1 INTRODUÇÃO
João Gilberto Noll insurge no cenário literário contemporâneo com uma linguagem
experiências marcadas pela ausência de limites, pelo esvaziamento das relações e pela
diversos prêmios ao longo das suas publicações, além de inseri-lo entre os mais importantes
escritores da contemporaneidade.
Desse modo o presente artigo analisa a obra Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll,
para verificar nesta, a configuração de elementos do contexto histórico, social e político que se
teorias concernentes a esse tema, além de legitimar a importância desta obra no contexto
contemporâneo. A escolha desse objeto foi determinada pelas inquietações provocadas pelo
dois últimos séculos que culminaram com modificações nos campos do fazer artístico, social,
2 O SUJEITO EM FRAGMENTOS
Hotel Atlântico de João Gilberto Noll constitui uma obra que traz em si o caráter
discutir temas urbanos e cotidianos que evidenciam o discurso das margens, como também a
em trânsito, solitário, não permite que o leitor penetre em sua intimidade subjetiva, vive à
deriva em busca ou fugindo de algo que não se sabe ao certo, não tem origem ou destino.
Desvinculado de laços afetivos, ele, não dá ao leitor pistas capazes de revelar a sua identidade.
Para Hall:
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceitualizado como não tendo uma
identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração
móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. [...] O
sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não
são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas. [...] na medida em que os
sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades
possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos
temporariamente (HALL, 2004, p. 12-13).
protagonista incorpora a massa de transeuntes nas ruas velozes, um andarilho. Eterno viajante
que caminha, ora em automóveis por entre avenidas, viadutos, painéis eletrônicos e
intermináveis textos, cores e sons que amontoam informações audiovisuais. Nem todas
Desta decomposição dos grandes Relatos, que analisaremos mais adiante, segue-se o
que alguns analisam como a dissolução do vínculo social e a passagem das
coletividades sociais ao estado de uma massa composta de átomos individuais
lançados num absurdo movimento browniano. Isto não é relevante, é um caminho
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companhia o insólito, que se fará presente durante toda a narrativa até o seu último itinerário,
com a ocorrência de três mortes ao longo da sua viagem. A primeira morte ocorre nesse hotel
morte, nem a identidade do morto que é levado por policiais: “Lá dentro havia um corpo
num ônibus que os leva a Florianópolis, da qual se tem pouquíssimas informações, o nome é
Susan, perdeu uma filha e suicidou-se supostamente com um coquetel de drogas durante a
viagem: “Não havia dúvida: Susan tinha morrido. Lembrei que era o segundo cadáver que eu
por último, a morte de uma anciã cujo nome era Diva, tudo leva a crer que morreu de velhice,
dá-lhe a extrema unção: “Encostei o polegar direito na minha língua, senti ele úmido, e com
ele fiz uma cruz na testa, na boca e no peito da agonizante” (NOLL, p. 67).
ser chamado de corriqueiro ante o seu desejo de seguir viagem, cujo itinerário é decidido na
última hora, sem planejamento algum ou motivo aparente, não havendo espaço nem tempo
para se refletir sobre as mortes ou aprender qualquer ensinamento a partir desta experiência.
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Nas palavras de Arendt: [...] os homens no plural, isto é, os homens que vivem e se movem e
agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser
num universo constituído por descontinuidades, como se quisesse ironizar a realidade na qual
está inserido. Talvez o que mostre, sejam apenas simulacros do que realmente é: máscaras,
Já não é possível partir do real e fabricar o irreal, o imaginário a partir dos dados do
real e l. O processo será antes o inverso: será o de criar situações descentradas,
modelos de simulação e de arranjar maneiras de lhes dar as cores do real, do banal,
do vivido, de reinventar o real como ficção. Porque ele desapareceu da nossa vida
(BAUDRILLARD, 199, p.154).
vida e o remete ao infortúnio da sua condição humana, condição esta, da qual não se pode
fugir, por mais que longe vá, está atrelado a um corpo físico que o iguala a todos os imortais.
