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ORIENTAÇÃO: Profª. Drª. Lise Fernanda Sedrez (PPGHIS/UFRJ); Profª. Drª. Stefania
Gallini (Co-orientadora, Universidad Nacional de Colombia)
Bruno Capilé
Abril de 2018
OS MUITOS RIOS DO RIO DE JANEIRO:
Transformações e interações entre dinâmicas sociais e
sistemas fluviais na cidade do Rio de Janeiro (1850-1889)
Bruno Capilé
Rio de Janeiro
Abril de 2018
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovada por:
____________________________________________________________
Profª. Drª. Lise Fernanda Sedrez – Orientadora
____________________________________________________________
Profª. Drª. Stefania Gallini – co-orientadora
____________________________________________________________
Profª. Drª Eunice Sueli Nodari
____________________________________________________________
Profª. Drª. Regina Horta Duarte
____________________________________________________________
Prof. Dr. Rogério Ribeiro Oliveira
____________________________________________________________
Prof. Dr. José Augusto Pádua
Dedico esta tese aos agentes não-humanos de nossa história, em
especial aos rios.
AGRADECIMENTOS
Eu sou por que nós somos. Gratidão a todos os seres vivos existentes neste
planeta, a todas nossas relações, nossos processos, nossas transformações. Seguirei
agradecendo aos humanos que somaram para esta tese, embora tantos indivíduos não-
humanos tenham também contribuído para o longo processo de construção textual (em
especial, as gatas Lara e Frida adotadas por minha companheira, Maria Rita, e por
mim).
Embora pareça uma atividade solitária, esta tese foi uma construção coletiva que
teve a contribuição acadêmica de muitas pessoas. Para a formação de meu espírito
coletivo, agradeço ao Grupo de Estudos em História da Ciência Arandu (GEHCA),
pelas discussões, pelas conversas, pela amizade e carinho. Em particular, aos que leram
e complementaram positivamente para a tese: Alex, Bina, Tati, Rita, Luiza, Jefferson,
Milena. Em paralelo a este grupo, outra família se construiu com o grupo de orientandos
da Profª Lise Sedrez – Força Tarefa. Os encontros de sextas feiras, sempre agradáveis e
produtivos, iluminaram caminhos e correções igualmente importantes. Obrigado à
Natascha, Carol, Vitor, Gustavo, Felipe, Lorena, Lucas e Carlos. O triunvirato da
coletividade se completa com os amigos do Laboratório História e Natureza da UFRJ.
Um lugar onde debates acadêmicos ficaram mais acalorados com as questões
ambientais suscitadas pelos temas de pesquisa. Estes também contribuíram
consistentemente para a tese, obrigado Prof.ª Lise, Prof. José Pádua, Diogo, Alexia,
Daniel, Letícia, Filipe, Gisele, Val, Gabriel Paes, Paula, Gabriel Oliveira, Ana Marcela,
Igor, Hanna, e tantos outros.
Outros grupos contribuíram a distância para o amadurecimento das ideias e para
minha formação pessoal. Dos mais afastados aos mais próximos, agradeço aos colegas e
amigos colombianos que conversei pessoalmente quando estive em meu estágio
sanduíche em Bogotá no segundo semestre de 2016. Obrigado a todos os participantes e
orientandos das professoras Stefania Gallini (UNAL), Cláudia Leal (UNIANDES) e
Astrid Ulloa (UNAL) – três mentes brilhantes da história ambiental e ecologia política.
Um abraço afetuoso à Stefania, co-orientadora, sou muito grato por nossas conversas e
reuniões. Elas me levaram a novos caminhos que não achava possível antes. Obrigado
por abrir a porta para mim.
Ainda na Colômbia, agradeço especialmente ao convívio e às conversas com
Martin Giraldo, Katherinne Mora, Carolina Tobón, Omar Ruiz, Vladimir Sanchez e
Bibiana Preciado. Aos dois últimos, deixo um forte abraço em gratidão ao carinho de
convidar para o lado mais íntimo de seu lar e suas amizades. Agradeço também aos
amigos do grupo de estudos em rios latino-americanos vinculados à SOLCHA. Junto a
SOLCHA estão tantos colaboradores que não poderia deixar de mencionar, em
particular os professores da III Escola de Pós-Graduação de Anápolis – Dominichi de
Sá, Magali Romero Sá, Sandro Dutra, Eurípedes Funes, Regina Horta, Rogério Oliveira,
Diogo Cabral, Alexandro Solorzano, Stephen Bell, Marina Miraglia, Reinaldo Funes. E,
geograficamente mais próximo, sou grato aos amigos do LABIMHA da UFSC,
coordenados por Eunice Nodari e João Klug: Maíra Kaminski, Esther Rossi, Antonio
José, e outros.
O acesso às fontes só foi possível ao trabalho competente de bibliotecários e
arquivistas de diversas instituições. Agradeço ao Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro, em especial à Geórgia, ao Arquivo Nacional, à Biblioteca Nacional, ao Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro, à Biblioteca do CFCH, e também à Biblioteca do
SESC Tijuca e Biblioteca Popular da Tijuca pelo espaço produtivo de trabalho
(trabalhar em casa é difícil).
Outras instituições foram essenciais para minha formação acadêmica e pessoal,
e, portanto para a tese. No PPGHIS, agradeço ao pessoal da secretaria (obrigado Sandra,
obrigado Bia), a toda equipe de limpeza e infraestrutura (obrigado baixinha), e a muitos
professores (gratidão especial à Profª Cida Motta, quem contribuiu em muito para meu
entendimento de história). No MAST, o grupo de pesquisa Território, Ciência e Nação
(TCN), coordenado por Moema Vergara, contribuiu também com debates que
enriqueceram a tese. Agradeço à Sabina, Gabi, Daniel, Serginho, André, Maria Dulce,
Cláudio João, Ana Cristina. Em especial, agradeço à Moema. Minha orientadora
enquanto bolsista do MAST que até hoje me ensina aspectos tão importantes da história.
Chegando cada vez mais próximo ao meu coração, esse órgão que pulsa e
simboliza nossa principal zona de afeto, agradeço aos amigos. Daqueles que contamos a
amizade em décadas já (Sanny, Marcelo, Cadu, Oliver, Miguel, Alemão, Sapinho, Plug,
e muitos outros), aos amigos biólogos que sempre me lembram desse lugar comum que
tanto contribuiu para as análises (Pablo, Juliana, Tarso, Dóris, Calvão, Luana, Jaime,
Diogão, Ovo, Lilica, Henriquinho, Fernandinho, e muitos outros também), aos amigos
do Espaço e Vida que sempre reforçaram a importância da materialidade no
entendimento de nossa história e território (Caíque, Márcio, Fabi Bertoni, Renata,
Raquel, Vinícius, Jaime, e outros). Sim, está tudo conectado.
Entrando mais um pouco no território do afeto, talvez no ventrículo esquerdo,
agradeço à família. Mesmo com dias sem nos vermos ou estando perto, porém com a
cabeça nos parágrafos da tese. O carinho e o amor da família sempre deram força e
renovação para a continuidade dos trabalhos. Agradeço à minha mãe (Mainha), minhas
primas, meus irmãos, meus sobrinhos e meus tios. Ao meu pai, que não pode assistir
corporalmente essa nova etapa de minha vida, saiba que muito de nossas conversas
estão presentes aqui. Meu senso crítico e humor difuso tem raíz tanto em meu pai
quanto em meus irmãos, obrigado Kikinho, Guigui e Leo.
Agora é profundo, no fundo do fundo. Agradeço à Maria Rita (Ritinha) por tudo.
Pelo amor, pelas leituras, pelas conversas, pela companhia, pela amizade. “Eu não vou
negar // sem você tudo é saudade // você traz felicidade // eu não vou negar”. Você que
me ensinou tanta coisa sobre mim, sobre nós, sobre outras espécies (meu amor felino
não existia), sobre outras visões de mundo. Meus olhos enxergam mais cores depois de
te conhecer. Esta tese é só um exemplo disso.
Por fim, deixando meu lado brega de lado, agradeço ao incansável esforço de
Lise em me preparar para esta tese. A velocidade das ideias para análises e textos era
tão rápida, que foi necessário gravar nossas reuniões. Abandonar boas ideias foi sempre
um desperdício. Agradeço aos nossos embates e debates. Foi com esse esforço que
agora me considero um historiador ambiental. E, Lise, não se preocupe, somos todos
especistas.
Se você for poeta, verá nitidamente uma nuvem
passeando nesta folha de papel. Sem a nuvem, não
há chuva. Sem a chuva, as árvores não crescem.
Sem as árvores, não se pode produzir este papel. A
nuvem é essencial para a existência do papel. Se a
nuvem não está aqui, a folha de papel também não
está. Portanto, podemos dizer que a nuvem e o papel
“intersão”. Interser é uma palavra que ainda não se
encontra no dicionário, mas se combinarmos o
radical inter com o verbo ser,teremos um novo
verbo: interser. Se examinarmos esta folha
com maior profundidade, poderemos ver nela o sol.
Sem o sol, não há floresta. Na verdade, sem o sol
não há vida. Sabemos, assim, que o sol também está
nesta folha de papel. O papel e o sol intersão.
Bruno Capilé
Palabras-clave: historia del Rio de Janeiro – Imperio, historia ambiental urbana, historia
urbana, ríos urbanos, naturaliza urbana.
Rio de Janeiro
Abril de 2018
ABSTRACT
Bruno Capilé
From an interdisciplinary and multithematic perspective with history as the main axis,
this thesis analyzes how urban rivers participated in the history of the city of Rio de
Janeiro in the second half of the nineteenth century. The urban society interacted in a
heterogeneous way with the fluvial diversity composed of springs, waterfalls, meadows,
valleys, estuary, or, in the terms used in this thesis, upper, middle and lower course
rivers. In the upper course, the imperial state appropriation of the forest environment
legitimized by the city water needs. Reforestation, roads, river diversions, and other
changes domesticated the forest landscape for water supply and other activities such as
walks, baths, health treatments. In the middle course, the suburbs were also idealized,
transformed and incorporated into the urban territory. The persistent rurality was
repressed as it did not conform to the ideas of social medicine. These theories were the
basis for the urban planning of the Empire's engineers, and they thought of bodies of
stagnant water as the main sources of disease. Following the sequence, in the lower
course, the landfill and drainage of original biophysical environments that resisted the
urban growth occurred, as was the case of the São Diogo mangrove and other flooded
areas. The resilience of water basins could be seen in the strength of stream waters, in
case of floods, overturned bridges, slanted banks. At the interface between urban society
and river environments, other species interacted in the development of the city of Rio de
Janeiro: horses, donkeys, watercress, trees, pigs, mosquitoes and many others. This
thesis tells an environmental history of the city of Rio de Janeiro that places in the
center of the narrative these various non-human agents connected by the many rivers of
Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro
April 2018
LISTA DE FIGURAS E TABELAS
Tabela 4: Quadro demonstrativo dos mananciais que devem ser aproveitados para o
abastecimento d'águas .................................................................................................... 55
Figura 15: Mapa das linhas de bondes na cidade do Rio de Janeiro ............................ 212
Figura 19: Trecho de Nova Planta indicadora da cidade do Rio de Janeiro e subúrbios,
incluindo todas as linhas de ferro-carris ....................................................................... 244
Figura 21: Mapa dos depósito de lixo no litoral do Rio de Janeiro .............................. 260
Figura 22: Sequência de mapas da cidade do Rio de Janeiro com o traçado das ruas em
diferentes décadas ......................................................................................................... 282
BN Biblioteca Nacional
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 1
1.1. Por que falar de florestas em uma tese sobre rios?: caracterização do alto curso
carioca............................................................................................................................. 31
1.2. A água entra no ecossistema urbano: as políticas de abastecimento d‟água ........... 42
1.3. Usos “culturais” das florestas cariocas .................................................................... 58
1
Parte dessa introdução foi publicada no seguinte artigo: CAPILÉ, Bruno. Rios urbanos e suas
adversidades: repensando maneiras de ver a cidade. Revista Historia Ambiental Latinoamericana y
Caribeña (HALAC). Guarapuava, v. 5, n. 1, p. 81-95, setembro 2015 – fevereiro 2016.
2
SWYNGEDOUW, Erik. A cidade como um híbrido: natureza, sociedade e “urbanização-cyborg”. In:
ACSELRAD, Henri (org.). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de
Janeiro: DP&A Editora, 2001.
3
SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. São Paulo: ed. Record,
2003. SWYNGEDOUW, Erik. Metabolic urbanization: the making of cyborg cities. In: HEYNEN,
Nikolas; KAIKA, Maria; SWYNGEDOUW, Erik (eds). In the nature of cities: urban political ecology
and the politics of urban metabolismo. New York: Routledge Press, 2006.
4
SWYNGEDOUW, In the nature of cities, op. cit.
estabelecer conexões mais complexas e ricas que costuraram5 essas duas entidades, que
têm sido comumente separadas disciplinarmente pelas ciências da natureza e ciências
sociais.
