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FABIO SEIXO
MUTAÇÕES
BIA LESSA E
DOOSCOSMOPOLITISMO
SERTÕES | AIMÉ| CÉSAIRE
POEMAS DE
| O AGLAJA
RETORNOVETERANYI
DE RONALDO
| CARLOS
CORREIA
FELIPE
DE MOISÉS
BRITO
2
PERNAMBUCO, MAIO 2018
H
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
á quase dois anos, publicamos Em sintonia, Luana Antunes escreve sobre
uma capa sobre os 80 anos do Aimé Césaire, poeta e intelectual cujos trabalhos Vice-governador
Raul Henry
crítico literário, escritor e ensaísta já chegaram ao Brasil, mas que ainda não circulam
Silviano Santiago. Ele explicava: como merecem. Luana nos mostra como Césaire diz Secretário da Casa Civil
Nilton Mota
“O mundo acontece pela diferença muito sobre o entrelugar em que estamos. O mesmo
e é uma diferença altamente é visto na entrevista de Bia Lessa sobre sua montagem COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
politizada”. Divisa pertinente neste 2018 complexo de Grande sertão: veredas. Ela não quis trazer uma Presidente
que marca os 40 anos de Uma literatura nos trópicos, imagem única do sertão na peça, mas, sim, “evocar Ricardo Leitão
livro que reúne textos de Silviano sobre a cultura em cada pessoa essa imagem. Sertão é o mundo todo”. Diretor de Produção e Edição
dos anos 1970, assunto da capa desta edição. Está Ora, não é isso também o entrelugar? E o que se vê na Ricardo Melo
esgotado no mercado. Foi com essa obra que surgiu ficção escrita por Lesley Arimah também não é uma Diretor Administrativo e Financeiro
a visada crítica que trouxe importantes ferramentas vida que acontece pela diferença e no entrelugar? Nela Bráulio Meneses
de pesquisa, como a noção de entrelugar. Fred Coelho há o passado colonial, o presente e a violência contra
e Eneida Cunha tratam das ideias ali publicadas e mulher diante da sugestiva imagem da fechadura.
de como elas falam sobre nosso presente opressor. E ainda: o escritor brasileiro da atualidade a partir
As fotos de Fabio Seixo trazem páginas do livro na dos personagens-escritores de Rubem Fonseca; Ismar
Uma publicação da Cepe Editora
baía de Guanabara: uma representação das ideias em Tirelli Neto e sua obsessão (ficcional ou não?) pela Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
mistura com o que é visto e vivido, entre a sujeira atriz Florinda Bolkan; Carlos Eduardo Pereira e os Pernambuco – CEP: 50100-140
da água e a beleza da paisagem num Rio de Janeiro bastidores do seu Enquanto os dentes; o livro de estreia Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
cuja força estética não se sustenta mais por si. O da poetisa portuguesa Adília Lopes chega ao Brasil;
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
“des” escapa da foto assim como ideias escapam das e o novo romance de Ronaldo Correia de Brito. Luiz Arrais
páginas e imagens podem escapar da moldura, em
EDITOR
um movimento que lembra Lygia Clark. Boa leitura a todas e todos! Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes
BASTIDORES
Formas de criar
HANA LUZIA
silêncios diante
dos ruídos
De quando as questões
políticas são parte
importante do romance, mas
a maneira de contar a trama
é essencial para mergulhar
nas complexidades do texto
Certa vez, enquanto eu passava em frente ao termi-
Carlos Eduardo Pereira nal das barcas, na Praça XV, pensei: e se o cadeirante
Antônio tivesse que cruzar a Baía para chegar ao seu
Uma construção narrativa, todo mundo sabe, se faz destino? Fazia sentido, já que eu tinha me proposto a
a partir de escolhas. Para escrever o Enquanto os dentes, fazê-lo circular pela cidade usando diferentes tipos
tive que fazer as minhas. Há inúmeras possibilidades de transporte público, trabalhando uma realidade
de leitura para cada uma dessas escolhas, incontá- que é minha também, de todo dia, propondo uma
veis, ou possibilidades de interpretação (e é esse investigação de como nos relacionamos com os
o grande barato da literatura), apresento algumas. centros urbanos de hoje, uma investigação que está
O primeiro elemento sobre o qual me debrucei sendo revista o tempo todo. Ainda tinha que o mar
foi o narrador. Precisava encontrar uma voz que tem seus movimentos, suas instabilidades, e isso se
conduzisse tudo. A questão era definir se seria o encaixava muito bem no que eu procurava. O livro
Antônio contando a sua própria história ou se faria acontece no período de algumas horas de um dia no
mais sentido utilizar um narrador em terceira pes- Rio de Janeiro, quando Antônio precisa (mas não quer
soa. Acabei optando por alguém que vai junto, que de jeito nenhum) ir para um lugar determinado. É
acompanha o protagonista por todo lugar (e, assim, possível imaginar que ele tenha tentado se manter
talvez trazendo com ele o leitor), alguém que sem- em movimento enquanto pôde, por isso talvez seja
pre esteve colado nesse protagonista, que sabe tudo possível também que esse trajeto se dê de maneira
que ele pensa e sente. Um narrador que observa e, truncada, avançando e recuando, avançando e re-
apenas, relata. Ele até traz para nós algumas de suas cuando. Procurei traduzir essa vacilação na forma:
opiniões, claro (afinal, temos acesso somente ao o Enquanto os dentes é um livro contínuo, sem divisões
que ele escolhe para jogar uma luz em cima), mas em capítulos ou partes, numa tentativa de exprimir
não me interessava que ele fosse uma espécie de formalmente esse desejo de se manter em movimen-
apresentador de programa-dramalhão-da-tevê. to, e essas vacilações, esse “vou, mas não quero”, de
(O livro toca em assuntos relevantes, e que, Antônio. Se num parágrafo ele está seguindo em fren-
felizmente, estão sendo discutidos em diversas te (tomando contato com as coisas e com as pessoas
arenas contemporâneas: o lugar, ou lugares que os com quem ele esbarra no caminho), no próximo pode
negros ocupam em nossa sociedade; a questão, ou ser que ele seja transportado para o passado (movido
questões relativas aos deficientes físicos; a pauta, por gatilhos que encontra nessas mesmas coisas e
ou pautas relacionadas à intolerância. Mas seriam nessas mesmas pessoas com quem ele esbarra), sem
todos esses assuntos pertinentes para o registro aviso, num fluxo próprio do pensamento mesmo. E os
romance? A intenção era escapar do panfletário, obstáculos físicos da cidade também espelham seus
fugir das soluções prontas (que nem existem e, obstáculos emocionais, quando um rebaixamento
se existissem, eu não saberia reconhecer, tenho no meio-fio está de um lado da calçada, facilitando
certeza). Entendo que determinadas bandeiras, a circulação, mas não está do outro, forçando um
que pessoalmente são bandeiras minhas, precisam desvio improvisado.
vir por cima de tudo, na comissão de frente, mas Uma outra escolha, quem sabe relevante, é a da
por baixo delas deve haver uma série de outras construção meio apagada dos personagens. Jogar
camadas, camadas que apontam para o que há muita luz, por exemplo, nas características físicas
de comum a todos, que apontam para as questões de um personagem ou de outro, às vezes faz ce-
universais. Um pouco por isso escolhi não nomear gar. Podia ser, em alguns casos, que esmiuçando
nenhuma rua que aparece no Enquanto os dentes, ne- muito eu acabasse direcionando demais a leitura.
nhum bairro, nenhuma praça (ninguém percebe, Eu sempre procuro optar por uma condução mais
mas o livro descreve lugares sem nomeá-los), por- discreta, deixando umas sombras (que, sim, são
que talvez algo que ocorra no Rio também ocorra partes integrantes da composição e das motivações
em Manaus, a Baía de Guanabara talvez caiba em de um personagem) para o leitor. O próprio Antônio,
outras baías. Um outro motivo, esse relacionado às novamente para exemplificar, só fala em discurso
questões internas do protagonista, é que Antônio direto uma única vez, a última palavra do livro. E
se torna cadeirante em determinado momento foi muito nessa linha que cheguei àquele final, um
de sua vida, mas ele sempre teve uma relação de final de interjeição, de dúvida, de um silêncio que
movimento e contato com a cidade, e quer seguir talvez contraste com esses nossos tempos ruidosos.
com essa relação, só que agora a cidade é outra, seus
pontos de referência mudaram. É diferente andar
pelas calçadas, é diferente frequentar os lugares. O LIVRO
Então, se o Antônio é outro e a cidade é outra, os Enquanto os dentes
lugares não podem ter o mesmo nome, já são outros Editora Todavia
lugares. Acredito que a ficção, por uma potência Páginas 96
estética que ela tem, pelo uso de símbolos – que são Preço R$ 39,90
símbolos, sim, mas nem por isso são menos reais –,
a ficção possui um caráter altamente transformador
da realidade. É minha aposta.).
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PERNAMBUCO, MAIO 2018
FICÇÃO
A difícil porta
para o que
vem a seguir
Conto O futuro parece bom,
do livro de estreia de Lesley
Arimah, inédito no Brasil
Autora: Lesley Nneka Arimah
Tradução: Carolina Kuhn Facchin
Ezinma se atrapalha com a chave na fechadura sua fortuna. Quando a comida se torna escassa, ele
e não vê quem chega atrás dela: o seu pai ainda saqueia fazendas no meio da noite, que é como ele
menino, quando ainda era doce, disputando o vai conhecer sua mulher, e é o motivo de Ezinma,
afeto da mãe. A avó de Ezinma – explorada até atrapalhando-se com a chave na fechadura, não
os ossos pelas mulheres cujas casas ela espanava, ver quem chega atrás dela: sua mãe aos 22 anos,
cujas roupas ela lavava, cujos filhos ela esfregava nunca bela, mas com a aparência saudável de
até ficarem limpos; explorada pelos ossos de um alguém que nunca passou fome.
marido que queria muitos filhos e dos homens Sua mãe é uma garota audaciosa que pega mais
que ela acolhia para realizar este desejo – cuida do que lhe é oferecido. O ano é 1966, meses antes
do filho até os 13 anos como se fosse uma en- de tudo mudar, e ela está em uma festa de amigos
fermeira, e morre na sua cama com um suspiro dos seus pais, e lá há um homem com pele amarela
longo e cansado. como uma manga e mandíbula quadrada e corpo
A madrasta sente por ele o mesmo que sentiria como o da estátua de Davi, e rico; as mulheres
por um cachorro de rua que aparecesse o bastante solteiras vestem suas armaduras (sorrisos encan-
para que ela conhecesse a sua cara, mas que ela tadores, decotes robustos, personalidades convi-
nunca deixaria entrar em casa. Eles dançam ao dativas) e vão à batalha. Quando ela sai vitoriosa,
redor um do outro, o menino valsando para a frente pensa que isso já era dela por direito.
