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Jean-Claude Milner
RESUMO
Passada de olhos
A questão das relações entre a psicanálise e a linguística é complicada por dois fatores.
Por um lado, essas relações evoluíram; elas foram, com efeito, tão profundamente
transformadas pela obra de Jacques Lacan que se pode falar, a esse respeito, de corte.
Por outro lado, essas relações não teriam como se reduzir a um único tipo. De fato,
convém distinguir quatro questões: a questão da psicanálise e de sua relação com um
fenômeno que chamamos de linguagem; a questão da psicanálise e de sua relação com
uma ciência que toma como objeto todo ou uma parte do fenômeno da linguagem, e que
convém chamar de linguística; a questão da ciência linguística e de sua relação com os
dados trazidos à luz pela psicanálise – em resumo: a questão das relações entre a
linguística e o inconsciente; a questão da ciência linguística e de sua relação com a
teoria da psicanálise.
1. A psicanálise e a linguagem
A linguagem, como fenômeno, pode ser encarada de dois pontos de vista: ou bem se a
considera somente como o conjunto das línguas naturais, de tal modo que são essas
últimas – com suas particularidades substanciais ou formais – que importam; ou bem se
a considera como um objeto unitário, com suas propriedades gerais (substanciais ou
formais).
Essa questão concerne à maneira pela qual o objeto e o domínio da psicanálise podem
ser afetados pela existência de um ou outro dado de língua; assim, perguntar-se-á em
que medida a psicanálise tem de levar em conta em sua prática e em sua teoria dados
tais como a diversidade das línguas, os fenômenos de tradução, a morfologia, o léxico, a
sintaxe de uma língua particular. A literatura psicanalítica abunda em exemplos em que
dados assim revelam-se pertinentes, tanto nos freudianos da primeira geração (pode-se
citar especialmente Karl Abraham e Theodor Reik) quanto nos trabalhos mais recentes,
marcados pelo ensino de Jacques Lacan. Geralmente, é sabido que a psicanálise se
ampara de modo decisivo naquilo que se diz na sessão; ora, esse dizer efetua-se em
língua e encontra-se necessariamente estruturado pelas diversas regras de cada língua
particular. Disso naturalmente se deduz que esse ou aquele dado substancial tirado das
línguas como elas são é um dado que a psicanálise, na sua prática ou na sua teoria,
pode e deve levar em conta.
Pode-se notar mais particularmente o seguinte: na medida em que têm uma substância,
as línguas podem dar lugar, num ou noutro ponto, a investimentos imaginários. No
máximo, isso constitui o fundamento daquilo que comumente se chama de estilo e que,
ordinariamente, compete mais ao eu [moi] do que ao sujeito. No mínimo, pode-se
mencionar o vasto conjunto de superstições linguísticas: em português [en français], por
exemplo, o gênero gramatical dos nomes não deixa de afetar a representação imaginária
que um sujeito pode formular a respeito da diferença dos sexos. Da mesma forma, o
fato de se denominar passivo as estruturas do tipo uma criança é espancada 2 pode
eventualmente afetar a verbalização desse ou daquele sintoma etc. Desse ponto de
vista, pode-se pensar na maneira pela qual as propriedades materiais dos objetos do
mundo (a anatomia e a fisiologia do corpo humano, por exemplo) se prestam a
investimento. A linguística faz, então, o papel de uma ciência que estabelece as
propriedades materiais de um objeto particular – da mesma forma que as ciências
anatômica e fisiológica o fazem para o corpo. Ela é, pois, tida como uma disciplina capaz
de fornecer informações dignas de confiança sobre seu objeto. Pode-se falar, nesse caso,
de uma relação enciclopédica.
Convém, contudo, expressar duas reservas. Por um lado, a linguística não é a única que
se ocupa da linguagem e das línguas (a gramática, em especial, subsiste ao seu lado), e
a psicanálise não está sempre se endereçando à linguística para recolher informações.
