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L . S.

Vigotski
A CONSTRUÇÃO
DO PENSAMENTO
EDA LINGUAGEM
(Texto integral, traduzido do russo Pensamento
e linguagem)

Tradução: PA ULO BEZERRA - Professor Livre-Docente


em Literatura Russa pela USP

Martins
São Paulo 2001
Fontes
1. O problema e o método de investigação

O tema do pensamento e da linguagem situa-se entre aque-


las questões de psicologia em que aparece em primeiro plano a
relação entre as diversas funções psicológicas, entre as diferen-
tes modalidades de atividade da consciência. O ponto central de
todo esse problema é, evidentemente, a relação enn-p. o pensa-
mento e a palavra. Todas as outras questões conexas são como
que secundárias e logicamente subordinadas a essa questão cen-
tral e primeira, sem cuja solução não se podem sequer colocar
corretamente as questões subseqüentes e mais particulares. E n -
tretanto, por mais estranho que pareça, a psicologia moderna
não tomou conhecimento do problema das relações interfun-
cionais, razão pela qual ele é novo para ela. Tão antiga quanto
a própria psicologia, a questão do pensamento e da linguagem
i foi menos trabalhada e continua mais obscura precisamente na
relação entre o pensamento'e a palavra. A análise atomística e
funcional, que dominou na psicologia científica durante todo o
último decênio, redundou no seguinte: funções psicológicas par-
ticulares foram objeto de análjsjMSjalada^Qjriétodo de conhe-
cimento psicológico foi elaborado e aperfeiçoado, para o estudo
desses processos isolados e particularizados; ao mesmo tem-
po, a relação interfuncional e sua organização numaestrutura
integral da consciência permaneceu sempre fora do campo da
t
atenção dos„pesquisadores.
2 A construção do pensamento e da linguagem O problema e o método de investigação. 3

Para a psicologia moderna, não é nenhuma novidade que a sempre se movimentando em torno do eixo situado entre esses
consciência é um todo único e que funções particulares estão dois pólos, as diversas teorias do pensamento e da linguagem
inter-relacionadas em_sua atividade. Mas a unidade da cons- sempre giraram em torno do mesmo círculo vicioso, de onde não
ciência e os vínculos entre certas funções foram antes postula- conseguiram sair até hoje-
dos pela psicologia que tornados objeto de pesquisa. Ademais, Desde a Antiguidade, a identificação do pensamento com
ao postular essa unidadefimcional da consciência, a psicologia • a linguagem, tanto na lingüística psicológica - segundo a qual
partia, em todas as suas investigações, do postulado falso, não pensamento é "linguagem menos som"- quanto nos atuais psi-
formulado e tacitamente aceito por todos, que reconhecia a imu- cólogos e reflexólogos americanos - para quem o pensamento
tabilidade e a permanência das relações mterfuncionais. e ima- é um "reflexo inibido não revelado em sua parte motora" - , co-
ginava a percepção ligada sempre.de.uma.mesma_forrna àaten- * nheceu uma linha única de desenvolvimento de uma mesma
ção, assim como a memória estava vinculada ài.percepção e_p idéia, que identifica o pensamento com a linguagem. É natural
pensamento.à memória. Daí a conclusão natural de que as rela- que todas as doutrinas que confluem nessa linha, pela própria
ções interfuncionais são uma coisa que pode ser colocada entre essência das suas concepções da natureza do pensamento e da
parênteses como multiplicidade genérica e ser desprezada nas linguagem, tenham esbarrado na impossibilidade não só de re-
operações investigatórias com as funções particulares isoladas solver mas até mesmo de levantar a questão. Se o pensamento
entre parênteses. e a linguagem coincidem, são a mesma coisa, não pode surgir
Por tudo isso, o problema das relações é a parte menos tra- nenhuma relação entre eles nem a questão pode constituir-se em
balhada pela psicologia, fato que só poderia ter os reflexos mais objeto de estudo, uma vez que é impossível imaginar que a rela-
negativos na questão do pensamento e da linguagem. Se exami- ção do objeto consigo mesmo possa ser objeto de investigação.
narmos atentamente a história do estudo dessa questão, veremos Quem funde pensamento com linguagem fecha para si mes-
facilmente que esse ponto central de toda a relação do pensa- mo o caminho para abordar a relação entre eles e antecipa a im-
mento com a linguagem sempre fugiu à atenção do pesquisador, Í possibilidade de resolver a.questão. Contorna a questão em vez
e que o centro de gravidade de toda essa questão sempre se con- dê~ resolvê-la. A primeira vista, pode parecer que a teoria que
fundiu e se deslocou para algum outro ponto e fundiu-se com mais se aproxima do campo oposto e desenvolve a idéia de que
alguma outra questão. pensamento e linguagem são independentes entre si esteja em
Se tentarmos historiar em termos breves os resultados dos i situação mais favorável no tocante às questões aqui debatidas.
trabalhos desenvolvidos com o tema pensamento e linguagem Quem considera a linguagem uma expressão externa do pensa-
na psicologia científica, poderemos dizer que, dos períodos mais mento, a sua veste, quem como os representantes-da_Eseola de
antigos até os nossos dias, a solução desse problema, proposta Wüi^biirgVfèhtaJibertar o pensamento de tudo o que ele tem de
por diferentes estudiosos, sempre oscilou entre dois extremos: j sensorialj .inclusive da palavra, e conceber a relação entre pen-
entre a plena identificação e a plena fusão do pensamento com samento e palavra como um vínculo puramente externo, tenta,
a palavra. e_entre a sua plena separação e dissociação igual- de fato, resolver a seu modo o problema da relação entre pen-
mente metafísica e absoluta. Expressando um desses extremos samento e palavra. Essa solução, que parte das mais diversas
em forma pura ou unificando-os em suas formulações e, assim, T correntes psicológicas, sempre se vê impossibilitada não só de
ocupando uma espécie de posição intermediária entre eles mas resolver mas até mesmo de levantar a questão e, se não a con-
4 0 problema e o método de investigação. 5
A construção do pensamento e da linguagem

