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Palavras da Cidade

Maria Stella Bresciani (Organizadora)

eiBED
ESlCüVniEHÉHE
Sü 19^30

Editora
da Universidade
IMwAjadi Fodnl do no ainú» do Sd
nrâr UNIVERSIDADE
FEDERAL DO RIO
Ví# GRANDE DO SUL

Reitora
Wrana Maria Panizzi
Vice-Reitor
e Pró-Reilor de Ensino
José Carlos Ferraz Hennemann
Pró-Reitor de Extensão
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Vice-Pró-Reitor de Extensão
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Nunes (bolsista) • Administração: José Pereira Brito Filho,
Laerte Balbinot Dias, Norival Hermeto Nunes Saucedo;
suporte administrativo: Ana Maria D'Andrea dos Santos, Erica
Fedatto,Jean Paulo da Silva Carvalho,João Batista de Souza
Dias e Marcelo Wagner Scheleck •Apoio: Idalina Louzada,
Laércio Fontoura.
Palavras Ja Cidade

Maria Stella Martins Bresciani


Organizadora
Jean-Charles Depaule
Christian Topalov
Horacio E. Caride
Maria Cristina da Silva Leme
Sandra Jatahy Pesavento
Gabriel Ramón J.
Célia Ferraz de Souza
José Tavares Correia de Lira
Maria Salete Kern Machado
Philip Gunn
Telma de Barros Correia
Paulo César Xatier Pereira
Lucrécia D'Alessio Ferrara
Hélène Ritière d'Arc
Ana Fernandes
Myriam Bahia Lopes

O Editora da Universidade
UnNmidxic FedeniJ do Rio GnrKlc do SiM
© dos autores
1- edição: 2001

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa: Carla M. Luzzatto


Projeto gráfico: Carla M. Luzzatto
Revisão: Nsyára Carvalho
Luciane Leipnitz
Editoração eletrônica: Cláudia Bittencourt

Apoio:
Centre National de Ia Recherche Scientifique ~ CNRS
Maison de Ias Sciences de rHomme - MSH
MOST/UNESCO
Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade - CIEC/Unicamp

P154 Palavras da cidade / organizado por Maria Stella Bresciani.


-Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. 76p.

1. Urbanização - Geografia social - América Latina. 1.


Bresciani, Maria Stella. 11. Título.

CDU911.2/.375.9

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto- CRB 10/1023


ISBN-85-7025-607-8
Agradecimentos

A UNESCO em seus escritórios de Paris e de Caracas proporcionou apoio


fundamental para a concretização do Seminário e a publicação desta coletânea
que foi academicamente acolhida pela Editora da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul;a Fundação de Amaro à Pesquisa do Rio Graiide do Sul(FAPER-
GS),a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e a
Faculdade de Arquitetura da Universidade de Buenos Aires também colabora
ram financeiramente.A FAU-USP cedeu espaço para as reuniões preparatórias
desse seminário; o PROPUR/GEDURB e o Programa de Pós-Graduação em
História da UFRGS ofereceram cobertura institucional para a realização do se
minário;os trabalhos de secretaria ficaram centralizados no Centi*o Interdiscipli-
nar de Estudos sobre a Cidade (CIEC-Unicamp),que proporcionou apoio insti
tucional e de secretaria à equipe por ser a sede da coordenação latino-america
na. Os trabalhos de organização científicaforam cumpridos conjuntamente por
Sandra Pesavento, Cristina Leme e Stella Bresciani.
Agradecimentos especiais aJean-Charles Depaule,representando a co
ordenação internacional do Programa "Les Mots de Ia Ville", e a Hélène Ri-
vière D'Arc, que partilha comigo a coordenação da equipe latino-america
na. A efetiva colaboração e participação deles foram de extrema importân
cia tanto intelectual como logística para toda a equipe.

Stella Bresciani
Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade (CIEC-Unicamp)
Programa "Les Mots de Ia Ville/City Words/Palabras de Ia cuidad"
MOST-UNESCO e CNRS/MMSH/MSH
Sumário

Apresentação /9
StcIIa Brcsciani
A cidade através de suas pala\Tas/ 17
Jean-Charles Dcpaule e Christian Topalov

A Linguagem Técnica Ordenando a Cidade


o polvo, a mancha e a megalópole.
O urbanismo como representação, Buenos Aires, 1927-1989/41
Horacio E. Caride
Urbanismo: a formação de um conhecimento
e de uma atuação profissional/ 77
Maria Cristina da Silva Leme

A Cidade Dividida e Hierarquizada


Era uma vez o beco: origens de um mau lugar / 97
Sandra Jatahy Pesavento
Com a pátria nas paredes. A regularização
da nomenclatura urbana de Lima (I86I)/ 121
Gabriel Ramón J.
O sentido das palavras nas ruas da cidade.
Entre as práticas populares e o poder do Estado (ou público)/ 137
Célia Ferraz de Souza
Freguesias morais e geometria do espaço urbano.
O léxico das divisões e a história da cidade do Recife / 157
José Tavares Correia de Lira
o Léxico DOS Conceitos e o Plano do /maginário
o imaginário urbano/213
Maria Salete Kern Machado
o urbanismo: a medicina e a biologia nas palavras e imagens da cidade/ 227
Philíp Gunn e Telma de Barras Correia
Cidade: sobre a importância de novos meios de falar e de pensar as cidades/ 261
Paulo César Xavier Pereira
A construção do império/285
Lucrécia D'Alessio Ferrara

PALANDO a CIDADE:
Negociação,Consenso,Oposições e Contrastes
Linguagem internacional e técnica sobre a cidade: qual o consenso
com a linguagem popular? Exemplos nas cidades brasileiras e mexicanas/ 305
Hélène Rivière d*Arc
Consenso sobre a cidade? / 317
Ana Fernandes
Representações de uma ilha portuária/ 329
Mjriam Bahia Lopes
Melhoramentos entre intervenções
e projetos estéticos: São Paulo (1850-1950)/ 343
Stella Bresciani
Apresentação
Stella Bresciani

Esta coletânea reúne trabalhos apresentados no 1- Seminário Latino-


Americano do Programa Internacional "Les Mots de Ia Ville". O encontro
realizado nas dependências da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,com
apoio logístico do PROPUR,da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
entre 1 e 3 de setembro de 1999, congregou pesquisadores da Argentina e
do Peru,além dos brasileiros.
A decisão de realizar o seminário partiu da equipe latino-americana do
Programa sediado na França e coordenado por Jean-Charles Depaule da
Maison Méditerranéenne des Sciences de FHomme (MMSH) e Christian
Topalov do GDR (grupo de pesquisa) Villes do Centre National de Ia Re-
cherche Scientifique(CNRS)e da Maison des Sciences de FHomme(MSH),
e contou com o apoio do Programa MOST da UNESCO.
A partir dos bons resultados obtidos no 2° Seminário Internacional do
Programa - Paris, dezembro de 1997 -, tomamos a decisão de avançar em
duas direçõesjá delineadas de maneira bastante clara como problemáticas
comuns aos trabalhos apresentados.
A primeira delas privilegiava pesquisas que visassem ampliar o levanta
mento das palavras que formam o léxico dos especialistas em intervenções
urbanas,de modo a dar lugar a aproximações comparativas entre formas de
se ver, pensar e propor intervenções em diferentes cidades do mesmo país
ou de países diferentes, tanto em um determinado momento como no de
correr de üm período de tempo maior. Convencidos da existência de pon
tos de convergência nos trabalhos de parte significativa dos pesquisadores
envolvidos, pensamos ser possível aproximações elucidativas de palavras uti
lizadas e ações previstas nas diversas experiências de intervenções nas cida
des propostas e/ou executadas, principalmente nos últimos dois séculos.
Nosso interesse ficava na possibilidade de recortarmos a ocorrência de pala
vras iguais utilizadas em contextos e lugares diversos e de palavras diferentes
apontando para um mesmo tipo de intervenção em momentos distanciados
e/ou lugares diversos.
A segunda direção apontada nos trabalhos designava a importância de
prosseguirmos no levantamento de palavras que compõem a linguagem da
exclusão e da esügmaüzação social,já que o problema da segregação espacial,
por exemplo, apresenta-se como elemento crucial para se compreender a
hierarquização social visível e legível na trama urbana das cidades contempo
râneas. Formas extremas de estigmatização e exclusão, tais como as favelas, os
cortiços e*os moradores de rua,ou,ainda, maneiras de nomear ruas e áreas da
cidade de modo pejorativo,atingindo a população que nelas vive,foram defi
nidas comó temas importantes para a elaboração de um léxico da estígmatiza-
ção social em diversas cidades da América Latina,léxico esse que impõe/ex
põe uma hierarquia e compõe a trama das relações sociais nesses núcleos ur
banos. Define,em suma,cidadãos de primeira e de segunda categoria.
A importância de avançarmos nesses campos temáticos foi amplamen
te confirmada pela palestra de abertura de Jean-Charles Depaule. Em sua
fala,ele apresentou em largos traços a proposta geral do Programa "Les Mots
de Ia Ville",ou seja, a maneira pela qual as linhas temáticas foram pensadas
de modo a formar a base comum de estudos interdisciplinares em várias ci
dades de diversos países. A forma pela qual se nomeiam as cidades,suas di
visões administrativas,suas rucis,logradouros,bairros; as questões e conflitos
relativos à cidadania e à formação de territórios de exclusão,as formas urba
nas, ou seja, as dinâmicas pelas quais as cidades se organizam,se estabele
cem as escalas espaciais, os índices de avaliação e as marcas identitárias.
Além desse balanço inicial, Depaule descortinou possibilidades de am
pliar, estender e aprofundar as diretrizes de pesquisa,ilustrando as propos
tas com exemplos retirados de seu próprio trabalho sobre cidades árabes de