Ao investigar a história das relações entre natureza e sociedade nesse âmbito,
consideramos que os rios urbanos são integrantes, ativos e dinâmicos, do território
urbano – ou, nos termos desta tese, do ecossistema urbano. Dentre essas relações
estiveram as transformações, antropogênicas ou não, nos rios que desempenharam
importantes papéis no crescimento da cidade. Ora, se quisermos incorporar em nossas
análises tais modificações e associações que ocorreram em, e por causa de, os rios, isto
nos obriga a vê-los de uma maneira não isolada – ou somente o fluxo superficial de
água – mas como parte da categoria geográfica de bacia hidrográfica – o que incluem
afluentes, área de drenagem e as várzeas. Agregar interdisciplinarmente conceitos de
outras áreas significa que ainda mantemos forte dependência de análises
historiográficas, e que reinterpretar e transpor essas considerações para esse tipo de
análise permite observar a relação urbana no contexto de sua interação com os sistemas
hídricos6. É pela bacia que o fluxo dos rios entra no sistema ambiental urbano e atua
como abastecimento de água, escoamento de dejetos, oferta de energia hidráulica7, da
mesma forma que funcionou como área de encontro e de lazer, beleza cênica, em
diferentes apropriações sociais. Portanto, percebemos que analisar os rios urbanos como
bacias – seguindo a dimensão social da cidade e ambiental dos sistemas hídricos, e as
interseções entre estas – faz mais sentido numa proposta de história ambiental urbana.
Então, ao escolhê-las incluímos também os vales, as várzeas, as florestas, os pântanos,
as restingas e os mangues, desde as nascentes no maciço da Tijuca até a foz destes rios
na praia do Flamengo, na Lagoa Rodrigo de Freitas, na enseada de Botafogo e no antigo
manguezal de São Diogo, atual Canal do Mangue.
O aprofundamento na investigação sobre e através destas bacias hídricas, com
seus rios e vales, permitiu esclarecer realidades históricas conjunturais existentes dentro
5
Para esta tese, os neologismos e outros termos derivados do presente e de fontes secundárias serão
apresentados em itálico no próprio texto. Já os termos de época das fontes primárias serão expostos em
aspas, e devidamente citados.
6
MIRAGLIA, Marina. La Historia Ambiental y los Sistemas Complejos em el Estudio de los Procesos de
Construcción Territorial em las Cuencas Hidrográficas: Caso de Estudio en la Provincia de Buenos Aires.
Republica Argentina. In: NODARI, Eunice; KLUG, João. História Ambiental e Migrações. São
Leopoldo: Oikos, 2012.
7
HERRERO, Ana C. Desarrollo Metodológico para el Análisis del Riesgo Hídrico Poblacional Humano
en Cuencas Periurbanas: Caso de Estudio: Arroyo Las Cantonas, Región Metropolitana de Buenos Aires.
Tese de doutorado da Facultad de Ciencias Exactas y Naturales da UBA. 2006.
2
de processos sociais já conhecidos, e ressignificá-los. Além disso, nossa atenção
também se voltou para as relações socioecológicas com outras espécies, como os
vegetais presentes nas hortas, pomares e capinzais da cidade; os cavalos, burros e
jumentos responsáveis pelo transporte público e de materiais das obras imperiais; os
bois, porcos, cabras, designados a morrer para uma dieta mais rica em proteína animal.
Ou seja, olhamos para além das águas destes rios. Analisamos a história das relações
deles com a sociedade carioca, a partir de fontes e leituras de eventos sociais que
transformaram a paisagem fluvial urbana. Dessa maneira, repensamos os aterros e
drenagens, que afetaram e foram afetados pelas bacias hídricas, como continuidade
destas; analisamos os desvios e canalizações para abastecimento de água ou para os
sistemas de esgoto como novos cursos de água capilarizados pelo tecido urbano;
reinterpretamos as pontes como obstáculos fluviais ao mesmo tempo em que
conectavam e propiciaram a expansão urbana para os subúrbios.
É preciso esquadrinhar uma abordagem que permita aprofundarmos em objetos e
processos específicos e apresentarmos novas realidades e reflexões, o que colabora com
novos entendimentos sobre a sociedade carioca em seu ambiente no passado. Para isso é
fundamental abrirmos o terreno para uma discussão sobre os termos natureza e
sociedade, com base nas contribuições da história ambiental.
Somos seletivos. Não podemos olhar para tudo. Escolhemos e montamos nossa
realidade em prol de sentido, significado. Da mesma forma, o historiador também é
seletivo ao esboçar uma reconstrução de um passado, uma narrativa, a partir de suas
escolhas. As escolhas do historiador são uma das grandes conexões entre o presente e o
passado “resgatado”, construído. Elas são o terreno onde nossas vontades se mesclam
8
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34,
p. 70, 1994.
3
com nossas necessidades, onde buscamos o propósito em nossas atividades quando
olhamos através do tempo. As escolhas podem ser “materializadas” por meio de
perguntas, e a partir destas a pesquisa se desenrola. Portanto, quando optamos pelo
termo rios urbanos, em detrimento de conquista urbana da água ou da circulação desta
na cidade, vemos também aspectos diversos do próprio ambiente, que provavelmente
não estariam no manejo discursivo da palavra água. Assim, olhamos para as pedras nos
rios, os pescadores, os acidentes no relevo, a erosão, os banhistas, os sedimentos em
suspensão, as pontes, os engenheiros, o ciclo de cheias e secas, a topografia, bem como
tantos outros elementos da complexa paisagem fluvial urbana.
Os diferentes significados possuem, por sua vez, diferentes histórias e
complexidades. Ou seja, o termo natureza possui “uma quantidade extraordinária da
história humana”9. E nesse passado é possível observar que o isolamento da natureza
está intimamente ligado com a noção de negação do humano, do cultural, do social.
Essa ideia de natureza intocada, remota, abstrata do homem, distorce e perturba as
noções da intervenção humana nela. Passa a reforçar a dicotomia natural versus social
que também se reflete como vemos as cidades, em particular o anseio pelo campo que
surge no romantismo inglês pós-revolução industrial – como se o próprio campo não
fosse antropizado, consumível10. A própria separação entre sociedade e natureza tem
sido uma consequência de uma interação cada vez mais intensa entre esses dois “polos”.
Nesse sentido, “falar do homem „intervindo‟ no processo natural implica na suposição
de que ele possa crer não ser possível fazê-lo, ou possa decidir não fazê-lo”11. E,
conceber um espaço onde ocorre intervenção humana – não-natural – diferenciado de
outro com baixa ou nenhuma intervenção – natural – permite uma narrativa onde a ação
sobre a natureza se reduz a riqueza, recurso, desconsiderando suas forças naturais, sua
diversidade, sua multiplicidade, sua beleza. Onde na realidade o que tem ocorrido cada
vez mais intensamente é que estamos a fundir nossas forças sociais com as naturais de
tal maneira que vale conceber nessa narrativa que tanto nós quanto o ambiente urbano
somos produtos desta fusão12.
9
WILLIAMS, Raymond. Ideias sobre a natureza. In: __________. Cultura e Materialismo. São Paulo:
Ed. UNESP, p. 89-114, 2011, p. 89.
10
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos
animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
11
WILLIAMS, Ideias sobre a natureza, op. cit, p. 100.
12
WILLIAMS, Ideias sobre a natureza, op. cit. ARNOLD, David. The problem of nature: environment,
culture and European expansion. (New Perspectives on the Past). Oxford: Blackwell, 1996.
4
Um pressuposto desta tese é a de que o ser humano não existe sem a
materialidade de seu ambiente – água das chuvas, calor do sol, plantas alimentares, etc.
- ou mesmo de sua corporalidade – calor humano, populações de bactérias benéficas ao
nosso organismo, etc. Essa mistura de elementos permite uma narrativa mais abrangente
e sofisticada. Uma construção textual que atenda à perspectiva do ser humano através
da natureza, e que jogue uma luz sobre o entendimento das ações e reações de nós
mesmos, como dificilmente poderia ser percebido de outra forma. Imaginemos, por
exemplo, que elaboramos a história das faltas d'água na segunda metade do século XIX,
teremos de considerar como possibilidades de análises historiográficas elementos tão
complexos como o histórico de baixa pluviosidade relatado nas observações
meteorológicas efetuadas pelo Imperial Observatório Astronômico no Rio de Janeiro,
que acarretou em rios menos volumosos; as ações humanas de desmatamento, para
lenha e plantio de cafezeiros, e ocupação da terra, que prejudicaram a capacidade da
floresta e sua bacia de reter água para os cursos fluviais; as dificuldades e reações da
população para obter água; os aspectos culturais do imaginário social urbano como, por
exemplo, os miasmas causadores de doenças expelidos pelos mangues cariocas.
No caso dos miasmas e das teorias médicas neo-hipocráticas13, vemos que o
histórico de despejo de esgoto humano e industrial (matadouros e fábricas) prejudicou a
circulação natural de água e sedimentos na foz dos rios criando um ambiente pútrido
propício para doenças contagiosas14. Na realidade, o próprio ambiente fluvial possui
características que tornam esse cenário mais severo, já que a parte do rio mais perto de
sua foz apresenta baixa circulação de água e a concentração de tudo o que foi despejado
nas partes superiores. Ao mesmo tempo, observamos que a teoria dos miasmas, embora
fundamentada pela ciência da época, abriu caminho para a ampliação do espaço urbano
mediante aterros e grandes obras públicas.
Outro aspecto cultural, também fundamental para nossa análise, é a depreciação
e criminalização de grupos sociais humanos que habitaram os mangues poluídos do
final do século XIX. Os discursos de higienização e civilização justificaram o
desalojamento de milhares de pessoas e seus hábitos locais nas desembocaduras dos rios
13
Como veremos no capítulo 5.
14
Aqui temos um relance da prepotência humana, ou de um especismo. O próprio termo ambiente é
condicionado ao organismo biológico. Por exemplo, chamamos um ambiente com baixa concentração de
oxigênio, alta quantidade de matéria orgânica antropogênica e microorganismos nocivos à saúde humana:
de um ambiente degradado. Porém, dificilmente, uma população de bactérias anaeróbicas “acharia” o
mesmo desse “rico” ambiente.
5
urbanos, que já não eram vistos como naturais. Ou seja, a dinâmica do fluxo do rio
incentivou o desenvolvimento e a aceitação de teorias higienistas no período, enquanto
estas teorias também vão afetar o fluxo do rio. A escrita histórica tem uma posição de
destaque no desenrolar dessa dinâmica conjunta entre natureza e sociedade, e também a
“saúde” de ambas, permitindo maiores esclarecimentos sobre as transformações em
ambientes degradados.
A simples escolha de uma palavra, em prol de outra de sentido similar, está
imbricada com nossa posição frente ao objeto de estudo e pode ser responsável por
narrativas totalmente diferentes. De maneira semelhante, a apropriação diferenciada de
uma mesma palavra pode fornecer conclusões opostas. William Cronon15 ao
argumentar sobre o papel de narrativas de histórias ambientais, analisa duas obras,
publicadas no mesmo ano, com fontes semelhantes, sobre o mesmo assunto – as
catastróficas tempestades de areia chamadas Dust Bowl –, porém com resultados
completamente antagônicos. Para um dos autores – Paul Bonnifield –, o termo
“natureza” era algo limitante a ser superado pelo esforço civilizatório da humanidade,
uma história de triunfo da sociedade sobre os desastres naturais. Já para o segundo autor
– o historiador ambiental Donald Worster, sobre o qual iremos comentar um pouco mais
adiante –, a mesma palavra considerava o episódio como fracasso dos seres humanos
devido ao fato de não se adaptarem aos ciclos climáticos do ambiente semiárido,
ocasionando tais tempestades. Para Cronon, um dos aspectos da prática historiográfica,
a qual a história ambiental tem se ocupado em realizar, é buscar fazer um sentido
ecológico, onde sociedade e natureza são coautoras de uma história conjunta. A
premissa é que as ações humanas ocorrem dentro e através de uma rede de interações,
processos e sistemas que são tanto ecológicas quanto sociais e culturais. E conforme
efetuamos nossas escolhas retóricas, metodológicas e teóricas, situaremos de diferente
maneira em nossas narrativas os incluídos e excluídos, o relevante e o irrelevante, quem
possui e quem não possui poder16.
Apoderar-se de uma escrita historiográfica que busque compreender as relações
entre natureza e sociedade significa mais do que escrever uma história social juntamente
com uma história natural de um ambiente. Uma das características da história ambiental
sustenta que incorporar, interdisciplinarmente, ferramentas epistemológicas de
15
CRONON, William (ed.). A place for stories: nature, history and narrative. The Journal of American
History, v. 78, n. 4, March, p. 1347-1376, 1992.
16
CRONON, A place for stories, op. cit.
