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FORMAS DA IMPERTINÊNCIA

Florencia Garramuño

Todo poeta é imigrante.


Carlito Azevedo

Gostaria de começar pela surpresa e pelo atordoamen-


to que produz Fruto estranho, de Nuno Ramos. É desse
atordoamento – e acho que essa palavra, pelo que tem de
abalo e perturbação dos sentidos, é a melhor para relatar a
comoção no que vou escrever aqui – que tiro a inspiração
para pensar numa grande quantidade de movimentos e
gestos da estética contemporânea que exploram formas
diversas do não pertencimento. Muito embora eu analise
neste artigo só umas poucas obras para elaborar essa noção
de não pertencimento, a ideia deve ser pensada para além

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dessas obras em particular, como uma condição da estética
contemporânea que se materializa em textos, instalações,
composições musicais, vídeos, documentários, filmes e
muitos outros formatos. Queria, também, que se entendesse
“forma” não como forma estética – os limites ou feições
específicos de uma obra – porque é precisamente essa ca-
tegoria o que essas formas colocam em questionamento. A
noção de formas do não pertencimento – e até da não per-
tinência – quer apontar mais para um modo ou dispositivo
que evidencia uma condição da estética contemporânea na
qual forma e especificidade parecem ser conceitos que não
permitem dar conta daquilo que nela está acontecendo.
Começo, então, por Fruto estranho. A instalação é uma
dos três trabalhos apresentados por Nuno Ramos no MAM
do Rio de Janeiro de setembro a novembro de 2010. É abso-
lutamente impossível não ver a obra, que atinge seis metros
de altura e ocupa toda a área. Porém, localizada no espaço
monumental, ela não cabe – não entra, não pertence, não
se hospeda – nas salas de exibição, e até parece só poder se
abrigar naquele lugar que o Museu não destina às exibições
ou obras. Dando as costas para as salas, ela se instala no
segundo andar, de modo que é possível subir a escadaria e
ir diretamente para os locais de exibição sem olhar para as
imensas árvores e para os aviões incrustados nelas, que se
exibem no espaço monumental.

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É verdade que esse espaço, já em 2010, tinha sido uti-
lizado muitas vezes como “sala de exibição”. Para lembrar
talvez uma das mais famosas: os Parangolés de Hélio
Oiticica foram “dançados” lá pelos passistas da Mangueira
na ocasião da já famosa e celebérrima exposição Opinião 65,
na qual as autoridades do MAM acabaram pedindo para os
passistas irem dançar fora do Museu por medo de que a ba-
gunça acabasse estragando as obras exibidas no interior das
salas.1 Se aquele caso evidenciou uma tensão por momentos
violenta entre o Museu e esse tipo de obras-não-obras que
Oiticica começava a propor na década de 1960, o certo é que,
muito embora essa tensão tenha se debilitado um pouco no
presente, alguma coisa ainda resta daquele estresse entre
museu ou sala de exibição e esses acontecimentos em que
grande parte da arte contemporânea tem se convertido. E
é isso o que Fruto estranho é – como, aliás, muitas práticas
contemporâneas, incluída a literatura: um espaço-tempo
sensorial, que já pela própria utilização de suportes e meios
diferentes ecoa contrário a uma ideia de especificidade
formal e, inclusive, estética.
É por isso que o que me interessa não é descrever a ins-
talação como um todo, mas discutir o evento e pensar nas
consequências que Fruto estranho traz para o pensamento
sobre a arte no seio da cultura contemporânea.

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A primeira questão diz respeito ao poderoso e ao mesmo
tempo estranho efeito político da instalação e, em geral, da
arte de Nuno Ramos. Basta lembrar a polêmica criada na
última Bienal de São Paulo com Bandeira branca, a obra
que incorporou urubus e fez com que um amplo grupo de
pessoas pertencentes a organizações de defesa dos animais
se manifestassem contra a instalação e chegassem a levantar
uma ação judicial contra Nuno Ramos e as autoridades
da Bienal. No caso de Fruto estranho, a convivência
áspera entre matérias e ordens diversas (árvores, aviões,
contrabaixos, música, vídeo), o efeito de catástrofe que a
disposição dessas matérias no espaço evidencia e a inclusão,
como ambientação sonora, da canção Strange fruit, de Abel
Meropool, sobre os linchamentos dos afro-americanos
no Sul dos Estados Unidos, cantada pela desgarrada voz
de Billie Holliday, parece usar essa convivência ríspida de
diferenças como modo de evidenciar uma transformação
da questão política da arte: o político estaria nela não
na mensagem – por momentos indecifrável –, nem na
transformação do meio específico – como queriam Adorno
e Benjamin –, mas num pôr em questão a própria ideia de
especificidade artística que inclusive puxa a noção do não
pertencimento para outros âmbitos e para além da estética.
O segundo efeito que me interessa sublinhar aqui é a
proposta da obra como percurso. Porém, esse percurso não