torna, acaba cortando o nó em vez de desatá-lo. Ao decompor ma é antecipadamente incorreta e exclui qualquer possibilidade
o pensamento discursivo nos elementos que o constituem e que de solução correta da questão, pois o método que aplicam na
são heterogêneos - o pensamento e a palavra - , esses estudiosos, decomposição desse todo em elementos isolados inviabiliza.o.
depois que estudam as propriedades puras do pensamento co- estudo das relações internas entre pensamentoejBlayja.
mo tal, independentemente da linguagem, e a linguagem como Assim, a questão se baseia no método de pescuiisa, e acha-
tal, independentemente do pensamento, interpretam a relação mos que, quando alguém se propõe estudar as relações entre
entre eles como uma depenjência mecânfca.pjuiamente exter^ pensamento e linguagem, deve necessariamente ter claro que
na enrre_dois processos.diferentes. Poderíamos mencionar como métodos vai aplicar e se eles levarão a uma boa solução do pro-
exemplo as tentativas de autores modernos, que procuram de- blema. Achamos que se devem distinguir duas espécies de aná-
compor o pensamento discursivo nos seus constituintes com a lise aplicadas em psicologia. O estudo de quaisquer formações
finalidade de estudar a relação e a interação entre esses dois psicológicas pressupõe necessariamente uma análise. Mas esta
processos. pode assumir duas formas basicamente distintas, uma das
O resultado desse tipo de estudo é a conclusão de que os quais, a nosso ver, responde por todos os fracassos sofridos
processos que movimentarn_a linguagem desempenham um pelos pesquisadores ao tentarem resolver essa questão multis-
grariõTpãpel, qüé~ássegura um inejhorJfluxo do pensamento. secular, cabendo à outra ser o único ponto inicial e verdadeiro
Eles ajudariam os processos de interpretação pelo fato de que, de onde se pode dar ao menos o primeiro passo no sentido da
sendo difícil e complexo o material verbal, a linguagem inte- sua solução.
rior realiza um trabalho que contribui para uma melhor fixação O primeiro método de análise psicológica poderia ser de-
e unificação da matéria apreendida. Esses mesmos processos nominado decomposição das totalidades psicológicas comple- 0
(p^^ -
sobressaem em seu fluxo como forma de atividade dinâmica xas em elementojuEle poderia ser comparado à análise química ^
quando a eles se incorpora a linguagem interior, que ajuda a da água, que a decompõe em hidrogênio e oxigênio. Um traço
sondar, abranger e destacar o importante do secundário no mo- essencial dessa análise é propiciar a obtenção de produtos he-
vimento do pensamento, e a linguagem interior acaba desem- terogêneos ao todo analisado, que não contêm as propriedades
penhando o papel de fator que assegura a passagem do pensa- inerentes ao todo como tal e possuem uma variedade de pro-
mento para a forma verbalizada em voz alta. priedades que nunca poderiam ser encontradas nesse todo. Ao
Citamos o exemplo acima apenas para mostrar que,j3gr pesquisador que procurasse resolver a questão do pensamento
pois queoestudioso decompõe nos seus constituintes o.pensa- e da linguagem decompondo-a em linguagem e pensamento su-
mento discursivo como forroiiçj^psi^ lhe cederia o mesmo que a qualquer outra pessoa que, ao tentar
resta senão estabelecer entre esses processos elementares uma explicar cientificamente quaisquer propriedades da água - por
interação puramente externa, como se tratasse de duas formas exemplo, por que.a água apaga o fogo ou se aplica à água a lei
heterogêneas de atividades interiormente desconexas. Essa si- de Arquimedes - , acabasse dissolvendo a água em hidrogênio
tuação mais favorável, em que se encontram os representantes e oxigênio como meio de explicação dessas propriedades. Ele
da segunda corrente, consiste em que eles podem discutir a re- veria, surpreso, que o hidrogênio é autocombustível e o oxigê-
lação entre pensamento e linguagem. Nisto eles levam vantagem, nio conserva a combustão, e nunca conseguiria explicar as pro-
mas estão em desvantagem porque a sua abordagem do proble- priedades do todo partindo das propriedades desses elementos.
6 A construção do pensamento e da linguagem O problema e o método de investigação. 7

