efeito crítico e não compromete sua
2) O poema tem a configuração do poema-piada, o gravidade.
que se nota não só pela sua extensão diminuta, mas b) Nos dois poemas, o humorismo é instrumento
também pelo seu final surpreendente, inesperado, de crítica, de “crítica de vida”: em “Política
o que contribui para o seu tom humorístico. Literária”, trata-se da vida cultural, suas
Erros das demais alternativas: relações com o poder e suas hierarquias
a) o texto não utiliza elementos advindos da espúrias; em “Anedota Búlgara”, trata-se da
cultura popular; opressão política.
b) o poema não possibilita múltiplas interpre-
tações, ou seja, não se configura como uma
obra aberta;

– 13
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5) a) A quadrilha é uma dança folclórica em que


casais em determinado momento trocam de
par, em outro realizam uma separação de
integrantes. O primeiro aspecto está indicado
nos versos de 1 a 3 do poema em análise graças
à troca constante do alvo do sentimento
amoroso: quem é objeto direto de uma oração
é retomado por meio do pronome relativo da
oração seguinte, que por sua vez assume a
função de sujeito de uma nova sentença, com
um outro objeto direto, que também será
retomado por um pronome relativo com função
de sujeito. Já os versos de 4 a 7 representam a
separação por meio da apresentação de
diferentes orações em que se declara que cada
personagem assume um destino diferente, sem
se unir com os demais membros da narração.
b) O fato de Lili, a que não amava ninguém,
contrair matrimônio permite perceber a disso-
ciação que o eu poemático faz entre amor e
casamento. Prova disso é que essa personagem
se une a alguém que não tem nome, mas
sobrenome (J. Pinto Fernandes), asseme-
lhando-se muito mais a uma empresa, a uma
razão social do que a uma pessoa, o que torna
subentendida um enlace que não está baseado
em afetividade, mas em interesses comerciais,
materiais.

14 –

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