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POESIA REALISTA PORTUGUESA - ANTERO DE QUENTAL

PROF. MARCO ANTONIO MENDONÇA

Biografia
Antero de Quental nasceu em 18 de abril de 1842, na ilha portuguesa de São Miguel. Era membro de
uma família tradicional da região. Seu avô — André da Ponte de Quental — foi signatário da Constituição
de 1822. No entanto, como estudante no curso de Direito, na Universidade de Coimbra, o jovem poeta se
destacou por combater o conservadorismo.
O autor publicou seu primeiro livro — Sonetos de Antero — em 1861. Após terminar a faculdade,
aprendeu o ofício de tipógrafo e o exerceu, em 1867, quando morou em Paris. Ali, o escritor teve contato
com a classe operária e também assistiu a algumas aulas no Collège de France.
Ao voltar a Portugal, escreveu o artigo “Portugal perante a Revolução de Espanha”, em defesa da
república. Em 1868, esteve nos Estados Unidos e no Canadá. De volta às terras lusitanas, foi morar com
seu amigo Jaime Batalha Reis (1847-1935). Em 1871, os dois amigos moravam em uma casa em Lisboa, na rua dos Prazeres,
onde recebiam amigos como Eça de Queirós e outros intelectuais que compunham o famoso Cenáculo.
Em 1870, Antero de Quental foi um dos fundadores do jornal democrata A República. No ano seguinte, foi um dos
organizadores das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, que abrigavam discussões acerca de questões políticas,
sociais e econômicas do país. Já em 1875, ajudou a criar o Partido Socialista Português, além da Revista Ocidental.
Nos anos de 1878 e 1879, voltou a viver na França, mas para tratar de problemas de saúde. De volta a Portugal, adotou as
filhas de seu amigo Germano Meireles (1842-1877) e foi candidato a deputado pelo Partido Socialista. Nos próximos
anos, dedicou-se à escrita e à criação das filhas, antes de se matar, em 11 de setembro de 1891.

A questão coimbrã
A questão coimbrã está relacionada ao famoso debate literário entre autores portugueses, em 1865 e 1866. De um lado,
aqueles que defendiam o realismo e, de outro, os que enalteciam o romantismo. A luta foi travada por meio dos periódicos da
época, que publicavam textos de ambos os lados da disputa.
Como a maioria desses intelectuais estava ligada à Universidade de Coimbra, a discussão ficou conhecida como questão
coimbrã. Além disso, cada lado tinha o seu porta-voz. Desse modo, o escritor Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) defendia
o romantismo, enquanto Antero de Quental era a jovem voz do realismo.

Estilo literário de Antero de Quental


Antero de Quental fez parte da geração de 70, responsável pela introdução do realismo em Portugal. No entanto, suas obras
também apresentam traços do romantismo. Assim, genericamente, elas possuem as seguintes características: elementos
utópicos; crítica sociopolítica; melancolia; pessimismo; morbidez; erotismo; misticismo; idealização do amor e rigor formal.

Poemas
A um poeta
Surge et ambula!
Tu, que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares, Escuta! é a grande voz das multidões!
Como um levita à sombra dos altares, São teus irmãos, que se erguem! São canções...
Longe da luta e do fragor terreno, Mas de guerra... e são vozes de rebate!

Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno, Ergue-te, pois, soldado do Futuro,


Afugentou as larvas tumulares... E dos raios de luz do sonho puro,
Para surgir do seio desses mares, Sonhador, faze espada de combate.
Um mundo novo espera só um aceno...