No processo de análise eles evaporariam e se tornariam volá- processo em estudo e ao substituir as relações internas de uni-
teis, e ao pesquisador não restaria senão procurar uma intera- dade pelas relações mecânicas externas de dois processos hete-
ção mecânica externa entre os elementos para, através dela, re- rogêneos e estranhos entre si. E m parte alguma os resultados
construir por via puramente especulativa aquelas propriedades dessa análise manifestaram-se com tanta evidência quanto no
que desapareceram no processo de análise mas que são susce- campo dos estudos do pensamento e da linguagem.
tíveis de explicação. A própmjgalavra, querepresenta uma unidade viva de som
No fundo, a análise que nos leva a produtos que perderam e sigm^cado^e que, como célula viva, contém nã forma inais
as propriedades inerentes ao todo nem chega a ser propriamen- simples todas as propriedades básicas do conjunto do pensamen-
te análise do ponto de vista do problema a cuja solução ela se to d i s ç u i ^ ^
aplica. Estamos autorizados a considerá-la antes um método entre as quais os esmmgsos_terit^
de conhecimento, método inverso em relação à análise e, em mente, um vínculo mecânico, a.sso.çiatiyp^exíerno. Na palavra,
certo sentido, oposto a ela. Porque a fórmula química da água, o som e o significado não têm nenhuma relação entre si.
que se lhe aplica igualmente a todas as propriedades, refere-se, Segundo um dos lingüistas mais importantes da atualida-
de igual maneira, a todas as suas modalidades, tanto ao grande de, esses dois elementos, unificados no signo, levam vidas to-
oceano quanto a um pingo de chuva. Por isso a decomposição talmente separadas. Por isso não surpreende que semelhante
da água em elementos não pode ser a via capaz de nos levar à concepção só possa ter acarretado os resultados mais melancó-
explicação das suas propriedades concretas. É, antes, um ca- licos para o estudo dos aspectos fonético e semântico da língua.
minho para se chegar ao geral do que uma análise, ou seja, um Separado da idéia, o som perderia todas as propriedades_espe-
desmembramento na verdadeira acepção da palavra. De igual cíficas que o tornaram som apenas da fala humana,ej3 de5taca=.
J

maneira, a análise dessa modalidade, se aplicada a formações ram de todo o reino restante de sons existentes na natureza. Por
psicológicas integrais, também não é análise capaz de nos elu- isso, nesse som desprovido de sentido passaram a ecoar apenas
cidar toda a diversidade concreta, toda a especificidade daque- as suas propriedades físicas e psicológicas, ou seja, aquilo que
las relações entre palavra e pensamento que encontramos nas não lhe é específico e é comum a todos os demais sons existen-
observações cotidianas quando, acompanhamos o desenvolvi- tes na natureza; conseqüentemente, o estudo não podia expli-
mento do pensamento discursivo na fase infantil, o funcio- car por que o som, sendo dotado dessas e daquelas proprieda-
namento desse pensamento nas suas formas mais variadas. No des psicológicas, é som da fala humana e o que o faz ser esse
fundo, essa análise, em psicologia, também se transforma em som. De igual maneira o significado, isolado do aspecto sono-
seu contrário, e em vez de nos permitir explicar as proprieda- ro da palavra, transformar-se-ia em mera representação, em puro
des concretas e específicas do todo em estudo projeta esse ato de pensamento, que passaria a ser estudado separadamente
todo a uma diretriz mais geral,, capaz de nos explicar apenas o como conceito que sejesenvolve e vive independentementedo
que concerneajoda linguagem e aojCTsameRtQ^iLSBâl^ycr- seu veículo material. A esterilidade da semântica e da fonética
-JES^lidadgjbstrata..sem nos propiciar apreender as leis concretas clássicas está consideravelmente condicionada a esse j&yjàrçm
quenos interessam. Além do mais, esse tipo de análise, aplica- entre o som e o significado, a essa desintegração _da.palavra em
da de modo planejado pela psicologia, redunda em profundos elementos isolados. Do mesmo modo, a psicologia estudava o
equívocos ao ignorar o momento de unidade e integridade do desenvolvimento da linguagem infantil do ponto de vista da sua
8 0 problema e o método de investigação. 9
A construção do pensamento e da linguagem

