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Nº 147 - Maio 2018 - R$ 6,00 - www.suplementopernambuco.com.

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MUTAÇÕES
BIA LESSA E
DOOSCOSMOPOLITISMO
SERTÕES | AIMÉ| CÉSAIRE
POEMAS DE
| O AGLAJA
RETORNOVETERANYI
DE RONALDO
| CARLOS
CORREIA
FELIPE
DE MOISÉS
BRITO
2
PERNAMBUCO, MAIO 2018

C A RTA DOS E DI TOR E S E X PE DI E N T E


GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

H
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
á quase dois anos, publicamos Em sintonia, Luana Antunes escreve sobre
uma capa sobre os 80 anos do Aimé Césaire, poeta e intelectual cujos trabalhos Vice-governador
Raul Henry
crítico literário, escritor e ensaísta já chegaram ao Brasil, mas que ainda não circulam
Silviano Santiago. Ele explicava: como merecem. Luana nos mostra como Césaire diz Secretário da Casa Civil
Nilton Mota
“O mundo acontece pela diferença muito sobre o entrelugar em que estamos. O mesmo
e é uma diferença altamente é visto na entrevista de Bia Lessa sobre sua montagem COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
politizada”. Divisa pertinente neste 2018 complexo de Grande sertão: veredas. Ela não quis trazer uma Presidente
que marca os 40 anos de Uma literatura nos trópicos, imagem única do sertão na peça, mas, sim, “evocar Ricardo Leitão
livro que reúne textos de Silviano sobre a cultura em cada pessoa essa imagem. Sertão é o mundo todo”. Diretor de Produção e Edição
dos anos 1970, assunto da capa desta edição. Está Ora, não é isso também o entrelugar? E o que se vê na Ricardo Melo
esgotado no mercado. Foi com essa obra que surgiu ficção escrita por Lesley Arimah também não é uma Diretor Administrativo e Financeiro
a visada crítica que trouxe importantes ferramentas vida que acontece pela diferença e no entrelugar? Nela Bráulio Meneses
de pesquisa, como a noção de entrelugar. Fred Coelho há o passado colonial, o presente e a violência contra
e Eneida Cunha tratam das ideias ali publicadas e mulher diante da sugestiva imagem da fechadura.
de como elas falam sobre nosso presente opressor. E ainda: o escritor brasileiro da atualidade a partir
As fotos de Fabio Seixo trazem páginas do livro na dos personagens-escritores de Rubem Fonseca; Ismar
Uma publicação da Cepe Editora
baía de Guanabara: uma representação das ideias em Tirelli Neto e sua obsessão (ficcional ou não?) pela Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
mistura com o que é visto e vivido, entre a sujeira atriz Florinda Bolkan; Carlos Eduardo Pereira e os Pernambuco – CEP: 50100-140
da água e a beleza da paisagem num Rio de Janeiro bastidores do seu Enquanto os dentes; o livro de estreia Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
cuja força estética não se sustenta mais por si. O da poetisa portuguesa Adília Lopes chega ao Brasil;
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
“des” escapa da foto assim como ideias escapam das e o novo romance de Ronaldo Correia de Brito. Luiz Arrais
páginas e imagens podem escapar da moldura, em
EDITOR
um movimento que lembra Lygia Clark. Boa leitura a todas e todos! Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes

COL A BOR A M N E STA E DIÇ ÃO DIAGRAMAÇÃO E ARTE


Hana Luzia, Janio Santos, Manuela dos Santos,
Maria Júlia Moreira e Luisa Vasconcelos
Eneida Leal Cunha, Fred Coelho, professor Luana Antunes TRATAMENTO DE IMAGEM
professora e e pesquisador (PUC- Costa, professora Agelson Soares
pesquisadora (PUC- Rio) de literatura, e pesquisadora REVISÃO
Rio) de questões história e artes visuais (Unilab) de Maria Helena Pôrto
identitárias nas brasileiras literaturas em
COLUNISTAS
literaturas de língua língua portuguesa e Everardo Norões, José Castello e Wellington de Melo
portuguesa estudos feministas
PRODUÇÃO GRÁFICA
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino
Carlos Eduardo Pereira, escritor, autor de Enquanto os dentes; Fabio Seixo, fotógrafo, autor do ensaio de capa desta edição; e Sóstenes Fernandes
Giovanna Dealtry, professora e pesquisadora da UERJ; Ismar Tirelli Neto, poeta, tradutor e roteirista, autor de Ramerrão; MARKETING E VENDAS
Lesley Nneka Arimah, escritora britânica de origem nigeriana, autora de O que acontece quando um homem cai do céu Daniela Brayner, Rafael Chagas e Rosana Galvão
(tradução no prelo); Leonardo Nascimento, jornalista e mestrando em Antropologia (UFRJ); Priscilla Campos, jornalista e E-mail: marketing@cepe.com.br
mestra em Teoria Literária (UFPE); Socorro Acioli, escritora, autora de Cabeça de santo Telefone: (81) 3183.2756
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

BASTIDORES

Formas de criar
HANA LUZIA

silêncios diante
dos ruídos
De quando as questões
políticas são parte
importante do romance, mas
a maneira de contar a trama
é essencial para mergulhar
nas complexidades do texto
Certa vez, enquanto eu passava em frente ao termi-
Carlos Eduardo Pereira nal das barcas, na Praça XV, pensei: e se o cadeirante
Antônio tivesse que cruzar a Baía para chegar ao seu
Uma construção narrativa, todo mundo sabe, se faz destino? Fazia sentido, já que eu tinha me proposto a
a partir de escolhas. Para escrever o Enquanto os dentes, fazê-lo circular pela cidade usando diferentes tipos
tive que fazer as minhas. Há inúmeras possibilidades de transporte público, trabalhando uma realidade
de leitura para cada uma dessas escolhas, incontá- que é minha também, de todo dia, propondo uma
veis, ou possibilidades de interpretação (e é esse investigação de como nos relacionamos com os
o grande barato da literatura), apresento algumas. centros urbanos de hoje, uma investigação que está
O primeiro elemento sobre o qual me debrucei sendo revista o tempo todo. Ainda tinha que o mar
foi o narrador. Precisava encontrar uma voz que tem seus movimentos, suas instabilidades, e isso se
conduzisse tudo. A questão era definir se seria o encaixava muito bem no que eu procurava. O livro
Antônio contando a sua própria história ou se faria acontece no período de algumas horas de um dia no
mais sentido utilizar um narrador em terceira pes- Rio de Janeiro, quando Antônio precisa (mas não quer
soa. Acabei optando por alguém que vai junto, que de jeito nenhum) ir para um lugar determinado. É
acompanha o protagonista por todo lugar (e, assim, possível imaginar que ele tenha tentado se manter
talvez trazendo com ele o leitor), alguém que sem- em movimento enquanto pôde, por isso talvez seja
pre esteve colado nesse protagonista, que sabe tudo possível também que esse trajeto se dê de maneira
que ele pensa e sente. Um narrador que observa e, truncada, avançando e recuando, avançando e re-
apenas, relata. Ele até traz para nós algumas de suas cuando. Procurei traduzir essa vacilação na forma:
opiniões, claro (afinal, temos acesso somente ao o Enquanto os dentes é um livro contínuo, sem divisões
que ele escolhe para jogar uma luz em cima), mas em capítulos ou partes, numa tentativa de exprimir
não me interessava que ele fosse uma espécie de formalmente esse desejo de se manter em movimen-
apresentador de programa-dramalhão-da-tevê. to, e essas vacilações, esse “vou, mas não quero”, de
(O livro toca em assuntos relevantes, e que, Antônio. Se num parágrafo ele está seguindo em fren-
felizmente, estão sendo discutidos em diversas te (tomando contato com as coisas e com as pessoas
arenas contemporâneas: o lugar, ou lugares que os com quem ele esbarra no caminho), no próximo pode
negros ocupam em nossa sociedade; a questão, ou ser que ele seja transportado para o passado (movido
questões relativas aos deficientes físicos; a pauta, por gatilhos que encontra nessas mesmas coisas e
ou pautas relacionadas à intolerância. Mas seriam nessas mesmas pessoas com quem ele esbarra), sem
todos esses assuntos pertinentes para o registro aviso, num fluxo próprio do pensamento mesmo. E os
romance? A intenção era escapar do panfletário, obstáculos físicos da cidade também espelham seus
fugir das soluções prontas (que nem existem e, obstáculos emocionais, quando um rebaixamento
se existissem, eu não saberia reconhecer, tenho no meio-fio está de um lado da calçada, facilitando
certeza). Entendo que determinadas bandeiras, a circulação, mas não está do outro, forçando um
que pessoalmente são bandeiras minhas, precisam desvio improvisado.
vir por cima de tudo, na comissão de frente, mas Uma outra escolha, quem sabe relevante, é a da
por baixo delas deve haver uma série de outras construção meio apagada dos personagens. Jogar
camadas, camadas que apontam para o que há muita luz, por exemplo, nas características físicas
de comum a todos, que apontam para as questões de um personagem ou de outro, às vezes faz ce-
universais. Um pouco por isso escolhi não nomear gar. Podia ser, em alguns casos, que esmiuçando
nenhuma rua que aparece no Enquanto os dentes, ne- muito eu acabasse direcionando demais a leitura.
nhum bairro, nenhuma praça (ninguém percebe, Eu sempre procuro optar por uma condução mais
mas o livro descreve lugares sem nomeá-los), por- discreta, deixando umas sombras (que, sim, são
que talvez algo que ocorra no Rio também ocorra partes integrantes da composição e das motivações
em Manaus, a Baía de Guanabara talvez caiba em de um personagem) para o leitor. O próprio Antônio,
outras baías. Um outro motivo, esse relacionado às novamente para exemplificar, só fala em discurso
questões internas do protagonista, é que Antônio direto uma única vez, a última palavra do livro. E
se torna cadeirante em determinado momento foi muito nessa linha que cheguei àquele final, um
de sua vida, mas ele sempre teve uma relação de final de interjeição, de dúvida, de um silêncio que
movimento e contato com a cidade, e quer seguir talvez contraste com esses nossos tempos ruidosos.
com essa relação, só que agora a cidade é outra, seus
pontos de referência mudaram. É diferente andar
pelas calçadas, é diferente frequentar os lugares. O LIVRO
Então, se o Antônio é outro e a cidade é outra, os Enquanto os dentes
lugares não podem ter o mesmo nome, já são outros Editora Todavia
lugares. Acredito que a ficção, por uma potência Páginas 96
estética que ela tem, pelo uso de símbolos – que são Preço R$ 39,90
símbolos, sim, mas nem por isso são menos reais –,
a ficção possui um caráter altamente transformador
da realidade. É minha aposta.).
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

FICÇÃO

A difícil porta
para o que
vem a seguir
Conto O futuro parece bom,
do livro de estreia de Lesley
Arimah, inédito no Brasil
Autora: Lesley Nneka Arimah
Tradução: Carolina Kuhn Facchin

Ezinma se atrapalha com a chave na fechadura sua fortuna. Quando a comida se torna escassa, ele
e não vê quem chega atrás dela: o seu pai ainda saqueia fazendas no meio da noite, que é como ele
menino, quando ainda era doce, disputando o vai conhecer sua mulher, e é o motivo de Ezinma,
afeto da mãe. A avó de Ezinma – explorada até atrapalhando-se com a chave na fechadura, não
os ossos pelas mulheres cujas casas ela espanava, ver quem chega atrás dela: sua mãe aos 22 anos,
cujas roupas ela lavava, cujos filhos ela esfregava nunca bela, mas com a aparência saudável de
até ficarem limpos; explorada pelos ossos de um alguém que nunca passou fome.
marido que queria muitos filhos e dos homens Sua mãe é uma garota audaciosa que pega mais
que ela acolhia para realizar este desejo – cuida do que lhe é oferecido. O ano é 1966, meses antes
do filho até os 13 anos como se fosse uma en- de tudo mudar, e ela está em uma festa de amigos
fermeira, e morre na sua cama com um suspiro dos seus pais, e lá há um homem com pele amarela
longo e cansado. como uma manga e mandíbula quadrada e corpo
A madrasta sente por ele o mesmo que sentiria como o da estátua de Davi, e rico; as mulheres
por um cachorro de rua que aparecesse o bastante solteiras vestem suas armaduras (sorrisos encan-
para que ela conhecesse a sua cara, mas que ela tadores, decotes robustos, personalidades convi-
nunca deixaria entrar em casa. Eles dançam ao dativas) e vão à batalha. Quando ela sai vitoriosa,
redor um do outro, o menino valsando para a frente pensa que isso já era dela por direito.
com desejo e a mulher fugindo em uma pirueta. A guerra chega quando eles já namoravam há
Ela cresceu numa casa em que era a irmã mais quase um ano. O povo dela é leal à Biafra, e o
velha de muitos e sabe como uma criança pode povo dele pensa que Ojukwu2 é um tolo. Só a
afogar os sonhos de uma mulher. O menino só vê família dela comparece à festa de noivado. No
as costas viradas, a rejeição, e o pai ignora tudo, dia seguinte, ela passa pela casa dele e descobre
cego pelo prazer de ser um homem velho com que ele deixou o país.
uma esposa jovem, ainda fresca entre as pernas. A família dela logo é obrigada a fugir da cidade,
Essa ele não dividiria com ninguém. E quando o logo é obrigada a trocar tudo que eles puderam car-
menino de 15 anos volta do mercado e encontra as regar, logo é obrigada a mendigar, e pela primeira
suas coisas em duas sacolas plásticas nos degraus vez na vida, a comida se torna tão escassa, que ela
de entrada, nem bate à porta para saber o que tinha entra em fazendas à noite para roubar espigas de
acontecido ou para perguntar para onde deveria milho ainda não completamente maduras. Quando
ir. Em vez disso, fica com outros garotos sem mãe fervidas, elas ficam tão macias que ela as devora
SOBRE A OBRA em uma construção abandonada onde suas duas inteiras, não só os grãos. Numa noite ela encontra
melhores camisas são roubadas e ele aprende a uma pequena fazenda escondida atrás de uma
O conto ao lado abre o sempre manter o dinheiro consigo. Pede dinhei- montanha e lá encontra um homem roubando os
premiado O que acontece ro, vende entulhos, rouba – e essa terceira opção inhames que teriam sido dela. Não há como com-
quando um homem cai vem tão naturalmente para ele, que se torna a sua petir; ele está bem-alimentado e forte, e mesmo
do céu, de Lesley Arimah saída. Ele começa com coisas pequenas, furtando que ela tentasse gritar só por despeito, ele conse-
– escritora britânica de pessoas desavisadas e surrupiando produtos de guiria silenciá-la. Mas ele sinaliza para ela ficar
origem nigeriana. No livro, bancas malvigiadas no mercado. Ele aprende a quieta e lhe dá um inhame. E ela, sendo quem é,
a autora discute diversas forçar fechaduras, fazer ligação direta em carros, gesticula pedindo mais dois. Ele lhe entrega mais
questões contemporâneas aprimorar sua mão leve. um e ela foge apressada. Na noite seguinte, ao
por meio da ficção. A obra A guerra chega quando ele tem 21 anos, e, retornar à fazenda, ele a está esperando. Ela senta
será lançada pela editora enquanto as pessoas protestam na rua gritando ao lado dele e eles escutam os grilos e a respiração
Kapulana em julho. “Biafra! Biafra!”1, ele começa a estocar produtos. um do outro. Quando ele coloca o braço ao seu
Quando os produtos se tornam escassos, ele faz redor, ela se apoia nele e chora pela primeira vez
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

HANA LUZIA

desde a noite do seu noivado, há muitos meses. se falam. O pai, que nunca pôde suportar a tensão
Quando ele coloca um inhame no seu colo, ela
ri. E quando ele pega as suas mãos, ela pensa: eu
valho três inhames.
“Quando ele coloca entre as duas, pois trazia de volta memórias de sua
infância turbulenta, aperta o ombro de Bibi e vai
embora, e é aquela pressão gentil que traz as lágri-
Ela terá duas filhas. À primeira, dará o nome de
Biafra, por despeito, como que para dizer: “Olha,
Mãe, deposite suas esperanças em alguma outra
um inhame no mas. Logo ela está soluçando e o rosto da mãe ainda
é uma pedra, mas é um rosto molhado que ela vira
para que ninguém possa ver. Ezinma leva Bibi até o
coisa frágil”. E a segunda recebe o nome da sua
mãe, que a essa altura já tinha morrido sem saber seu colo, ela ri. E banheiro, aquele que elas dividiram e disputaram
desde que aprenderam a falar. Ela a faz sentar na

quando ele pega


que a filha a perdoara por ter escolhido o lado per- tampa do vaso sanitário e começa a limpar ao redor
dedor e chamara sua filha mais nova de Ezinma, dos ferimentos. Quando ela acaba, eles ainda estão
que se atrapalha com a chave na fechadura e não horríveis. Quando Bibi se levanta para examinar

as suas mãos, ela


vê quem chega atrás dela: a sua irmã, que todos o rosto, elas duas aparecem no espelho. Eu ainda
chamam de Bibi, porque era absurdo uma criança estou horrível, diz Bibi. Sim, é verdade, responde
ter o nome de um país que nem existe. Ezinma, e logo as duas estão rindo, e no reflexo
Bibi, linda de um jeito que a mãe nunca fora. Bibi,
teimosa como a mãe sempre fora. Elas brigavam
desde que Bibi estava na barriga, pesando tanto
pensa: eu valho do espelho elas percebem, pela primeira vez, que
têm exatamente o mesmo sorriso. Como tinham
demorado tanto para perceber isso? Nenhuma delas
no colo do útero da mãe que uma corridinha leve
podia tê-la empurrado para fora. De cama, a mãe
de Bibi tinha passado a ressenti-la, e queimava
três inhames” sabe. Bibi está preocupada com suas coisas, que
ainda estão no apartamento. Ezinma fala para ela
não se preocupar, ela vai buscá-las. Por que você
tanto de raiva, que a criança deveria ter fervido empurrada desde a juventude, e conta para Bibi ainda é legal comigo? Bibi pergunta. Hábito, diz
dentro dela. E, três anos depois, Ezinma, bonita, todas as novidades da família, mesmo que a mãe Ezinma. Bibi pensa sobre isso por um tempo e diz
sim, mas daquele jeito controlável que não ofende tenha exigido que Ezinma corte contato com a irmã. algo que nunca tinha dito para a irmã. Obrigada.
ninguém. Ela é um fantasma de Bibi, mais pálida E Godwin é melhor provedor do que o pai de Bibi, E então Ezinma se atrapalha com a chave na
no tom da pele e na personalidade, mas doce de que agora é um comerciante modesto. Ele aluga um fechadura e não vê quem chega atrás dela: Go-
um jeito que a irmã só é quando quer alguma coisa. apartamento para ela. Ele empresta um carro para dwin, que cresceu sob a indulgência corrosiva do
Bibi a detesta. Não, a Ezinma não pode brincar com ela. Ele a cega com uma constelação de presentes, pai. Godwin, tão desacostumado a ouvir um “não”
os brinquedos da Bibi; não, a Ezinma não pode coisas que ela nunca antes tivera, como dinheiro que a palavra o atinge como uma onda de ácido,
andar até a escola com a Bibi e suas amigas; não, para gastar e orgasmos. Na única vez em que ela fala dissolvendo a decência superficial de uma pessoa
a Ezinma não pode pegar um absorvente, ela que de casamento, ele vai embora e ela não consegue que sempre consegue o que quer. Godwin, que
junte um monte de papel e lide com isso. Ezinma contatá-lo por 12 dias. Doze dias que esvaziam a quebrou seu violoncelo quando descobriu que o
cresce ansiando pelo afeto da irmã. sua conta bancária; 12 dias em que ela fica sentada irmão mais novo conseguia tocar melhor, e é assim
Quando Bibi tem 21 anos e seus pais estão tendo no apartamento que está no nome dele, e dirige o que ele acabou ali, observando Ezinma – que se
dificuldades para pagar as taxas da universidade, carro também no nome dele, e se pergunta o que parece tanto com a irmã de costas – se atrapalhar
ela conhece Godwin, de pele amarela e mandí- há de tão precioso neste nome que ele não quer lhe com a chave estranha na fechadura do apartamento
bula quadrada como seu pai, e se apaixona. Ela se dar. E quando ele finalmente retorna e a encontra de Bibi e não ver quem chega atrás dela: Godwin
apaixona ainda mais quando a mãe lhe diz para fazendo as malas e agarra os cabelos dela, puxando, com uma arma, e o tiro que ele dá em suas costas.
manter-se afastada. E quando a mãe continua, gritando que até isso era dele, ela é atingida... pelos
dizendo, Você não sabe como é esse povo, eu sei, e seus punhos, sim, mas também pela percepção de 1. Biafra, região no sudeste da Nigéria, foi um Estado
Bibi responde, Você só está brava porque eu tenho que talvez a sua mãe estivesse certa. independente entre 1967 e 1970. Voltou a fazer parte
um homem melhor que o seu, a mãe lhe dá um A reunião não é carinhosa. O olho direito da Bibi da Nigéria após esse período.
tapa e este é o fim daquela conversa. Ezinma serve está tão inchado, que quase nem se abre, a boca 2. Chukwuemeka Odumegwu Ojukwu (1933-2011) foi
como intermediária, um papel para o qual ela foi da mãe está pressionada e elas não se olham nem o líder separatista de Biafra.
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ENSAIO