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tem um roteiro pautado por limites, como nos penetráveis
de Hélio Oiticica ou Cildo Meireles, mas é a proposta de
itinerários múltiplos, sem limites nem trajetória fixa, sem
fronteiras, sem indicações, num atordoamento em que o
itinerário se transforma na busca de um modo de habitar
um espaço atravessado por diferenças e heterogeneidades
dramáticas, sem apaziguamento.2 Esse atordoamento pro-
duzido pela operação de fazer com que a instalação seja uma
habitação de diferenças pode ser considerado o afeto e o
efeito principal da instalação: um modo de levar a estética
para um pensamento sobre aquilo que se sente com os senti-
dos (vista, tato, olfato) mais do que um pensamento sobre a
forma; como se, ao ficarmos só falando da não especificidade
do meio, ficássemos só descrevendo a obra – a forma – e
perdendo alguma coisa importante da disposição da matéria
no espaço que não tem a ver com a forma estética, mas com
os efeitos e afetos que essa disposição produz.
Por último, acho que a heterogeneidade ou a exploração
de formas diversas da diferença na obra não diz respeito só
aos sentidos por meio dos quais se trabalha nela (audição,
visão, tato). Ela está presente também na utilização de
ordens diferentes: natureza, cultura, raça, nação, o típico,
a região, o indivíduo. O trabalho com a natureza aparece
na instalação representada pelas árvores, mas também pela

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perturbadora cena do filme A fonte da donzela, de Bergman,
que se apresenta numa tela pequena num loop à beira das
árvores da instalação: eis então que natureza entra também,
ela mesma, num loop com a tecnologia e o cinema. A cena
do filme em preto e branco mostra uma árvore jovem, única,
numa planície. Um homem (Max von Sidow), munido de
uma serra com a qual poderia cortar de vez a árvore, duvida
uns instantes. Decide depois atacá-la num corpo a corpo
em que a árvore resiste durante vários segundos, com uma
flexibilidade intensa, e só uma vez derrubada é atacada com
a serra, enquanto a voz de Billie Holliday cantando Strange
fruit soa num pequeno aparelho de som.
Troncos e aviões, filme e tela, som e sentido formam um
espaço-tempo no qual as diferenças materiais convivem – às
vezes aliviadas, como no tronco e no avião, pelo sabão, mas
outras vezes ressaltadas pelo espaço vazio entre uma matéria
e outra – explorando formas diversas de não pertencimento.
Em Fruto estranho, o artista une e confronta as ideias de
natureza e tecnologia, vida e morte, sujeira e pureza. Soda
cáustica pinga de duas ampolas acopladas às asas de cada
um dos aviões, caindo em dois contrabaixos abertos e re-
pletos de banha, que permanecerá sempre quente, ideia que
surgiu, segundo Nuno Ramos, ao ler um conto de Pushkin
sobre uma árvore que pinga veneno. E aqui é que entra a
literatura nesta discussão.

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E a literatura entra também porque Nuno Ramos, além
de tê-la usado em muitas de suas obras e instalações, tam-
bém tem publicado livros. Desde Cujo e O pão do corvo,
passando por Ensaio geral, até o recentemente premiado Ó,
os livros de Nuno figuram de um modo muito desconfor-
tável em quaisquer dos gêneros tradicionais da literatura.
No começo, sobretudo para falar do primeiro livro de Nuno
Ramos, se apelou à ideia (sempre corriqueira, lembremos)
de que se trataria de uma “prosa poética” (como para Água
viva, de Clarice Lispector, por exemplo, ou todos aqueles
livros de Clarice que, muito inteligentemente, Silviano San-
tiago tem chamado de “textos curtos”).3 Mas ainda para além
dos gêneros possíveis, na sua heterogeneidade fundamental
(explorada em textos autobiográficos, outros que parecem,
ou são, ou poderiam ser comentários de suas obras plásticas,
outros, de ensaios e outros, de contos), os últimos textos de
Nuno Ramos apontam para outras formas de não pertenci-
mento ainda dentro de um mesmo “suporte” ou linguagem:
a literatura. Portanto, essa exploração pode até ser interior
e anterior a um único meio específico, entre aspas.4
Na exploração dos limites entre forma e matéria, o
trabalho do Nuno traz uma convivência de diferenças que
faz com que nada pertença nem permaneça fixo num local,
explorando assim os limites da forma, desabando os limites
possíveis para um fora da obra que está sempre no dentro

