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APOSTILA DE PRAGMÁTICA

Prof. Tommaso Raso

Apresentação

Este livro surgiu da minha experiência como docente nos cursos de Pragmática na
UFMG. Desde o começo, 10 anos atrás, comecei a escrever uma apostila para os alunos,
porque sentia muita falta de um texto em português que ao mesmo tempo desse as
ferramentas básicas da disciplina, mas representasse em alguma medida o panorama de
hoje, 35 anos depois da publicação do Pragmatics de S. Levinson, que em 2006 foi
finalmente traduzido no Brasil.
O livro foi concebido com a intenção de ajudar os alunos de graduação da disciplina,
mas também para servir a leitores, talvez de outras disciplinas linguísticas ou filosóficas,
que quisessem entender as bases de uma disciplina que tem se estendido muito nas últimas
décadas. Tem se estendido em sua importância autônoma, a essa altura plenamente
reconhecida, e tem se estendido em sua área de investigação, mais ou menos em interface
com outras disciplinas.
Contudo, o livro não entra nessas áreas e apenas se concentra nos instrumentos de base,
comuns a todas ou quase as abordagens e os setores de investigação da pragmática
linguística, mesmo se em interface com outras disciplinas.
Como frequentemente acontece, motivos de espaço obrigam a fazer escolhas e a deixar
de lado temas que mereceriam ser tratados. Entre os assuntos tradicionalmente incluídos
na pragmática, dois serão sacrificados nesse volume: a politeness ou cortesia, e a análise
da conversação, dois temas em interface com a sociolinguística. Também será sacrificado
um recente âmbito de estudos, a pragmática experimental, que ocupa a interface com a
psicolinguística.
A cortesia consiste no estudo das normas linguísticas e sociais que governam a
negociação da face entre os falantes. Ou seja, como nós usamos a linguagem e o
comportamento para governar ou não o equilíbrio interpessoal e negociar a relação com
outro em situações diversas e com objetivos diversos, consideradas as nossas condições
sociais, pessoais e situacionais.
A análise da conversação se acompanha uma metodologia muito usada para o estudo
empírico das interações linguísticas, com grande atenção para a descrição de como se
desenvolvem essas interações do ponto de vista linguístico e comportamental, ao
gerenciamento e à alternância dos turnos, às expectativas comportamentais, a ponto de
individualizar pequenos esquemas que tendem a serem canônicos, como pergunta-
resposta, cumprimento-cumprimento, convite-aceitação (ou recusa), elogio-
agradecimento (frequentemente, por politeness, negando o merecimento do elogio),
chamados de pares adjacentes. Em trabalhos da análise da conversação, encontram-se
análises extremamente finas das interações linguísticas.
Ao mesmo tempo, introduzimos algumas noções elementares de prosódia para permitir
uma melhor compreensão de algumas abordagens importantes de estudo de conceitos da
pragmática: a ilocução, a atitude e a estruturação informacional. O reconhecimento da
importância da prosódia para a investigação desses conceitos é antigo, mas somente nas
últimas décadas as evoluções tecnológicas e uma maior compreensão das interações
faladas espontâneas conduziram a um maior interesse para o estudo da prosódia no âmbito
da pragmática.
Gostaria de agradecer alguns leitores que foram de grande ajuda na realização dessa
introdução, deixando claro que a responsabilidade de qualquer falha que tiver ficado é
somente minha.
1. Introdução: o objeto de estudo da disciplina

A pragmática é um setor relativamente jovem, mas que conheceu um grande


desenvolvimento no séc. XX. Contudo, como outros campos de estudo, é difícil de ser
delimitado. No termo pragmática, reconhecemos a raiz grega pragma, que significa ação.
Como todas as correntes que nascem dentro do pragmatismo filosófico, a pragmática
estuda a ação humana e, no caso da pragmática linguística, a ação por meio da linguagem.
O que é que nós fazemos quando falamos? Essa é a pergunta de base da pragmática.
Nós, de fato, conseguimos decodificar (entender) se, por exemplo, com o
enunciado vai tomar banho o falante quer dar uma resposta à pergunta o que ele está indo
fazer?, se o falante está dando uma ordem/fazendo uma sugestão, ou se está dirigindo a
alguém um comentário irônico ou mesmo um insulto.
Observe que a ‘decisão’ da ação realizada pelo falante nos faz interpretar a forma
verbal vai ou como presente do indicativo na terceira pessoa com sujeito nulo, ou nos faz
interpretá-la como um imperativo de segunda pessoa do singular. Ou seja, é depois de
interpretar a dimensão acional que temos condições de interpretar a sintaxe e a
morfologia, e também o significado. Entendemos também se a ordem está sendo dada
com agressividade, ou seja, se o clima é de briga, ou se ela está sendo dada sorrindo e
com tom brincalhão para ironicamente sugerir que a última coisa falada pelo interlocutor
é absolutamente absurda: ah, vai tomar banho! Isso que você disse não faz o menor
sentido.
Isso quer dizer que algo nos faz, a partir da mesma sequência de palavras, construir
em nossa mente significadas muito diferentes. O significado semântico (‘literal’) pode até
ser o mesmo, mas o significado pragmático não; pelo contrário, este pode ser muito
diferente em cada realização concreta de determinada sequência de palavras.
Podemos dizer que a semântica estuda o significado do código linguístico,
independentemente de como esse código é usado. A pragmática, ao contrário, estuda
como o código linguístico interage com a situação, que inclui tanto o contexto
extralinguístico quanto o contexto linguístico, este sendo chamado também de cotexto,
para gerar o que é chamado de significado do falante. Qual intenção tinha aquele falante
concreto, naquele contexto, ao proferir aquela sequência de palavras? É o reconhecimento
dessa intenção, combinado com os elementos propriamente linguísticos, que nos permite
chegar ao significado pragmático.
Isso pressupõe que a linguagem seja uma capacidade de natureza acional, por
meio da qual podemos agir, realizando coisas muito diferentes no mundo. Se refletirmos,
as ações não são algo que ocorre somente fora da linguagem. De fato, temos ações
inerentemente não linguísticas, como correr ou mover uma mesa. Mas temos também
ações de natureza inerentemente linguística, como perguntar ou contar uma história.
Ademais, temos também ações que podem ser realizadas tanto com o uso da linguagem
quanto sem o uso dela, como dar uma ordem, chamar alguém e cumprimentar. Isso se
estivermos tratando o termo linguagem no sentido técnico, e não em sentido metafórico,
como quando falamos em linguagem da arte ou linguagem da moda etc. É verdade que
podemos comunicar com a nossa arte e a nossa roupa, mas a comunicação linguística é
um território mais específico. As outras espécies de animais também possuem a
capacidade de comunicar, de maneira mais ou menos complexa; porém, somente a
espécie humana possui a linguagem.
É fundamental para definirmos a pragmática a relação da língua com o mundo em
que ela é usada. Emergem, portanto, como fatores decisivos o conceito de uso da língua
e as noções de relação da língua com as pessoas, os lugares, o tempo, os objetivos com
que ela é usada.
Simplificando, podemos definir a pragmática como o estudo do uso da língua em
contexto. É evidente, então, que o âmbito de estudo da pragmática é muito grande, e é por
isso que é difícil defini-la.
Hoje em dia, o termo pragmática se aplica, por exemplo, ao estudo da
comunicação entre membros de culturas diferentes para mostrar diferentes interpretações
dos enunciados com base em diferentes pressupostos culturais, ao estudo das interações
entre indivíduos com diferentes religiões, sexos, idades, papeis sociais ou outras
características que constituam contextos relevantes para guiar a interpretação linguística.
O termo pragmática também se aplica ao estudo dos efeitos gerados na linguagem
pelos meios e contextos específicos (comunicação telefônica, comunicação em sala de
aula, comunicação entre médico e paciente etc.), ao estudo dos processos cognitivos que
levam ao processamento de inferências, ao estudo da codificação das ações verbais, da
organização informacional do texto, entre outros.
A disciplina mostra, assim, interfaces com a sociologia, a antropologia, a
comunicação, a psicologia, a linguística e outras disciplinas mais. Podemos, portanto,
olhar para a pragmática mais como uma perspectiva do que um campo bem delimitado
de estudo.
Aqui restringimos o campo da pragmática ao que chamamos de pragmática
linguística. Veremos como a perspectiva pragmática se aplica à linguagem passando por
todos os seus níveis descritivos: o significado, a estruturação das palavras, as realizações
fonéticas etc. Por isso é importante que você leia com atenção o texto de base contendo
conceitos básicos de linguística.
A pragmática linguística possui suas raízes na polêmica entre a filosofia da
linguagem ordinária e a filosofia da linguagem ideal. Antes de entender melhor essa
discussão, precisamos entender a diferença entre raciocínio lógico-dedutivo e raciocínio
empírico-indutivo.

1.2. Raciocínio lógico e raciocínio empírico

O raciocínio científico pode ser de natureza lógico-dedutiva ou empírico-indutiva.


Uma maneira de explicar as diferenças entre os dois é dizer que o raciocínio lógico-
dedutivo parte do geral para chegar ao particular, enquanto o raciocínio empírico-indutivo
parte do particular para chegar ao geral. Esses dois procedimentos são conhecidos
também como top-down e bottom-up, respectivamente. Mas o que isso significa?
O raciocínio lógico-dedutivo parte de uma ou mais premissas, não
necessariamente demonstráveis, mas que por alguma razão são consideradas válidas a
priori. Dizemos que as premissas são postuladas. Se essas premissas são verdadeiras e o
procedimento lógico é aplicado corretamente, então as consequências do raciocínio, suas
conclusões, serão necessariamente verdadeiras.
O raciocínio empírico-indutivo, por seu turno, parte da observação, ou seja, da
experiência com dados observáveis, e a partir disso extrai generalizações que têm maior
ou menor probabilidade de serem verdadeiras. Suas consequências são, portanto,
prováveis, mas não necessárias, como são aquelas resultantes do procedimento dedutivo.
Vejamos alguns exemplos de raciocínio lógico-dedutivo.