6
diferentes áreas, como ecologia e geografia, possibilita analisar as relações entre a
dimensão humana (social, cultural, político, econômico) e a dimensão natural (clima,
vegetação, fauna, solo), sem perder de vista suas interseções como nossa materialidade
corporal (fome, vícios, doenças, desejos e vontades), o trabalho humano no ambiente
biofísico (agricultura, indústria, construção), mudanças na paisagem, entre outras. Em
suma, compreender que o social não pode ficar a margem das relações da espécie
humana com o restante da natureza17. A apropriação do social e do natural de forma
antagônica não permite perceber que a premissa fundamental é que as ações humanas
ocorrem dentro e através de uma rede de interações, processos e sistemas que são, ao
mesmo tempo, ecológicos e culturais. Numa tentativa de aproximar as ciências da
natureza e as ciências sociais, incorporo o termo trabalho presente na obra de Marx.
Segundo ele
17
CASTRO HERRERA, Guillermo. Presentación. In: WORSTER, Donald. Transformacciones de la
Tierra: Una Antologia Mínima de Donald Woster. Panamá, 2000.
GALLINI, Stefania. Invitación a la Historia Ambiental. Revista Tareas, v. 120, p. 5-28, 2005.
18
MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política (Volume 1). São Paulo: Editora Nova Cultural,
p. 297, 1996.
19
WORSTER, Donald. Rivers of Empire: Water, Aridity, and the Growth of the American West. New
York: Oxford University Press, 1992. WHITE, Richard. The Organic Machine: The Remaking of the
7
sido um fator comum na mudança de paisagem dos rios, o que tem levado a uma
redistribuição de poder e o surgimento de novas elites20. Richard White21 escreve em
Organic Machine sobre uma perspectiva pertinente para trabalhar essa realidade híbrida
e complexa dos rios urbanos. Diferente da posição de Blaine Harden22 que aposta na
morte do rio como uma história de lamento, White ressalta a pertinência em se
distanciar de interpretações que considerem as modificações nos cursos d‟água pela
engenharia como causa de seu extermínio, ou perda. Em sintonia com White, William
Cronon23 ressalta que as narrativas sobre o mundo biofísico têm levado a duas
modalidades que tendem a ser mais simplistas: uma de progresso do homem sobre as
falhas da natureza em suprir recursos; e outra de declínio da natureza frente às
atividades humanas, e a ineficiência dos atores humanos em se adaptar ao ambiente
estudado.
Vejamos por exemplo, a história do rio Berquó, que originalmente passava onde
hoje é a rua General Polidoro e que tinha sua foz na Enseada de Botafogo. Após
intensas modificações estruturais, desde o final do século XIX, encontra-se atualmente
quase todo subterrâneo, com seu corpo d'água extremamente poluído e sua foz
deslocada e cimentada. Uma história comum a quase todos os rios urbanos cariocas,
exceto pelo fato de que poucos conhecem o rio Berquó atualmente. Na reconstrução
histórica desse rio é possível optar por vê-lo de diferentes maneiras. Este relato pode
ser uma prova do sucesso humano sobre a natureza, que o canalizou, ordenou,
racionalizou, como parte da estrutura urbana de escoamento de água. Ou é possível
construir uma narrativa em que se sublinha o fim das propriedades naturais “originais”,
em particular as que exaltam beleza cênica, declarando-o um rio “morto”, extinto, uma
vala. Mas, podemos também escrever uma história de transformação, onde as dimensões
naturais e sociais interagiam e se influenciavam mutuamente. E se qualificarmos o rio
Berquó por algum adjetivo de insalubridade, teremos de observar de que maneira esta se
mescla com os diversos aspectos sociais, em particular o comportamento humano.
Columbia River. New York: Hill and Wang, 1995. DESFOR, Gene; BONNELL, Jennifer. Planning
nature and the city: Toronto‟s Lower Don River and Port Lands. In: SANDBERG, L. Ander; BOCKING,
Stephen; COATES, Colin; CRUIKSHANK, Ken. Urban Explorations: environmental history of the
Toronto region. Ontario: Wilson Institute for Canadian History, 2013.
20
WORSTER, Rivers of empire, op. cit.; SWYNGEDOUW, A cidade como um híbrido, op. cit.
21
WHITE, The organic machine, op. cit.
22
HARDEN, Blaine. A river lost: the life and death of the Columbia. New York: London: W. W. Norton
& Company, 1996.
23
CRONON, A place for stories, op. cit.
8
Portanto, o termo natureza passa a ser um obstáculo para compreender a inserção
da atividade da espécie humana ao longo do tempo e do espaço. Nesse sentido como
podemos evitar a dicotomia natureza-sociedade, de modo a entender os vários aspectos
de natureza e mostrar como estão entranhados na experiência humana? Em vez de usar
simplesmente a palavra natureza, ou natural, favorecemos termos que correspondam ao
nosso interesse de incorporar tantos elementos humanos como não-humanos. Ao
descrever diferentes ambientes do coletivo social para a narrativa de rios urbanos,
optarei por termos como: ambiente biofísico para ressaltar aspectos não-humanos, tais
como a velocidade do rio, os sedimentos, o calor da cidade, as chuvas e as secas;
ambiente social para evidenciar aspectos da sociedade humana, como trabalho,
tecnologia, discursos; por fim o termo ambiente sociobiofísico utilizado para explicitar
o entrelaçamento entre essas duas dimensões que por vezes serão, inconvenientemente,
separadas tanto na historiografia tradicional quanto aqui. Desta forma, o ambiente social
que influenciou o amadurecimento da profissão dos engenheiros na capital do Império,
por exemplo, precisa estar em sintonia com o ambiente biofísico e seus materiais para
construção – como as pedras da Pedreira de São Diogo e ou a areia e barro extraído dos
rios. No entanto, o termo ambiente sociobiofísico24 irá aparecer conforme o objetivo de
ressaltar tais interações.
Desta maneira, a narrativa fica mais robusta com análises das complexas
relações entre o ambiente biofísico urbano e a sociedade carioca, de modo a reafirmar a
presença humana na natureza e a influência desta ao longo do tempo, em vez de uma
historiografia unidirecional de declínio ambiental, onde as modificações ambientais nos
rios seriam determinantes em sua deterioração e “morte”. Estas comparações, diz White,
contribuem pouco para o entendimento de como os seres humanos alteraram os rios, e,
em resposta, como os rios modificados alteraram o cotidiano social25.
De modo a ressaltar a importância dos rios nos inspiramos também na obra de
Mathew Klingle26 que interpretou o papel ativo dos rios, suas atividades e movimentos
que forçaram a sociedade a fazer escolhas do ponto de vista moral e político, como:
construir ou não barragens, desviar cursos, etc. Embora o rio urbano não seja um
personagem consciente na história, e tenha perdido grande parte das funções ecológicas
24
Como veremos adiante, também utilizaremos o termo socionatureza.
25
WHITE, The organic machine, op. cit.
26
KLINGLE, Matthew. Emerald City: An Environmental History of Seattle. New Haven & London: Yale
University Press, 2007.
9
naturais, considera-se os rios urbanos tanto como construtos sociais que possuem uma
história comum a ser investigada, como entidades autônomas, ainda que não
independentes, que realizavam atividades fora do controle humano27.
27
WHITE, The organic machine, op. cit.; CRONON, A place for stories, op. cit.
28
CRONON, William (ed.). Uncommon Ground: Rethinking the Human Place in Nature. New York: W.
W. Norton & Company, Inc., 1996.
10
O rio é um recurso natural, um objeto passível de exploração. Nessa perspectiva é
possível ver também as desigualdades sociais decorrentes das apropriações e
transformações29. Ao considerar os rios meramente “lugar”, passivos, esta passividade
fluvial permite que um grupo adquira privilégios a partir da exploração social e
ambiental, como na construção de barreiras para hortas, indústrias, hidrelétricas. Isto
implica consequências sociais que vão do simples incômodo do rio Maracanã represado
para benefício de uma grande horta de comércio a menos de 200 metros do que hoje é o
núcleo comercial da Grande Tijuca (a Praça Saens Peña30); até a desapropriação de
diversas famílias em áreas a serem alagadas para abastecimento d‟água de um grande
centro urbano.
Numa tentativa de contrapor esta perspectiva, sem excluí-la nem depreciá-la,
podemos considerar os rios também como protagonistas, numa perspectiva ativa. Não
se sugere aqui que os rios são agentes dotados de consciência de seus atos. Mas, sim
que possamos perceber que o rio é mais que “lugar”, ele também “faz acontecer”. Este
panorama ativo do rio é fundamental para que possamos refletir sobre a dimensão de
sua importância para a sociedade. Baseado nas proposições dos historiadores que
pesquisam sobre rios urbanos31, compreendemos que esses possuem uma influência
ativa na sociedade, como fatores essenciais na dinâmica e desenvolvimento da cidade.
Os rios urbanos podem ser considerados tanto sob a ótica descritiva – rios que correm
pelas cidades – assim como num sentido analítico – em que esses rios são imbricados
nos processos de urbanização32. A interação dos rios com a cidade possui relações
próprias que são distribuídas de forma heterogênea no seu curso, apresentando
diferentes causas e consequências de acordo com as circunstâncias históricas e
particularidades locais.
Nesse sentido, a abordagem enriquece mais se cogitamos as características da
temporalidade e espacialidade dos rios, os quais são considerados tanto para a
perspectiva ativa quanto passiva. A temporalidade é um aspecto inerente ao trabalho do
29
WORSTER, Rivers of empire, op. cit.
30
Documento AGCRJ 49.4.95, Rios e Riachos: Catumby, Coqueiros, Maracanã, Trapicheiros, Joanna,
Andarahy, Comprido, e outros de menor curso e volume de água, do Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
31
MAUCH, Christof; ZELLER, Thomas. Rivers in History: Perspectives on waterways in Europe and
North America. Pittsburg: University of Pittsburg Press, 2008. EVENDEN, Matthew; CASTONGUAY;
Stéphane. Urban Rivers: Remaking Rivers, cities and space in Europe and North America. Pittsburgh:
University of Pittsburgh Press, 2012.
32
EVENDEN & CASTONGUAY, Urban rivers, op. cit.
11
historiador, onde ponderamos sobre as mudanças e permanências das sociedades. Isso
com o intuito de não limitar essa percepção do espaço no tempo de modo estático, onde
diferentes estruturas são vistas como produtos acabados. O que vale para o trabalho do
historiador é refletir sobre as minúcias do tempo e do espaço, e percebê-los de uma
forma dinâmica. A temporalidade de curta e longa duração de Braudel é um bom
exemplo dessa percepção dinâmica33. Dessa maneira as relações não estão engessadas,
mas sim, em constante transformação e adaptação entre os diferentes elementos que as
compõem.
No caso dos rios, os diferentes regimes de chuva podem elevá-los e alagar toda a
região do vale. Tais variações podem gerar lagos temporários, e mudar a conformação
das rochas das cachoeiras. Após um período de seca, os rios, muitas vezes, têm seu
curso original transformado, o que resulta na modificação de aspectos diversos da
sociedade, como, por exemplo, o limite entre dois terrenos ou de áreas cultiváveis. Ou
seja, as mudanças nos rios acarretam alterações econômicas e culturais, no complexo
processo do que chamaremos de socionatureza urbana. Conforme essas mudanças
ocorrem, novas interações podem se desenvolver, assim como as velhas podem
sucumbir. Já que tais mudanças sociais geralmente ocorrem no ritmo das modificações
do mundo biofísico, é mais provável captar tal essência no âmbito da média e longa
duração. Seja através de um estudo histórico ambicioso de alguns séculos, ou pela
comparação de estudos pontuais de uma mesma localidade. Isto caminha junto à
filosofia de Heráclito sobre não ser possível nos banhar na mesma água de um rio, pois
suas águas não são as mesmas e nós não somos os mesmos. O próprio rio já não é; ele
está sendo.
Outro aspecto relevante é a percepção de que os rios variam ao longo do espaço.
A sua rede hidrográfica se expande além da bacia possibilitando interfaces diversas e
heterogêneas com a cidade, e os diferentes aspectos ambientais e consequentes
problemas urbanos. Diferentes localidades propiciam diferentes interações, ou seja perto
da foz existem circunstâncias sociais e ambientais que são diferentes dos arredores da
nascente do mesmo rio. As coletâneas de Mauch e Zeller34 sobre rios europeus e de
33
BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Editora Perspectivas, 2005.
34
MAUCH & ZELLER, Rivers in history, op. cit.
12
Sandberg35 sobre rios canadenses, fornecem diferentes histórias comparativas de rios e
cidades, que possibilitam compreender homem e natureza, assim como tecnologia e
ambiente, como um contínuo. Para estes a paisagem biofísica importa para a cidade, de
maneira que a influencia e a molda, no entanto, sem determinar o destino da sociedade.
Em relação à espacialidade fluvial, concebemos uma caracterização das bacias
hídricas em três conjuntos geográfico-históricos, ou seções de: alto curso, com maior
fluxo de água devido à maior inclinação e altitude; médio curso, onde o fluxo perde a
força devido à menor inclinação e aos efeitos do atrito com o fundo do rio, e aumenta
seu volume de água decorrente de outros mananciais; baixo curso, seção de planície,
perto da foz, em que, naturalmente, o volume é bem maior e possibilita a formação de
caminhos sinuosos chamados de meandros. É nesta seção do rio onde ocorrem as
planícies de inundação, ou várzeas.