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que é, por incorporar o dar corpo ao fora, sempre o contrário
de uma intimidade, de uma hospitalidade.5
Tem se discutido muito a respeito das artes visuais
contemporâneas, a utilização que nelas se faz de meios e
suportes diferentes no campo expandido da arte no presen-
te, ou na condição pós-medial (todos conceitos de Rosalind
Krauss, já suficientemente debatidos e questionados).6 Não
vou aqui fazer esse percurso, sobretudo porque acho que
debatê-lo como alguma coisa isolada das artes visuais ou
plásticas não estaria dando conta de alguma coisa anterior
a isso, que seria o que possibilita ou propicia essa convi-
vência de matérias e suportes diferentes, mas principal-
mente porque acho que isso mesmo pode acontecer – e
está acontecendo – até num “meio” próprio – a palavra
ou a linguagem – como se dá, aliás, nos textos escritos de
Nuno Ramos. Acho mais instigante, por isso, pensar nessa
noção de não pertencimento como um “tropismo” da es-
tética contemporânea que poderia até ajudar a explicar ou
entender muitos textos literários recentes que lidam com
a mesma ideia de não pertencimento que podemos ver na
cópula entre matérias diferentes nas obras de Nuno Ramos.7
Se a própria figura de Nuno Ramos, ao trabalhar tanto
com palavras como com materiais plásticos e visuais, con-
densa essa tensão, o certo é que, mesmo em escritores que
só escrevem, podemos ver uma exploração semelhante das

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fronteiras da literatura. Numerosas práticas estéticas con-
temporâneas produzidas no Brasil e na Argentina nos últi-
mos anos exploram uma estendida porosidade de fronteiras
entre territórios, regiões, campos e disciplinas na produção
de diversos modos do não pertencimento. A articulação de
textos com correios eletrônicos, blogs, fotografias, desenhos,
discursos antropológicos, imagens, vídeos, documentários,
autobiografias interrompidas e fragmentárias – entre muitas
outras variáveis – cifra nessa heterogeneidade uma vontade
de imbricar as práticas literárias e artísticas na convivência
com a experiência contemporânea. Para essas práticas uma
leitura estritamente disciplinada ou disciplinária parece
captar pouco do evento ou acontecimento, já que a crise
da especificidade artística coloca em questão toda defini-
ção exclusivamente formalista da estética. A partir de que
limite ou marco deveríamos ler, por exemplo, o último
livro-desenho publicado pela Laura Erber, Bénédicte vê o
mar – publicado, aliás, em suporte diferente ao do livro
impresso? De que modo entender as frases-imagens de Eles
eram muitos cavalos? Qual significado dar às fotografias
incorporadas nos textos de Bernardo Carvalho?
Gostaria de comentar só um caso dessa exploração do
não pertencimento na literatura, analisando um fragmento
de um poema de Carlito Azevedo, “Margens”. O poema foi
publicado há alguns anos na revista Margens, mas aparece

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agora no último livro do poeta, Monodrama,8 que incorpora
uma grande diversidade de linguagens líricas e prosaicas,
políticas e subjetivas, pessoais e públicas, que exploram a
paisagem da violência e miséria contemporâneas, nos mais
diversos espaços do mundo: Berkeley, Rússia, Aterro do
Flamengo no Rio de Janeiro, Viena. “Margens” pode ser
lido como um resumo do livro Monodrama, já que aqui,
num único texto, aparecem todas essas heterogeneidades
que o livro vai desdobrar em poemas diferentes, com títulos
diversos. Trata-se de um texto construído por percursos e
itinerários pela cidade – o que Flora Süssekind chamou de
“poemas-percurso” – que possibilitam uma decomposição
da imagem poética em disposições claramente narrativas,
acentuadas pela ondulação de um limiar entre o privado
e o público que apaga a distinção entre poesia intimista e
subjetiva ou poesia social e objetivista.9
No fragmento que quero discutir aqui, o poema – divi-
dido em capítulos ou partes – coloca um trecho em prosa,
tirado de um artigo sobre a obra da artista Rachel Whiteread,
em espanhol. A figuração de uma saída da margem e do
poema é evidente na disposição tipográfica do fragmento.
Confrontado aos outros fragmentos ou estrofes em verso,
o poema exibe uma heterogeneidade que, por operações
diversas, podemos ver no livro todo: nele convivem, num