Daí talvez a sua única saída seja viver o instante, o agora de forma itinerante mesmo que, a
o futuro, há uma total ausência de perspectivas ou objetivos, suas conquistas estão reduzidas
ao agora. Sua aventura errante segue por vias marginais, permeadas por turbulências e
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uma colagem de cenas sobrepostas e dão um ritmo acelerado aos acontecimentos. Através de
resquícios de lembranças da infância, sua vaga memória alude ao que seria sua identidade. É a
memória de um tempo que não se sabe ao certo. “Agora eu via apenas o chão sujo do piso
superior da rodoviária. Olhando aquele chão sujo eu não tinha nada a pensar. Talvez uma vaga
Ao chegar a Arraiol, uma cidadezinha do Sul do país, sofre um acidente no qual tem
uma de suas pernas amputadas por um cirurgião, Dr. Carlos, candidato a prefeito do lugar,
cuja pretensão é ganhar prestígio político, ao saber que o sujeito operado por ele é um ator.
Porém, ao descobrir que se trata de um ex-ator em decadência e que o mesmo não trará
repercussão a sua campanha, abandona-o no hospital à própria sorte. É ali que o ex-ator
conhece o enfermeiro Sebastião, a única pessoa que o ajuda nesses dias difíceis, além do
assédio de Diana, a filha do Dr. Carlos, que nutre pelo amputado um desejo voraz.
para se movimentar, em conseqüência disso, não consegue realizar o desejo da moça e como
conseqüência, também é abandonado por ela. Já não pode também, empreender novos
roteiros e irromper novas distâncias. Está inválido. Revela-se então, o seu fracasso enquanto
sujeito de si, itinerante das experiências fugazes. Agora está completamente dependente de
Sebastião, e a ele recorre para iniciar a sua última viagem e completar o percurso. Esta é a
única relação de amizade mantida pelo narrador-protagonista durante toda a narrativa. Pra
Foucault:
O enfermeiro ajuda-o a fugir do hospital e com o pretexto de que irá visitar a avó,
leva-o até Porto Alegre. Chegando lá, Sebastião fica sabendo que sua avó morrera há dois
anos e que no terreno da antiga casa dela havia sido construído um novo prédio. Os dois
seguem então à praia do Pinhal, pois Sebastião não conhece o mar e este é o seu grande
desejo. Como num lapso de memória, o narrador-protagonista, revela que costumava ir a essa
praia na infância. Lá, os dois hospedam-se no Hotel Atlântico. As ruas e o hotel estão vazios,
dando a ele uma espécie de prazer e realização, uma sensação de ter chegado em casa: “Tirei o
casaco, não que me sentisse acalorado, mas só pelo prazer de jogar o casaco sobre a cama
É nesse não-lugar, que o narrador-protagonista finda sua viagem, aos poucos vai
perdendo os sentidos. É levado à praia por Sebastião e morre diante do mar. A morte do
situação paranóica, sem começo nem fim, que o leva ao esquecimento de si mesmo e o imerge
numa busca interminável pelo incerto, talvez a identidade perdida ou o resgate da própria vida.
3 A VIDA EM TRÂNSITO
hotel em Nossa Senhora de Copacabana, quase esquina da Miguel Lemos” (NOLL, p. 48). O
preencher a ficha do hotel dá uma informação falsa: “Preenchi a ficha do hotel, estado civil
casado, eu menti – e imaginei uma mulher me esperando num ponto qualquer do Brasil”
(NOLL, p.10). Sendo o hotel ao mesmo tempo, espaço de chegada e partida, constitui-se
como um não-lugar: “Uma contagem regressiva estava em curso, eu precisava ir” (NOLL,
p.13), alheio a qualquer forma de compromisso com o mundo que o circunda, o sujeito
realiza-se vivendo numa pseudo- liberdade sem lugar para retornar, sem nenhuma referência à
Outra forma que o narrador-protagonista utiliza para fortalecer a sua condição de não
pertencimento é o fato de não possuir bagagens, transita de um lugar a outro apenas com a
roupa do corpo: “Ela olhou para as minhas mãos e perguntou:/ - E a bagagem?/ - A bagagem
O sujeito é movido por uma necessidade que o impulsiona a estar sempre em trânsito:
“Mas eu precisava ir: desci o degrau e me encostei na parede do prédio” (NOLL, p. 18).