decomposição em desenvolvimento dos seus aspectos fonético as demais concepções da nossa consciência ou de todos os de-
e semântico. mais atos do nosso pensamento quanto o som, dissociado do
Estudada nos mínimos detalhes, a história da fonética da significado, dissolveu-se no mar de todos os outros sons exis-
criança mostrou que não tinha a menor condição de resolver se- tentes na natureza. Se em relação ao som da fala humana a psi-
quer na forma mais elementar o problema da explicação dos cologia moderna não consegue dizer nada que seja específico
fenômenos pertinentes à questão. Por outro lado, o estudo do sjg.- dessa questão como tal, o mesmo ocorre com o estudo do sig-
nificado da palavra da criança levou os estudiosos a uma histó- nificado das palavras, em cujo campo essa psicologia não acres-
riaautônoma do pensamento infantil, na qual não havianenhu- centa nada ao que caracteriza esse significado e todas as demais
ma ligação c^m_a,hi.stória, da fonética dajinguagem infantil. representações e idéias da nossa consciência.
Achamos que um momento decisivo em toda a teoria do pen- Essa mesma situação reinava na psicologia associativa.
samento e da linguagem foi a substituição dessa análise por Sempre víamos na palavra apenas o seu aspecto externo volta-
outro tipo de análise. Esta pode ser qualificada como análise do para nós. O outro aspecto interno •võjlgmfíçãdãV, como a
que decojnpõe_em unidades a totalidade complexa. Subenten- outra face da Lua, continua até hoje sem ser estudado e desco-
demos por unidade um produto daahálise que, diferente dos nhecido. Entretanto, é precisamente nesse outro aspecto que se
elementos, possui todas as propriedades que são inerentes a_o ^nçerra_ajossibilidad^
todo e, concomitantemente, são partes vivas e mdecompjDníy^is, rejssjmjMfeerr^
dessa unidade. A chave para explicar certas propriedades da água gem^porque é justamente no significadojiue ejtájp_nó_daquilQ.
não é a sua fórmula química mas o estudo das mojéculas.e do que chamamos de pensamenlQ.yerJjâlizadP^ O esclarecimento
movimento molecular.De igual maneira, a célula viva, que con- desta questão requer um breve exame da interpretação teórica
serva todas as propriedades fundamentais da vida, próprias do danatureza psicológicado sieriificado.da.nalavra. Durante a nos-
organismo vivo, é a verdadeira unidade da análise biológica. A sa análise, iremos mostrar que nem a psicologia associativa
psicologja_gue dgseje estudar as_unjdades complexas precisa nem a estrutural dão resposta rninimamente satisfatória à ques-
entender isso. Deve substituir o método de decomposição em tão da natureza do significado da palavra.
elementosjpelo método_a^_aniJise^ Entretanto, o estudo experimental, que expomos abaixo,
des. Deve encontrar essas propriedades que não se decompõem enquanto análise teórica mostra que o essencial e determinante
e se conservam, são inerentes a uma dada totalidade enquanto da natureza interna do significado da palavra não está onde se
unidade, e descobrir aquelas unidades em gueesjas,prnprip.daHfts costuma procurar. A palavra nunca se refere a um objeto isola-
estão representadas num aspecto contrário para através dessa
T
do mas a todo um grupo ou classe de objetos. Por essa razão,
análise, tentar resolver as questões que se lhe apresentam. cada palavra é uma generalização latente, toda palavra j á gene-
Que unidade é essa que não se deixa decompor e contém raliza e, em termos psicológicos, é antes de tudo uma genera-
propriedades inerentes ao pensamento verbalizado como uma lização. Mas a generalização, como é fácil perceber, é um ex-
totalidade? Achamos que essa unidade pode ser encontrada no cepcional ato verbal do pensamento, ato esse que reflete a rea-
aspecto interno da palavra: no seu significado) Até hoje, quase lidade de modo mtehamente diyerso daquele comoesJa^êjeile-
não se fizeram estudos especiais desse aspecto interno da pala- tida nas sensações e percepções imediatas. Quando se diz que
vra. 'Pjignificado|da palavra dissolveu-se tanto no mar de todas o salto dialético não é só uma passagem da matéria não-pen-
10 A construção do pensamento e da linguagem 0 problema e o método de investigação. 11