Premissa 1: Todos os homens são mortais


Premissa 2: Sócrates é um homem
Consequência lógica: Sócrates é mortal

Premissa 1: Todos os macacos gostam de TV


Premissa 2: Kino é um macaco
Consequência lógica: Kino gosta de TV

Observem que as premissas não são fruto de observação, mas são postulados;
observem também que, se as premissas são verdadeiras, nós não conseguimos tornar falsa
a consequência. Ao tentarmos fazê-lo, incorreremos em contradições. Isso significa que,
se as premissas são verdadeiras, a consequência é necessariamente verdadeira. Nos
exemplos acima o procedimento lógico parece apropriado nos dois casos, mas o segundo
deles apresenta um problema. Esse problema diz respeito à validade das premissas, afinal
como lidar com a afirmação de que todos os macacos gostam de TV?...
Um exemplo de raciocínio lógico que ocorre na linguagem é o acarretamento, que
é um tipo de inferência semântica. Podemos definir acarretamento como sendo uma
relação estabelecida entre duas sentenças A e B, de tal modo que o significado da A
contém em si o significado da sentença B. Em outras palavras, se a sentença A for
verdadeira, B necessariamente também será verdadeira, não havendo assim
circunstâncias que satisfaçam as condições de verdade de A e que ao mesmo tempo não
satisfaçam as condições de verdade de B.
Por exemplo, se é verdade que João matou Pedro, então é necessariamente
verdade que Pedro morreu. Seria uma contradição lógica dizer *João matou Pedro, mas
Pedro não morreu.

Vejamos agora um exemplo de raciocínio indutivo.

Premissa 1: Observei 1.000 homens


Premissa 2: Todos eles tinham 5 dedos em cada mão
Consequência: todos os homens têm 5 dedos em cada mão

Nesse exemplo, as duas premissas são fruto da experiência, da observação. Assim,


não são verdades estabelecidas aprioristicamente. Contudo, a consequência jamais será
necessária (nem mesmo se ela for fruto de um número muito maior de observações), mas
sempre mais ou menos provável. De fato, independentemente de quantos são os homens
observados, será sempre possível acrescentar uma nova premissa (isto é, encontrar um
novo dado) que torne falsa a consequência:

Premissa 3: o homem 1001 tinha 6 dedos

Um exemplo de como o raciocínio indutivo ocorre com muita frequência na


comunicação linguística é o seguinte:

Premissa: A maior parte dos alunos foi à aula


Consequência: então alguém faltou

Essa consequência não é necessariamente verdadeira, pois não existe contradição


lógica entre a verdade de a maior parte foi e a verdade de todos foram. Tanto é que não
é uma afirmação contraditória dizer a maior parte dos alunos foi à aula, e talvez todos
tenham ido. Compare com a clara contradição presente em a maior parte dos alunos foi
à aula, e talvez ninguém tenha ido.
É com base na experiência (não com base na lógica!) que nós entendemos que se
alguém diz que a maior parte de X, então essa pessoa quer dizer nem todos X. De fato, a
experiência nos ensina que quem usa a expressão a maior parte geralmente o faz quando
não tem elementos o bastante para usar a expressão todos. Voltaremos a essa questão
quando tratarmos das Máximas de Grice e das assim chamadas implicaturas escalares,
um tipo de inferência de natureza bem diferente do acarretamento, que vimos logo acima.
Vemos, assim, que a comunicação linguística frequentemente funciona com base
em raciocínio de natureza empírica, o qual é fundamentado na experiência que temos do
uso linguístico, e não na lógica.

1.3. A filosofia da linguagem ideal e a filosofia da linguagem ordinária

1.3.1. A filosofia da linguagem ideal

A expressão filosofia da linguagem ideal refere-se ao modo de conceber a análise


da linguagem dos fundadores da filosofia da linguagem contemporânea, tais como Frege,
Russell e Wittgenstein em sua primeira fase. Segundo esses autores, as línguas naturais
são geralmente ambíguas e imperfeitas. O filósofo, portanto, deve individualizar uma
linguagem simbólica “ideal” isenta de ambiguidades. Mas por que as línguas naturais
seriam ambíguas e imperfeitas?
Consideramos a sentença seguinte:

 Um pareceristas revisará todo artigo que for submetido

Essa sentença possui um significado ambíguo, pois pode significar duas coisas:
(i) existe um certo parecerista que revisará todos os artigos submetidos ou (ii) todo artigo
submetido passará pela revisão de um parecerista, não necessariamente o mesmo
parecerista.
Os filósofos da linguagem ideal consideram necessário distinguir entre a forma
gramatical de um enunciado e a sua forma lógica. De fato, a forma gramatical mascara a
real forma lógica, segundo esse modo de ver as coisas. Para expressar a forma lógica é
necessário utilizar uma linguagem lógica e formalizar as proposições utilizando variáveis
como x, y, z para indicar os indivíduos, e símbolos lógicos, como os mostrados na tabela
abaixo.

Símbolo
Quantificador existencial: refere-se a pelo
Ǝ
menos um elemento de um dado conjunto
Quantificador universal: refere-se a todos os

elementos de um conjunto
Λ Conjunção lógica
V Disjunção lógica
→ Condicional (se A, então B)

Assim, as duas interpretações da sentença acima, reproduzidas abaixo, poderiam


ser formalizadas do seguinte modo:

(i) existe um certo parecerista que revisará todos os artigos submetidos

Ǝx [PARECERISTA(x) Λ ∀y [ARTIGO(y) → REVISARÁ(x,y)]]


Ou seja: existe um indivíduo x que tem duas propriedades: x é parecerista e x revisará
todo artigo em questão
(ii) todo artigo submetido passará pela revisão de um parecerista, não necessariamente
o mesmo parecerista

∀y [ARTIGO(y) → Ǝx [PARECERISTA(x) Λ REVISARÁ(x,y)]]


Ou seja: para todo y, se y é um artigo, então existe um x, tal que x é um parecerista e x
revisará y.

Aqui o importante não é a notação lógica, mas sim observarmos que uma mesma
forma gramatical (um pareceristas revisará todo artigo que for submetido), que é
ambígua, corresponde a duas formas lógicas não ambíguas. Então, somente através da
explicitação da forma lógica seria possível dar conta do significado dos enunciados.
Quem segue essa visão, como os semanticistas referenciais, considera que o estudo da
linguagem é o estudo da sua forma lógica dos enunciados. O exemplo utilizado foi
adaptado de Ferreira (no prelo, p. 147-8).

1.3.2. A filosofia da linguagem ordinária

A filosofia da linguagem ordinária nasce em Manchester e Oxford entre os anos


de 1930 e 1950 graças a filósofos como J. Austin e P. Grice, que se inspiram no segundo
Wittgenstein (marcado pela rejeição ao dogmatismo e pelo distanciamento da lógica) e
na ideia do “significado como uso”. Em contraste com os filósofos da linguagem ideal,
Austin e Grice defendem que a linguagem ordinária (ou seja, a linguagem que usamos
comumente no dia-a-dia) representa um objeto de análise autônomo.
A ideia central é que a linguagem da lógica não permite entender o real significado
dos falantes no uso cotidiano. Por exemplo, os conectores lógicos Λ e V não seriam
capazes de capturar o significado das expressões linguísticas correspondentes (e e ou,
respectivamente).
Do ponto de vista lógico, o conector e tem sempre o mesmo significado, ou seja,
dadas duas proposições A e B, a expressão AΛB será se verdadeira se tanto A quanto B
forem verdadeiras, independentemente da ordem (ou seja AΛB = BΛA). Mas vejamos os
enunciados seguintes:

 João [colocou o calção] e [entrou na piscina]


 João [não estudou] e [foi reprovado]
 João é [bonito] e [inteligente]

Note que a interpretação do conector e, no primeiro enunciado, inclui a ideia de


sequencialidade (e depois). No segundo enunciado, contudo, a interpretação envolve a
ideia de causalidade (e portanto). No terceiro, podemos inverter os membros da
coordenação sem que isso gere problemas, mas não parece possível inverter os membros
do primeiro e do segundo sem que haja mudança de significado. Mas, do ponto de vista
lógico, a o valor é sempre o mesmo, independentemente da ordem: AΛB = BΛA. Por
isso, a conjunção lógica parece não ser capaz de dar conta do significado de e na
linguagem natural. O mesmo ocorre com a disjunção V (ou) e também com a condicional
→ (se A, então B).

 ?se a Itália fica na Europa, então 2+2=4


Esse enunciado, do ponto de vista lógico, é perfeitamente aceitável, pois uma
condicional é verdadeira se sendo verdadeiro o antecedente (a Itália fica na Europa) o
subsequente (2+2=4) também for verdadeiro. Mas na linguagem natural, a expressão
“se..., então...” veicula uma relação de causa efeito que não é capturada pela lógica, donde
a estranheza causada pelo exemplo acima, afinal, que relação causal pode haver entre a
Itália ficar na Europa e o resultado da operação 2+2 ser 4?
A conclusão dos filósofos da linguagem ordinária é que, já que a lógica não é
capaz de dar conta da complexidade da linguagem natural, o estudo desta não pode se dar
através da lógica. Por isso, Austin defende que o método para a análise da linguagem
natural não deve ser a busca das condições de verdade que permitem avaliar a verdade ou
falsidade dos enunciados linguísticos. Para o filósofo, a análise da linguagem natural deve
necessariamente passar pela questão da adequação, ou seja, deve buscar responder se o
que falamos é ou não é apropriado à situação comunicativa.
Assim, enquanto uma sentença como Trump é uma águia é claramente falsa
semanticamente do ponto de vista do código (afinal não podemos predicar ser uma águia
de uma expressão que se refere a um objeto com o traço [+humano]), no uso cotidiano
essa sentença pode ocorrer perfeitamente, sem que o interlocutor ache que ela não faça
sentido. O que o interlocutor faz diante de uma sentença assim é buscar o sentido na
interação entre o código e o contexto, realizando inferências, ou seja, completando o
percurso semântico que leva a entender o que o falante quer dizer afirmando algo
claramente falso.
Vejamos mais um exemplo. Consideremos uma interação hipotética em que um
dos interlocutores, que tem 5 filhos, diga Eu tenho 3 filhos. Do ponto de vista lógico e do
código, essa pessoa está afirmando algo de verdadeiro: quem tem 5 filhos
necessariamente tem também 3 filhos.
Mas na comunicação cotidiana, nós, a menos que haja um motivo para o contrário,
entendemos que, ao dizer eu tenho 3 filhos, o falante está comunicando que ele ou ela tem
somente 3 filhos. Portanto, o que semanticamente é verdadeiro acaba valendo como uma
espécie de mentira na comunicação normal.
Imagine como seria estranho descobrir que alguém que tenha acabado de dizer eu
tenho 3 filhos tenha, de fato, 5 filhos...
Deve estar ficando claro que existe um significado do código (semântico) e um
significado do falante (pragmático) e que, portanto, é preciso fazer uma distinção entre o
que uma determinada sequência linguística significa em si e o que se pretende realmente
comunicar com o uso da sequência.
Na comunicação real, o significado do código interage sempre com o contexto, e
essa interação pode mudar o sentido linguístico ao ponto de até realizar um sentido
comunicativo oposto àquele que a sequência linguística em si possui. Pense por exemplo
nas ironias. Vejamos um exemplo de outra natureza.
Um enunciado com a sequência meu pai, ele não trabalha nunca,1 é perfeitamente
normal no uso comunicativo diário, mas difícil de ser analisado sintaticamente, já que
parece possuir dois elementos correferenciais (meu pai e ele) desempenhando uma
mesma função sintática. Poderíamos julgar essa sequência como agramatical. Mas, na
verdade, sequências desse tipo são amplamente usadas sem que se crie qualquer
desconforto entre os falantes, e com uma clara eficiência comunicativa. Isso significa que
a relação entre meu pai e o resto da sequência precisa ser explicada em outros termos
além do sintático, de um modo a incluir na explicação elementos de natureza não

1
A virgula entre meu pai e ele deve ser interpretada como uma tentativa de imitar a entonação da oralidade,
pois entre essas duas unidades nós produzimos uma descontinuidade que comunica um valor funcional.
exclusivamente linguística. Veremos isso quando a noção de estrutura informacional for
abordada.
Considerando o exposto nesta seção, podemos definir pragmática como a
disciplina que estuda a competência comunicativa, entendendo por competência
comunicativa a habilidade que os falantes têm de usar a língua de maneira apropriada em
diferentes contextos para exigências comunicativas de tipos variados.