A principal variável que está em questão aqui é a energia presente nessas seções.
Na alta declividade do alto curso, a energia potencial disponível é mais alta do que nas
planícies do baixo curso do rio, o que ocasiona maior força e velocidade das águas nas
declividades. Ao longo deste gradiente de perda de inclinação e velocidade, o rio perde
força para transportar os sedimentos. Ou seja, nas partes mais altas, com maior fluxo, os
sedimentos menores entram em suspensão, não são depositados, e descem rio abaixo.
Conforme a força diminui, os sedimentos menores se precipitam no fundo do rio. Dessa
maneira é de se esperar que o tamanho do sedimento no baixo curso (silte e argila), seja
menor do que o do médio curso (areia) e do alto curso (cascalho e pequenas rochas). Ao
longo da descida do rio acaba por ocorrer uma transição de locais de maior erosão,
devido a velocidade e força da água, para outros de menor erosão e maior acumulação
de sedimentos. Essa diferença implica a estrutura do rio e suas mudanças naturais como
a erosão e assoreamento, a distribuição vegetal de florestas de mata atlântica nas partes
de alto e médio curso, e manguezais e restingas nas de baixo curso. Assim como na
utilização econômica das áreas das bacias hídricas, como por exemplo: a captação de
água para consumo no alto curso, já que a carga de sedimento erodido é menor, e é
possível transformar a energia potencial da gravidade para transportar a água para locais
mais distantes; as lavouras urbanas do baixo curso, que necessitam de grãos menores
35
SANDBERG, L. Ander; BOCKING, Stephen; COATES, Colin; CRUIKSHANK, Ken. Urban
Explorations: environmental history of the Toronto region. Ontario: Wilson Institute for Canadian
History, 2013.
13
que aumentam a capacidade de absorção de nutrientes, e também acabam por receber
material orgânico e mineral de todo o rio.
As mudanças estruturais decorrentes de atividades sociais (represas, desvios,
canalização, retilinização, perda da cobertura vegetal, etc.) interferem diretamente na
dinâmica dos rios, e alteram o volume de água, velocidade, taxa de saturação de
oxigênio, etc. Se considerarmos uma dessas variáveis para explorar as consequências no
ambiente urbano, como a quantidade de oxigênio dissolvida na água, veremos que uma
cadeia de consequências se desenvolve. Uma das causas recorrentes de uma baixa
quantidade desse gás na água é seu consumo por bactérias. Um cenário bastante comum
ocorre nas seções de baixo curso, onde o aporte de matéria orgânica – principalmente de
esgoto doméstico –, a baixa circulação de água, a maior temperatura – devido ao
acumulo de energia térmica ao longo dos rios e pelo atrito da água no fundo destes –
possibilita a proliferação de bactérias anaeróbicas que consomem tanto a matéria
orgânica quanto o oxigênio. O resultado desse metabolismo bacteriano são gases
sulfídricos com a fragrância característica de ovo podre que ocorriam, e ainda ocorre,
nos mangues cariocas. Todos esses fatores biofísicos se conectam no metabolismo da
própria cidade, seja pela entrada no sistema-rio de matéria orgânica, ou pela saída dos
gases malcheirosos36.
Ao combinarmos as ideias de temporalidade com as de espacialidade aplicadas
no entendimento das relações entre a cidade e os rios urbanos, propomos uma reflexão
mais profunda e complexa de eventos pontuais – como os episódios de extremos de
pluviosidade e suas consequências (enchentes, cabeças d'água, deslizamentos de terra),
e eventos a médio e longo prazo, derivado de transformações de origem natural
(modificação na desembocadura dos rios, alterações nos meandros do baixo curso,
gerando mais áreas de alagadas) e antrópicas (canalização, aterro, drenagens, pontes).
Dessa maneira, diversos personagens atuaram conjuntamente na construção da
paisagem socionatural urbana do Rio de Janeiro, como: o Estado, representado pelos
ministérios da Agricultura e do Império, e pela Câmara Municipal; o corpo técnico de
engenheiros e médicos que idealizavam o espaço urbano; a população local, que com
suas idiossincrasias apresentou inúmeros comportamentos frente aos corpos d‟água
desta tese.
36
SCHÄFER, Alois. Fundamentos de Ecologia e Biogeografia das Águas Continentais. Porto Alegre:
Ed. da Universidade, UFRGS, 1984.
14
Os rios e as cidades: recosturando o tecido socionatural
A natureza gira, de fato, mas não ao redor do sujeito-sociedade. Ela
gira em torno do coletivo produtor de coisas e de homens. O sujeito gira, de
fato, mas não em torno da natureza. Ele é obtido a partir do coletivo produtor
de homens e de coisas. O Império do Centro se encontra, enfim,
representado. As naturezas e sociedades são os seus satélites37.
As relações sociais operam metabolizando o meio ambiente
“natural” através do qual tanto a sociedade quanto a natureza são
transformadas e novas formas socionaturais são produzidas38
37
LATOUR, Jamais fomos modernos, op. cit., p. 78.
38
SWYNGEDOUW, A cidade como um híbrido, op. cit., p. 86.
39
LATOUR, Jamais fomos modernos, op. cit.; SWYNGEDOUW, A cidade como um híbrido, op. cit.
40
Embora o termo proponha uma união entre sociedade e natureza, ele opera etimologicamente com a
raiz das duas palavras. A proposta é a de efetivamente reconhecer uma dicotomia e, a partir disso,
apoderarmos de conceitos que atuem nessa união.
41
SWYNGEDOUW, A cidade como um híbrido, op. cit., p. 88.
42
LATOUR, Jamais fomos modernos, op. cit., p. 87.
15
desenvolvimento urbano não ocorreria da mesma maneira como o vemos hoje. Essa
circulação potencializou e complexificou as interações dentro do tecido socionatural
urbano, e criou oportunidades, por exemplo, para mais residências e indústrias, e menos
doenças. Mais água transitando permitiu mais abastecimento de água, mais escoamento
dos dejetos industriais e humanos, mais oferta para esfriamento de motores e geração de
energia por hidrelétricas.
Reitero que, para este trabalho, tratar como objeto de estudo os rios urbanos, em
vez da circulação de água, possibilitou uma maior materialidade dos comportamentos
sociais e naturais no fluxo e nas várzeas destes corpos d‟água. O que de certa maneira
contribuiu para o entendimento de aspectos culturais dos rios urbanos no cotidiano do
povo que possui como gentílico o mesmo nome de um de seus rios (Carioca). Assim,
buscar a espacialidade e a materialidade da circulação das águas urbanas através dos
rios urbanos, possibilita uma narrativa que contemplasse diferentes personagens que
possivelmente seriam esquecidos: pescadores e barqueiros, empresas que extraem areia
dos rios, pequenos agricultores que desviam os cursos, mobilizações sociais contra
modificações fluviais estruturais que prejudiquem localmente, etc.
Em vista disso, torna-se interessante nos aproximarmos das três dimensões
propostas por Donald Worster43. A primeira trata do entendimento do ambiente
biofísico, como este se organizou e funcionou no passado. Trata-se de ressaltar os
aspectos e processos naturais aos quais a sociedade também estava sujeita, como:
épocas de estiagem, chuvas torrenciais, enchentes, etc. A segunda insere o domínio
sócio-econômico na medida em que este interage através do ambiente. No caso deste
estudo, a tecnologia fica evidente aqui como atuação humana que está frente a essa
interação com o ambiente. Como uma releitura do conceito marxista de modo de
produção, esta dimensão permite compreender como os diversos ambientes naturais
influenciaram o surgimento de novas tecnologias. Dessa maneira, tornou-se interessante
para enriquecimento da análise indagar quais grupos ganharam ou perderam poder
quando estes modos de produção mudaram, de modo a reforçar o fato de que o uso da
tecnologia não é neutro – pois estas estão engajadas com questões políticas. Por fim, de
modo a entender padrões comportamentais que influenciem as atividades de
transformação da natureza, a terceira dimensão existe no campo mental, cultural,
considerando as percepções, leis, mitos, valores éticos. Embora essas dimensões
43
WORSTER, Donald. Para Fazer História Ambiental. Estudos Históricos, v. 4, n. 8, 1991.
16
estejam disponibilizadas distintamente para efeito de clareza argumentativa, na
realidade elas são consideradas um único conjunto dinâmico de investigação44.
Worster apresenta os elementos constituintes do passado histórico categorizados
de uma maneira que não se pretende explorar aqui. Para ele, a ideia de natureza
construída (built-environment), categoria em que as cidades são bons exemplos, é uma
expressão integral da cultura humana. O historiador Martin Melosi, ao ponderar sobre o
trabalho de Worster, afirma que um dos problemas nessa afirmação da cidade
exclusivamente humana, social, é que seria possível existir também uma natureza
intocada, pura, sem intervenção humana alguma. A abordagem mesclada desenvolvida
aqui dificultou essas duas considerações extremas sobre natureza e sociedade. Pelo
contrário, a socionatureza permite a cidade como um híbrido nesta dicotomia.
Preferimos para o passado urbano uma definição em que características físicas e sociais
influenciassem e se moldassem por forças naturais, crescimento e desenvolvimento
urbano, mudanças espaciais e ação humana45. Uma concepção que se adequa bastante à
história da cidade do Rio de Janeiro, onde seu crescimento e desenvolvimento estiveram
dependentes e limitados por aspectos topográficos como rios, montanhas e litoral.
Após esclarecer que a cidade e seus sistemas constituem uma rede de processos
humanos e naturais entrelaçados e inseparáveis, entramos em conflito com as
possibilidades instrumentais de realmente estudá-los. Dependendo do objeto de estudo,
diferentes áreas do conhecimento podem contribuir para a investigação. Perspectivas
mais específicas certamente contribuem para o enriquecimento dos resultados da análise
histórica, mas as limitações do historiador devem nortear a escolha de temas mais afins
ao objeto de estudo: tecnologia, cultura, comportamento humano, meteorologia, grandes
intervenções na paisagem, influência da mídia. Podemos pensar em diversos sistemas de
interações com diferentes níveis de complexidade, como o biológico e o sociocultural.
Esses sistemas estão imbricados, porém não faz sentido analisar o social do ponto de
vista estrito das ciências biológicas. Iremos nos apropriar de algumas noções mestiças
derivadas originalmente de disciplinas aparentemente desconexas com nosso objeto de
estudo. Embora as possibilidades de combinação interdisciplinar sejam praticamente
infinitas, existem ferramentas epistemológicas que abrangem diferentes campos de
estudo. Ressalto aqui conceitos que permitem analisar as múltiplas interações que
44
WORSTER, Rivers of empire, op. cit.
45
MELOSI, Martin. The Place of the City in Environmental History. Environmental History Review. v.
17, n. 1, pp. 1-23, 1993.
17
compõe a socionatureza que permeia os rios urbanos cariocas, o de acoplamento de
Maturana e Varela46, e o de rede sociotécnica de Latour47.
Ao estudar sobre as bases biológicas do conhecimento humano, os chilenos
Humberto Maturana e Francisco Varela desenvolveram o conceito de acoplamento
voltado para o entendimento de diferentes níveis de organização da complexidade
biológica48: estrutural, comportamental, linguístico e social. Originalmente entendido
para a relação do indivíduo biológico em seu meio natural, o acoplamento é um
processo mútuo onde o organismo e o meio sofrem e provocam transformações, uma
expressão de uma dinâmica estrutural provocada por interações. Esta ideia se contrapõe
ao antigo conceito unilateral de adaptação, onde o ambiente mantém-se estático e
somente o organismo se modifica. O acoplamento permite observar as interações entre
indivíduo-meio, e também entre indivíduos. As possibilidades estruturais,
comportamentais, de linguagem ou sociais, estão vinculadas ao acoplamento e sua
plasticidade. A transposição deste conceito para a narrativa histórica deve ser atenta a
limitações e deturpações. Tudo acontece num momento, num lugar (meio). Ao pensar
sobre lavadeiras usarem a água de um rio, elas estariam acopladas a este meio neste
momento, de diferentes maneiras. Semelhantemente, um comportamento de um
vendedor de água ou de um banhista estaria intimamente ligado à salubridade da água.
A própria saúde, humana e ambiental, também se insere nesse aspecto de
acoplamento, em particular o estrutural e o comportamental. Isso fica mais evidente se
nos atentarmos aos hábitos alimentares e de trabalho, como por exemplo, dos
carvoeiros. As carvoarias do século XIX localizavam-se principalmente nas partes altas
dos morros, e ofertavam lenha e carvão para milhares de fornos residenciais e
industriais. O modo a que o trabalhador estava condicionado, por si, por seus superiores,
e por suas condições culturais, influenciou tanto a intoxicação de seu pulmão, o prejuízo
ergométrico de sua coluna, e afetou severamente sua vitalidade; quanto à estrutura da
floresta, que após desmatada transformou a dinâmica do solo, ela exportou sedimentos
46
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da
compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.
47
LATOUR, Jamais fomos modernos, op. cit.