Neste soneto, o termo "Poeta" poderá remeter para a figura de um idealista, possivelmente em consonância com o espírito da
época. A referência ao espírito do mundo romântico, lúgubre e sombrio, percebe-se quando, personificando o sol, usa a
metáfora em "Afugentou as larvas tumulares" (v. 6) e "Um mundo novo espera só um aceno" (v. 8). Mas o que interessa,
sobretudo, é perceber que o sujeito lírico faz um apelo a todo aquele que é capaz de sonhar, mas vive alheado e num estado de
inércia quando é necessária a luta revolucionária ao lado de um povo que sofre e que busca a liberdade.
Na primeira quadra (que constitui uma tese argumentativa) encontramos a estagnação, a passividade e o alheamento do
poeta em relação à realidade social e política do mundo, "Longe da luta e do fragor terreno" (v. 4); na segunda quadra e no
primeiro terceto (antítese, com a explanação e confirmação da tese), surge o apelo à consciencialização do poeta para a
necessidade de mudar de atitude pois está em causa um povo que precisa da solidariedade, "Escuta! é a grande voz das
multidões! I São teus irmãos" vv. 9, 10); no último terceto (síntese conclusiva), irrompe o apelo para a ação - "Ergue-te" (v. 12) -
destacando a importância da poesia como arma de combate, como voz da revolução, apelidando o Poeta de "soldado do
Futuro" (v. 12) e "Sonhador" (v. 14).
Em todo o soneto se encontra um apelo para a necessidade de agir e que está bem expressa na gradação verbal: "Tu, que
dormes", "Acorda!", “Escuta!”, "Ergue-te", "Faze". Este poema mostra bem a sua aposta na poesia como "voz da revolução".
Antero de Quental foi um verdadeiro apóstolo social, solidário e defensor da justiça, da fraternidade e da liberdade. Mas
as preocupações nunca o deixaram desde que entrou nos meios universitários de Coimbra e se tornou líder da Geração de 70
que, em Lisboa, continuou a sua luta. É o próprio que, numa carta autobiográfica, de 14 de Maio de 1887, dirigida a Wilhelm
Storck, afirma que: "O facto importante da minha vida, durante aqueles anos, e provavelmente o mais decisivo dela, foi a
espécie de revolução intelectual e moral que em mim se deu ao sair, pobre criança arrancada do viver quase patriarcal de uma
província remota e imersa no seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação intelectual de um centro, onde,
mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do espírito moderno. Varrida num instante toda a minha
educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espírito naturalmente
religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direção, estado
terrível de espírito, partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração, a primeira em Portugal que saiu
decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição.”
Português A e B: acesso ao ensino superior 2000, Vasco Moreira, Hilário Pimenta. Porto, Porto Editora, 2000. (Coleção: Acesso ao ensino superior: preparação
para a prova de exame nacional - 12º ano)

Divina Comédia
(Ao Dr. José Falcão)
Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis, Pois não era melhor na paz clemente
Os homens clamam: – “Deuses impassíveis, Do nada e do que ainda não existe,
A quem serve o destino triunfante, Ter ficado a dormir eternamente?

Por que é que nos criastes?! Incessante Porque é que para a dor nos evocastes?”
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis, Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis, Dizem: – “Homens! porque é que nos criastes?”
Num turbilhão cruel e delirante...

Um poema emblemático de Antero: os homens indagariam aos deuses as razões dos contratempos a que estão expostos, das
circunstâncias que compreendem a vida e a morte, da finalidade desta existência permeada por crueldades e delírios – muita
dor, por extensão.
Os deuses ofereceriam como resposta uma outra interrogação: “Homens! porque é que nos criastes?” Em suma: Deus seria
uma criação humana, aliás, um pouco como se nos apresenta na cena da criação de Adão, detalhe da pintura de Michelangelo
no Vaticano – um Deus antropomórfico –, obra de um homem senil, que chegou à idade avançada sem respostas irretorquíveis
às suas mais prementes dúvidas existenciais.

Nirvana
Viver assim: sem ciúmes, sem saudades,
Sem amor, sem anseios, sem carinhos, Passear pela terra, e achar tristonho
Livre de angústias e felicidades, Tudo que em torno se vê, nela espalhado;
Deixando pelo chão rosas e espinhos; A vida olhar como através de um sonho;

Poder viver em todas as idades; Chegar onde eu cheguei, subir à altura


Poder andar por todos os caminhos; Onde agora me encontro - é ter chegado
Indiferente ao bem e às falsidades, Aos extremos da Paz e da Ventura!
Confundindo chacais e passarinhos;

Antero sofria de distúrbio bipolar e oscilava da euforia a depressões tão profundas que o levaram ao suicídio, em 1891. Mas
este soneto é ritmicamente soberbo, com seu inesperado verso sobre chacais e passarinhos e seu distante tom metafísico final:
‘Onde agora me encontro - é ter chegado/Aos extremos da Paz e da Ventura!’

Evolução
Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta... Hoje sou homem, e na sombra enorme
Onda, espumei, quebrando-me na aresta Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Do granito, antiquíssimo inimigo... Que desce, em espirais, da imensidade...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo Interrogo o infinito e às vezes choro...