1.4. Sentença e enunciado

É útil distinguir entre sentença e enunciado. A sentença é uma unidade abstrata


de natureza sintática e semântica. O enunciado, por sua vez, é uma unidade pragmática
indissociável do uso que dele é feito. Em outras palavras, a sentença é uma unidade do
código, independente de qualquer contexto de uso, ao passo que o enunciado é uma
unidade que apresenta autonomia comunicativa, podendo coincidir ou não com uma
sentença.
Para a sentença, independentemente da definição específica – como predicação
(SNsujeito + SVpredicado) ou como projeção máxima de um núcleo verbal (núcleo verbal com
todas as posições argumentais preenchidas) –, o verbo é um elemento fundamental. Mas,
de acordo com pesquisas que se debruçam sobre dados reais de uso da língua coletados
em corpora, por volta de um terço dos enunciados não apresentam verbo. E se a esse um
terço somarmos os enunciados que apresentam formas verbais sem função verbal ou em
que o verbo não é o núcleo, chegaremos à mais da metade dos enunciados.
Um exemplo de enunciado com um verbo sem função verbal é a resposta de B no
exemplo seguinte:

A. você nasceu no Brasil?


B. nasci. (= sim)

A forma nasci na resposta de B funciona como uma afirmação, equivalente a sim.


Em outras línguas, como o inglês por exemplo, não é gramatical afirmar através da
retomada do verbo usado pelo interlocutor na pergunta.
Já um enunciado com verbo que não constitui o núcleo do sintagma principal
(“mais alto”) pode ser visto na resposta de D abaixo.

C. Qual carro você gostaria de olhar?


D. Um carro que não gaste muita gasolina.

Note que, muito embora haja um verbo na resposta de D, esse verbo não é o núcleo
do sintagma principal do enunciado, que é o SN com carro como núcleo. De fato, a forma
verbal gaste faz parte da oração relativa, que funciona como modificador do SN principal,
restringindo a referência do seu núcleo carro.
Ainda sobre a diferença entre sentença e enunciado, devemos notar que o
enunciado sempre realiza uma ação (‘pergunta’, ‘ordena’, ‘cumprimenta’, ‘batiza’...),
enquanto a sentença, considerada em si, não pode ser interpretada acionalmente, já que é
uma entidade do código, independente de qualquer contexto comunicativo e, portanto,
vazia de significado pragmático. De fato, a autonomia comunicativa do enunciado,
referida acima, se dá pela ação que o enunciado realiza. Veremos mais sobre isso adiante,
quando discutirmos algumas noções propostas primeiramente por Austin ligadas aos atos
de fala.
Essa distinção entre sentença e enunciado nos permite notar que sequências
contendo os mesmos elementos linguísticos podem, de fato, comunicar significados
acionais muito diferentes. Mesmo algo mais simples do que uma sentença, como a o SN
um leão, pode ter diferentes valores acionais. Ao proferir um leão, alguém pode está
dizendo:

a. um leão [cuidado, ele está vindo para cá]


(pense em uma interação entre dois caçadores na África) ou

b. um leão [olha ali atrás da árvore]


(pense em duas crianças em um jardim zoológico)

c. um leão [o meu gatinho]


(dito sobre um gatinho que devora sua ração, por exemplo)

E essas opções não chegam sequer perto de esgotar as possibilidades de valores


acionais que o SN um leão pode assumir no uso.
Podemos dizer que os enunciados preenchidos pelo SN um leão realizam
diferentes ilocuções (isto é, ações ou atos de fala): um aviso ou uma advertência em (a),
uma expressão de maravilha ou uma dêixis em (b), e um julgamento em (c).
Considerações desse tipo levaram alguns autores a pensar que as expressões
linguísticas não seriam as entidades de fato portadoras de significado, e que elas poderiam
ser imbuídas de (quase) qualquer significado, dependendo do uso que delas os falantes
fizessem. Assim, somente os enunciados (não as sentenças isoladas) carregariam
realmente significado. Nessa perspectiva contextualista (= o contexto determina o
significado), o código em si seria um instrumento para potencializar um aspecto
prioritário da comunicação linguística, ou seja, revelar a intencionalidade do falante.
Mas a construção e a troca de enunciados é algo regulado por convenções, ou seja,
algo sujeito a regras. Podemos dizer que essas regras são o objeto de estudo da
pragmática.

1.5. Modelo do código e Modelo inferencial

Segundo uma tradição que vem desde Aristóteles e que no século XX foi
formalizada por Shannon e Weaver, a comunicação linguística consiste em um processo
de codificação, transferência e decodificação de mensagens. Esse processo é conhecido
como Modelo do código.
Um código pode ser descrito como um sistema de correspondências. Por exemplo,
no código Morse é um sistema de correspondências entre sinais sonoros e visuais (os
pontos e as linhas), de um lado, e as letras do alfabeto, do outro. As línguas naturais
associam as palavras e os enunciados, de um lado, aos conceitos e às representações
mentais, de outro.
Segundo esse modelo, quem fala (ou escreve) codifica os próprios pensamentos
nas expressões da língua, e quem escuta (ou lê) decodifica essas expressões, tendo assim
acesso aos pensamentos do falante.
O processo da comunicação pode falhar, então, devido (i) a um erro na codificação
ou decodificação, (ii) à presença de um ruído no canal impedindo que a mensagem chegue
na integra ao destinatário ou, naturalmente, (iii) ao não compartilhamento do código pelos
interlocutores (ou seja, os falantes não falam a mesma língua).
Shannon e Weaver, no final da década de 1940, propuseram um modelo inspirado
nas telecomunicações (Figura 1). Nesse modelo, o falante (a fonte da informação)
codifica as suas representações mentais em ondas sonoras (o sinal) e emite assim a sua
mensagem. A mensagem passa através do ar (o canal) e alcança o ouvido do interlocutor,
que então a decodifica. A mensagem, durante seu caminho ao longo do canal, pode ser
comprometida por algum ruído (por exemplo, um barulho externo que se sobreponha ao
sinal linguístico). Se ela não for comprometida, a comunicação terá sido bem-sucedida.
Tudo isso significa que o sucesso da comunicação linguística, ruído à parte,
depende do conhecimento do significado convencional das expressões do código por
parte dos interlocutores.

Nota-se que o Modelo do código não consegue explicar diversos aspectos da


comunicação linguística. Imaginemos o enunciado seguinte:

 Carlos e Maria se casaram e tiveram três filhos

Ao decodificar esse enunciado, em uma interpretação específica (outras são possíveis), o


destinatário precisa acrescentar diversas informações que não se encontram no código
diretamente. Vejamos algumas delas:

a) Carlos e Maria casaram entre si. Isso não é está codificado na sequência de
palavras, e seria perfeitamente possível que Carlos tivesse se casado com,
digamos, Ana e Maria tivesse se casado com Beatriz.
b) Eles tiveram os filhos juntos. Com base apenas no código, seria também possível
que eles tivessem tido três filhos com outros parceiros, uma vez que essa
informação não é especificada linguisticamente
c) Os filhos são somente três. Em princípio, eles poderiam ter mais filhos, porque se
eles tivessem, digamos, quatro filhos, seria também verdade que tinham três.
d) A ordem dos acontecimentos é: primeiro se casaram e depois tiveram os filhos.
Em princípio, seria possível que eles primeiro tivessem tido os três filhos e depois
tivessem se casado.

Essas informações não são adquiridas através do código, mas através de processos
inferenciais que se apoiam em conhecimentos de mundo e na experiência dos falantes.
Chegamos então ao Modelo inferencial, que se origina das reflexões do filósofo
britânico Paul Grice. A esse filósofo devemos a importante distinção entre significado
das expressões linguísticas (ou seja, do código) e significado do falante, ou seja, o que
um falante quer dizer usando certas expressões linguísticas, sua intencionalidade.
Segundo o Modelo inferencial, o acesso aos pensamentos dos falantes não depende só da
decodificação das expressões linguísticas convencionalizadas, mas também dos
processos inferenciais suscitados pela interação das expressões linguísticas com os
elementos contextuais. Assim, a comunicação linguística pode falhar tanto na codificação
e decodificação das expressões, quanto por problemas no processo inferencial. Teremos
oportunidade de aprofundarmos esse modelo mais adiante.