48
O uso de termos da biologia no entendimento da cidade tem ocorrido desde muitos séculos.
Inicialmente utilizando o termo circulação, com clara influência das descobertas da dupla circulação
sanguínea no corpo humano feitas por William Harvey. Em um segundo momento, as ideias de
organismo e metabolismo são incorporadas nas ciências sociais do século XIX, em especial por Karl
Marx. Seja por comparações pertinentes como estas, ou “infelizes” como a evolução urbana proposta pelo
darwinismo social, a apropriação de termos biológicos não é nenhuma novidade. Cf. SENNETT, A carne
e a pedra, op. cit.; MELOSI, The place of the city in environmental history, op. cit.
18
que desciam rio abaixo, e também diminuíam sua capacidade de reter água e reabastecer
as bacias hídricas49. Por ser uma análise histórica, a narrativa foi severamente limitada
pelos excessos ou escassez de fontes que retratem a diversidade temática desta tese.
A questão é ver as idiossincrasias, os detalhes e as riquezas de uma maneira
simétrica. Ao deslocarmos nossa atenção para a diversidade das interações, para além
dos agentes históricos, podemos enriquecer nossa abordagem e evitar terraplanar
questões de gênero, raça e classe numa narrativa mais justa.
Como pensar o acoplamento estrutural entre cidades e rios? A própria expansão
urbana parece ser melhor entendida nesse aspecto, pois existem forças do mundo
biofísico que moldam as possibilidades de crescimento da cidade, como oferta de água,
limitação topográfica (morro, praia, etc.) – como foi o caso do manguezal de São Diogo
que foi visto como obstáculo para o crescimento urbano para o oeste. Da mesma forma,
há forças sociais (tecnologia, política, obras públicas, etc.) que também moldam as
possibilidades do crescimento urbano, e, igualmente importante, modificam o ambiente,
e remoldam as possibilidades das forças do mundo biofísico. Aqui podemos nos
apropriar de termos que já são comuns à prática historiográfica, como contexto,
circunstâncias sociais, cenários culturais.
O acoplamento torna-se, então, uma construção histórica desses híbridos, quase-
objetos, considerando para isso que suas interações adquiram um caráter recorrente, ou
muito estável. “O resultado será uma história de mudanças e concordantes, até que a
unidade e o meio se desintegrem”50, e fique em evidência a hibridização, o sujeito
composto. Sob esta ótica, o estudo da cidade como um todo, como um sistema
completo, não faz sentido se não considerarmos os elementos externos a ela, como:
comida, água, eletricidade, produtos, etc. Da mesma maneira, ao ter como horizonte a
compreensão da historicidade de rios urbanos, é preciso captar aspectos que também
escapam à espacialidade urbana: bacias hídricas, clima local, aspectos culturais que
influenciaram decisões de obras públicas, aspectos econômicos e tecnológicos que
moldaram atividades fabris, etc. As transformações na socionatureza urbana geraram,
por sua vez, mudanças estruturais nos rios urbanos, mudanças comportamentais e
sociais nos diferentes grupos envolvidos, e evidenciaram uma complexa espiral de
49
OLIVEIRA, Rogério Ribeiro de (org.). As marcas do homem na floresta: história ambiental de um
trecho urbano de mata atlântica. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2010. DEAN, Warren. A ferro e fogo:
a história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
50
MATURANA & VARELA, A árvore do conhecimento, op. cit., p. 87.
19
causalidades extremamente difíceis de elaborar numa escrita histórica. O conjunto
desses acoplamentos certamente enriquece tal narrativa, mas o fio da meada só não se
perde se contemplarmos a complexa rede por trás disso tudo.
Formada por fluxos, conexões, misturas, as redes possuem múltiplas entradas e
saídas, onde todos são atores que se constroem mutuamente. De acordo com Latour, as
redes são “ao mesmo tempo reais como a natureza, narradas como um discurso,
coletivas como a sociedade”51. Abordar estas interseções de maneira holística, que
conectam e separam, de forma simétrica, significa expandir as possibilidades de estudo
para novos agentes, novos cenários, novos objetos, sem perder de vista a posição do
objeto de estudo nesse coletivo. Como podemos obter tais simetrias nos estudos de rios
urbanos? Não basta somente salpicar contribuições sociais com explicações científicas
sobre as forças naturais, é preciso um aprofundamento da análise do quase-objeto. Por
exemplo, os rios urbanos, já considerados aqui como híbridos, foram profundamente
modificados pelos planejamentos dos engenheiros no final do século XIX.
O estabelecimento e a profissionalização desta classe estiveram fortemente
associados com os mitos52 de progresso e de civilização que permearam diferentes
ideologias desse momento. Diversas modificações estruturais em áreas consideradas
insalubres foram resultado tanto das intervenções no mundo biofísico, quanto do
coletivo de ideias que circularam no meio acadêmico de médicos e higienistas. Buscar a
compreensão das atividades dos engenheiros e deixar de lado todo um complexo de
ideias médicas que influenciaram gerações seria incompleto, além de ingênuo.
Tampouco podemos deixar de lado os fatores sociais de abandono da estrutura estatal de
saneamento básico nas áreas insalubres supracitadas, que tiveram forte influência em
considerar tais locais como área de futura expansão urbana, em vez de subúrbios
residenciais. Esses diversos acoplamentos afirmam a noção das múltiplas redes por trás
dos rios urbanos, e matizam as resistências de grupos socialmente perseguidos e as
imposições de grupos socialmente privilegiados, o coletivo cultural de ideias que
mobilizam tais grupos, a passividade e a intervenção do ambiente biofísico.
Como podemos operar com o coletivo de atores sociais nesse contexto de redes e
interações? Como podemos delinear grupos, classes, instituições, quando tendemos a
cair numa arbitrariedade? Para nós o que colaria esses indivíduos num grupo social, e
51
LATOUR, Jamais fomos modernos, op. cit., p. 12.
52
Tomo aqui a ideia de mito conforme desenvolvido por Raoul Girardet. GIRARDET, Raoul. Mito e
mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
20
não em outro, dependeria mais da narrativa do historiador, do que a suposta realidade
social do passado. “Em cada momento, temos de reconstruir a concepção do que estava
associado porque a definição anterior passou a ser, até certo ponto, irrelevante.”53.
Impor uma ordem que ensine o que os agentes sociais foram, ou buscar alguma
consciência dos atos do passado, dificulta a observação e a análise das complexas
interações.
Nesta perspectiva, as concepções construtivistas de Latour ganham força com a
tradição estruturalista de Bourdieu, e sua teoria de campo. O campo, assim como as
redes, é entendido através das relações “não na vontade de um indivíduo ou de um
grupo, mas sim no campo de forças antagonistas ou complementares (...)” 54. Relações
sociais entre os indivíduos que compartilham interesses em comum, mas que não
possuem os mesmos recursos, capital. Nas palavras de Bourdieu, “os agentes e grupos
de agentes são assim definidos pelas suas posições relativas neste espaço”55. Dessa
maneira, as assimetrias e desigualdades sociais emergem na narrativa conforme
compreendemos a dinâmica de poder entre quem possui mais recursos e quem possui
menos. Portanto, os grupos seriam delineados, mesmo que limitado no tempo e no
espaço, a partir de atitudes e interesses semelhantes que atuam num determinado campo
(econômico, científico, simbólico, social). O que se busca é um espaço de relações,
certamente conflituosas por um lado e cooperativas por outro, mediadas pelo habitus de
seus atores.
Na proposta de narrativa de rios urbanos, os funcionários do Estado –
burocratas, engenheiros, poder executivo –, que regulam quem pode, e de que maneira,
se apropriar do ambiente biofísico, agem sobre um campo social em que também estão
presentes outros grupos, como os participantes do jogo do capital econômico que
possuem muitos recursos – cafeicultores, donos de hotéis e de fábricas, empresários
diversos –, e integrantes que possuem poucos recursos – lavadeiras, banhistas negros,
moradores locais. Acompanhar os processos de busca e ganho de recursos (capital
econômico, simbólico, etc.) por diferentes grupos permite compreender como
desencadeou os diversos casos de desigualdades sociais, assimetrias do jogo de poder,
decorrentes das transformações da socionatureza no decorrer do tempo.
53
LATOUR, Bruno. Como prosseguir a tarefa de delinear associações? Configurações, n. 2, p. 11-27,
2006, p. 16.
54
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989, p. 81.
55
BOURDIEU, O poder simbólico, op. cit., p. 134.
21
Olhar para a cidade nessa perspectiva permitiu também abordagens tradicionais
da história, como: a urbanização como fenômeno de classe, onde o excedente é extraído
de muitos e o controle sobre sua distribuição é atribuição de poucos. Isto foi um
processo urbano global em que ocorreu em diversas cidades americanas e europeias,
como Paris, Nova York e Viena, e reafirmou o processo da urbanização como peça
fundamental para a sobrevivência do capitalismo. As semelhanças nas circunstâncias
sociais de tais cidades permitiram que as reformas urbanas fossem consideradas
necessárias, e demandassem um grande número de trabalhadores, instituições
financeiras e instrumentos de débito, e, claro, um sistema de repressão violenta56. Nessa
perspectiva urbana progressista, baseada no racionalismo, na ciência e na técnica, o
espaço da cidade busca se adequar aos conceitos de higiene e civilização e, em
particular, de racionalidade. Assim a reordenação espacial torna-se rigorosa e separa-se
autoritariamente e distintamente em locais de trabalho, moradia, cultura e lazer57. Como
vimos num exemplo mais acima, essa reestruturação urbana geralmente afeta mais, e de
maneira violenta, os desprivilegiados e marginalizados pelo poder público, que
geralmente são também associados como ameaça à ordem pública. Em 1872, Friedrich
Engels escreveu em The Housing Question:
56
HARVEY, David. O direito à cidade. Lutas Sociais, São Paulo, n. 29, p. 73-89, jul./dez., 2012.
57
CHOAY, Françoise. O Urbanismo: Utopias e Realidades: Uma Antologia. São Paulo: Ed. Perspectiva,
1979.
58
ENGELS, Friedrich. The Housing Question. New York: International Publishers, 1935, p. 74-77.
22
Apresentação da tese e seus capítulos
Esses diversos acoplamentos afirmavam a noção das múltiplas redes por trás dos
rios urbanos e matizavam as resistências de grupos socialmente desprivilegiados e as
imposições de grupos socialmente privilegiados. O uso da terra por plantações de
cafezeiros, extração de madeira, carvoarias, esteve vinculado com o desmatamento e a
diminuição da vazão dos rios que abasteciam a cidade. Enquanto as classes dos
engenheiros e dos médicos se desenvolviam institucionalmente no Rio de Janeiro, o
discurso do governo imperial tendia para a centralização das atividades de interesse para
o abastecimento d‟água. A transformação de ecossistemas "sadios" em “não-sadios”
comprometia suas funções ecológicas (oferta de água, ar puro, contenção de erosão) e a
apropriação social (banho, lenha, caça). O papel da história aqui foi de construir uma
narrativa que fosse sensível às transformações dessa socionatureza que possuía, ao
mesmo tempo, questões sociais e ambientais que também foram transformadas de
maneira mútua.
Após essa longa introdução, vemos que esta tese está multitemática, com os rios
como os protagonistas de uma história ambiental urbana da cidade do Rio de Janeiro no
século XIX. E nessa diversidade de ideias, nossa hipótese central se apresenta assim:
analisar os rios urbanos em suas diferentes seções permitiu identificar relações
socionaturais distintas, e até antagônicas, com a sociedade urbana do Rio de Janeiro no
Segundo Reinado. O alto curso com suas florestas significou a busca pela entrada de
água para o sistema urbano e uma área de salubridade para os verões febris. Em
contraposição o médio e o baixo curso passaram a ser áreas de descarte de lixo e esgoto,
tornando-se uma área mais insalubre. Um mesmo rio era ao mesmo tempo a entrada e a
saída de fluxos materiais no ecossistema urbano.
Um desafio constante desta tese foi a situação antagônica da história do Rio de
Janeiro possuir uma infinidade de fontes historiográficas – em grande parte presente no
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro – ao mesmo tempo em que na maioria
destes documentos o ambiente biofísico nem era mencionado. Em parte, tal desafio foi
superado pela diversificação das fontes utilizadas: relatórios oficiais, jornais, revistas
científicas, dados de pluviosidade, tabelas de vazão dos rios, pinturas, fotografias,
mapas, etc. Muitos desses mapas deram origem a mapas confeccionados por mim, de
23
maneira a fornecer maior embasamento para meus argumentos59. A codificação deste
espaço num linguajar cartográfico permitiu reinterpretar o espaço socionatural e as
relações existentes. Através da diversidade dessas fontes, a análise deu uma forma mais
fluida e temática à narrativa.
Tabela 1: Organização dos capítulos da tese segundo trecho dos rios e recorte temporal.
