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ALGUMA POESIA
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE A poesia acadêmica, anterior a 1922, era bem afastada
Itabira (MG), 1902 – Rio de Janeiro (RJ), 1987 tanto do Brasil quanto de seu século. Assim, a primeira
grande contribuição do verso drummondiano consistiu em
1. DRUMMOND: O MODERNO E O ETERNO apreender o sentido profundo da evolução social e cultural
de seu país. A partir de sua própria situação de filho de
E como ficou chato ser moderno. fazendeiro emigrado para a grande cidade, justamente na
Agora serei eterno. época em que o Brasil começava a sua metamorfose de
país agrário e com predominância da população em zona
Qual a contribuição da poesia de Drummond à rural para sociedade urbano-industrial, Drummond dirigiu
Literatura Brasileira? o olhar do lirismo para o significado humano de estilo
Tendo enraizado seus primeiros livros – Alguma Poesia existencial moderno. Desde então, tornou sua escrita
(1930) e Brejo das Almas (1934) – no modernismo extraordinariamente atenta aos dois fenômenos de base
irreverente e iconoclasta de 1922, Drummond acompanhou, desta mesma evolução histórica: o sistema patriarcal e a
a partir daí, todos os desdobramentos da literatura moderna, sociedade de massa. Sua abertura de espírito, sua
incorporando à sua dicção personalíssima todos os temas e sensibilidade à questão social, sua consciência da História
formas em que se espraiou a poesia brasileira, em mais de impediram-no de superestimar as formas tradicionais de
meio século. Assim, a poesia de Drummond sintetiza (e existência e de dominação, mas, ao mesmo tempo, ele se
transcende), na multiplicidade de aspectos que abrangeu, a serviu do “mundo de Itabira” – símbolo do universo
evolução de toda nossa poesia moderna: do poema-piada à patriarcal – para detectar, por contraste, os múltiplos
poesia participante, da poesia experimental às formas rostos da alienação e da angústia do indivíduo moderno,
clássicas, dos exercícios lúdicos ao lirismo intimista, da esmagado por uma estrutura social cada vez menor em
poesia de circunstância à poesia metafísica, do poeta social relação ao humanismo.
ao autofechamento, do humanismo solidário ao niilismo, Profundamente enraizada numa época de transição, a
do poeta itabirano ao poeta universal, da “secura” à ternura, mensagem poética de Drummond se elevou, dessa forma,
de Thanatos (morte) a Eros (amor), do humorismo ao ao nível das significações universais. Nacional por sua
pessimismo, do moderno ao eterno. linguagem e por sua inspiração, sua obra nada tem de
Drummond expressou, em todas as suas vertentes, a exótica; não é sequer “regionalista”, mesmo que se trate
sensibilidade moderna, isto é, a experiência existencial do de um escritor importunado por suas origens. Além de
homem da grande cidade e da sociedade de massa, universal, a poesia de Drummond é muito atual. Poucos
convertendo-a em alta literatura lírica, englobando a líricos de nosso tempo terão mostrado tanta fidelidade aos
escrita de ruptura radical e a tradição clássica. movimentos essenciais do espírito moderno, às suas
Certamente, o autor de A Rosa do Povo e de Claro inquietações, desconfianças, perplexidades, críticas, com
Enigma não foi o iniciador do lirismo moderno no Brasil; legítimo desapreço pelos clichês ideológicos e pelas
sabe-se o quanto ele deve à revolução estética dos pseudofilosofias. Nesse sentido, o humor de Drummond –
primeiros modernistas e às conquistas de 1922. Seu papel na aparência inclinado ao niilismo – não passa, no fundo,
foi antes o de realizar a promessa literária do modernismo de uma estratégia intelectual radicalmente lúcida e
de choque, criando uma poesia rica e substancial, liberadora.
superando os três defeitos maiores da literatura acadêmica Drummond é um dos primeiríssimos poetas brasileiros
de antes de 1922: o servilismo em relação aos modelos e o mais importante de sua época quanto ao questiona-
europeus, a alienação no tocante à realidade social, mento filosófico da vida, do homem e do mundo,
concreta, e a superficialidade intelectual. constituindo uma lírica filosófica densa, ampla e
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inesgotável. Cantor da terra e da cidade, analista sutil da evolução da lírica de Drummond, que acompanham de
criação poética, moralista, no sentido de análise da perto a evolução da própria poesia moderna brasileira, por
condição humana, fascinado pelas paixões do homem e mais de meio século.