Embora o leitor não tenha a clareza do que o motiva de modo tão intenso e instintivo a tantas
idas e idas, envereda com ele em sua interminável jornada: “Naquelas vias por onde se subia
ou descia pareciam todos muito imersos naquilo que estavam fazendo. Ter percebido assim
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(NOLL, p.20).
desterritorializado não lhe permite evocar um passado. Salvo algumas poucas e fragmentadas
reminiscências de um passado recente que o remetia a lugares por onde passou: “Comprei um
eu levava no bolso de trás da calça dois postais. Já estavam bem amarfanhados. Um deles
mostrava a praia de Copacabana à noite. O outro a barca para Niterói” (NOLL, p.36).
“Eu não guardo nada comigo” (NOLL, p. 48), o tempo presente o reconduz a novos espaços
proposital de si mesmo e do mundo, horizonte este, formado por fragmentos de vida e cenas
recortadas que nunca se completam. Essas rupturas possibilitam-lhe não perder a intensidade
e a euforia com que vive o fugaz presente e as suas vagas e irresolutas experiências e, tanto
quanto, pela necessidade imediata de cruzar outros espaços, sem perspectivas ou motivos
aparentes, que justifiquem essa perseguição pelo movimento de estar sempre indo a algum
4 RELAÇÕES ESVAZIADAS
apenas com o primeiro nome, a função que exerce ou a profissão, a narrativa não apresenta
muitas informações sobre quem elas são, as pistas são dadas a partir de fragmentos de
acontecimentos que na maioria das vezes não apresentam um desfecho, este fica a cargo do
completadas: a recepcionista do hotel, o garoto que o levou até o quarto do hotel, o motorista
de táxi, Eva, a loura com quem se envolvera. Susan, a americana que conheceu no ônibus
durante a viagem a Florianópolis, os dois rapazes com os quais seguiu viagem até Porto
Alegre: Nelson e Leo; Marisa, Antonio, Dr. Carlos, a filha de Dr. Carlos: Diana... Com todas
quatro sobre o imundo carpete verde. Eu me ajoelhei por trás. A minha missão: cobri-la fora
do alcance dos seus olhos. Nenhum toque acima da cintura, nada que não fossem ancas
mulheres que cruzam o seu caminho, resume-se em encontros fortuitos e casuais, que
ocorrem em situações movidas apenas pelo desejo carnal e totalmente vazias de afeto ou
descrever as circunstâncias vividas com um detalhismo centrado nas aparências das coisas e
dos seres, que chega a ser neo barroco e assemelha-se a uma fotografia, como se quisesse
preencher espaços propositalmente vazios: “A moça tinha os cabelos pretos, uma franja
espessa, os cabelos vinham logo abaixo das orelhas (NOLL, p. 11). Conforme podemos
Apoiado num parapeito um garoto olhava o breve vôo de uma pomba. A pomba
pousou num vão para ar-condicionado. Reparei que ali havia um ninho com um
pombinho. A pomba que tinha acabado de pousar, que deveria ser a mãe, ficou
espetando o bico no filhote” (NOLL, p.13).
sociais, desfruta de uma sensação de liberdade, pelo motivo de não se prender a experiências
subjetivas, apesar de estar num mundo, onde distâncias foram subvertidas e o seu transitar,
embora, seja mais um pretexto para não aceitar a condição da vida em sociedade. Ele não
escapa ao encontro com que mesmo sem profundidade, como cenas de videoclips, são
da informação, a substituição do livro pelo vídeo uma estrutura psíquica caracterizada por um
A diluição das relações afetivas, faz com que esse sujeito pós-moderno agarre-se ao
imediato, a tal ponto, que este por vezes, não se dá conta da sua condição humana, análoga a
uma máquina que articula-se num movimento fora de si mesmo, aludindo apenas ao
5 A DETERIORAÇÃO DO CORPO
Esse homem desenraizado em meio a essas viagens acaba sendo traído em suas
liberdade. O corpo com o seu perecimento constitui as amarras, que o aprisiona e o impede
deterioração do seu corpo, por vezes é obrigado a lapsos de consciência que o lembra da sua
decadência física. O espelho é um elemento recorrente na narrativa, objeto este, que sempre
estará em algum quarto de hotel, para fazê-lo recuperar a imagem de si mesmo e a decadência
das forças, do seu corpo, o depositário da sua identidade não revelada: “Na frente do espelho
olhei as minhas olheiras fundas, a pele toda escamada, os lábios ressequidos, enfiei a língua
pela cárie inflamada de um dente, pensei que não adiantava nada eu permanecer,
contabilizando sinais de que o meu corpo estava se deteriorando” (NOLL, p.16). Dores no
viagem final que o identificaria com todas as outras pessoas, a morte. Para Benjamin:
O corpo que fazia eclodir todos os seus instintos, e o colocava em comunhão, ainda
que carnal, com o outro. Avancei e lhe beijei o pescoço [...] Eu abria os botões da sua blusa e
lhe beijava os seios. Levantei a sai molhada e lhe apertei as coxas – ela não usava calcinha.