Esta tese está dividida em duas partes, conforme a tabela acima. Embora essas
partes também sejam cronologicamente direcionadas, elas são em sua maioria
tematicamente orientadas com uma temporalidade sobreposta. Na primeira, Os anseios
pelo controle da socionatureza urbana, o crescimento urbano da cidade do Rio de
Janeiro e a formação do Estado imperial e seu corpo técnico estiveram no cerne das
atividades de idealização e controle da socionatureza urbana, onde grupos humanos e
não-humanos resistiam localmente. Ao contemplar a consolidação do poder
infraestrutural do Estado imperial do Segundo Reinado, esta parte se estende de alguns
eventos do período Regencial (1831-1840) até a década de 1870. No primeiro capítulo,
iniciamos nossa narrativa fluvial nas montanhas cariocas e nos usos dessa parte dos rios
pela sociedade urbana. Com a crescente demanda por água para a cidade, o Estado
imperial se apropriou das matas cariocas e seus rios, e os transformaram de maneira a
incorporá-los ao ecossistema urbano através das políticas de abastecimento de água, de
reflorestamento e da construção de estradas.
Ainda na primeira parte, o capítulo 2 seguiu o curso dos rios entrando no
território urbano pelo médio e baixo curso. Através das obras públicas e das atividades
dos engenheiros, a cidade avançou pelo médio e baixo curso das bacias hídricas,
modificando os aspectos de ruralidade que persistiam nos subúrbios. Pontes, estradas e
59
Os mapas presentes nesta tese foram realizados através do programa de código aberto e gratuito
Inkscape 0.92. Os traços (vetores) foram desenhados com base cartográfica de mapas antigos que serão
devidamente identificados nas legendas dos mapas. Devido à questões técnicas da cartografia, todos os
mapas elaborados para esta tese estão sem escala.
24
novos caminhos das águas foram os primeiros passos para a urbanização dos arrabaldes
cariocas, que manteve aspectos rurais por décadas.
Na segunda parte, As novas, e antigas, relações socioecológicas na ampliação
do controle da socionatureza pelo Estado, as transformações materiais da socionatureza
da cidade do Rio de Janeiro por parte da sociedade urbana resultou em novas relações
socioecológicas entre o ecossistema urbano e seu ambiente biofísico. O recorte temporal
dá continuidade ao da primeira parte e se estende até o fim do Império em 1889. Para
alguns temas foi necessário alguns retornos temporais anteriores a 1870. As atividades
urbanas estiveram associadas ao ambiente, e ao transformá-lo, para o crescimento
urbano e suas funções, novas interações entre humanos e não-humanos surgiram. Mais
uma vez subimos a montanha para iniciar nossa narrativa no alto curso, no capítulo 3.
Nele a domesticação da paisagem florestal e a busca por rios mais distantes para o
abastecimento da cidade abriu espaço para novas atividades fluviais e florestais,
transformando as relações socioecológicas no alto curso. Após o abastecimento de água
ser um problema urbano, as políticas hídricas se afastaram das matas mais próximas, e a
iniciativa privada se apropriou das florestas.
Descendo os rios, vemos no capítulo 4 como decorreu as novas relações na
expansão urbana para os subúrbios cariocas. Os rios urbanos estiveram no cerne do
planejamento urbano dos engenheiros, enquanto que os equinos formaram a principal
força transformadora da sociedade urbana, pelo transporte público e a nova dinâmica do
centro urbano e subúrbio, e pelo transporte de materiais para as obras públicas.
Por fim, no capítulo 5, vemos o papel dos médicos e suas teorias na
transformação urbana. As ideias médicas mobilizaram uma nova medicina urbana que
foi a base da transformação da paisagem urbana, resultando numa melhor eficácia dos
serviços urbanos de aterros de áreas alagadas, canalizações de rios, coleta de lixo,
sistemas de esgoto.
25
PARTE 1:
Os mecanismos de controle da socionatureza urbana (c. 1850-1870)
26
imaginário social dos grupos que tomavam decisões políticas que transformaram a
socionatureza urbana.
Portanto, os idealizadores da socionatureza surgiram como novos agentes que
participaram da criação de uma nova socionatureza urbana desejável: a cidade
cosmopolita, moderna, industrial e capitalista. Esse novo modelo de cidade teria de
contemplar novos problemas derivados das transformações urbanas decorrentes do
crescimento populacional, industrial e epidemiológico. No entanto, embora os saberes
dos idealizadores sejam profundamente influenciados por ideias e ideais europeus e
norte-americanos, o novo modelo da cidade carioca contemplaria os problemas
socionaturais locais de maneira distinta e específica. Os saberes urbanos dos
idealizadores permearam as instituições humanas, seus dirigentes, suas ações e suas
intenções. Além de investigar os projetos e outros documentos realizados pelos
engenheiros, buscou-se analisar também as disputas e negociações que ocorreram na
socionatureza urbana.
Na busca pelo controle e transformação de um novo espaço urbano, a
espontaneidade da socionatureza seria suprimida por tais ideias e ações. Tudo o que
estivesse fora dos planos urbanos seria considerado indesejável. A incrível topografia
elogiada pelos viajantes naturalistas não favorecia o crescimento urbano ou de seus
serviços (montanhas, brejos, rio). As dinâmicas de erosão e assoreamento das margens
dos rios, já bastante modificada pelas atividades urbanas, foram consideradas
inconvenientes. As queimadas e os desmatamentos realizados por cafeicultores,
lenhadores e carvoeiros foi um percalço que complicou a coleta das águas dos rios para
abastecerem a cidade. Os conflitos fluviais entre vizinhos nas chácaras suburbanas
impediram os planejamentos municipais. Conforme a cidade planejava e transformava o
rio, tornou-se indesejável que o rio interferisse na cidade. A espontaneidade fluvial
tornou-se, assim, também, indesejável.
As conexões com o capital privado nas atividades comerciais, industriais e
imobiliárias, também se valeram dos discursos técnico-científicos dos idealizadores. A
permanência das relações sociais e suas desigualdades traduziam a intenção dos grupos
dirigentes. A perseguição a grupos indesejáveis presente nos discursos e atividades dos
poderes municipais e imperiais, também reforçaram essa permanência das relações
sociais. Assim, banhistas dos rios, caçadores, lavadeiras tiveram suas atividades
inviabilizadas no alto curso carioca sob o pretexto do abastecimento de água. Nos
subúrbios, a associação de humanos com outras espécies (lavouras, pomares, criação de
27
porcos) também tiveram que se encaixar nos moldes urbanos imaginados pelos
idealizadores e seus seguidores. Os novos discursos desses saberes apontaram mais uma
vez que algumas coisas deveriam mudar para que outras se mantivessem iguais. O
controle sobre outros seres humanos foi ampliado sob os novos ideais urbanos, através
da lei e dos discursos idealizadores. Mais do que simplesmente reprimir, as atividades
de controle seguiam também a lógica dos saberes técnicos, que normatizavam,
classificavam e moldavam.
Nesta primeira parte, dotada de dois capítulos, veremos que o crescimento
urbano e os saberes dos idealizadores transformaram a socionatureza urbana e suas
interações, conforme seus poderes cresciam no Estado imperial e na municipalidade. No
primeiro capítulo, as montanhas cariocas e suas florestas são pouco a pouco afetadas
pela expansão do tecido urbano. Como as invisíveis estruturas dos fungos, as hifas, a
cidade invadiu as matas cariocas do alto curso através: das queimadas e desmatamentos
para as atividades de cafeicultura e oferecimento de bioenergia (lenha e carvão vegetal)
para os fornos urbanos domésticos e industriais (1.1); das captações e encanamentos dos
rios para o abastecimento de água (1.2); da reconstituição das florestas da Tijuca e das
Paineiras (1.3). Nas partes baixas (médio e baixo curso), as transformações são mais
intensas e perceptíveis na medida em que nos aproximamos do núcleo urbano da antiga.
Assim, no segundo capítulo, pontes e estradas permitiram ultrapassar os antigos limites
topográficos urbanos dos brejos, mangues e rios (2.1); os usos dos rios urbanos
(desvios, aterros) indicavam uma persistência de atividades rurais, remodelando os
arrabaldes cariocas (2.2); e a ocupação e o embelezamento das desembocaduras fluviais,
e suas praias, apontavam as disputas sociais e econômicas no território urbano (2.3).
28
CAPÍTULO 1:
Rios, montanhas e florestas: a expansão urbana e a transformação do
maciço da Tijuca
A floresta é uma esponja. Mais que isso, a floresta e sua estrutura geológica
acumulam grande parte da chuva. Segundo a geógrafa Ana Luiza Coelho Netto60, a
floresta tropical chuvosa do maciço da Tijuca absorve em torno de 20% dessas águas,
enquanto que o estoque “nos solos e no meio rochoso fraturado é elevado (cerca de 50%
das chuvas anuais)”61. Em seu experimento na bacia do alto rio Cachoeira no mesmo
maciço, “apenas 30% da precipitação anual converge para os canais fluviais durante os
períodos chuvosos”62. Esses caminhos d‟água encaixam-se nas falhas do passado
geológico e drenam o maciço. O sistema floresta-geomorfologia é autorregulador das
condições hídricas e climáticas, e também autossustentável. Isso enquanto a floresta se
mantiver em pé.
Drenado por muitas bacias hídricas, o maciço da Tijuca é dividido em serra da
Carioca e da Tijuca pelo vale do rio Maracanã (Figura 1). Localizado na porção oriental
do sistema geológico, podemos encontrar na serra da Carioca o morro do Corcovado, e
os vales do rios Carioca, ou das Laranjeiras, Banana Podre. Já a serra da Tijuca
encontram-se os rios que descem para a Freguesia do Engenho Velho – rios Maracanã,
Joana, Trapicheiros e Comprido, conforme vemos no mapa abaixo. A figura ilustra
também o quanto a urbanidade (cinza e amarelo) e a fluvialidade (azul) se encontraram.
Os rios viabilizaram as atividades da sociedade urbana ao longo de seu entorno florestal
pelo interesse em suas águas para o abastecimento, deleite, terapias médicas, etc. Eles
foram o fio condutor para compreender os processos humanos e não-humanos no
território urbano. Apropriados cada vez mais pelo poder estatal, esses corpos d‟água
tornavam-se urbanizados – materialmente e simbolicamente – ao mesmo tempo em que
a floresta se retraia pelo desmatamento. O entendimento da dinâmica florestal e sua
relação com a sociedade urbana foi essencial para analisar os rios urbanos cariocas.
60
COELHO NETTO, Ana Luiza. A interface florestal-urbana e os desastres naturais relacionados à água
no maciço da Tijuca: desafios ao planejamento urbano numa perspectiva sócio-ambiental. Revista do
Departamento de Geografia. Rio de Janeiro, v. 16, p. 46-60, 2005.
61
COELHO NETTO, A interface florestal-urbana e os desastres naturais, op. cit., p. 51.
62
COELHO NETTO, A interface florestal-urbana e os desastres naturais, op. cit., p. 51.
29
Figura 1: Mapa dos principais rios do Rio de Janeiro. Sem escala. Em tons de marrom o maciço da Tijuca e
outros morros, em verde os reflorestamentos, em amarelo as áreas suburbanas e em cinza o centro urbano.
Base cartográfica: PASSOS, Francisco Pereira. Planta dos melhoramentos projetados. Rio de Janeiro: Offic.
Graph. E. Bevilacqua & C., 1903. Autor: Bruno Capilé.
1.1. Por que falar de florestas em uma tese sobre rios?: caracterização
do alto curso carioca
As florestas também atuam de maneira heterogênea nos rios, vales e adjacências;
formando um complexo sistema flúvio-florestal. Tomemos a dinâmica da água nesse
ambiente. As chuvas ao caírem são interceptadas, primeiramente, pelas copas das
árvores. Estas atuam tanto no amortecimento das gotas quanto na perda de água por
evapotranspiração das folhas. No primeiro caso, ocorre a proteção dos solos da força
mecânica de milhares de pingos que cairiam diretamente sobre o solo. Do contrário iria
desagregar e permitir maior erosão, de maneira a comprometer o fluxo de água nos rios.
No segundo caso, evapotranspiração, ocasiona maior umidade relativa, e ameniza os
extremos de temperatura devido à grande capacidade do vapor d'água de reter calor.
Motivos pelo quais muitos residentes e visitantes subiam as serras em busca de climas
mais amenos para que pudessem passar os dias mais quentes.
Após esse primeiro contato com a floresta, a água pluvial entra no complexo
sistema do solo florestal antes de se transformar em fluvial e seguir seu curso. Os
animais, microrganismos e vegetais presentes no solo, serapilheira e raízes, o
transformam num corpo esponjoso, que permitiu a passagem de ar e água entre os grãos
63
MAYA, Raymundo Ottoni de Castro. A floresta da Tijuca. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1967.
31
de terra. A serapilheira, matéria orgânica derivada de folhas e outras partes vegetais que
revestem o solo de uma floresta, também o protege do impacto direto das gotas d‟água.
Mas, a maior complexidade ocorre com o protagonismo das raízes em interação com o
solo. Elas o penetram, o modificam e permitem a entrada de águas e gases
atmosféricos64. O solo está vivo!