10
colonização francesa,acompanhando o modo pelo qual palavras do vocabu
lário da metrópole foram incorporadas com ou sem modificações e/ou adap
tações pela fala especializada dos profissionais responsáveis por projetos de
intervenção urbana e até pela população em geral. Com esses exemplos,
Depaule sugeriu o estudo do processo, no qual palavras de uma língua, in
corporadas pela linguagem administrativa de outra, podem sofrer des\áo de
sentido e causar freqüentemente mal-entendidos.
Um segundo aspecto apontado refere-se à questão da importação,ou
até da imposição de palavras ou de conceitos de uma língua à outra, inde
pendentemente de uma relação metrópole-colônia,com freqüência vincu
lada á hegemonia de determinadas linhagens teóricas no registro técnico e
especializado, num processo que,tomado em uma perspectiva histórica, mos
tra como os conceitos são ressemantizados, adaptados. Sugeriu, a título de
campo a ser explorado,as áreas do Mediterrâneo e da América Latina,con
sideradas excelentes laboratórios para estudos comparativos. Poder-se-ia di
zer em linguagem poética que se trata de acompanhar as "aventuras das
palavras", os percursos por elas percorridos em seus deslocamentos de uma
língua para outra, de um país para outro de mesma língua.
Um último aspecto interessante a orientar indagações se deteria na ve
rificação de como nem sempre as palavras inovadoras são formuladas no âm
bito da linguagem especializada dos planificadores, surgindo muitas vezes
de expressões cotidianas da língua vemacular. Sublinhou assim a importân
cia do aspecto comparativo e da perspectiva histórica no estudo da utiliza
ção de uma palavra através do tempo em um mesmo registro lingüístico ou
migrando de uma língua para outra,e as trocas que ocorrem no interior de
uma mesma língua entre registros diferentes de linguagem.

LINHAS TEMÁTICAS

Obedecendo às diretrizes definidas — o levantamento das palavras que


definem o léxico dos especialistas em intervenções urbanas e o das que for
mam a linguagem da exclusão e da estigmatização social-,os trabalhos apre
sentados compõem importante contribuição para um inventário comparativo
entre cidades latino-americanas. Há um levantamento estratégico dos termos
usados pelos especialistas e pela população para falar de suas cidades,das divi-

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sões sociais e territoriais, dos sistemas de hierarquização e expansão da rede
urbana,e para se medir as consideráveis distâncias e mesmo distorções entre
as políticas, planos e projetos de ordenação e a expansão efetiva das cidades.
Os textos vinculados ao primeiro tema — A linguagem dos especialistas e as
políticas urbanas na América Latina — mostram a oportunidade especial de
termos um conjunto de estudos que permite pensar e discutir asformas como
nos últimos dois séculos as cidades latino-americanas foram encaradas como
objeto de observação constante e sistemática pelos profissionais "especialis
tas" em intervenção urbana, isto é, engenheiros e médicos sanitaristas, en
genheiros civis, arquitetos e urbanistas, bem como os resultados de seus es
tudos, apresentados na forma de relatórios, planos de melhoramentos, pro
jetos urbanísticos e planejamento regional,implementados ou não pelas au
toridades governamentais de vários níveis. Destacam-se como aspecto a ser
acompanhando e avaliado os tratamentos similares dados a questões técni
cas da intervenção em diferentes cidades brasileiras e na capital argentina,
Buenos Aires,a despeito da utilização de palavras e termos técnicos com fre
qüência não coincidentes nas duas línguas, portuguesa e espanhola. Verifi-
cam-se pontos em comum nas práticas de intervenção, tais como,a mesma
intenção de segregação espacial da população de baixa renda, subjacente
aos planos de "zoning" e especialização de bairros pelo tipo de ocupação.
Também é marcante a relação entre planos e projetos de ordenação da ex
pansão das cidades e a forma como na prática o crescimento se deu "desor
denado",fora dos parâmetros estabelecidos. Destaque particular para os lo-
teamentos clandestinos,a ocupação pelas "favelas" e a persistência de man
chas de degradação nos centros históricos. Essa relação entre a cidade legal
e a cidade ilegal ou entre a cidade ordenada segundo princípios urbanísti
cos e a cidade irregular, porque "espontânea","anárquica",constitui um dos
problemas mais evidentes nas cidades analisadas, tanto no Brasil como na
Argentina ou México. Nesse sentido, pode-se concluir a incapacidade ope-
ratória das políticas públicas, ou ao menos de parte delas, e a maneira pela
qual expressiva parte da população de nível de renda mais baixo vem sendo
historicamente excluída do conforto mínimo proporcionado pelos equipa
mentos urbanos, a infra-estrutura básica dos sistemas de abastecimento de
água,energia elétrica e de coleta de esgotos, morando em loteamentos clan
destinos e em formas precárias de habitações.

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o segundo eixo temático - A linguagem da exclusão e da estigmatização
social nas cidades latino-americanas-avalia a maneira como determinados ter
mos,como"beco"e"mocambos",foram ganhando conotação negativa a partir
do crescimento das cidades, de sua importância e/ou de avaliações médico-
sanitárias. Também acompanha criticamente a substituição de nomes de ruas
e demais logradouros públicos, cujas designações originais relacionavam-se
a seus usos (Largo do Pelourinho, Largo dos Curros,Praça do Correio etc.)
e a seus moradores e suas profissões (Beco dos Pecados Mortais em Porto
Alegre e rua das Casinhas em São Paulo, designando ambos o território da
prostituição, acrescido do comércio de alimentos na capital paulista). Essas *
designações desaparecem para dar lugar a nomes de personagens do cená
rio político ou a profissionais ilustres dessas comunidades,prática generali
zada nas grandes cidades latino-americanas a partir da segunda metade do
século XIX,personagens essas que,com o passar do tempo, muitas vezes se
tornam meros"nomes próprios" despidos de sua importância circunstanci
al. Trata-se pois de pensar o quanto a institucionalização das denominações
de territórios, ruas e demais logradouros destroem os liames de identifica
ção dos habitantes com seu "lugar" na cidade, descaracterizando bairros e
ruas,desfazendo os suportes subjetivos da memória da população local e da
identidade coletiva de um determinado território urbano.
A apresentação dos textos em quatro sessões de trabalho obedeceu a
afinidades temáticas, estabelecendo também a seqüência de sua apresenta
ção na coletânea. Por razões diversas, nem todos os trabalhos apresentados
constam neste livro; serão publicados,contudo,em uma segunda coletânea
que reunirá as contribuições dos pesquisadores latino-americanos ao 2° Se
minário Internacional de dezembro de 1997,em Paris.