1.6. O contexto

Pelo que foi dito até aqui, deve ter ficado claro que a pragmática confere
centralidade ao contexto para o estudo do significado. Contudo, é extremamente difícil
definir o que vem a ser o contexto. Na comunicação cotidiana, nós recorremos
constantemente ao contexto, implícita ou explicitamente, quase sempre dando por óbvia
a atribuição de um determinado significado ao que falamos ou escutamos, sem
percebermos que a forma linguística do dito poderia ter muitos significados e que é a
interação com o contexto que nos permite desfazer ambiguidades com tanta facilidade
que sequer percebemos que certas expressões são ambíguas.
O contexto é sempre usado na atribuição de valor comunicativo a expressões e
ações linguísticas, assim como o é no caso de ações não linguísticas. Sem contexto, não
conseguiríamos decidir sobre o significado de gestos, ações ou sentenças enunciadas.
A reflexão sobre o contexto é vasta e presente em diferentes disciplinas: filosofia,
antropologia, psicologia, etnometodologia, linguística, pragmática, sociolinguística etc.
Aqui faremos apenas algumas considerações fundamentais, mostrando certas tentativas
de definição, já que cada uma dessas tentativas mostra um aspecto importante da noção
de contexto, sem, contudo, oferecer uma definição completamente satisfatória.
O conceito de situação (Malinowski e Firth) é fundamental para a presente
discussão. A situação inclui as características pertinentes dos participantes, a ação verbal
e não verbal deles, os objetos pertinentes à interação, o efeito da ação verbal. A
ritualização na conversa é algo muito maior do que nós normalmente pensamos. Ao se
comunicar, um indivíduo não é completamente livre para dizer o que quer e do jeito que
quer. O contexto (a situação) determina em enorme medida o tom, a linguagem, a atitude,
os sentidos que são permitidos...
Apesar da nossa individualidade, somente agindo (também verbalmente) segundo
normas sociais podemos satisfazer as nossas exigências e cumprir nossos propósitos. A
pressão da situação sobre a maneira com que falamos dificilmente pode ser
superestimada.
Hymes, um etnometodólogo americano, criou o acróstico SPEAKING para definir
componentes do contexto:

Setting (momento, lugar e condição psicológica e cultural da cena)


Participants (por exemplo, o locutor, o interlocutor e o público)
Ends (objetivos dos participantes)
Acts (forma ou conteúdo do que é dito)
Keys (o tom, a maneira, o estado de espírito com que é realizado um ato)
Instruments (o canal -fala, escrita, internet, cinema etc.-, o código, e
subcódigo, ou seja, os registros sociais ou profissionais)
Norms (as regras necessárias para compreender e executar os atos dentro
de uma determinada cultura)
Genres (os gêneros e as tipologias discursivos).
Givón, por sua vez, distingue três tipos de contexto com base na noção de foco: o
foco genérico, ou seja o compartilhamento de noções sobre o mundo e sobre a cultura, a
partir do léxico; o foco dêitico, que significa compartilhar a situação enunciativa, da qual
faz parte a dêixis em sentido próprio, mas também as relações sócio pessoais e os
objetivos dos atos de fala; e o foco no discurso, que significa o compartilhamento do
mesmo cotexto, isto é, o contexto linguístico, o discurso imediatamente anterior e as
inferências relacionadas a isso.
Existe uma discussão entre quem considera o contexto como um a priori (por
exemplo Firth) e quem o considera o contexto como algo que é ativado a partir da
interação (Sperber & Wilson).
Uma outra visão interessante sobre contexto, intermediária entre essas duas
interpretações que acabaram de ser mencionadas, é a apresentação do contexto em dois
níveis: o contexto global e o contexto local. Alguns componentes do contexto global
seriam os participantes, a localização, os objetos envolvidos. Outras componentes seriam
locais, como os componentes de natureza cognitiva (as inferências dos participantes) e
linguística (o cotexto, o gênero discursivo, os tipos de código).
Para dar um exemplo relativo ao mundo universitário, todas as aulas de uma
determinada disciplina compartilham o mesmo contexto global, com a mesma situação
enunciativa: docente, conjunto de alunos, sala, ano acadêmico, assunto da disciplina, a
língua em que a disciplina é oferecida, a área em que é localizada a faculdade etc. Mas o
assunto específico tratado numa aula específica, a maneira com que o docente está vestido
naquela aula, os alunos realmente presentes naquele dia e a maneira com que eles estão
vestidos ou a posição em que eles estão sentados, as ações daquele dia, o uso ou não de
computador ou outro instrumento tecnológico para aquela aula, o cotexto da aula e as
inferências geradas.... tudo isso compõe o grupo de elementos que constituem o contexto
local. Os componentes locais são ativados durante a interação e se tornam aos poucos
relevantes para a interpretação do que é dito. Em alguns casos, faz-se referência aos
componentes globais, mas não necessariamente de maneira explícita. Normalmente essa
referência é implícita.
Muitos são os elementos linguísticos que não podem ser interpretados sem
recorrermos ao contexto: os elementos dêiticos (como eu, aqui, hoje), as metáforas, as
repetições dialógicas (em que os mesmos elementos, repetidos por outro falante, podem
assumir significados variados) e até os tempos verbais. Vejamos o caso seguinte:

A. Você não pode fazer isso amanhã?


B. Na verdade, eu ia pra biblioteca...

Na resposta de B, ia, que morfologicamente é uma forma do pretérito, é


equivalente a um futuro, adquirindo um valor que não é mais de certeza, mas um valor
que está aberto, de alguma maneira, a uma negociação.
O contexto, portanto, é determinante para reconstruir o significado das expressões
linguísticas. Mas o verdadeiro desafio de um pragmaticista é identificar os elementos do
contexto que são realmente pertinentes para guiar falante e interlocutor. Chamar em causa
o contexto sem o especificar com cuidado é de pouca utilidade, já que contexto é algo
muito, muito vasto e mesmo, potencialmente, infinito.

1.7. Common Ground ou Conhecimento compartilhado

A noção de Common Ground (CG) representa uma tentativa de formalizar o que


é pertinente no contexto durante uma interação entre dois ou mais falantes.
A linguagem humana é principalmente uma forma de comportamento interativo.
Nela, um falante (ou um escritor) direciona um enunciado a um ou mais ouvintes (ou
leitores) com diversos propósitos acionais e para obter diversos efeitos, como manter a
relação com o interlocutor, informar, perguntar, chamar a atenção, pedir desculpas etc.
Falante e ouvinte são conscientes do fato de que, normalmente, o interlocutor é
um ser inteligente e que usa a língua racionalmente, no sentido de que a utiliza como um
meio para alcançar algum objetivo. Por isso, o falante não precisa explicitar informações
óbvias, seja porque elas estão disponíveis à percepção sensorial, seja porque o ouvinte
pode facilmente consegui-las usando o conhecimento que geralmente todos construímos
através da experiência do mundo. As informações acessíveis pela percepção e o
conhecimento de mundo compartilhado entre os interlocutores em um dado evento
comunicativo constituem o CG, que pode ser chamado de conhecimento compartilhado.
A nossa compreensão de um enunciado se baseia em uma suposição de CG. Por
exemplo, quando um falante aponta ou simplesmente olha para algo e diz você não acha
bonito?, existe aí a suposição de que o ouvinte entenda português e seja capaz de ver ou
identificar a entidade a que o falante se refere...
Uma parte do CG é universal, como o conhecimento do sol (enquanto fonte de
calor e de luz) ou da chuva (enquanto fonte de água), as partes do corpo humano e as
diferenças entre homem e mulher. Outras partes do CG dependem de fatores como a
idade, o contexto cultural, o nível de instrução e outros fatores relacionados aos
participantes da interação. O CG pode ser também bastante restrito, como o conhecimento
compartilhado por dois amigos que permite que eles usem uma expressão genérica como
cara de pau para identificar sem problemas alguém que eles conheçam.
Normalmente, o falante facilmente supõe o conteúdo do CG a partir da sua
interação com o ouvinte. Com base nisso, o falante escolhe as palavras e maneira para
estruturar linguisticamente a informação. Isso requer que o falante possa avaliar a
capacidade do ouvinte de compreender o enunciado e a intenção comunicativa que ele
comunica. As suposições do falante são as avaliações que ele faz do que deve ser o CG
entre ele e o ouvinte com relação ao conteúdo do enunciado. Essas avaliações motivam
escolhas como a língua, o registro, a apresentação de um referente como algo conhecido
o não etc.
O CG permite, portanto, que o significado seja subespecificado semanticamente,
de modo que a compreensão linguística se torna um processo no qual o falante espera que
o ouvinte tenha a condição de inferir muitas informações que não requerem especificação.
Naturalmente, o ouvinte também faz avaliações sobre o falante. As avaliações recíprocas
do falante e do ouvinte não são idênticas, mas devem se sobrepor ou coincidir o suficiente
para que falante e ouvinte julguem que a comunicação esteja sendo suficientemente bem-
sucedida.
Ao longo da interação, o CG dos interlocutores se enriquece com as informações
já trocadas entre falante e ouvinte. Em caso de troca entre um falante e diversos ouvintes,
a situação se complica ainda mais, pois o CG passa a ser relativo ao que se supõe
compartilhado por diversos indivíduos.

1.8. O modelo de discurso

Através dos diferentes componentes do contexto, os participantes de um evento


linguístico constroem uma representação mental própria do evento em que participam,
dos objetos e dos fatos evocados e das relações entre eles, das intenções e das relações
entre os participantes. Essa representação mental é chamada modelo de discurso. Cada
falante interpreta os enunciados com base no próprio modelo de discurso. É importante,
portanto, manter separadas a noção de modelo de discurso daquela de contexto
“objetivo”, pois nada assegura que os falantes compartilhem o mesmo modelo de discurso
nem que o modelo de discurso de um participante seja algo fixo e que não mude ao longo
do evento.
Exemplos de como um aspecto do contexto, especificamente do cotexto, pode não
ser compartilhado incluem as incompreensões devidas à homonímia, à polissemia, à
ambiguidade ou a expressões vagas ou indeterminadas. Normalmente, o contexto permite
que se identifique o referente de uma expressão que possua significados diferentes (por
exemplo, manga da camisa e manga como tipo de fruta), mas às vezes acontecem mal-
entendidos, como quando não conseguimos identificar a acepção de uma palavra em
enunciados que possuem uma dupla leitura.
Por exemplo, em a partida do time foi impossibilitada pelo fechamento do
aeroporto podemos estar dizendo que o time não conseguiu partir porque o aeroporto
estava fechado ou que o jogo não aconteceu porque o aeroporto estava fechado. Para
resolver a ambiguidade, o cotexto não é suficiente, e precisamos buscar no contexto
extralinguístico os instrumentos para determinar a leitura apropriada.
De modo diverso, em a partida do time acabou depois da prorrogação, o cotexto
oferecido esclarece como deve ser interpretada a sequência a partida do time,
formalmente idêntica ao exemplo do parágrafo acima.
Outras vezes, os mal-entendidos podem ser devidos ao fato de que as relações
expressas sejam vagas. Somos tão acostumados a utilizar o contexto que não percebemos
quantas vezes o código não nos fornece elementos suficientes para interpretar um
enunciado.
A sequência a minha casa pode significar tanto a casa que eu possuo quanto a
casa em que eu moro ou mesmo a casa que eu projetei ou construí. Similarmente, a
conjunção e pode expressar tanto sequencialidade (ele subiu no cavalo e partiu a galope),
quanto contemporaneidade (ele estava cansado e sentia dor nas costas), quanto
causalidade (ele sentiu frio e resolveu colocar um casaco), quanto simples coexistências
atemporais (a Itália é um país da Europa e a Argentina é um país da América), quanto
contraposição (eu esperei horas e você nem apareceu) etc. Nesses casos, não dizemos
que minha ou e têm vários sentidos, mas sim que são palavras vagas, ou seja, insuficientes
para determinar completamente a relação que sinalizam.
Um outro exemplo que pode gerar compreensão errada devida ao cotexto ocorre
quando uma expressão é indeterminada, ou seja, quando o problema não está no sentido,
mas sim na referência, ou seja, a realidade extralinguística a que se refere:

 Pelé, cuja fama alcançou todos os continentes, se tornou um ícone brasileiro.