Por outro lado, não é certo que a linguística tenha de tratar de todos os fenômenos que
são do foro da linguagem. Sabe-se, particularmente, que Saussure havia excluído de seu
campo tudo o que era do foro da fala [parole] como lugar de emergência do sujeito. Ora,
isso é a primeira tese do Discurso de Roma de Jacques Lacan: se tomamos a fala no
sentido saussuriano, é precisamente ela que determina o domínio em que se exerce a
psicanálise. Temos, então, que as dimensões da linguagem que mais importam à
psicanálise são justamente aquelas de que a linguística não trata. Na medida em que a
linguagem importa à psicanálise, esta se constitui propriamente nos limites da linguística
– uma vez admitido, contudo, que ao dizer limite, diz-se também contato constante.
Lacan havia forjado a palavra linguisteria para designar essa relação de proximidade e
de heterogeneidade absoluta (cf. Mais, ainda).
Acontece de um ou outro dado de língua permitir propor uma analogia estrutural que
esclareça o funcionamento de processos inconscientes. Assim, em A Interpretação dos
Sonhos, o termo interpretação (Deutung) compete à filologia. Isso não quer dizer que,
aos olhos de Freud, o sonho seja uma língua propriamente dita, mas que seu
funcionamento é análogo, por certos traços essenciais, ao de uma língua. É verdade que
a relação, aqui, permanece geral; mais tarde a analogia se torna mais estrita, e até
mesmo chega a autorizar um modelo de investigação: ao fazer funcionar de maneira
quase mecânica um domínio estritamente delimitado da língua alemã, Freud constrói
exaustivamente um conjunto de formações do inconsciente. Assim, as diversas maneiras
de refutar a frase eu (um homem), lhe amo (ele, um homem) 3 permitem engendrar
as principais formas da paranoia; nessa geração formal, Freud se apoia explicitamente
numa análise estritamente gramatical do tipo sujeito-verbo-objeto (Observações
psicanalíticas sobre a autobiografia de um caso de paranoia [Dementia paranoides]).
Encontram-se procedimentos semelhantes no tocante à fantasia da criança espancada
(Uma criança é espancada), pela análise da pulsão escópica (que repousa
essencialmente sobre a simetria de língua entre observar e ser observado; cf.
Pulsão e destino das pulsões). De forma mais geral, pode-se assinalar que essas
analogias colocam especialmente em causa duas noções oriundas do estudo das línguas:
a oposição ativo/passivo, por um lado; a noção de frase, por outro.
Há aí, é verdade, uma grande parte de ilusão. As línguas ditas antigas não têm
propriedades estruturais que as distingam das línguas modernas; com isso, as primeiras
não revelam nada de específico com relação às segundas. Deste modo, o fenômeno dos
sentidos antitéticos existe, certamente, mas é verdade que os exemplos de Freud,
retomados de K. Abel, são geralmente errôneos, como sublinhou Émile Benveniste; há,
contudo, outros mais garantidos: eles pertencem tanto às línguas modernas quanto às
línguas antigas. O fenômeno não tem, portanto, nada de especialmente primitivo, e se
ele esclarece algo dos processos inconscientes, não é na medida em que testemunharia
um passado da humanidade. De modo mais geral, os dados no tocante à etimologia
podem dar azo à reflexão para a psicanálise; só que nem mais, nem menos do que
fazem os dados sincrônicos. Para compreendermos bem a relação que pode, então, se
estabelecer entre os dados de língua e a psicanálise, pode ser útil que pensemos na
maneira pela qual a psicanálise se ampara nas obras literárias ou nas obras de arte. As
grandes figuras do freudismo, sabe-se, sempre levaram a sério tais testemunhos. Não
era, apesar do que Freud havia dito, para desenvolver uma psicanálise aplicada; é, no
sentido inverso, para tratar tal faceta de uma obra como uma análise em ato. Para Freud
e para Lacan, o psicanalista não tem de interpretar Shakespeare ou Molière, ele tem de
aceitar que Shakespeare e Molière interpretam. Da mesma maneira, exatamente, pode
acontecer que a língua em si mesma possa, por uma ou outra de suas singularidades –
uma etimologia, um paradoxo semântico, uma homofonia etc. – interpretar o sujeito
falante; a tomada da análise consiste somente em ouvir e a fazer ouvir essa
interpretação. 5
É dispensável dizer que a linguística não teria como funcionar na forma do detalhe
singular – mesmo se o que acontece é que ela deva razoar sobre indícios ralos. O
contraste entre linguística e psicanálise é aqui, pois, flagrante.