com desejo e a mulher fugindo em uma pirueta. A guerra chega quando eles já namoravam há
Ela cresceu numa casa em que era a irmã mais quase um ano. O povo dela é leal à Biafra, e o
velha de muitos e sabe como uma criança pode povo dele pensa que Ojukwu2 é um tolo. Só a
afogar os sonhos de uma mulher. O menino só vê família dela comparece à festa de noivado. No
as costas viradas, a rejeição, e o pai ignora tudo, dia seguinte, ela passa pela casa dele e descobre
cego pelo prazer de ser um homem velho com que ele deixou o país.
uma esposa jovem, ainda fresca entre as pernas. A família dela logo é obrigada a fugir da cidade,
Essa ele não dividiria com ninguém. E quando o logo é obrigada a trocar tudo que eles puderam car-
menino de 15 anos volta do mercado e encontra as regar, logo é obrigada a mendigar, e pela primeira
suas coisas em duas sacolas plásticas nos degraus vez na vida, a comida se torna tão escassa, que ela
de entrada, nem bate à porta para saber o que tinha entra em fazendas à noite para roubar espigas de
acontecido ou para perguntar para onde deveria milho ainda não completamente maduras. Quando
ir. Em vez disso, fica com outros garotos sem mãe fervidas, elas ficam tão macias que ela as devora
SOBRE A OBRA em uma construção abandonada onde suas duas inteiras, não só os grãos. Numa noite ela encontra
melhores camisas são roubadas e ele aprende a uma pequena fazenda escondida atrás de uma
O conto ao lado abre o sempre manter o dinheiro consigo. Pede dinhei- montanha e lá encontra um homem roubando os
premiado O que acontece ro, vende entulhos, rouba – e essa terceira opção inhames que teriam sido dela. Não há como com-
quando um homem cai vem tão naturalmente para ele, que se torna a sua petir; ele está bem-alimentado e forte, e mesmo
do céu, de Lesley Arimah saída. Ele começa com coisas pequenas, furtando que ela tentasse gritar só por despeito, ele conse-
– escritora britânica de pessoas desavisadas e surrupiando produtos de guiria silenciá-la. Mas ele sinaliza para ela ficar
origem nigeriana. No livro, bancas malvigiadas no mercado. Ele aprende a quieta e lhe dá um inhame. E ela, sendo quem é,
a autora discute diversas forçar fechaduras, fazer ligação direta em carros, gesticula pedindo mais dois. Ele lhe entrega mais
questões contemporâneas aprimorar sua mão leve. um e ela foge apressada. Na noite seguinte, ao
por meio da ficção. A obra A guerra chega quando ele tem 21 anos, e, retornar à fazenda, ele a está esperando. Ela senta
será lançada pela editora enquanto as pessoas protestam na rua gritando ao lado dele e eles escutam os grilos e a respiração
Kapulana em julho. “Biafra! Biafra!”1, ele começa a estocar produtos. um do outro. Quando ele coloca o braço ao seu
Quando os produtos se tornam escassos, ele faz redor, ela se apoia nele e chora pela primeira vez
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PERNAMBUCO, MAIO 2018
HANA LUZIA
desde a noite do seu noivado, há muitos meses. se falam. O pai, que nunca pôde suportar a tensão
Quando ele coloca um inhame no seu colo, ela
ri. E quando ele pega as suas mãos, ela pensa: eu
valho três inhames.
“Quando ele coloca entre as duas, pois trazia de volta memórias de sua
infância turbulenta, aperta o ombro de Bibi e vai
embora, e é aquela pressão gentil que traz as lágri-
Ela terá duas filhas. À primeira, dará o nome de
Biafra, por despeito, como que para dizer: “Olha,
Mãe, deposite suas esperanças em alguma outra
um inhame no mas. Logo ela está soluçando e o rosto da mãe ainda
é uma pedra, mas é um rosto molhado que ela vira
para que ninguém possa ver. Ezinma leva Bibi até o
coisa frágil”. E a segunda recebe o nome da sua
mãe, que a essa altura já tinha morrido sem saber seu colo, ela ri. E banheiro, aquele que elas dividiram e disputaram
desde que aprenderam a falar. Ela a faz sentar na
ENSAIO
gesto repetido
que revolucionou a literatura brasileira nos anos
1960/1970 e continua influenciando, mesmo que
estes não saibam, as novas gerações que mergulham
na violência urbana, no gênero policial, na fauna de
personagens marginais e exóticos e na representação
seus personagens-escritores
literário e a máscara autoral, muitas vezes criando
dobradiças entre a figura do escritor e do detetive/
assassino. Assim, este ensaio investiga alguns dos
diversos personagens escritores de Rubem Fonseca,
Giovanna Dealtry e como o próprio autor termina por se tornar um
personagem de si mesmo, tanto na ficção como no
imaginário que contamina à vida literária.
Em A reinvenção do fetiche literário, Italo Moriconi sinte-
tiza: “O fetiche é o literário e sua morte e ressurreição
cíclicas são a definição mesma de história literária”.
Penso nessa frase e na curta vida – apenas alguns
parágrafos – do personagem secundário João, do
conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. João será
o mentor de Augusto Epifânio, o escritor andarilho e
sem livros publicados, personagem instransponível
para se entender o lugar da literatura na obra de
Rubem Fonseca.
A Augusto Epifânio, João ensina que havia um ônus
a pagar pelo ideal artístico, pobreza, embriaguez,
loucura, escárnio dos tolos, agressão dos invejo-
sos, incompreensão dos amigos, solidão, fracasso.
E provou que tinha razão morrendo de uma doença
causada pelo cansaço e pela tristeza, antes de acabar
seu romance de 600 páginas. Que a viúva jogou no
lixo, junto com outros papéis velhos.
A morte de João não é mais que a morte definitiva
do gênio romântico, o mito do escritor fracassado.
Morrer de cansaço e tristeza apontam para um mundo
que não existe mais, em que escritores como João e do aparato de editores, feiras, entrevistas, críticos etc.
Augusto Epifânio são sujeitos à margem, crendo na Landers assassina Winner. No caso, mata o irmão,
literatura em seu estado de incorruptibilidade. O numa virada tragicômica própria de Rubem Fonseca.
escritor cuja voz é apropriada pelo narrador e tem Máscara da máscara que não pertence mais a si mes-
sua morte, bem como o fim de seu livro, narrada mo, mas ao mercado. Como sentencia Vera Follain
de forma desdramatizada, nada deixa como legado, de Figueiredo: “O texto é o assassino: o assassino do
não se inscreve na história da literatura. Serve à arte autor, porque abarcou toda sua realidade”.
entendida aqui como um trabalho obstinado, diário, Devorado pela grife Landers e pelo duplo fetiche
silencioso, fora do tempo, ou seja, fora das relações literário-mercadológico, Winner só pode existir
do capital. João e Epifânio, cegos pelo desejo de como simulacro. Pelo assassinato, transformou a si
não conspurcar a literatura, não enxergam o quanto mesmo em máscara autoral e objeto mercadológico.
a idolatria por uma literatura purificada é o outro O crime perfeito é a impossibilidade que sua iden-
lado da moeda da mercadoria como fetiche, como tidade seja revelada.
definida por Marx. Como em Romance negro, a crítica literária tende
Retorno a Moriconi: hoje a desaparecer desse novo arranjo. Enquanto,
“Tudo isso mudou. As sucessivas levas de novos escritores como Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna
escritores surgidas nos últimos anos, com algumas incluem em seus textos a figura do editor como
exceções, não têm estado nem um pouco interessa- um antagonista, nos novos modelos de escritor as
das em desconstruir o signo literário ou questionar relações com os diversos atores do campo literá-
convenções de qualquer tipo, até porque esse ques- rio – editores, curadores, antologistas, seguidores
tionamento já se tornara ele próprio convencional anônimos de seus perfis, jornalistas, organizadores
e repetitivo. Elas têm se mostrado interessadas em de feiras e festivais, agentes literários, júris de bolsas
recuperar e praticar o valor positivo do fetiche lite- de residência, prêmios, traduções – são contatos e
rário enquanto algo pragmático”. etapas tão ou mais significativas para a repercussão
Acrescento uma volta ao parafuso, em companhia de sua obra – ou seria do próprio autor? – do que a
agora do personagem John Landers/Petter Winner, escuta da crítica especializada. Separados da crítica,
do conto Romance negro. De forma programática, al- mercado, autor e fãs poderiam enfim viver em ado-
guns escritores das novas gerações levam a sério o ração uns aos outros? E não é sintomático que seja
jogo das intertextualidades (que são cifras restritas a um autor como Rubem Fonseca, consagrado, porém
certos grupos de leitores), oscilando entre referên- recluso e sem perfis nas redes, que venha recebendo
cias à cultura pop e outras que evidenciam o caráter críticas tão virulentas pelos jornais?
cultivado do ficcionista – ou seja, tudo que se une O trecho inicial de Buffo & Spallanzani, publicado em
pelo signo de uma pretensa pauta de referências 1985, evoca a discussão sobre literatura e trabalho e
fragmentárias, casuais, mas que, ao mesmo tempo, coloca dois modelos de escrita contrapostos. Gus-
evidenciam o caráter “cultivado” do autor em proce- tavo Flavio, personagem emblemático de Fonseca,
dimentos estéticos típicos da pós-modernidade. Esse escritor de dezenas de livros, relata um pesadelo
jogo mais reforça a persona do escritor do que abala recorrente a sua parceira, Minolta. No sonho, Tolstói
propriamente o estatuto do literário. E, no entanto, está diante do escritor e diz, em russo, “para escrever
esse ficcionista deverá cumprir as mesmas redes de Guerra e paz fiz este gesto200 mil vezes”. O gesto é
obrigação de quem faz best-sellers. estender a mão e molhar a pena no tinteiro, instru-
Na dobradiça Landers/Winner, como já foi sa- mento de trabalho escritor, e tornar a escrever. Em
cralizado pela crítica literária, o escritor anônimo tom ameaçador, o Tolstói do pesadelo de Gustavo
se debate entre furar o cerco do mercado editorial, Flavio continua:
bem mais flexível em nossos dias, e torna-se presa “Anda, agora é tua vez.
