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O ENIGMÁTICO BORGES DE MEDEIROS

Publicado no site em 05/10/2015

Sérgio da Costa Franco

I.

Entre as muitas coisas que a oposição dizia de Borges de Medeiros é que não teria
nascido no Rio Grande do Sul, condição que era exigida pela Constituição de 1891 para ser
Governador do Estado. A afirmação, de pura hostilidade partidária, não era verdadeira. Há
consenso pleno de que Antônio Augusto Borges de Medeiros, filho do juiz pernambucano
Augusto César de Medeiros e de Miquelina de Lima Borges, nasceu mesmo em 19 de
novembro de 1863, em Caçapava do Sul, onde seu pai, havia já vários anos, desempenhava
as funções de juiz municipal. Ali casara, o juiz, com moça da família Borges, de Cachoeira,
irmã mais moça do fazendeiro Horácio Borges. É certo que, com tenra idade, Antônio Augusto
mudou-se com a família para Minas Gerais, onde O Dr. Augusto César foi classificado na
comarca de Pouso Alegre, já então como juiz de direito, um degrau superior na organização
judiciária do Império.

Foi em Pouso Alegre que Antônio Augusto foi alfabetizado e estudou até adolescente,
tendo retornado ao Rio Grande do Sul apenas em meados da década seguinte, quando
sucessivamente residiu em Cachoeira e em Porto Alegre. Esse estágio preliminar em Minas
Gerais, na infância e na adolescência, motivava os críticos federalistas a dizerem que o
caráter do personagem se formara longe das tradições rio-grandenses, adquirindo
características de duplicidade e dissimulação, que não seriam próprias do rio-grandense.

Foi no colégio do Professor José Teodoro Souza Lobo, entre 1878 e 1880 que o jovem
Borges de Medeiros completou seu curso de preparatórios. Transferiu-se, a seguir, para São
Paulo, onde cursou a Academia de Direito do 1º ao 4º ano.

A turma que ingressou em 1881 na faculdade do Largo de São Francisco se compunha


de 131 estudantes, incluía gente que se tornaria famosa, como o romancista Raul Pompéia, o
poeta Luiz Murat ou o financista Cincinato Braga. Na mesma Faculdade, por esse tempo,
estudavam vários outros estudantes nascidos no Rio Grande do Sul, com os quais Antônio
Augusto estabeleceu relações de amizade e solidariedade política. Ao fim desse mesmo ano,
era diplomado Júlio de Castilhos, seu padrinho político, que o precedera por vários anos O
trânsito de Borges de Medeiros pela Faculdade de Direito de São Paulo foi relativamente
curto, porque dela se desligou em 1885, matriculando-se no 5º ano da Faculdade do Recife,
onde colou grau de bacharel, com antecipação, pois prestou exames do 5º ano no mês de
maio de 1885. Consta que essa transferência se deveu a motivos financeiros, porque tendo
parentes de seu pai em Pernambuco, lá seria mais conveniente hospedar-se e residir. Ao que
tudo indica, sua trajetória como estudante não teve maior brilhantismo. Spencer Vampré, o
minucioso cronista da faculdade paulista, apenas se refere a ele como redator secundário do
jornal “A República”. Mas ali fez sua iniciação na vida política, participando do movimento
republicano, que já era intenso entre os acadêmicos, especialmente entre os estudantes
gaúchos, que haviam fundado o Clube 20 de Setembro e o mantinham em plena atividade,
sob a liderança de Júlio de Castilhos, Alcides Lima e Assis Brasil. Nessa imprensa acadêmica
republicana, destacaram-se Alcides Lima, Álvaro Chaves, Argimiro Galvão, Homero Batista,
Rivadávia Corrêa e outros.
II.

Diplomado, Borges de Medeiros voltou ao Rio Grande do Sul, fixando-se em


Cachoeira, onde começou a advogar. Mas sua atividade se estendia aos municípios vizinhos,
como Caçapava e São Sepé, este, aliás, termo da comarca de Cachoeira. Ao ser proclamada
a República, seu primeiro cargo público foi o de delegado de polícia de Cachoeira,
empossado ainda em novembro de 1889. No ano seguinte, elegeu-se deputado federal
constituinte, tendo participado da Assembléia que votou a Constituição Federal de 24 de
fevereiro de 1891. Já em 1893, ao ser organizado o Superior Tribunal, órgão da segunda
instância da Justiça Estadual, foi ele recrutado por Júlio de Castilhos para o cargo de
desembargador. Tinha, então, apenas 30 anos.