sante para a sensação mas também uma passagem da sensação mos nos convencer facilmente tomando como exemplo mais um
para o pensamento, se está querendo dizer que o pensamento aspecto do problema em discussão, que também sempre per-
reflete a realidade na consciência de modo qualitativamente di- maneceu na sombra. A fim^ãg_dajmguagem_é a comunicativa.
verso dó^ue_QJaz-a.sensagão imediata. Pelo visto, existem todos A linguagem é, antes de mdo^urnmeio de comunicaçãosoçial,
os fundamentos para se admitir que essa diferença qualitativa de enunciação" e compreensão) Também na analise, que se de-
da unidade é, no essencial, um reflexo generalizado da realidade. compunha em elementos, essa função da linguagem se disso-
Daí podermos concluir que o significado da palavra, que aca- ciava da sua função intelectual, e se atribuíam ambas as funções
bamos de tentar elucidar do .ponto de vistojpjicológico ternna
T
à linguagem como se fossem paralelas e independentes uma da
suajjgneralização um ato de.pensamentona.verdadeira acepção outra. A linguagem como que coadunava as funções da comu-
dojermo. Ao mesmo tempo, porém, o significado é parte ina- nicação e do pensamento, mas essas duas funções estão de tal
lienável (áXpjjãvra):omo tal, pertence ao reino da linguagem forma interligadas que a sua presença na linguagem condicio-
tanto quanto ao reino do pensamento. Sem significado a pala- nava a maneira comotranscorria a sua evolução e como as duas
vra não é palavra mas som vazio. Privada do significado, ela já se unificavamestratuTalmente. Tudo isso continuasemsèr es-
não pertence ao reino da linguagem. tudado ate noje. Por outro lado, o significado da palavra é uma
Por isso o sjgnificaaVpode ser visto igualmente como fe- unidade dessas duas funções da linguagem tantojmanto o é do
nômeno da linguagem por suajiaíureza e como fenômeno do pensamento. É um axioma da psicologia científica a impossi-
campo do pensamento. Não podemos falar de significado da bilidade da comunicação imediata entre as almas. Sabe-se ainda
palavra tomado separadamente. O que ele significa? Lingua- que a comunicação não mediatizada pela linguagem ou por ou-
gem ou pensamento? Ele é ao mesmo tempo linguagem e pen- tro sistema de signos ou de meios de comunicação, como se
samento porque é uma unidade do pensamento verbalizado. verifica no reino animal, viabiliza apenas a comunicação do
Sendo assim, fica evidente que o método de investigação do tipo mais primitivo e nas dimensões mais limitadas. No fundo,
problema não pode ser outro senão o método da análise semân- essa comunicação através de movimentos expressivos não me-
\7 tica, da análise do sentido j a linguagem, do significado da rece sequer ser chamada de comunicação, devendo antes ser
palavra/Nessa via é lícito esperar resposta direta à questão que denominada contágio. Um ganso experiente, ao perceber o pe-
nos interessa - a da relação entre pensamento e linguagem, por- rigo e levantar com uma grasnada todo o bando, não-sóJ^eco-
que essa relação mesma faz parte da unidade por nós escolhi- munica o que viu quanto o contagia com o seu susto. A comu-
da, e quando estudamos a jvÕjução) o^ncionamén!o^ a_esjrj> nicação, estabelecida com base em compreensão racional e na
tyja.e ofmovimento) dessa unidade, podemos apreender muito intenção de transmitir idéias e vivências, exige necessariamen-
do que nos pode esclarecer a questão do pensamento e da lin- te um sistema de meios cujo protótipo foi, é e continuará sendo
guagem, da natureza do pensamento verbalizado. iHinguagem humana, que surgiuda necessidade de comunica-
ção no processo de trabalho._Z.
Os métodos que tencionamos aplicar ao estudo das rela-
ções entre pensamento e linguagem têm a vantagem de permi- Até bem recentemente, porém, a questão era apresentada
tir que todos os mérjitõs próprios da análise possam ser combi- a partir da ótica de uma concepção que dominava em psicolo-
nados com a possibilidade de estudo sintético das propriedades gia de forma sumamente simplificada. Supunha-se que o meio
inerentes a uma unidade propriamente complexa. Disto pode- de comunicação eram o signo, a palavra, o som. E esse equívoco
12 A construção do pensamento e da linguagem 0 problema e o método de investigação. 13