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PERNAMBUCO, MAIO 2018
HANA LUZIA
Sant’Anna tratam
contrapõe à produção em série de Gustavo Flavio. Ao fica adiado eternamente. Ou é o próprio conto que
revelar num pesadelo o modo de trabalho prosaico lemos, Augusto usando a máscara de Rubem dessa
de um escritor que mudou os rumos da literatura, vez? A literatura – retirada do esquema do mercado
o editor como um
Rubem Fonseca desfetichiza o literário. Escrever – torna-se vida, experiência, ainda que o final do
é trabalhar. Duzentas mil vezes é o montante da conto não aponte para nenhuma reconciliação, pelo
força de trabalho aplicada à obra. Ao mesmo tempo, contrário, entre Augusto e a cidade.
Gustavo Flavio, máscara de Ivan Canabrava, revela a
incapacidade da repetição do gesto de trabalho em
tempos em que a mercadoria-livro já sai da fábrica/
antagonista em Há ainda aqui, para concluir, outra máscara pro-
jetada sobre Rubem Fonseca nesses últimos tempos.
O recolhimento dele, sempre avesso a fotografias,
editora cada vez mais velha, antiquada. Por isso
é preciso sempre jogar no cenário novos nomes,
oferecer uma constância na produção, permanecer
suas ficções entrevistas e aparições públicas, parecia em alguns
momentos um gesto literário capaz de somar-se a
outros de seus personagens-escritores. Ou então,
produzindo, fazer circular nome e obra. José é a história da formação como leitor do futuro mera excentricidade. Na última década, no entanto,
“Para escrever Morte e esporte – agonia como essência Rubem Fonseca. Entre os livros e, futuramente, a novos dados da biografia do autor tem vindo à tona,
– eu enchi o meu computador de milhares de in- cidade do Rio de Janeiro, José divide seu tempo. Ler e com destaque para a vinculação entre Rubem Fon-
formações –, tudo o que eu ia lendo nos livros dos flanar. Deslocar-se pela grande cidade que, finalmen- seca e a ditadura civil-militar. Desde os anos 1990,
outros, que por sua vez haviam lido no livro dos te, está à altura dos histórias de aventura de autores já se sabia que o escritor havia trabalhado como
outros et cetera ad nauseam. O computador arquivou franceses que lia na infância em Juiz de Fora, a mesma roteirista para o Instituto de Pesquisas e Estudos
essa massa brutal de dados nas inúmeras ordens cidade onde nasceu Zé Rubem. Nessas memórias Sociais (1962-1964), considerado a celúla ideológica
que me interessavam e na hora de escrever bastou- ficcionalizadas, é a a cidade que encontra o seu leitor. do golpe de 1964. No entanto, a historiadora Aline
-me apenas apertar uma ou duas teclas para, num Como separar então José de Augusto Epifânio? O Andrade Pereira ressalta que José Rubem Fonseca
segundo, a informação que eu queria aparecer no andarilho, como José; o futuro escritor, como José. era o diretor responsável pelo Grupo de Publicações/
vídeo no momento certo. Morte e esporte não passa de O apaixonado pelo Rio, como José. Personagens se Editorial. Isto é, todos os assuntos referentes à opinião
uma imensa colcha de milhares de pequenos retalhos articulam para formar uma imagem de escritor que pública e jornais estava a cargo do escritor.
velhos que, juntos, parecem uma coisa original.” continuamente adiciona ou retira novos pedaços, Esse episódio biográfico entra em choque, por
O que Gustavo Flavio vê como negatividade é nunca chegando a um retrato final, mas sempre certo, com a imagem do escritor crítico à sociedade
contestado pela forma do próprio romance que te- oferecendo novas leituras, para quem o Rio de Janeiro da época e ele mesmo futura vítima da censura
mos em mãos, repleto de acúmulos de referências foi determinante na construção de sua obra. a seu livro Feliz Ano Novo (1975). Mais interessante
e metalinguangens inseridas no enredo. “A maior de todas as criações humanas é a cidade. do que optar por uma biografia em acordo com
Se Gustavo Flavio é máscara de Ivan Canabrava, É no centro do das cidades que seu passado pode ser os nossos afetos, o fato em questão me parece
se Winner é duplo e máscara de Seller, se Augusto sentido e seu futuro, concebido. Ainda que leitura inserir esse novo Rubem Fonseca na galeria de
é máscara de Epifânio e duplo de João, José (2011), e imaginação disputassem o mesmo espaço e cer- personagens-escritores de sua obra e também
romance memorialístico escrito em terceira pessoa, tamente o mesmo tempo em sua mente, Naquela aprender a lidar com esse retrato do autor entre o
poderia ser espelho do conto A arte de andar nas ruas do cidade, no Rio de Janeiro, José descobriu a carne, fetiche do literário e a mercadoria fetichizada. Ou
Rio de Janeiro? Uma das várias máscaras de José Rubem os ossos, a índole das pessoas; e os prédios tinham ainda, escutando a ordem do fantasma de Tolstói:
Fonseca dispersas ao longo de sua obra e vida? forma, peso e história.” “Anda, agora é tua vez”.
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PERNAMBUCO, MAIO 2018
ENTREVISTA
Bia Lessa
O palco como
lugar onde cavalos
podem ser ferozes
Diretora lembra sua história com o teatro e fala sobre a
montagem de Grande sertão: veredas, que vem recebendo
elogios da crítica e começa a rodar o país em breve
FOTO: DIVULGAÇÃO
Everardo
NORÕES
esnoroes@uol.com.br
A verdade
Na manhã da sexta-feira, 30 de setembro de 2016, - O mais difícil vai ser subir nas costas deles
a cidade de São Paulo amanheceu diferente. Quem para limpar aquilo tudo! Riu baixinho.
sobrevoasse o Parque Ibirapuera, área “nobre” da Por volta das 6h, as pessoas foram chegando
cidade, avistaria uma mancha colorida de mais de para a caminhada no parque.
40 metros de comprimento e pensaria que uma A dama do cachorrinho, colante amarelo e
histórica chega
bomba de cores havia sido detonada. boné de grife, passou sem se aperceber do acon-
A imprensa enviou repórteres para averiguar tecido. Falava ao celular com trejeitos de quem
o acontecido e proceder às entrevistas de praxe. trata com um príncipe das Astúrias. Nem se im-
Cedinho, um dos primeiros moradores do bairro a portou com o ipê a cuspir flores amarelas ou o
como o sabiá
sair de casa, dirigindo automóvel blindado, do ano, sabiá que dava ar de sua graça num galho do
foi parado gentilmente para dar opinião. jacarandá.
- O que acho? Porra! Uma puta falta de respeito. - Nem me fale, minha filha. Há três anos vivo
Coisa de comunista! sozinha. Dou graças a Deus! Claro, os tempos
O repórter agradeceu e desejou-lhe os bons- mudaram. Nada a ver com o tempo do FHC, o
dias. Apressado, o automóvel arrancou num ge- real equiparado ao dólar! Puxa! No tempo dele
mido de 150 cavalos. fui várias vezes a Paris! Nem pensar!
Sobre a mancha colorida O catador de lixo, que faz ponto numa das ruas
que margeiam o parque, não mereceu entrevista.
Outra vez fez de conta que não via o catador
de lixo, embora se cruzassem quase todos os
OLIGARQUIA EDITORIAL
Wellington Quem mais compra livros no Brasil?
de Melo
Resposta óbvia: o Estado. é talvez o maior oligopólio
Seja por meio das aquisições do livro: seis ou sete grupos
de livros didáticos, seja editoriais dominam as listas
para compor os acervos de compras do governo
de bibliotecas públicas, as federal e, se é importante
compras governamentais defender o modelo que dá
superam – e muito – as ao professor a prerrogativa
vendas no varejo. Fora da de escolha dos livros que
faixa escolar, a tendência é de vai utilizar, não se pode
CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
CONSELHO EDITORIAL
ret, 33 anos do desenho à montagem final, acordou
de várias cores, numa preponderância vermelha. I Os originais de livros submetidos à Companhia
Mácula mais visível desde a sua inauguração durante Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
o quarto centenário da cidade de São Paulo, em Diretoria considera projetos da própria Editora, são
1954. Homenagem aos ‘bravos’ que colonizaram o analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
interior do país a ferro e fogo, torturando, matando. partir dos seguintes critérios:
Homenageados que deram nome a outra operação
de sinistra memória, a Operação Bandeirantes. Com
os retoques do tempo, duas passagens da história 1. Contribuição relevante à cultura.
que se completam, cada uma a seu jeito: choque
elétrico substituindo chibata, pau de arara em vez 2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
de mergulho em rio de piranha, fuzilamento em vez que privilegia:
de degola ou enforcamento.
Pensando nessas coisas, o professor comentou:
- A verdade histórica às vezes chega como o a) A edição de obras inéditas, escritas ou
voo do sabiá. traduzidas em português, com relevância
O colega não entendeu o que tinha a ver passa- cultural nos vários campos do
rinho com bandeirante. conhecimento, suscetíveis de serem
- Muitas vezes o acaso é o nosso mestre. Pou- apreciadas pelo leitor e que preencham os
ca gente sabe o que foram as bandeiras ou o que
seguintes requisitos: originalidade,
representa este monumento solene no centro da
capital econômica do país. Até recebeu o apelido adequação da linguagem, coerência
de Empurra-empurra, pois os figurantes empurram e criatividade;
um barco que não sai do lugar. As cordas da escul-
tura também parecem frouxas, como se servissem b) A reedição de obras de qualquer gênero da
apenas de enfeite. Será que o artista fez assim de
criação artística ou área do conhecimento
propósito, sugerindo que bandeirante nada empur-
rava, que fazer força era coisa de preto ou de índio? científico, consideradas fundamentais para o
O professor lembrou que um bandeirante famoso, patrimônio cultural;
Fernão Dias, mandara matar o próprio filho. Numa
versão romanceada, o escritor Paulo Setúbal contou 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações
o episódio no livro O caçador de esmeraldas. Sugeriu sem as modificações necessárias à edição e que
também ao colega de cooper a leitura do historiador
contemplem a ampliação do universo de leitores,
cearense, sobre o qual ninguém mais fala, um certo
Capistrano de Abreu. Quem se orgulha de passado visando à democratização do conhecimento.
Seu José respondeu alegre ao bom-dia do homem colonial, famílias “tradicionais” ou baronatos troca-
de bermudas. Era o professor, um dos raros cami- dos a custa de baraço e cutelo, disse, devia conhecer II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer
nhantes a se aperceber da existência do catador o que foi registrado por Capistrano. Por exemplo, sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
de lixo. Vinha ao parque sempre acompanhado a matança do 3 de dezembro de 1637, quando 140
proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
de um amigo e o dia trouxera para eles um bom paulistas aliciaram 150 tupis e assaltaram um po-
motivo de conversa. voado. Tocaram fogo na igreja e a população nela sobre a publicação.