A linguagem técnica ordenando a cidade


Os textos apresentados na primeira sessão trataram de forma diversa,
mas convergente,a maneira como a linguagem dos especialistas da cidade
define e marca momentos históricos de cidades e/ou países diferentes. Po
demos enfatizar alguns dos pontos importantes das apresentações. A iden
tificação de um repertório de palavras que marcam,no decurso de um largo
tempo histórico, palavras-chave que persistem no vocabulário especializa
do e a maneira como as metáforas se insinuam nos discursos sobre as cida-

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des constitui denominador comum dos textos de Oscar Caride e Cristina
Leme. Durante um longo período que se estende de meados do século
XIX até as duas primeiras décadas do XX, a relação que se dá entre as
metáforas funcionais e as figurações, que podem ser de duas ordens,for
mal e dimensional,e a utilização dessas metáforas para estruturar os argu
mentos de convencimento de políticos e/ou administradores, bem como
da população leiga constituiu objeto privilegiado de considerações. Um
destaque especial fica com o progressivo desaparecimento das metáforas e
sua substituição por representações abstratas e esquemáticas que terminam
por apagar de forma definitiva a imagem sensível da cidade,fazendo com
que o desenhista ceda lugar ao "desenhador" urbano,tal como nos mostra
Caride. A importância estratégica de se acompanhar as palavras que for
mam o campo do conhecimento especializado sobre as cidades e a com
plexa e ambígua partilha de certas palavras, às quais se atribui significados
diferentes,inserindo-as em campos conceituais também diversos,foi o as
pecto mais desenvolvido por Cristina Leme.

A cidade dividida e hierarquizada


Na segunda sessão,foram apresentados trabalhos de importância es
tratégica para a compreensão da linguagem da exclusão social, da cres
cente conotação negativa de certas palavras em uma trajetória paralela a
da degradação dos espaços físicos aos quais correspondem,do apagamen-
to da memória das denominações tradicionais e populares de ruas e lo
gradouros públicos. As cidades pesquisadas - Porto Alegre e Recife no
Brasil, Lima no Peru, — compuseram um quadro conceituai onde pala
vras como beco,freguesia,favela, entre outras,sugerem e às vezes demar
cam a geometria da malha urbana,conferindo valor moral e social a esses
recortes espaciais. Assim, a relação entre designações e atribuição de va
lores negativos conhece, também,a relação inversa de reversão dos atri
butos pejorativos por identidades afirmativas de determinados espaços da
cidade, caso de favelas que indicam a possibilidade de apropriação afir
mativa de um território por parcela da população de baixa renda. A rela
ção entre o crescimento das cidades e a maior regulamentação do terre
no urbano,a forma pela qual as mudanças políticas significativas podem
alterar denominações de longa permanência e de uso corrente, substi-

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tuindo palavras de raiz vernacular por nomes de personagens políticas
do momento foi objeto de indagações para Célia Ferraz. Também Gabri
el Ramon indica intenções não menos políticas na idealização de um pas
sado remoto construído sobre o mito legendário do incaísmo peruano.
Este também o cerne do processo descrito por José Lira perseguindo as
alterações de sentido em noções de uso de longa duração a partir da mo
dificação da perspectiva oficial para se ordenar as divisões administrati
vas e outras formas de delimitar os espaços urbanos. Sandra Pesavento se
detém na dimensão simbólica da denominação de lugares que têm seu
significado degradado quando deixam de compor uma característica téc
nica do traçado urbano e tornam-se estigmatizados pelas características
de sua ocupação "espontânea" pela população de baixa renda.

O léxico dos conceitos e o plano do imaginário


O núcleo temático dos textos da terceira sessão focaliza a correspon
dência entre as palavras e as imagens textuais das cidades por elas elabora
das, seja nos registros de teor científico, técnico ou literário. Assim, pala
vras tais como progresso apresentam sempre uma conotação positiva e pa
lavras relacionadas à pobreza remetem de maneira sistemática para uma
avaliação negativa do que se considera a face obscura, degradada e degra
dante da cidade, enquadrado como "fato" que deve ser compreendido,
desvendado. O texto de Telma Correia e Philip Gunn transita pela trans
ferência e/ou apropriação de metáforas biológicas e da medicina para o
vocabulário dos especialistas em intervenções urbanas- arquitetos e urba^
nistas. Paulo César Xavier Pereira sugere a personificação ou coisificação
da palavra cidade em um regime de substituição por outras, entre elas,
sociedade, e tanto ele como Maria Salete Kern Machado trazem à tona a
ampla rede de trocas no mercado de metáforas freqüentado tanto por
especialistas como pela população em geral. O trabalho de Lucrécia
D'Aléssio correlaciona palavras e o imaginário das cidades,indicando a sig
nificação estratégica dos empréstimos das linguagens política e literária em
sua construção de uma identidade nacional concedidos à linguagem téc
nica para a produção de uma imagem - linguagem de uma cidade, con
cretizada em projetos que propõem sua transformação.

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Falando a cidade: negociação, consenso, aposições e contrastes
Os textos apresentados na quarta sessão se detêm em registros do modo
diferenciado de falar a cidade a partir de pontos de vista diversos, porém
com o objetivo comum de obter a negociação, o consenso e,em alguns ca-
sos-limite, as oposições de entendimento ou mal-entendidos na leitura de
propostas de ação e de intervenção. Os trabalhos recortam períodos diver
sos dos séculos XIX e XX e o momento atual, e em cidades tão diferentes
como. Cidade do México e Guadalajara no México,Buenos Aires na Argen
tina, Recife, Salvador,Vitória,São Paulo no Brasil. Ana Fernandes e Hélène
Riviére D'Arc destacam palavras que compõem o vocabulário de acesso não
regulamentar do solo — invasão em Recife e Salvador, colônia irregular na
Cidade do México e Guadalajara — e a não coincidência obrigatória entre o
tempo social,o político e as alterações no uso das palavras-chave.Termos como
centro e periferia, plano e planejamento,estado-providência ou do bem-es
tar social, human urban settlement e invasão indicam momentos importantes
de particularização das denominações relacionadas a determinadas agendas
políticas nacionais, tal como contemporaneamente,a palavra ecologia fun
da um vocabulário de consenso confrontado com uma fragmentação urba
na radical. Ainda no domínio das palavras de uso consensual. Stella Brescia-
ni acompanha o uso da palavra"melhoramentos",demonstrando sua longa
permanência e deslocamento entre campos conceituais diferentes, o que
lhe conferiu a condição de metáfora sempre associada a intervenções avalia
das positivamente, mesmo quando subordinada a ou substituída por concei
tos mais precisos,como o de "urbanismo". No campo das oposições,enten
dimentos diversificados e por vezes contraditórios, Myriam Bahia Lopes mostra
em seu texto a forma pela qual a cidade de Vitória foi diferentemente ava
liada por técnicos especializados em sua transformação numa cidade portuá
ria, em contraposições de imagens e planos conflitantes.

16
£ra uma vez o beco:
origens de um mau lugar
Sandra Jatahy Pesavento

Beco: rua estreita, geralmente sem saída.


Beco sem saída:situação difícil.
{Enciclopédia LeUo Universal)

Beco.[Talvez do lat. via,'via, caminho,rua',+ um suf. dim,-eco]


S.m. 1. Rua estreita e curta, geralmente fechada num extremo.
2. Bras. CE.Esquina.
Beco sem saída. 1. Dificuldade insuperável.
2. Stuação muito embaraçosa;grande aperto ou apertura.
{Novo Dicionário Aurélio da LínguaPortuguesa)

O verbete enuncia duas acepções: a espacial, topográfica, que define o


traçado de um tipo de rua, de dimensão acanhada e bloqueada numa extre
midade,e o significado complementar que se apresenta problemático e pejo
rativo, apontando para uma condição que extrapola a demarcação espacial.
Porto Alegre,a"cidade" nascida na metade do século XVIII,à beira do
Guaíba,como um assentamento provisório de colonos açorianos nas terras
de sesmaria deJerônimo de Ornellas,já apresentava, na metade do seguin
te século, uma profusão de becos.

Sandra Jatahy Pesavento. Historiadora - Departamento de História/UFRGS (Brasil).