O campeão, ciente disso, procurou preservar a sua imagem o melhor possível.

Nesse exemplo entenderemos a que se referem cuja, campeão, disso e sua graças
ao contexto, pois, essas mesmas palavras podem designar referentes completamente
diferentes dos que designam no exemplo. Voltaremos a examinar esse tipo de fenômeno
quando tratarmos das funções das expressões nominais e da dêixis.
Em suma, a compreensão de uma mensagem acontece em vários níveis: quem
recebe uma mensagem deve entender as expressões do código, as relações e conexões
entre elas, entre elas e a realidade, entre elas e quem as pronunciou, e a intenção que o
falante atribui às expressões que usa. Isso tudo significa construir um modelo de discurso
adequado. Devemos ter presente que comunicação implica a ideia intencionalidade, afinal
transferência informação involuntária não é comunicação. É uma tarefa da pragmática
procurar entender como os falantes fazem tudo isso.
2. Nomes, significados, status cognitivo

2.1. As funções das expressões nominais

2.1.1. Alocução e referência

Em primeiro lugar, vamos distinguir referência e alocução, que caracterizam dois


diferentes usos que os nomes e as expressões nominais em geral podem ter no discurso.
A alocução é usada para (i) chamar a atenção do interlocutor e/ou (ii) para
estabelecer ou reforçar a ligação discursiva entre falante e interlocutor, mesmo que
ritualmente. São exemplos de expressões usadas com função alocutiva, as expressões em
itálico nos enunciados abaixo:

- queridos, olhem aqui!


- mãe, posso sair?
- quando vai ser a prova, professor?
- vem dormir, Paulinho!
- Você pode me visitar quando quiser, boba...

A função referencial, por sua vez, refere-se ao uso de um nome (ou expressão
nominal) para evocar no modelo de discurso do interlocutor um elemento da realidade
(ou da imaginação) a que chamamos referente. Um referente evocado através de uma
expressão referencial torna-se um referente textual do modelo de discurso em ato, ou seja,
um referente instaurado, parte do conhecimento compartilhado. São exemplos desse tipo
de função as expressões em itálico abaixo.

- Era uma vez um rei que tinha dois herdeiros.

Uma vez evocado/instaurado, “o rei” (o referente, não a expressão!) torna-se um


elemento presente no modelo do discurso e, portanto, disponível para ser retomado, por
exemplo, por meio de uma expressão definida:

- ... o rei estava muito doente ...

Vejamos mais um exemplo.

- O governo aprovou hoje mesmo uma nova emenda à constituição.

Imagine o enunciado acima sendo enunciado sem que se tenha feito referência
prévia a qualquer governo. Em tal caso, ao utilizar a expressão o governo, o falante refere-
se a algo que ele considera que o seu interlocutor tenha condições de identificar, ou seja,
“o governo” é parte do Common Ground, e o interlocutor deve, portanto, recuperar o
referente no seu modelo de discurso.
Já no caso da expressão uma nova emenda, o falante introduz o referente evocado
pela expressão no modelo de discurso do seu interlocutor, ou seja, o falante instaura algo
que o interlocutor deve interpretar como não identificável.

- Sempre gostei daquela janela de onde se vê o Pão de Açúcar e a baía de


Botafogo.
No exemplo acima, a expressão aquela janela de onde se vê o Pão de Açúcar e a
baía de Botafogo, um SN complexo, comunica ao interlocutor que o referente evocado
(certa janela no mundo) é identificável, ou seja, é uma janela específica que o interlocutor
tem condições de saber qual. Com o Pão de Açúcar comunica-se que esse SN deve ser
interpretado como nome próprio, já que é comunicado linguisticamente como
identificável (via artigo definido) e o contexto bloqueia a interpretação do SN como um
tipo de pão feito com açúcar.
De fato, tanto o SN o Pão de Açúcar quanto o SN a baía de Botafogo evocam
referentes que, normalmente, fazem parte do modelo de discurso de falantes de português,
particularmente daqueles que já conhecem o Rio de Janeiro. Isso significa que eles podem
ser tomados como conhecimento compartilhado, parte o Common Ground, e assim
designados pelas expressões definidas que aparecem no exemplo em questão.
Por vezes, as funções alocutiva e referencial são marcadas morfologicamente. Em
algumas línguas, o alocutivo é codificado pelo um caso específico, chamado vocativo. Na
fala, a função alocutiva é codificada pela prosódia, por meio caraterísticas acústicas
específicas e ocupando uma unidade prosódica à parte, a exemplo dos enunciados abaixo.

- I know John (eu conheço o John)


- I know / John (eu sei, John)

Nos exemplos em inglês acima, o nome próprio John é usado com função
referencial no primeiro enunciado e com função alocutiva no segundo. Note que John
com função alocutiva aparece sozinho em uma unidade prosódica à parte (indicado por
“/”), não fazendo parte da estrutura argumental da sentença.
Além das funções vistas até aqui, os nomes podem também desempenhar a função
atributiva e a função predicativa. Isso acontece quando as expressões nominais não
servem nem para instaurar um referente textual nem para identificar o
interlocutor/destinatário, mas sim para qualificar ou identificar um referente já instaurado,
atribuindo a ele algumas propriedades.

2.1.2. Funções predicativa e atributiva

Vejamos já de saída um exemplo.

- Carlos é um professor de matemática

Nesse caso, predica-se de Carlos o fato de ser um professor de matemática, ou


seja, as propriedades dessa expressão são projetadas no referente designado por Carlos,
o que comunica que esse indivíduo é um elemento que pertence à classe dos professores
de matemática. Estamos diante da função predicativa. Assim, um professor de
matemática não apenas fornece uma informação sobre Carlos como também é parte
indispensável da estrutura da sentença. O mesmo não se pode dizer de

- Carlos, um professor de matemática, me convidou para uma palestra

Aqui, a informação veiculada pela expressão um professor de matemática


continua sendo informação sobre Carlos, mas a expressão não faz parte da estrutura da
sentença, no sentido de que a sentença não perderia a sua autonomia caso um professor
de matemática fosse omitido. Estamos diante da função atributiva, que se parece com a
noção de aposto da gramática tradicional.
A sentença abaixo oferece um exemplo talvez menos óbvio da função predicativa.

- O pai sempre vai considerar seu filho um menino

A expressão um menino está desempenhando a função predicativa nesse exemplo,


já que ela transfere propriedades semânticas para o referente designado por seu filho,
fazendo parte da estrutura da sentença. No caso em questão, dizemos que um menino é
um predicativo do objeto. Já em Carlos é um professor de matemática, o SN um professor
é um predicativo do sujeito.

2.2. As expressões referenciais

As línguas dispõem de três tipos de expressões referenciais: descriptores, nomes


próprios e indexicais. Vejamos cada um desses tipos individualmente, recordando que as
expressões utilizadas com função referencial evocam elementos no modelo de discurso
do interlocutor.

2.2.1. Descriptores

Os sintagmas nominais constituídos apenas de nomes comuns (jardim, problema,


casa, amor etc.) assim como sintagmas nominais mais complexos (jogo de xadrez, mulher
que está no caixa, parede da sala etc.) fazem referência a classes de entidades, as quais
possuem alguma(s) propriedade(s) em comum e que, em razão dessa(s) propriedade(s),
fazem parte de uma mesma classe.
Essas expressões são chamadas de descriptores, pois com seu uso o falante
explicitamente reconhece no objeto evocado (isto é, o referente) as propriedades da classe
a que o objeto pertence.
Para usar de maneira apropriada um descriptor no discurso, o falante precisa de:

1. conhecer o significado intensional do descriptor, ou seja, o conjunto de traços


semânticos que o definem. Para designar/evocar com o descriptor leão um
referente na realidade, o falante precisa conhecer todos ou pelo menos boa parte
dos traços semânticos de leão (animal, mamífero, felino, de grande porte etc.);
2. saber se o referente que ele quer designar com o descriptor pode fazer parte da
extensão do próprio descriptor, ou seja, do conjunto de indivíduos ao qual o
descriptor pode se referir. Para usar a palavra leão o falante precisa saber se a
extensão dessa palavra pode incluir o referente concreto que ele quer designar por
meio dessa expressão.

Do ponto de vista de quem escuta, para interpretar um descriptor é necessário:

1. conhecer o significado intensional do descriptor usado, ou seja, os traços


semânticos do descriptor;
2. ativar e identificar no conjunto dos referentes presentes no modelo de discurso
uma extensão possivelmente válida para o descriptor.

Os descriptores têm muita flexibilidade de uso. Quando combinados com


quantificadores (numerais, indefinidos), outros especificadores (artigos, demonstrativos),
com modificadores que especifiquem a referência, ou mesmo com diferentes tipos de
predicados, os descriptores podem referir-se tanto a um indivíduo de uma classe ou a um
subgrupo de indivíduos da classe:
- o bispo
- o bispo de Mariana
- dia
- um dia
- um dia de férias

Os descriptores acima exemplificam restrição da classe através de quantificadores


e especificadores (o, um) ou modificadores (de Mariana, de férias).