A água que chega ao solo pode ter, resumidamente, três movimentos. Escoar por
baixo da superfície em direção aos rios e nascentes (escoamento subsuperficial). Ou
seja, a saturação de água nas camadas do solo permite um fluxo para os rios. Ela pode
descer lentamente para zonas de acúmulo de água, como aquíferos. Ou ser absorvida
pelas raízes como seiva bruta e subir até as folhas pela força da evapotranspiração
destas últimas. Na ausência de florestas e seus serviços ecológicos, o movimento de
erosão substituiria o escoamento subsuperficial, comprometendo seriamente os rios65.
Buscou-se aqui seguir pelo primeiro caminho da água, o ponto de convergência mais
visível de nossa história ambiental, por onde a água desce pela superfície florestal, e
forma os rios, encontra pessoas, plantas e animais.
64
SCHÄFER, Alois. Fundamentos de Ecologia e Biogeografia das Águas Continentais. Porto Alegre:
Ed. da Universidade, UFRGS, 1984
65
BALBINOT, Rafaelo; OLIVEIRA, Nayara Kaminski de; VANZETTO, Suelen Cristina; PEDROSO,
Keylla; VALÉRIO, Álvaro Felipe Valerio. O papel da floresta no ciclo hidrológico em bacias
hidrográficas. Ambiência - Revista do Setor de Ciências Agrárias e Ambientais, Guarapuava, v. 4, n. 1, p.
131-149, Jan./Abr. 2008.
66
Conforme as terras das seções de médio curso desses mesmos rios, que evidentemente foram aradas
para o cultivo da cana-de-açúcar (Saccharum officinalis) no século XVIII. Cf. ABREU, Maurício de
(org.). Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo
e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992.
32
mais moderado, exige solos nem encharcados, tampouco secos. No caso do altiplano
carioca, os cafezeiros contentavam-se com as encostas íngremes, já que os fundos dos
vales não eram bem drenados67.
A cafeicultura já havia surgido no final do século XVIII em quintais e chácaras,
e teve um grande crescimento com as atividades de estrangeiros, como o francês Louis
Lecesne na Gávea Pequena com o plantio de 60 mil pés de café e a presença de 50
escravos numa área de 130 hectares. Destaca-se este indivíduo por seu sistema
combinar escravismo, novas técnicas de plantio e beneficiamento do café a partir dos
moinhos movidos a energia hidráulica para despolpar os grãos 68. Antes mesmo do fim
do “reinado” do café no maciço da Tijuca, no final da década de 1840 devido a uma
praga no vegetal, a região montanhosa passou a receber um grupo de indivíduos com
maior poder aquisitivo com interesse em estabelecer chácaras em áreas mais salubres.
Esta ocupação ocorreu desta maneira essencialmente devido às dificuldades de acesso
ao local, já que estes indivíduos possuíam dinheiro para alugar ou possuir carroças;
assim como pelo interesse em se afastar das febres contagiosas que começara a assolar o
centro da cidade, a partir da segunda metade do século XIX. Nos anúncios de venda de
propriedade nos jornais as características que mais se sobressaíam eram a presença de
grande mata virgem, para construção ou carvão; de oferta de água corrente; e, de forma
decrescente, da presença de cafezais69. Assim, as fazendas foram inicialmente vendidas
para produção cafeeira, e, com o fim das plantações, desmanteladas em chácaras para
moradias permanentes ou de temporadas, e em hotéis e sanatórios para os interessados
na cura e no lazer.
Maurício de Abreu elaborou em A cidade, a montanha e a floresta70 uma
interessante recapitulação de algumas fazendas e chácaras do maciço da Tijuca. Através
de literatura sobre o local, seus próprios estudos e a análise de anúncios de vendas de
propriedades nas montanhas nos periódicos, Abreu desenvolveu um modo de analisar
muito proveitoso. Na primeira metade do século XIX, o autor localizara chácaras e
67
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
68
CEZAR, Paulo Bastos. A casa da gávea pequena. Rio de Janeiro: Ed. Casa da Palavra, 2006.
69
ABREU, Maurício de (org.). Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural,
Divisão de Editoração, 1992.
70
ABREU, Maurício de. A cidade, a montanha e a floresta. In: ABREU, Natureza e Sociedade no Rio de
Janeiro, 1992.
33
fazendas com um número aproximado de pés de café nesses anúncios. Embora não
tenha sido uma análise exaustiva, ele conseguiu apontar mais de 250 mil pés de café71,
na parte alta e nas encostas do maciço da Tijuca72.
A análise dos periódicos por Abreu indicou também que os anúncios de venda
dessas propriedades davam prova da destruição das matas, conforme escasseavam as
menções a “matos virgens” ou “muita madeira para carvão” a partir da década de 1840.
A busca pelo carvão vegetal havia aumentado bastante com o rápido crescimento
demográfico da cidade do Rio de Janeiro, e mudanças culturais e sociais, como a maior
ocorrência de casas de alvenaria.
A energia disponível no carvão vegetal ou na lenha, feito das árvores derrubadas
das florestas cariocas, esteve presente em milhares de fogões que cozinhavam por horas
a mandioca, o milho, o feijão e carnes de boi, galinha e porco; na fervura da água para
roupas serem higienizadas após um surto epidêmico de cólera ou simplesmente para
serem tingidas; no aquecimento para o banho; secar roupas e manter a cozinha aquecida.
Nos sítios e fazendas, o calor exalado desses combustíveis era usado no beneficiamento
do café, do toucinho, do fumo de corda, de queijos, da cachaça, do sabão. No ano de
1882, a distribuição de carvão vegetal e mineral, e de lenha, circulava por: 173 padarias,
33 torrefações de café, 36 refinarias de açúcar, 60 ferrarias e fundições, 66 fabricantes
de chapéu de feltro, 11 olarias, 5 fábricas de papel e papelão, 5 fábricas de vidro e
porcelana, 22 fabricantes de caldeiras73. Warren Dean realizou uns cálculos importantes
para consumo de carvão a partir do cozimento de telhas e tijolos para a construção civil
da capital imperial e as milhares de residências que surgiam.
71
Abreu indica propriedades na Gávea Pequena, como a de Louis François Lecesne (50.000 cafezeiros),
de Charles Alexander Mocke (40.000 cafezeiros), uma ao pé da Pedra (20.000), outra em terras que
pertenciam ao Visconde de Asseca (11.000), e uma última no caminho da Gávea (50.000). Na Tijuca,
aponta uma no alto da Boa Vista (30.000), um sítio não localizado (8.000), uma chácara perto do rio
Maracanã (13.000), outra perto da Cascata Grande (30.000).
72
Números não muito significantes, se considerarmos toda a área do maciço, considerada 3.300 hectares,
o que permitiria uma média de mais ou menos 75 cafezeiros por hectare, ou uma planta por 133m². O
mesmo acontece se considerarmos o plantio do cafezeiro num espaçamento de 50 centímetros (4
indivíduos/m²), vemos que a área de perda de cobertura florestal corresponde a 6,25 hectares, ou 0,2%.
Porém, não podemos concluir muita coisa com esses dados, pela própria obtenção deles, assim como pela
desconsideração da dinâmica de plantio dos cafezeiros.
73
DEAN, A ferro e fogo, op. cit.
34
casa de alvenaria era realmente “feita de madeira”. Supondo-se que em 1890
o Rio de Janeiro possuísse 40mil moradias e estruturas de tijolo cozido que
consumiam em média cem toneladas de lenha, então teriam sido queimados 4
milhões de toneladas de madeira para construir a cidade, o equivalente a
duzentos km2 de floresta secundária74.
74
DEAN, A ferro e fogo, op. cit., p. 212
75
Como os depósitos decorridos dos movimentos de subida e descida do nível do mar ao longo de eras
glaciais. Em alguma regressão marinha uma floresta pode surgir no espaço recém “liberado” pelo mar.
Alguns milhares de anos depois, o nível do mar sobe e os movimentos marinhos de curto prazo geológico
vai depositando sedimentos e soterrando essa floresta.
76
TAIOLI, Fábio. Recursos Energéticos. In: TEIXEIRA, Wilson; TOLEDO, Maria Cristina;
FAIRCHILD, Thomas; TAIOLI, Fábio. Decifrando a Terra. São Paulo: Oficina de textos, p. 471-492,
2000.
77
DEAN, A ferro e fogo, op. cit.
35
moléculas estruturais (celulose e lignina) que formaram a base química do lenho, ou
tronco. É do tronco que provém as toras a serem usadas como lenha ou preparadas para
carvão vegetal. A praticidade do uso direto da lenha competiu com o triplo de energia
disponível no carvão vegetal. A vantagem em transformar em carvão vegetal foi a de
potencializar a energia estocada e ter menos peso a ser transportado da floresta até a
cidade, a partir da perda de água e de outros elementos presentes na planta78. Isso
explica a pertinência de existir carvoarias próximas ou dentro das florestas cariocas79.
Ainda na floresta, após o corte da madeira, as toras eram empilhadas em
estruturas revestidas de barro de mais de 3 metros (balão de carvão) onde ocorria a lenta
queima que demorava até três dias. Para o bom funcionamento desse processo, e a
garantia da produção, era necessário vigilância noite e dia para o carvoeiro controlar a
ventilação e abastecer a queima. Os carvoeiros eram em sua maioria ex-escravos sem
acesso a terra ou a emprego, que achavam na produção de carvão um meio de sustento
para ele e sua família. Eles tinham uma vida miserável e deixaram poucos vestígios para
a historiografia brasileira. O fato das carvoarias serem isoladas nas proximidades ou no
interior das florestas garantia também sossego para os trabalhadores que buscavam fugir
de problemas, ou até mesmo da lei80.
Ao que parece, a extração lenhosa das florestas cariocas (nas montanhas, nas
restingas e nos mangues) foi complexa e diversa. As pesquisas do grupo do Prof. Dr.
Rogério Oliveira, professor do Departamento de Geografia da PUC-Rio, tem apontado
poucos vestígios de carvoaria no maciço da Tijuca comparado com a maior quantidade
no maciço da Pedra Branca (mais de mil carvoarias mapeadas)81. É possível que essa
diferença seja devido ao afastamento do policiamento mais próximo a área urbana da
Corte. Ou talvez a maior distância comprometa o ganho de venda de lenha, já que seu
poder calórico é três vezes menor do que o carvão vegetal. E na Tijuca, a maior
proximidade permitiu que lenhadores locais ou contratados pudessem cortar as árvores e
78
Outra vantagem é a perda dos óleos essenciais da madeira, possibilitando uma queima sem cheiro do
carvão vegetal. Cozinhar uma batata, por exemplo, com lenha resultava na contaminação do cheiro da
fumaça no gosto alimento. O que não ocorria após a prévia queima da madeira nas carvoarias.
79
OLIVEIRA, R. R.; FRAGA, J. S. Metabolismo social de uma floresta e de uma cidade: paisagem,
carvoeiros e invisibilidade social no Rio de Janeiro dos séculos XIX e XX. GeoPuc (Rio de Janeiro), v. 4,
p. 1-18, 2012.
80
OLIVEIRA & FRAGA, Metabolismo social de uma floresta e de uma cidade, op. cit.
81
Segundo o doutorando Gabriel Paes do Programa de Pós-Graduação de Geografia da PUC-Rio, existe
sim um número considerável de resquícios de carvoarias no maciço da Tijuca. No entanto, tais estudos
são mais recentes e ainda não publicados.
36
usá-la como combustível diretamente. Os mangues da baía de Guanabara também foram
intensamente cortados, e correspondiam a 20% do consumo de lenha na capital em
189082- eram preferidos principalmente devido ao fato de queimarem devagar e não
deixar sedimentos de resina nos fornos e caldeiras.
Alguns viajantes estrangeiros presenciaram horrorizados os episódios de corte e
queima de árvores, para lenha ou apenas para abrir espaço para a cafeicultura. No alto
da Tijuca, a primeira atividade do proprietário era mandar derrubar as árvores para
vender como carvão na cidade83. Os fabricantes de carvão poderiam comprar os lotes
que derrubavam ou até mesmo trabalhar por contrato.
As árvores que não eram aproveitadas diretamente, em construções nos sítios e
fazendas, ou no preparo de lenha e carvão para consumo interno ou venda na cidade,
ficavam para secar na floresta por algumas semanas. Para a exploração do solo para o
cultivo do café, os meses mais secos, antes das chuvas, permitia que o restante da
floresta fosse incendiado. Essa prática era mais comum nas primeiras décadas
oitocentistas, como relatou os ingleses Mary Graham e John Luccock, em suas viagens
no Primeiro Reinado. Luccock testemunhou uma queimada em 1816 bem próxima à
cidade, onde os habitantes não se preocuparam muito, já que as terras eram públicas.
Além desse registro pessoal, o inglês registrou também alguns relatos de outros grandes
incêndios, como, por exemplo, o de Tinguá que durara 9 meses em 179684.