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mesmo texto, a escritura de relações pessoais – relações
amorosas ou filiais – com toda uma exploração da paisagem
social e política contemporânea – centrada nas figuras do
imigrante, o terrorista, o heroinômano – que faz do livro
uma intervenção muito produtiva na distinção entre o pú-
blico e o privado, demonstrando que, como queria Derrida,
nada do que é próprio define nenhum desses domínios ou
escrituras diversas.
Além desse fragmento em prosa, o livro de Carlito
contém outros poemas em prosa – como o intitulado “H”,
sobre a convivência com a doença de sua mãe – e outros
com versos mais breves.
Posso pensar também em outros livros brasileiros e
argentinos que exploram o limite entre prosa, narrativi-
dade e verso. El eco de mi madre, de Tamara Kamenszain
(publicado em 2010) começa logo após uma epígrafe sec-
cionada de “Los heraldos negros”, de César Vallejo – “yo
no sé, yo no sé…” –, com um primeiro verso contundente:
“No puedo narrar”, diz Kamenszain, dando início assim a
um poema que voltará sobre a questão do narrar, do dizer,
do contar – da prosa, em síntese – em vários momentos.10
“El libro cortado” intitula precisamente uma das seções
do livro, que se inicia com a dedicatória “In memoriam/

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Oscar Bernardo Kamenszain (1950-1953)”, sobre a morte
do irmão quando criança:

(…) Ser todo es ser nada me digo ahora


que los nombres de mi familia avanzan en las dedicatorias
mientras retroceden adentro del libro cortado
y algo me va quedando claro: no puedo narrar
nunca pude me solté rápido de la mano de ella
y entre dos muertes el pretérito ahora me sostiene
es un puente que no se le ve quedó detenido
debajo camina la narradora que no fui arriba
pasan de largo las historias escapándose
quién puede retenerlas si la memoria de mi madre ya no
[las teje
yo no sé… yo no sé dijo ella de entrada cuando murió
[mi hermano
yo no sé… yo no sé la fue empujando hacia adelante
[el eco obstinado
punto por punto cada punto suspensivo soltaba un
[indicio más
¿las fotos? ¿la ropa? ¿los juguetes? ¿la partida de nacimiento?
Nada por aquí nada por allá nada por aquí nada por allá.
Hasta que vino otra defunción y presentó su propia partida.11

Finalmente, o livro acaba com os seguintes versos:

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Diga lo que diga
en presente me siento libre
y hasta me parece que a lo mejor
…quién te dice…
mañana empiezo una novela.12

A continuidade da prosa para o verso nos últimos livros


de Carlito Azevedo e Tamara Kamenszain desenham outras
formas do não pertencimento. Ao fazer da escritura uma
linha contínua que no entanto se interrompe pelo corte
arbitrário e sempre surpreendente do verso, e em outros
casos evita o corte do verso, mas integra na linha contínua
do discurso uma série de cortes e interrupções, ambos os
livros exibem o que poderíamos chamar, em vez de poema
em prosa, de poemas com passos de prosa. Teríamos então
dois modos diversos de se operar essa continuidade entre
prosa e poesia, mas nos dois livros uma mesma tentativa
de realizar o que Giorgio Agamben chamou de “o passo
de prosa da poesia”.13 Esses modos trazem à superfície
o substrato de prosa de todo poema, numa expansão da
linha de “versura” que constitui o poema. Sem instituir
uma diferenciação do verso, esse passo de prosa – esse não
pertencimento da escrita nem à prosa nem à poesia – traz
nos dois livros uma exploração inovadora da afetividade,
que é também uma expansão da poesia. Não é à toa que os