decorria apenas da análise decomposta em elementos, que se determinada classe que, por acordo tácito, a sociedade considera
aplicava à solução de todo o problema da linguagem. A palavra como unjdade.
na comunicação é, principalmente, apenas o aspecto externo
da linguagem, e supunha-se que o som pudesse associar-se por Por isso Sapir considera o significado da palavra como
si só a qualquer vivência, a qualquer conteúdo da vida psíquica símbolo do conceito e não da percepção indivisa.
e, em função disto, transmitir ou comunicar essa vivência ou De fato, qualquer exemplo nos convence da relação entre
esse conteúdo a outra pessoa. Entretanto, um estudo mais sutil comunicação e generalização dessas duas funções básicas da
da comunicação, dos processos de sua compreensão e do seu linguagem. Quero comunicar a alguém que estou com frio.
desenvolvimento na idade infantil levou os estudiosos a uma Posso lhe dar a entender isto através de vários movimentos ex-
conclusão bem diferente. Verificou-se que a comunicação sem pressivos, mas a verdadeira compreensão e a comunicação só
signos é tão impossível quanto sem significado. Para se comu- irão ocorrer quando eu conseguir generalizar e nornearjMme
nicar alguma vivência ou algum conteúdo da consciência a estou vivenciando^ou seja^guando eu jaarisegiuLsituar a sensa-
outra pessoa não há outro caminho a não ser a inserção desse ção de frio por mim experjmeitíada^emjiima determinada clas-
conteúdo numa determinada classe, em um grupo de fenôme- se de^stados conhecidos pelo meu interlocutor. É por isso que
um objeto inteiro é incomunicável para crianças que ainda não
nos, e isto, como sabemoyrequer necessariamente generahza-
dominam certa generalização. Aqui não se trata de insuficiên-
_cãQ^Verifica-se, desse modo, que a comunicação pressupõe ne-
cia das respectivas palavras e sons mas dos respectivos concei-
cessariamente generalização e desenvolvimento do significado
tos e generalizações.jsem os quais a compreensão se torna im-
da palavra, ou seja, a generalização se torna possível se há de-
possíyel. Como diz(Tolstóyo que quase sempre é incompreen-
senvolvimento da comunicação.
sível não é a própriapãTãvra mas o conceito que ela exprime.
Assim, as formas superiores de comunicação psicológica,
A palavra está quase sempre pronta quando está pronto o con-
inerentes ao homem, só são possíveis porque, no pensamento, ceito. Por isto há todos os fundamentos para considerar o sig-
o homem reflete a realidade de modo generalizado. No campo nificado da palavra não só como unidade do pensamento e da
da ç^fisaencialnstmtiva^onde dominam a percepção e o afeto, linguagem mas também como unidade da generalização e da co-
só é possível o contágio e não a compreensão e a comunicação municação, da comunicação e do pensamento.
na acepção propriamente dita do termo, j d w a r d Sapir eluci-
dou brilhantemente essa questão em seus trabalhos sobre psi- E totalmente impossível calcular a importância fundamen-
cologia da linguagem: tal dessa abordagem da questão para todos os problemas gené-
ticos do pensamento e da linguagem. Essa importância se deve,
A linguagem elementar deve estar relacionada a todo um antes de tudo, a que só a admissão de tal abordagem viabiliza,
grupo, a uma deteiminada classe da nossa experiência. O mun- pelaprimeira vez^a^análise(genético-causalllo p^njjamento e
do da experiência deve ser sumamente simplificado e generali- dãTinguagem. Só começamos a entender a relação efetiva en-
jzanj? para que seja possível simbolizá-lo. Só assim se torna pos- tre o desenvolvimento do pensamento da criança e o desenvol-
sível a comunicação, uma vez que a experiência indivisa vive vimento social da criança quando aprendemos a ver a unidade
numa consciência indivisa e, em termosrigorosos,é incomuni- entre comunicação e generalização. As relações entre pensa-
cável. Para tornar-se comunicável ela deve ser inserida numa mento e palavra e generalização e comunicação devem ser a
14 A construção do pensamento e da linguagem O problema e o método de investigação. 15