Eis o mesmo Escrever nos dias de hoje sobre Rubem Fonseca


é enfrentar totens e tabus. Parece não haver for-
mas de mediação; ou se ama ou se odeia o escritor

gesto repetido
que revolucionou a literatura brasileira nos anos
1960/1970 e continua influenciando, mesmo que
estes não saibam, as novas gerações que mergulham
na violência urbana, no gênero policial, na fauna de
personagens marginais e exóticos e na representação

200 mil vezes


metaficcional da figura do escritor. É preciso depor o
pai-escritor. Evento que se torna mais difícil quando
um dos temas caros a Rubem Fonseca é a discussão
sobre as diversas personas do escritor no tempo pre-
sente e como estas se articulam ao fetiche literário
Questões sobre escritores a a ao fetiche mercadológico.
Nesse quadro, Rubem Fonseca tem o mérito de ser

partir de Rubem Fonseca e o primeiro autor contemporâneo a sistematicamente


ficcionalizar as relações entre o livro-mercadoria, o

seus personagens-escritores
literário e a máscara autoral, muitas vezes criando
dobradiças entre a figura do escritor e do detetive/
assassino. Assim, este ensaio investiga alguns dos
diversos personagens escritores de Rubem Fonseca,
Giovanna Dealtry e como o próprio autor termina por se tornar um
personagem de si mesmo, tanto na ficção como no
imaginário que contamina à vida literária.
Em A reinvenção do fetiche literário, Italo Moriconi sinte-
tiza: “O fetiche é o literário e sua morte e ressurreição
cíclicas são a definição mesma de história literária”.
Penso nessa frase e na curta vida – apenas alguns
parágrafos – do personagem secundário João, do
conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. João será
o mentor de Augusto Epifânio, o escritor andarilho e
sem livros publicados, personagem instransponível
para se entender o lugar da literatura na obra de
Rubem Fonseca.
A Augusto Epifânio, João ensina que havia um ônus
a pagar pelo ideal artístico, pobreza, embriaguez,
loucura, escárnio dos tolos, agressão dos invejo-
sos, incompreensão dos amigos, solidão, fracasso.
E provou que tinha razão morrendo de uma doença
causada pelo cansaço e pela tristeza, antes de acabar
seu romance de 600 páginas. Que a viúva jogou no
lixo, junto com outros papéis velhos.
A morte de João não é mais que a morte definitiva
do gênio romântico, o mito do escritor fracassado.
Morrer de cansaço e tristeza apontam para um mundo
que não existe mais, em que escritores como João e do aparato de editores, feiras, entrevistas, críticos etc.
Augusto Epifânio são sujeitos à margem, crendo na Landers assassina Winner. No caso, mata o irmão,
literatura em seu estado de incorruptibilidade. O numa virada tragicômica própria de Rubem Fonseca.
escritor cuja voz é apropriada pelo narrador e tem Máscara da máscara que não pertence mais a si mes-
sua morte, bem como o fim de seu livro, narrada mo, mas ao mercado. Como sentencia Vera Follain
de forma desdramatizada, nada deixa como legado, de Figueiredo: “O texto é o assassino: o assassino do
não se inscreve na história da literatura. Serve à arte autor, porque abarcou toda sua realidade”.
entendida aqui como um trabalho obstinado, diário, Devorado pela grife Landers e pelo duplo fetiche
silencioso, fora do tempo, ou seja, fora das relações literário-mercadológico, Winner só pode existir
do capital. João e Epifânio, cegos pelo desejo de como simulacro. Pelo assassinato, transformou a si
não conspurcar a literatura, não enxergam o quanto mesmo em máscara autoral e objeto mercadológico.
a idolatria por uma literatura purificada é o outro O crime perfeito é a impossibilidade que sua iden-
lado da moeda da mercadoria como fetiche, como tidade seja revelada.
definida por Marx. Como em Romance negro, a crítica literária tende
Retorno a Moriconi: hoje a desaparecer desse novo arranjo. Enquanto,
“Tudo isso mudou. As sucessivas levas de novos escritores como Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna
escritores surgidas nos últimos anos, com algumas incluem em seus textos a figura do editor como
exceções, não têm estado nem um pouco interessa- um antagonista, nos novos modelos de escritor as
das em desconstruir o signo literário ou questionar relações com os diversos atores do campo literá-
convenções de qualquer tipo, até porque esse ques- rio – editores, curadores, antologistas, seguidores
tionamento já se tornara ele próprio convencional anônimos de seus perfis, jornalistas, organizadores
e repetitivo. Elas têm se mostrado interessadas em de feiras e festivais, agentes literários, júris de bolsas
recuperar e praticar o valor positivo do fetiche lite- de residência, prêmios, traduções – são contatos e
rário enquanto algo pragmático”. etapas tão ou mais significativas para a repercussão
Acrescento uma volta ao parafuso, em companhia de sua obra – ou seria do próprio autor? – do que a
agora do personagem John Landers/Petter Winner, escuta da crítica especializada. Separados da crítica,
do conto Romance negro. De forma programática, al- mercado, autor e fãs poderiam enfim viver em ado-
guns escritores das novas gerações levam a sério o ração uns aos outros? E não é sintomático que seja
jogo das intertextualidades (que são cifras restritas a um autor como Rubem Fonseca, consagrado, porém
certos grupos de leitores), oscilando entre referên- recluso e sem perfis nas redes, que venha recebendo
cias à cultura pop e outras que evidenciam o caráter críticas tão virulentas pelos jornais?
cultivado do ficcionista – ou seja, tudo que se une O trecho inicial de Buffo & Spallanzani, publicado em
pelo signo de uma pretensa pauta de referências 1985, evoca a discussão sobre literatura e trabalho e
fragmentárias, casuais, mas que, ao mesmo tempo, coloca dois modelos de escrita contrapostos. Gus-
evidenciam o caráter “cultivado” do autor em proce- tavo Flavio, personagem emblemático de Fonseca,
dimentos estéticos típicos da pós-modernidade. Esse escritor de dezenas de livros, relata um pesadelo
jogo mais reforça a persona do escritor do que abala recorrente a sua parceira, Minolta. No sonho, Tolstói
propriamente o estatuto do literário. E, no entanto, está diante do escritor e diz, em russo, “para escrever
esse ficcionista deverá cumprir as mesmas redes de Guerra e paz fiz este gesto200 mil vezes”. O gesto é
obrigação de quem faz best-sellers. estender a mão e molhar a pena no tinteiro, instru-
Na dobradiça Landers/Winner, como já foi sa- mento de trabalho escritor, e tornar a escrever. Em
cralizado pela crítica literária, o escritor anônimo tom ameaçador, o Tolstói do pesadelo de Gustavo
se debate entre furar o cerco do mercado editorial, Flavio continua:
bem mais flexível em nossos dias, e torna-se presa “Anda, agora é tua vez.
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

HANA LUZIA

Perpassa, por mim, uma sensação aterradora,


a certeza de que não conseguirei estender a mão
centenas de milhares de vezes para molhar aquela
Ao contrário dos Se aos olhos do menino José tudo é encanto, a
cidade como uma extensão lúdica de descoberta
de si e do outro, em A arte de andar nas ruas do Rio de
pena no tinteiro e encher as páginas vazias... Então
me vem a convicção de que morrerei antes de realizar
esse esforço sobre-humano”.
novos autores, Janeiro, o mesmo centro do Rio já é ruína, crise so-
cial, miséria instalada ao rés do chão. Acompanhar
Epifânio é presenciar a descoberta do outro que a rua
A grandeza literária só pode ser alcançada pelo
trabalho árduo, pelo “esforço sobre-humano” que se Fonseca e Sérgio esconde/desvela a quem tem olhos de ver. Assim,
o projeto literário não mercadológico de Augusto

Sant’Anna tratam
contrapõe à produção em série de Gustavo Flavio. Ao fica adiado eternamente. Ou é o próprio conto que
revelar num pesadelo o modo de trabalho prosaico lemos, Augusto usando a máscara de Rubem dessa
de um escritor que mudou os rumos da literatura, vez? A literatura – retirada do esquema do mercado

o editor como um
Rubem Fonseca desfetichiza o literário. Escrever – torna-se vida, experiência, ainda que o final do
é trabalhar. Duzentas mil vezes é o montante da conto não aponte para nenhuma reconciliação, pelo
força de trabalho aplicada à obra. Ao mesmo tempo, contrário, entre Augusto e a cidade.
Gustavo Flavio, máscara de Ivan Canabrava, revela a
incapacidade da repetição do gesto de trabalho em
tempos em que a mercadoria-livro já sai da fábrica/
antagonista em Há ainda aqui, para concluir, outra máscara pro-
jetada sobre Rubem Fonseca nesses últimos tempos.
O recolhimento dele, sempre avesso a fotografias,
editora cada vez mais velha, antiquada. Por isso
é preciso sempre jogar no cenário novos nomes,
oferecer uma constância na produção, permanecer
suas ficções entrevistas e aparições públicas, parecia em alguns
momentos um gesto literário capaz de somar-se a
outros de seus personagens-escritores. Ou então,
produzindo, fazer circular nome e obra. José é a história da formação como leitor do futuro mera excentricidade. Na última década, no entanto,
“Para escrever Morte e esporte – agonia como essência Rubem Fonseca. Entre os livros e, futuramente, a novos dados da biografia do autor tem vindo à tona,
– eu enchi o meu computador de milhares de in- cidade do Rio de Janeiro, José divide seu tempo. Ler e com destaque para a vinculação entre Rubem Fon-
formações –, tudo o que eu ia lendo nos livros dos flanar. Deslocar-se pela grande cidade que, finalmen- seca e a ditadura civil-militar. Desde os anos 1990,
outros, que por sua vez haviam lido no livro dos te, está à altura dos histórias de aventura de autores já se sabia que o escritor havia trabalhado como
outros et cetera ad nauseam. O computador arquivou franceses que lia na infância em Juiz de Fora, a mesma roteirista para o Instituto de Pesquisas e Estudos
essa massa brutal de dados nas inúmeras ordens cidade onde nasceu Zé Rubem. Nessas memórias Sociais (1962-1964), considerado a celúla ideológica
que me interessavam e na hora de escrever bastou- ficcionalizadas, é a a cidade que encontra o seu leitor. do golpe de 1964. No entanto, a historiadora Aline
-me apenas apertar uma ou duas teclas para, num Como separar então José de Augusto Epifânio? O Andrade Pereira ressalta que José Rubem Fonseca
segundo, a informação que eu queria aparecer no andarilho, como José; o futuro escritor, como José. era o diretor responsável pelo Grupo de Publicações/
vídeo no momento certo. Morte e esporte não passa de O apaixonado pelo Rio, como José. Personagens se Editorial. Isto é, todos os assuntos referentes à opinião
uma imensa colcha de milhares de pequenos retalhos articulam para formar uma imagem de escritor que pública e jornais estava a cargo do escritor.
velhos que, juntos, parecem uma coisa original.” continuamente adiciona ou retira novos pedaços, Esse episódio biográfico entra em choque, por
O que Gustavo Flavio vê como negatividade é nunca chegando a um retrato final, mas sempre certo, com a imagem do escritor crítico à sociedade
contestado pela forma do próprio romance que te- oferecendo novas leituras, para quem o Rio de Janeiro da época e ele mesmo futura vítima da censura
mos em mãos, repleto de acúmulos de referências foi determinante na construção de sua obra. a seu livro Feliz Ano Novo (1975). Mais interessante
e metalinguangens inseridas no enredo. “A maior de todas as criações humanas é a cidade. do que optar por uma biografia em acordo com
Se Gustavo Flavio é máscara de Ivan Canabrava, É no centro do das cidades que seu passado pode ser os nossos afetos, o fato em questão me parece
se Winner é duplo e máscara de Seller, se Augusto sentido e seu futuro, concebido. Ainda que leitura inserir esse novo Rubem Fonseca na galeria de
é máscara de Epifânio e duplo de João, José (2011), e imaginação disputassem o mesmo espaço e cer- personagens-escritores de sua obra e também
romance memorialístico escrito em terceira pessoa, tamente o mesmo tempo em sua mente, Naquela aprender a lidar com esse retrato do autor entre o
poderia ser espelho do conto A arte de andar nas ruas do cidade, no Rio de Janeiro, José descobriu a carne, fetiche do literário e a mercadoria fetichizada. Ou
Rio de Janeiro? Uma das várias máscaras de José Rubem os ossos, a índole das pessoas; e os prédios tinham ainda, escutando a ordem do fantasma de Tolstói:
Fonseca dispersas ao longo de sua obra e vida? forma, peso e história.” “Anda, agora é tua vez”.
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

ENTREVISTA
Bia Lessa

O palco como
lugar onde cavalos
podem ser ferozes
Diretora lembra sua história com o teatro e fala sobre a
montagem de Grande sertão: veredas, que vem recebendo
elogios da crítica e começa a rodar o país em breve
FOTO: DIVULGAÇÃO

era mesmo. Tive uma mãe extraordinária,


mas sofri muito por me sentir diferente, fora
do mundo. Quando eu tinha 10 anos – e isso
foi uma coisa marcante pra mim – estava
passando aquele filme, Romeu e Julieta, do
(Franco) Zeffirelli. Um sucesso avassalador
na época, todas as pessoas foram. Eu tinha 9
anos e não conseguia ir, a sessão era pra 10
anos. Finalmente, um dia consegui entrar
e vi o filme. E voltei pra casa aos prantos,
porque não gostei. O mundo inteiro gostava.
Minhas amigas todas gostavam. Comecei a
chorar como uma louca e falei: Mãe, o que
é que eu faço? Por que é que eu não gosto?
Daí, minha mãe foi muito linda; ela me
pegou bem bruscamente e falou: “Bia, isso
da sua diferença é o que interessa. Ser igual
não soma nada”. Então, ela deu pra mim
um negócio de não ter medo da diferen-
ça, de não ter medo da contramão. Minha
mãe era muito estudiosa, mas eu larguei a
escola no ginásio. Penso que isso me deu
uma certa ignorância de uma cultura mais
geral. Eu sinto que sou um pouco ignorante.
Um pouco não, bastante. Ao mesmo tempo,
acho que isso me deu uma liberdade, me
deu uma burrice que em algum canto me
ajuda. Às vezes, fico pensando que se eu
tivesse toda consciência do que seria fazer
é a evocação da “beleza selvagem” desse um Grande Sertão, talvez não tivesse feito. Se
Entrevista a Leonardo Nascimento importante romance. A seguir, um pouco tivesse mesmo toda uma consciência do
da conversa que tive com Bia. que seria fazer O homem sem qualidades, do
Após recriar (em 2006) o sertão de João (Robert) Musil, talvez eu não tivesse feito.
Guimarães Rosa na exposição que inau- Recentemente, o jornal O Globo convidou Então, acho que o resultado dessa igno-
gurou o Museu da Língua Portuguesa, em algumas pessoas para entrevistarem rância junto com o prazer pela liberdade
São Paulo, Bia Lessa retornou ao “monstro o Zé Celso. Como você foi uma delas, me guiou de alguma forma. E, obviamente,
de Rosa” em uma aclamada montagem te- começo devolvendo a pergunta todas as dificuldades da vida, né? Os baques
atral, sucesso de público e crítica. Depois que fez para o Zé: que momentos profundos, os momentos em que você vai
de apresentar a saga do jagunço Riobaldo fizeram de você o que você é? perdendo a ingenuidade, entendendo o que
(interpretado por Caio Blat) em temporadas Difícil, né? Porque é tanta coisa! Acho que é o mundo, enxergando. Eu peguei o rabo
no Rio de Janeiro e em São Paulo, a diretora tem algo da minha infância, de ter tido uma daquela geração que achava que ia mudar
agora se prepara para rodar o país com o infância muito livre. Morei numa cidade do o mundo, que o mundo ia ser muito melhor
espetáculo. Como defende Silviano Santiago interior em que eu era muito solta. E isso por causa da gente. E tem também as pesso-
em Genealogia da ferocidade. Ensaio sobre Grande misturado com o fato de eu ter nascido uma as que você vai encontrando na vida. Minha
Sertão: veredas, de Guimarães Rosa (primeiro menina muito feinha, muito magrinha, mãe, o Sérgio Sant’Anna, o Antunes (Filho),
título do selo literário do Suplemento Per- muito fraquinha... então, fui sempre um a Violeta Arraes, o Haroldo de Campos...
nambuco, em processo de reedição), a obra pouco bicho do mato. Meu pai falava assim: tantas pessoas que você vai encontrando
rosiana não aceita domesticações. Longe “Bia, você é muito encardida”. Acho que e isso de alguma forma vai te moldando. A
disso, o que vemos no trabalho de Bia Lessa esse termo encardida era um pouco o que eu Anna Mariani, que é uma fotógrafa extra-
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

Quando fui O livro é como um


montar Grande rio caudaloso. E, na
Sertão, senti a peça, eu não quis
impossibilidade criar uma imagem
de fazer, não fazia do sertão. Quis
teatro há anos. Mas evocar essa imagem
decidi enfrentar em cada pessoa
ordinária, uma pessoa funda- se você quiser, você faz. Teatro correndo, sozinho. Depois de Quando eu fui fazer o Grande Quando assisti ao espetáculo,
mental na minha vida. Então, pode acontecer aqui, agora. Eu uns 5 minutos passou um cara sertão no teatro, tinha a a sensação que tive foi a de um
eu acho que a gente vira o que fiz uma substituição que foi com um cobertor na cabeça sensação da impossibilidade encontro muito intenso com o
a gente é desde a educação até importantíssima pra mim, no gritando: “Onde é que tá meu do fazer. Eu não fazia teatro sertão do Rosa. Nesse momento
às imensas dificuldades que a Asdrúbal Trouxe o Trombone, cavalo?”. E aquilo nunca mais há muito tempo. Por outro tão terrível do país, onde você
vida vai apresentando, a queda um grupo de teatro muito saiu da minha cabeça. Eu ia lado, acho que o mais gostoso tem buscado experiências
dos sonhos e a construção de importante na época. Depois, dormir e ficava pensando “será de qualquer coisa é poder tão viscerais como a que
outros... e, claro, os encon- saí do teatro e fui domar que ele encontrou o cavalo?”, vencer as dificuldades. Fazer eu tive na sua plateia?
tros. O crítico Yan Michalski, o cavalos nos Estados Unidos, como se fosse o fragmento de o que você já fez não tem a Ah, que bacana você me dizer
Paulo Mendes da Rocha, a Flora o que foi uma virada imensa uma história que não tinha nem menor graça. Então, decidi isso! Muito bacana mesmo!
Süssekind, e agora o Silviano na minha vida. Mas acho que começo e nem fim. Engraçado... enfrentar esse negócio. Eu A gente começou falando do
Santiago. São pessoas que vão não vale muito a pena contar tinha certeza de que o processo Zé Celso, né? Pra mim, do Zé
te dando caminhos. O primeiro a minha vida toda, né? Já ouvi você dizendo que leu seria muito rico, mesmo que o ainda sai muita faísca. Eu vi
Godard que eu assisti na vida Grande Sertão pela primeira resultado final não interessasse As bacantes no dia em que ele
foi o Sérgio Sant’Anna que Quantos anos você tinha vez para criar a exposição a ninguém. O grupo tinha a fez 80 anos. É uma coisa que
falou: “Vai assistir”. O eleito (do nessa época? Você acha que que inaugurou o Museu da consciência de que o processo você sai e pensa: Caramba, o
Thomas Mann) quem me deu isso teve alguma influência Língua Portuguesa, em 2006. era de fato o que importava. E Brasil tá salvo. Como aquilo é
foi o Haroldo. Eu acho que a no seu encontro com o Rosa? Foi isso mesmo? fui conversando com muitas absolutamente necessário. A
vida é feita de companhias. Totalmente. Eu tinha 19 anos. Foi, sim. Eles me chamaram pessoas. Encontrei a Marília primeira vez em que fui a um
E uma das coisas que mais pra fazer o Museu da Língua. Rothier, a Flora Süssekind, baile funk, há muito tempo,
Como foi seu encontro me intrigavam era como um Quando eu vi como estava o Roberto Machado, o Paulo também foi uma das coisas que
com o teatro? animal tão poderoso como estruturado, achei que Mendes da Rocha, o Silviano me fizeram pensar que o Brasil
Eu era muito menina. Tinha 14 aquele podia ser dominado. faltava trabalhar mais com Santiago. O olhar do Silviano estava salvo, porque juntava
anos e estava nesse momento Eu tinha sempre essa coisa a linguagem. Então, pensei pro Grande sertão foi uma coisa imensa alegria e muita libido.
de querer abandonar a escola. de procurar no cavalo em uma sala especial para importantíssima pra mim. O Eu saí de lá e pensei: é uma das
Tenho um tio que é um diretor onde estava a força dele. escritores, e propus que a que ele dizia o tempo inteiro coisas mais poderosas que já vi
de teatro muito importante, primeira exposição fosse do sobre o romance não ser na vida. A sensação que tenho
o Celso Nunes, e eu assisti É impressionante como Guimarães Rosa, um grande domesticável foi algo que que é o mundo oficial está todo
a uma peça dele. Quando a algumas das nossas questões inventor. A ideia foi admitida usei durante o processo de falido, acabou, e que as faíscas
minha mãe se mudou pro Rio, nos acompanham pela vida, né? e eu peguei o livro pra ler. A ensaio inteiro. Na sala de vêm pelas beiradas, pelos
encontrei com o Celso e falei São coisas que movem a gente sensação que tive foi que eu ensaio, o que eu fazia era pegar cantos, pelos pequenos atos
que queria fazer teatro. Daí ele de uma forma inexplicável. tinha acabado de ganhar um trechos soltos do Rosa e dar heroicos. Ao mesmo tempo em
me sugeriu (a escola de teatro) Sim, e pra sempre. E no amigo, sinto isso até hoje. Sofri para os atores trabalharem a que a gente tem um retrocesso
O Tablado. Eu entrei e logo no Grande sertão a cena da morte muito pra acabar. Quando situação. Muito lentamente, cavalar, triste, a gente tem
primeiro mês entendi que o dos cavalos é a que mais me vi que faltavam 10 páginas, fui selecionando as coisas também uma potência de vida
que as atrizes faziam – naquele enlouqueceu. Quando matam pensei que não conseguiria do romance que mais me que é extraordinária. As novas
momento eu ainda queria os cavalos e ele fala que terminar, porque eu estava interessavam. Mas não acho formas de pensar gênero...
ser atriz – era esperar que aquilo é a pura maldade. Eu muito apegada. E aí tem uma que fiz uma adaptação. No imagina você estar num
alguém as chamasse pra fazer acho essa fala tão apropriada! história bonitinha que eu caso do Guimarães, todo livro mundo que não é mais homem
algum trabalho. Lembro que Aqueles cavalos querendo encontrei o Antonio Candido está contido em tudo, tudo e mulher? Eu fico achando que
eu era amiga da Maria Padilha fugir, um animal que tem uma e contei do meu sofrimento. está em cada fragmento. E as possibilidades que a ciência
e falei pra ela: “Maria, não liberdade tão louca no corpo, no Ele olhou pra mim e disse que não tem cena, é como um rio vem dando é uma coisa que
vamos esperar, não. Vamos movimento. E agora você me eu poderia começar de novo. caudaloso, uma coisa que dá na pode nos possibilitar viver de
fazer”. A gente montou nosso perguntando isso, lembrei uma Era algo tão óbvio! Então, outra, na outra e na outra. Eu outro modo. Dos meios oficiais
primeiro espetáculo de teatro, cena de quando eu era menina, acabei e comecei outra vez. também não queria criar uma eu estou bem descrente.
foi uma peça infantil que na cidade em que morava. A imagem do que é o sertão, mas Eu acho que algo vem
na época fez muito sucesso. gente ficava na varanda de Gostaria de que falasse um evocar em cada pessoa essa acontecendo pelas beiradas,
Então, logo entendi essa coisa casa olhando a chuva. Um pouco sobre o processo de imagem. Sertão é dentro da sim. Só que é preciso uma
absolutamente genial do teatro: dia, um cavalo atravessou criação do espetáculo. gente. Sertão é o mundo todo. ruptura. Uma ruptura radical.
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