pela ordem do mundo, ele é, depois de Machado de Assis Didaticamente, com os riscos de embaralhamento do
– com quem divide tanto o humor desiludido quanto a conjuntural e do estrutural na obra de Drummond, alguns
atitude lúdica no tocante à forma e ao verbo –, o principal livros escolares reconhecem quatro divisões, geralmente
exemplo, na poesia brasileira, da obra literária voltada à estipuladas como “fases” de sua poesia.
problematização da vida. “A única função válida e legítima
de um texto literário, pelo menos desde a Revolução I – Poesia irônica (1925-1940)
Industrial, é justamente a problematização do real”, diz
José Guilherme Merquior, que temos seguido neste passo; Marcado pela influência da atitude irreverente dos
e conclui: “Como todo grande poeta (e não sendo senão modernistas de 1922, o humor corrosivo de Drummond
poeta e somente poeta), Carlos Drummond de Andrade é revela uma forma mineiramente cautelosa, desconfiada,
muito mais que um bom escritor. É um grande praticante pessimista e reservada de refletir. À maneira de Oswald
da poesia como jogo do conhecimento e da sabedoria.” de Andrade e de Mário de Andrade (confessadamente o
Ressalte-se que Drummond também foi cronista. “mestre” do poeta mineiro), Drummond realiza o poema-
piada e assume uma certa atitude de “não-me-importismo”
1.1. Os temas drummondianos irônico. Esses primeiros poemas, dizia Drummond:
“traduzem uma grande inexperiência do sofrimento e uma
Ao organizar, em 1962, uma antologia, Drummond deleitação ingênua com o próprio indivíduo”.
demarcou a área temática de sua poesia, distribuindo-a Nessa categoria de “poesia irônica” incluem-se
pelos diversos motivos temáticos, considerados “pontos Alguma Poesia (1930) e Brejo das Almas (1934).
de partida ou matéria da poesia”. Deve-se objetar que o humor, a ironia, a escavação
I – O Indivíduo: “Um eu todo retorcido” poética do cotidiano, o compromisso com o real, a
II – A Terra Natal: “Uma província esta” consciência da “vida besta”, da estupidez do homem e do
mundo, a alternância humor/seriedade, solidarie-
III – Família: “A família que me dei”
dade/autofechamento e a estilística da repetição não são
IV – Amigos: “Cantar de amigos”
temas e atitudes privativas dessa fase, mas se desdobram
V – O Choque Social: “Na praça de convites” por toda a sua obra, com maior ou menor intensidade. Não
VI – O Conhecimento Amoroso: “Amar-amaro” são livros “inferiores”: integram-se aos demais e ganham
VII – A Própria Poesia: “Poesia contemplada” importância quando se lhes descobrem os elementos
VIII – Exercícios Lúdicos: “Uma, duas argolinhas” exegéticos vitais para a compreensão do conjunto.
IX – Uma visão, ou Tentativa, da Existência: “Tentativa de
exploração e de interpretação do estar-no-mundo” II – Poesia social (1940-1945)
Esses temas se entrelaçam desde Alguma Poesia (1930) Como poeta de ação, a lírica participante de
a Amor Natural (1988). Em alguns momentos, há Drummond projeta-se principalmente nos livros Senti-
predominância de determinados temas e atitudes, mas não mento do Mundo (1940), José (1942) e A Rosa do Povo
se pode propor uma segmentação temática rigorosa, sem se (1945). A luta contra o medo (“que esteriliza os abraços”),
incorrer em grave mutilação e intolerável reducionismo. contra o convencionalismo e contra a consciência de
Observaremos, através da antologia que selecio- própria impossibilidade de luta (“eu tenho apenas duas
namos, a evolução que esses temas apresentam e as mãos e o sentimento do mundo”) fundamenta-se na
diferentes formas em que foram versados, remetendo-nos adesão ao real, no compromisso com o outro.