- o reitor da universidade é um professor


- o reitor da universidade encontrou o ministro

Já acima, temos exemplos em que a natureza do predicado (nominal com a cópula


ser no presente vs. verbal com o núcleo encontrar no pretérito) muda a possibilidade de
leitura do referente em cada caso. A referência pode ser genérica no primeiro caso (o
reitor evoca a classe dos reitores como um todo) e específica no segundo (a mesma
expressão, o reitor, evoca um reitor específico).
A referência (ou leitura, como veremos abaixo) pode, portanto, ser genérica (o
leão é perigoso, um professor não pode ser ignorante, sorvete é uma delícia), referindo-
se à classe inteira, ou pode ser específica (trouxeram o leão pra cá, um professor chegou
atrasado, o sorvete está ótimo). Além disso, a referência pode ser não-específica (o circo
está pensando em comprar um leão, contrata um professor para ajudar seu filho, ele quer
um sorvete qualquer), caso em que o referente é individual, mas só é fornecida
informação sobre a classe, sem que seja restringido qual referente.

2.2.2. Nomes próprios

Os nomes próprios evocam sempre um objeto ou um indivíduo específico: o nome


Carlos Magno é atribuído a um indivíduo específico, assim como Londres a uma cidade
específica. Naturalmente, o contexto ajuda-nos a determinar o indivíduo a que
determinado nome próprio faz referência.
Eu posso ter batizado o meu gato de Carlos Magno e, conversando com um amigo
que conhece bem a minha realidade, dizer sem causar confusão que Carlos Magno
morreu. O meu amigo não vai entender que eu estou falando do imperador dos francos
(que morreu 1200 anos atrás), mas sim do meu gato chamado Carlos Magno.
Analogamente, se um habitante da cidade de Dallas, Texas, disser a um amigo que
vai a Paris no dia seguinte e que volta no mesmo dia, o seu amigo provavelmente não vai
achar que o falante esteja planejando um bate-e-volta para a França, mas sim que ele vai
para a cidade do Texas chamada Paris, que fica a 160 km de distância de Dallas. Vemos
assim que o contexto situacional nos permite identificar os referentes.
Para usar um nome próprio para referir-se a um individuo, o falante deve
simplesmente saber que aquele é seu nome. O mesmo é necessário para que o destinatário
identifique o referente. Esse conhecimento é obtido por meio da experiência direta ou
indireta da ligação entre o referente e o nome. Essa ligação é completamente arbitrária e
se estabelece através de um ato de batismo.
Os nomes próprios não dependem de conhecimentos semânticos, já que eles não
possuem significado intensional. Esse tipo de expressão possui apenas significado
extensional, o qual coincide sempre com o referente a que se referem. Nesse sentido, os
nomes próprios não significam nada, nem mesmo os nomes que têm etimologia
transparente, como Rio de Janeiro ou Lampião, porque o significado das palavras
individuais que compões tais nomes próprios não serve para identificar os referentes
como pertencentes à classe dos “rios de janeiro” ou dos “lampiões”.

2.2.3. Indexicais

Os indexicais são expressões referenciais que adquirem significado pleno somente


com base no contexto. Vejamos o exemplo seguinte:

- O Brasil ganhou a sua terceira copa do mundo no México. Foi ali que Pelé
e seus companheiros finalmente levaram para casa a copa Rimet. Isso foi
um marco na história do futebol e tornou aquele time inesquecível.

As palavras sua, seus, ali, isso, aquele, grifadas no trecho acima, não teriam
significado fora do contexto em que aparecem. Nem o significado intensional nem o
significado extensional de cada uma delas, se tomadas fora de contexto, serve para
identificar os referentes dessas expressões. Isso porque o significado dos indexicais faz
referência somente em mínima parte a características dos referentes.
Os indexicais se referem ao status (indentificabilidade e ativação) e à disposição
dos referentes no modelo de discurso. Por exemplo, o indexical isso significa algo que foi
mencionado há pouco; a sua extensão pode ser interpretada somente se conhecermos o
contexto discursivo.
Os indexicais, portanto, não denotam o referente, mas informam sobre:

- certas características do referente: ele denota um ser associado ao gênero


masculino e número singular; hoje denota uma extensão temporal de no
máximo um dia; isso denota, entre outras coisas, um fato ou situação;
- os elementos contextuais em relação aos quais se origina a relação e o tipo
de relação entre esses elementos e o referente: hoje indica uma extensão
temporal de máximo um dia coincidente com o dia da enunciação; ali
indica um ponto no espaço situado a certa distância do falante e do
interlocutor.

Na verdade, também as expressões simbólicas (descriptores e nomes próprios)


dependem, em alguma medida, do contexto para que a referência seja determinada:

- o bispo de Mariana pode se referir ao atual bispo ou ao bispo de outra


época, dependendo do contexto em que o descriptor é usado;
- Nando, numa conversa com pessoas próximas a mim, é automaticamente
o meu amigo artista, mas pode designar muitos outros referentes em outros
contextos.

O que distingue os indexicais das outras expressões é que os indexicais


apresentam características tais que as modalidades para recorrer ao contexto e
interpretar a referência são codificadas nas próprias expressões, constituindo assim o
próprio significado dos indexicais.
O significado dos indexicais é descritível somente em termos relacionais, como
função do falante para o contexto, como uma espécie de instruções que sinalizam como
procurar no contexto a referência.
Por exemplo, o indexical ele oferece instruções do tipo: procure o último referente
masculino singular; os indexicais esse e aquele dão instruções para a identificação de um
referente masculino mais (esse) ou menos (aquele) próximo no espaço, no tempo ou
mesmo no próprio texto. Voltaremos a discutir tais expressões mais adiante, quando
tratarmos da dêixis e da anáfora.

2.3. Competência semântica


2.3.1. Significado intensional e extensional

Voltemos agora à competência lexical dos falantes para problematizar algumas


afirmações feitas acima. Dissemos que o falante possui dois tipos de conhecimento no
que diz respeito ao significado de uma expressão: o significado intensional, ou seja, o
conjunto dos traços semânticos que constituem sentido da expressão, e o significado
extensional, ou seja, o conjunto dos indivíduos aos quais a expressão pode concretamente
referir-se.
A noção de traço semântico vem da semântica formal e é análoga à noção de traço
própria da fonética: assim como o fone [t] é descrito com base nos traços [-vocálico], [-
vozeado] e [+coronal], a palavra solteiro pode ser descrita como [+humano], [-casado],
[-divorciado].
Contudo, os traços semânticos não descrevem bem a competência dos falantes,
porque é raro que os traços que realmente constituem a competência de um falante sejam
claramente individualizáveis.
Por exemplo, no caso da palavra centurião, é provável que os falantes considerem
próprios da competência relativa a essa palavra os traços [+humano], [+pertencente à
hierarquia militar romana] e algo mais vago como [+de nível hierárquico intermediário].
Entretanto, será menos provável que um traço mais preciso como [+chefe de centúria]
seja considerado parte da dita competência.
Falantes diferentes com certeza terão competências diferentes: aproveitando o
exemplo da palavra centurião, a competência de um historiador será diferente daquela de
uma pessoa de cultura média que faça um emprego qualquer da palavra e que não seja
especialmente apaixonada por história romana. Em suma, os traços semânticos de uma
palavra não são necessariamente iguais para todo e qualquer falante, e há espaço para
alguma heterogeneidade.
Mas também a extensão de uma palavra pode não ser estável. Isso pode se dar
devido à diferença entre a competência intensional de cada indivíduo. Por exemplo,
dificilmente alguém que não seja um entomólogo definirá com precisão os traços
semânticos da palavra inseto. Já no que toca à extensão dessa palavra, um falante comum
pode considerar uma aranha como pertencente à classe dos insetos e, portanto, passível
de ser uma extensão da palavra; já um entomólogo não.
Uma competência intensional diferente não leva necessariamente a uma
competência extensional diferente: eu posso achar que [+inseto] seja um traço do
significado de aranha sem, contudo, ter qualquer dificuldade em reconhecer uma aranha
no mundo e atribuir a ela a expressão referencial apropriada de aranha.
Ademais, podemos também ter uma competência intensional completa e não ter
uma competência extensional igualmente completa. Por exemplo, se eu sei definir o
significado de rocha metamórfica, porque a estudei na escola, não é automaticamente
verdade que eu seja capaz de reconhecer uma rocha metamórfica ao longo de uma trilha.
Analogamente, na mesma trilha eu posso saber individualizar as aranhas sem saber definir
exatamente o significado intensional da palavra, achando até mesmo que o significado de
aranha é composto pelo traço [+inseto].
Os dois níveis de conhecimento (isto é, o nível intensional e o extensional) são,
portanto, independentes. Para tentar remediar esse problema, foi proposta uma definição
de significado a partir unicamente do significado extensional: o significado de uma
expressão seria dado somente pelo conjunto de referentes aos quais ela se aplica. Isso
parece uma perspectiva totalmente pragmática, já que o significado se define em função
das entidades concretas às quais ele se aplica em situações de uso. Mas isso, do ponto de
vista da pragmática, ainda não é suficiente, porque explica só o significado denotativo e
não o significado conotativo. Vejamos as diferenças entre esses dois tipos de significado.

2.3.2 Significado denotativo e conotativo

O significado denotativo é o significado que se limita a designar um referente de


maneira “neutra”, ou seja, a simplesmente remeter ao referente. Já o significado
conotativo é aquele que além de designar um referente, comunica ao mesmo tempo algo
sobre a relação que o falante tem com o referente; essa relação pode ser de natureza
emocional, social ou de algum outro tipo. Alguns exemplos banais de denotação e
conotação são os conjuntos de palavra gato e bichano, cavalo e corcel, morrer-falecer-
bater as botas etc.
Naturalmente, o significado conotativo se dá também todas as vezes em que um
determinado referente é designado por uma expressão que veicula (ou deixa de veicular)
certo tipo de relação específica. Vejamos um exemplo. A expressão meu filho, no
enunciado meu filho consertou o meu computador, parece denotar um referente muito
diferente daquele denotado pela expressão o técnico da empresa, no enunciado o técnico
da empresa consertou o meu computador.
No caso em que meu filho e o técnico da empresa remetam à mesma pessoa, ou
seja, que essas expressões tenham o mesmo referente, poderíamos então dizer que uma é
puramente denotativa e a outra é conotativa?
Seria normal chamar o meu filho de meu filho e não de o técnico da empresa, se
ambas as expressões se referirem à mesma pessoa. Se o falante não o faz, é porque tem a
intenção de conotar o referente de uma maneira específica. Mas, pensando em um
contexto estritamente profissional, a expressão o técnico da empresa pode ser a
denotativa, enquanto meu filho conotaria a minha relação pessoal com a pessoa cuja
referência é devida a motivos profissionais.
Isso mostra, mais uma vez, como o significado está ligado ao contexto. A
conotação não é, portanto, ligada somente ao nível lexical (como em bichano vs. gato),
mas também ao contexto. Praticamente qualquer expressão pode adquirir valor conotativo
em determinado contexto. E é muito discutível o fato de que uma determinada expressão
deva ser considerada denotativa em contraste com outras conotativas em um contexto
específico. Se o falante realiza uma escolha, deixando de lado outras possibilidades, essa
escolha tem um motivo e expressa um ponto de vista do falante em detrimento de outros.
Portanto, podemos dizer que toda palavra, na medida em que ela seja fruto de uma
escolha, é de alguma maneira conotativa.
É preciso assim distinguir entre a oposição denotativo/conotativo com relação aos
elementos lexicais do código e a mesma oposição quanto à escolha de uma expressão
referencial em contexto, caso em que a oposição se torna menos estável e muito mais
discutível.