97
Estes possuíam nomes curiosos e pitorescos, a lembrar socialidades, per
sonagens e práticas antigas que tinham lugar numa cidade pequena,quase
aldeia, da qual não mais se pode ter uma idéia precisa de como foi,salvo atra
vés da narrativa historiográfica, que recupera para o presente a cidade do
passado.
Do Beco do Céu ao dos Pecados Mortais, do Beco do Poço ao Beco do
Mijo, do Beco do Fanha ao Beco do Oitavo, eles fazem parte do imaginário de
uma cidade que não mais os possui no seu espaço atual. Eles são traços do passado
que desapareceram, mas que comparecem, de forma recorrente, nos docu
mentos que chegaram até nós, a demonstrar que são tão antigos quanto as
primeiras ruas, traçadas no século XVIII por um certo capitão Montanha.
O que representavam os becos nesse momento recuado, quanto ao as
pecto topográfico, simbólico e de ocupação social? Eram eles as tais vicias
escuras e estreitas, teatro de práticas excusas, como o registro lingüístico
parecia indicar?
'Um século depois, na virada do século XIX para o século XX,Porto Ale
gre assistiu, através de seusjornais, a uma verdadeira "guerra aos becos",as
sociados estes com a desordem,a violência e o crime e tomados como sinô
nimo de atraso urbano numa cidade que almejava se modernizar.
Nesse momento de fim de século, o beco foi identificado como o redu
to das socialidades condenadas,era um espaço maldito da cidade,freqüen
tado pelos "turbulentos" da urbe. A situação se definia tanto mais grave por
que tais espaços estigmatizados se achavam encravados no centro da cidade,
que se encontrava em processo de renovação e saneamento, tanto técnico
quanto moral. Verdadeiros "lugares de enclave", eles ameaçavam a ordem,
pois expunham, pela contigüidade inevitável e indesejável, o mau lado da
urbe. Para os cidadãos da Porto Alegre ordenada e disciplinada que viviam
no centro, o "pecado" morava ao lado. ^
A "guerra dos becos" culminaria, na década de%), com uma série de
medidas públicas de intervenção que, redesenhando a cidade, apagariam
fisicamente do espaço urbano a sua presença.
Nossa intenção é remontar às origens desse espaço de enclave no cen
tro da cidade para recuperar o processo de significação do espaço. Ou,em
outras palavras, resgatar quando o beco passa a ter conotação pejorativa, in
gressando na linguagem da estigmatização urbana.
Sabemos que a palavra, na sua função nominalista de identificar os da
dos do real, é também uma forma de qualificar o mundo,dando sentido e
pautando as ações sociais. Este processo de outorga de significado é, pois,
criador de realidade e instaurador da coerência que organiza a percepção
do mundo.E atividade humana por excelência e,como tal, social e históri
ca. Tais considerações implicam admitir que uma mesma palavra pode com
portar significados diferentes conforme o momento da sua enunciação.
E na busca destas significações da palavi^a que,a partir do caso dos be
cos da velha Porto Alegre, pretendemos acompanhar este processo de trzms-
formação das "palavras da cidade".
Voltemos,pois,à Porto Alegre do passado,aquela que foi a capital do Con
tinente de São Pedro,em 1773,antes de ser vila ou cidade,já no século XIX.
A cidade de hoje, metrópole moderna,apagou o registro dos becos no
traçado urbano,através de uma série de intervenções continuadas em nome
do progresso, mas foram deixados registros, sob a forma de imagens e dis
cursos, que chegaram até nós.
Estás representações,sejam figurativas,sejam do domínio do léxico ou
do discurso, trazem,em si, significados de um outro tempo,que deram co
erência a lugares,"lugares" estes que definimos como "espaços qualificados"
no contexto urbano.
Tomemos como ponto de partida a conotação atribuída à palavra beco
que nos apresentam os dicionários e enciclopédias,tal como foi anteriormente
enunciado,e que traduzem, por sua vez, classificações topográficas explíci
tas e apreciações valorativas de depreciação. Partamos,em seguida,na bus
ca das plantas mais antigas que se conhece de Porto Alegre, para que ali pos
samos descobrir os becos e então cruzemos estes registros com as primeiras
narrativas que falam da cidade.
O primeiro traçado teria sido feito em 1772, pelo capitão engenheiro
AlexandreJosé Montanha,incumbido que fora pelo governador para traçar
as primeiras ruas e delimitar as meias-datas de terra a serem distribuídas aos
açorianos que ocupavam a beira do Guaíba,já há cerca de 20 anos.
Desta tarefa resultaram as três ruas paralelas que acompanham o pro
longamento da península no sentido leste-oeste-ruas da Praia (Andradas),
do Cotovelo ou da Ponte (Riachuelo) e Formosa ou da Igreja (Duque de
Caxias).

99
Desse traçado do capitão Montanha não se possui a provável planta
que o orientou,e as representações imaginadas que dela se fizeram em anos
posteriores — como a de Paranhos Antunes, em 1940,' ou a de Clóvis Oli
veira, em 1987 (p.62),já assinalam, ao lado das primeiras ruas, a presença
do Beco dos Guaranis (rua General Vasco Alves), na ponta da península.
A representação incorpora, no caso, uma denominação ex-post, pois tal beco
deveu o seu nome ao fato de lá estarem "aquartelados os soldados guaranis
do regimento da Cavalaria Militar, mandado organizar nas Missões por Dom
Diogo de Souza"(Franco, 1988, p.414), que esteve à testa do Rio Grande
de 1809 a 1914. O Quartel dos Guaranis,como foi chamado,ocupou o lugar
da antiga Casa da Pólvora, o velho Arsenal construído em 1774. Seria este,
talvez, um dos mais antigos becos da nascente Porto Alegre?
Um documento de 1804,do sargento-mor Domingos Marques Fernan
des (1961, m.l5,p.37-38),fornece um panorama do traçado urbano de Porto
Alegre: às três ruas paralelas mencionadas — da Praia, do Cotovelo e Formo
sa — acrescentam-se quatro transversais,identificadas como "largas, limpas e
feitas à linha com as sobreditas": a Rua de Bragança (Marechal Floriano),a
Rua do Ouvidor (General Câmara),a Rua Clara (João Manoel) e a Rua das
Virtudes (Bento Martins). Ou seja, o texto se refere às mesmas ruas que as
"reconstituições" da suposta planta do capitão Montanha apresentam.
Contando apenas com sete ruas com edificações, a Porto Alegre de en
tão, com suas 4.600 almas, era um burgo bastante modesto. O documento
fala que "o desenho público rompia outras tantas ruas" (p.37-38), mas que
ainda não tinham prédios ou moradores,o que leva a pensar na Rua do Ar
voredo e da Varzinha,que também comparecem nas plantas que reconstitu
em a cidade na época de seu primeiro traçado.
Temos,com isso, o exíguo perímetro urbano da época, tal como deve
ria se apresentar na outra virada de século.
As plantas posteriores que retraçam o desenho de Montanha mostram
ainda a referência a um Portão, na proximidade do qual os Termos da Vere-

'Em 1940, por ocasião do III Congresso Sul-Rio-Grandense de História e Geografia, o histori
ador Tupy Caldas apresentou uma planta,supostamente de fins do século XVIII,que teria sido
"imaginada" por ele, segundo Riopardense de Macedo, num "esforço do autor em reconsti
tuir o traçado naquela época pela localização da casa dos moradores" (citado por Macedo,
1993, p.27).

100
ança da mesma época registram os pedidos de demarcação de terrenos(27/
2/1804, Anais, 1986, v.ll). Portão este que, reiteradamente,é mencionado
na documentação oficial, numa confirmação de que a área urbana tinha, na
quele ponto, uma delimitação precisa entre o "dentro" e o "fora".
A primeira referência escrita a um beco, que encontramos nesses do
cumentos antigos da Câmara, data de 1804,solicitando termo de proprie
dade de terrenos no Beco do João Inácio (20/3/1804, Anais, 1986, v.II),
nome pelo qual era conhecida a Rua do Ouvidor, aquelajá citada por Do
mingos Fernandes.
Aqui nos deparamos com uma pista interessante: todas aquelas ruas
transversais às três paralelas principais citadas por Fernandes passam a com
parecer em outros documentos,com a designação de becos,se não em toda
a sua extensão, pelo menos em alguns de seus trechos: na sua parte próxima
á beira do Guaíba,a Rua Clara era conhecida como Beco dos Marinheiros,e
a Rua das Virtudes — também conhecida como do Arrolo —,no trecho entre
a Rua da Praia e a do Cotovelo, era chamada como sendo o Beco dos Sete
Pecados Mortais! (Coruja, 1983). Parece que as possíveis "virtudes" de tre
cho mais elevado da rua foram,provavelmente,vencidas pelos"pecados" das
moradoras de má fama das sete casinhas que lá havia, na parte mais baixa
daquela rua, ajulgar pela denominação que se impôs...
Já se instala, portanto, desde os primórdios da cidade, uma dupla de
nominação para as suas ruas: algumas transversais lêin uma designação alter
nativa de becos... Mas,recorrendo ainda ao texto do capitão-mor Domingos
Fernandes,de 1804,tais becos eram "largos","limpos" e haviam sido "traça
dos pelo poder público" em perpendicular com as ruas principais.
Tais espaços se repetem nos traçados subseqüentes que restaram da ve
lha Porto Alegre,sejam das plantas parciais, rascunhos ou plantas mais ela
boradas,onde os becos começam a marcar presença.
Na planta feita pelo majorJacinto Desidério Copy,com vistas a instalar
um mercado de peixes na Praça do Paraíso (Macedo, 1999, p.98), compa
rece o Beco dos Ferreiros (Rua do Uruguai),junto à Casa da Ópera. Nesse
desenho, de 1815, o Beco dos Ferreiros aparece com uma largura aproxi
mada à da Rua de Bragança. Trata-se de uma representação gráfica esque-
mática, mas cujo traçado não nos revela maior distinção,ao nível topográfi
co, entre uma rua e um beco.