MARIA JÚLIA MOREIRA

Everardo
NORÕES
esnoroes@uol.com.br

A verdade
Na manhã da sexta-feira, 30 de setembro de 2016, - O mais difícil vai ser subir nas costas deles
a cidade de São Paulo amanheceu diferente. Quem para limpar aquilo tudo! Riu baixinho.
sobrevoasse o Parque Ibirapuera, área “nobre” da Por volta das 6h, as pessoas foram chegando
cidade, avistaria uma mancha colorida de mais de para a caminhada no parque.
40 metros de comprimento e pensaria que uma A dama do cachorrinho, colante amarelo e

histórica chega
bomba de cores havia sido detonada. boné de grife, passou sem se aperceber do acon-
A imprensa enviou repórteres para averiguar tecido. Falava ao celular com trejeitos de quem
o acontecido e proceder às entrevistas de praxe. trata com um príncipe das Astúrias. Nem se im-
Cedinho, um dos primeiros moradores do bairro a portou com o ipê a cuspir flores amarelas ou o

como o sabiá
sair de casa, dirigindo automóvel blindado, do ano, sabiá que dava ar de sua graça num galho do
foi parado gentilmente para dar opinião. jacarandá.
- O que acho? Porra! Uma puta falta de respeito. - Nem me fale, minha filha. Há três anos vivo
Coisa de comunista! sozinha. Dou graças a Deus! Claro, os tempos
O repórter agradeceu e desejou-lhe os bons- mudaram. Nada a ver com o tempo do FHC, o
dias. Apressado, o automóvel arrancou num ge- real equiparado ao dólar! Puxa! No tempo dele
mido de 150 cavalos. fui várias vezes a Paris! Nem pensar!

Sobre a mancha colorida O catador de lixo, que faz ponto numa das ruas
que margeiam o parque, não mereceu entrevista.
Outra vez fez de conta que não via o catador
de lixo, embora se cruzassem quase todos os

em São Paulo e o acaso


Mas ao perceber o grande borrão, achou engraçado. dias. Uns meses antes até lhe pedira para ajudar
Não sabia o significado do monumento, nem o o jardineiro do condomínio a carregar latas de
motivo do que supunha ser brincadeira de um car- metralha do apartamento. Estava reformando um
como mestre de todos nós naval extemporâneo. Apenas pensava no trabalho
que teriam seus conhecidos, os garis da prefeitura,
quarto para alojar a amiga americana da filha,
convidada para fazer palestras sobre marketing.
para apagar as pinceladas de tinta. - Bom-dia, seu José!
HANA LUZIA

OLIGARQUIA EDITORIAL
Wellington Quem mais compra livros no Brasil?
de Melo
Resposta óbvia: o Estado. é talvez o maior oligopólio
Seja por meio das aquisições do livro: seis ou sete grupos
de livros didáticos, seja editoriais dominam as listas
para compor os acervos de compras do governo
de bibliotecas públicas, as federal e, se é importante
compras governamentais defender o modelo que dá
superam – e muito – as ao professor a prerrogativa
vendas no varejo. Fora da de escolha dos livros que
faixa escolar, a tendência é de vai utilizar, não se pode

MERCADO redução do hábito de leitura


e isso se reflete nas vendas: a
ignorar o impacto da
máquina de marketing das

EDITORIAL maior fatia do varejo ainda é


de livros didáticos, educativos
grandes para manter-se no
lugar que ocupam. Aqui,
e similares. Esse segmento os professores são presas.
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
CONSELHO EDITORIAL
ret, 33 anos do desenho à montagem final, acordou
de várias cores, numa preponderância vermelha. I Os originais de livros submetidos à Companhia
Mácula mais visível desde a sua inauguração durante Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
o quarto centenário da cidade de São Paulo, em Diretoria considera projetos da própria Editora, são
1954. Homenagem aos ‘bravos’ que colonizaram o analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
interior do país a ferro e fogo, torturando, matando. partir dos seguintes critérios:
Homenageados que deram nome a outra operação
de sinistra memória, a Operação Bandeirantes. Com
os retoques do tempo, duas passagens da história 1. Contribuição relevante à cultura.
que se completam, cada uma a seu jeito: choque
elétrico substituindo chibata, pau de arara em vez 2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
de mergulho em rio de piranha, fuzilamento em vez que privilegia:
de degola ou enforcamento.
Pensando nessas coisas, o professor comentou:
- A verdade histórica às vezes chega como o a) A edição de obras inéditas, escritas ou
voo do sabiá. traduzidas em português, com relevância
O colega não entendeu o que tinha a ver passa- cultural nos vários campos do
rinho com bandeirante. conhecimento, suscetíveis de serem
- Muitas vezes o acaso é o nosso mestre. Pou- apreciadas pelo leitor e que preencham os
ca gente sabe o que foram as bandeiras ou o que
seguintes requisitos: originalidade,
representa este monumento solene no centro da
capital econômica do país. Até recebeu o apelido adequação da linguagem, coerência
de Empurra-empurra, pois os figurantes empurram e criatividade;
um barco que não sai do lugar. As cordas da escul-
tura também parecem frouxas, como se servissem b) A reedição de obras de qualquer gênero da
apenas de enfeite. Será que o artista fez assim de
criação artística ou área do conhecimento
propósito, sugerindo que bandeirante nada empur-
rava, que fazer força era coisa de preto ou de índio? científico, consideradas fundamentais para o
O professor lembrou que um bandeirante famoso, patrimônio cultural;
Fernão Dias, mandara matar o próprio filho. Numa
versão romanceada, o escritor Paulo Setúbal contou 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações
o episódio no livro O caçador de esmeraldas. Sugeriu sem as modificações necessárias à edição e que
também ao colega de cooper a leitura do historiador
contemplem a ampliação do universo de leitores,
cearense, sobre o qual ninguém mais fala, um certo
Capistrano de Abreu. Quem se orgulha de passado visando à democratização do conhecimento.
Seu José respondeu alegre ao bom-dia do homem colonial, famílias “tradicionais” ou baronatos troca-
de bermudas. Era o professor, um dos raros cami- dos a custa de baraço e cutelo, disse, devia conhecer II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer
nhantes a se aperceber da existência do catador o que foi registrado por Capistrano. Por exemplo, sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
de lixo. Vinha ao parque sempre acompanhado a matança do 3 de dezembro de 1637, quando 140
proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
de um amigo e o dia trouxera para eles um bom paulistas aliciaram 150 tupis e assaltaram um po-
motivo de conversa. voado. Tocaram fogo na igreja e a população nela sobre a publicação.
- Claro, velho. Tudo isso vale enquanto metá- refugiada foi obrigada a sair, a modo de rebanho de
fora! Até vou criar um neologismo: desestatuar. ovelhas correndo para o pasto: “com espada, mache- III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
Em vários lugares do mundo estão derrubando te e alfanges lhes derribavam cabeças, truncavam papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte
estátuas. Entre nós, acontece o oposto. Qualquer braços, desjarretavam pernas, atravessavam corpos. Times New Roman, tamanho 12, com espaço de
desembargador tem busto, torturador tem nome Provavam o aço de seus alfanges em rachar meninos
uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando
de rua. Basta fazer parte do establishment. Aqui é o em duas partes, abrir-lhes a cabeça e despedaçar-
lugar onde até estátua consegue voto! lhes os membros”. for o caso, índices e bibliografias apresentados
O sabiá solfejou um dó menor. Deu um rasante na Capistrano pergunta: conforme as normas técnicas em vigor.
pequena nuvem de chuva saída do tubo de irrigação. - “Compensará tais horrores e consideração de
Pousou na grama, bebericou, balançou as asinhas. que por favor dos bandeirantes pertencem agora IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
O professor sentiu-se comovido diante da cena ao Brasil as terras devastadas?”
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
e assobiou a música do Tom. Naquela seca manhã de sexta-feira, com 22,2 mm
- Puxa vida! Sabiá! No meio da cidade! de chuva, 29% da média normal, o sabiá voltou a violência e as diversas formas de preconceito.
O passarinho hesitou no voo, expressando estra- se molhar na mangueirinha de irrigação. O catador
nheza no seu campo visual. O encarnado contami- continuou a mergulhar as mãos nos depósitos de V Os originais devem ser encaminhados à
nava sua paisagem aérea de um costumeiro verde lixo. O professor calou-se. E voltou da caminhada Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
que te quero verde. É que, naquele dia, o Monumento pensando sobre que monumento vai ser erguido no seguir, sob registro de correio ou protocolo,
às Bandeiras, obra do famoso escultor Victor Breche- próximo centenário da cidade de São Paulo.
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.

VAREJO MERCADO E EXCLUSÃO


Companhia Editora de Pernambuco
Predadores, presas e prêmios A sobrevivência longe da selva Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
As maiores editoras se Já as pequenas editoras governamentais, seja por CEP 50100-140
concentram entre São Paulo espalhadas pelo Brasil meio de editais ou pela venda Recife - Pernambuco
e Rio, e possuem catálogos profundo, longe da grande de produtos agregados, feitos
que atraem o consumidor mídia e com dificuldade de sob medida para prefeituras
do varejo para além dos inserir seus títulos na cadeia e estados. Diante disso,
didáticos. Algumas pequenas de distribuição convencional, políticas públicas que apoiem
editoras deste eixo apostam na apostam em formas o fortalecimento da base de
qualidade do catálogo e almejam alternativas de circulação, leitores – futuros compradores
premiações que alavanquem feiras de independentes, do varejo – e a inserção de
seus autores – e vem edições artesanais ou modelos pequenas editoras locais em
acontecendo. A proximidade paralelos de subexistência editais públicos, o sonho das
com grandes veículos de como as edições sob demanda. compras regionalizadas, parece
comunicação e com a crítica Há também as que se ser bastante salutar para reduzir
especializada ajuda na missão. especializam em compras essa “desigualdade editorial”.
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

CAPA

Perdemos o bonde, não


percamos a esperança
Há 40 anos, Uma literatura I
1972: Silviano Santiago deixa por um ano sua ca-
quais estudou e ouviu pessoalmente em encontros
profissionais, principalmente Michel Foucault e

nos trópicos criava uma


deira de Literatura Francesa na State University of Jacques Derrida).
New York at Bufallo para dar aulas como professor Se não era muito comum críticos universitários se
visitante na PUC-Rio. Após mais de uma década dedicarem a obras dessa geração em 1972, no caso
nova cartografia crítica percorrendo diferentes universidades na França,
no Canadá e nos Estados Unidos, o crítico, poeta,
de Silviano podemos entender sua visada sobre o
tempo presente a partir de uma dupla estratégia:
professor e ensaísta chegava a uma cidade que atualização e mapeamento. Em momentos de trans-
Fred Coelho acumulava o deserto do exílio, o silêncio das prisões formação das práticas estéticas e políticas, atua-
e a efervescência da transgressão cultural. lizar as chaves interpretativas e mapear o campo
O Rio de Janeiro que Silviano observa naquele tornam-se tarefas fundamentais do intelectual
momento fora insuflado nos anos anteriores por (tarefas que certamente urge nos dias atuais).3
experiências como os Domingos da Criação, ini- Provavelmente, sua perspectiva internacionalizada
ciativa de Frederico Moraes no MAM, as colunas e os anos de distância do cotidiano cultural da ci-
de Torquato Neto e sua desconcertante Geleia Geral dade e do país tenham contribuído decisivamente
publicadas no jornal Última Hora, a sequência im- para esse ímpeto etnográfico no início da década
pressionante de filmes produzidos pela Belair de de 1970.4 O crítico, movendo-se entre o rigor e o
Júlio Bressane e Rogerio Sganzerla, a chegada dos babado, define o espaço, delineia corpos, aponta
Novos Baianos na cobertura comunitária da Rua linhas de força. Seu método consegue detectar – a
Conde de Irajá em Botafogo, o show de Gal Costa partir do tom efêmero de jornais alternativos, da
(gravados no disco Fa-Tal) no Teatro Tereza Rachel, constituição fragmentada e pessoal das entrevistas
as páginas “Underground” de Luiz Carlos Maciel (base de boa parte dos ensaios aqui citados), dos
n’O Pasquim, além de jornais experimentais como poemas velozes que passam de mão em mão e dos
Flor do Mal, Jornal de Amenidades ou Presença. Tais ma- sons das ruas – o que chama de uma nova sensibilidade.
nifestações se espraiavam na parte mais abastada Nesse sentido, a abordagem cartográfica funciona
da cidade e agregavam uma juventude que, nos como se o pesquisador tateasse com rigor e curiosi-
fluxos de uma indústria cultural pop voltada para dade o espaço que adentra. Ela também se espraia
o consumo dessa geração, ocupava praias e ruas. pelos cursos inovadores que Silviano oferece no Brasil
Não mais com passeatas políticas, mas ainda com durante esse período. Em 1972, ao mesmo tempo
o seu corpo. Outros corpos, outras políticas. em que o professor dava aulas na PUC-Rio sobre
É esse o cenário que emoldura quatro dos 11 manifestos das vanguardas (tema latente no ensaio
ensaios publicados em Uma literatura nos trópicos, Bom conselho), o crítico observava nas ruas, praias e
nos quais me deterei nas próximas páginas.1 Me shows a formação de uma ideia de arte cujo vínculo
refiro a Os abutres, Caetano Veloso enquanto superastro e com as vanguardas modernas brasileiras – seja o
Bom conselho, publicados em periódicos de 1973 e O modernismo antropofágico e brasileiro de 1922, seja
assassinato de Mallarmé, publicado em 19752. Escritos o modernismo geométrico e internacionalista dos
em tons, abordagens e recortes similares, os quatro concretos de 1955 – eram disseminados ou contes-
ensaios têm como ponto nodal o interesse (nada tados nas pautas do Brasispero de então5.
comum dentre os críticos de então) pelo lugar da Nos quatro ensaios em questão, temos duas
escrita e da palavra no âmbito da cultura jovem perspectivas gerais. Uma, do observador maduro,
urbana do país. Para isso, Silviano investiga seus que olha de fora; outra do investigador informado,
principais eixos criativos do momento: a poesia e que olha de dentro. A primeira se encontra nas
a música popular. Suas novas práticas alteravam definições conceituais sobre as novas formas da
as bases do campo letrado brasileiro, a partir de juventude urbana lidar com os códigos da cultura
novos dispositivos discursivos e performáticos que do século XX. A partir das variadas formas de texto
chamam a atenção do ensaísta. literário (poesia e na música popular, principal-
Os quatro textos são gerados a partir de um prin- mente), Silviano costura um perfil desse grupo
cípio que marcará para sempre a obra do crítico que, na década de 1970, lidava simultaneamente
mineiro: o compromisso com a produção de seu com a recente tradição da ruptura vinda do nosso
tempo, mesmo que muitas vezes tal missão seja modernismo e com a cena da contracultura inter-
espinhosa. São quatro textos que nascem, portanto, nacional. Já a segunda perspectiva, de alguém que
de uma visada contemporânea que pegava bóli- conhece os assuntos desse grupo de muito perto, é
des no ar – as vezes queimando os dedos, outras constatada pela presença invasiva e instigante de
alimentando ainda mais o calor que emanava de Hélio Oiticica – cujo nome e obra são citados nos
seus corpos inflamáveis. quatro ensaios. Essa presença é fruto da aproxima-
ção pessoal e das trocas intelectuais entre o crítico
II mineiro e o artista visual carioca durante o período
No conjunto do livro que agora completa40 anos, em que convivem em Manhattan. Ao se mudar para
tais ensaios sobre o contemporâneo marcam o a Babylon em dezembro de 1970, Oiticica fica pró-
contraponto exato para entendermos a trajetória de ximo do professor de Bufallo. O contato produtivo
Silviano. Ao lado da apreensão daquilo que não só o entre os dois, já comentado em diferentes textos
pensamento, mas também o corpo alcança, temos pelo crítico, é fundamental para ambos. No caso
desde a análise arguta e radicalmente renovadora de Silviano, sabemos que o artista o apresentou a
de nossa situação pós-colonial, até textos sobre muitos dos meandros da marginália carioca em
a tradição (Machado de Assis, Eça de Queiroz e histórias, cartas e conversas sobre a cidade.
José Lins do Rego) ou novíssimos como Sérgio
Sant’Anna. Em muitos desses ensaios, Silviano III
maneja de forma pioneira conceitos vinculados Os abutres, Caetano Veloso enquanto superastro e Bom con-
ao pós-estruturalismo francês e seus autores (os selho, como dito anteriormente, foram publicados
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CAPA