Nas pesquisas que realizamos acerca de sua biografia e inclinações ideológicas, foi
com alguma surpresa que encontramos em seu arquivo pessoal, incorporado ao acervo do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, uma carta da loja maçônica de São
Sepé, a ele dirigida, em que se lhe dava o tratamento de “irmão”. Adotamos, então, a
hipótese de que fora iniciado naquela ordem, em São Sepé, e fizemos indagações no sentido
de confirmar essa hipótese. Mas não tivemos sucesso, e, pouco depois, consultando na
Internet o “site” do Professor Sérgio Borja, sob o título de “A fundação maçônica da
Faculdade de Direito”, ali encontramos a informação de que Borges pertencera à secular
Loja maçônica de Porto Alegre, “Progresso da Humanidade”. Foi frutífero o apelo que
fizemos ao Dr. Danilo Krause, nosso vizinho e amigo, e ex-venerável daquela oficina
maçônica. Pelo Dr. Danilo fomos informados de que Antônio Augusto Borges de Medeiros foi
iniciado na Loja Progresso da Humanidade em 7 de agosto de 1893, no mesmo ano em que
começara o exercício do cargo de desembargador.

Isso não me causaria surpresa, se eu não conhecesse a hostilidade de Júlio de


Castilhos à ordem maçônica, claramente expressa numa de suas cartas ao amigo e
secretário Aurélio Veríssimo de Bitencourt, datada de 9-10-1900, e transcrita na íntegra na
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul nº 124, de 1986, seção
documentário, p. 186. Trata-se de uma missiva na qual ele pede ao secretário , que o era
também do presidente do Estado, sugerisse a Borges de Medeiros determinar uma
formatura da Brigada Militar no dia 15 de Novembro, que se aproximava. Dela
transcrevemos a parte mais substanciosa:...”Há 2 anos, talvez, não se vê um só corpo da
Brigada em formatura e marcha nas ruas da Capital. Esta abstenção tem efeitos prejudiciais,
porque habitua a tropa à inércia do quartel, à carência de estímulos e ao desleixo, de que
fica também contaminada a oficialidade. À circunstância aludida atribuo, em grande parte, o
desenvolvimento do vício do jogo, a propagação do deletério e funesto ardor maçônico e a
urdidura da intriga pessoal, visivelmente existente entre os oficiais. É bem de ver que estes,
não tendo ensejo de sentir estimulado o zelo pelo serviço profissional, privados de
emulação, libertos da exigência de afazeres imperiosos e diários, adaptam-se facilmente aos
hábitos da indolência despreocupada, confiantes no infalível estipêndio do Tesouro do
Estado, acostumando-se a viver como vadios garantidos. A inércia estipendiada gera
fatalmente o vício multiforme, o que explica a generalização do jogo habitual, que, como
cortejo das suas conseqüências, inclusive os desfalques do dinheiro público, já ocorridos e
verificados, vai avultando no seio da oficialidade. Equivalendo a outra distração, preocupa os
oficiais a indigna e perigosa maçonaria, que representa aos meus olhos um Cavalo de Tróia
para o futuro.(...) Convém que fiquem em reserva estas minhas ponderações, feitas na
intimidade afetuosa, e sumariamente. Que o Medeiros as leia como mais uma manifestação
rápida do meu propósito, tão sincero quanto sistemático, de o auxiliar na sua imensa tarefa
governativa. Em seu poder devem ficar estas linhas , ligeiramente rabiscadas.”

O “cavalo de Tróia”, mencionado na carta, é prognóstico pessimista endereçado aos


métodos de conciliação e fraternidade, utilizados pela Maçonaria, no sentido de apagar ou
amortecer os ódios entre castilhistas e maragatos. Em várias localidades, ao fim da guerra
civil de 1893/95, as lojas maçônicas, abrigando entre suas colunas aqueles ferrenhos
adversários, tratavam de os conciliar. Em Soledade, por exemplo, os veneráveis da Loja
Liberdade e Progresso, fundada em 1897, seriam alternados, quase sistematicamente, entre
maragatos e republicanos. Isso não agradaria ao extremo sectarismo do chefe.
Diante desse texto, ficamos a perguntar-nos como poderia o maçom Borges de
Medeiros ter alcançado as boas graças de Júlio de Castilhos, tornar-se o seu discípulo
predileto e sucessor no governo do Estado. Note-se que Castilhos é enfático em seu texto,
quando fala em “deletério e funesto ardor maçônico”. Nasce, espontânea, a suposição de
que Borges tenha escondido do líder a sua filiação àquela ordem universal.