sempre à proposição do próprio poeta. Drummond é aqui o poeta de “Mãos Dadas”, que se
solidariza com o homem de seu tempo, vítima da guerra
1.2. As fases da poesia drummondiana e da ditadura Vargas. Para ele, só o real existe e é
estupidamente errado. Manuel Bandeira buscou na
Sob diversas nomenclaturas, conforme o viés crítico Pasárgada o consolo ou transcendência; Jorge de Lima
adotado pelo intérprete, e com algumas divergências amparou-se no Apocalipse das sugestões bíblicas, no
inconciliáveis, reconhecem-se três ou quatro etapas na projeto de “restaurar a poesia em Cristo”; Vinicius de
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Moraes mergulhou em Eros, na paixão – Drummond Drummond, no período pós-1946, teve alguns
atirou-se na percepção prática do mundo para denunciar a entreveros com o maniqueísmo de alguns intelectuais
estupidez, a instabilidade, a miséria moral, mental e engajados, intolerantes, que, em nome da divisa segundo
material. Para o poeta itabirano, nessa etapa de sua obra, a qual os fins justificam os meios, transgrediam a ética e
o mundo é errado, não por acaso, como queriam os criavam constrangimentos insuportáveis ao caráter reto do
existencialistas, mas porque assim o fazem. poeta mineiro; isso aguçou sua antiga antipatia ao
José e A Rosa do Povo representam um notável fanatismo ideológico. Foi o que ocorreu com a eleição da
amadurecimento técnico; conservando a originalidade já mesa diretora da Associação Brasileira de Escritores em
conquistada nos primeiros livros, ampliam-se as opções 1949. Drummond foi tachado de “traidor”, “reacionário”.
formais, especialmente na composição do poema longo, Nessa eleição, o autor de Alguma Poesia apoiou os que
que Mário de Andrade já tentara e que Drummond realiza defendiam a isenção ideológica, opondo-se à chapa que
com maestria, contornando os riscos da poesia propunha o proselitismo político.
declamatória e “demagógica” pela lucidez técnica do Acresce que o recrudescimento da “guerra fria”
artista que dominou definitivamente seu instrumento de também colaborava para o desencanto, para a
trabalho: a palavra. E, sobre a palavra, Drummond lançou negatividade, para o autofechamento do poeta.
aqui o seu olhar penetrante, numa densa posição Drummond concentra-se agora na escavação do real,
metalinguística, num metalirismo agudo de que mediante um processo de interrogações e negações que
resultaram “O Lutador”, “Consideração do Poema” e acabam revelando o vazio à espreita do homem. O mundo
“Procura da Poesia”. define-se como “um vácuo atormentado”, abolindo toda a
crença, negando toda a esperança.
III – Poesia metafísica (1946-1958) É importante enfatizar que o estilo “clássico” de Claro
Enigma nada deve ao formalismo e ao neoparna-
Novos Poemas, Claro Enigma, Fazendeiro do Ar e sianismo estetizante da Geração 45. Enquanto o
A Vida Passada a Limpo constituem uma etapa específica classicismo realizado por Drummond é pleno de invenção,
da poesia de Drummond, uma segunda maturidade, um de originalidade e de densidade intelectual, o
segundo apogeu, em nada inferior ou menos complexo neoparnasianismo da Geração 45 é estilisticamente
que o canto solidário de A Rosa do Povo. A crítica mais reacionário, prenhe de vulgaridade e nada tem de
atualizada já superou a falsa oposição que alguns moderno. Exclua-se, é claro, da Geração 45, o poeta João
postulavam entre a poesia social e a poesia metafísica, Cabral (herdeiro declarado de Drummond), que, apesar
entre o Drummond participante e o Drummond tido como de contemporâneo dessa geração, se afastou da linguagem
alienado aos problemas imediatos. Essa oposição foi afetada e pedante.
supervalorizada por certa crítica preconceituosa, que
cobra e julga ideologicamente numa atitude de banimento, IV – Poesia objetual (1962-1968)
de “cancelamento” e, em vez de descrever, prefere
vociferar preferências políticas. Lição de Coisas representa uma ruptura em relação à
Nesses livros que formam o “quarteto metafísico” de poesia da fase anterior. O próprio Drummond procurou
Drummond, como diz José Guilherme Merquior, o lirismo explicar a mudança:
filosófico reveste-se de um estilo “clássico”, de um
O poeta abandona quase completamente a
“classicismo moderno” ou, antes, de um “modernismo
forma fixa que cultivou durante certo período,
classicizado”.
voltando ao verso que tem apenas a medida e o
O abandono da óptica sociológico-realista e da
impulso determinados pela coisa poética a
representação social-concreta pelo autofechamento
exprimir. Pratica, mais do que antes, a violação
abstrato provocou manifestações decepcionadas da crítica
e a desintegração da palavra, sem entretanto
marxista que tinha se empolgado com Sentimento do
aderir a qualquer receita poética vigente.
Mundo, José e a Rosa do Povo e que se mostrou pouco
sensível à profundidade dessa nova fase de Drummond. Enfim, há o poema-objeto.