questão central a cuja solução dedicamos as nossas pesquisas. determinada de som, está relacionado a um significado mas
Entretanto, para ampliar as perspectivas da nossa investigação, como tal é um som desprovido de significado e uma unidade
gostaríamos de referir mais alguns momentos na questão do efetiva que interliga os aspectos da fala. Assim, a unidade da
pensamento e da linguagem que, infelizmente, não puderam fala vem a ser, no som, uma nova concepção não de um som
ser objeto de estudo direto e imediato neste livro mas que, isolado mas de um fonema, isto é, uma unidade fonológica in-
naturalmente, revelam-se com ele e lhe dão a devida importân- decomponível, que conserva todas as propriedades básicas de
cia. Gostaríamos de colocar em primeiro lugar uma questão todo o aspecto sonoro da fala com função, de significação. Tão
que deixamos de lado em quase toda a pesquisa, mas que se logo o som deixa de ter significação e se destaca do aspecto
impõe por si mesma quando o assunto é toda a teoria do pensa- sonoro da fala, perde imediatamente todas as propriedades ine-
mento e da lmguagem: j n ^ e t e ç j ^ rentes à fala humana. Por isso, tanto em termos lingüísticos
com seusignltlcado. quanto psicológicos só pode ser fértil o estudo do aspecto fônico
Achamos que o avanço nessa questão, que observamos na da fala que aplique o método de sua decomposição em unida-
lingüística, está diretamente ligado ao problema da mudança des preservadoras das propriedades inerentes à fala enquanto
dos métodos de análise na psicologia da linguagem. Por isso propriedades dos seus aspectos fônico e semântico.
vamos examinar brevemente essa questão, uma vez que ela nos Não nos deteremos nas conquistas concretas, obtidas pela
permitirá, por um lado, esclarecer os melhores métodos de aná- lingüística e pela psicologia com a aplicação desse método. D i -
lise que defendemos e, por outro, revelar uma das perspectivas remos apenas que, aos nossos olhos, essas conquistas são a
mais importantes para a investigação subseqüente. Já observa- melhor prova da fecundidade desse método que, pela própria
mos que a lingüística tradicional considerava o aspecto sonoro natureza, é idêntico ao método aplicado em uma verdadeira
da fala como elemento totalmente autônomo, independente do pesquisa e que nós contrapomos à análise que decompõe o seu
aspecto semântico. A fusão desses dois elementos redundaria objeto em elementos. A fecundidade desse método pode ser
posteriormente na formação da linguagem falada. E m função experimentada e mostrada, ainda, em uma série de questões, di-
disto, ela considerava o som isolado como unidade do aspecto reta ou indiretamente vinculadas ao problema do pensamento
sonoro da fala, mas esse som, dissociado do pensamento, perde e da linguagem como integrantes ou contíguas a esse proble-
com essa operação tudo o que faz dele um som da fala huma- ma. Mencionamos apenas najorma mais sumária o círculo
na e o inclui nas séries de todos os outros sons. Por essa razão, gerajjejs^s_ojie stõe.s uma vez que, rejterenioj^eJ^jioj_perrm^
J i

a fonética tradicional se concentrava predominantemente na te descobrir as perspectivas que se abrem perante a nossa pes-
acústica e na fisiologia e nunca na psicologia da linguagem, quisa e elucidar a sua importância no contexto de toda a questão.
razão pela qual essa psicologia revelava total impotência para Trata-se~das complexas relações entre linguagem e pensamen-
resolver esse aspecto da questão. O que é primeira essência pa- to, da consciência dos seus aspectos em conjunto e em partes.
ra os sons da fala humana, o que distingue esses sons de todos Se para a velha psicologia toda a questão das relações in-
os demais sons da natureza? Como indica corretamente uma terfuncionais era um campo inteiramente inacessível à pesqui-
corrente da fonologia atual, que encontrou a mais viva reper- sa, hoje ele está aberto aos pesquisadores que desejem aplicar
cussão na psicologia, o traço mais importante do som da fala \o metodóÜa unidade.è substituir por ele o método dos elemen-
humana é o fato de que esse som, que desempenha uma função tos. Quando falamos da relação do pensamento e da linguagem
16 A construção do pensamento e da linguagem O problema e o método de investigação. 17