Na caverna que ensombra urze e giesta; Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
O, monstro primitivo, ergui a testa E aspiro unicamente à liberdade.
No limoso paúl, glauco pascigo...
A doutrina da Evolução segundo Antero de Quental é «extremamente simples», conforme missiva de 26 de novembro de
1873 a Oliveira Martins: “A minha doutrina da Evolução é extremamente simples e lógica, e funda -se toda numa única ideia
metafísica, o devenir: daí vou deduzindo certas leis culminantes que definem a Evolução, considerando o Cosmos que nós
conhecemos e a sua Evolução tal como a Ciência a tem explicado, como um mero exemplo, um exemplar entre milhões de biliões
(até ao infinito) onde se revelam as leis fundamentais do devenir.”
A ideia do devenir [devir], ponto de partida e de chegada da teoria anteriana de Evolução, opõe-se à ideia da imutabilidade do
Ser. Na doutrina do devir, o Ser passa por uma série de mudanças reais, para alcançar a mais profunda aspiração da Liberdade.
(Carlos Ceia, De Punho Cerrado)
A temática deste soneto com a doutrina expressa pelo filósofo nas Tendências Gerais da Filosofia na 2ª metade do Século
XIX: “Uma ideia instintiva lateja surdamente, como uma pulsação de vida, nesse universo que a ciência mede e pesa, mas não
explica: é a aspiração profunda de liberdade, que abala as moles estelares como agita cada uma das suas moléculas, que anima
o protoplasma indeciso como dirige a vontade dos seres conscientes. É esse fim soberano, realizado em esferas cada vez mais
largas, que torna efetiva a evolução das coisas.”
Recorde ainda que a ideia de evolução domina a renovação ideológica da segunda metade do século XIX: a evolução é um dos
aspetos da crença no progresso e relaciona-se com a publicação da obra de Darwin, Origem das Espécies (1859), segundo a qual
o homem, dotado de consciência, derivara de formas primitivas e elementares. (Cf. versos 1-8).
Note também o contraste entre o passado, isto é, as várias fases da evolução (cf. a escada multiforme) e o presente, termo da
evolução, espiritualização da matéria (vs. 9-14): “Fui rocha em tempo, fui... /Hoje sou homem.” (Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia
Literária Comentada. Século XIX. Do Romantismo ao Realismo. Poesia, Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, 2ª edição.)

Voz interior
Embebido num sonho doloroso,
Que atravessam fantásticos clarões, Um ai sem termo, um trágico gemido,
Tropeçando num povo de visões, Ecoa sem cessar ao meu ouvido,
Se agita meu pensar tumultuoso... Com horrível, monótono vaivém...

Com um bramir de mar tempestuoso Só no meu coração, que sondo e meço,


Que até aos céus arroja os seus cachões, Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Através duma luz de exalações, Em segredo protesta e afirma o Bem!
Rodeia-me o universo monstruoso...

Em “Voz Interior” percebemos, de modo mais concreto, a constância entre o pensar e o sentir de Antero: enquanto nas três
primeiras estrofes o homem pensa e usa sua inteligência: “se agita meu pensar tumultuoso”, “rodeia-me o universo
monstruoso”, “Um ai sem termo, um trágico gemido / Ecoa sem cessar no meu ouvido, / Num horrível, monótono vai-vem...”; no
último terceto, é a voz do poeta que, sentindo, analisa aquilo que o coração já percebera: “Só no meu coração, que sondo e
meço, / Não sei que voz, que eu mesmo desconheço, / Em segredo protesta e afirma o Bem...” É a esse Bem, imanente à
consciência humana, que Antero vai-se referir em carta de 1886, dirigida a Fernando Leal: “Lá no fundo do seu coração há uma
voz humilde, mas que nada faz calar, a protestar, a dizer-lhe que há alguma coisa por que se existe e por que vale a pena existir.
Escute essa voz: provoque-a, familiarize-se com ela, e verá como cada vez mais se lhe torna perceptível, cada vez fala mais alto,
ao ponto de não a ouvir senão a ela e de o rumor do mundo, por ela abafado, não lhe chegar já senão como um zumbido, um
murmúrio, de que até se duvida se terá verdadeira realidade. Essa, meu amigo, é a verdadeira revelação, é o Evangelho eterno,
porque é a expressão da essência pura e última do homem, e até de todas as coisas, mas só no homem tornada consciente e
dotada de voz. Ouça essa voz e não se entristeça.”

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