- Claro, velho. Tudo isso vale enquanto metá- refugiada foi obrigada a sair, a modo de rebanho de
fora! Até vou criar um neologismo: desestatuar. ovelhas correndo para o pasto: “com espada, mache- III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
Em vários lugares do mundo estão derrubando te e alfanges lhes derribavam cabeças, truncavam papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte
estátuas. Entre nós, acontece o oposto. Qualquer braços, desjarretavam pernas, atravessavam corpos. Times New Roman, tamanho 12, com espaço de
desembargador tem busto, torturador tem nome Provavam o aço de seus alfanges em rachar meninos
uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando
de rua. Basta fazer parte do establishment. Aqui é o em duas partes, abrir-lhes a cabeça e despedaçar-
lugar onde até estátua consegue voto! lhes os membros”. for o caso, índices e bibliografias apresentados
O sabiá solfejou um dó menor. Deu um rasante na Capistrano pergunta: conforme as normas técnicas em vigor.
pequena nuvem de chuva saída do tubo de irrigação. - “Compensará tais horrores e consideração de
Pousou na grama, bebericou, balançou as asinhas. que por favor dos bandeirantes pertencem agora IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
O professor sentiu-se comovido diante da cena ao Brasil as terras devastadas?”
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
e assobiou a música do Tom. Naquela seca manhã de sexta-feira, com 22,2 mm
- Puxa vida! Sabiá! No meio da cidade! de chuva, 29% da média normal, o sabiá voltou a violência e as diversas formas de preconceito.
O passarinho hesitou no voo, expressando estra- se molhar na mangueirinha de irrigação. O catador
nheza no seu campo visual. O encarnado contami- continuou a mergulhar as mãos nos depósitos de V Os originais devem ser encaminhados à
nava sua paisagem aérea de um costumeiro verde lixo. O professor calou-se. E voltou da caminhada Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
que te quero verde. É que, naquele dia, o Monumento pensando sobre que monumento vai ser erguido no seguir, sob registro de correio ou protocolo,
às Bandeiras, obra do famoso escultor Victor Breche- próximo centenário da cidade de São Paulo.
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.
CAPA
FABIO SEIXO
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PERNAMBUCO, MAIO 2018
CAPA
FABIO SEIXO
de interpretação e
ção, fazendo do objeto livro uma quimera frente à de 1970 e 1980, e foi rico porque nós estávamos vivendo
informalidade do envelope de papel pardo. Para uma determinada situação política, social, econômica
girar a faca no peito de qualquer filiação das van- que não estava prevista nos manuais”. (p.213)
guardas concretas, os mimeógrafos de Copacabana
promovem a fusão plena de poema e poeta nas
falas públicas de eventos da Nuvem Cigana como as
mapeou o campo 4. Vale lembrar que naquele período se expandia dentre
as universidades a antropologia urbana, cujo trabalho
de Gilberto Velho em estudos como Nobres e anjos
“Artimanhas”. O livro vira corpo, a escrita vira fala.
No ano seguinte do ensaio de Silviano, Heloísa
Buarque de Hollanda publicava sua já clássica anto-
intelectual da época é outro exemplo desse ímpeto etnográfico dentre a
juventude urbana carioca dessa época.
5. Expressão cunhada por Torquato Neto.
logia (já são mais de 40 anos) 26 poetas hoje e colocava ideias. Mesmo quando há uma visada retrospec- 6. SANTIAGO, Silviano. “Caetano Veloso enquanto su-
numa mesma cena o contexto dessas poéticas da tiva (o livro é de 1978 e muitos dos temas são de perastro” in: Uma literatura nos trópicos – ensaios sobre
primeira metade dos anos 1970. Com exceção dos 1972), não é fácil ser figura no mapa alheio. Vale dependência cultural. São Paulo: Perspectiva, 1978, p.123.
poemas de Waly e Torquato, é possível constatar lembrar que o final da década de 1970 estava pleno 7. Idem, 142.
o quadro sugerido pelo crítico. Como nos outros de polaridades políticas e culturais na antessala da 8. Aqui, claro, uso a figura do poeta-funcionário pú-
ensaios citados, ele aponta o excesso de “peripécias redemocratização. Em entrevista para o já citado blico que marca profundamente a poesia modernista
inusitadas de uma vida em perigo”, que faz com livro Anos 70 – Entrevistas, o crítico faz uma leitura po- brasileira, em contraste com o poeta em tempo integral
que o ego – do músico consagrado ou do poeta da sitiva de seus quatro ensaios aqui citados, ao afirmar (e vida precária) dos anos 1970. Para um debate mais
fala – oscile entre o silêncio sobre a situação política que, aos poucos, seus temas foram incorporados amplo sobre a poesia marginal desse período, con-
opressora e a transformação da experiência pessoal no meio acadêmico. Sintetiza a empreitada no ferir COELHO, Frederico. “Quantas margens cabem
em opressão autorreferente. Vale lembrar que em desejo de demarcar duas frentes: a “fragmentação em um poema?”. In: FERRAZ, Eucanaã. (Org.). Poesia
1970 Silviano lançava Salto, primeiro livro de poemas definitiva do antigo experimentalismo dos anos Marginal – Poesia e Livro. São Paulo: Instituto Moreira
cuja matriz concreta dava o tom de suas experimen- 1950” e a ascensão da moderna música popular Sales, 2013, p. 11-41.
tações com a linguagem. A cena dos novos poetas dentre os estudos de literatura. Silviano teve uma 9. SANTIAGO, Silviano. Op. Cit. p. 150.
no Rio, portanto, estavam muito distantes do rigor sensibilidade de quem, após passar anos fora do 10. Idem, p. 156.
inventivo que o crítico dialogava. O “assassinato país, reconhece suas transformações mesmo quan- 11. Esta entrevista se encontra no livro ANOS 70 – Lite-
de Mallarmé” é o esgotamento da palavra escrita do nada parecia acontecer. Olhos atentos, ouvidos ratura, volume da coleção edita em 1979 pela FUNARTE
enquanto valor livresco e formalista em prol de uma abertos, ideias atuais e o desejo de, ao contrário dos e Europa Empresa Gráfica e Editora. Com pesquisa
palavra falada enquanto valor imediato e absoluto. dilemas dos poetas, abraçar, ao mesmo tempo, a coordenada então por Adauto Novaes, 19 pesquisadores
No palco, o poeta que fala seus versos dá o tiro no biblioteca e a rua. fizeram panoramas sobre música popular, teatro, cine-
peito do lançador de dados. ma, televisão e artes plásticas. O volume de literatura
1. O nome completo do livro, lançado pela editora pau- foi editado por Heloísa Buarque de Holanda, Armando
V lista Perspectiva em 1978, é Uma literatura nos trópicos Freitas Filho e Marcos Augusto Gonçalves.
Anos depois, quando o livro foi publicado, Silvia- – ensaios sobre dependência cultural. Foi o primeiro 12. SANTIAGO, Silviano. Op. Cit. p. 160.
no afirmou que nem todos dessa geração – sejam volume de críticas publicado por Silviano Santiago. 13. Frase retirada da mesma entrevista de 1979 citada
curtidos, sejam concretos – concordaram com suas 2. O primeiro foi publicado originalmente com o título anteriormente.
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PERNAMBUCO, MAIO 2018
CAPA
a urgente tarefa
– ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu se libertar de todo um jogo de noções que estão
lugar de clandestinidade, ali (no entrelugar) se realiza o ligadas ao postulado de continuidade”.
ritual antropófago da literatura latino-americana. Entre a tradição oral reativada e a instigação
Silviano Santiago desconstrutora da teoria francesa, o ensaio é um
protótipo do gesto pós-colonial e se insurge contra
deste milênio
Reler Uma literatura nos trópicos nestas últimas o apagamento da violência civilizatória, ineren-
semanas me expôs à dolorosa conexão entre te à expansão da ocidentalidade, no repertório
momentos da história política e cultural separa- das ciências sociais e humanas e nas histórias
dos por exatos 40 anos. Lá, na dureza do regime literárias e culturais do Brasil. Santiago expõe o
violências que vivemos hoje quem dormiu no sleeping bag, sonhou e viveu a cabal
mudança do país, dos corpos e das vozes em torno,
massiva, estética e política. Em termos mais fiéis
à sequência da argumentação e ao prognóstico do
enfrenta, com estarrecimento, a abrupta interrup- “entrelugar”, o alvo é a polarização entre von-
Eneida Leal Cunha ção de uma ordem social pela primeira vez aberta tade de pureza e vivência da mestiçagem, entre
e acolhedora. Com sua sagacidade intempestiva ou colonização (a imposição do modelo às cópias),
por seu rico anacronismo, Uma literatura nos trópicos e descolonização (a agressividade desviante dos
pode sustentar uma interpelação ao nosso tempo, simulacros). Com a veemência própria daqueles
porque contém ferramentas hábeis para avaliar tempos de opressão política e agitação cultural,
a violência – seja do capitalismo neoliberal, da a análise de Silviano Santiago descarta a (espe-
brutal hierarquização dos corpos, da intolerância rada) síntese dialética e propõe a reversão das
com todo dissonante ou seja a violência maior da classificações, o valor do híbrido e a fertilidade de
exclusão, frequentemente mortal, do antagonista paradoxos e contradições: “A maior contribuição
tornado um inimigo. da América Latina para a cultura ocidental vem
Os ensaios publicados em Uma literatura nos tró- da destruição sistemática dos conceitos de unidade
picos são parte dos embates entre intelectuais, e pureza” (grifos dele).
escritores e artistas que na década de 1970, na
mais dura vigência do regime militar, prepara-
ram o que o mesmo Silviano Santiago designará,
20anos mais tarde, como “a transição do século
Para Silviano, a
XX para o seu fim”, datada por ele entre 1979 e
1981. Então debatiam-se no campo artístico as
vanguardas reativadas pelo tropicalismo, a exaus-
maior contribuição
tão da programática estético-cultural marxista e a
combinação – para muitos incompreensível – dos da América Latina
para a cultura
meios de comunicação de massa com a insurreição
contracultural jovem. No círculo mais próximo
ao crítico e professor de literatura digladiavam-
ocidental é a
se a vertente sociológica, intérprete autorizada
da história política, cultural e literária do país há
décadas, e o “pensamento francês” (expressão da
época, útil pela imprecisão), que aglomerava tanto
o formalismo e os vários estruturalismos quanto
a sua desmontagem.
