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Apresentação
Este livro surgiu da minha experiência como docente nos cursos de Pragmática na
UFMG. Desde o começo, 10 anos atrás, comecei a escrever uma apostila para os alunos,
porque sentia muita falta de um texto em português que ao mesmo tempo desse as
ferramentas básicas da disciplina, mas representasse em alguma medida o panorama de
hoje, 35 anos depois da publicação do Pragmatics de S. Levinson, que em 2006 foi
finalmente traduzido no Brasil.
O livro foi concebido com a intenção de ajudar os alunos de graduação da disciplina,
mas também para servir a leitores, talvez de outras disciplinas linguísticas ou filosóficas,
que quisessem entender as bases de uma disciplina que tem se estendido muito nas últimas
décadas. Tem se estendido em sua importância autônoma, a essa altura plenamente
reconhecida, e tem se estendido em sua área de investigação, mais ou menos em interface
com outras disciplinas.
Contudo, o livro não entra nessas áreas e apenas se concentra nos instrumentos de base,
comuns a todas ou quase as abordagens e os setores de investigação da pragmática
linguística, mesmo se em interface com outras disciplinas.
Como frequentemente acontece, motivos de espaço obrigam a fazer escolhas e a deixar
de lado temas que mereceriam ser tratados. Entre os assuntos tradicionalmente incluídos
na pragmática, dois serão sacrificados nesse volume: a politeness ou cortesia, e a análise
da conversação, dois temas em interface com a sociolinguística. Também será sacrificado
um recente âmbito de estudos, a pragmática experimental, que ocupa a interface com a
psicolinguística.
A cortesia consiste no estudo das normas linguísticas e sociais que governam a
negociação da face entre os falantes. Ou seja, como nós usamos a linguagem e o
comportamento para governar ou não o equilíbrio interpessoal e negociar a relação com
outro em situações diversas e com objetivos diversos, consideradas as nossas condições
sociais, pessoais e situacionais.
A análise da conversação se acompanha uma metodologia muito usada para o estudo
empírico das interações linguísticas, com grande atenção para a descrição de como se
desenvolvem essas interações do ponto de vista linguístico e comportamental, ao
gerenciamento e à alternância dos turnos, às expectativas comportamentais, a ponto de
individualizar pequenos esquemas que tendem a serem canônicos, como pergunta-
resposta, cumprimento-cumprimento, convite-aceitação (ou recusa), elogio-
agradecimento (frequentemente, por politeness, negando o merecimento do elogio),
chamados de pares adjacentes. Em trabalhos da análise da conversação, encontram-se
análises extremamente finas das interações linguísticas.
Ao mesmo tempo, introduzimos algumas noções elementares de prosódia para permitir
uma melhor compreensão de algumas abordagens importantes de estudo de conceitos da
pragmática: a ilocução, a atitude e a estruturação informacional. O reconhecimento da
importância da prosódia para a investigação desses conceitos é antigo, mas somente nas
últimas décadas as evoluções tecnológicas e uma maior compreensão das interações
faladas espontâneas conduziram a um maior interesse para o estudo da prosódia no âmbito
da pragmática.
Gostaria de agradecer alguns leitores que foram de grande ajuda na realização dessa
introdução, deixando claro que a responsabilidade de qualquer falha que tiver ficado é
somente minha.
1. Introdução: o objeto de estudo da disciplina
Observem que as premissas não são fruto de observação, mas são postulados;
observem também que, se as premissas são verdadeiras, nós não conseguimos tornar falsa
a consequência. Ao tentarmos fazê-lo, incorreremos em contradições. Isso significa que,
se as premissas são verdadeiras, a consequência é necessariamente verdadeira. Nos
exemplos acima o procedimento lógico parece apropriado nos dois casos, mas o segundo
deles apresenta um problema. Esse problema diz respeito à validade das premissas, afinal
como lidar com a afirmação de que todos os macacos gostam de TV?...
Um exemplo de raciocínio lógico que ocorre na linguagem é o acarretamento, que
é um tipo de inferência semântica. Podemos definir acarretamento como sendo uma
relação estabelecida entre duas sentenças A e B, de tal modo que o significado da A
contém em si o significado da sentença B. Em outras palavras, se a sentença A for
verdadeira, B necessariamente também será verdadeira, não havendo assim
circunstâncias que satisfaçam as condições de verdade de A e que ao mesmo tempo não
satisfaçam as condições de verdade de B.