101
No projeto de 1834, que retoma o plano da transferência das ativida
des comerciais da Praça da Quitanda para a do Paraíso (p.87), o Beco dos
Ferreirosjá aparece como Beco do Opera,ao lado do Beco dojosé [sic] Iná
cio (Rua do Ouvidor, atual General Câmara).
Igualmente, nesta proposta gráfica de 1834,os Becos dojosé Inácio e o
da Opera ostentam a mesma largura da Rua de Bragança. Comparando tais
becos — todos "ruas" transversais — com a Rua da Praia, eles são "ligeiramen
te" mais estreitos.
As representações posteriores feitas neste século do traçado original de
Montanha,por sua vez, colocam o Beco dos Guaranis com aproximadamen
te a mesma largura das demais ruas e sem obstrução de saída.
Continuando a leitura das plantas de Porto Alegre, o ano de 1833 nos
traz o desenho de Tito Lívio Zambecari,o revolucionário italiano que,às vés
peras da Revolução Farroupilha, traça um desenho da cidade no qual os re
gistros atendem,fundamentalmente,a preocupações estratégicas e conspi-
ratórias: a identificação dos prédios públicos, os quartéis e o arsenal e as re
sidências das pessoas importantes da cidade. Nada de becos, e as represen
tações das transversais se igualam a das ruas paralelas, com exceção da Rua
da Praia (citado em Varella).
Na planta de 1837, elaborada pelo Império brasileiro por ocasião da
Revolução Farroupilha,a cidade aparece com uma densificação muito mai
or. A planta é minuciosa (Oliveira, 1987, p.112), mostrando o adensamento
urbano e o aumento das construções. Claramente assinalada está a delimita
ção da trincheiras, construídas por ocasião da Revolução Farroupilha, que
estabelece a demarcação entre a cidade intramuros — "a verdadeira cidade"
— e o que fica fora do recinto urbano. Os becos identificados são fenômeno
definidamente intra-urbano, centrais e de "enclave" dentro da cidade que
se concentra na península.
Na planta da autoria de L. P. Dias, elaborada em 1839 (p.115), e, por
tanto, ainda durante o período revolucionário, os becos voltam a ter a sua
aparição topográfica bem assinalada. Confirma-se,contudo,a tendência an
teriormente apontada. No seu traçado,os becos em pouco diferem das ruas,
pois apresentam largura similar e constituem elo de ligação entre duas vias,
o que elimina a sua identificação como "beco sem saída",fechado numa das
extremidades.

102
Ou seja, o que se registra nessa planta oficial é a não coincidência, no
traçado do desenho,de sua configuração gráfica com a sua definição espaci
al identificadora. Quer pela sua largura notadamente estreita, quer pela sua
obstrução em uma das pontas,caracterizando uma rua sem saída,o beco da
planta é representado tal como uma rua normal...
A planta de Porto Alegre de 1839 elenca e identifica a localização de
uma série deles: o Beco do Couto,o Beco da Misericórdia,o Beco do Leite,
do Coelho,do Fanha,da Fonte, da Ópera,do 3° Batalhão, do Firme, do Is
rael, do Barbosa, do Chico Pinto, do Carneiro. Todos eles pouca diferença
fazem das ruas com as quais se cruzam e compõem. Salvo aquelas três pri
meiras ruas paralelas,que se apresentam como mais longas e mais largas, todas
as demais ruas se parecem no seu traçado.
Na planta desenhada em 1853 por L. P. Dias (Macedo, 1973, p.l53),
que cobre uma parte da cidade de Porto Alegre,com vistas á realização de
melhoramentos na zona portuária desde a doca até o Beco do Barbosa, os
becos do Rosário e do Cordeiro aparecem como ruas,só um pouco mais es
treitas que as adjacentes.
A planta da cidade de 1862 não traz nomes de ruas ou becos, e sim de
equipamentos e edifícios públicos e particulares de maior vulto e expressão
na vida da cidade. As vias traçadas, tal como nas plantas anteriores, pouca
diferença apresentam,enquanto largura,com relação aos becos. Ou seja, há
até ruas mais estreitas que os becos na representação gráfica...
A planta de 1881,de Henrique Breton,repete a representação da plan
ta de 1862,não nominando ruas ou becos,tal como a de 1888,dejoão Cândi
doJaques,que inclui o perímetro urbano e os arraiais.^ Parece que tais plan
tas visam, mais do que a representação das ruas,a exibir o crescimento da ci
dade sob o aspecto de equipamentos e edificações. No caso,as de 1881 e 1888
já apresentam escolíis, estação telegráfica, estação de bondes,telégrafo etc.
Se as plantas se calam,ou,pelo menos,são pouco expressivas para iden
tificação dos becos, passemos àsfotos. Estas começam a aparecer no Estado a
partir da década de 60. Mas seria o beco "fotografável"? Ou,em outras pala
vras, haveria o interesse de eternizá-lo nesta nova maravilha do século, que
perenizava o instante e preservava o momento presente para quando elejá
fosse parte do passado?

'Uma reprodução e interpretação destas plantas se encontram em Souza (1977).

103
As pouquíssimas fotos de becos se revelam,contudo,interessantes e alta
mente significativas,nesta nossa busca de alteração de significados para os becos.
O Beco do Ópera (Pesavento, 1992, p.42) revela-se uma rua que, no
seu traçado, pouco se distingue das demais ruas adjacentes. Apresenta so
brados e casas baixas, assim como calçadas. Não parece estreito nem escuro.
O Beco do Oitavo (p.43) também não é estreito, e o Beco do Fanha tam
pouco parece sombrio. Tem calçada e iluminação, e suas construções são
igualmente sobrados ou casas baixas (p.44). Da mesma forma, o Beco do
Garapa é calçado,tem passeio e numerosos sobrados.Sua largura não deixa
nada a desejar,se comparada esta foto com outras de ruas, na mesma época
(Pesavento, 1994, p.23). Uma tela de Pelichek^ nos mostra, no início do
século XIX,o famigerado Beco do Poço. Este sim, apesar da calçada, apre
senta um meio da rua desordenado e irregular e uma seqüência de casas
baixas que ladeiam um prédio alto, de dois andares. O Beco do Poço,contu
do, não é estreito e não dá a aparência de ser sombrio e apertado.
Também tais fotos não representam serem os becos obstruídos na sua
extremidade. Eles podem desembocar em ruas, perfazerem uma ou duas
quadras, mas não são uma viela.
Estas representações não proporcionam, pois,imagens que permitam
atribuir ao beco a conotação pejorativa de um "mau espaço" da cidade, tal
como referem osjornais da mesma época em que os becos estão sendo foto
grafados, na segunda metade do século XIX.
Abandonemos,contudo,as imagens dos becos e passemos aos textos. O
século XIX nos deixará crônicas e textos memorialísticos que nos falarão dos
becos daquela Porto Alegre do início do século.
Tais narrativas se apresentam como novos indícios que,cruzados com
as imagens, nos permitem resgatar os significados que, historicamente, pre
sidiram a designação daquele espaço da urbe nomeado como beco.
Retomemos as narrativas do início do século XIX,como a de Antônio
Alvares Pereira Coruja (1983), que viveu em Porto Alegre de 1806,ano de
seu nascimento, até 1837, quando se mudou para o Rio deJaneiro, cidade
de onde escreveu as suas crônicas memorialísticas na década de 1980. Trata-
se de uma narrativa ex-post, onde Coruja recompõe a sua vivência na cidade

' Beco do Poço, aquarela de Francis Pelichek.