destruição das ideias
Os estridentes debates sobre arte e literatura
nas principais universidades brasileiras, em cena
aberta e com imediata repercussão nos suple-
de unidade e pureza
mentos culturais, funcionaram como válvula de O segundo ensaio da coletânea, Eça, autor de Ma-
escape providencial para a compressão, o cercea- dame Bovary, demonstra que a contingência da re-
mento das manifestações públicas e a imposição petição, do pastiche ou da “tradução cultural”, e
violenta do consenso, próprios da ditadura. Mas o dilema da secundariedade não estão confinados
esses debates foram também expressão da per- na derivação colonial histórica e explícita. Recorre
plexidade de todos – criadores e críticos – sobre ao Pierre Menard, autor del Quijote, de Jorge Luis Bor-
como operar politicamente a arte e a cultura no ges, para reinterpretar, como valor afirmativo,
exterior da sintaxe marxista. Ter-se formado no a familiaridade escabrosa do Primo Basílio com o
exterior dessa sintaxe, fora da grande tradição romance de Flaubert. Em análise exemplar para
que constituiu o pensamento social e a atividade a crítica cultural e para a teorização do literário,
crítica da maioria de seus pares e contemporâneos Silviano Santiago recolhe, na comparação dos
brasileiros, é o lance diferencial de Silviano San- dois romances, prosaicas cenas ilustrativas da
tiago que repercute em Uma literatura nos trópicos e “reversão do Platonismo” anunciada por Nietzsche
produz um forte curto circuito – imagem assídua e retomada por Gilles Deleuze: a invisibilidade das
nas apreciações do crítico quando quer apontar a cópias fieis, quando coincidem com o seu modelo
interrupção no fluxo consensual e rotinizado das versus a visibilidade desafiadora dos simulacros
ideias ou dos discursos. quando exibem a sua diferença. A conclusão é
Na Nota Prévia, que abre o livro, um salvo-conduto análoga à avaliação do “entrelugar” latino-ame-
escrito em terceira pessoa, o autor anuncia que “o ricano, ressalta o valor da transgressão, a potência
intérprete perdeu hoje toda a segurança no julga- da repetição que se produz “fora do lugar”. Vale,
mento, segurança que era o apanágio de gerações para Santiago, tornar-se Outro pela energia trans-
anteriores”. Acrescenta: “Sabe ele que o seu trabalho formadora do ritual antropófago.
(...) é o de colocar as ideias no seu devido lugar” (grifo meu). Em um segundo bloco de Uma literatura nos trópicos
O livro se apresentava em 1978, portanto, evocando lê-se a incursão do crítico literário com atuação
o secular debate que obsediava e ainda afeta a inte- universitária nos domínios dos mídia, da indústria
lectualidade dos novos mundos, sobre a vigência e a cultural, da mercadoria artística ou “de uma arte
modelagem de ideias europeias no contexto politico de intenso consumo”, em especial nos domínios
e cultural dos trópicos. A Nota Prévia se reforça com da “juventude”, como diz. A leitura que Silviano
o posicionamento dos ensaios O entrelugar do discurso Santiago faz da cultura dos anos 1970 também é
latino americano, na abertura do volume, seguido por movida pela força reversiva ou desconstrutora
Eça, autor de Madame Bovary. de noções cruciais sobre a arte, na tradição oci-
As epígrafes do primeiro ensaio delineiam a dental. Os ensaios expõem a retração de valores
articulação que será central no seu argumento. da modernidade estética, como a alta cotação da
Uma delas é retirada do folclore brasileiro e relata a escritura, do literário, do valor artístico universal.
argúcia do frágil jabuti abocanhado pela onça: “Do Os ensaios Os abutres, Caetano Veloso enquanto superastro
crânio da onça o jabuti fez seu escudo”; a outra e Bom conselho, em sequência no livro, transitam
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FABIO SEIXO
O livro introduziu
a cultura da
contemporaneidade
no debate acadêmico
ao usar palavras
hoje fora de uso:
curtição e desbunde
aprendizes, mas igualmente com voraz reverência
de um antropófago, herdeiro também da linhagem
oswaldiana. A mediação entre o modernismo dos
anos 1920 e a sua atualidade cultural do final do
século, aliás, é um bom viés (como preza dizer)
para se ler os ensaios deste e dos dois outros livros
seus publicados em sequência, o Vale quanto pesa
(1982) e Nas malhas da letra (1989).
Em um dos poucos ensaios dedicados à crítica
literária em Uma literatura nos trópicos, a leitura de
Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer),
de Sérgio Sant’Anna, Silviano Santiago flagra a face
menos alegre da década e os impasses e arbítrio
dos “anos de chumbo”, expondo os efeitos per-
versos do autoritarismo na elaboração ficcional.
Com palavras ácidas, por vezes duras, lê nas si-
tuações dramatizadas por Sant’Anna o sectarismo
moralizante e a atmosfera “repetitiva, pessimista,
obsessiva, abusiva, lancinante, violentamente
carregada de tons éticos-morais” que, diz ele,
“reencontramos de conto em conto”.
Esta contundência trespassa as páginas da lite-
ratura para alvejar o momento político e existen-
cial em que ele e o contista estão imersos, em 1973,
ano de publicação do livro de Sérgio Sant’Anna,
do ensaio e ápice do governo do general Emilio
Garrastazu Médici, quando a ação da censura
onipresente se consolida: peças de teatro, fil-
mes, exposições, músicas ou outras formas de
expressão artística são interditadas ou rasuradas;
artistas, compositores, escritores, professores,
políticos e lideres operários são investigados,
presos, torturados, exilados do país ou sumaria-
mente executados.
Lamentavelmente, estamos voltando a saber,
ou aprendendo, hoje, do que se trata.
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ESPECIAL
Um mergulho
MARIA JÚLIA MOREIRA
na alma negra
do mundo
Sobre a criação poética e
crítica ao colonialismo na
escrita de Aimé Césaire
Luana Antunes Costa
Eu diria tempestade. Eu diria rio. Eu diria tornado. Eu diria iniciarão, assim, o movimento literário da negritu-
árvore. Eu diria molhado por todas as chuvas, umedecido de como uma reação ao ambiente segregacionista
por todos os rosados. Eu rolarei como sangue frenético sobre presente em Paris dos anos 1930. A partir da pre-
a lenta corrente do olho das palavras em cavalos loucos sença e da vivência de estudantes negros na me-
em meninos viçosos em coágulos em tampas em vestígios trópole francesa, sobretudo oriundos das Antilhas
de templos em pedras preciosas, o suficientemente longe e da África, sofrendo os efeitos da colonização e da
para desencorajar os menores. Quem não me compreende violência iminente da Segunda Guerra Mundial, a
tampouco compreenderá o rugido do tigre. reivindicação do corpo sociocultural africano se fez
(Aimé Césaire, Caderno de um retorno ao país natal) presente no engajamento dos jovens mentores da
negritude. A força e a dimensão contestatória dessa
Há 10 anos, aos 17 de abril de 2008, os jornais do palavra criada por Aimé Césaire são compreendi-
mundo noticiavam o falecimento de Aimé Césai- das pelo antropólogo Kabengele Munanga, em sua
re. Foram 94 anos de uma trajetória de vida in- célebre obra Usos e sentidos da Negritude (1998), como
tensa, dedicada à ação política e à criação literária. “um novo nome, um conceito, todo um vocabulá-
Poeta, dramaturgo, político, incansável crítico do rio nasce nesse contexto, para onde se canalizam
colonialismo e do capitalismo, intelectual engaja- os debates: a negritude, quer dizer, a personalidade
do na luta pela descolonização do ser e do imagi- negra, a consciência negra.”
nário o colonialismo e o capitalismo, Aimé Césai- Após a publicação da revista Légitime Défense (1932),
re, mais do que um homem, é essa grande árvore por um grupo de estudantes antilhanos – dentre os
ancestral cujas raízes atravessam o espaço-tempo quais, Étienne Léro, Réne Menil e Jules Monnero
das geografias do mundo, rompendo fronteiras, –, Paris verá nascer a revista Étudiant Noir (1934), da
interligando as partes e os povos da África às tex- qual os amigos Aimé Césaire, Léon Damas e Léo-
turas dos territórios da diáspora. pold Sédar Senghor estavam à frente, junto com
Césaire nasceu aos 25 de julho de 1913, em Bas- outros jovens intelectuais negros. A tônica sobre a
se-Pointe, região norte da Martinica. Filho de Fer- valorização das origens e ancestralidade africanas,
nand Elphège Césaire, administrador da fazenda a enunciação de um sujeito negro, capaz de ques-
Eyma, e de Eléonore Hermine, costureira, ele foi o tionar e combater o eurocentrismo dos discursos e
segundo dos seis filhos do casal. Após uma etapa de da visão de mundo corrente na Europa moviam o
estudos no Liceu Schoelcher, em Fort-de-France, grupo. Kabengele Munanga, em sua frutífera aná-
quando conhece aquele que será seu grande amigo, lise sobre tal fenômeno, salienta que “O exame da
Léon-Gontran Damas, Césaire se muda para Paris produção discursiva dos escritores da negritude
em 1931 a fim de prosseguir seus estudos em Letras permite levantar três objetivos principais: buscar o
no Liceu Louis-le-Grand. Será, pois, nessa épo- desafio cultural do mundo negro (a identidade negra
ca da juventude que ele conhecerá Léopold Sédar africana), protestar contra a ordem colonial, lutar
Senghor. Junto com Damas, os três jovens amigos pela emancipação de seus povos oprimidos e lançar
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PERNAMBUCO, MAIO 2018
da negritude como
de sentidos e significâncias, o que confirma sua os trabalhos desempenhados pela estudiosa Zilá
plasticidade e sua força simbólica, capazes de Bernd, professora da Universidade Federal do Rio
acompanhar as mudanças nos universos identitá- Grande do Sul, que tem colaborado com o alarga-
reação à Paris
rios de diversas comunidades negras do mundo. A mento da fortuna crítica do autor. O fato é que a
revolução do movimento da negritude se expandiu produção literária e ensaística de Aimé Césaire re-
na França a partir dos anos 1930, pela concepção cobre um período extenso, que vai dos anos 1930
de um vasto número de produção intelectual, teó-
rica e artística, em valorização da cultura negro-
-africana como elemento universal, encontrando
segregacionista a 2008, quando as Edições Seuil publica, apenas
dois meses antes de seu falecimento, a antologia
de poemas Ferrements et autres poèmes, prefaciada
maior concretude nas páginas da obra monumen-
tal Cahier d’un discours au pays natal (Caderno de um retor-
no ao país natal), de Aimé Césaire. A obra começou a
dos anos 1930 por Daniel Maximin. “A palavra essencial”, que
recobre quase 80 anos de escrita poética e enga-
jamento político, convida o leitor brasileiro – e os
ser escrita em 1935, um ano após o seu ingresso na do país. Em 2012, a Edusp lança Diário de um retor- de outras geografias – a um pacto a favor da vida e
École Normale Supériere, época em que também no ao país natal, traduzido e comentado por Lilian do futuro do mundo, como nos lembra Maximin:
fora diretor da Associação dos Estudantes Martini- Pestre de Almeida, estudiosa da obra cesairiana “(...) não para reter o tempo, não para circunscre-
canos. Césaire, então, estava na Croácia, hospeda- e da literatura antilhana de língua francesa. Con- ver o espaço, mais para transmitir a sede daquilo
do na casa de seu amigo Petar Guberina, quando tudo, essa publicação não alcançou a celebração que deve ser dito, e a esperança fértil de desejos
iniciou o processo de escrita do Caderno. Desde a que merecia nos circuitos literários e na imprensa, que se afastam da intimidação glacial, de desvios
sua primeira publicação, em 1939 na revista Volon- embora a excelência do trabalho desempenhado criminosos e das racionalidades sombrias”.