Por exemplo, se é verdade que João matou Pedro, então é necessariamente
verdade que Pedro morreu. Seria uma contradição lógica dizer *João matou Pedro, mas
Pedro não morreu.
Essa sentença possui um significado ambíguo, pois pode significar duas coisas:
(i) existe um certo parecerista que revisará todos os artigos submetidos ou (ii) todo artigo
submetido passará pela revisão de um parecerista, não necessariamente o mesmo
parecerista.
Os filósofos da linguagem ideal consideram necessário distinguir entre a forma
gramatical de um enunciado e a sua forma lógica. De fato, a forma gramatical mascara a
real forma lógica, segundo esse modo de ver as coisas. Para expressar a forma lógica é
necessário utilizar uma linguagem lógica e formalizar as proposições utilizando variáveis
como x, y, z para indicar os indivíduos, e símbolos lógicos, como os mostrados na tabela
abaixo.
Símbolo
Quantificador existencial: refere-se a pelo
Ǝ
menos um elemento de um dado conjunto
Quantificador universal: refere-se a todos os
∀
elementos de um conjunto
Λ Conjunção lógica
V Disjunção lógica
→ Condicional (se A, então B)
Aqui o importante não é a notação lógica, mas sim observarmos que uma mesma
forma gramatical (um pareceristas revisará todo artigo que for submetido), que é
ambígua, corresponde a duas formas lógicas não ambíguas. Então, somente através da
explicitação da forma lógica seria possível dar conta do significado dos enunciados.
Quem segue essa visão, como os semanticistas referenciais, considera que o estudo da
linguagem é o estudo da sua forma lógica dos enunciados. O exemplo utilizado foi
adaptado de Ferreira (no prelo, p. 147-8).
1
A virgula entre meu pai e ele deve ser interpretada como uma tentativa de imitar a entonação da oralidade,
pois entre essas duas unidades nós produzimos uma descontinuidade que comunica um valor funcional.
exclusivamente linguística. Veremos isso quando a noção de estrutura informacional for
abordada.
Considerando o exposto nesta seção, podemos definir pragmática como a
disciplina que estuda a competência comunicativa, entendendo por competência
comunicativa a habilidade que os falantes têm de usar a língua de maneira apropriada em
diferentes contextos para exigências comunicativas de tipos variados.
Note que, muito embora haja um verbo na resposta de D, esse verbo não é o núcleo
do sintagma principal do enunciado, que é o SN com carro como núcleo. De fato, a forma
verbal gaste faz parte da oração relativa, que funciona como modificador do SN principal,
restringindo a referência do seu núcleo carro.
Ainda sobre a diferença entre sentença e enunciado, devemos notar que o
enunciado sempre realiza uma ação (‘pergunta’, ‘ordena’, ‘cumprimenta’, ‘batiza’...),
enquanto a sentença, considerada em si, não pode ser interpretada acionalmente, já que é
uma entidade do código, independente de qualquer contexto comunicativo e, portanto,
vazia de significado pragmático. De fato, a autonomia comunicativa do enunciado,
referida acima, se dá pela ação que o enunciado realiza. Veremos mais sobre isso adiante,
quando discutirmos algumas noções propostas primeiramente por Austin ligadas aos atos
de fala.
Essa distinção entre sentença e enunciado nos permite notar que sequências
contendo os mesmos elementos linguísticos podem, de fato, comunicar significados
acionais muito diferentes. Mesmo algo mais simples do que uma sentença, como a o SN
um leão, pode ter diferentes valores acionais. Ao proferir um leão, alguém pode está
dizendo:
Segundo uma tradição que vem desde Aristóteles e que no século XX foi
formalizada por Shannon e Weaver, a comunicação linguística consiste em um processo
de codificação, transferência e decodificação de mensagens. Esse processo é conhecido
como Modelo do código.
Um código pode ser descrito como um sistema de correspondências. Por exemplo,
no código Morse é um sistema de correspondências entre sinais sonoros e visuais (os
pontos e as linhas), de um lado, e as letras do alfabeto, do outro. As línguas naturais
associam as palavras e os enunciados, de um lado, aos conceitos e às representações
mentais, de outro.
Segundo esse modelo, quem fala (ou escreve) codifica os próprios pensamentos
nas expressões da língua, e quem escuta (ou lê) decodifica essas expressões, tendo assim
acesso aos pensamentos do falante.