Esse tipo de julgamento submete-se aos equívocos de A atitude lúdica, a opção concreto-formalista que
uma estética panfletária, sempre incapaz de aceitar a Drummond realiza em Lição de Coisas, é uma
independência intelectual da literatura que não é radicalização de processos estruturais que sempre
maniqueísta. marcaram seu modo de escrever. A opção pelo prosaico,
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pelo irônico, pelo antirretórico, pelo antilirismo intencional política provinciana emolduram os jogos, os medos, os
já tinha sido antecipada, nos livros iniciais de Drummond, animais, a escola, os primeiros livros, a morte e, mais
pela exploração dos elementos materiais da palavra (a tarde, o erotismo, e também temas da infância e
letra impressa, o som, a disposição espacial, o adolescência que o poeta revisita com uma ternura
significante). Essas atitudes correm paralelamente ao temperada de ironia. O gauche, o desajeitamento
trabalho experimental das vanguardas da década de 1950 existencial, deita raízes na infância rural.
– Concretismo, Poema-Processo, Poesia Práxis –, mas isso A Falta que Ama retoma o lirismo filosofante e a
não representou adesão do poeta a nenhuma dessas reflexão existencial. Esse livro refloresce o erotismo.
vanguardas. Menino Antigo e Esquecer para Lembrar inscrevem-se na
O processo básico é a linguagem nominal (“fazer as mesma linha de Boitempo, fundindo a memória, a ficção
coisas e as palavras – nomes de coisas – boiar nesse vácuo e a reflexão.
sem bordas a que a interrogação reduziu os reinos do A Paixão Medida, Corpo, Amar se Aprende Amando
ser”), através da desintegração do vocábulo. e Amor Natural representam o último lirismo de
O experimentalismo, a ruptura com a sintaxe, a adoção Drummond, marcado pela libertação da libido, pelo
de frases nominais, a exploração dos estratos sonoros erotismo, já exorcizado do recato, da culpa e do
(através das aliterações, assonâncias, coliterações, ecos, abafamento imposto pela infância reprimida. Observa
onomatopeias, rimas internas), a exploração do visual, os José Guilherme Merquior que, no entardecer da vida, o
jogos tipográficos e a atitude lúdica diante da palavra-coisa poeta já não mais aspira à felicidade ascética, fria, na
são pressupostos da poética drummondiana desde o primeiro silenciosa imobilidade do nirvana, já não quer se reverter
livro: correm na mesma direção do Concretismo, mas nada à mãe-terra. O que explode, na direção oposta, é o
devem a ele. Aliás, já estavam propostos desde a década de erotismo, Eros ultrapassando Tanatos, a morte.
1940. Basta ler este fragmento de Confissões de Minas: Transcrevemos a lúcida observação de Merquior, in
Verso e Universo de Drummond, sobre esse reflores-
À medida que envelheço, vou me desfazendo dos cimento da vida e do corpo:
adjetivos. Chego a ver que tudo se pode dizer
sem eles, melhor que com eles. Por que “noite Em um fragmento de Passeios na Ilha,
gélida”, “noite solitária”, “profunda noite”? Drummond faz esta reflexão desiludida:
Basta “a noite”. O frio, a solidão, a profun- “Primeira fase: o poeta imita modelos célebres.
didade da noite estão latentes no leitor, prestes Última fase: o poeta imita-se a si mesmo.
a envolvê-lo, à simples provocação dessa Naquela, ainda não conquistou a poesia: nesta,
palavra “noite”. a perdeu”.
A partir de Lição de Coisas, o lirismo de Drummond Outra visão que já se incorporou à fortuna crítica de
não assume uma tendência definida ou unidirecional, o Drummond é a proposta por Affonso Romano de
que não quer dizer que decaia. Mantendo-se nos elevados Sant’Anna, fundada na crítica do estofo estruturalista e
patamares a que se alçou em A Rosa do Povo, Claro em métodos estatísticos, na pesquisa do “caráter
Enigma e Lição de Coisas, Drummond reelabora alguns sistêmico” da construção poética drummondiana.
temas e formas dos primeiros livros, acrescenta algumas Transcrevemos a apresentação desse estudo:
vertentes novas: a poesia de circunstância e o erotismo.