104
através de um esforço evocativo, registrando o que vira ou o que não vira,
mas ouvira contar. As crônicas de Coruja são um precioso documento,que
"nos falará" de uma cidade do passado de acordo com as perguntas que nós,
do presente, fizermos ao seu texto.
E estas, no caso,começam pelas referências espaciais, para o que nosso
cronista/memorialista nos dá algumas pistas.
Com relação à localização dos becos,as numerosas referências de Coru
ja ajustam-se à planta da cidade. Os becos se localizam dentro do perímetro
urbano que, na época, praticamente acompanha o traçado das muralhas
construídas por ocasião da Revolução Farroupilha.'' A cidade se abrigava do*
Caminho Novo aos Moinhos de Vento,descendo daí até a altura da Rua da
Olaria, para daí prosseguir até a desembocadura do riacho.E dentro desse
perímetro e, mais particularmente, no adensamento em torno das artérias
principais do centro que os becos se localizavam. Eles são, pois,espaços cla
ramente encravados na zona onde se concentrava a maior parte da popula
ção da época,de cerca de 12 mil habitantes, população esta que compunha
o cenário urbano de então,com o seu comércio,suas pequenas profissões,
seus funcionários públicos,soldados, clero, escravos,autoridades.
Topograficamente,o que disünguiria o beco da rua?
Neste sentido, o texto de Coruja é muito rico. Ele nos fala, por exem
plo,que o Beco da Rua Clara,ou Beco dos Marinheiros,surgira em "terreno
quase devoluto",composto por"marachão e entulhos"(p.98),enquanto que,
no Beco do Forno,era possível ver este equipamento que dera nome ao beco
"meio a espinhos"(p.l02). Da mesma forma, o Beco do Trem se originara
em meio a um terreno devoluto entre as Ruas de Bragança e do Rosário
(p.l04), tal como o Beco do Barbosa (p.l20).
As referências apontam para o fato de que,entre as ruas principais,aber
tas pelo poder público ou mesmo por particulares, restavam terrenos vagos,
sem proprietário aparente,os quais iam sendo, paulatinamente,ocupados e
apropriados pela população. Parece, pois, que os becos se originam de uma
ocupação "espontânea" ou "orgânica" da cidade que se adensa e espraia.
Neste sentido, são também iniciativas que se tomam fora da norma ou da
regra. Se observarmos a planta da cidade,constatamos que eles são,em ge-
Livro de Registro das Posturas Municipais de 1829 até 1888. Arquivo Histórico de Porto Ale
gre. (Manuscrito.)

105
ral,situados de forma transversal, em perpendicular e entrecruzando-se com
as ruas "oficiais", traçadas em paralelo ao longo da península. São, portanto,
em sua maioria,"descida" ou "subida" com relação ao espigão central que
constitui a "cidade alta". Como diria Coruja, o Beco da Fonte ou doJaques
era "estreito" e "ladeirento".
A confirmar esta conformação, o beco recebe a denominação equiva
lente à travessa, como as do Rosário e do Arco da Velha (p.l05), a indicar
sua posição secundária em relação às ruas que corta e com as quais se liga.
Uma dimensão menor com relação às ruas também se assinala no texto
de Coruja. O Beco da Barriga é definido como "estreito e curto" (p.ll4),o
já citado Beco doJaques também como estreito, tal como o do Cordeiro,que
é chamado de "atalho" (p.ll9). Mas, paradoxalmente, a conotação da lar
gura estreita da via, que parece ser individualizadora do beco, é negada em
certos casos. O Beco do Firme, por exemplo,é referido como sendo o "lar
go"onde os africanos se reuniam para as danças, no candombe da Mãe Rita!
(p.106). Ou ainda, lembrando as palavras do sargento-mor Domingos M.
Fernandes,as tais ruas transversais eram "largas e limpas" e também tinham
sido abertas pela iniciativa oficial... Como situar, pois, nesta diversidade de
identificações, os becos da velha Porto Alegre?
Por outro lado, a estreiteza do beco não coincide com a sua representa
ção gráfica, como se viu na plantas da época. Convenções técnicas de uma
representação topográfica feita, predominantemente, por engenheiros?
Nossa tentativa será seguir o caminho da indicação predominante no texto
e relativizar o traçado da planta,optando talvez pela força da palavra sobre a
imagem, mas sem endossar esta posição como definitiva, mesmo porque os
discursos não são coincidentes...
Em alguns casos. Coruja se refere a uma situação topográfica de um "beco
sem saída" ou "sem continuação"(p.104),como no caso do da Marcela,o que
se repetiria, talvez, na designação de "viela" para ojá citado Beco do Cordeiro.
Portanto, pela narrativa de Coruja,os becos estão integrados á urbe,en-
trecruzados com as ruas e se constituem, de forma geral, em vias públicas
secundárias e mais estreitas, resultantes,em sua maior parte, de uma "aber
tura""espontânea" e irregular.
No que diz respeito à ocupação dos becos. Coruja fala, naqueles inícios
do século XIX em que situa a sua narrativa, em "poucas casas de fraca apa-

106
rência", como no caso do Beco do Freitas (p.ll7). O Beco do Império, por
seu lado,só tinha casas nas suas duas esquinas com a Rua da Igreja (p.I20),
e, no Beco da Fonte ou do Jaques, as casas se contavam por unidades...
(p.120).Já o Beco do Rosário era descrito como "quase sem casas"(p.105).
Tal ocupação parece revelar uma atividade espontânea por parte de
gente sem recursos, que se localiza nos espaços entre as ruas, daí a sua rare-
fação ou aspecto modesto,com a recorrência ao termo "casinhas" para indi
car as habitações de seus moradores.
Raras notícias na Câmara da cidade apontam para ações de moradores
desses locais, que ora solicitam título de propriedade de um terreno, ora
licença para construir no beco. No primeiro caso registrado-Beco doJoão
Inácio (20/3/1804, Anais, 1986,v.II) -,tem-se a impressão de que a ocupa
ção do terreno precedia a demanda de posse e, no segundo caso, na área
fronteira à Rua/Beco dos Pecados Mortais,o postulante indicava quejá ocu
pava o terreno antes (11/11/1826, Anais, 1986,v.Il).
Entretanto, tais vazios pareciam estar,já na época de Coruja,sendo eli
minados, através de ações de alguns moradores da cidade que, possuindo
recursos, mandavam construir, às suas custas,séries de pequenas moradias,
supostamente para alugar. Desta forma, os becos, de vias espontâneas, em
abertura na cidade,convertiam-se em possibilidade de lucro e especulação
imobiliária para aqueles que dispunham de um pequeno capital para inves
tir e que aproveitavam a crescente demanda de casas na cidade. E ainda o
texto de Coruja que continua a nos fornecer indícios sobre esse processo
incipiente de "especulação" com respeito aos terrenos urbanos.
E o caso, por exemplo,no Beco do Freitas,onde Manoeljosé de Freitas
Travassos fizera edificar uma carreira de casas do lado dos números ímpares
(Coruja, 1983, p.117),ou das casinhas que se construíram no Beco do Cor
deiro (p.l 19),ou ainda dos prédios erguidos no Beco do Barbosa por Antô
nio Martins Barbosa,o conhecido Barbosa Mineiro, que ali também fizera
erguer dois moinhos de vento... (p.l20). Também no Beco do Fanha,Iná
cio Manoel Vieira fizera edificar diversos prédios,talvez os primeiros do beco
(p.l 12). Casinhas foram ainda erguidas pelo tenente-coronel Meirelles no
beco do mesmo nome... (p.l 17).
Ao longo do século,o custo dos terrenos iria subir muito,assinala Coru
ja. Referindo-se ao Caminho Novo,aberto na época de D.Diogo de Souza,