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dois livros incluem e trabalham sobre a morte das mães
dos dois poetas.
Enquanto a forma em estações, a série, e o poema
em prosa no livro de Carlito Azevedo são maneiras de
incorporar uma emotividade e afetividade subjetiva que,
no entanto, se contrasta e convive com todo um mundo
público no qual essa afetividade se desenvolve, no livro de
Tamara Kamenszain a incorporação de versos e citas de
outros escritos e poetas coloca a experiência mais íntima
e subjetiva em uma coleção que descentra o sujeito – sem
abandoná-lo – e faz o político (ou público) dessa relação.
Os textos, nesse sentido, parecem evidenciar aquela ideia
que postulara Adriana Cavarero: “(…) o ser narrável é uma
figura de singularidade, não de excepcionalidade.”14
Interessa-me especialmente o modo como esse questio-
namento do específico – aqui, da prosa ou do poema; do
público ou do privado – redefine os modos de se ponderar
o potencial político da arte contemporânea.
Depois de percorrer os anéis em espiral que, com frases
de Água viva, de Clarice Lispector, a artista norte-americana
Roni Horn desenhou em azulejos de borracha, Hélène
Cixous – que tem escrito alguns dos textos mais instigantes
sobre a obra da escritora brasileira – analisa outra zona da
mostra de Horn: fora da sala de exibição, nos corredores

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da galeria que anos antes foi um banco, Horn pendurou,
não sobre as paredes, mas nas escadas e descansos, seri-
grafias em preto e branco com as mesmas frases. Levando
para a vertical, nos corredores, aquilo que antes estava na
horizontal na sala de exibição, Cixous diz da instalação: “O
que é figurado: todas as maneiras possíveis de fugir de um
quadro, de um encerramento, de um ficar em casa, numa
gaiola, numa instituição, numa fronteira, num todo. A, em
francês, désappartenance.” Disbelonging, traduz Beverley
Bie Brahic para o inglês.15 “Não pertencimento”, diríamos
em português. Acho que essa expressão pode servir para
pensar grande parte das práticas artísticas contemporâneas
que exploram formas diversas de se sair e fugir dos limites e
fronteiras. Gostaria de traduzir o termo por impertinência,
porque essa exploração de formas do não pertencimento
tem alguma coisa de ofensivo, irreverente e inoportuno
(mais uma vez, lembremos o escândalo da Bienal com
Bandeira branca, de Nuno Ramos).
O desenquadramento e a exploração dos limites e
fronteiras na criação de espaços insuspeitados que muitas
práticas estéticas contemporâneas estão nos oferecendo
permitem descrever uma transformação da estética con-
temporânea que, em algumas práticas latino-americanas,
adquire particular pregnância.

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Até que ponto essas transgressões e expansividades dos
meios, campos e regiões propõem formas diferentes de ha-
bitar o mundo? De que modo essa porosidade de fronteiras
e campos discursivos propicia modos do não pertencimento
que oferecem imagens de comunidades expandidas onde o
comum não é o que se comparte mas o em-comum?16 Em
que medida noções fundamentais da estética, sustentadas
na figura da representação, têm sido substituídas na arte
contemporânea por operações que têm mais a ver com a
produção de afetos e efeitos? De que modo esse pôr em
questão do não pertencimento redefine os modos de se
compreender o latino-americano?17
Sair da forma para pensar nesses afetos e efeitos pode
ser um modo menos disciplinado, mais impertinente, mas
também talvez mais produtivo para pensarmos nas transfor-
mações de uma noção de estética na cultura contemporânea.

Notas
1
O contraste entre as obras de Hélio Oiticica e as de Nuno Ramos no interior
da instituição, que é o museu, fala de uma transformação que pode ser lida, em
termos históricos, entre o momento da saída da arte para o mundo representado
por Oiticica – lembremos seu apotegma: “Museu é o mundo.” – e o movimento
que, no interior da arte, procura criar espaços políticos, que representa a arte de
Nuno Ramos. (Hélio Oiticica, Anotações sobre o Parangolé, Aspiro ao grande
labirinto, Rio de Janeiro, Rocco, 1986, p. 79.) Rodrigo Naves tem apontado a
contradição entre violência e afeto que pode se ler nas experiências de Hélio
Oiticica, sublinhando o tributo que as obras deste tiveram que pagar por um
tipo de convivência importante no Brasil. Segundo Naves, a falta de instituições