2.3.3. Significado literal e metafórico


A dupla significado conotativo e significado denotativo não deve ser confundida
com outra dupla: o significado próprio e o significado metafórico.
Uma expressão denotativa e suas respectivas expressões conotativas são
constituídas por significantes (“formas”) diferentes que designam o mesmo referente: o
mesmo animal pode ser designado pelo significante bichano pelo dono e pelo significante
gato por outra pessoa, sem que o referente mude. A expressão bichano, além remeter a
um referente, acrescenta informação sobre a relação entre o falante e o referente. O
mesmo se aplica aos exemplos mencionados acima, ou seja, cavalo e corcel, morrer e
falecer e bater as botas.
Ao contrário, um mesmo significante (ou seja, expressões formalmente idênticas)
pode ser usado para designar referentes diferentes. Isso porque as expressões apresentam
significado literal (ou próprio) e significado metafórico. Por exemplo, o significante gato
pode ser usado tanto para se referir a um felino (significado próprio) quanto para se referir
metaforicamente a um homem bonito (o gato veio de terno).
Eventualmente, a percepção metafórica pode ser perdida, tornando-se uma
acepção do significado próprio. Esse é um processo comum da mudança linguística.
Exemplos de expressões que estão nesse processo são pernas (da mesa, da cadeira etc.) e
avião (vendedor de droga em pequenas doses).
Outros exemplos de uso metafórico são as expressões grifadas nas sentenças
minha joia querida está viajando, ela brilhou na prova, a estrela do filme chegou.
Os processos que geram significados metafóricos a partir de uma expressão
linguística são de natureza pragmática, resultantes do uso comunicativo que se faz da
expressão. Retomaremos essa questão mais adiante.

2.4. Status cognitivo dos referentes

As línguas dispõem de várias alternativas para designar um referente. Podemos


nos referir a uma mesma pessoa usando, por exemplo, o nome dela (Francisco, digamos)
ou expressões como um amigo meu, um cara com quem eu jogo futebol, o pronome ele,
entre tantas outras possibilidades. A escolha de uma determinada expressão referencial
para nos referirmos a uma dada entidade em um determinado momento do discurso se dá
pela influência de vários fatores. Nesta seção, discutiremos um desses fatores, a saber, a
sinalização da acessibilidade do referente.

2.4.1. Leitura e acessibilidade

Se nós podemos, efetivamente, fazer referência a algo, isso quer dizer que o
referente é acessível, ou seja, que ele pode ser de alguma maneira recuperado pelo
interlocutor no seu modelo de discurso. Um referente pode ser acessível em diferentes
graus e meios.
Retomemos a noção de leitura, mencionada acima, de um descriptor, que pode ser
genérica ou não genérica. Uma leitura genérica faz referência a uma classe. Uma leitura
não genérica (que pode ser específica ou não específica) faz referência a um indivíduo.
Uma leitura específica faz referência a uma entidade individual. Já uma leitura
não específica faz referência a uma entidade individual qualquer que pertença à classe
evocada pelo descriptor (chama um amigo para te ajudar... em que um amigo não se
refere a um amigo específico, mas a um indivíduo qualquer que pertença à classe dos
amigos do interlocutor). O diagrama abaixo mostra os diferentes tipos de leitura.
Os enunciados seguintes exemplificam as diferentes leituras.

a) o leão é meu animal favorito; o leão é um animal encontrado na savana africana


(a leitura é genérica, pois com o descriptor o leão se faz referência à classe inteira dos
leões, não a um indivíduo em particular)

b) o leão fugiu do zoológico (a leitura é não genérica específica, pois se faz


referência a um leão específico, a um indivíduo).

c) um leão fugiu do zoológico (não genérica específica)

A diferença entre (b) e (c) não está na leitura (específica nos dois casos), mas no
grau de acessibilidade. A referência nos dois casos é feita a um indivíduo em particular,
mas enquanto em (b) o referente é apresentado como identificável (o leão remete a um
referente que o falante considera que o seu interlocutor tenha condição estabelecer qual
é), em (c) o referente é apresentado como não identificável (um leão remete a um
indivíduo específico mas que o falante considera que o seu interlocutor não tenha
condições de precisar).
Apresentar um referente como identificável significa comunicar ao interlocutor
por meio do uso de certos dispositivos formais (o artigo definido, por exemplo) que ele
tem condições de estabelecer inequivocamente a qual referente o descriptor se refere, ou
seja, que esse referente está presente no modelo de discurso do interlocutor.
Ainda sobre os tipos de leitura, temos outra possibilidade:

d) nesse zoológico falta um leão

Em (d), um leão faz referência não a um indivíduo específico (seja ele identificável ou
não), mas sim a um indivíduo qualquer que pertença à classe dos leões. Esse “indivíduo
qualquer” continua sendo um indivíduo (= leitura não genérica); não é mais um indivíduo
determinado, mas sim um indivíduo qualquer. Essa é a leitura não genérica que chamamos
de não específica.
Os meios para sinalizar leitura (genérica, específica, não específica) e
acessibilidade (identificável, não identificável, ativo) se sobrepõem aos meios que
usamos para sinalizar outras funções. Portanto, não temos regras formais que possam ser
aplicadas mecanicamente para avaliarmos a leitura de um descriptor e a acessibilidade do
referente que ele designa. O que devemos fazer para estabelecer o tipo de leitura e de
acessibilidade é recuperar as instruções fornecidas pelo falante e combiná-las com os
elementos fornecidos pelo discurso e pela situação.
O grau de acessibilidade de um referente depende (i) do quanto ele é identificável,
ou seja, se ele está ou não presente na memória do interlocutor, e (ii) do quanto o ele está
presente à atenção do interlocutor em um determinado momento do discurso. O grau de
acessibilidade se julga com base na instrução que o falante fornece ao interlocutor. Essa
instrução é dada com base no que o falante considera como conhecimento compartilhado
(common ground) entre ele e o interlocutor. Vejamos alguns exemplos.

a) comprei o casaco preto


um casaco específico que o falante considera que o interlocutor tenha em sua
memória e/ou que esteja sensorialmente disponível. Nesse caso, o falante
fornece ao interlocutor a instrução "você tem como identificar o referente seja
na sua memória ou no contexto extralinguístico imediato; portanto, busque
no seu modelo de discurso o referente e o identifique".

b) comprei um casaco preto


um casaco específico, mas que o falante não quer ou precisa que o interlocutor
identifique; pois a identidade do casaco não é relevante). Nesse caso, a
instrução que o falante dá é "não busque em seu modelo de discurso o
referente para tentar identificá-lo; apenas considere que ele é um casaco de
cor preta".

c) vai lá e compra um casaco preto


um casaco individual qualquer, com a condição única de que seja preto: não
identificável não específico.

As expressões referenciais podem, portanto, ter uma leitura que faz referência à
classe (leitura genérica), a um indivíduo específico (identificável ou não) ou a um
indivíduo não específico.
A propriedade de ser identificável relaciona-se à possibilidade de se dizer
inequivocamente qual é o referente. Dizer com certeza qual é o referente não equivale a
conhecer em detalhe o referente, mas simplesmente saber precisá-lo em meio a todos os
indivíduos que possam ser incluídos na classe do descriptor. Ou seja, identificar um
referente é receber do falante as instruções para buscar e individualizar esse referente na
memória e/ou no contexto extralinguístico e/ou no contexto linguístico.

- Uma lei foi sancionada ontem. A lei tem caráter irrevogável.

No exemplo acima, o descriptor grifado sinaliza que o seu referente é


identificável. Isso não quer dizer que o interlocutor conheça, necessariamente, o referente
em questão, mas sim que ele tem meios disponíveis para diferenciá-lo de outros referentes
e recuperá-lo. Nesse exemplo, antes de ser designado pela expressão a lei, o referente é
introduzido por meio da expressão uma lei, ou seja, a identificação do referente se dá via
cotexto (= contexto linguístico).
A esse ponto, faz-se útil distinguir memória e atenção.
A atenção é algo muito mais forte e menos duradouro do que a memória. Podemos
conceber a atenção como um processo cognitivo e comportamental em que os indivíduos
se concentram em um ou mais elementos. Dizemos que um referente presente à atenção
é um referente ativo.
Em um determinado momento de um discurso, teremos muitos referentes
identificáveis, entre os quais estarão, em maior ou menor medida, todos referentes já
introduzidos no discurso e aqueles elementos que são identificáveis automaticamente por
razões situacionais ou por conhecimentos gerais de mundo (o sol) ou de cultura (as
Nações Unidas).
Entretanto, pouquíssimos referentes estarão de fato ativos. Possivelmente, estarão
ativos os referentes evocados logo antes de determinado momento e elementos ativados
por serem situacionalmente salientes (o interlocutor e o falante, a porta do cômodo em
que acontece a interação, o dia e o local em que os falantes estão etc.).
Para um mesmo referente, podemos notar diferentes graus de acessibilidade,
assumindo determinados parâmetros contextuais, devido ao uso de descriptores com
diferentes especificadores (artigos e demonstrativos) e modificadores ou expressões
indexicais (pronomes), como os exemplos abaixo mostram.

a) comprei um casaco novo


o referente é instaurado no momento em que o enunciado é proferido, sendo
introduzido no modelo de discurso e na memória do interlocutor em tal
momento. Dizemos que o referente, em casos como esse, é apenas
instaurado. Quando o falante aludir ao referente novamente, o referente já
será identificável.

b) comprei aquele casaco que eu tinha visto na loja


o referente é presente na memória do interlocutor, ou seja, identificável; mas
não ativo no modelo do discurso; note que a função da oração relativa é
restringir a referência de casaco, possibilitando a identificação inequívoca do
referente pelo interlocutor.

c) Vi um casaco[apenas instaurado] ontem no shopping. comprei ele hoje de manhã


o uso do pronome ele indica que o referente é ativo no modelo de discurso;
tão ativo que nem é preciso usar um descriptor, bastando o uso do pronome
ele, que sinaliza que se trata de um referente singular e masculino. De fato, o
pronome até poderia ser omitido, sem que isso causasse dificuldade na
identificação do que teria sido comprado pelo falante.