O processo da comunicação pode falhar, então, devido (i) a um erro na codificação
ou decodificação, (ii) à presença de um ruído no canal impedindo que a mensagem chegue
na integra ao destinatário ou, naturalmente, (iii) ao não compartilhamento do código pelos
interlocutores (ou seja, os falantes não falam a mesma língua).
Shannon e Weaver, no final da década de 1940, propuseram um modelo inspirado
nas telecomunicações (Figura 1). Nesse modelo, o falante (a fonte da informação)
codifica as suas representações mentais em ondas sonoras (o sinal) e emite assim a sua
mensagem. A mensagem passa através do ar (o canal) e alcança o ouvido do interlocutor,
que então a decodifica. A mensagem, durante seu caminho ao longo do canal, pode ser
comprometida por algum ruído (por exemplo, um barulho externo que se sobreponha ao
sinal linguístico). Se ela não for comprometida, a comunicação terá sido bem-sucedida.
Tudo isso significa que o sucesso da comunicação linguística, ruído à parte,
depende do conhecimento do significado convencional das expressões do código por
parte dos interlocutores.
a) Carlos e Maria casaram entre si. Isso não é está codificado na sequência de
palavras, e seria perfeitamente possível que Carlos tivesse se casado com,
digamos, Ana e Maria tivesse se casado com Beatriz.
b) Eles tiveram os filhos juntos. Com base apenas no código, seria também possível
que eles tivessem tido três filhos com outros parceiros, uma vez que essa
informação não é especificada linguisticamente
c) Os filhos são somente três. Em princípio, eles poderiam ter mais filhos, porque se
eles tivessem, digamos, quatro filhos, seria também verdade que tinham três.
d) A ordem dos acontecimentos é: primeiro se casaram e depois tiveram os filhos.
Em princípio, seria possível que eles primeiro tivessem tido os três filhos e depois
tivessem se casado.
Essas informações não são adquiridas através do código, mas através de processos
inferenciais que se apoiam em conhecimentos de mundo e na experiência dos falantes.
Chegamos então ao Modelo inferencial, que se origina das reflexões do filósofo
britânico Paul Grice. A esse filósofo devemos a importante distinção entre significado
das expressões linguísticas (ou seja, do código) e significado do falante, ou seja, o que
um falante quer dizer usando certas expressões linguísticas, sua intencionalidade.
Segundo o Modelo inferencial, o acesso aos pensamentos dos falantes não depende só da
decodificação das expressões linguísticas convencionalizadas, mas também dos
processos inferenciais suscitados pela interação das expressões linguísticas com os
elementos contextuais. Assim, a comunicação linguística pode falhar tanto na codificação
e decodificação das expressões, quanto por problemas no processo inferencial. Teremos
oportunidade de aprofundarmos esse modelo mais adiante.
1.6. O contexto
Pelo que foi dito até aqui, deve ter ficado claro que a pragmática confere
centralidade ao contexto para o estudo do significado. Contudo, é extremamente difícil
definir o que vem a ser o contexto. Na comunicação cotidiana, nós recorremos
constantemente ao contexto, implícita ou explicitamente, quase sempre dando por óbvia
a atribuição de um determinado significado ao que falamos ou escutamos, sem
percebermos que a forma linguística do dito poderia ter muitos significados e que é a
interação com o contexto que nos permite desfazer ambiguidades com tanta facilidade
que sequer percebemos que certas expressões são ambíguas.
O contexto é sempre usado na atribuição de valor comunicativo a expressões e
ações linguísticas, assim como o é no caso de ações não linguísticas. Sem contexto, não
conseguiríamos decidir sobre o significado de gestos, ações ou sentenças enunciadas.
A reflexão sobre o contexto é vasta e presente em diferentes disciplinas: filosofia,
antropologia, psicologia, etnometodologia, linguística, pragmática, sociolinguística etc.
Aqui faremos apenas algumas considerações fundamentais, mostrando certas tentativas
de definição, já que cada uma dessas tentativas mostra um aspecto importante da noção
de contexto, sem, contudo, oferecer uma definição completamente satisfatória.
O conceito de situação (Malinowski e Firth) é fundamental para a presente
discussão. A situação inclui as características pertinentes dos participantes, a ação verbal
e não verbal deles, os objetos pertinentes à interação, o efeito da ação verbal. A
ritualização na conversa é algo muito maior do que nós normalmente pensamos. Ao se
comunicar, um indivíduo não é completamente livre para dizer o que quer e do jeito que
quer. O contexto (a situação) determina em enorme medida o tom, a linguagem, a atitude,
os sentidos que são permitidos...