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civis representativas faz com que “a face coletiva de nossa existência guard[e]
traços das relações familiares e afetivas. E essa característica irá marcar suas
obras com a dificuldade de promover experiências que se afastem do campo
da intimidade e do afeto.” (Rodrigo Naves, Entre violência e afeto, O vento e o
moinho, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 87.) Nada dessa intimidade,
exposta agora como núcleo de um desamparo onipresente, resta nas obras de
Nuno Ramos.
2
Note-se a seguinte reflexão de Nuno Ramos sobre os labirintos de Hélio Oiticica:
“Pois trata-se, afinal, de um interior excessivamente reiterado, que sempre ergue
uma dobra a mais, sempre cai para dentro de si, adiando assim indefinidamente
sua fronteira exterior. É próprio do labirinto essa interioridade que se volta
contra aquele que está nela, numa identidade repetitiva e afinal claustrofóbica
que o vento da vida comum já não alcança.” Nuno Ramos, À espera de um sol
interno, em Ensaio geral, São Paulo, Globo, 2007, p. 124.
3
Silviano Santiago, Bestiário, Cadernos de Literatura Brasileira: Clarice Lispector,
São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2004.
4
Na orelha de Ó, José Paulo Pasta aponta a respeito do livro: “(...) não são contos,
não são crônicas, não são poemas etc.” Nuno Ramos, Ó, São Paulo, Iluminuras,
2010.
5
Segundo Rodrigo Naves, “há em boa parte dos trabalhos de Nuno Ramos um
esforço para reunir coisas e matérias cuja convivência se mostra estranha e
áspera (…) diferentemente das colagens pop, não procuram expor o nonsense da
sociedade de consumo, em que a abundância e dilapidação trocam de posição
ininterruptamente. Interessa-lhe antes encontrar uma forma de aproximar
elementos inesperados, de maneira a acentuar sua irredutibilidade. (…) São
precários demais para vestir a fantasia de forma.” Rodrigo Naves, Nuno Ramos:
uma espécie de origem, O vento e o moinho, São Paulo, Companhia das Letras,
2007, p. 321-322.
6
Rosalind Krauss, A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-Medium
Condition, London, Thames & Hudson, 2000.
7
Brian Holmes, L’extradisciplinaire. Pour une nouvelle critique institutionnelle,
em Laurence Bossé e Hans Ulrich Obrist (editores e curadores), Traversées,
Catálogo del Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 2001.
8
Carlito Azevedo, Monodrama, Rio de Janeiro, 7Letras, 2009.

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9
Flora Süssekind, A poesia andando, em A voz e a série, Rio de Janeiro, 7Letras
Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998.
10
Tamara Kamenszain, El eco de mi madre, Buenos Aires, Bajo la Luna, 2010,
p. 20.
11
“(…) Ser tudo é ser nada digo a mim mesma agora/ que os nomes da minha
família avançam nas dedicatórias/ enquanto retrocedem dentro do livro cor-
tado/ e uma coisa vai ficando clara: não posso narrar/ nunca pude me soltei
rápido da mão dela/ e entre duas mortes o pretérito agora me sustenta/ é uma
ponte que não se vê ficou detida/ debaixo caminha a narradora que não fui em
cima/ passam batidas as histórias fugindo/ quem pode retê-las se a memória
da minha mãe já não as tece/ eu não sei... eu não sei disse ela de saída quando
meu irmão morreu/ eu não sei... eu não sei foi sendo empurrada pelo eco em-
perrado/ ponto por ponto cada reticência soltava mais um indício/ as fotos? a
roupa? os brinquedos? a certidão de nascimento?/ Nada por aqui nada por ali
nada por aqui nada por ali./ Até que veio outro óbito e apresentou sua própria
partida.” Idem, O gueto, em O eco de mi madre, p. 49. (Trad. Paloma Vidal, Rio
de Janeiro, 7Letras, no prelo)
12
“Diga o que disser/ no presente me sinto livre/ e acho até que de repente/ …
quem sabe…/ amanhã começarei um romance.” Ibidem, p. 50. (Trad. Paloma
Vidal, Rio de Janeiro, 7Letras, no prelo)
13
Giorgio Agamben, Idea de la prosa, Barcelona, Península, 1989, p. 22.
14
Adriana Cavarero, Relating Narrative: Storytelling and Selfhood, London,
Routledge, 2000, p. 70, tradução nossa.
15
Roni Horn, Rings of Lispector (Água viva), com um texto de Hélène Cixous,
trad. Beverley Bie Brahic, London, Hauser & Wirth, Göttingen, Steidl, 2005,
p. 62.
16
Jean Luc Nancy, The Inoperative Community, Minneapolis, University of
Minnesota Press, 1990.
17
Cf. Beth Hinderliter et al. (ed.), Communities of Sense, Durham, Duke University
Press, 2009.

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