O certo é que sua passagem pela Maçonaria foi discreta e apagada. Provavelmente
pela influência de Castilhos, que o vigiava muito de perto, especialmente depois de o fazer
seu sucessor, em 1898.

III.

De qualquer modo, esse episódio de dissimulação, que compromete o caráter do


nosso Borges de Medeiros, não foi o único em sua longa trajetória de vida. 1907 foi um ano
crítico na história do partido republicano rio-grandense. Aproximava-se a data da eleição
para a chefia do executivo estadual e o partido se cindira entre os borgistas, que apoiavam
a candidatura oficial de Carlos Barboza Gonçalves e os dissidentes que se inclinavam pela
candidatura do médico Fernando Abbott, que aliás já exercera a presidência em 1892,
como vice-presidente nomeado. Borges, então, procurava aglutinar forças para esmagar
eleitoralmente a pretensão do dissidente. Decidiu-se aí a um passo inédito, sem
precedentes na história partidária, que seria uma tentativa de aproximação com os
indefectíveis adversários maragatos. Mediante telegrama minutado em 25/ago./1907, ele
pediu autorização à viúva de Gaspar Silveira Martins para trasladar a Porto Alegre os restos
mortais do irredutível inimigo, que falecera em Montevidéu em 1901, ainda tramando uma
insurreição contra a situação rio-grandense. O texto do telegrama é um prodígio de
dissimulação e hipocrisia: “No culto cívico que Rio Grande presta seus filhos ilustres não
podia ser esquecido vosso saudoso esposo, que foi glória fulgente parlamento e sua terra
natal. Interpretando sentimento público, venho solicitar, em nome Estado, precisa
autorização vossa para tomar iniciativa trasladação esta capital restos mortais insigne
brasileiro. Agradecerei deferência vossa anuente resposta. Saudações respeitosas. Borges
Medeiros”.

Dois dias após, dona Adelaide respondia, empolgada pela emoção, não só
manifestando aquiescência à ”piedosa iniciativa” do governo do Estado, como concitando “a
todos os leais amigos e correligionários de Silveira Martins a se esquecerem, diante de seus
despojos sagrados, das divisões partidárias, dando assim todo o brilho a essa
manifestação, que deve ser a expressão sincera da gratidão do povo rio-grandense”. Os
filhos, Carlos e José Júlio, telegrafaram igualmente a sua anuência, sendo que José Júlio,
biógrafo do Conselheiro, deu-se ao luxo de firmar-se como “..vosso correligionário.” Em
termos de marketing eleitoral, o lance de Borges de Medeiros não poderia ter melhor
resultado.

Efetuadas as eleições, que o candidato oficial venceu amplamente, o governo do


Estado, seja sob a presidência de Carlos Barboza, seja após o retorno de Borges em 1913,
não voltou a falar no traslado dos restos mortais.

Em verdade, o traslado só foi oficialmente determinado pelo governo da União,


através de um decreto de 1909, do Presidente Afonso Pena, havendo em 1917 a
autorização de um crédito para o custeio daquela remoção, só efetuada em 1920, sob o
governo de Epitácio Pessoa e o decidido apoio político da Oposição. Tanto que a chegada
dos restos mortais de Silveira Martins a Porto Alegre, em 29 de agosto de 1920, constituiu
um vibrante comício oposicionista, no qual discursaram vários federalistas, entre eles,
inflamado, o mesmo José Júlio que antes chamava Borges de “correligionário”. Partido
Republicano e governo estadual mantiveram distância de todas as celebrações. E o jornal
de oposição, “Última Hora”, salientou que a vibrante manifestação se fizera “sem os afagos
do oficialismo”.

Tudo leva a crer que a “piedosa iniciativa” de 1907 não passasse de matreiro
expediente para cindir os federalistas e afastá-los da frente coligada que apoiava a
candidatura de Fernando Abbott.
IV.