107
em 1812, nosso cronista diz que,"nesse tempo,grandes porções de terrenos
aí se vendiam por poucas doblas; hoje vendem-se os palmos a peso de ouro,
com grande ciúme da municipalidade"(Coruja, 1983, p.28). Coruja apon
ta com clareza que, no momento em que escreve — a década de 1980-,o
capital particular investira muito nos terrenos novos de expansão da zona
central, auferindo lucros que davam inveja ao poder público!
Não se trata ainda de uma grande especulação, mas de iniciativas que
têm lugar por parte daqueles que possuem um capital e que se dispõem a
investir diante de uma cidade em expansão. Os casos assinalados por Coruja
encontram eco na documentação oficial, que registra requerimentos ende
reçados á municipalidade por parte de proprietários,ora para construir"uma
morada de casas" na Rua da Misericórdia (13/12/1832, Anais, 1988, v.II),
ora para realizar "reparos", também em "moradas de casas que possuem,na
Praia do Riacho (9/6/1832, Anais, 1988, III). Deve ser assinalado que,nes
ses dois casos citados, as habitações se colocavam em áreas em expansão,na
franja urbana de então.
Os arquivos estão repletos de petições para demarcação, aforamento,
ocupação de terras devolutas, registros de propriedade e outras medidas que
mostram a dinâmica—um tanto anárquica,como assinala Costa Franco (1988,
p.36) — que caracterizou as concessões de terrenos urbanos por parte do
poder local... As transações imobiliárias, registradas no Primeiro Tabeliona-
to, dão conta de um processo de ocupação que mescla casas extremamente
humildes — como as primeiras,"cobertas de capim", de aspecto "modesto"
ou "acanhado" — como outras,"assobradadas",solarengas...
Por outro lado,como se dá,sob o aspecto da origem da propriedade da
terra, o loteamento da área central? Há que ter em conta, no início do povo
amento,as demarcações das meias-datas pelo capitão Montanha, mas a este
procedimento oficial se justapõem as aquisições e direitos de particulares
endinheirados com os terrenos considerados públicos.
O processo, contudo, não é estático, e tanto as demarcações originais
dos açorianos foram subdivididas,vendidas e trocadas de mão ao longo dos
anos,quanto as demais propriedades se abriram para um processo de lotea
mento do solo por anos subseqüentes,ao longo do século XIX.
Assim é que sabemos que as terras da Baronesa do Gravataí foram en
tregues ao município e loteadas a partir de 1879, dando origem ao Arraial

108
ou Areai da Baronesa, tal como outros grandes proprietários. O caso mais
típico é o da Chácara de Brigadeira, grande área ruraljunto à cidade, cuja
proprietária custou muito para ceder parte de seus terrenos para a cidade e
até para se adequar aos códigos de posturas municipais...(p.84-85).
Por vezes, era a Presidência da Província que cedia à Câmara terrenos
para venda e aforamento,como no caso da Praia do Arsenal (p.44). Por ou
tras,eram os proprietários de grandes extensões da área urbana os responsá
veis pelos empreendimentos loteadores,como é o caso de Eduardo d'Azevedo
e Souza Filho, na Floresta,os sucessores do Barão de Guaíba,em Santa Tereza,
ou Pacífico José de Menezes, no Menino Deus. Em especial, os arrabaldes-
então arraiais-surgiram do loteamento de chácaras e potreiros.
Mas a situação da qual falamos implica uma ocupação privada, progres
siva e de pequenas proporções,embora de efeitos importantes. São iniciati
vas particulares, de compra,construção de pequenas moradias ou subloca-
ção de habitações maiores em zonas absolutamente centrais, quejunto com
as principais ruas formavam como que uma grelha no centro da cidade.
Por exemplo,que interesse teria o abastado comerciante Lopo Gonçal
ves Bastos para requerer à Câmara,em 1869,solicitando alinhamento e al
tura das seleiras para construir no Beco do Oitavo?(22/12/1869,Anais, 1988,
v.lll). São traços como este que nos permitem levantar a idéia de que áreas
desvalorizadas da urbe se convertiam em possibilidade de investimento para
os capitalistas da praça.
Quando chegasse o final do século,este processo de intensificação do
loteamento urbano se intensificaria, vindo a ser exemplos a formação da
Companhia Territorial Porto-Alegrense,em 1895,responsável por lotear os
bairros de Navegantes e SãoJoão,ou as iniciativas do mesmo teor promovi
das pelo capitalista Manoel Py, no arrabalde da Auxiliadora.
Mas,na primeira metade do século,as ações isoladas e tímidas apenas co
meçavam a alertar-se para as condições que se ofereciam com a valorização do
solo urbano.Os becos,no caso,seriam uma destas áreíis de possível atuação.
Mas seriam os moradores do beco por essa época,como o texto parece
indicar, apenas pessoas humildes,de poucas posses?
Necessariamente não.É ainda Coruja a fonte inesgotável que,cruzada
com a representação gráfica das plantas,fornece ainda um pouco mais de
luz aos becos da Porto Alegre antiga...

109
Pois na boca do Beco do Fanha não ficava a casa do comerciante e con-
tratador dos dízimos Manoel Antônio da Magalhães,o autor do "Almanaque
da Vila de Porto AJegre", de 1808? E não fora justamente esta casa, altae
com muitasjanelas, a primeira envidraçada da cidade? (p.lOO).
Já o Beco do Pedro Mandinga registrava a presença de sobrados (p.lll),
entre os quais nada menos do que o do conde de Porto Alegre! Apesar de
curto e estreito, diz Coruja, pode-se ver que, entre seus moradores, havia
gente de estirpe, tal como no Beco do Bot'à Bica,também chamado de Beco
do Visconde de Castro, por causa de seu morador ilustre... (p.llO).
Ou seja, gente importante morava também nos becos,a demonstrar que
esses espaços da cidade, apesar de seu início irregular de ocupação e de sua
dimensão mais acanhada como via pública, abrigavam gente de diferente ex
tração social.
Condes e viscondes, parentes de políticos — fala Coruja de D. Úrsula, mo
radora do beco do mesmo nome,tia e avó de senadores...(p.21)-,comercian
tes e proprietários de chácaras eram personagens mais graduados que partilha
vam os becos com gente mais modesta, mas que, mesmo assim, tinha ofício e
posição na pequena cidade.Assim é que achamos um mestre de barco no Beco
da Marcela (p.l04),junto à pobre moradia da preta que deu nome ao beco;
um mascate no Beco do Trem (p.l05) e mesmo um tesoureiro da Irmandade
da Conceição no Beco do Firme,beirando a Várzea, próximo ao candombe da
Mãe Rita!(p.106). Oleiros no Beco da Olaria(como era de se esperar!),cordo-
eiros no beco do mesmo nome,donos de armazém e tavemeiros no Beco da
Garapa ou doJoão Inácio,que,por sua vez,fora Imperador do Divino na tradi
cional festa... (p.113). OJaques que dera nome ao beco,também chamado da
Fonte,era, por sua vez,escrivão dos ausentes (p.120),complementando,desta
forma,este espectro social que ia desde o pequeno funcionalismo público aos
mais diversos trabalhadores urbanos,compostos de artesãos dos vários ofícios,além
de proprietários de pequenos estabelecimentos comerciais.
A cidade se adensava,e, nesses espaços intermediários entre as ruas prin
cipais, coexistiam desníveis sociais no mesmo espaço.
A tendência geral, contudo,seria a de caracterizar que os moradores dos
becos compunham,preferencialmente,as camadas populares urbanas,sem que,
contudo,esta fosse a regra absoluta. O mais acertado seria, talvez, qualificar o
beco como um espaço coabitado por indivíduos de extrações sociais diversas.