tés, a obra sofre modificações, tendo sido ampla- por Pestre de Almeida tanto no plano da tradução
mente traduzida e publicada por diversas editoras. do poema, quanto na análise crítica da obra. Aliás, CADERNO DE UM RETORNO AO PAÍS NATAL
No Brasil, a obra foi traduzida e publicada muito essa mestria, que se expressa na compreensão do “Au bout du petit matin...” (“Ao final do amanhecer...”)
tardiamente. Como primeira tradução identifiquei todo da obra cesairiana, sem deixar de dialogar é o verso disparador desse denso poema, de tom
em minhas pesquisas o trabalho realizado pela com as narrativas historiográficas da Martinica, já hermético, cifrado. Tal como um mistério a ser re-
editora Terceiro Milênio, com tradução de Anísio se nota em uma nova edição do Cahier pela editora velado, o poema se apresenta em movimento de
Garcez Homem e Fábio Brüggemann. Contudo, L’Harmattann, em 2008, cuja autoria analítica é de abismo. Os versos criam um conjunto de imagens
essa edição não teve ampla circulação em livrarias Lilian Pestre de Almeida. encaixadas, espécie de sonho acordado, momento
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elas chegaram
do ser e do espírito. Como uma recusa eloquente da revista cultural Tropiques, criada por Césaire,
à raiz única e europeia, ideologia do projeto assi- cujo corpo editorial contará com o apoio de Su-
milacionista do regime colonial francês e direcio- zanne, evidentemente, e de outros professores
tardiamente e sua
nado à diversidade dos povos colonizados, o poe- – René Ménil, Aristide Maugée, Lucie Thésée –,
ta se vê humanamente plural, uma bricolagem a missão, no plano da construção de estratégias
diversa de humanidades possíveis: para a descolonização do ser e do imaginário
“Partir.
Como existem homens-hienas e homens-
circulação ainda martinicano, parece alcançar mais concretude.
O primeiro número de Tropiques será lançado em
abril de 1941 e as bases filosóficas da ação poé-
[panteras, eu serei
um homem-judeu
um homem-cafir
é muito limitada tica e política de Aimé Césaire se tornarão mais
realçadas – é o momento de transformar a pala-
vra poética em ação transformadora da realidade.
um homem-hindu-de Calcutá já se explícita nas páginas do Caderno de um retor- Embora a crítica à obra cesairiana, desde a pu-
um homem-do-Harlem-que-não-vota” no ao país natal, se tornará mais evidente em seus blicação do Caderno de um retorno ao país natal, tenha
(Caderno de um retorno ao país natal) escritos com a volta de Césaire, já casado com a insistido sobre uma grande influência da estética
intelectual Suzanne Roussi, à Martinica em 1939. surrealista francesa, em especial de André Breton,
TROPIQUES E O RETORNO AO CHÃO De fato, eles se casaram em 1937, no ano seguinte sobre sua escrita literária. Contudo, nos tempos de
MARTINICANO ao término dos estudos de Letras realizados por Tropiques, há um diálogo preponderante entre a poé-
“Minha boca será a boca dos infortúnios que não têm boca; Suzanne, em Toulouse. O intelectual camaro- tica de Aimé Césaire e seus ensaios com a obra L’his-
minha voz, a liberdade daquelas que se desesperam no nês e diretor da revista Présence Africaine, Romuald toire de la civilisation africaine, de Leo Frobenius (1873-
calabouço do desespero” Fonkoua, em sua biografia de Aimé Césaire (Per- 1938), etnólogo alemão. Frobenius via nas civili-
(Caderno de um retorno ao país natal) rin, 2010), vê o casal como “intelectuais moder- zações africanas uma capacidade à profundidade
nos”, confirmando a imagem de um “duo perfeito” das coisas do mundo. Diante da realidade da Mar-
A crítica ao colonialismo e aos efeitos sentidos e até mesmo enxergando na dupla algo que os li- tinica, marcada por agenciamentos coloniais que
nas Américas, mais localmente na Martinica, que gava à “experiência de Jean-Paul Sartre e Simone criaram espaços de falta, de vazios estruturais, que
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PERNAMBUCO, MAIO 2018
destacar, na poesia,
É o que podemos ler no artigo, Leo Frobenius et le tórias dos movimentos negros do mundo, aprendia
problème des civilisations, de Suzanne Césaire, pu- com Olabiyi Yai, linguista e poeta beninense, sobre
blicado no primeiro volume da revista Tropiques o poder e a beleza de Les armes miraculeuses. Aprendia
a pluralidade étnica
e reeditado na obra Le grand camouflage – écrits de sobre os sulcos marinhos, as transgressões, as rein-
dissidence (1941-1945), da autora: “Bem, parece venções de nossa história. Nessa busca pela “palavra
inestimável o benefício da África para aquele que essencial”, era Césaire quem me levava à Martinica,
se coloca a angustiante questão do futuro huma-
no: ‘Para nós, a África não significa somente um
alargamento em direção a outro lugar, mas tam-
e cultural que me possibilitava o encontro, pleno de cumplicidades
e descobertas, com a antropóloga brasileira Magda-
lena Toledo, estudiosa das apropriações do poeta na
bém um aprofundamento em nós-mesmos’”.
Ao longo da existência de Tropiques – com seus 14
volumes publicados na Martinica de 1941 a 1945
originou a região arte contemporânea da ilha. E, hoje, quando eu me
reinvento no Ceará, no entrelugar das Áfricas no Brasil,
ainda é Césaire quem me leva a encontrar, em Paris
– cobrindo, portanto o conturbado momento da A dignidade. A justiça. Natal queimado. (ao acaso?), um jovem pesquisador curdo, Serdar
Segunda Guerra Mundial, a revista recebeu cen- Um dos elementos, o elemento capital do mal- Ay, tradutor da palavra poética cesairiana. Quando
suras até ser definitivamente proibida em 1943, -estar antilhano, a existência nessas ilhas de um perguntei a Serdar porque escolheu traduzir a obra
conseguindo apenas ser republicada, em 1944, bloco homogêneo, de um povo que desde três de Aimé Césaire, ele me respondeu como que tra-
após a Libertação da França. Nesse mesmo ano, séculos busca se expressar e criar (...) a Revolu- duzindo o sentimento profundo que nos movimenta
em seu artigo Panorama, publicado em Tropiques, ção martinicana será feita em nome do pão, claro, a toda humanidade do mundo:
Césaire lança um grito obstinado, anunciador do mas também em nome do ar e da poesia (o que “Eu traduzo Césaire porque eu quero que Cé-
que seria sua conduta futura como um poeta no quer dizer o mesmo)”. saire seja curdo e que o curdo seja Césaire, preto,
mundo da política institucional da ilha: negro. Pois eles se conhecem há muito tempo...
“O pior erro seria acreditar que as Antilhas des- UM POETA NA POLÍTICA Há apenas uma barreira linguística entre eles. É
nudas de partidos políticos potentes são desnudas Sofrendo os efeitos da invasão nazista na França, preciso tirá-la. Todos os espaços coloniais, pós-
de vontade potente. Nós sabemos muito bem o que durante o governo de Vichy (1940-1944), a Mar- coloniais ou oprimidos precisam se conhecer, se
queremos. A liberdade. tinica, em sua condição de colônia francesa, se sentir, se imaginar mais...”
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS
José
CASTELLO www.facebook.com/JoseCastello.escritor
HANA LUZIA
A falácia da pureza
Contra as turbulências e incertezas do mundo partes diferentes para que, costuradas, recupe- posição dos “puros” parece haver, sempre, um
contemporâneo, muitos se refugiam no mito rem a aparência única. Os “puros” seriam, em desprezo, um nojo ao presente. Uma repulsa
consolador da pureza. Julgam-se puros, incor- consequência, homens dispostos a disfarçar às circunstâncias e ao limitado. Uma náusea
ruptíveis, “limpos” — a sujeira e o lixo ficam as diferenças e os contrastes, empenhados contínua diante dos acordos, das dúvidas, da
com os outros. Os “puros” proliferam, da ex- em coser uma visão de feição única — talvez inconstância. Um desdém, em resumo, por
trema direita à extrema esquerda. Na verdade: absoluta — do real. tudo o que é humano e, em conseqüência,
eles caracterizam, cada vez mais, essas duas “Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos vacilante e volúvel. Daí que os “puros” pre-
posições extremadas, intransigentes, inflexí- tensos / Corre um sangue incolor”, continua ferem, quase sempre, a perfeição ilusória da
veis. “Puros”: “sem misturas, não alterados Vinicius, sem perder a veemência e a coragem. esperança — esse pedaço de vida esboçado
pela impureza, ou por elementos estranhos”, Homens sem tempero, sem nuances e grada- no futuro. A esperança como foco: eles, que
define, serenamente, o dicionário. Há, nessa ções, que não aceitam os remendos e os palia- rejeitam o presente, endeusam o futuro. Só
posição, um sentimento de superioridade e tivos; que se julgam do lado das coisas certas, o futuro não está contaminado. Só o futuro é
de nobreza. Com seu “puro sangue”, eles se originais e definitivas. A imagem do sangue reto e incorruptível. Só o futuro é perfeito e,
afastam dos infelizes contaminados. Não sujam incolor acentua essa postura: nem vermelho, por isso, ele é o único lugar que os dignos e os
as mãos com as nuances e acordos do mundo. nem azul, nem cor alguma, esse sangue sem “cidadãos de bem” devem habitar.