2.4.2. Os meios para codificar o grau de acessibilidade

O grau de acessibilidade de um referente depende, dentre outras coisas, do


conjunto de conhecimentos que o falante supõe compartilhado com o interlocutor, ou seja,
do que o falante considera fazer parte do Common ground. Se em um telejornal ouvimos:

- o governo resolveu tomar uma posição oficial em relação à operação Lava


Jato e a oposição crítica

percebemos que o falante (ou redator) supõe que os destinatários dessa mensagem saibam
que existem um governo e uma oposição, e também que saibam o que é a Lava Jato. Esses
conhecimentos são tomados como compartilhados com o interlocutor, de modo que não
se faz necessário explicitá-los linguisticamente.
Como já mencionado, o contexto extralinguístico de uma interação também
influencia o quão acessível é um referente. Por exemplo, considere o diálogo abaixo entre
indivíduos prestes a saírem para uma caça noturna.

- A. alguém pode me emprestar a lanterna?


- B. ele [apontando com a cabeça]
O referente designado por lanterna é instaurado por causa do frame caça noturna,
já que é de se esperar que haja uma lanterna em tal contexto. Sendo instaurado pelo frame,
o referente lanterna pode ser apresentado linguisticamente como identificável, donde o
uso do artigo definido. Em casos como esse, dizemos que o referente é instaurado pelo
frame, tornando-se identificável.
Já o referente designado pelo pronome ele está fisicamente presente e
sensorialmente saliente, de outro modo não poderia ser designado por um simples
pronome combinado com a ostensão feita com a cabeça. Dizemos que o referente está
ativo.
O frame é uma cena típica fruto da nossa experiência. Por exemplo, o frame
restaurante prevê, entre outros, os referentes comida, garçom, talheres, pratos, mesas,
etc. É suficiente evocar o frame para, contemporaneamente, pelo menos na nossa cultura,
evocar todos esses referentes. Desse modo, se eu disser um dia eu estava num
restaurante..., posso continuar dizendo o garçom chegou, a comida foi servida etc. sem
que eu precise dizer, por exemplo, que tinha um garçom, que tinha comida etc. Isto é,
uma vez evocado o frame restaurante, eu não preciso instaurar, por exemplo, o referente
garçom, uma vez que ele é automaticamente instaurando junto com o frame.
A rigor, os frames dependem de um contexto cultural preciso, já que há frames
específicos de determinadas culturas. Além disso, frames compartilhados por culturas
diferentes apresentam características que variam conforme a cultura considerada. Por
exemplo, os frames festa de aniversário, aula universitária, culto religioso não são
absolutamente iguais em todos os lugares. Por isso, a instauração de referentes varia de
cultura para cultura e, muitas vezes, varia também conforme o contexto dentro de uma
mesma cultura. Por exemplo, se sabemos que o restaurante é de comida japonesa, o
referente hashi (os pauzinhos usados no oriente como talheres) estará provavelmente
instaurado, o que não aconteceria necessariamente se o frame fosse relacionado a um
restaurante de comida ocidental.
Um outro meio para codificar a acessibilidade de referentes relaciona-se ao
modelo de discurso em ato. Vejamos isso por meio de o exemplo abaixo, que poderia ser
o título de uma notícia de jornal:

- Os atentados às Torres Gêmeas: acusado confessa que eles foram planejados


durante dois anos

Nesse caso, o referente designado por os atentados às Torres Gêmeas é


identificável via Common Ground e instaurado pelo uso desse descriptor interpretável por
qualquer pessoa que esteja a par dos fatos históricos mais marcantes da primeira década
do século XX. Quanto ao referente do pronome eles, dizemos que ele está ativo no modelo
de discurso, já que esse referente é o mesmo do descriptor os atentados às Torres Gêmeas,
que acaba de ser mencionado.
É importante distinguir instauração e ativação. Para podermos dizer algo sobre
um referente, esse referente precisa ser ou estar instaurado. Como acabamos de ver, o
referente pode ser instaurado através do discurso (era uma vez um rei...), através de um
frame, ou ainda através da situação extralinguística. Nesse último caso, consideremos
como exemplo uma interação que ocorrem em uma sala que tem uma porta, uma janela,
uma mesa, um sofá etc. Esses referentes estão automaticamente instaurados pela situação.
Eu posso dizer "abre a porta”, não sendo necessário instaurar discursivamente "a porta"
antes de fazer referência a ela.
Um referente pode também ser instaurado também via conhecimento de mundo
(common ground): o sol e a lua em princípio são instaurados assim. Mas em contextos
particulares os referentes designados por expressões como o sol e a lua podem mudar.
Imagine que estejamos falando de Júpiter, que tem várias luas. Em tal caso não poderemos
fazer referência a uma lua específica sem antes tê-la instaurado e especificado de algum
modo.
A ativação, por sua vez, é a propriedade de um determinado referente de estar
presente à atenção dos interlocutores. Uma vez instaurado um referente, ele se torna
identificável e, mesmo se por um curto período de tempo, também ativo. O estado de
ativação é muito mais precário do que a instauração. Enquanto a instauração (ou seja, a
presença de um referente na memória) é uma condição duradoura (e às vezes muitíssimo
duradoura), a ativação é um estado que pode ser comprometido facilmente. Dois fatores
têm um poder especial de comprometer a ativação (mas não são as únicas): o passar do
tempo e a competição com outros referentes.
As línguas possuem meios formais para sinalizar o grau de acessibilidade e suas
mudanças com relação ao contexto. O sistema que define esses meios é chamado de
definitude (definiteness). O maior grau de acessibilidade (ou seja, a ativação) é sinalizado
através de indexicais (expressões anafóricas ou dêiticas) ou através da elipse (a assim
chamada de anáfora zero), como no exemplo abaixo.

- Carlos é um ótimo menino. Ø nunca desobedece aos pais

Nesse caso, o sujeito de desobedece é constituído por um elemento zero, que


sinaliza o maior grau de ativação. Assim, o falante sinaliza que o referente está no máximo
grau de acessibilidade e que o interlocutor precisa procurar o referente dentre aqueles
ativos no modelo de discurso.
Os descriptores são geralmente usados para referentes com o mais baixo grau de
acessibilidade. Também a alternância entre especificadores (artigos e demonstrativos)
possui uma função parecida: em línguas como italiano e português, geralmente o artigo
indefinido sinaliza que um referente não é identificável e o artigo definido sinaliza que o
referente é identificável. Através desses instrumentos, o falante dá instruções ao
interlocutor sobre onde procurar o referente mencionado dentro dos seus conhecimentos.
Isso não deve, contudo, ser tomado como uma regra inviolável: se usamos um
descriptor não significa necessariamente que o referente tem um grau de acessibilidade
baixo. Há outras razões, além de sinalizar o status cognitivo de um referente, que podem
nos levar a usar um descriptor.
Vejamos agora como verificar o funcionamento da definitude a partir de um
exemplo concreto.

- Ontem fui jogar futebol com um amigo meu. Ele marcou dois gols, mas o time
adversário ganhou assim mesmo.

Vamos supor que se trata de um texto falado e que temos acesso direto à situação
comunicativa. Examinaremos individualmente as expressões referenciais ontem, um
amigo meu, ele, o time adversário, grifadas no exemplo.

- ontem é identificável pela situação (estamos presentes e sabemos quando a


interação acontece); a situação automaticamente instaura todas as coordenadas
temporais. Se temos acesso à situação, ontem faz referência ao dia anterior.
[Suponhamos por um momento que não temos acesso à situação: nesse caso,
falta o elemento básico para tornar o referente de ontem acessível; ou esse
elemento é fornecido discursivamente (através de uma descrição, por exemplo
fornecendo uma data com relação à qual interpretar ontem) ou a acessibilidade
é comprometida]

- um amigo meu apresenta leitura específica, ou seja, seu referente é um amigo


particular, não sendo nem um amigo qualquer nem a classe dos amigos do
falante. Mas, apesar de ser específico, o referente não é identificável. O
interlocutor sabe que é um referente individual, mas não tem condições de
identificar entre os possíveis referentes (os possíveis amigos do falante) qual
referente é. A instrução que o falante dá é: "você não pode ou não precisa
identificar o referente, mas sabe que se trata de um amigo específico".

- ele é um indexical e, portanto, não fornece quase nada de significado


intensional. Nesse caso fornece simplesmente o significado de masculino
singular. Isso significa que ele pode fazer referência somente a algo ativo, ou
seja, algo que esteja presente à atenção dos interlocutores. No exemplo, o
referente é algo que foi instaurado há pouco tempo discursivamente por meio
do descriptor um amigo meu e que não entra em competição com outro
referente masculino singular.
- IMPORTANTE! Quanto à questão da identificabilidade, normalmente
ela é entendida como a capacidade de identificar com certeza de qual
referente se trata; nesse caso sabemos que o referente é identificável
como o mesmo referente designado antes com o descriptor um amigo
meu. O fato de um amigo meu não ser identificável coloca uma
questão. Se por identificabilidade entendemos (como normalmente se
entende) que o referente não pode ser confundido com outro, então o
referente de ele deve ser considerado identificável. De fato, sabemos
que ele se refere ao mesmo referente de um amigo meu. Não temos
como confundir o referente. Então vamos considerar o referente de ele
como identificável. Não nos parece pertinente entender que, por
retomar um descriptor que designa um referente não identificável, ele
herde a não identificabilidade desse descriptor. Portanto, a
identificabilidade não consiste em conhecer as características
específicas dos referentes, mas em saber se a expressão identifica um
referente que pode ser individualizado no modelo de discurso ou não.
Nesse caso, individualizamos o referente de ele como o mesmo
referente apontado pela expressão um amigo meu.
- o time adversário é apresentado de tal forma que entendemos que a instrução
dada pelo falante é "você pode identificar o referente", muito embora o
referente não tenha sido instaurado anteriormente. Isso advém do fato de que
o frame jogo de futebol instaura automaticamente uma série de referentes:
quadra, gol, juiz, e também time adversário. Portanto, o referente deve ser
considerado como já instaurado e pode assim ser retomado como identificável.
Mas não podemos dizer que o referente esteja ativo, porque ele não razão para
supormos que ele estivesse presente à atenção dos interlocutores, mas temos
razões suficientes para afirmar que estivesse presente na memória.

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