Se considerarmos que, para além da diversidade das línguas, existe um objeto unitário,
definido por propriedades (de substância e de forma), que chamamos de linguagem,
podemos nos interrogar sobre a relação que esse objeto mantém com o objeto da
psicanálise. Nesse ponto o corte lacaniano é radical: A linguagem é a condição do
inconsciente (O aturdito, p. 490). Dito de outro modo, apenas o ser falante é passível
de inconsciente.
Poderíamos acreditar que a chave da relação entre psicanálise e linguística reside nisto.
Esta última não é a ciência que constituiu a linguagem como objeto para além das
línguas e que lhe propõe uma representação regrada? Entretanto, não é nada disso: na
medida em que determina de maneira decisiva a existência do inconsciente, a linguagem
não é, aos olhos de Jacques Lacan, o que é apreendido pela ciência linguística. E se a
linguística, como ciência, importa à psicanálise, não é na medida em que apreenderia o
essencial do fenômeno da linguagem.
Lacan e a linguística
Não se trata, aqui, do que foi descrito mais acima como relação enciclopédica.
Certamente ela existe: frequentemente acontece de, para descrever ou interpretar dados
de língua, Jacques Lacan se amparar nas informações que a ciência da linguagem
fornece, assim como se ampara em qualquer ciência que seja – a física, a zoologia, a
antropologia etc. –, para esclarecer o que é do foro de sua competência particular. Mas,
se é verdade que, sob esse aspecto, Lacan e seus alunos mostram-se mais atentos que
Freud às formas modernas da ciência da linguagem, é preciso acrescentar, também, que
eles se viram como podem: a tradição gramatical, a filologia clássica, a descrição de
Damourette e Pichon, tudo isso serve tanto e tão frequentemente quanto Jakobson.
Pode-se até mesmo ir mais longe: se nos atemos à relação enciclopédica, é preciso
assinalar a impossibilidade radical em que a ciência linguística se encontra de responder
inteiramente às necessidades da psicanálise.
Com efeito, os jogos de língua (chiste, lapso etc.) a que a psicanálise dá atenção são
constituídos a partir da linguagem e das suas estruturas. De fato, não é impossível que a
linguística adiante ao seu tema [sujet] algumas proposições descritivas; mas é duvidoso
que essas proposições eventuais esclareçam muito a psicanálise. E isso por três razões:
antes de mais nada, esses jogos só interessam à psicanálise na medida em que marcam
a emergência de um sujeito – somente daí nascem os efeitos de sentido que eles
operam –, porém a linguística não pode apreender nada de uma tal emergência.
Segunda razão, enxertada na primeira: tanto o lapso quanto o chiste são – direta ou
indiretamente – possibilitados por colisões homofônicas (cf. O aturdito). Porém, essas
colisões são contingentes; além do mais, elas concernem à forma fônica, a qual é, ela
mesma, amplamente contingente. Sem dúvida, é essa contingência redobrada que
adéqua os jogos de língua a assinalar a emergência, ela mesma contingente, de um
sujeito. Mas, ao mesmo tempo, a ciência linguística não tem nada de específico a dizer.
Mas isso não afeta a importância decisiva que, por outro lado, a possibilidade da ciência
linguística ganha, pois essa importância não está ligada a resultados empíricos, e sim a
decisões teóricas. A esse respeito, uma única forma de linguística importou
verdadeiramente: a linguística estrutural, representada pela tradição saussuriana e
singularmente por Roman Jakobson. Não se trata somente da amizade pessoal que
ligava Jakobson a Lacan, nem sequer da conjuntura histórica dos anos de 1960 – em que
se desenvolve o que se chamava de estruturalismo. A jogada é mais decisiva: ela
concerne à divisão entre duas concepções do inconsciente. Poderíamos retomar, nesse
ponto, a oposição que dividiu por muito tempo a teoria física da luz: o inconsciente se
deixa pensar de maneira corpuscular e mecânica, ou ele deve ser pensado de maneira
ondulatória e dinâmica?