Não negociam, não compactuam, não firmam cor definiria o “puro sangue”, do qual todos os ´”Ó vós que vos negais à escuridão dos bares/
pactos, nunca abrem mão de si: são os donos outros seriam, apenas, derivações degeneradas. Onde o homem que ama oculta o seu segredo”,
absolutos da verdade. “Ó vos, homens iluminados a néon/ Seres continua o poeta. Nesses dois versos, em uma
Em busca de uma luz para decifrá-los, releio extraordinariamente rarefeitos”, diz Vinicius, síntese precisa, Vinicius enumera alguns dos
a Carta aos “puros”, poema que Vinicius de Mo- apaixonado e destemperado como sempre é, inimigos da pureza. A escuridão, que guarda
raes escreveu no fim dos anos 1950. Prudente, poeta dos excessos e das aflições extremas, o invisível e onde pode surgir o indigno e o
também Vinicius grafa a palavra, “puros”, entre poeta radical não porque se julgue puro, mas, inaceitável. O amor, que é turbulência e ardor,
aspas, ou então com uma irônica inicial mai- ao contrário, porque se lança de coração aberto que exige entrega impensada, doação louca, e
úscula; pois se trata de uma pureza discrimi- nas feridas do mundo. que vem para desestabilizar as cores claras da
natória, arrogante e, sobretudo, ilusória. Uma Na química, néon significa “menos cor”. pureza. O segredo, que guarda o desconhecido e
pureza que a poesia, que a tudo arrasta e a tudo Menos contraste — neutralidade suposta e, de o impronunciável — portador, por isso, do gran-
inclui, vem colocar não só sob suspeita, mas novo, superioridade. Sangue incolor: que não de perigo. Perigo de que a pureza se manche;
relativizar e desafiar. Assim começa o poeta: se define, que não tem lado, que está acima de que a grande borra da vida se derrame, para
“Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os das escolhas e das posições, já que todos eles rasgar toda a ilusão de verdade e de bem. Do
Puros/ E em cujos olhos queima um lento fogo seriam apenas derivativos pervertidos de uma segredo pode sair qualquer coisa: uma dúvida,
frio”. A ideia da frieza, da ausência de calor, é postura original. “Ó vós, a quem os bons amam um sentimento agressivo, uma lágrima dolorosa,
muito importante, já que, rejeitando qualquer chamar de os Puros/ E vos julgais os portadores um soco que venha a derrubar, em um só ato,
contato com o humano, que é sempre infectado da verdade”. Vinicius toca, nesses versos, no posições tão sólidas.
e incerto, que é sempre caloroso, os “puros” se problema central. O que está em jogo nessa Deveríamos distribuir a Carta aos “puros” pelas
colocam acima de tudo, como se pertencessem luta pela pureza é a posse da verdade. Não uma ruas do país, como um alerta e uma advertên-
(assim pensam) a uma raça superior. verdade relativa, humana, feita de imperfei- cia. O poema de Vinicius solapa os fundamen-
“Vós de nervos de nylon e de músculos duros/ ções e de furos; mas uma verdade absoluta, tos frágeis da pureza. Desmascara as ilusões que
Capazes de não rir durante anos a fio”, prosse- imaculada, inquestionável, que não aceita o a sustentam. Arranca os “puros” de sua redoma
gue Vinicius. A imagem do nylon é significativa. contato nefasto com outras verdades, ou outras impecável, racha a redoma, e os lança no gran-
Volto ao dicionário: Nylon — denominação de posições. “Ó vós que só viveis nos vórtices da de caldeirão da existência. Viver, de fato, não é
vários materiais sintéticos de poliamida”. A morte”, continua Vinicius, ciente de que essa fácil. Sobretudo porque exige disposição para
ideia do “sintético” aponta para a noção de posição “pura” é, antes de tudo, uma negação os contrastes e as surpresas. Exige coragem
síntese, de Totalidade — zona na qual todas cruel da vida. Pois a vida é movimento, é mu- para se deixar contaminar pelas oscilações
as diferenças se apagam, recobertas por uma dança, a vida é impura. e flutuações da existência. A vida não é uma
única aparência. Já a poliamida, material de “Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito/ linha reta, e por isso é incerta, e por isso exige
fibra sintética, é muito usada nas suturas du- E erigis a esperança em bandeira aguerrida”, diálogo e troca, negociação e controvérsia, e
rante as cirurgias; isto é, no processo de unir segue, um pouco mais à frente, o poeta. Na só por isso é bela. Só por isso é vida.
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INÉDITOS
Ismar Tirelli Neto
HANA LUZIA
Prolegômenos a uma ciência do mito maneira mais foi dada. Um norte. Não tanto uma solução clara e
definitiva para o problema que estive ruminando
logo antes de pegar no sono, mas, sim, uma certa
Conheço a voz de Chapelin, conheço uma que ou-
tra coisa sobre a vida e a carreira de Florinda Bolkan, lógica de chegar até disposição para a solução, uma clareza de espírito a
que não estou habituado. Acordo confiado de que
Florinda Bolkan?”,
nascida Bulcão, em Uruburetama. Não conheço es- as coisas chegarão a bom termo no devido tempo.
paço de significação mais vasto ou negociável que o As pessoas mal me reconhecem.
mito. O alcance e a elasticidade do termo parecem-
pergunta Gustavo,
-me praticamente ilimitados. Portanto, quando Sér- Tirelli di Roma
gio Chapelin fala que Bolkan é um “mito”, cabe-nos
perguntar: a que conceito aludirá? Ou melhor, a que Explico para meu marido Gustavo que já existiu
aspecto do mito nos está enviando? Certo, Florinda
Bolkan é um mito. A colocação assenta bem. Ao
afirmá-lo, tenho a íntima impressão de dizer uma
meu marido, pelo menos um Tirelli na vida de Florinda Bolkan.
Umberto Tirelli, dono da Sartoria Tirelli di Roma, vestiu
não apenas a Flor de Uruburetama, mas também
verdade. Mas a verdade é que não sei ao certo o que
disse. Ainda na introdução a seu volume O Mito, K.
K. Ruthven provoca:
durante o café um renque de estrelas do cinema e da ópera. Por
um breve momento, portanto, obsedou-me a ideia
de que entre nós havia algum parentesco, ainda
“Os mitos têm uma qualidade que Wallace Ste- uma fratura que se esconde no exato momento em que que vago, remotíssimo, praticamente inverificável.
vens atribuiu à poesia, num aforismo meticulosa- buscamos tematizá-la racionalmente. Traçar uma linha – praticamente inverificável – das
mente evasivo: conseguem resistir à inteligência”. minhas mãos até às de Umberto. As minhas mãos
O ex-presidente Lula, cuja imagem preenche Le orme (II) escrevendo as mãos de Umberto Tirelli escolhendo
neste momento o televisor da sala da amiga que me túnicas numa arara. Umberto Tirelli. O querido
está hospedando no momento, é também um mito. No mais dos casos, as visitações se dão quando zio Umberto. Digo para o Gustavo que existiu já um
Jair Bolsonaro, presidenciável, inexpressivo estou passando por algum tipo de crise. Então, da Tirelli na vida de Florinda. O segundo, presumível
militar com vapores de grande inquisidor, é co- pessoa de Florinda em sonho, de seu porte, de sua segundo, eu, está para chegar. Por ora, está se es-
mumente referido por seus asseclas como mito. estatura, emana uma espécie de consolação. Paz. preguiçando. Volta-se para seu marido na cama,
“Mitar” é um verbo, salvo engano, recém-surgido Uma paz improvável. Ela se aproxima em atitude sorrindo, busca descrever em tom quase sedado
que costuma escorrer pela boca de certa direita de aconselhamento, mas não consigo carrear para uma das túnicas extravagantes e formidáveis que
singularmente imbecil para indicar esmagamento a vigília o que me diz. É mesmo possível que não ela usa em Investigação sobre um cidadão acima de qualquer
argumentativo, silenciamento do dissenso, triunfo me diga nada. Percebo, no entanto, que uma trans- suspeita. Os flancos abertos, fendas pelos lados, cores
forçoso sobre a diferença. missão de qualquer espécie ocorreu. Algo de sua vertidas até os pés descalços. Ela sorri. Quadrada.
É inteiramente possível que toda e qualquer de- presença passa para mim em sonho, algo que talvez Maçãs do rosto impossivelmente altas. Tem mais
signação seja, em última análise, tão sofismável não dependa de linguagem articulada. Algo que cabelo que eu e meu marido juntos. Ela traja uma
quanto esta de “mito”. As coisas se equivalem, é talvez seja apenas a caminhada impaciente e alegre, cascata, reta queda d’água, cortina de miçangas, os
certo... Contudo, parece-me que em nenhum outro a desenvoltura selvagem, ainda que no sonho ela flancos abertos, azeitonados.
conceito encontraremos tamanha suscetibilidade às permaneça sobrenaturalmente imóvel. Com o so-
peristalses da história. Para cada momento e região brenatural, sabemos todos, não se transige. Que ela Café da manhã
do pensamento, o mito assume uma significação a me seja um bom espectro, que ela me exiba sempre sua
um só tempo vaga e particularíssima. É uma resposta feição mais acalentadora, é uma questão de sorte. “Qual seria a maneira mais lógica de chegar até
inteiramente precisa a uma fratura universal. Mas é Tem sempre aspecto tão sentencioso, quando vem Florinda Bolkan?”, pergunta Gustavo durante o café.