em diferentes veículos durante o ano de 1973. Pelas


datas e referências que aparecem nos textos, po-
rém, fica evidente que suas ideias foram gestadas
durante o ano anterior. Ao lermos todos em se-
quência (como são organizados no livro), vemos
como os assuntos se atravessam e se iluminam. O
tema do “desbunde”, abordado pelo viés literário
em Os abutres, retorna no texto sobre o superastro.
Se no primeiro o crítico sugere um perfil cultural
específico – e nem sempre positivado – para a
geração batizada de “desbunde” (que, na escrita de
Silviano, torna-se “curtição”), é no segundo que ele
precisa o termo flutuante que tanto definia quanto
condenava quem fosse associado a ele.
Definição inédita enquanto conceito ope-
racional até então, a curtição é a palavra encontrada
naquele momento para o crítico enfeixar situações criativas e
existenciais como “sensibilidade de uma geração, sensação,
estado de espírito, conceito operacional, arma hermenêutica,
termômetro, barômetro, divisor de águas”.6 Já o desdunde,
na perspectiva do contexto observado, seria “um es-
petáculo em que se irmanam uma atitude artística da
vida e uma atitude existencial da arte, confundin-
do-se”.7 O primeiro se refere ao campo do sensível
(uma nova regra de apreensão do objeto artístico
e de suas práticas estéticas), o segundo, ao campo
do performático (um novo uso do corpo artístico).
Na leitura de Silviano, o modelo de superastro
proclamado por meio da figura de Caetano Veloso
se arraigava em outras frentes nessa geração da
curtição e do desbunde. Se alguns dos poetas cha-
mados então de “marginais” não eram astros com a
fama e o poder do compositor baiano, eles também
se instalaram para além da linha que separava o
poeta, ser da criação, do funcionário público, ser
da profissão.8 A geração do superastro é também
a geração em que poetas fazem a opção radical de
existir, até o limite possível, da matéria poética
escrita e falada. Na poética da “curtição” proposta
por Silviano em 1973, poetas e artistas em geral não
escapariam da armadilha experimental de serem
“a imagem viva de sua mensagem artística”.9
São esses corpos do happening e do palco perma-
nente que se tornam abutres do lixo cultural do ma sintetizado na imagem do intelectual dividido vros como A arte no horizonte do provável ou as Galáxias
ocidente e assassinam Mallarmé em prol de um entre a biblioteca e a rua, entre a interpretação e o de Haroldo de Campos, Equivocábulos ou Colidoeuscapo
paradigma sonoro-televisivo, deslocando a letra e acontecimento. A estratégia do silêncio teórico nas de Augusto de Campos, além de seus estudos sobre
sua força política para um espaço em que o corpo entrevistas e poemas faz do ego criador um motor Duchamp, ou o trabalho dedicado a Mallarmé, feito
– transgressor, hedonista, consumista e consumí- de falas pessoais cuja verdade não é mais ideoló- pelos dois e por Décio Pignatari). Waly Salomão,
vel – ocupa o proscênio. É a cultura jovem de então gica e, sim, comunitária. Aqui, em contracanto aos Torquato Neto e Hélio Oiticica, por exemplo, manti-
que Silviano mapeia e investiga, citando revistas e argumentos de Silviano, é possível ouvir ao fundo a veram tais laços intelectuais e conseguiram produzir
jornais ou dividindo papos ouvidos nas ruas (basta frase de Waly Salomão, também em uma entrevista, rigor experimental em meio a vidas estetizadas. Eram
ler o primeiro e vertiginoso parágrafo de Os abutres). mas já em 1979: “A História pode talvez não ser um criadores que rejeitavam a hippielândia carioca e a ideia
Para executar sua tarefa, coloca em jogo um aparato pesadelo, mas a historiografia político-cultural-li- do desbunde, pois, segundo Waly, a mesma refletia
teórico renovador na ampliação das intepretações terária certamente sempre será”.11 “o olhar reificador do sistema”.13
geralmente rasas sobre aquele momento. Ao contrá- Em 1973, portanto, Silviano já aponta algo que Em O assassinato de Mallarmé, Silviano já tem condi-
rio de constatar inerte e afásico um “vazio cultural” elaboraria de forma mais apurada anos depois: o ções de, após três anos de sua estadia carioca, am-
(termo nostálgico cunhado por Zuenir Ventura em papel fulcral da entrevista como gênero que des- pliar o escopo crítico de sua primeira aproximação.
1971), ele injeta potências e aponta impasses no fluxo loca o debate sociológico (interpretativo, analítico, É quando já consegue perceber as nuances inter-
criativo que se desenrola ao seu redor. político do ponto de vista mais ortodoxo) para o nas daquilo que a visada cartográfica do primeiro
As potências ficam evidentes não só na dedicação debate antropológico (personalista, conselheiro, momento articulou em chaves positivas, como a
em destacar trabalhos de iniciantes (Waly, Gramiro, cotidiano, relativo). Uma estratégia em que “o efetivação de uma literatura ligada ao contexto in-
Chacal, Charles ou José Vicente) à luz das princi- entrevistado evita cuidadosamente o objeto que ternacional da contracultura (mesmo com atraso),
pais linhas de força da produção cultural brasileira justifica a própria entrevista”.12 Vemos a situação e em chaves negativas, como a ausência de reflexão
até então (como o modernismo de 1922, a poesia em que o superastro não permite a sacralização – e crítica e o ego exacerbado dessa cultura jovem. Em
concreta paulista ou o corte tropicalista de 1968), politização – de sua produção. Na estética da cur- 1975, Torquato Neto já havia se suicidado, Oiticica
como na afirmação de que tais nomes instauravam tição, o objeto que se torna oficial perde o caráter vivia a fase mais profunda e solitária de sua estadia
um novo “período de sensibilidade aguda” no país. marginal – caráter esse que define sua materiali- em Manhattan, revistas como Navilouca e Pólen já
Já os impasses podem ser resumidos no que ele dade, sua circulação, seu vocabulário, sua ética e haviam sido publicadas e Caetano Veloso abalara
chamou de “silêncio teórico” dessa geração.10 Nesse sua recepção. Ser “contra a interpretação”, para sua condição consagrada de superastro com o disco
ponto, Silviano sugere que a ausência de uma refle- usarmos o termo famoso de Susan Sontag, era ser radical Araçá Azul.
xão crítica, no âmbito das novas sensibilidades do contra o desmonte crítico da performance permanente O que Silviano viu embrionariamente em 1972
período, se manifesta no pouco caso com o papel entre palco (ou poesia) e vida. Ainda seguindo o – os livros mimeografados que começavam a cir-
teórico-especulativo das ideias em prol dos efeitos rastro sugerido por Silviano, a armadilha da curtição cular – torna-se, três anos depois, divisor de águas
da arte produzido pelas obras-acontecimentos. contracultural e de suas práticas comportamen- na confirmação daquela sensibilidade criativa cujo
Isso se manifesta na ausência de perguntas mais tais (indefinição estética dos gêneros, alimentação resultado já estava posto. Ele aponta, dentre a gera-
ambiciosas sobre a realidade nacional por parte do macrobiótica ou esoterismos, por exemplo), era ção de então, o ocaso das vanguardas modernistas,
artista jovem ou então no “não falar” presente em a transformação dos mesmos em um tipo de fala com exceção da presença renovada de Oswald de
entrevistas marcantes como as de Caetano Veloso pública carente de pensamento crítico e plena de Andrade através do tropicalismo. Essa passagem,
e Gilberto Gil ao voltarem do exílio. conselhos superficiais. um “gesto generoso de ingratidão” dos mais novos
Na leitura de Silviano, tal silêncio (de perguntas com as vanguardas construtivas da década de 1950,
e respostas), configurava um desvio do enfrenta- IV valoriza os poemas curtos e os manifestos provoca-
mento teórico sobre os papéis políticos em jogo ou Dentre qualquer geração, porém, existem exceções. dores de Oswald em detrimento dos planos-pilotos
sobre possíveis interpretações de seus trabalhos Em meio a curtidores e superastros, há os autores e e de seu lastro livresco. A partir dessa constatação,
recentes. Ao mesmo tempo, não enfrentar esses artistas que reivindicaram rigores críticos a despeito o ensaísta indica que os rigores formais e aparatos
desdobramentos no âmbito da recepção pública dos atravessamentos entre arte, comportamento e teóricos estavam em baixa dentre os poetas que se
podia ser uma estratégia para escapar de leituras pensamento. São principalmente os poetas, artistas e estabeleciam em um circuito informal de publi-
rapidamente necrosadas no discurso histórico (da intelectuais que, de um jeito ou de outro, mantiveram cação, distribuição e circulação. O crítico buscava
arte, da política) em detrimento da efemeridade ligações com o paideuma concreto de São Paulo e apontar as modulações geracionais do ponto de
inapreensível no evento/palco da obra. É o dile- seus desdobramentos dos anos de 1960 e 1970 (li- vista da seleção do acervo poético disponível (1922,
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1945, 1955) e as consequências de cada escolha na


produção de versos e publicações.
Nesse contexto, O preço da passagem, segunda in-
Para “abraçar a Os abutres: a literatura do lixo na revista Vozes (janeiro),
o segundo nos Caderno de Jornalismo/Comunicação
(janeiro/fevereiro) e o terceiro no Suplemento Literário
cursão do poeta carioca Chacal no formato mimeó-
grafo, torna-se objeto de uma leitura ácida sobre a
qualidade material e poética daquele momento. O
rua e a biblioteca”, de Minas Gerais (7 de março). Já O assassinato de
Mallarmé foi publicado no suplemento literário do
Jornal do Brasil.
comentário de Silviano, porém, é muito mais vol-
tado para o esvaziamento crítico da figura pública Silviano Santiago 3. Em entrevista concedida a mim e a Sergio Cohn,
feita em fevereiro de 2009 e publicada em 20111 pela
editora Azougue na série Encontros – Silviano Santiago,
atualizou chaves
do poeta do que propriamente para a qualidade dos
poemas feitos. Nesse “assassinato de Mallarmé”, o o crítico afirma que “O mapeamento, que é o flerte das
poeta superastro da curtição está em plena produ- artes com a etnografia, ficou muito nítido nas décadas

de interpretação e
ção, fazendo do objeto livro uma quimera frente à de 1970 e 1980, e foi rico porque nós estávamos vivendo
informalidade do envelope de papel pardo. Para uma determinada situação política, social, econômica
girar a faca no peito de qualquer filiação das van- que não estava prevista nos manuais”. (p.213)
guardas concretas, os mimeógrafos de Copacabana
promovem a fusão plena de poema e poeta nas
falas públicas de eventos da Nuvem Cigana como as
mapeou o campo 4. Vale lembrar que naquele período se expandia dentre
as universidades a antropologia urbana, cujo trabalho
de Gilberto Velho em estudos como Nobres e anjos
“Artimanhas”. O livro vira corpo, a escrita vira fala.
No ano seguinte do ensaio de Silviano, Heloísa
Buarque de Hollanda publicava sua já clássica anto-
intelectual da época é outro exemplo desse ímpeto etnográfico dentre a
juventude urbana carioca dessa época.
5. Expressão cunhada por Torquato Neto.
logia (já são mais de 40 anos) 26 poetas hoje e colocava ideias. Mesmo quando há uma visada retrospec- 6. SANTIAGO, Silviano. “Caetano Veloso enquanto su-
numa mesma cena o contexto dessas poéticas da tiva (o livro é de 1978 e muitos dos temas são de perastro” in: Uma literatura nos trópicos – ensaios sobre
primeira metade dos anos 1970. Com exceção dos 1972), não é fácil ser figura no mapa alheio. Vale dependência cultural. São Paulo: Perspectiva, 1978, p.123.
poemas de Waly e Torquato, é possível constatar lembrar que o final da década de 1970 estava pleno 7. Idem, 142.
o quadro sugerido pelo crítico. Como nos outros de polaridades políticas e culturais na antessala da 8. Aqui, claro, uso a figura do poeta-funcionário pú-
ensaios citados, ele aponta o excesso de “peripécias redemocratização. Em entrevista para o já citado blico que marca profundamente a poesia modernista
inusitadas de uma vida em perigo”, que faz com livro Anos 70 – Entrevistas, o crítico faz uma leitura po- brasileira, em contraste com o poeta em tempo integral
que o ego – do músico consagrado ou do poeta da sitiva de seus quatro ensaios aqui citados, ao afirmar (e vida precária) dos anos 1970. Para um debate mais
fala – oscile entre o silêncio sobre a situação política que, aos poucos, seus temas foram incorporados amplo sobre a poesia marginal desse período, con-
opressora e a transformação da experiência pessoal no meio acadêmico. Sintetiza a empreitada no ferir COELHO, Frederico. “Quantas margens cabem
em opressão autorreferente. Vale lembrar que em desejo de demarcar duas frentes: a “fragmentação em um poema?”. In: FERRAZ, Eucanaã. (Org.). Poesia
1970 Silviano lançava Salto, primeiro livro de poemas definitiva do antigo experimentalismo dos anos Marginal – Poesia e Livro. São Paulo: Instituto Moreira
cuja matriz concreta dava o tom de suas experimen- 1950” e a ascensão da moderna música popular Sales, 2013, p. 11-41.
tações com a linguagem. A cena dos novos poetas dentre os estudos de literatura. Silviano teve uma 9. SANTIAGO, Silviano. Op. Cit. p. 150.
no Rio, portanto, estavam muito distantes do rigor sensibilidade de quem, após passar anos fora do 10. Idem, p. 156.
inventivo que o crítico dialogava. O “assassinato país, reconhece suas transformações mesmo quan- 11. Esta entrevista se encontra no livro ANOS 70 – Lite-
de Mallarmé” é o esgotamento da palavra escrita do nada parecia acontecer. Olhos atentos, ouvidos ratura, volume da coleção edita em 1979 pela FUNARTE
enquanto valor livresco e formalista em prol de uma abertos, ideias atuais e o desejo de, ao contrário dos e Europa Empresa Gráfica e Editora. Com pesquisa
palavra falada enquanto valor imediato e absoluto. dilemas dos poetas, abraçar, ao mesmo tempo, a coordenada então por Adauto Novaes, 19 pesquisadores
No palco, o poeta que fala seus versos dá o tiro no biblioteca e a rua. fizeram panoramas sobre música popular, teatro, cine-
peito do lançador de dados. ma, televisão e artes plásticas. O volume de literatura
1. O nome completo do livro, lançado pela editora pau- foi editado por Heloísa Buarque de Holanda, Armando
V lista Perspectiva em 1978, é Uma literatura nos trópicos Freitas Filho e Marcos Augusto Gonçalves.
Anos depois, quando o livro foi publicado, Silvia- – ensaios sobre dependência cultural. Foi o primeiro 12. SANTIAGO, Silviano. Op. Cit. p. 160.
no afirmou que nem todos dessa geração – sejam volume de críticas publicado por Silviano Santiago. 13. Frase retirada da mesma entrevista de 1979 citada
curtidos, sejam concretos – concordaram com suas 2. O primeiro foi publicado originalmente com o título anteriormente.
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CAPA

Escrever contra, (...) entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a trans-


gressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a
obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão,
é um fragmento de Michel Foucault que convoca
para a urgência das “tarefas negativas” contra
todo saber fundado na semelhança: “É preciso

a urgente tarefa
– ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu se libertar de todo um jogo de noções que estão
lugar de clandestinidade, ali (no entrelugar) se realiza o ligadas ao postulado de continuidade”.
ritual antropófago da literatura latino-americana. Entre a tradição oral reativada e a instigação
Silviano Santiago desconstrutora da teoria francesa, o ensaio é um
protótipo do gesto pós-colonial e se insurge contra

deste milênio
Reler Uma literatura nos trópicos nestas últimas o apagamento da violência civilizatória, ineren-
semanas me expôs à dolorosa conexão entre te à expansão da ocidentalidade, no repertório
momentos da história política e cultural separa- das ciências sociais e humanas e nas histórias
dos por exatos 40 anos. Lá, na dureza do regime literárias e culturais do Brasil. Santiago expõe o

Uma literatura nos trópicos e


militar, na insubmissão política e cotidiana de incessante retorno dessa violência recalcada nas
jovens como eu, entre palavras de ordem, prisões hierarquias entre civilização e barbárie, Europa
e todas as seduções libertárias do tempo, prepa- e Novo Mundo, que se desdobram em outras in-
as ferramentas para avaliar as rou-se a abertura de vias e confrontos que foram
potencializados nos anos seguintes. Aqui, hoje,
findáveis e assimétricas oposições, entre centro
e periferia, tradição erudita e cultura popular ou

violências que vivemos hoje quem dormiu no sleeping bag, sonhou e viveu a cabal
mudança do país, dos corpos e das vozes em torno,
massiva, estética e política. Em termos mais fiéis
à sequência da argumentação e ao prognóstico do
enfrenta, com estarrecimento, a abrupta interrup- “entrelugar”, o alvo é a polarização entre von-
Eneida Leal Cunha ção de uma ordem social pela primeira vez aberta tade de pureza e vivência da mestiçagem, entre
e acolhedora. Com sua sagacidade intempestiva ou colonização (a imposição do modelo às cópias),
por seu rico anacronismo, Uma literatura nos trópicos e descolonização (a agressividade desviante dos
pode sustentar uma interpelação ao nosso tempo, simulacros). Com a veemência própria daqueles
porque contém ferramentas hábeis para avaliar tempos de opressão política e agitação cultural,
a violência – seja do capitalismo neoliberal, da a análise de Silviano Santiago descarta a (espe-
brutal hierarquização dos corpos, da intolerância rada) síntese dialética e propõe a reversão das
com todo dissonante ou seja a violência maior da classificações, o valor do híbrido e a fertilidade de
exclusão, frequentemente mortal, do antagonista paradoxos e contradições: “A maior contribuição
tornado um inimigo. da América Latina para a cultura ocidental vem
Os ensaios publicados em Uma literatura nos tró- da destruição sistemática dos conceitos de unidade
picos  são parte dos embates entre intelectuais, e pureza” (grifos dele).
escritores e artistas que na década de 1970, na
mais dura vigência do regime militar, prepara-
ram o que o mesmo Silviano Santiago designará,
20anos mais tarde, como “a transição do século
Para Silviano, a
XX para o seu fim”, datada por ele entre 1979 e
1981. Então debatiam-se no campo artístico as
vanguardas reativadas pelo tropicalismo, a exaus-
maior contribuição
tão da programática estético-cultural marxista e a
combinação – para muitos incompreensível – dos da América Latina
para a cultura
meios de comunicação de massa com a insurreição
contracultural jovem. No círculo mais próximo
ao crítico e professor de literatura digladiavam-

ocidental é a
se a vertente sociológica, intérprete autorizada
da história política, cultural e literária do país há
décadas, e o “pensamento francês” (expressão da
época, útil pela imprecisão), que aglomerava tanto
o formalismo e os vários estruturalismos quanto
a sua desmontagem.
destruição das ideias
Os estridentes debates sobre arte e literatura
nas principais universidades brasileiras, em cena
aberta e com imediata repercussão nos suple-
de unidade e pureza
mentos culturais, funcionaram como válvula de O segundo ensaio da coletânea, Eça, autor de Ma-
escape providencial para a compressão, o cercea- dame Bovary, demonstra que a contingência da re-
mento das manifestações públicas e a imposição petição, do pastiche ou da “tradução cultural”, e
violenta do consenso, próprios da ditadura. Mas o dilema da secundariedade não estão confinados
esses debates foram também expressão da per- na derivação colonial histórica e explícita. Recorre
plexidade de todos – criadores e críticos – sobre ao Pierre Menard, autor del Quijote, de Jorge Luis Bor-
como operar politicamente a arte e a cultura no ges, para reinterpretar, como valor afirmativo,
exterior  da sintaxe marxista.  Ter-se formado no a familiaridade escabrosa do Primo Basílio com o
exterior dessa sintaxe, fora da grande tradição romance de Flaubert. Em análise exemplar para
que constituiu o pensamento social e  a atividade a crítica cultural e para a teorização do literário,
crítica da maioria de seus pares e contemporâneos Silviano Santiago recolhe, na comparação dos
brasileiros, é o lance diferencial de Silviano San- dois romances, prosaicas cenas ilustrativas da
tiago que repercute em Uma literatura nos trópicos e “reversão do Platonismo” anunciada por Nietzsche
produz um forte curto circuito – imagem assídua e retomada por Gilles Deleuze: a invisibilidade das
nas apreciações do crítico quando quer apontar a cópias fieis, quando coincidem com o seu modelo
interrupção no fluxo consensual e rotinizado das versus a visibilidade desafiadora dos simulacros
ideias ou dos discursos. quando exibem a sua diferença. A conclusão é
Na Nota Prévia, que abre o livro, um salvo-conduto análoga à avaliação do “entrelugar” latino-ame-
escrito em terceira pessoa, o autor anuncia que “o ricano, ressalta o valor da transgressão, a potência
intérprete perdeu hoje toda a segurança no julga- da repetição que se produz “fora do lugar”. Vale,
mento, segurança que era o apanágio de gerações para Santiago, tornar-se Outro pela energia trans-
anteriores”. Acrescenta: “Sabe ele que o seu trabalho formadora do ritual antropófago.
(...) é o de colocar as ideias no seu devido lugar” (grifo meu). Em um segundo bloco de Uma literatura nos trópicos
O livro se apresentava em 1978, portanto, evocando lê-se a incursão do crítico literário com atuação
o secular debate que obsediava e ainda afeta a inte- universitária nos domínios dos mídia, da indústria
lectualidade dos novos mundos, sobre a vigência e a cultural, da mercadoria artística ou “de uma arte
modelagem de ideias europeias no contexto politico de intenso consumo”, em especial nos domínios
e cultural dos trópicos. A Nota Prévia se reforça com da “juventude”, como diz. A leitura que Silviano
o posicionamento dos ensaios O entrelugar do discurso Santiago faz da cultura dos anos 1970 também é
latino americano, na abertura do volume, seguido por movida pela força reversiva ou desconstrutora
Eça, autor de Madame Bovary. de noções cruciais sobre a arte, na tradição oci-
As epígrafes do primeiro ensaio delineiam a dental. Os ensaios expõem a retração de valores
articulação que será central no seu argumento. da modernidade estética, como a alta cotação da
Uma delas é retirada do folclore brasileiro e relata a escritura, do literário, do valor artístico universal.
argúcia do frágil jabuti abocanhado pela onça: “Do Os ensaios Os abutres, Caetano Veloso enquanto superastro
crânio da onça o jabuti fez seu escudo”; a outra e Bom conselho, em sequência no livro, transitam
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pelos debates culturais dos anos 1970 para apon-


tar – às vezes com voz empenhada, outras com
delicada e solidária ironia – a “dessacralização”
da alta cultura.
Os três ensaios podem ser lidos sob o signo da
insistência de um prefixo, próprio daquela geração
do desbunde e da desconstrução que aparelha
Santiago na sua atividade crítica. Neles, além da
“dessacralização”, proliferam as operações de
“descentramento” e de “deslocamento” nas deci-
sões de valor. “Curtição” pode ser hoje um termo
vazio, mas é a partir dele e no intercâmbio entre
o crítico erudito e a então emergente cultura po-
pular que uns semearam (palavra caríssima para
Silviano Santiago) e outros disseminaram o valor
do precário, do efêmero, do transitivo; a explo-
ração do corpo como lugar de inscrição e leitura;
a contingência do espetáculo, as contaminações
entre o público e o privado, o desejo e a necessi-
dade; a desconfiança da atividade intelectual que
cataloga, codifica, paralisa, sacraliza − “salva do
acaso”, como diz.
“Curtição” e “desbunde” são palavras já fora de
circulação, mas em Uma literatura nos trópicos funcio-
naram como portas por onde Silviano Santiago fez
entrar no debate intelectual e acadêmico brasileiro
a cultura da contemporaneidade, com acuidade
crítica e sem preconceitos. Pode-se considerar
que o intelectual e professor, titulado na Sorbonne
e treinado nas universidades norte-americanas,
adentra os espaços do desbunde e da curtição
com alegria e a excitação etnográfica dos turistas