Boitempo é todo consagrado à memória de Itabira, de A visão segmentada da poética drummondiana,
Minas, da infância, da puberdade e da família, para seja por aqueles que mal viram o conjunto, seja
“ludibriar os fantasmas itabiranos”. A ironia e o humor, por aqueles que se retiveram em pormenores,
opondo-se ao patético, esfriam a temperatura emocional deve-se ao fato de não se ter percebido um dado
do diálogo do “homem triste de Itabira”, do “fazendeiro básico: a estrutura dramática dessa obra, onde
sem fazenda”, do “fazendeiro do ar”, com suas origens. há nitidamente um personagem (o poeta
A sociedade patriarcal e a infância, o olhar sociológico e gauche) disfarçado em heterônimos (José,
a lírica individual se entrecruzam: o poder dos Carlos, Carlito, K., Robinson Crusoé etc.), des-
fazendeiros, a casa senhorial, os ecos da escravidão e a crevendo uma ação no tempo e no espaço,
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Mundo mundo vasto mundo Nessa terceira etapa, o poeta atinge o equilíbrio: sua
mais vasto é meu coração. poesia converte-se numa sistematização da memória,
(“Poema de Sete Faces” numa maneira de se reunir através do tempo. O sujeito
– Primeiro poema de Alguma Poesia) (gauche), que vinha interagindo com o objeto (mundo),
encontra o equilíbrio (relativo). A ironia inicial, que se
Na primeira etapa, o personagem está postado num entretinha no simples humorístico, desenvolve sua
canto escuro, imóvel e torto, contemplando a cena a dialética latente e transmuda-se num exercício metafísico,
distância e assumindo uma posição predominantemente com um tom barroco de desconsolo. Nessa etapa, o poeta
irônica e egocêntrica. Vê os conflitos, reflete sobre a “vida já realizou grande parte de sua travessia no mar do tempo:
besta”, a província, a família, numa posição de experimentou a morte alheia e sua morte parcial e
equidistância, de irreverência. O sentimento é contido, aprendeu a recriar sua vida no plano poético da memória;
projetando-se num texto objetivo, seco e de versos curtos sujeito e objeto se interpenetram dialeticamente. O lirismo
e descarnados, sem transbordamento emocional. se torna mais autorreflexivo, filosófico. Dá-se a epifania
Refletindo a irreverência e a atitude iconoclasta dos máxima de sua vida-obra e a “Máquina do Mundo”,
modernistas de 1922, dos quais se confessa seguidor, famoso poema de Claro Enigma, se abre, oferecendo-lhe
expande-se em inúmeros poemas-piada. É a fase de a possível solução de todos os enigmas, mas o eu lírico
Alguma Poesia e Brejo das Almas. recusa-a. A poesia metafísica e a poesia objetual que
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aparecem, respectivamente, em Claro Enigma e Lição de a) a versificação variada, herética, de seus poemas;
Coisas revelam, naquele, a busca metafísica, como se nota b) o papel do humor (até o poema-piada);
nos processos de interrogação e negação, e, neste, a c) a frequência com que são tratados os problemas
experimentação linguística e poética, que retomam e humanos numa ótica em que há o efeito do
ampliam, na plena maturidade expressiva e reflexiva do estranhamento poético.
poeta, os temas e formas anteriores indiciados na década d) a escrita mesclada (correlato estilístico da ótica
de 30. dessacralizadora), bastante permeável às associações
surrealistas;
e) finalmente, o uso de “efeitos de distanciamento”
2. DA “VIDA BESTA” AO testemunha uma concepção não empática, antilírica.
SENTIMENTO DO MUNDO (1925-1940)
A gama temática da primeira poesia de Drummond
2.1. O primeiro lirismo de Drummond compreende, sobretudo, a figuração humorístico-realista
da vida cotidiana, as recordações da vida da província e os
Das diversas linhas interpretativas sobre a obra de quadros críticos explícitos ou tácitos na erosão dos valores
Drummond, optamos pela de José Guilherme Merquior, estabelecidos, dos clichês morais do establishment
em Verso Universo em Drummond. É a mais eclética e a burguês e brasileiro. Os poemas centrados em estados de
que melhor se encaixa à diversidade da obra do poeta alma individuais e o lirismo erótico se combinam, muitas
mineiro, que não se pode acomodar dentro dos limites vezes, com as linhas temáticas que acabamos de enumerar,
rígidos de abordagens específicas (estruturalista, o que leva à despetrarquização do poema de amor e a toda
formalista, impressionista, marxista), que marcam as uma estratégia desidealizante na apresentação lírica do eu.