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INÉDITOS
Ismar Tirelli Neto
O emprego da palavra lógica, a seriedade – talvez Le orme, de Luigi Bazzoni, um dos meus filmes
imerecida – com que Gustavo me interpela, tudo favoritos. É um bocado difícil encontrar material
isto me impressiona fundamente. escrito sobre este filme em particular, que para
“Mandei um e-mail para sua assessora de impren- mim excede muitos outros filmes célebres em
sa aqui no Brasil. Aguardo resposta. Se estivesse densidade e que há anos me acompanha.
no lugar dela, no entanto, não sei se responderia. Não sei se a sra. Bolkan gosta deste tipo de en-
Relendo o e-mail, ele me parece servil e confuso. trevista, se estaria disposta a compartilhar comi-
Nada se exprime com clareza ali, salvo uma von- go algumas memórias a respeito desse filme em
tade. Não é o suficiente. É genuíno, mas não é o particular, mas pensei que não custava tentar.
suficiente. Nenhum escambo. Nenhuma troca.” Pesquisando um pouco na internet, descobri que
“Portanto, o texto”, digo aos amigos reunidos em a senhora está há muitos anos profissionalmente
torno da mesa, “deverá ser estruturado de modo a associada à F.B., e portanto achei por bem tentar
não depender de um contributo direto de Florinda, contactá-la, correndo o risco de soar entrão.
nem de Florinda nem de sua assessora, de modo A senhora saberia por acaso me informar se ela
que eu possa, sem aviso e sem culpa, disparar por tem um endereço de e-mail para o qual eu possa
considerações de natureza inteiramente diversa enviar algumas perguntas, relativas à ambiência
a qualquer momento”. no set de Le orme, às instruções do diretor, às ex-
A ideia de entreter uma comunicação amistosa pectativas gerais em torno da repercussão da fita?
com Florinda Bolkan, embora despropositada, não Desculpe novamente o incômodo, e segue o
deveria me meter medo. Em termos objetivos, ela fortíssimo abraço do
– a ideia – não é nem mais nem menos desproposi-
tada do que qualquer outra (as coisas se equivalem, Metti... Una sera a cena
é certo...). Tem seu lugar ao sol, o desarrazoado que
cobre tudo, domo em cujo interior todas as coisas Conhecemos hoje a esposa do W. Ela é italiana,
tornam-se cabíveis. Nada é inverossímil. Se me professora universitária, especialista em romantis-
mostro hesitante, isso se deve ao fato de que não mo alemão. Vive no Brasil há pouco menos de uma
existe humana empresa que não me ponha, em década. “Nunca pensei que as coisas chegariam a
alguma medida, profundamente desconcertado. esse ponto em tão pouco tempo”, diz ela. Nenhum
Hoje mesmo pensei sobre o medo. Anotei em de nós, na realidade. Nenhum de nós ao redor da
alguma ficha pautada, já devidamente perdida mesa. Faço os amigos ouvirem o único single gra-
entre os papéis da casa, não bole um olho nesta floresta. vado por Florinda: sua interpretação do tema de
É claro, eu poderia ter optado por “bosque”, mas Metti... Una sera a cena, de Ennio Morricone. Nos anos
isso não teria sido de todo honesto. Não se deve ser 1990, Bolkan lançou um livro de culinária que,
tão harmônico assim. Não se deve ser tão sonoro. no Brasil, saiu com o nome de À mesa com Florinda.
Questão de modéstia. Sabe-se que um de seus maiores prazeres na vida
é cozinhar para sua legião de amigos.
E-Mail Enviado Para a Assessora de Imprensa Romy di Não consigo temperar meu entusiasmo dian-
Vitti (Não Respondido) te da esposa de W., sinto que meu rosto está se
esbraseando. Tão logo aperto sua mão, digo-lhe
Desculpe a intrujice, espero que esta pequena que estou escrevendo uma espécie de artigo sobre
comunicação a encontre bem. Florinda Bolkan. “Por quê?”. Como ela é afável
Chamo-me Ismar Tirelli Neto, sou um escritor e parece genuinamente interessada, respondo a
carioca (radicado em Curitiba) e estou trabalhando verdade: eu não sei, ela me aparece em sonho
no momento num artigo sobre Florinda Bolkan com frequência. Eis o que ela me diz, então. Sua
para o Suplemento Pernambuco, periódico para mãe, residente em Pádua, dona de uma pequena
o qual colaboro ocasionalmente. casa de azeite artesanal, sempre que se refere a
Trata-se, mais especificamente, de uma me- uma mulher bonita costuma dizer: “É bonita como
ditação sobre o papel desempenhado por ela em Florinda Bolkan”.
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HANA LUZIA
Ramificações
lembrança de Barthes falando sobre Garbo
No decurso de toda e qualquer pesquisa existe Florinda Bolkan no Quando Roland Barthes, em seu Mitologias, desan-
da a falar sobre Garbo, a impressão que tenho é de
filme Os deuses
um faiscante, injetado momento em que tudo pa- que não compreendo absolutamente o que ele quer
rece referir-se, de algum modo, ao tema estudado. dizer, mas esta incompreensão é bela, é como des-
A sogra de W., vimos há pouco, fabrica azeite lizar por uma superfície congelada sem sofrer o frio
malditos?
em Pádua. Também Florinda lançou há alguns que possibilitou a transformação da água em gelo.
anos seu próprio azeite. Ele aventa, entre outras coisas, que Garbo pertence
Chama-se Emozioni. a um momento do cinema em que o rosto humano
Há um vinho, também, como não poderia deixar
de haver. Chama-se Rosso Vivo... by Florinda Bolkan
(como não poderia deixar de chamar-se).
– Não sou muito fã é capaz ainda de provocar comoções místicas no
espectador; que a mescla de terror e reverência
inspirada por seu semblante, menos pintado que
Em São Paulo por motivos de trabalho, aprovei-
tamos – eu e Gustavo – o domingo para ir ao cine-
ma. Descobrimos uma retrospectiva do Visconti,
dela, não. engessado, sugere que estamos ainda num momento
platônico da imagem cinematográfica, momento
no qual estamos em contato com a ideia de algo,
cineasta a quem se debita o “descobrimento” de Ele responde que muita gente famosa costuma ir não exatamente com um exemplar. Daquele rosto,
Florinda. Na fila do ingresso para Morte em Veneza, lá. Silencia, bloco em mãos. Sem saber como dar portanto, muitos outros haveriam de emanar, tanto
pego-me – para grande aflição de Gustavo – ence- continuidade à conversa, peço uma milanesa e no âmbito do cinema quanto no da vida real. Ao
tando conversa com a senhora idosa à nossa frente. uma Coca-Cola. falar do arquétipo da divina, síntese entre a vamp e a
“A senhora já viu Os deuses malditos?” virgem sofredora, o teórico Edgar Morin destacará
“Só na época.” Diana, em grego Ártemis também seu caráter oscilante de inacessibilidade
“A senhora tem alguma lembrança de Florinda e presença. Ela está no meio de nós, estando ainda
Bolkan no filme?” Filha de Maria Hosana e José, tanto Hesíodo por chegar. Ouvimos nos seus olhos negros e fixos
“Não sou muito fã dela, não.” quanto Homero dão sua nascença como Urubure- como que uma cavalaria distante.
Ocorre-me uma chamada da entrevista que tama (Terra dos Urubus). Com frequência se lhe
Chico Buarque conduziu com Florinda em Roma apõem os epítetos “agreste”, “selvagem”, “viril”, Que fazer com um mito?
para O Pasquim, em algum momento de 1969: O que “atlética”. Conta-se que investiu o primeiro cachê
o Brasil tem contra esta mulher? recebido em uma égua puro-sangue que deu crias Para que qualquer coisa atinja a esfera do mito,
A entrevista d’O Pasquim constituiu um eixo fun- por 500 gerações. Desde então, é identificada aos ela deverá fazer-se narrar por outrem. Isto me parece
damental da pesquisa. Outra entrevista de caráter equinos e a todas as atividades que envolvem claro. Que o mito seja manifestação reativa ao
axial é mais recente, estampada na revista Trip. montaria. Além disso, são atribuídos a ela ainda mistério em torno da origem das coisas, que ele
Foi conduzida no Bar Lagoa, no Rio de Janeiro, os dons da caça, do despiste, da extrema reserva aterre, de algum modo, a flutuação do fenôme-
que também visitamos recentemente por motivos e do preparo de poções mágicas. Desde que temos no, pacificando-o portanto, é dado inteiramente
de trabalho. notícia, sua figura é associada ao sol e às tempe- válido, mas que a própria constituição de nossa
Em visita, pois, ao Rio de Janeiro, vamos – eu, raturas elevadas. Todas as flores têm o seu nome sociedade atual interdita, circunscrevendo-o ao
Gustavo e um casal de amigos – ao Bar Lagoa, onde enquanto ela as pisa. pitoresco. Aquilo que não se explica por si só, que
todas as mulheres de uma certa idade presentes São conhecidos templos em Teresópolis, Quixabá, demanda continuidades narrativas, um exercício de
parecem-me Florinda Bolkan. As fronteiras entre Bracciano (arredores de Roma), Los Angeles e Nova contação que trespassa o espaço e o tempo – eis
vigília e espaço onírico, está claro, tornaram-se York. Representam-na de ordinário caminhando a matéria do mito.
já uma mera convenção. Transpiro. Pergunto ao ao lado de um altivo cavalo, usando longuíssimas Existe uma ferida no mundo perfeitamente explicada
garçom que nos atende se ele saberia me infor- saias escuras ou sobretudos fechados. Em alguns pela existência de Florinda Bolkan.
mar com que frequência – se alguma – Florinda povoados, é também figurada nua da cintura para Tenho certeza disso.
Bolkan costuma frequentar este estabelecimento. cima, tendo duas margaridas coladas aos pequenos Mas não sei que ferida é esta.
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RESENHAS
HANA LUZIA SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO
pegar um peixe
Adília Lopes volta às não se sinta pressionado, identificação do que se Nesse aspecto, Um
prateleiras brasileiras por exemplo, a ter lido foi versado, ela alerta jogo bastante perigoso é
com edição de Um jogo tudo o que foi citado. para a forma com que a como aquele possível
com as mãos
bastante perigoso, seu O primeiro poema poesia pode organizar, catálogo da exposição
primeiro livro. Os seus do livro é Memória para referir e apontar para o de estreia de um artista
poemas de estreia, Esther Greenwood, alusão à que se entende como desconhecido. Existe
entre eles o conhecido protagonista de A redoma contexto literário. Outro qualquer coisa da ordem
O Luna Parque, estarão de vidro, de Sylvia Plath. poema que se pode da procura pela imagem
Livro de estreia da poetisa entre nós por meio Lopes escreve: “quanto pensar a partir da chave que unifique o processo
da Editora Moinhos. mais tempo permaneço intertextual é Algumas criativo e, em seguida,
portuguesa Adília Lopes Lançado no continente na água quente/ mais proposições a propósito de estabeleça a narrativa
RESENHAS
HÉLIA SCHEPPA/ ARQUIVO PERNAMBUCO
casa em ruínas
que não entraremos em um Chove nas primeiras tanto na diegese quanto no ideia de como vamos sair
sertão de solo rachado, que páginas. Entramos discurso dos personagens. do ponto onde estamos,
não cabe aqui o engano de aos solavancos, sem É a primeira experiência acordados no nosso
reduzir a imagem do Nor- entender quase nada. de Ronaldo Correia próprio pesadelo. Há um
deste à pobreza e à seca, É debaixo de chuva de Brito com um livro momento do livro em que
As mulheres, as ausências e como se fossem as únicas que o leitor é jogado 80% contado por uma Francisca diz que seu pai
narrativas possíveis desse imediatamente e sem mulher. Mesmo com uma deu os primeiros sinais de
os brasis do novo romance de lugar. Para um autor expe- piedade em um pau- profusão de personagens morte quando percebeu
DESCORTESIA E CORTESIA
Pesquisadores brasileiros e estrangeiros