110
Logo, o beco, nessa primeira metade do século XIX, não é definida
mente o espaço do pobre, nem a viela ou a rua sem saída, nem obrigatoria
mente estreito, nem exclusivamente composto de moradias modestas.
O beco podia ser habitado -e realmente o era- por cidadãos respon
sáveis... O testemunho de Coruja, morador dessa Porto Alegre do início do
século XIX,indica que os becos tinham moradores com profissão definida e
que não se confundiam com os personagens do mundo da contravenção.
Entretanto,a contigüidade social em tais espaços partilhados fazia com
que as desordens de alguns poucos becos fossem sentidas e vistas pelos mo
radores vizinhos. Mas deve ser assinalado que o beco não é, nessa fase, um
local maldito da urbe, um reduto do crime e da vagabundagem,como pos
teriormente será caraterizado e identificado no final do século XIX.Até esse
momento,as referências aos becos não denotam uma qualificação pejorati
va neste sentido estigmatizador.
É verdade que em alguns se registram tavemas, estes estabelecimentos
dedicados à venda de bebidas,que,no final do século,seriam designados como
"centros de perdição"...É o caso do Beco dos Marinheiros, por exemplo,que
tinha seu nome devido à proximidade do cais e à presença de embarcadiços,
freqüentadores de bodegas e frejes... (p.98). Relata Coruja que, nesse lugar,
"não se podia ir à noite por ser foco de desordem"(p.6I). Da mesma forma,
nosso cronista nos fala das moças de "vida alegre" do Beco do Fanha:"e entre
elas se contavam as Tagarras e as Potreiras e outras da mesma vida" (p.98).
Esse beco devia seu nome ao proprietário de uma taverna que lá existia
e que tinha a alcunha de Fanha (p.l 13). Ainda segundo Coruja, esta taver
na tinha uma outra à frente, onde o povo se reunia para ler osjornais.
Seriam as tavemas,já nessa época,concentradas nos becos? E,como tal,
eram já consideradas locais mal freqüentados? Coruja não esclarece sobre
este ponto. Discreto, ele apenas insinua e mostra, em tom jocoso, onde se
situavam os espaços malditos da urbe e que se associavam com a desordem e
a prostituição. Neste ponto. Coruja define claramente que o Beco dos Mari
nheiros e o do Fanha eram mal freqüentados,aos quais podia acrescentar a
Rua dos Sete Pecados Mortais, onde alguém mandara edificar, naquela la
deira que descia para o Guaíba,sete casinhas que, pelo seu aspecto e pela
moral de suas moradoras,fizeram com que os gaiatos de então dessem aque
le nome pitoresco... (p.l6). Não resta dúvida de que este espaço da cidade

111
mento para capitais disponíveis em área escassamente povoada? São suposi
ções cabíveis,se cruzarmos este indício com outrosjá vistos. Havia ainda,na
região urbana,áreas das quais não se sabia qual o dono,na Rua da Ponte,e
que se achavam prestes a serem declaradas devolutas.® Sobre os mesmos havia,
de parte da comunidade,requerimentos solicitando o seu aforamento,com
o que o articulista considerava boa medida para que se saneasse o grande
pântano que lá existia, com prejuízo para a saúde pública...
Tais registros são,sem dúvida, tímidos indícios dessa expansão urbana
e de iniciativas de saneamento, diante da proliferação das doenças.
Os dados dosjornais,entretanto,confinnam os dados anteriores, da não
diferenciação do beco ante a rua e da sua não estigmatização como espaço
urbano.
É o beco,no caso,designação popular,"voz do povo",para nomear os espa
ços da urbe,que só de vez em quando é incorporado pela linguagem oficial?
O Código de Posturas Municipais de 1831 vai mais além neste caminho.
No seu intento de promover a ocupação do solo, o arruamento, a regula
mentação das edificações e prover o saneamento da cidade, as posturas no
meiam,nos seus capítulos 6,7 e 45,sobre as ruas ou becos. Ambas as vias se
eqüivaliam no que diz respeito às medidas a serem executadas, as multas e
serviços que diziam respeito ao bom "viver urbano". Não há, no Código de
Posturas Municipais, uma discriminação que individualize o beco. Mesmo
quando o artigo 42 proíbe de fazer despejos nos canos de esgotos domésti
cos das "águas fétidas" e das "imundícies", dispõe,igualmente,sobre o que
possa suceder nas ruas e nos becos.'"
Mas,entre o início e o final do século, mudanças urbanas significativas ocor
reram em Porto Alegpre. Há uma nítida expansão da cidade, que dos 15 mil
habitantes da metade do século,atinge 73.274 em 1900(Macedo,1993, p.75).
Este incremento notável da população obedeceu a múltiplos fatores,
que se explicam, em parte, pelo incremento da emigração estrangeira, no-
tadamente alemã e italiana, que fizeram de Porto Alegre tanto um ponto
de redistribuição dos colonos que se dirigiam para a zona colonial,como um
ponto de fixação para aqueles que ali decidiam ficar. Há que contar ainda

^ O ConstitucionalRio-grandense, 7/8/1830.
Código de Posturas de 1831. Arquivo Histórico do Município de Porto Alegre. (Manuscrito.)

114
com a posição estratégica do porto da cidade,cujo desenvolvimento comer
cial acompanhou de perto o desenvolvimento administrativo decorrente de
ser a capital da província. A estes fatores se acrescenta, ao longo do século
XIX,alenta desagregação escravocrata,implicando a vinda dos negros,fu
gidos ou libertos, para o maior centro urbano do sul.
^ Em termos propriamente urbanos, houve um aumento da população
na area central e uma expansão do perímetro urbano,incorporando o que
ate então eram subúrbios e arraiais. Os terrenos se valorizam,e os investimen
tos imobiliários se incrementam a partir da disponibilidade de investimento
daqueles que dispõem de recursos. Comojá se viu, havia a prática de âlguns
capitalistas" da praça de construírem habitações modestas para fins de alu
guel nas novas vias públicas que se abriam,como no èaso dos becos.Provavel
mente,os sobrados e casas de maior porte que lá existiam foram abandona
dos por seus moradores e sublocados a novos inquilinos,devido a vizinhança
de baixa renda que aumentava.
A diferenciação social que se acentuava e o incômodo produzido por
esta coabitação forçada no centro da cidade dá margem a uma transforma
ção de sentido no léxico urbano.O beco passa a ser o espaço que concentra
o pobre,encravado no coração da cidade.
O sentido original do termo,de natureza mais propriamente topográ
fica,de rua estreita, com ladeira e aberta no curso natural de uma expansão
urbana não planejada, na passagem do século XVIII para o século XIX,cede
lugar a uma designação depreciativa que traduz uma avaliação ao mesmo
tempo moral, estética e higiênica.
O beco passa a ser a designação que estigmatiza lugares malditos da urbe.
O beco é sinistro,sujo,perigoso e feio.É o mau lugar, por onde circulam perso
nagens perigosas praticantes de ações condenáveis. O beco é o reduto dos ex
cluídos urbanos e corresponde,de forma exemplar,a uma bela demonstração
do que poderíamos chamar a maneira conflitiva de construir o espaço público.
E interessante perceber que os discursos que, no final do século,falam
nos becos passam a utilizar a linguagem da estigmatização e sempre tendo
como referência a temporalidade da noite... Assim,o beco é, por definição,
visualizado como um espaço noturno e escuro,propriedades às quais se acres
centam as dimensões do acanhamento,abafamento e desorganização,sen
do, por decorrência,feio, sujo,fétido e perigoso, pois nele se concentram

115
as socialidades condenáveis. O registro muda,e o conteúdo da palavra não
fornece o significado topográfico, mas social e moral. O beco,assim,éolo-
cal por excelência da contravenção, mas,se recuperarmos este processo no
tempo,chegamos á conclusão de que nem sempre foi assim.
Em suma,é com a expansão da cidade,a valorização do solo e a especu
lação imobiliária que tais espaços passam a corresponder a uma concentra
ção dos moradores de baixa renda que,com a acentuação dos desníveis so
ciais ocorridos nas últimas décadas do século XIX,passam a ser identificados
como "feios,sujos e malvados"...
A Porto Alegre cidadã — branca, enriquecida, culta - se quer distinta
da cidade dos becos que vivem contíguos ã urbe que quer se transformar.

Boco do Cordoeiro
I PORTO ALEGRE - Meados do século XIX ou Boco do Couto
! Localização dos Becos
Beco do Rocárto ou Rua 24 de It
Boco dos Forreiros
Boco do G
Boco do LoKo
ou do Barriga ou do Mt]o
ALFANDEGA
Boco do Fanha
Boco dos Marinheiros

Largo da Forca Boco IbkocIo


Boco do Araújo
Boco do

Rüidã
Rua da p
REDüTOyvÇg^t
PRAÇA DA

Rua do Arvo

Beco do Pedro Handinga


Beco do Céu

BECOS NAO LOCALIZAOOS;


•Beco do Sebo
•Boco do Chbteio
•Beco da Moita
•Boco da Princesa
•Boco da Corv^(Praça da Harmonia)
•Boco da Fortuna
•Beco de Ste JoSo

Pesquisa: MARLISEM.GIOVANAZ

Arto41nal: Carla M. Luzzatto

116
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Lucrécia D'Alessio Ferrara
Maria Cristina da Silva Leme
Maria Salete Kern Machado
Maria Stella Marfins Bresciani
Myriam Bahia Lopes
Paulo César Xavier Pereira
Philip Gunn
Sandra Jatahy Pesavenfo
Telma de Barros Correia

Editora
daUniversIdac
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