O livro introduziu
a cultura da
contemporaneidade
no debate acadêmico
ao usar palavras
hoje fora de uso:
curtição e desbunde
aprendizes, mas igualmente com voraz reverência
de um antropófago, herdeiro também da linhagem
oswaldiana. A mediação entre o modernismo dos
anos 1920 e a sua atualidade cultural do final do
século, aliás, é um bom viés (como preza dizer)
para se ler os ensaios deste e dos dois outros livros
seus publicados em sequência, o Vale quanto pesa
(1982) e Nas malhas da letra (1989).
Em um dos poucos ensaios dedicados à crítica
literária em Uma literatura nos trópicos, a leitura de
Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer),
de Sérgio Sant’Anna, Silviano Santiago flagra a face
menos alegre da década e os impasses e arbítrio
dos “anos de chumbo”, expondo os efeitos per-
versos do autoritarismo na elaboração ficcional.
Com palavras ácidas, por vezes duras, lê nas si-
tuações dramatizadas por Sant’Anna o sectarismo
moralizante e a atmosfera “repetitiva, pessimista,
obsessiva, abusiva, lancinante, violentamente
carregada de tons éticos-morais” que, diz ele,
“reencontramos de conto em conto”.
Esta contundência trespassa as páginas da lite-
ratura para alvejar o momento político e existen-
cial em que ele e o contista estão imersos, em 1973,
ano de publicação do livro de Sérgio Sant’Anna,
do ensaio e ápice do governo do general Emilio
Garrastazu Médici, quando a ação da censura
onipresente se consolida: peças de teatro, fil-
mes, exposições, músicas ou outras formas de
expressão artística são interditadas ou rasuradas;
artistas, compositores, escritores, professores,
políticos e lideres operários são investigados,
presos, torturados, exilados do país ou sumaria-
mente executados.
Lamentavelmente, estamos voltando a saber,
ou aprendendo, hoje, do que se trata.
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ESPECIAL

Um mergulho
MARIA JÚLIA MOREIRA

na alma negra
do mundo
Sobre a criação poética e
crítica ao colonialismo na
escrita de Aimé Césaire
Luana Antunes Costa

Eu diria tempestade. Eu diria rio. Eu diria tornado. Eu diria iniciarão, assim, o movimento literário da negritu-
árvore. Eu diria molhado por todas as chuvas, umedecido de como uma reação ao ambiente segregacionista
por todos os rosados. Eu rolarei como sangue frenético sobre presente em Paris dos anos 1930. A partir da pre-
a lenta corrente do olho das palavras em cavalos loucos sença e da vivência de estudantes negros na me-
em meninos viçosos em coágulos em tampas em vestígios trópole francesa, sobretudo oriundos das Antilhas
de templos em pedras preciosas, o suficientemente longe e da África, sofrendo os efeitos da colonização e da
para desencorajar os menores. Quem não me compreende violência iminente da Segunda Guerra Mundial, a
tampouco compreenderá o rugido do tigre. reivindicação do corpo sociocultural africano se fez
(Aimé Césaire, Caderno de um retorno ao país natal) presente no engajamento dos jovens mentores da
negritude. A força e a dimensão contestatória dessa
Há 10 anos, aos 17 de abril de 2008, os jornais do palavra criada por Aimé Césaire são compreendi-
mundo noticiavam o falecimento de Aimé Césai- das pelo antropólogo Kabengele Munanga, em sua
re. Foram 94 anos de uma trajetória de vida in- célebre obra Usos e sentidos da Negritude (1998), como
tensa, dedicada à ação política e à criação literária. “um novo nome, um conceito, todo um vocabulá-
Poeta, dramaturgo, político, incansável crítico do rio nasce nesse contexto, para onde se canalizam
colonialismo e do capitalismo, intelectual engaja- os debates: a negritude, quer dizer, a personalidade
do na luta pela descolonização do ser e do imagi- negra, a consciência negra.”
nário o colonialismo e o capitalismo, Aimé Césai- Após a publicação da revista Légitime Défense (1932),
re, mais do que um homem, é essa grande árvore por um grupo de estudantes antilhanos – dentre os
ancestral cujas raízes atravessam o espaço-tempo quais, Étienne Léro, Réne Menil e Jules Monnero
das geografias do mundo, rompendo fronteiras, –, Paris verá nascer a revista Étudiant Noir (1934), da
interligando as partes e os povos da África às tex- qual os amigos Aimé Césaire, Léon Damas e Léo-
turas dos territórios da diáspora. pold Sédar Senghor estavam à frente, junto com
Césaire nasceu aos 25 de julho de 1913, em Bas- outros jovens intelectuais negros. A tônica sobre a
se-Pointe, região norte da Martinica. Filho de Fer- valorização das origens e ancestralidade africanas,
nand Elphège Césaire, administrador da fazenda a enunciação de um sujeito negro, capaz de ques-
Eyma, e de Eléonore Hermine, costureira, ele foi o tionar e combater o eurocentrismo dos discursos e
segundo dos seis filhos do casal. Após uma etapa de da visão de mundo corrente na Europa moviam o
estudos no Liceu Schoelcher, em Fort-de-France, grupo. Kabengele Munanga, em sua frutífera aná-
quando conhece aquele que será seu grande amigo, lise sobre tal fenômeno, salienta que “O exame da
Léon-Gontran Damas, Césaire se muda para Paris produção discursiva dos escritores da negritude
em 1931 a fim de prosseguir seus estudos em Letras permite levantar três objetivos principais: buscar o
no Liceu Louis-le-Grand. Será, pois, nessa épo- desafio cultural do mundo negro (a identidade negra
ca da juventude que ele conhecerá Léopold Sédar africana), protestar contra a ordem colonial, lutar
Senghor. Junto com Damas, os três jovens amigos pela emancipação de seus povos oprimidos e lançar
19
PERNAMBUCO, MAIO 2018

o apelo de uma revisão das relações entre os povos


para que se chegasse a uma civilização não univer-
sal como extensão de uma regional imposta pela
Césaire foi um Parece-nos que, muito embora nos circuitos
acadêmicos e nos grupos organizadores dos mo-
vimentos sociais negros, de meados do século
força – mas uma civilização do universal, encontro
de todas as outras, concretas e particulares”.
É importante ressaltar que a negritude como um
dos que iniciaram o XX ao XXI, o nome de Césaire circule como um
símbolo de resistência ao colonialismo, como
voz combatente ao capitalismo, o conjunto de
conceito, uma ideia ou mesmo uma palavra so-
freu ao longo do tempo modificações, alterações movimento literário sua obra ainda é desconhecida no Brasil. Ainda
assim, não podemos deixar de mencionar aqui

da negritude como
de sentidos e significâncias, o que confirma sua os trabalhos desempenhados pela estudiosa Zilá
plasticidade e sua força simbólica, capazes de Bernd, professora da Universidade Federal do Rio
acompanhar as mudanças nos universos identitá- Grande do Sul, que tem colaborado com o alarga-

reação à Paris
rios de diversas comunidades negras do mundo. A mento da fortuna crítica do autor. O fato é que a
revolução do movimento da negritude se expandiu produção literária e ensaística de Aimé Césaire re-
na França a partir dos anos 1930, pela concepção cobre um período extenso, que vai dos anos 1930
de um vasto número de produção intelectual, teó-
rica e artística, em valorização da cultura negro-
-africana como elemento universal, encontrando
segregacionista a 2008, quando as Edições Seuil publica, apenas
dois meses antes de seu falecimento, a antologia
de poemas Ferrements et autres poèmes, prefaciada
maior concretude nas páginas da obra monumen-
tal Cahier d’un discours au pays natal (Caderno de um retor-
no ao país natal), de Aimé Césaire. A obra começou a
dos anos 1930 por Daniel Maximin. “A palavra essencial”, que
recobre quase 80 anos de escrita poética e enga-
jamento político, convida o leitor brasileiro – e os
ser escrita em 1935, um ano após o seu ingresso na do país. Em 2012, a Edusp lança Diário de um retor- de outras geografias – a um pacto a favor da vida e
École Normale Supériere, época em que também no ao país natal, traduzido e comentado por Lilian do futuro do mundo, como nos lembra Maximin:
fora diretor da Associação dos Estudantes Martini- Pestre de Almeida, estudiosa da obra cesairiana “(...) não para reter o tempo, não para circunscre-
canos. Césaire, então, estava na Croácia, hospeda- e da literatura antilhana de língua francesa. Con- ver o espaço, mais para transmitir a sede daquilo
do na casa de seu amigo Petar Guberina, quando tudo, essa publicação não alcançou a celebração que deve ser dito, e a esperança fértil de desejos
iniciou o processo de escrita do Caderno. Desde a que merecia nos circuitos literários e na imprensa, que se afastam da intimidação glacial, de desvios
sua primeira publicação, em 1939 na revista Volon- embora a excelência do trabalho desempenhado criminosos e das racionalidades sombrias”.
tés, a obra sofre modificações, tendo sido ampla- por Pestre de Almeida tanto no plano da tradução
mente traduzida e publicada por diversas editoras. do poema, quanto na análise crítica da obra. Aliás, CADERNO DE UM RETORNO AO PAÍS NATAL
No Brasil, a obra foi traduzida e publicada muito essa mestria, que se expressa na compreensão do “Au bout du petit matin...” (“Ao final do amanhecer...”)
tardiamente. Como primeira tradução identifiquei todo da obra cesairiana, sem deixar de dialogar é o verso disparador desse denso poema, de tom
em minhas pesquisas o trabalho realizado pela com as narrativas historiográficas da Martinica, já hermético, cifrado. Tal como um mistério a ser re-
editora Terceiro Milênio, com tradução de Anísio se nota em uma nova edição do Cahier pela editora velado, o poema se apresenta em movimento de
Garcez Homem e Fábio Brüggemann. Contudo, L’Harmattann, em 2008, cuja autoria analítica é de abismo. Os versos criam um conjunto de imagens
essa edição não teve ampla circulação em livrarias Lilian Pestre de Almeida. encaixadas, espécie de sonho acordado, momento
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

MARIA JÚLIA MOREIRA

em que o inconsciente humano se comunica com


a realidade e plasma um outro mundo. O eu poéti-
co, assim, vê além. A poesia lança-se ao horizonte,
convocando a geografia da Martinica e das ilhas an-
tilhanas, convocando a ancestralidade e a potência
cultural dos quatro cantos do mundo – África, Amé-
ricas, Europa, Ásia. Sobre essa diferença percebida
na composição das paisagens sociais antilhanas, em
Da diáspora: identidade e mediação cultural (2003), Stuart
Hall, crítico jamaicano, brinda-nos com uma sagaz
leitura da complexidade diaspórica dessas ilhas e de
seus processos de hibridez cultural:
“Nossos povos têm suas raízes – ou, mais preci-
samente, podem traçar suas rotas a partir dos – nos
quatro cantos do globo, desde a Europa, África, Ásia;
foram forçados a se juntar no quarto canto, na ‘cena
primária’ do Novo Mundo. Suas ‘rotas’ são tudo,
menos ‘puras’. A grande maioria deles é de des-
cendência (ascendência) ‘africana’ (...). Sabemos
que o termo África é, em todo caso, uma construção
moderna, que se refere a uma variedade de povos,
tribos, culturas e línguas cujo principal ponto de
origem comum situava-se no tráfico de escravos
(escravizados). No Caribe, os indianos e chineses se
juntaram mais tarde à África: o trabalho semiescravo
entra junto com a escravidão. A distinção de nossa
cultura é manifestamente o resultado do maior en-
trelaçamento e fusão, na fornalha da sociedade co-
lonial, de diferentes elementos culturais africanos,
asiáticos e europeus”.
Desse modo, a leitura do poema cesairiano rea-
loca no presente o passado histórico das Antilhas,
quando se destaca, na textura do texto, a maté-
ria pluricultural e pluriétnica dos povos criadores
dos arquipélagos; quando se reconhece a impor-
tância fulcral do corpo cultural africano na cons-
tituição do povo antilhano; mas não só, quando
a palavra poética possibilita que enxerguemos,
no corpo cultural do mundo, a altivez, as dores,
a beleza, as cicatrizes, a memória viva da África.
“O que é meu, estes poucos milhares de mori-
bundos que giram em círculo dentro de uma ca-
baça de uma ilha que também é minha, o arquipé-
lago arqueado com o desejo incansável de negar-
se, parece uma ansiedade materna de proteger a
espessura mais delicada que separa uma América
de outra; e seus flancos que expelem para a Europa
o bom licor de Golfo Stream, e uma das suas ver-
tentes de incandescência entre as quais o Equador
vangloria-se em direção à África. (...) Haiti onde
a negritude se pôs de pé pela primeira vez e dis-
se que acreditava em sua humanidade e o cômico
rabo da Flórida onde se consuma o estrangula-
mento de um negro, e a África enorme descendo
até o pé hispânico da Europa, com sua nudez onde
a Morte ceifa com grandes foiçadas.”
(Caderno de um retorno ao país natal).

Pela “palavra essencial”, a obra cesairiana nos


Apesar de haver de Beauvoir”. Em suma, de acordo com Fonkoua,
Suzanne Césaire será a “intelectual total que con-
duziria com seu marido a aventura do despertar
convida a um mergulho na alma negra do mun-
do, descortinando as mazelas provocadas pelos
regimes coloniais, a violência do racismo, a de-
excelentes traduções martinicano, a partir de seu retorno ao país natal”.
Ao longo dos anos como professores de litera-
tura, de 1939 a 1945, a influência de Césaire na
solação das mentes colonizadas e a potência de
revanche contra as estruturas de aniquilamento de Césaire no Brasil, formação de um grupo de intelectuais martinica-
nos é incontestável. Com a empreitada da criação

elas chegaram
do ser e do espírito. Como uma recusa eloquente da revista cultural Tropiques, criada por Césaire,
à raiz única e europeia, ideologia do projeto assi- cujo corpo editorial contará com o apoio de Su-
milacionista do regime colonial francês e direcio- zanne, evidentemente, e de outros professores

tardiamente e sua
nado à diversidade dos povos colonizados, o poe- – René Ménil, Aristide Maugée, Lucie Thésée –,
ta se vê humanamente plural, uma bricolagem a missão, no plano da construção de estratégias
diversa de humanidades possíveis: para a descolonização do ser e do imaginário

“Partir.
Como existem homens-hienas e homens-
circulação ainda martinicano, parece alcançar mais concretude.
O primeiro número de Tropiques será lançado em
abril de 1941 e as bases filosóficas da ação poé-
[panteras, eu serei
um homem-judeu
um homem-cafir
é muito limitada tica e política de Aimé Césaire se tornarão mais
realçadas – é o momento de transformar a pala-
vra poética em ação transformadora da realidade.
um homem-hindu-de Calcutá já se explícita nas páginas do Caderno de um retor- Embora a crítica à obra cesairiana, desde a pu-
um homem-do-Harlem-que-não-vota” no ao país natal, se tornará mais evidente em seus blicação do Caderno de um retorno ao país natal, tenha
(Caderno de um retorno ao país natal) escritos com a volta de Césaire, já casado com a insistido sobre uma grande influência da estética
intelectual Suzanne Roussi, à Martinica em 1939. surrealista francesa, em especial de André Breton,
TROPIQUES E O RETORNO AO CHÃO De fato, eles se casaram em 1937, no ano seguinte sobre sua escrita literária. Contudo, nos tempos de
MARTINICANO ao término dos estudos de Letras realizados por Tropiques, há um diálogo preponderante entre a poé-
“Minha boca será a boca dos infortúnios que não têm boca; Suzanne, em Toulouse. O intelectual camaro- tica de Aimé Césaire e seus ensaios com a obra L’his-
minha voz, a liberdade daquelas que se desesperam no nês e diretor da revista Présence Africaine, Romuald toire de la civilisation africaine, de Leo Frobenius (1873-
calabouço do desespero” Fonkoua, em sua biografia de Aimé Césaire (Per- 1938), etnólogo alemão. Frobenius via nas civili-
(Caderno de um retorno ao país natal) rin, 2010), vê o casal como “intelectuais moder- zações africanas uma capacidade à profundidade
nos”, confirmando a imagem de um “duo perfeito” das coisas do mundo. Diante da realidade da Mar-
A crítica ao colonialismo e aos efeitos sentidos e até mesmo enxergando na dupla algo que os li- tinica, marcada por agenciamentos coloniais que
nas Américas, mais localmente na Martinica, que gava à “experiência de Jean-Paul Sartre e Simone criaram espaços de falta, de vazios estruturais, que
21
PERNAMBUCO, MAIO 2018

transformara em uma forte, estratégica zona mili-


tar. A busca por Aimé Césaire e pelos intelectuais
de Tropiques por uma escrita literária martinicana,
em liberdade, descolada dos padrões literários e
dos comportamentos franceses, revitalizadora da
língua e do imaginário crioulo, leva Césaire a um
enfrentamento direto, de tom panfletário, contra
o regime de Vichy e contra as autoridades fran-
cesas presentes na ilha. Esse tom rebelde, que
estará presente em seu personagem, o “Rebelde”,
recorrente em obras futuras, ganhará corpo após a
viagem do casal Césaire ao Haiti, em 1944.
Nessa ocasião, ele é convidado a uma estadia
em Porto Príncipe para conferências e estudos. É
o momento da descoberta do maravilhoso haitia-
no, do vodu, das danças, da fonte de uma corpo-
reidade e de uma oralidade negra antilhana. É o
momento da descoberta da história e das relações
político-econômicas da primeira colônia negra a
lutar contra seus invasores e a conquistar sua in-
dependência, no início do século XIX. A viagem
ao Haiti o inspirará a escrever capítulos da peça
teatral Et les chiens se taisaient, um ensaio sobre ao
herói da revolução haitiana, Toussaint Louvertu-
re, e a peça La tragédie du roi Christophe.
Dessa consciência profundamente alicerçada na
compressão universalizante do mundo negro e in-
suflada pela esperança trazida pelo fim da Segunda
Guerra Mundial, o poeta transfigura-se no homem
da política institucionalizada, acreditando na pos-
sibilidade da criação de uma nova era. Assim, ele
alcançará espaço de poder na ilha, como prefeito de
Fort-de-France (1945-2001), membro do Partido
Comunista Francês (1945-1956), deputado na Mar-
tinica em Paris (1945-1993), relator da polêmica lei
da departamentalização das colônias ultramarinas
francesas (1946), fundador do Partido Progressista
Martinicano – PPM – (1958). Influenciando a in-
surreição dos intelectuais negros das margens, por
sua escrita e por suas ações, Aimé Césaire também
sofrerá os efeitos da crítica local e internacional.
Espírito complexo, por vezes, sujeito contraditório
em suas decisões políticas, apaixonante em sua
fidelidade ao ideal da negritude e à liberdade de
criação dos povos subjugados pela ordem colonial
e neocolonial, é inegável que seus gestos de insu-
bordinação geraram um terreno fecundo, um outro
mundo. Precursor do movimento dos intelectuais
negros da diáspora, junto com Alioune Diop, que
desembocará na criação da Revista Présence Africaine
(1947); protagonista da ácida crítica ao colonialis-
mo, no seu brilhante ensaio Discurso sobre o colonia-
lismo (1948); crítico do eurocentrismo do Partido
Comunista Francês, como leremos em sua Carta
a Maurice Thorez (1956), Aimé Césaire é essa árvore
ancestral, feita de “natureza essencial”, é o imenso
impediam o surgimento de bibliotecas, de centros
de estudos e pesquisas, de universidades, Tropiques
torna-se esse espaço movediço de conhecimen-
Césaire realoca no Fromager martinicano, a árvore sagrada que trans-
planta, de diferentes maneiras e ao longo do tempo,
os negros do mundo à terra materna, a África.
to, feito de bricolagens, de partilha de saberes, de
retorno imaginário à África, realçando o papel do
continente africano como civilizador do mundo,
presente a História PARA DIZER DIÁSPORA, PARA VIVER ESPERANÇA
Au bout du petit matin... Em 2013, eu chegava a Martinica
atinando para a enunciação da identidade martini-
cana, também herdeira dos povos africanos. das Antilhas por para um estágio de pesquisa sobre seus célebres inte-
lectuais. Naquele tempo diaspórico, eu ouvia as his-