com os outros aspectos da vida da consciência, a primeira ques- um determinado sentido do seu pensamento, e o movimento in-
tão a surgir é a relação entre o intelecto e o afeto. Como se sabe, verso da dinâmica do pensamento à dinâmica do comporta-
a separação entre a parte intelectual da nossaconsciência e a. mento e àativídade concreta do indivíduo. O método que aplica-
sua parte afetiva e volitiva é um dos defeitos radicaisde toda-a mos permite não só revelar a unidade interna do pensamento e
psicologia tradÍciõnãl7Nêste caso, o pensamento se transforma da linguagem como ainda estudar, de modo frutífero, a relação
Inevitavelmente em uma corrente autônoma de pensamentos do pensamento verbalizado com toda a vida da consciência em
que pensam a si mesmos, dissocia-se de toda a plenitude da vida sua totalidade e com as suas funções particulares.
dinâmica, das motivações vivas, dos interesses, dos envolvi- Para concluir este primeiro capítulo, resta-nos apenas traçar,
mentos do homem pensantè~e7assim7^tõma ou um epitenome- nas linhas mais breves, o programa da nossa pesquisa. Nosso
nõlolaTmente inutilTqüFnaãTpode modificar na vida e no trabalho é uma investigação psicológica de um problema suma-
comportamento do homem, ou uma força antiga original e au- mente complexo, que deveria ser constituído necessariamente
tônoma que, ao interferir na vida da consciência e na vida do de várias pesquisas particulares de natureza teórica e crítico-
indivíduo, acaba por influenciá-las de modo incompreensível. experimental. Tomamos como ponto de partida o estudo crítico
Quem separou desde o início o pensamento do afeto fechou de- da teoria do pensamento e da linguagem, que marca o apogeu do
finitivamente para si mesmo o caminho para a explicação das pensamento psicológico nessa questão e é, ao mesmo tempo,
causas do próprio pensamento, porque a análise determinista diametralmente oposto ao caminho que escolhemos para ana-
do pensamento pressupõe necessariamente a revelação dos mo- lisar teoricamente o assunto. Esse primeiro estudo deve nos
tivos, necessidades, interesses, motivações e tendências motri- levar à abordagem de todos os problemas concretos da moder-
zes do pensamento, que lhe orientam o movimento nesse ou na- na psicologia do pensamento e da linguagem e colocá-los no
quele aspecto. De igual maneira, quem separou o pensamento contexto do conhecimento psicológico vivo de nossos dias. Para
do afeto inviabilizou de antemão o estudo da influência refle- a psicologia atual, estudar uma questão como pensamento e lin-
xa do pensamento sobre a parte afetiva e volitiva da vida psí- guagem significa, ao mesmo tempo, desenvolver uma luta ideo-
quica, uma vez que o exame determinista da vida do psiquis- lógica com as concepções teóricas opostas.
mo exclui, como atribuição do pensamento, a força mágica de
A segunda parte da nossa investigação visa a uma análise
determinar o comportamento do homem através do seu próprio
teórica dos dados principais sobre o desenvolvimento do pen-
sistema, assim como a transformação do pensamento em apên-
samento e da linguagem nos planos filogenético e ontogenéti-
dice dispensável do comportamento, em sua sombra impotente
caDevemos traçar um ponto de partida para a questão, porque
e inútil. A análise que decompõe a totalidade complexa em uni-
a concepção equivocada das raízes genéticas do pensamento e
dades reencaminha a solução desse problema vitalmente im-
da linguagem é a causa mais freqüente dos erros teóricos nesse
portante para todas as teorias aqui examinadas. Ela mostra que
campo. O centro da nossa investigação é o estudo experimen-
existe um sistema semântico dinâmico que representa a unidade
tal do desenvojyjmejjtgjjp^cm
dos processos afetivos e intelectuais, que em toda idéia existe,
de eniduas partesj_na.primeira_exam^
em formaelaborada, uma relação afetiva do homem com a rea-
lidade representada nessa idéia. Ela permite revelar o movimen- to dos^conceitos artificiais formados_p.or-VÍa_experimental naT

to direto que vai da necessidade e das motivações do homem a segunda procuramos estudar o desenvolvimento dos conceitos
reais da criança. Por último, na parte conclusiva, procuramos
18 A construção do pensamento e da linguagem

analisar, com base em investigações teóricas e experimentais,


a estrutura e o funcionamento de todo o processo do pensamen-
to verbalizado. O momento unificador de todos esses estudos
particulares é a idéia de desenvolvimento, que procuramos apli-
car, em primeiro lugar, à análisee ao estudo da palavra como
unidade da linguagem e do pensamento.
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