- O conceito de significante
Numa fórmula que se tornou célebre, Lacan sustentou que o inconsciente era
estruturado como uma linguagem. Para poder dizer isso é preciso supor que se dispõe de
uma definição geral e não-vaga do que é ou não é uma linguagem. Uma linguagem,
diremos, então, é um conjunto em que (i) a metáfora e a metonímia são possíveis como
leis de composição interna, e (ii) em que apenas a metáfora e a metonímia são
possíveis. A noção de linguagem revela-se, pois, como sendo um caso particular de uma
noção mais geral. A questão se coloca: como nomear essa noção geral?
Conhece-se a solução dos estruturalistas: a noção geral se define como estrutura. Lacan
jamais admitiu essa solução, que tem o defeito de acentuar as totalidades (nesse
sentido, Lacan é certamente um anti-estruturalista convicto); o nome que ele propôs
para designar o modo de existência específico daquilo que tem as propriedades de uma
linguagem (sem depender necessariamente da linguagem) acentua não a totalidade,
mas o elemento: é o significante.
É, pois, significante aquilo que não tem existência e propriedades senão por oposição,
relação e negação. Daí a proposição o significante representa o sujeito para um outro
significante – a definição estrita do significante repousa, aí, na expressão representar
para, estenograma de uma existência opositiva, relativa e negativa. O termo
significante vem evidentemente de Saussure, mas não sem uma modificação profunda:
são abandonados o horizonte do signo e, ao mesmo tempo, a oposição ativo/passivo que
modelava o casal significante/significado. Como assinala seu próprio nome, o significante
é essencialmente ação.
- Evolução do modelo
Uma vez estabelecido que a psicanálise é possível, e uma vez estabelecido que os dados
de línguas estão em intersecção com os dados da psicanálise, pode-se aprender algo de
novo no tocante ao funcionamento da linguagem, partindo dos dados da psicanálise?
Nesse caso, a psicanálise não depende da linguística. É bem mais a linguística que
poderia eventualmente ter de levar em conta dados trazidos à luz pela psicanálise. Esse
movimento seria análogo àquele por meio do qual Freud não se limita a buscar
confirmações independentes nos dados da antropologia ou da história das religiões, e
sim propõe hipóteses originais nesses domínios.
Sabe-se, com efeito, que a psicanálise passa pelo exercício da fala; sabe-se, também,
que a linguística exclui de seu objeto as marcas da emergência subjetiva, isto é,
justamente esse conjunto que, depois de Saussure, se resume sob o nome de fala. Não
é menos verdade que os dados de que ela trata apresentam-se a ela, em última
instância, como palavras11 proferidas por sujeitos. Resumindo, a fala constitui a matéria
daquilo que ela manipula; os dados que o linguista encontra e os dados que o analista
encontra têm, portanto, a mesma substância.
Que o linguista deva, nesses dados, operar uma filtragem para salvaguardar as
exigências de regularidade, de repetibilidade, de reprodutibilidade, sem o que nenhuma
ciência é possível, isso é certo; que o linguista possa operar essa filtragem, sem
deformação excessiva de seu próprio objeto, é uma questão que ele não pode deixar de
se fazer. Ele deve tanto mais fazê-la a si, que só é linguista na medida exata em que é,
ele próprio, um sujeito falante. Em certos casos – especialmente quando estuda sua
própria língua – esse voltar-se sobre si lhe é, por exemplo, constantemente imposto;
mas, de toda forma, mesmo supondo que estude uma língua que não seja a sua, ele não
pode estudá-la sem fazê-la sua, por pouco que seja. Estabelece-se, pois, sempre uma
coincidência entre o observador e o observado; isso não deixa de criar uma estrutura
paradoxal. A linguística tem de suportar esse paradoxo; mas a psicanálise encontra um
paradoxo aparentado, visto que apenas um ser afetado por um inconsciente pode ser
analista. Porém, diferentemente da linguística, ela não se limita a subjugá-lo: ela o trata
empírica e teoricamente. Resta estabelecer se a ciência linguística pode entender, nesse
ponto, o discurso analítico.
Referências bibliográficas