Outro episódio que põe em evidência a falta de firmeza e inteireza do caráter do


“Chimango” foi a entrevista que prestou à imprensa de Porto Alegre, depois de sua tardia
conversão ao catolicismo. Sirva-lhe de desculpa a avançada idade que já contava,
aproximando-se dos 98 anos com que veio a falecer. Nessa ocasião, afirmou ao repórter
que jamais fora positivista. Se com isso quis dizer que nunca aderira à Religião da
Humanidade, tudo bem! É certo que nunca foi comtista ortodoxo, daqueles seduzidos pelo
culto de Clotilde de Vaux. Mas afirmar que nunca foi positivista, quando essa preferência
ideológica ressalta dos próprios documentos públicos que assinava, como as mensagens
anuais à Assembléia dos Representantes, chega a ser irrisório. Seriam incontáveis os
documentos em que a sua filiação à filosofia positivista é manifestada e confessada sem
ressalvas. Limito-me à mensagem dirigida à Assembléia em 20-set./1914, quando
escreveu com todas as letras: “Alentadora confiança deve infundir a fé iluminada e
demonstrada do portentoso apóstolo positivista do Brasil, Sr. Teixeira Mendes, cuja
palavra evangelizadora e inexcedível merece o respeito e a meditação dos brasileiros.”
Tratava-se da pregação daquele pensador em favor do arbitramento como solução para
pôr termo ao conflito mundial que estava começando. Segue-se uma longa citação de um
texto de Teixeira Mendes, matéria evidentemente estranha ao conteúdo da mensagem
administrativa.

V.

Embora não se exija do estadista uma absoluta coerência ao longo da vida, a


virada no pensamento político de Borges de Medeiros a partir de 1932 e de seu exílio em
Pernambuco surpreende o observador mais tolerante com as oscilações de conduta e de
pensamento. E Ao longo de trinta anos de liderança política no Rio Grande do Sul,
inclusive 25 anos de chefia de um Poder Executivo quase ditatorial, Borges de Medeiros foi
um árduo defensor da constituição castilhista de 1891 e de todos os seus corolários. Na
elaboração das leis orgânicas dos municípios, qualquer concessão feita pelos conselhos
municipais ao regime parlamentar, era por ele severamente atalhada. O executivo forte,
autorizado amplamente a legislar, restando à Assembleia e aos conselhos apenas a
competência para editar o orçamento anual e as normas tributárias, era dogma
invulnerável que ele jamais cogitou de reformar. Mas, eis que, depois de preso pela
ditadura de Getúlio Vargas e exilado em Pernambuco, Borges de Medeiros desperta para
os atrativos do regime parlamentar e escreve, para surpresa geral, um projeto de
constituição federal, antecedido de um ensaio intitulado “O poder moderador na república
presidencial”. Este trabalho, quando reeditado pela Assembleia Legislativa do Rio Grande
do Sul em 1999, recebeu um notável prefácio de Paulo Brossard, conhecido paladino do
parlamentarismo, ressaltando as inovações propostas por Borges de Medeiros, tendentes a
ampliar os poderes e prerrogativas do Parlamento. Escreveu Brossard nesse prefácio que
“não é difícil encontrar no novo presidencialismo do ilustre rio-grandense, fortes e nítidas
aproximações com o sistema parlamentar”. E, mais adiante, na mesma exposição:
“Segundo o projeto de Borges de Medeiros o parlamento deixava de ser assembleia
meramente orçamentária, passando a exercer função legislativa”. O ilustre prefaciador,
que fora um adversário declarado e ferrenho da carta ultra-presidencialista de 1891,
acrescentou então: “Ao revelar as dimensões da transformação operada no espírito do
antigo Presidente do Estado, bastaria notar que em “O Poder Moderador na República
Presidencial” não aparece o nome de Augusto Comte; os moldes positivistas haviam-se
esvanecido e as novas correntes de pensamento, surgidas ou disseminadas com a grande
guerra ou depois dela, penetraram fortemente em seu espírito, quebrando os arquétipos
de sua formação intelectual”.

Não nos desagradam, quando honestamente declaradas e fundamentadas, as


mutações individuais do pensamento político. Mas, tendo em vista o passado de Borges de
Medeiros, como defensor extremado do presidencialismo, e suas responsabilidades na
própria história institucional do Rio Grande do Sul, a súbita conversão de 1932 bem que
exigiria maiores explicações ao público que o escutara e lhe obedecera durante trinta
anos. Desde a sedição de 1923, ainda corria o sangue dos defensores da carta de 1891,
das reeleições ilimitadas, dos superpoderes presidenciais, das prolongadas intervenções
nos municípios e das anêmicas competências da Assembléia dos Representantes. O que
fora sagrado e intocável até então, deixava de ser, em função de uma reviravolta nas
idéias do chefe? Seria isso justo e defensável ? Parece-nos que não.
WENCESLAU ESCOBAR, em seu livro “30 Anos de Ditadura Rio-Grandense”,
afirma que as vacilações e incoerências de Borges de Medeiros deram-lhe o epíteto
brejeiro de “Palanque de Banhado”, que seria do gosto de seus próprios correligionários.
À vista dos fatos que relatamos, parece-nos que o apelido se justificava.

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