perecimento do corpo que também é configurado nas três mortes que ocorrem durante a
acontecimentos uma atenção mais demorada, ou demonstrar algum tipo de emoção, seguia em
frente, no seu já conhecido distanciamento das fraquezas humanas, em algumas, ajudava até a
sua consumação: “E falei baixinho: - Vai, Diva, vai sem medo, vai... A velha então suspirou e
Os sintomas da sua decadência iam sendo evidenciados em cada lugar por onde
passava, no trajeto da sua viagem até chegar a Arraiol, onde teve uma das pernas amputadas, e,
movimentar e de realizar os seus desejos sexuais com Diana, a filha do médico e candidato a
prefeito que o operou. Fica impedido assim, de configurar também a sua identidade
masculina.
É em Arraiol que ele conhece o enfermeiro Sebastião, aquele que o acompanha até a
sua última viagem. Apesar da narrativa não esclarecer muito bem a relação entre o narrador-
protagonista e Sebastião, infere-se a existência de uma amizade, não obstante o seu esquivar
ante os afetos, os sentimentos, a memória. Mas, eis que lhe surge o desejo irrefreável de
retornar a uma praia onde freqüentara na infância, a praia de Pinhal, seria um retorno à
origem? Sob o pretexto de visitar a avó e conhecer o mar, Sebastião aceita o convite para
realizar aquele que seria o último desejo do viajante. Chegando lá, hospedam-se no “Hotel
Atlântico”, este será o seu último lugar de passagem, ali perderá os sentidos.Chegar à beira do
mar é se deparar com o desconhecido, diante dele sucumbiu como toda criatura humana:
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Aí Sebastião olhou o mar. Eu também, o mar escuro do Sul. Depois ele virou a
cabeça para o lado e olhou para mim. Pelo movimento dos seus lábios eu só
consegui ler a palavra mar. Depois eu fiquei cego, não via mais o mar nem Sebastião.
Só me restava respirar, o mais profundamente. E me vi pronto para trazer, aos
poucos, todo o ar para os pulmões. Nesses segundos em que enchia o pulmão de ar,
senti a mão de Sebastião apertar a minha. Sebastião tem força, pensei, e eu fui
soltando o ar, devagar, devagarinho, até o fim. (NOLL, p.110)
E assim, a vida agora o desafiava a vislumbrar outros espaços, aquela sim seria a sua
última e interminável viagem. O andarilho sem origem, sem nome, marca a sua existência com
momentâneas, vestindo e despindo máscaras. Talvez ele mesmo não se reconhecesse mais, e o
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura de João Gilberto Noll arremessa o leitor por trilhas desconexas, numa
nem fim, atribuindo a estas um caráter provisório, cujo significado vai sendo construído à
Hotel Atlântico, constitui uma obra que permite refletir sobre a problemática dos
ritmo acelerado com o qual as pessoas movimentam-se de um lugar a outro, sem se darem
conta de si mesmas e do que deixam para trás. A ausência de referência e planos para o futuro
denuncia uma existência que vai sendo costurada no último momento vivido.
Inicialmente de forma grotesca, a ponto de provocar o choque, essa obra, nos desafia a
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras
escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
VILLAÇA, Nizia. Paradoxos do pós-moderno: sujeito e ficção. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
1996.