tendências de nossa produção acadêmica. Municiado por O polo subjetivo do quadro existencial dos dois
uma larga erudição, mas sem pedantismo, num estilo primeiros livros (Alguma Poesia e Brejo das Almas) é o
límpido e agradável, Merquior analisa a produção motivo do gauche (palavra francesa que significa
drummondiana de 1925 a 1968, na obra que resultou de inadaptado, esquisito, esquerdo, avesso). O polo objetivo
sua tese de doutoramento, aprovada pela Sorbonne, em é o motivo da “vida besta” num mundo sem sentido.
junho de 1972. Mutilamos algumas citações e Em sua dimensão mais íntima, a poesia da vida
acrescentamos algumas anotações aos textos da antologia, cotidiana emerge como uma interpretação artística da
sem prejuízo do arcabouço geral da obra de Merquior, a existência do homem. O eu gauche de Drummond
quem remetemos o aluno interessado no aprofundamento, revelará uma postura muito refratária às alienações do
muito além do que se possa exigir no vestibular: estilo existencial contemporâneo, pois a experiência
Num esboço autobiográfico encomendado pela traumatizante do jovem fazendeiro, burocratizada
Revista Acadêmica, Drummond nos dá uma interpretação posteriormente nas capitais, e a ambivalência dos
sucinta de sua evolução lírica até Sentimento do Mundo. sentimentos do “itabirano”, atraído pela urbs viciosa e
Segundo ele, Alguma Poesia traduz uma “deleitação inumana e, ao mesmo tempo, desgostoso dela, predispu-
ingênua” no tocante ao indivíduo; em Brejo das Almas, o seram-no a apreender em profundidade o sentido psíquico
individualismo se exacerba, mas ao mesmo tempo é e moral do destino do homem moderno: a tensão. Ora, o
submetido a uma visão crítica; enfim, Sentimento do conteúdo sociológico do lirismo drummondiano é tanto
Mundo resolve “as contradições elementares” da poesia mais rico pelo fato de sua aventura pessoal – o filho do
drummondiana. fazendeiro tornado burocrata na grande cidade – coincidir
A dedicatória de Alguma Poesia – “a Mário de com a evolução social do Brasil. E, com efeito, é em torno
Andrade” – designa de forma inequívoca a corrente da década 1920-30 que se inicia a modernização da
literária a que se prendia Drummond: o Modernismo da sociedade brasileira. Só nessa época, as estruturas sociais
fase heroica (1922-30), embora o poeta se situe na e culturais do velho colosso agrário e patriarcal começam
Segunda Geração Modernista (1930-45). A linguagem a ceder, irreversivelmente, à pressão das classes urbanas,
poética drummondiana não se converteu – como a de concentradas principalmente no Rio de Janeiro e em São
Manuel Bandeira, Jorge de Lima ou Cassiano Ricardo – à Paulo, cada vez mais povoadas e poderosas.
estética modernista: ela nasceu modernista. Várias A poética do jovem Drummond repousa na equação
indicações já se encontram, no jovem Drummond, que o poesia = vivência. A ideia clássica e ao mesmo tempo
ligam à literatura de vanguarda: contemporânea de que a poesia é antes de tudo arte ainda
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não tem, aos olhos do poeta, maior significação (o que não As casas espiam os homens
o impede de compor em outro padrão estético, mais 5 que correm atrás de mulheres.
formal e sem rupturas, seus versos). A poesia é captar o A tarde talvez fosse azul
acontecimento; não o dos jornais, bem entendido, mas o não houvesse tantos desejos.
acontecimento verdadeiramente humano: a revelação
súbita das violências da vida, ou pelo menos do sentido O bonde passa cheio de pernas:
oculto de seu curso “normal”. Mas eis que o poeta, gauche pernas brancas pretas amarelas.
por maldição, de um “anjo torto” e rural, logo descobre 10 Para que tanta perna, meu Deus, pergunta
“que esta vida não presta” [meu coração.
(Epigrama para Emílio Moura) Porém meus olhos
não perguntam nada.