Apesar da nossa individualidade, somente agindo (também verbalmente) segundo
normas sociais podemos satisfazer as nossas exigências e cumprir nossos propósitos. A
pressão da situação sobre a maneira com que falamos dificilmente pode ser
superestimada.
Hymes, um etnometodólogo americano, criou o acróstico SPEAKING para definir
componentes do contexto:
Nesse exemplo entenderemos a que se referem cuja, campeão, disso e sua graças
ao contexto, pois, essas mesmas palavras podem designar referentes completamente
diferentes dos que designam no exemplo. Voltaremos a examinar esse tipo de fenômeno
quando tratarmos das funções das expressões nominais e da dêixis.
Em suma, a compreensão de uma mensagem acontece em vários níveis: quem
recebe uma mensagem deve entender as expressões do código, as relações e conexões
entre elas, entre elas e a realidade, entre elas e quem as pronunciou, e a intenção que o
falante atribui às expressões que usa. Isso tudo significa construir um modelo de discurso
adequado. Devemos ter presente que comunicação implica a ideia intencionalidade, afinal
transferência informação involuntária não é comunicação. É uma tarefa da pragmática
procurar entender como os falantes fazem tudo isso.
2. Nomes, significados, status cognitivo
A função referencial, por sua vez, refere-se ao uso de um nome (ou expressão
nominal) para evocar no modelo de discurso do interlocutor um elemento da realidade
(ou da imaginação) a que chamamos referente. Um referente evocado através de uma
expressão referencial torna-se um referente textual do modelo de discurso em ato, ou seja,
um referente instaurado, parte do conhecimento compartilhado. São exemplos desse tipo
de função as expressões em itálico abaixo.
Imagine o enunciado acima sendo enunciado sem que se tenha feito referência
prévia a qualquer governo. Em tal caso, ao utilizar a expressão o governo, o falante refere-
se a algo que ele considera que o seu interlocutor tenha condições de identificar, ou seja,
“o governo” é parte do Common Ground, e o interlocutor deve, portanto, recuperar o
referente no seu modelo de discurso.
Já no caso da expressão uma nova emenda, o falante introduz o referente evocado
pela expressão no modelo de discurso do seu interlocutor, ou seja, o falante instaura algo
que o interlocutor deve interpretar como não identificável.
Nos exemplos em inglês acima, o nome próprio John é usado com função
referencial no primeiro enunciado e com função alocutiva no segundo. Note que John
com função alocutiva aparece sozinho em uma unidade prosódica à parte (indicado por
“/”), não fazendo parte da estrutura argumental da sentença.
Além das funções vistas até aqui, os nomes podem também desempenhar a função
atributiva e a função predicativa. Isso acontece quando as expressões nominais não
servem nem para instaurar um referente textual nem para identificar o
interlocutor/destinatário, mas sim para qualificar ou identificar um referente já instaurado,
atribuindo a ele algumas propriedades.
2.2.1. Descriptores
2.2.3. Indexicais
- O Brasil ganhou a sua terceira copa do mundo no México. Foi ali que Pelé
e seus companheiros finalmente levaram para casa a copa Rimet. Isso foi
um marco na história do futebol e tornou aquele time inesquecível.
As palavras sua, seus, ali, isso, aquele, grifadas no trecho acima, não teriam
significado fora do contexto em que aparecem. Nem o significado intensional nem o
significado extensional de cada uma delas, se tomadas fora de contexto, serve para
identificar os referentes dessas expressões. Isso porque o significado dos indexicais faz
referência somente em mínima parte a características dos referentes.
Os indexicais se referem ao status (indentificabilidade e ativação) e à disposição
dos referentes no modelo de discurso. Por exemplo, o indexical isso significa algo que foi
mencionado há pouco; a sua extensão pode ser interpretada somente se conhecermos o
contexto discursivo.
Os indexicais, portanto, não denotam o referente, mas informam sobre:
Se nós podemos, efetivamente, fazer referência a algo, isso quer dizer que o
referente é acessível, ou seja, que ele pode ser de alguma maneira recuperado pelo
interlocutor no seu modelo de discurso. Um referente pode ser acessível em diferentes
graus e meios.