destacar, na poesia,
É o que podemos ler no artigo, Leo Frobenius et le tórias dos movimentos negros do mundo, aprendia
problème des civilisations, de Suzanne Césaire, pu- com Olabiyi Yai, linguista e poeta beninense, sobre
blicado no primeiro volume da revista Tropiques o poder e a beleza de Les armes miraculeuses. Aprendia

a pluralidade étnica
e reeditado na obra Le grand camouflage – écrits de sobre os sulcos marinhos, as transgressões, as rein-
dissidence (1941-1945), da autora: “Bem, parece venções de nossa história. Nessa busca pela “palavra
inestimável o benefício da África para aquele que essencial”, era Césaire quem me levava à Martinica,
se coloca a angustiante questão do futuro huma-
no: ‘Para nós, a África não significa somente um
alargamento em direção a outro lugar, mas tam-
e cultural que me possibilitava o encontro, pleno de cumplicidades
e descobertas, com a antropóloga brasileira Magda-
lena Toledo, estudiosa das apropriações do poeta na
bém um aprofundamento em nós-mesmos’”.
Ao longo da existência de Tropiques – com seus 14
volumes publicados na Martinica de 1941 a 1945
originou a região arte contemporânea da ilha. E, hoje, quando eu me
reinvento no Ceará, no entrelugar das Áfricas no Brasil,
ainda é Césaire quem me leva a encontrar, em Paris
– cobrindo, portanto o conturbado momento da A dignidade. A justiça. Natal queimado. (ao acaso?), um jovem pesquisador curdo, Serdar
Segunda Guerra Mundial, a revista recebeu cen- Um dos elementos, o elemento capital do mal- Ay, tradutor da palavra poética cesairiana. Quando
suras até ser definitivamente proibida em 1943, -estar antilhano, a existência nessas ilhas de um perguntei a Serdar porque escolheu traduzir a obra
conseguindo apenas ser republicada, em 1944, bloco homogêneo, de um povo que desde três de Aimé Césaire, ele me respondeu como que tra-
após a Libertação da França. Nesse mesmo ano, séculos busca se expressar e criar (...) a Revolu- duzindo o sentimento profundo que nos movimenta
em seu artigo Panorama, publicado em Tropiques, ção martinicana será feita em nome do pão, claro, a toda humanidade do mundo:
Césaire lança um grito obstinado, anunciador do mas também em nome do ar e da poesia (o que “Eu traduzo Césaire porque eu quero que Cé-
que seria sua conduta futura como um poeta no quer dizer o mesmo)”. saire seja curdo e que o curdo seja Césaire, preto,
mundo da política institucional da ilha: negro. Pois eles se conhecem há muito tempo...
“O pior erro seria acreditar que as Antilhas des- UM POETA NA POLÍTICA Há apenas uma barreira linguística entre eles. É
nudas de partidos políticos potentes são desnudas Sofrendo os efeitos da invasão nazista na França, preciso tirá-la. Todos os espaços coloniais, pós-
de vontade potente. Nós sabemos muito bem o que durante o governo de Vichy (1940-1944), a Mar- coloniais ou oprimidos precisam se conhecer, se
queremos. A liberdade. tinica, em sua condição de colônia francesa, se sentir, se imaginar mais...”
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS

O INQUISIDOR OS FILHOS DO DESERTO MIRÓ ATÉ AGORA


Ângelo Monteiro COMBATEM NA SOLIDÃO Miró
Lourenço Cazarré
Ângelo Monteiro, um dos expoentes Reúne livros de Miró, em que é possível
da Geração 65, é lembrado como um Cazarré retorna à época da escravidão enxergar o ritmo, a voz e seu gestual
“vulcão”, tal é a efervescência e o calor que no Brasil para contá-la através de um performático: dizCrição, Quase crônico,Tu
emanam de sua obra. Os poemas deste menino, feito prisioneiro na África para tás aonde?, Onde estará Norma?, Pra
livro ganham figuras e formas através do ser vendido a homens brancos no país. não dizer que não falei de flúor, Poemas
pano de fundo do regime militar do Brasil, Mas Kandimba torna-se protegido da para sentir tesão ou não, Quebra a direita,
provando que a alcunha atribuída ao poeta poderosa Dona Joana, uma rica mestiça segue a esquerda e vai em frente, Flagrante
faz todo o sentido. que, além de cuidar dele, vai apresentá- deleito, Ilusão de ética, São Paulo é
lo ao maravilhoso mundo da leitura. fogo e Quem descobriu o azul anil?
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1817 - AMOR E REVOLUÇÃO CURSO DE ESCRITA DE QUEM É ESSA MULHER? - A


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Álvaro Filho NA OBRA MUSICAL DE CHICO
HQ baseada no livro A noiva da Revolução, BUARQUE DE HOLANDA
de Paulo Santos, com roteiro do autor e Vencedor do IV Prêmio Pernambuco de Alberto da Costa Lima
ilustrações de Pedro Zenival. Os fatos Literatura, apresenta um escritor que se
históricos são narrados pelo líder da envolve na narrativa, mesclando ficção e Um mergulho na obra de Chico Buarque,
Revolução Pernambucana, Domingos realidade. Com elementos fantásticos e tido como o grande intérprete da alma
Martins, e sua esposa, a portuguesa Maria muita autoironia, o autor brinca com os feminina e uma das maiores expressões da
Teodora da Costa. O amor dos dois, que clichês dos romances policiais noir, num MPB, que analisa a condição da mulher em
enfrentou preconceitos, acontece durante a jogo metanarrativo com a estrutura do suas músicas e identifica como o discurso ali
primeira revolução republicana do Brasil. gênero, pondo em discussão o processo de presente a aborda como ser humano e social.
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GORDOS, MAGROS E GUENZOS JOSÉ PIMENTEL: ALÉM DAS OUTRO LUGAR


José Almino de Alencar PAIXÕES Luis S. Krausz
Cleodon Coelho
Miscelânea composta de crônicas, reflexões Vencedor do Prêmio Cepe Nacional de
literárias, pequenas narrativas, relatos Perfil do ator, diretor, escritor, poeta, professor Literatura em 2016, o romance de Luís
históricos e memórias de José Almino. e jornalista José Pimentel, memória viva Sérgio Krausz inicia com uma viagem a
Como uma variação do brilho de sua obra do teatro pernambucano desde os anos Nova York, numa narrativa vertiginosa
poética, as crônicas parecem transitar 1950, quando novas concepções cênicas rumo ao desconhecido. O livro é construído
entre poesia e prosa, sem que haja risco conquistaram o respeito do Brasil. Após através de palavras inacreditavelmente
na mudança de gênero, com refinada integrar a Paixão de Cristo de Nova conscientes, torpes, profundas e friamente
sensibilidade aos tipos populares ou Jerusalém por mais de 20 anos, encenou críticas ao homem, que buscam levar seu
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Memória Viva, o livro focaliza um dos episódios de violência
vida e obra de Ademir Araújo, imposta aos militantes de oposição
o Maestro Formiga, compositor, pela ditadura brasileira, quando seis
instrumentista, arranjador, regente componentes da Vanguarda Popular
e pesquisador que, com espírito Revolucionária foram encontrados com
inovador, muito tem contribuído sinais de execução sumária, entre eles a
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23
PERNAMBUCO, MAIO 2018

José
CASTELLO www.facebook.com/JoseCastello.escritor
HANA LUZIA

A falácia da pureza
Contra as turbulências e incertezas do mundo partes diferentes para que, costuradas, recupe- posição dos “puros” parece haver, sempre, um
contemporâneo, muitos se refugiam no mito rem a aparência única. Os “puros” seriam, em desprezo, um nojo ao presente. Uma repulsa
consolador da pureza. Julgam-se puros, incor- consequência, homens dispostos a disfarçar às circunstâncias e ao limitado. Uma náusea
ruptíveis, “limpos” — a sujeira e o lixo ficam as diferenças e os contrastes, empenhados contínua diante dos acordos, das dúvidas, da
com os outros. Os “puros” proliferam, da ex- em coser uma visão de feição única — talvez inconstância. Um desdém, em resumo, por
trema direita à extrema esquerda. Na verdade: absoluta — do real. tudo o que é humano e, em conseqüência,
eles caracterizam, cada vez mais, essas duas “Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos vacilante e volúvel. Daí que os “puros” pre-
posições extremadas, intransigentes, inflexí- tensos / Corre um sangue incolor”, continua ferem, quase sempre, a perfeição ilusória da
veis. “Puros”: “sem misturas, não alterados Vinicius, sem perder a veemência e a coragem. esperança — esse pedaço de vida esboçado
pela impureza, ou por elementos estranhos”, Homens sem tempero, sem nuances e grada- no futuro. A esperança como foco: eles, que
define, serenamente, o dicionário. Há, nessa ções, que não aceitam os remendos e os palia- rejeitam o presente, endeusam o futuro. Só
posição, um sentimento de superioridade e tivos; que se julgam do lado das coisas certas, o futuro não está contaminado. Só o futuro é
de nobreza. Com seu “puro sangue”, eles se originais e definitivas. A imagem do sangue reto e incorruptível. Só o futuro é perfeito e,
afastam dos infelizes contaminados. Não sujam incolor acentua essa postura: nem vermelho, por isso, ele é o único lugar que os dignos e os
as mãos com as nuances e acordos do mundo. nem azul, nem cor alguma, esse sangue sem “cidadãos de bem” devem habitar.
Não negociam, não compactuam, não firmam cor definiria o “puro sangue”, do qual todos os ´”Ó vós que vos negais à escuridão dos bares/
pactos, nunca abrem mão de si: são os donos outros seriam, apenas, derivações degeneradas. Onde o homem que ama oculta o seu segredo”,
absolutos da verdade. “Ó vos, homens iluminados a néon/ Seres continua o poeta. Nesses dois versos, em uma
Em busca de uma luz para decifrá-los, releio extraordinariamente rarefeitos”, diz Vinicius, síntese precisa, Vinicius enumera alguns dos
a Carta aos “puros”, poema que Vinicius de Mo- apaixonado e destemperado como sempre é, inimigos da pureza. A escuridão, que guarda
raes escreveu no fim dos anos 1950. Prudente, poeta dos excessos e das aflições extremas, o invisível e onde pode surgir o indigno e o
também Vinicius grafa a palavra, “puros”, entre poeta radical não porque se julgue puro, mas, inaceitável. O amor, que é turbulência e ardor,
aspas, ou então com uma irônica inicial mai- ao contrário, porque se lança de coração aberto que exige entrega impensada, doação louca, e
úscula; pois se trata de uma pureza discrimi- nas feridas do mundo. que vem para desestabilizar as cores claras da
natória, arrogante e, sobretudo, ilusória. Uma Na química, néon significa “menos cor”. pureza. O segredo, que guarda o desconhecido e
pureza que a poesia, que a tudo arrasta e a tudo Menos contraste — neutralidade suposta e, de o impronunciável — portador, por isso, do gran-
inclui, vem colocar não só sob suspeita, mas novo, superioridade. Sangue incolor: que não de perigo. Perigo de que a pureza se manche;
relativizar e desafiar. Assim começa o poeta: se define, que não tem lado, que está acima de que a grande borra da vida se derrame, para
“Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os das escolhas e das posições, já que todos eles rasgar toda a ilusão de verdade e de bem. Do
Puros/ E em cujos olhos queima um lento fogo seriam apenas derivativos pervertidos de uma segredo pode sair qualquer coisa: uma dúvida,
frio”. A ideia da frieza, da ausência de calor, é postura original. “Ó vós, a quem os bons amam um sentimento agressivo, uma lágrima dolorosa,
muito importante, já que, rejeitando qualquer chamar de os Puros/ E vos julgais os portadores um soco que venha a derrubar, em um só ato,
contato com o humano, que é sempre infectado da verdade”. Vinicius toca, nesses versos, no posições tão sólidas.
e incerto, que é sempre caloroso, os “puros” se problema central. O que está em jogo nessa Deveríamos distribuir a Carta aos “puros” pelas
colocam acima de tudo, como se pertencessem luta pela pureza é a posse da verdade. Não uma ruas do país, como um alerta e uma advertên-
(assim pensam) a uma raça superior. verdade relativa, humana, feita de imperfei- cia. O poema de Vinicius solapa os fundamen-
“Vós de nervos de nylon e de músculos duros/ ções e de furos; mas uma verdade absoluta, tos frágeis da pureza. Desmascara as ilusões que
Capazes de não rir durante anos a fio”, prosse- imaculada, inquestionável, que não aceita o a sustentam. Arranca os “puros” de sua redoma
gue Vinicius. A imagem do nylon é significativa. contato nefasto com outras verdades, ou outras impecável, racha a redoma, e os lança no gran-
Volto ao dicionário: Nylon — denominação de posições. “Ó vós que só viveis nos vórtices da de caldeirão da existência. Viver, de fato, não é
vários materiais sintéticos de poliamida”. A morte”, continua Vinicius, ciente de que essa fácil. Sobretudo porque exige disposição para
ideia do “sintético” aponta para a noção de posição “pura” é, antes de tudo, uma negação os contrastes e as surpresas. Exige coragem
síntese, de Totalidade — zona na qual todas cruel da vida. Pois a vida é movimento, é mu- para se deixar contaminar pelas oscilações
as diferenças se apagam, recobertas por uma dança, a vida é impura. e flutuações da existência. A vida não é uma
única aparência. Já a poliamida, material de “Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito/ linha reta, e por isso é incerta, e por isso exige
fibra sintética, é muito usada nas suturas du- E erigis a esperança em bandeira aguerrida”, diálogo e troca, negociação e controvérsia, e
rante as cirurgias; isto é, no processo de unir segue, um pouco mais à frente, o poeta. Na só por isso é bela. Só por isso é vida.
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INÉDITOS
Ismar Tirelli Neto

F.B “As fotos cósmicas da Apolo-9”. Parecidos de porte,


de sorriso, de queixo, ambos vestem espalhafatosos
conjuntos de um tecido que tomo, talvez equivo-
cadamente, por seda. Púrpura com aplicações em
Eterno Retorno dourado. Raras vezes percebemos quando as coisas
à nossa volta ficam douradas. Estaríamos de acordo?
“Para o mundo inteiro, ela é um mito”. No vídeo, Ao fundo, uma sugestão de espectadores atentos,
ei-la passeando por Uruburetama, cidade ao norte sequiosos talvez de contato, de comércio com o
do Ceará onde nasceu e viveu até a adolescência. Sobre-humano.
A locução não tarda em ressaltar “as riquezas in- Neste outro retrato, ambos lançam olhares para
calculáveis” em meio às quais a estrela transita trás, por cima do ombro, em direção à câmera. Ela
cotidianamente. Existe uma constante, talvez. Certa está envolta numa estola emplumada. Ele traja
maneira de andar impaciente e alegre. De Sica, ao uma espécie de capa. Nós os chamamos? Estarão
escalá-la como protagonista de seu Una breve vacanza, surpresos? Não me parece possível pegar estas
justifica a escolha afirmando que aquele era o rosto pessoas desprevenidas. Não há “flagra” com esta
de uma mulher que poderia ter conhecido a fome. categoria de gente. Há uma certa prontidão em suas
Neste ensaio fotográfico – Vogue italiana, junho de imagens. Estranha prontidão de beleza. Corpos e
1969 – seu corpo é descrito como sendo de uma rostos que se dão, que se apresentam imparavel-
“desenvoltura selvagem”. La donna del momento. Ves- mente. Nisto, é possível que excedam os desígnios
tidos de chiffon, penteados como mirantes. E por trás de seus próprios donos. Alguém de fato decide,
disso tudo, uma ideia de miséria, espectral, potente conscientemente e por vontade própria, exceder o
como sugestão e como ausência. Uma cena da fome. humano? Sued lhe pergunta se ela sente solidão.
Para breve, será interpelada por Ibrahim Sued, que Bolkan devolve: “É claro, você acha que sou um
lhe perguntará por que jamais se casou, se prefere monstro?”. Desmancha-se numa risada emper-
uísque ou champanhota, se é do partido da ação ou rada, nervosa.
da oração etc. Neste outro retrato, bastante simpático, vei-
culado na revista Gente em março de 1981, Ripoli
Le orme parece desarvorado. Bolkan vai à frente, sorrindo
magnificamente, vestindo uma justa camiseta
Florinda Bolkan me aparece em sonho com al- branca onde lemos, desamparados, a palavra CA-
guma regularidade. Não sei precisar o motivo. Não LIFORNIA.
há, em nenhum dos dicionários de símbolos que Ripoli faleceu faz alguns anos. Noticiou-se então
consultei até o presente momento, verbete para que Bolkan estava transportando suas cinzas da
Florinda Bolkan. Itália até o Rio de Janeiro para atirá-las no mar em
São Conrado, bairro do Rio de Janeiro referido às
Ripoli vezes como a “Beverly Hills” carioca.
Lorenzo Ripoli integra o complexo mitológico
Acompanha-a em sua caminhada pela cidade Florinda Bolkan. Fazem parte deste complexo a
em festa Lorenzo Ripoli, sim, estou quase certo de companhia aérea Varig, a Ilha de Ísquia, a condessa
tratar-se de Lorenzo Ripoli, sujeito garboso ao lado do Marina Cicogna, o ator Helmut Berger, o cineasta
qual Bolkan foi fotografada diversas vezes ao longo Luchino Visconti, a assessora de imprensa Romy
da vida. Veja-se, à guisa de exemplo, esta capa da di Vitti, o músico Fagner, a princesa Anna Chigi, o
revista Manchete de abril de 1969. “Safári na África”. modista Valentino, a estrada do Joá, uma ideia de
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

HANA LUZIA

Nordeste, uma ideia de estrelato, Marcel Proust,


uma égua chamada Nina, a comuna de Bracciano
nos arredores de Roma etc.
“Qual seria a me “falar”, que é também como se fosse perfeitamente
capaz de me destruir. Mas o que fica, quando acordo, é
a sensação de que alguma espécie de orientação me

Prolegômenos a uma ciência do mito maneira mais foi dada. Um norte. Não tanto uma solução clara e
definitiva para o problema que estive ruminando
logo antes de pegar no sono, mas, sim, uma certa
Conheço a voz de Chapelin, conheço uma que ou-
tra coisa sobre a vida e a carreira de Florinda Bolkan, lógica de chegar até disposição para a solução, uma clareza de espírito a
que não estou habituado. Acordo confiado de que