Individualista, ele cultiva, portanto, a evasão, mesmo
em se tratando de fugas emolduradas por essa “vacuidade O homem atrás do bigode
do ideal”, característica da literatura moderna. Não é sério, simples e forte.
obstante, no terceiro livro, com o advento do “sentimento 15 Quase não conversa.
do mundo”, o individualismo é renegado; há uma ética do Tem poucos, raros amigos
engajamento – que, entretanto, não exclui a solidão. É o homem atrás dos óculos e do bigode (3).
então que o poema drummondiano se afasta do humor
ambíguo. Enquanto um verso livre bem maleável substitui Meu Deus, por que me abandonaste
os metros curtos ou de maiores extensões ritmadas de se sabias que eu não era Deus
Alguma Poesia e de Brejo das Almas, os “efeitos de 20 se sabias que eu era fraco.
distanciamento” do estilo mesclado dão lugar a uma visão
patética que, apesar de bastante discreta e contida, nem por Mundo mundo vasto mundo, (4)
isso se afasta menos da perspectiva estranha dos livros se eu me chamasse Raimundo
precedentes. Estas vias estilísticas – Modernismo “nu e seria uma rima, não seria uma solução.
cru”, de ruptura (Alguma Poesia, 1930), e Modernismo de Mundo mundo vasto mundo,
tendência social (Sentimento do Mundo, 1940) – irão 25 Mais vasto é meu coração (5)
desembocar em seguida, com grandes modificações, na
obra-prima de estilo maduro que é A Rosa do Povo (1945).
2 A perspectiva “grotesca”, estranha apoia-se na comicidade, mas
2.2. Alguma Poesia (1930) não elimina a consideração séria, problemática do mundo.
Drummond se vê como inadaptado incompreendido, ridículo,
Esta obra, com 49 poemas, reúne a produção em verso maldição de um obscuro anjo torto. O eu lírico é um pobre coitado,
desde 1925, por vezes disseminada em jornais e revistas fraco, distante dos outros (versos 13 a 20).
3 O poema não tem um desenvolvimento lógico. A descontinuidade
literárias do primeiro tempo modernista, como ocorreu
é uma característica do simultaneísmo cubofuturista, que Mário de
com o poema “No Meio do Caminho”, impresso na revista Andrade chamava "polimorfismo". A sucessão de imagens e ideias
mais radical do Modernismo paulistano — Revista de é imprevisível: o retrato do gauche (versos 1 a 3) vem seguido de
Antropofagia (1928-1929) –, da qual Drummond foi uma tomada de rua (versos 4 e 5), através de uma prosopopeia
irônica, que é seguida de uma notação da tarde (versos 6 e 7), da
colaborador esporádico. O livro começa com o “Poema
cena do bonde (versos 8 a 10), do autorretrato (versos 13 a 17) e
de Sete Faces”, que transcrevemos a seguir: assim sucessivamente, como uma colagem cubista.
4 Outro procedimento importante é a repetição da palavra “mundo”
por seis vezes (versos 21 e 24). A “estilística da repetição”
POEMA DE SETE FACES
(constante em Drummond) visa à apreensão do objeto poético e,
nesse caso, também reforça a ironia da rima.
Quando nasci, um anjo torto 5 O antilirismo intencional também está presente: observe que os
desses que vivem na sombra versos de 18 a 21 (com apóstrofes “Meu Deus” e “Mundo mundo
disse: Vai, Carlos! Ser gauche (1) na vida (2). vasto mundo”) criam um crescendo emocional, subitamente
truncado no verso 23 (as rimas não são soluções existenciais —
condenação ao esteticismo, ao beletrismo neoparnasiano da Belle
1 Gauche: adjetivo francês que significa “sem jeito”, desajeitado, Époque). Isso é comum em Drummond: quando o poema começa
indivíduo desajustado, à esquerda dos acontecimentos. É a palavra a resvalar para o sentimentalismo, para a emoção solta, a visão
em que se cristalizou a essência da personalidade estética do poeta crítica do poeta interrompe o crescendo lírico, pela interposição
e que sintetiza sua postura em face de si e do mundo. do humor corrosivo, do antilirismo.
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INFÂNCIA
A Abgar Renault CONSTRUÇÃO
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Um grito pula no ar como foguete.
Minha mãe ficava sentada cosendo. Vem da paisagem de barro úmido, caliça e
Meu irmão pequeno dormia. [andaimes hirtos.
Eu sozinho menino entre mangueiras O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.
lia a história de Robinson Crusoé, (8) O sorveteiro corta a rua.
Comprida história que não acaba mais. (9)
E o vento brinca nos bigodes do construtor. (10)
SENTIMENTAL
QUADRILHA (17)
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão. João amava Teresa que amava Raimundo
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
E debruçados na mesa todos contemplam que não amava ninguém.
esse romântico trabalho. João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Desgraçadamente falta uma letra, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto
uma letra somente [Fernandes
que não tinha entrado na história. (18)
para acabar teu nome!
Exercícios
Texto para as questões 1 e 2. Texto para a questão 3.