Retomemos a noção de leitura, mencionada acima, de um descriptor, que pode ser
genérica ou não genérica. Uma leitura genérica faz referência a uma classe. Uma leitura
não genérica (que pode ser específica ou não específica) faz referência a um indivíduo.
Uma leitura específica faz referência a uma entidade individual. Já uma leitura
não específica faz referência a uma entidade individual qualquer que pertença à classe
evocada pelo descriptor (chama um amigo para te ajudar... em que um amigo não se
refere a um amigo específico, mas a um indivíduo qualquer que pertença à classe dos
amigos do interlocutor). O diagrama abaixo mostra os diferentes tipos de leitura.
Os enunciados seguintes exemplificam as diferentes leituras.
A diferença entre (b) e (c) não está na leitura (específica nos dois casos), mas no
grau de acessibilidade. A referência nos dois casos é feita a um indivíduo em particular,
mas enquanto em (b) o referente é apresentado como identificável (o leão remete a um
referente que o falante considera que o seu interlocutor tenha condição estabelecer qual
é), em (c) o referente é apresentado como não identificável (um leão remete a um
indivíduo específico mas que o falante considera que o seu interlocutor não tenha
condições de precisar).
Apresentar um referente como identificável significa comunicar ao interlocutor
por meio do uso de certos dispositivos formais (o artigo definido, por exemplo) que ele
tem condições de estabelecer inequivocamente a qual referente o descriptor se refere, ou
seja, que esse referente está presente no modelo de discurso do interlocutor.
Ainda sobre os tipos de leitura, temos outra possibilidade:
Em (d), um leão faz referência não a um indivíduo específico (seja ele identificável ou
não), mas sim a um indivíduo qualquer que pertença à classe dos leões. Esse “indivíduo
qualquer” continua sendo um indivíduo (= leitura não genérica); não é mais um indivíduo
determinado, mas sim um indivíduo qualquer. Essa é a leitura não genérica que chamamos
de não específica.
Os meios para sinalizar leitura (genérica, específica, não específica) e
acessibilidade (identificável, não identificável, ativo) se sobrepõem aos meios que
usamos para sinalizar outras funções. Portanto, não temos regras formais que possam ser
aplicadas mecanicamente para avaliarmos a leitura de um descriptor e a acessibilidade do
referente que ele designa. O que devemos fazer para estabelecer o tipo de leitura e de
acessibilidade é recuperar as instruções fornecidas pelo falante e combiná-las com os
elementos fornecidos pelo discurso e pela situação.
O grau de acessibilidade de um referente depende (i) do quanto ele é identificável,
ou seja, se ele está ou não presente na memória do interlocutor, e (ii) do quanto o ele está
presente à atenção do interlocutor em um determinado momento do discurso. O grau de
acessibilidade se julga com base na instrução que o falante fornece ao interlocutor. Essa
instrução é dada com base no que o falante considera como conhecimento compartilhado
(common ground) entre ele e o interlocutor. Vejamos alguns exemplos.
As expressões referenciais podem, portanto, ter uma leitura que faz referência à
classe (leitura genérica), a um indivíduo específico (identificável ou não) ou a um
indivíduo não específico.
A propriedade de ser identificável relaciona-se à possibilidade de se dizer
inequivocamente qual é o referente. Dizer com certeza qual é o referente não equivale a
conhecer em detalhe o referente, mas simplesmente saber precisá-lo em meio a todos os
indivíduos que possam ser incluídos na classe do descriptor. Ou seja, identificar um
referente é receber do falante as instruções para buscar e individualizar esse referente na
memória e/ou no contexto extralinguístico e/ou no contexto linguístico.
percebemos que o falante (ou redator) supõe que os destinatários dessa mensagem saibam
que existem um governo e uma oposição, e também que saibam o que é a Lava Jato. Esses
conhecimentos são tomados como compartilhados com o interlocutor, de modo que não
se faz necessário explicitá-los linguisticamente.
Como já mencionado, o contexto extralinguístico de uma interação também
influencia o quão acessível é um referente. Por exemplo, considere o diálogo abaixo entre
indivíduos prestes a saírem para uma caça noturna.
- Ontem fui jogar futebol com um amigo meu. Ele marcou dois gols, mas o time
adversário ganhou assim mesmo.
Vamos supor que se trata de um texto falado e que temos acesso direto à situação
comunicativa. Examinaremos individualmente as expressões referenciais ontem, um
amigo meu, ele, o time adversário, grifadas no exemplo.