Florinda Bolkan?”,
nascida Bulcão, em Uruburetama. Não conheço es- as coisas chegarão a bom termo no devido tempo.
paço de significação mais vasto ou negociável que o As pessoas mal me reconhecem.
mito. O alcance e a elasticidade do termo parecem-

pergunta Gustavo,
-me praticamente ilimitados. Portanto, quando Sér- Tirelli di Roma
gio Chapelin fala que Bolkan é um “mito”, cabe-nos
perguntar: a que conceito aludirá? Ou melhor, a que Explico para meu marido Gustavo que já existiu
aspecto do mito nos está enviando? Certo, Florinda
Bolkan é um mito. A colocação assenta bem. Ao
afirmá-lo, tenho a íntima impressão de dizer uma
meu marido, pelo menos um Tirelli na vida de Florinda Bolkan.
Umberto Tirelli, dono da Sartoria Tirelli di Roma, vestiu
não apenas a Flor de Uruburetama, mas também
verdade. Mas a verdade é que não sei ao certo o que
disse. Ainda na introdução a seu volume O Mito, K.
K. Ruthven provoca:
durante o café um renque de estrelas do cinema e da ópera. Por
um breve momento, portanto, obsedou-me a ideia
de que entre nós havia algum parentesco, ainda
“Os mitos têm uma qualidade que Wallace Ste- uma fratura que se esconde no exato momento em que que vago, remotíssimo, praticamente inverificável.
vens atribuiu à poesia, num aforismo meticulosa- buscamos tematizá-la racionalmente. Traçar uma linha – praticamente inverificável – das
mente evasivo: conseguem resistir à inteligência”. minhas mãos até às de Umberto. As minhas mãos
O ex-presidente Lula, cuja imagem preenche Le orme (II) escrevendo as mãos de Umberto Tirelli escolhendo
neste momento o televisor da sala da amiga que me túnicas numa arara. Umberto Tirelli. O querido
está hospedando no momento, é também um mito. No mais dos casos, as visitações se dão quando zio Umberto. Digo para o Gustavo que existiu já um
Jair Bolsonaro, presidenciável, inexpressivo estou passando por algum tipo de crise. Então, da Tirelli na vida de Florinda. O segundo, presumível
militar com vapores de grande inquisidor, é co- pessoa de Florinda em sonho, de seu porte, de sua segundo, eu, está para chegar. Por ora, está se es-
mumente referido por seus asseclas como mito. estatura, emana uma espécie de consolação. Paz. preguiçando. Volta-se para seu marido na cama,
“Mitar” é um verbo, salvo engano, recém-surgido Uma paz improvável. Ela se aproxima em atitude sorrindo, busca descrever em tom quase sedado
que costuma escorrer pela boca de certa direita de aconselhamento, mas não consigo carrear para uma das túnicas extravagantes e formidáveis que
singularmente imbecil para indicar esmagamento a vigília o que me diz. É mesmo possível que não ela usa em Investigação sobre um cidadão acima de qualquer
argumentativo, silenciamento do dissenso, triunfo me diga nada. Percebo, no entanto, que uma trans- suspeita. Os flancos abertos, fendas pelos lados, cores
forçoso sobre a diferença. missão de qualquer espécie ocorreu. Algo de sua vertidas até os pés descalços. Ela sorri. Quadrada.
É inteiramente possível que toda e qualquer de- presença passa para mim em sonho, algo que talvez Maçãs do rosto impossivelmente altas. Tem mais
signação seja, em última análise, tão sofismável não dependa de linguagem articulada. Algo que cabelo que eu e meu marido juntos. Ela traja uma
quanto esta de “mito”. As coisas se equivalem, é talvez seja apenas a caminhada impaciente e alegre, cascata, reta queda d’água, cortina de miçangas, os
certo... Contudo, parece-me que em nenhum outro a desenvoltura selvagem, ainda que no sonho ela flancos abertos, azeitonados.
conceito encontraremos tamanha suscetibilidade às permaneça sobrenaturalmente imóvel. Com o so-
peristalses da história. Para cada momento e região brenatural, sabemos todos, não se transige. Que ela Café da manhã
do pensamento, o mito assume uma significação a me seja um bom espectro, que ela me exiba sempre sua
um só tempo vaga e particularíssima. É uma resposta feição mais acalentadora, é uma questão de sorte. “Qual seria a maneira mais lógica de chegar até
inteiramente precisa a uma fratura universal. Mas é Tem sempre aspecto tão sentencioso, quando vem Florinda Bolkan?”, pergunta Gustavo durante o café.
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INÉDITOS
Ismar Tirelli Neto

O emprego da palavra lógica, a seriedade – talvez Le orme, de Luigi Bazzoni, um dos meus filmes
imerecida – com que Gustavo me interpela, tudo favoritos. É um bocado difícil encontrar material
isto me impressiona fundamente. escrito sobre este filme em particular, que para
“Mandei um e-mail para sua assessora de impren- mim excede muitos outros filmes célebres em
sa aqui no Brasil. Aguardo resposta. Se estivesse densidade e que há anos me acompanha.
no lugar dela, no entanto, não sei se responderia. Não sei se a sra. Bolkan gosta deste tipo de en-
Relendo o e-mail, ele me parece servil e confuso. trevista, se estaria disposta a compartilhar comi-
Nada se exprime com clareza ali, salvo uma von- go algumas memórias a respeito desse filme em
tade. Não é o suficiente. É genuíno, mas não é o particular, mas pensei que não custava tentar.
suficiente. Nenhum escambo. Nenhuma troca.” Pesquisando um pouco na internet, descobri que
“Portanto, o texto”, digo aos amigos reunidos em a senhora está há muitos anos profissionalmente
torno da mesa, “deverá ser estruturado de modo a associada à F.B., e portanto achei por bem tentar
não depender de um contributo direto de Florinda, contactá-la, correndo o risco de soar entrão.
nem de Florinda nem de sua assessora, de modo A senhora saberia por acaso me informar se ela
que eu possa, sem aviso e sem culpa, disparar por tem um endereço de e-mail para o qual eu possa
considerações de natureza inteiramente diversa enviar algumas perguntas, relativas à ambiência
a qualquer momento”. no set de Le orme, às instruções do diretor, às ex-
A ideia de entreter uma comunicação amistosa pectativas gerais em torno da repercussão da fita?
com Florinda Bolkan, embora despropositada, não Desculpe novamente o incômodo, e segue o
deveria me meter medo. Em termos objetivos, ela fortíssimo abraço do
– a ideia – não é nem mais nem menos desproposi-
tada do que qualquer outra (as coisas se equivalem, Metti... Una sera a cena
é certo...). Tem seu lugar ao sol, o desarrazoado que
cobre tudo, domo em cujo interior todas as coisas Conhecemos hoje a esposa do W. Ela é italiana,
tornam-se cabíveis. Nada é inverossímil. Se me professora universitária, especialista em romantis-
mostro hesitante, isso se deve ao fato de que não mo alemão. Vive no Brasil há pouco menos de uma
existe humana empresa que não me ponha, em década. “Nunca pensei que as coisas chegariam a
alguma medida, profundamente desconcertado. esse ponto em tão pouco tempo”, diz ela. Nenhum
Hoje mesmo pensei sobre o medo. Anotei em de nós, na realidade. Nenhum de nós ao redor da
alguma ficha pautada, já devidamente perdida mesa. Faço os amigos ouvirem o único single gra-
entre os papéis da casa, não bole um olho nesta floresta. vado por Florinda: sua interpretação do tema de
É claro, eu poderia ter optado por “bosque”, mas Metti... Una sera a cena, de Ennio Morricone. Nos anos
isso não teria sido de todo honesto. Não se deve ser 1990, Bolkan lançou um livro de culinária que,
tão harmônico assim. Não se deve ser tão sonoro. no Brasil, saiu com o nome de À mesa com Florinda.
Questão de modéstia. Sabe-se que um de seus maiores prazeres na vida
é cozinhar para sua legião de amigos.
E-Mail Enviado Para a Assessora de Imprensa Romy di Não consigo temperar meu entusiasmo dian-
Vitti (Não Respondido) te da esposa de W., sinto que meu rosto está se
esbraseando. Tão logo aperto sua mão, digo-lhe
Desculpe a intrujice, espero que esta pequena que estou escrevendo uma espécie de artigo sobre
comunicação a encontre bem. Florinda Bolkan. “Por quê?”. Como ela é afável
Chamo-me Ismar Tirelli Neto, sou um escritor e parece genuinamente interessada, respondo a
carioca (radicado em Curitiba) e estou trabalhando verdade: eu não sei, ela me aparece em sonho
no momento num artigo sobre Florinda Bolkan com frequência. Eis o que ela me diz, então. Sua
para o Suplemento Pernambuco, periódico para mãe, residente em Pádua, dona de uma pequena
o qual colaboro ocasionalmente. casa de azeite artesanal, sempre que se refere a
Trata-se, mais especificamente, de uma me- uma mulher bonita costuma dizer: “É bonita como
ditação sobre o papel desempenhado por ela em Florinda Bolkan”.
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

HANA LUZIA

“Não”, salienta, “como Monica Vitti, não como


Sophia Loren. Bonita como Florinda Bolkan”.
Recebo essa informação como um presente de
– A senhora tem seios. Durante as festas desta deusa, usa-se sacrifi-
car curvas. Os celebrantes acorrem às ruas, enchem
as bocas de terra e areia e alienam-se furiosamente.
valor inestimável.

Ramificações
lembrança de Barthes falando sobre Garbo

No decurso de toda e qualquer pesquisa existe Florinda Bolkan no Quando Roland Barthes, em seu Mitologias, desan-
da a falar sobre Garbo, a impressão que tenho é de

filme Os deuses
um faiscante, injetado momento em que tudo pa- que não compreendo absolutamente o que ele quer
rece referir-se, de algum modo, ao tema estudado. dizer, mas esta incompreensão é bela, é como des-
A sogra de W., vimos há pouco, fabrica azeite lizar por uma superfície congelada sem sofrer o frio

malditos?
em Pádua. Também Florinda lançou há alguns que possibilitou a transformação da água em gelo.
anos seu próprio azeite. Ele aventa, entre outras coisas, que Garbo pertence
Chama-se Emozioni. a um momento do cinema em que o rosto humano
Há um vinho, também, como não poderia deixar
de haver. Chama-se Rosso Vivo... by Florinda Bolkan
(como não poderia deixar de chamar-se).
– Não sou muito fã é capaz ainda de provocar comoções místicas no
espectador; que a mescla de terror e reverência
inspirada por seu semblante, menos pintado que
Em São Paulo por motivos de trabalho, aprovei-
tamos – eu e Gustavo – o domingo para ir ao cine-
ma. Descobrimos uma retrospectiva do Visconti,
dela, não. engessado, sugere que estamos ainda num momento
platônico da imagem cinematográfica, momento
no qual estamos em contato com a ideia de algo,
cineasta a quem se debita o “descobrimento” de Ele responde que muita gente famosa costuma ir não exatamente com um exemplar. Daquele rosto,
Florinda. Na fila do ingresso para Morte em Veneza, lá. Silencia, bloco em mãos. Sem saber como dar portanto, muitos outros haveriam de emanar, tanto
pego-me – para grande aflição de Gustavo – ence- continuidade à conversa, peço uma milanesa e no âmbito do cinema quanto no da vida real. Ao
tando conversa com a senhora idosa à nossa frente. uma Coca-Cola. falar do arquétipo da divina, síntese entre a vamp e a
“A senhora já viu Os deuses malditos?” virgem sofredora, o teórico Edgar Morin destacará
“Só na época.” Diana, em grego Ártemis também seu caráter oscilante de inacessibilidade
“A senhora tem alguma lembrança de Florinda e presença. Ela está no meio de nós, estando ainda
Bolkan no filme?” Filha de Maria Hosana e José, tanto Hesíodo por chegar. Ouvimos nos seus olhos negros e fixos
“Não sou muito fã dela, não.” quanto Homero dão sua nascença como Urubure- como que uma cavalaria distante.
Ocorre-me uma chamada da entrevista que tama (Terra dos Urubus). Com frequência se lhe
Chico Buarque conduziu com Florinda em Roma apõem os epítetos “agreste”, “selvagem”, “viril”, Que fazer com um mito?
para O Pasquim, em algum momento de 1969: O que “atlética”. Conta-se que investiu o primeiro cachê
o Brasil tem contra esta mulher? recebido em uma égua puro-sangue que deu crias Para que qualquer coisa atinja a esfera do mito,
A entrevista d’O Pasquim constituiu um eixo fun- por 500 gerações. Desde então, é identificada aos ela deverá fazer-se narrar por outrem. Isto me parece
damental da pesquisa. Outra entrevista de caráter equinos e a todas as atividades que envolvem claro. Que o mito seja manifestação reativa ao
axial é mais recente, estampada na revista Trip. montaria. Além disso, são atribuídos a ela ainda mistério em torno da origem das coisas, que ele
Foi conduzida no Bar Lagoa, no Rio de Janeiro, os dons da caça, do despiste, da extrema reserva aterre, de algum modo, a flutuação do fenôme-
que também visitamos recentemente por motivos e do preparo de poções mágicas. Desde que temos no, pacificando-o portanto, é dado inteiramente
de trabalho. notícia, sua figura é associada ao sol e às tempe- válido, mas que a própria constituição de nossa
Em visita, pois, ao Rio de Janeiro, vamos – eu, raturas elevadas. Todas as flores têm o seu nome sociedade atual interdita, circunscrevendo-o ao
Gustavo e um casal de amigos – ao Bar Lagoa, onde enquanto ela as pisa. pitoresco. Aquilo que não se explica por si só, que
todas as mulheres de uma certa idade presentes São conhecidos templos em Teresópolis, Quixabá, demanda continuidades narrativas, um exercício de
parecem-me Florinda Bolkan. As fronteiras entre Bracciano (arredores de Roma), Los Angeles e Nova contação que trespassa o espaço e o tempo – eis
vigília e espaço onírico, está claro, tornaram-se York. Representam-na de ordinário caminhando a matéria do mito.
já uma mera convenção. Transpiro. Pergunto ao ao lado de um altivo cavalo, usando longuíssimas Existe uma ferida no mundo perfeitamente explicada
garçom que nos atende se ele saberia me infor- saias escuras ou sobretudos fechados. Em alguns pela existência de Florinda Bolkan.
mar com que frequência – se alguma – Florinda povoados, é também figurada nua da cintura para Tenho certeza disso.
Bolkan costuma frequentar este estabelecimento. cima, tendo duas margaridas coladas aos pequenos Mas não sei que ferida é esta.
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RESENHAS
HANA LUZIA SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO

Riscos de tentar Após a coletânea lançada


pela extinta Cosac Naify,
a poetisa portuguesa
elaboração da estética,
um convite para que o
leitor observe a forma e
observadas pelos leitores.
Lopes não adota uma
postura que exige a
com a vida, o ato ficcional
que se pretende extensão
da realidade cotidiana.

pegar um peixe
Adília Lopes volta às não se sinta pressionado, identificação do que se Nesse aspecto, Um
prateleiras brasileiras por exemplo, a ter lido foi versado, ela alerta jogo bastante perigoso é
com edição de Um jogo tudo o que foi citado. para a forma com que a como aquele possível

com as mãos
bastante perigoso, seu O primeiro poema poesia pode organizar, catálogo da exposição
primeiro livro. Os seus do livro é Memória para referir e apontar para o de estreia de um artista
poemas de estreia, Esther Greenwood, alusão à que se entende como desconhecido. Existe
entre eles o conhecido protagonista de A redoma contexto literário. Outro qualquer coisa da ordem
O Luna Parque, estarão de vidro, de Sylvia Plath. poema que se pode da procura pela imagem
Livro de estreia da poetisa entre nós por meio Lopes escreve: “quanto pensar a partir da chave que unifique o processo
da Editora Moinhos. mais tempo permaneço intertextual é Algumas criativo e, em seguida,
portuguesa Adília Lopes Lançado no continente na água quente/ mais proposições a propósito de estabeleça a narrativa

finalmente é lançado no Brasil europeu em 1985, o livro


número um de Adília
pura me sinto/ e quando
me ponho de pé/ e
Mário Sá Carneiro, cujo
interlocutor foi um
de continuação. Qual
o elemento unificador
Lopes, pseudônimo me embrulho numa importante nome para o vislumbra-se no início de
Priscilla Campos de Maria José da toalha/ grande branca modernismo português. uma poética? Para Adília
Silva Viana Fidalgo macia/ sinto-me pura e Dessa maneira, Lopes Lopes, essa resposta
de Oliveira, renova a fresca/ como um recém- “povoa” os seus versos flutua entre temáticas
oportunidade de leitura, nascido”. A referência com instaurações da que juntam alguns
para os brasileiros, ao banho quente aparece pós-modernidade – a abismos: a angústia,
de um dos maiores como diálogo direto com colagem, por exemplo, estranheza e banalidade
nomes da literatura a voz narrativa de Plath e a própria evidência do presentes n’O Luna Parque
de língua portuguesa que, em seu clássico, intertexto –, mas não – “acabas por aprender
contemporânea. A afirmou: “Deve haver as toma como rumo vais ver/ a fazer das
poetisa possui uma obra um bocado de coisas central de sua poética. tripas coração/ habituas-
extensa; o seu último que um banho quente Mais à frente, no livro, te vais ver” – e a ideia
livro, Estar em casa, foi não resolva, mas não a escritora portuguesa de que a vida, em suas
lançado em Portugal conheço muitas delas”. afirma que escrever um infinitas impossibilidades
em março deste ano. Assim, Adília Lopes poema é “como apanhar comuns, como o peixe
Quando jovem, começa a sua obra um peixe com as mãos”. que não se deixa apanhar
Lopes cursou Física na fundada nos mecanismos Já nesse verso, existe ou a vontade de lamber
Universidade de Lisboa. intertextuais – a ver, certo equilíbrio entre feridas e mudar o lugar
Abandonou o curso por alusão, citação, paráfrase observar a poesia de das joias, pode te levar a
questões psicológicas, –, porém, a escritora forma escorregadia, ofício lugares brilhantes, afinal,
as quais são tema de não os utiliza com a que se escapa mesmo “só goza/ as férias/ quem
suas entrevistas, textos, intenção de reconstruir quando se têm “em sofreu/ os desastres”.
apresentações e poesias. um pensamento ou na mãos” e, por outro lado,
Reclusa em seu cotidiano tentativa de despertar, um tipo de metáfora que
na capital portuguesa, ela em seu leitor, a alude à vida simples, ao
se tornou uma escritora necessidade de investir fato de que a poesia pode
para a qual a ideia de nas leituras feitas por ela. ser tão banal e estranha
autobiografia atravessa a Do mesmo modo como um peixe fora
ironia, o tédio e algumas que Hilda Hilst, Maria d’água. A referência ao
técnicas como a colagem Gabriela Llansol e animal aquático volta
e a intertextualidade. Em Sophia de Mello Breyner em Os peixes brancos:
Um jogo perigoso, Lopes Andresen, Lopes faz “Um dos grandes temas
inicia seu projeto poético uso de sua memória da actualidade/ é sem
no qual desenvolve a literária, nos poemas, dúvida esta panela de
estética pós-moderna como uma espécie esmalte/ cheia de peixes
a partir de um ponto de brincadeira diante brancos como panos”.
de vista do comentário. do leitor ideal. O que Em sua obra, Lopes
Ao longo de sua obra, importa para a poetisa toca em uma espécie de POESIA
a poetisa não se insere é que a costura de suas “espírito da verdade”
no modelo do pós- citações e as possíveis que atravessa não só a Um jogo bastante perigoso
modernismo, mas sim conversas que ela ideia de escritas de si, Autora - Adília Lopes
apropria-se de seus estabelece entre autores da autobiografia como Editora - Moinhos
aspectos e os menciona. tanto contemporâneos escolha do discurso, mas Páginas - 56
Assim, existe uma quanto clássicos sejam também a proximidade Preço - R$ 35
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PERNAMBUCO, MAIO 2018