POLÍTICA LITERÁRIA
O poeta municipal
2. (FAMIH-MG-MODIFICADO) – Todas as carac- discute com o poeta estadual
terísticas modernistas citadas abaixo podem ser
identificadas no poema de Drummond, exceto: qual deles é capaz de bater o poeta federal.
a) reaproveitamento da cultura popular e do coloquial, Enquanto isso o poeta federal
uso de uma linguagem simples, fácil, próxima da tira ouro do nariz.
expressão oral. (Carlos Drummond de Andrade,
b) concepção do poético como um texto aberto; um Alguma poesia)
discurso que oferece multiplicidade de sentidos e
interpretações. ANEDOTA BÚLGARA
c) crítica ao mundo rural, ao universo primitivo, distante
do progresso, da civilização mecânica e industrial. Era uma vez um czar naturalista
d) exploração do imprevisível, do inesperado; o corte que caçava homens.
brusco, a fragmentação possibilitando o surgimento Quando lhe disseram que também se
do humor. [caçam borboletas e andorinhas,
e) valorização do homem comum, da ordem social e da ficou muito espantado
vida cotidiana.
e achou uma barbaridade.
(Carlos Drummond de Andrade,
Alguma poesia)
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GABARITO
PORTUGUÊS
OBRAS DA FUVEST
ALGUMA POESIA
1) É inquestionável que a linguagem de “Cidadezinha c) o título do texto já deixa claro que não se trata
qualquer” se apresenta de maneira sintética, o que de um ambiente rural, mas urbano;
é, aliás, marca drummondiana. Além disso, seu e) a caracterização da vida provinciana como
aspecto irônico é garantido pelo final, que, em “besta” invalida a ideia de que haja no poema
anticlímax humorístico, rompe o tom do resto do uma “valorização do homem comum, da ordem
texto. Por meio desses procedimentos, o eu social e da vida cotidiana”.
poemático denuncia a vida das pequenas cidades Resposta: D
do interior do país (representadas em uma
“cidadezinha qualquer”) em que as ações são
sempre as mesmas (“vai devagar”), havendo 3) Cada estrofe apresenta um tema diferente: a
apenas mudança do sujeito (um homem, um primeira lida com a apresentação simbólica do
burro, um cachorro). nascimento do eu poemático; a segunda, com a
Erros das demais alternativas: ideia de que os desejos podem distorcer a
b) o poema não apresenta tom piedoso, tampouco consciência que se tem da realidade; a terceira,
um desajuste existencial, mas apenas um com o espanto diante do mundo. Dessa forma,
confronto entre a perspectiva urbana e a ocorre uma aparente desconexão entre essas
provinciana; estâncias.
c) não há elementos no texto que permitam inferir Resposta: B
que se trate de Itabira, muito menos que se
esteja tematizando uma decepção amorosa;
d) a nostalgia não é tema do poema; além disso, 4) a) Ambos os poemas são compostos em versos
sua linguagem, marcada por paralelismos chamados “livres”, pois não se conformam às
sintáticos, mostra uma preocupação consciente convenções da métrica tradicional, isossilábica
com a elaboração literária a representar a (isto é, na qual os versos “medem” o mesmo
mesmice existencial; número de sílabas). Em ambos os poemas, o
e) não há elementos políticos no texto, tampouco o registro de linguagem é coloquial, ou seja,
desenvolvimento do tema do “sentimento do próprio da conversação, despido dos traços
mundo”; aliás, não é do mundo (abordagem retóricos que caracterizam o discurso de
universal) que o eu poético fala, mas da registro “elevado”, típico da tradição literária
província (abordagem local). de que o Modernismo de então procurava
Resposta: A afastar-se. Em ambos os poemas, o humor
(outro ingrediente de predileção modernista) é
essencial ao efeito crítico e não compromete sua
2) O poema tem a configuração do poema-piada, o gravidade.
que se nota não só pela sua extensão diminuta, mas b) Nos dois poemas, o humorismo é instrumento
também pelo seu final surpreendente, inesperado, de crítica, de “crítica de vida”: em “Política
o que contribui para o seu tom humorístico. Literária”, trata-se da vida cultural, suas
Erros das demais alternativas: relações com o poder e suas hierarquias
a) o texto não utiliza elementos advindos da espúrias; em “Anedota Búlgara”, trata-se da
cultura popular; opressão política.
b) o poema não possibilita múltiplas interpre-
tações, ou seja, não se configura como uma
obra aberta;
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