O anonimato como signo regente PRATELEIRA


O Leviatã do título da nova nos ombros de Teresa, assusta não é alguém autores brasileiros e A RALÉ BRASILEIRA: QUEM É E COMO VIVE
reunião de contos de mas não cantam. Nos voando pelos ares ou reposicionando a escrita Um dos mais expressivos teóricos brasileiros
Cristhiano Aguiar parece últimos dias ela costuma, fantasmas convencionais. após uma estreia, também da atualidade, Jessé de Souza toca, neste
remeter a uma sensação sempre aos finais de O que nos assusta, o que com contos, que o próprio livro, numa das feridas mais dolorosas da
de anonimato em meio tarde, sentar nos degraus nos leva a desconfiar do autor preferiu descartar. vida brasileira: o tema da desigualdade social.
a afetos, identidades, que dão acesso à entrada concreto é justamente o Uma escrita segura do Para ele, junto com a corrupção na política,
cidades e destinos. Um do edifício. Com os pés outro, aquele próximo lugar e dos afetos que a desigualdade forma o núcleo da “violência
anonimato absolutista, encostados e as mãos a nós, nosso espelho precisa registrar. simbólica”, aquela que não aparece como
perfurante. Em cada um fechadas, observa a rua: insuspeito. Como no conto No processo de resenhar violência. Isso possibilita a naturalização e a
dos textos, alguém recebe ouvidos atentos aos ruídos, (O laboratório do senhor Mosch Na outra margem, o Leviatã, reprodução infinita dessa mesma desigualdade,
o estalo de que não se aos olhos sujos. Ninguém Terpin) em que uma garota é indispensável falar configurando um modelo injusto e arrraigado.
reconhece ou de que parece se incomodar chega em casa e encontra do capricho gráfico da
não é reconhecido em com a presença dos o colega de apartamento edição proposta pela
lugares aparentemente animais. Os pássaros cercado de caixas de livros editora Lote 42 - clean e ao
banais: seja o mendigo pouco se movem após o e de memórias familiares. mesmo tempo imbricada,
na rua, seja diante de pouso – são escuros”. Erguido como um livro como as histórias que
uma pane de elevador ou A geografia da São Paulo de contos, Na outra margem, nela tomam espaço
mesmo pelo sotaque, que que Cristhiano escolheu o Leviatã poderia passar (Schneider Carpeggiani). Autor: Jessé Souza
aqui aparece como uma para localizar os contos também por um romance, Editora: UFMG
espécie de signo/stigmata diz muito sobre a condição graças ao tom homogêneo Páginas: 551
a perseguir aqueles que dos seus personagens. É a que o autor emprega às Preço: R$ 64,80
se afastaram de casa. São Paulo da Consolação, histórias e pela reaparição
O conto de abertura, de Santa Cecília, do de personagens, jogando COLHEITA SELVAGEM
Miniatura, já nos recebe com centro, de locais que com a ideia de alter ego. Uma das histórias reais mais impressionantes
o alarme do desconhecido são de residência, mas Ao decorrer da leitura, dos últimos tempos mistura canibalismo,
se infiltrando – “Ouvi também de comércio, fica clara a inspiração que colonialismo e a morte do herdeiro milionário
o som de um piano onde as noções de fixo e Cristhiano toma de nomes Michael Rockefeller, colecionador de arte
no domingo passado. de mobilidade acabam da literatura hispano- primitiva, desaparecido na Nova Guiné, em 1961.
Abandonei o que fazia, se confundindo. Rua e americana, sobretudo Com base em extensa pesquisa e observações na
fiquei imóvel: a música casa num só endereço. do uruguaio Juan Carlos selva, o jornalista Carl Hoffman descreve o choque
vinha do meu prédio, É uma São Paulo que se Onetti e do argentino Juan de duas civilizações e uma cultura transformada
ou de algum edifício dá a alugar mais fácil José Saer (lembrado numa por anos de dominação colonial, mas ainda
vizinho”. No conto para desconhecidos das epígrafes da obra). moldada por crenças e hábitos antigos.
Teresa, a banalidade do e/ou novatos. Na outra margem, o Leviatã CONTOS
cotidiano é apresentada E nessa metrópole chega para reposicionar
disformemente, só para em que o anonimato é o a escrita de Cristhiano Na outra margem, o Leviatã
destacar que talvez regente maior, torna-se Aguiar na literatura Autor - Cristhiano Aguiar
ninguém esteja olhando curiosa a aproximação contemporânea, após Editora - Lote 42
e esse é o sintoma dos que o autor faz do gênero ele ser uma das apostas Páginas - 116
tempos: “Pássaros pousam fantástico. O que nos da Granta com jovens Preço - R$ 37,90 Autor: Carl Hoffman
Editora: Record
Páginas: 364
Preço: R$ 59,90

Sobre potências Afeto e confiança A PARTE QUE FALTA


Nesta obra, destinada ao público infantojuvenil,
o protagonista é um ser circular ao qual falta
Em um país com altas relações gays e lésbicas “A única coisa que eu e esforço para qualquer uma parte, e que busca pelo mundo sua
taxas de feminicídio reproduzem muitas tenho que fazer nessa pessoa – em especial as completude, pois acredita que será feliz quando
como o nosso, é uma opressões existentes nas vida é continuar negra mulheres negras – viver encontrá-la. Até que percebe que a felicidade
alegria ver autoras uniões entre homem e morrer”, diz, a certa em um mundo no qual não está no outro, mas dentro de nós mesmos.
como Rebecca Solnit e mulher. Entretanto, altura de Mamãe & Eu cada vez mais se prescinde A obra trata com delicadeza do sentido do
serem publicadas. Os não se trata de analisar & Mamãe, a mãe de do Outro (para usar uma amor e como dependemos dos outros para nos
homens explicam tudo para em profundidade as Maya Angelou. É o expressão psicanalítica) e sentirmos realizados.
mim reúne artigos da dinâmicas homoafetivas, último livro da poeta que oprime os corpos não
historiadora e ativista mas, sim, de usar o que e uma de suas poucas normativos. É, também,
estadunidense sobre há de melhor nelas para traduções no Brasil. um agenciamento do
feminismo, opressões expor que já existem Na obra, Angelou afeto contra as violências
no casamento e várias formas saudáveis de conta a complexa sociais, culturais e
outras formas de se relacionar. Ou seja, história vivida com sua econômicas. A frase que
tentar subalternizar a propor horizontes. mãe, Vivian Baxter, abre este texto mostra Autor: Shel Silverstein
mulher. Solnit parte O livro traz o artigo com quem passou a força de Baxter, que Editora: Companhia das Letras
da materialidade dos que originou o termo a conviver apenas a escorre pela poesia Páginas: 112
números sobre violência mansplaining. (Igor Gomes) partir dos 13 anos. A de Angelou (I. G.). Preço: R$ 44,90
ou de histórias reais primeira parte do livro
para expor, de forma mostra a importância CONFISSÕES DE UM JOVEM ROMANCISTA
didática, as lógicas da de Vivian na formação Quase 30 anos após estrear na literatura,
dominação masculina e a da filha enquanto Umberto Eco (1932-2016) rememora a carreira
necessidade do combate mulher autônoma de teórico e romancista, refletindo sobre
à cultura patriarcal. e politicamente seus processos de criação. Os quatro ensaios
É muito eficiente consciente, além do livro integraram o programa Palestras
para nós, homens – expor a passagem de Richard Ellmann sobre Literatura Moderna,
mesmo aos que já se uma relação repleta na Universidade Emory, em Atlanta (EUA).
esforçam para repensar de ranços para uma Medievalista, filósofo e estudioso da literatura
a masculinidade. Um convivência afetuosa. contemporânea, Eco aborda de forma singular a
momento em que o leitor A segunda continua arte da ficção e o poder das palavras.
pode questionar a autora a mostrar a força da
é quando ela propõe o mãe na formação de
casamento homoafetivo Angelou, desta vez ao
como norte de igualdade ARTIGOS compilar boas histórias MEMÓRIA
entre os parceiros para as vividas pelas duas na
uniões heterossexuais. É Os homens explicam tudo para mim maturidade. Mesmo Mamãe & Eu & Mamãe
um paralelo rápido e uma Autora- Rebecca Solnit que se discorde da Autora - Maya Angelou Autor: Umberto Eco
primeira leitura nos faz Editora - Cultrix fé cristã da autora, Editora - Rosa dos Tempos Editora: Record
pensar nas supressões Páginas - 208 seu texto mostra a Páginas - 176 Páginas: 154
que Solnit realiza – afinal, Preço - R$ 34 necessidade de afeto Preço - R$ 37,90 Preço: R$ 39,90
30
PERNAMBUCO, MAIO 2018

RESENHAS
HÉLIA SCHEPPA/ ARQUIVO PERNAMBUCO

cariris. Não seria um


Ronaldo Correia de Brito
legítimo se não voltasse
aos mitos fundadores da
humanidade em algum
momento. Há muito
sobre a história do Brasil
e de Juazeiro do Norte,
o milagre da Beata, a
presença forte do Padre
Cícero, os campos de
concentração. Na mesma
medida, há uma ponte
natural para o mundo de
hoje: o drama em Aleppo,
os fluxos de miseráveis, a
crise migratória.
Diante de tantos
temas diferentes, os
personagens e narradores
de vez em quando deixam
a história em pausa para
dar aula sobre alguma
coisa, seja para explicar
os acordos pós-Primeira
Guerra Mundial ou o
direito das mulheres de
interromper uma gravidez
indesejada. Os breques
quebram um pouco o
ritmo, o texto ganha outro
tom por algum tempo,
talvez mais jornalístico
que literário, mais crônica
e menos romance por
poucos minutos.

Para lembrar os Chove na primeira página


do romance Dora sem véu, de
Ronaldo Correia de Brito.
ele usa novamente o signo
da jornada, mas termina a
segunda viagem deixando
coração. Sei que há muitas
Doras pelo mundo. Foi essa que
me tocou procurar.”
Dora sem véu é um
livro tanto universal
quanto brasileiro, que

versos sobre uma


A água tem muito a dizer a certeza de um notável Os problemas da trata das questões
nessa obra. Ao receber amadurecimento em sua condição feminina contemporâneas do
o leitor, a chuva anuncia literatura. atravessam esse livro, nosso país. Não fazemos

casa em ruínas
que não entraremos em um Chove nas primeiras tanto na diegese quanto no ideia de como vamos sair
sertão de solo rachado, que páginas. Entramos discurso dos personagens. do ponto onde estamos,
não cabe aqui o engano de aos solavancos, sem É a primeira experiência acordados no nosso
reduzir a imagem do Nor- entender quase nada. de Ronaldo Correia próprio pesadelo. Há um
deste à pobreza e à seca, É debaixo de chuva de Brito com um livro momento do livro em que
As mulheres, as ausências e como se fossem as únicas que o leitor é jogado 80% contado por uma Francisca diz que seu pai
narrativas possíveis desse imediatamente e sem mulher. Mesmo com uma deu os primeiros sinais de
os brasis do novo romance de lugar. Para um autor expe- piedade em um pau- profusão de personagens morte quando percebeu

Ronaldo Correia de Brito riente como Ronaldo, há


muitas maneiras de falar da
de-arara lotado, onde
falta quase tudo e onde
masculinos, são as
mulheres que guiam o
ter esquecido o verso de
um poema que levou na
condição humana, quan- estão os personagens romance. Francisca é memória a vida toda.
Socorro Acioli do se arma um romance que nortearão boa parte a condutora, só vamos – Esqueci os versos,
nesse pedaço de Brasil. A desse enredo. Pagadores porque ela decidiu ir. Dora estou acabado.
geografia do Nordeste isola de promessa, uma é uma sombra com a mão O poema era sobre
e, ao mesmo tempo, con- jovem vestida de noiva, no ombro de Francisca uma casa em ruínas.
fere à alma de sua gente ex-votos pendurados o texto inteiro, um Estamos dentro dela. O
uma relação com a terra e e um ex-vaqueiro corpo que se constrói de Brasil sob um véu que
com a “ordem sobrenatu- desempregado, que lembranças. Uma mulher Ronaldo descortina,
ral que sustenta o mundo” costura lingeries femininas brasileira. os erros cometidos
que poucos compreendem. e desenha vestidos. O Dora seu véu é um livro diariamente, esse
Ronaldo enxerga isso muito começo do livro é feito de banhado por rios. O desassossego doente,
bem. sacolejos, frases curtas e Capibaribe, o Granjeiro, a falta de paz. Vivemos
A premissa não é secas ditas por Francisca, o Salgado e seu afluente, em uma casa em ruínas.
inédita. Existem muitos a principal narradora da o Salgadinho. O rio Precisamos relembrar os
livros sobre personagens história. Amazonas domina boa versos da sobrevivência.
que voltam à pequena A princípio, não parte do texto, e a cena
cidade de suas raízes por conseguimos ver mais bonita acontece
um motivo familiar. Que Francisca, apenas ouvir. dentro do Uaicurapá,
estão perdidos e precisam Aos poucos, ela aparece em Parintins, em uma
de respostas, ou que vão com seus cabelos lancha com o motor
a contragosto, cumprindo brancos, anunciando desligado, parada, em
uma obrigação, que envelheceu, tem 65 que só se escutam o
atendendo ao pedido de anos e engordou. Que som dos pássaros, o
alguém. Pedro Páramo, de fez péssimas escolhas e murmurar da água e a
Juan Rulfo, é um exemplo acordos falidos ao longo língua das folhagens.
emblemático. Muitos da vida. São eles que, Nessas idas e vindas por
outros autores utilizaram em parte, justificam a vários cenários, o texto
esse recurso de media in res premissa do romance: ela aumenta a velocidade,
que, aos poucos, escava precisa buscar Dora, sua pouco a pouco. Aumenta,
camadas e camadas de avó, uma personagem também, o ângulo da
passado com as mãos ausente e gigantesca. lente que ele usa para
sangrando e fecha um “Em qualquer geografia falar das coisas do mundo. ROMANCE
arco das narrativas as mulheres são as mais Há a grandiosidade do
pessoais. A repetição é vulneráveis. No porto de Brasil, das narrativas Dora sem véu
assumida, visto que o Fortaleza ou no Acre, Dora é a indianas, dos dramas Autor - Ronaldo Correia de Brito
próprio Ronaldo fez isso mesma mulher abandonada bíblicos, a poesia Editora - Alfaguara
em Galileia, seu primeiro com sua inquietude e seus americana, a religiosidade Páginas - 248
romance. Em Dora sem véu, filhos. A lembrança fere meu e a cosmogonia dos índios Preço - R$ 49,90
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O fogo que apaga e o que permanece PRATELEIRA


Alejandra Pizarnik (1936- surge sempre fadada ao almofada/ em busca de seu não é diferente. Por vezes, LIÇÕES DE POÉTICA
1972) chega ao mercado esquecimento, e o ruído, impossível/ lugar de repouso. o “tu” a quem se dirige o Neste clássico ensaio, Paul Valéry (1871-1945) nos
brasileiro em par: Os fadado ao silêncio. O livro se estrutura eu pode ser o poema por propõe considerar a literatura — e a arte em geral —
trabalhos e as noites (1965) e O que está fora é pelos espaços, sejam os da si mesmo. E a cada verso não como “obras” acabadas, mas, primeiro, como
Árvore de Diana (1962), duas agressivo, seja o vento que página, representando os soturno surge uma chama. atos do intelecto que a compõem, e, segundo, como
obras suas vertidas ao lhe parte a cara ou a chuva ruídos, soluços e silêncios Na poesia de Pizarnik atos do intelecto que recebem a obra. Aliás, hoje
português por Davis Diniz. que apaga o dito fogo, o em algumas quebras e vê-se uma chama prestes mesmo se fala muito em escritura — e ainda mais
Um duplo cartão de visitas muro da rua como lugar intervalos no branco da a fracassar para que em leitura —, mas quantas vezes nos lembramos
aos procedimentos de que certo para o olvido. Diz um página; o espaço surge outra possa ser perene. A de que esses substantivos se referem a atos de
se vale a poeta argentina poema: Dama pequeniníssima/ também no esforço de fagulha que permanece é intelectos individuais?
para representar um eu moradora do coração de um cartografar a claustrofobia o próprio poema e toda a
lírico que manifesta um pássaro/ sai à alba a pronunciar da solidão e a iminência potência das encenações
ardor (de uma lembrança, uma sílaba/ NÃO. O “não”, da morte. Mas é no tempo que nele tomam corpo,
um rosto, um amor) com que vem centralizado e em que surge outra referência pungentes como o
a consciência de seu caixa alta, pode ser visto pertinente para a obra. O vento a arrasar nossos
embotamento. O vento e tanto como negação do título Os trabalhos e as noites rostos (Igor Gomes).
a chuva me apagaram/ como eu lírico ao que está fora traça uma ponte com a Autor: Paul Valéry
a um fogo, diz um poema quanto, como diz Ana M. obra Os trabalhos e os dias, Editora: Ayiné
de Os trabalhos e as noites. Marques, uma alusão à de Hesíodo. O segundo Páginas: 92
Começo por este livro. força da imagem da noite. foi construído como um Preço: R$ 39,90
O mundo da poesia de Em espanhol, a palavra épico sobre a História
Pizarnik é claustrofóbico. Não é No, primeira sílaba do da humanidade e a OMO-OBA: HISTÓRIAS DE PRINCESA
As figuras se repetem: o termo “noite” (“noche”). necessidade do trabalho – Histórias de princesas é um livro que privilegia
vento, a chuva, a noite, Destacado mais acima, ou seja, volta-se para fora. o recontar de mitos africanos, muito
o lilás. Como diz a poeta o verbo partir denota Pizarnik ruma para dentro divulgados nas comunidades de tradição
Ana Martins Marques no tanto a fratura quanto a em poemas curtos que ketu, pouco conhecidos pelo público em
prefácio, não é de graça ausência e as transforma criam a geografia limitada geral e que reforçam os diferentes modos de
que a noite se mostra no em sinônimos. Essa ideia de uma pessoa, que se ser femininos. Os seis mitos apresentados
título. Os poemas são tem certa centralidade, já choca com a coletividade e têm, claramente, o objetivo de fortalecer a
soturnos, melancólicos, que o eu sempre se dirige a extensão do épico. Uma personalidade de meninas de todos os tempos.
frutos de labor noturno. a um outro que não está lá. economia de palavras
Só se consegue mapear Por uma partida sugerida que é antieconômica,
as cartografias do desse interlocutor, partiu- posto que brota à noite,
próprio quarto, nos quais se a parede que serve de horário não comercial. POESIA
as paredes rachadas fronteira ao mundo do Após dizer algumas
desvelam a insegurança poema. E partir em busca coisas, chega o momento Os trabalhos e as noites
de quem sabe estar diante do repouso é empreitada de falar do embuste. Autora - Alejandra Pizarnik Autora: Kiusam de Oliveira
de um facho prestes a fracassada – Alguém mede Porque o poema é arredio Editora - Relicário Edições Editora: Mazza
se extinguir. Por isso, a soluçando/ a extensão da à inteligência, dado a Páginas - 132 Páginas: 48
memória em Pizarnik alba./ Alguém apunhala a traições. Com Pizarnik Preço - R$ 39,90 Preço: R$ 30

DESCORTESIA E CORTESIA
Pesquisadores brasileiros e estrangeiros

A química poética O trivial é mítico mostram como a cortesia e a descortesia são


fenômenos universais que variam conforme
o grupo social, configurando-se como
essencialmente culturais. O estudo interessa
A árvore de Diana é um uma pureza que alude à Em As Helenas de Troia, estar com sofá xadrez. especialmente à área de linguística, com
procedimento químico deusa Diana. A alquimia NY, Bernadette Mayer O estranhamento entre foco nas interações verbais, mas também
que faz um mineral criada, na verdade, ocorre faz poemas sobre as o que diz o poema e a estudantes e profissionais de áreas afins,
tomar a forma de um no plano das formas: é mulheres de nome a forma do que é dito por conta das abordagens reflexivas sobre as
vegetal. Alquímico talvez o bem-sucedido esforço Helena que moram se associa à foto para relações entre cultura e comportamento.
seja um termo melhor, em unir imagens díspares em Troia, no estado de atualizar o mito de
já que o processo tem no poema. O desejo de Nova York (EUA). Fez Troia. Mulheres com
fundo filosófico. Árvore segurar um eu anterior entrevistas com elas perfis diversos unidas
de Diana é a quarta obra fracassa, mas é apenas e é com base nesse pelo mesmo nome e
de Alejandra Pizarnik uma performance. Neste material, e em fotos cidade, com algumas Autores: Ana Lúcio Tinoco
e antecede Os trabalhos livro, há presença da das mulheres feitas experiências em Cabral, Isabel Roboredo Seara,
e as noites (ver resenha luz (que remete ao dia). pela autora, que o comum são o centro Manoel Francisco Guaranha
acima). Os poemas No livro seguinte, reina poema é erigido. Não do poema. A mulher Editora: Cortez
deixam evidente a a noite. Ambos são é bem verdade isso. passa longe de ser um Páginas: 384
influência surrealista que de pungência soturna Mayer parece encarar objeto, como ocorre Preço: R$ 62
marcou a poeta. Eles são e marcante (I.G.). o poema como uma no mito grego (I.G.).
numerados em ordem brincadeira séria, AGORA VAI SER ASSIM
crescente, como etapas um lúdico desafio Em seu livro mais recente, Leonardo Tonus
de um procedimento. formal (exemplo: – poeta e pesquisador da Sorbonne – elabora
Como observa a poeta numa página, um uma poesia que parte da constatação da própria
Marília Garcia no poema em verso livre impotência a partir do lugar de observador da
prefácio, o livro é cruzado e, na seguinte, outro contemporaneidade. Agora vai ser assim é quase um
por duplos: eu e a que fui metrificado como livro-denúncia, um dedo a apontar o malfeito, o
sentamos/ no umbral do meu sextina). Os versos fato que se desvia do humanamente tolerável. Nos
olhar, diz um poema. surgem na relação poemas, há um sentido sublime de humanidade
Árvore de Diana começa entre o que é dito sintonizado com valores transcendentes e
com um “eu” no passado, pelas Helenas e o inegáveis, identificado com os despossuídos de
enquanto Os trabalhos e crivo formal a que se todo o tipo em todo o mundo, fato que estabelece
as noites principia com impõe a artista. A vida com o leitor uma empatia profunda e imediata.
um “tu” no presente. trivial e repetitiva de
O duplo (que alude ao Helena Parsons, por
surrealismo, como em exemplo, é recriada
Claude Cahun) surge, por POESIA em sextina, métrica POESIA
vezes, como a memória antiga usada por
do eu lírico como era Árvore de Diana poetas como Camões. As Helenas de Troia, NY
antes de entrar no mundo Autora - Alejandra Pizarnik Ao lado, a foto Autora - Bernadette Mayer Autor: Leonardo Tonus
da linguagem, da poesia Editora - Relicário Edições revela uma mulher Editora - Jabuticaba Editora: Nós
(a “luz”, como sugere o Páginas - 108 sorridente, com rosto Páginas - 84 Páginas: 96
primeiro poema da obra), Preço - R$ 39,90 oleoso, numa sala de Preço - R$ 30 Preço: R$ 30

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