Esses e tantos outros relatos mostram que o fogo esteve relacionado com a
floresta por diferentes aspectos. Os meses secos, as folhas desidratadas e a energia
estocada no lenho das árvores precisavam, literalmente, de apenas uma fagulha para
desencadear em grandes chamas. Seja na ausência humana, na interação com
ameríndios pré-cabralinos ou nos últimos séculos de urbanidade, as florestas cariocas
lidaram com queimadas de diferentes intensidades e causalidades. A relação com a
agricultura foi inspiradora. Mais para os „cara-pálidas‟ do que para os antigos povos
indígenas85, já que estes últimos aparentemente desenvolveram sua agricultura nas
zonas mais baixas, próximas ao litoral.
82
DEAN, A ferro e fogo, op. cit.
83
ABREU, Natureza e sociedade no Rio de Janeiro, op. cit.
84
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975.
85
Não há indícios de permanência humana de grupos indígenas no maciço da Tijuca. Mesmo possuindo
tecnologia agrícola para o desenvolvimento de roçados de mandioca, esses povos limitavam o acesso as
matas das montanhas à incursões para caça e coleta de plantas e frutos. Cf. SCHEINER, Tereza Cristina
37
Os solos do maciço da Tijuca, de maneira geral, são pobres em fósforo, um
macronutriente essencial para praticamente todas as plantas, e em cálcio, um
micronutriente86. A ação do fogaréu foi fundamental no momento em que transformou o
fósforo e demais nutrientes minerais da biomassa vegetal, e os transferiu para o solo,
agora enriquecido. O domínio do fogo foi uma ferramenta fundamental tanto para a
agricultura tropical quanto para o controle que uma sociedade tem sobre seu território,
domesticando seus recursos87. A questão era que uma queimada ocasional permitia a
formação de diferentes estágios de sucessão da mata, o que significou que diferentes
espécies ocupavam diversos nichos e tinham uma maior biodiversidade. Porém, em
incêndios recorrentes, a erosão do solo e a extinção local tornavam-se um grande
problema para a dinâmica florestal, e seu consequente aproveitamento por humanos88.
Impressionantemente, em áreas não queimadas, algumas árvores eram deixadas
inteiras. Comportamentos culturais derivados de religiões, como as cristãs e as
africanas, que estão relacionados com a preservação de algumas espécies espalhadas
pela mata. Oliveira argumenta que o caráter simbólico de populações tradicionais
interferiu na regeneração natural, ao selecionar quais espécies seriam derrubadas, e
quais não seriam. No caso de rituais afro-brasileiros, Oliveira aponta que a figueira foi
associada a uma espécie africana (Clorophora excelsa) para representar um deus-árvore:
Iroco. No caso da floresta da Tijuca, a existência de populações negras – quilombolas,
carvoeiros, ex-escravos, escravos, lenhadores, caçadores, empregadas e empregados nos
sítios, chácaras e fazendas – permitiu supor que também estavam relacionados a rituais
que saudavam, agradeciam e invocavam entidades ligadas à floresta. Mesmo que muitos
não sejam adeptos, o respeito a crenças afrodescendentes possibilitou a permanência de
gigantescos indivíduos como Jatobás (Hymenaea courbaril L.) e Jequitibás (Cariniana
spp). Estas e outras árvores atualmente são adoradas e respeitadas para diferentes rituais
como a Roda de Capoeira no Jequitibá Ancestral89, no bairro do Horto, e cultos afro-
Holeta. Ocupação humana no Parque Nacional da Tijuca: aspectos gerais. Brasil Florestal, ano 7, nº 28,
Outubro/Dezembro, p. 3-27, 1976
86
SCHEINER, Ocupação humana no Parque Nacional da Tijuca: op. cit.
87
OLIVEIRA, Rogério Ribeiro de. Mata Atlântica, paleoterritórios e história ambiental. Ambiente &
Sociedade, v. 10, n. 2, p. 11-23, 2007; DEAN, op. cit.
88
SILVA MATTOS, D. L.; SANTOS, C. Junius F; CHEVALIER, D. de R. Fire and restoration of the
largest urban forest of the world in Rio de Janeiro City, Brazil. Urban Ecosystems, n. 6, p.151–161, 2002.
89
Organizado pelo Mestre Camurça através do Grupo Igualdade de Capoeira a roda entorno do Jequitibá
pode ser observada através de vídeo Roda de Capoeira do Jequitibá. Disponível em:
(https://www.youtube.com/watch?v=H0DectQvQ2Q). Acesso em: 14 de janeiro de 2016. Cf. MUSEU do
38
brasileiros para divindades (orixás) presentes nas florestas como, por exemplo: Oxum,
que reina sobre as águas doces dos rios; Oxóssi, da caça, das florestas, dos animais.
Livres do machado, estes indivíduos vegetais cresciam bastante em alturas de dezenas
de metros e larguras assombrosas. Quem pela floresta passava e se deparava com tal
vislumbramento certamente se maravilhava90.
A presença de grandes árvores, como as figueiras, facilitava a alimentação de
dezenas de espécies de aves e primatas91, e aumentou a possibilidade desses mesmos
animais participarem da dispersão de outras sementes de árvores de outras espécies. A
dinâmica das populações humanas nas florestas do maciço da Tijuca se responsabilizou
tanto por aspectos de proteção de árvores, quanto de seu corte. Assim como da
preservação de alguns animais e de sua caça. Mesmo assim, até o início da década de
1860 a retração das matas cariocas foi maior que os esforços individuais de proteção. O
botânico Francisco Freire Alemão relatara que dúzias de espécies de animais já não
eram raras de se ver, e que outras foram totalmente extinguidas localmente, como antas,
veados, onças, caititus, macacos-aranha, saguipirangas92. A caça nas florestas do maciço
da Tijuca foi um empreendimento diverso, efetuado por diferentes coletivos sociais. A
necessidade proteica de subsistência e os fatores culturais de entretenimento e de laços
familiares constituíram as principais intenções de caça.
Outra grande fonte de retirada dos animais no alto curso foi o desenvolvimento
da cultura dos naturalistas. Estrangeiros ou brasileiros, formados institucionalmente ou
não, vinham para a Mata Atlântica registrar e coletar um pouco da diversidade vegetal e
animal. A corrida de descrição de plantas e animais da história natural marcou
profundamente como eram conhecidas as florestas. Saberes exógenos provenientes de
tradições europeias de ciência permeavam os conhecimentos autóctones de negros e
indígenas. O primeiro, por dotar de uma pretensão hierárquica entre civilizações,
aproveitou-se da escrita para suprimir o segundo grupo e sua sabedoria empírica
transmitida oralmente. Em meio a isso, ingleses, franceses, brasileiros e outros povos,
39
usufruíam dos conhecimentos93 que os grupos locais desenvolviam pela sua experiência,
além do apoio logístico (fornecimento de alimentos, meios de transporte, contatos com
outros grupos, intérpretes e guias, carregamento de material, etc.)94.
Nas matas cariocas, indígenas, negros e seus descendentes, caçavam animais e
coletavam plantas em troca de dinheiro oferecido pelos naturalistas e curiosos. O
desenho de Debret (Figura 2) retrata de maneira simbólica a colaboração de escravos e
livres no complexo sistema científico. Sem formação institucional, os categorizamos
como parataxonomistas – já que exerciam a função de localizar, identificar, coletar e
acondicionar apropriadamente diferentes espécimes vegetais e animais. Na figura vemos
6 negros carregando répteis, aves, plantas, borboletas e um bicho preguiça.
Figura 2: Retorno dos negros de um naturalista - Por Jean-Bapstiste Debret - uma das duas ilustrações que
formam a gravura G-6 9 da "Viagem pitoresca" - Aquarela do artista (1816 - 1831). Fonte: Biblioteca
Nacional95
93
Essa contrapartida dos conhecimentos autóctones de diferentes grupos tem sido reavaliada por novas
correntes historiográficas derivadas da história da ciência. Nota-se que os ambientes biofísicos das
florestas brasileiras eram bem desconhecidos de viajantes longínquos. Além das adversidades vividas, o
novo ambiente precisava muitas vezes ser traduzido para os olhares leigos. Muitos naturalistas
reconheceram em seus diários e escritos a ajuda e o protagonismo desses atores esquecidos.
94
MOREIRA, Ildeu de Castro. O escravo do naturalista: o papel do conhecimento nativo nas viagens
científicas do século 19. Revista Ciência Hoje, v. 31, n. 184, p. 40-48, Julho 2002.
95
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e histórica ao Brasil (Tomo I). São Paulo: Itatiaia/Edusp,
1978. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon393053/
icon393053_089.jpg>. Acesso em: 16 de fevereiro de 2018.
40
As plantas também sofreram perseguição por parte de admiradores e estudiosos.
Flores em chapéus, grandes folhas na ornamentação, compunham a natureza morta das
aves empalhadas, rochas e fósseis. As atividades de coleta ultrapassavam os limites do
interesse científico. Podemos convenientemente chamar o pano de fundo para essa
motivação de cultura naturalista. Uma expressão herdada de múltiplos fatores, como a
leitura de memórias de viajantes naturalistas que se empenharam em traduzir a
paisagem florestal e seus animais em conhecimento assimilável numa tradição
científica; a exposição de objetos inanimados, dos três reinos categorizados pela história
natural em museus recém-criados, fascinava as novas gerações. Transportar esses
objetos só foi possível devido à rapidez dos navios a vapor, as estufas aquecidas que
protegiam do inverno europeu, terrários que ambientavam os espécimes. Dean descreve
como algumas plantas foram coletadas excessivamente:
Nas palavras dos missionários Kidder e Fletcher que estiveram no Rio de Janeiro
em dois momentos da primeira metade do século XIX:
96
DEAN, A ferro e fogo, op. cit., p. 178
97
“From time to time negroes are met, waving their nets in chase of the gorgeous butterflies and other
insects which may be seen fluttering across the path and nestling in the surrounding flowers and foliage.
[] Many slaves were formerly trained from early life to collect and preserve specimens in entomology and
botany, and, by following this as a constant business, gathered immense collections.” Cf. KIDDER e
FLETCHER....]KIDDER, Daniel Parish & FLETCHER, James Cooley. Brazil and the Brazilians:
portrayed in historical perspective and different sketches. Philadelphia: Deacon & Peterson, p. 104, 1857
41
pelas borboletas e mariposas que foram capturadas ou pelas diversas espécies de abelhas
que tiveram suas colmeias predadas para a obtenção de mel; dispersão das sementes por
aves e pequenos mamíferos caçados em grande parte para alimentação; controle
populacional por espécies predadoras, também caçadas; além de tantas outras interações
ecológicas que foram desestabilizadas e modificadas.
O governo imperial desde o início do século XIX tentava padronizar e
normatizar as atividades humanas nas florestas próximas à corte. As leis de proteção das
matas possuíram diferentes narrativas de intensão, como o abastecimento d‟água, a
estabilização do clima e das chuvas, o embelezamento da cidade, entre outras. A
necessidade de domesticação do ambiente fluvio-florestal para necessidades humanas
culminou com a criação dos projetos de reflorestamento. Entender como o Estado se
posicionou nessa dominação é essencial para entender a história dessas florestas.
42
No século XVIII, pouco se fez para o abastecimento de água após a construção
do Aqueduto da Carioca e a inauguração do Chafariz no campo de Santo Antônio (atual
Largo da Carioca) em 1750, exceto algumas bicas e fontes, e alguns reparos na rede. O
crescimento populacional do início do século XIX, decorrente de mudanças políticas
nacionais como a chegada da família real em 1808, significou a expansão da captação
de águas para um novo sistema de captação – a canalização do Maracanã. Em 1817,
concluiu-se parte do projeto de convergir suas nascentes numa rede de valas abertas que
abasteciam São Cristóvão e parte do centro urbano. Neste momento, a organização
institucional da cidade concentrava grande parte dos serviços sob a Intendência Geral de
Polícia, com responsabilidade de Nicolau Viegas de Proença entre os anos de 1816 a
1830. Enquanto isso, alguns dos esforços da Intendência para amenizar os efeitos das
secas das décadas de 1820 e 1830 foi de requisitar aos particulares que concedessem ao
público a retirada de água dos poços de seus terrenos. O término dessas obras do
sistema Maracanã concluiu-se somente em 1850, momento em que muito da estrutura
dos serviços das águas cariocas modificou-se. Com a criação da Inspeção Geral das
Obras Públicas em 1840, o nome do Intendente Miguel de Frias98 foi saudado como o
responsável pela execução e conclusão dessas obras, o que influenciou sua escolha para
Presidência da Câmara Municipal pelo Partido Liberal em 1852. À época, como a
Câmara também equivalia de certa maneira ao legislativo, executivo e parte do
judiciário, o cargo equivalia à função de prefeito da capital imperial99.
98
Miguel de Frias Vasconcelos (1805-1859) foi tenente-coronel do Imperial Corpo de Engenheiros do
Exército, e atuou na Inspeção Geral em três momentos: em um breve momento em seu início em 1840;
durante grande parte dos trabalhos do encanamento do Maracanã de 1845-1852; e nas mudanças
institucionais de 1854 a 1858. Cf. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A floresta e as águas do Rio: a
Inspeção Geral de Obras Públicas e as intervenções urbanas para abastecimento e reflorestamento na
primeira metade do século XIX. Intellèctus, ano XIV, n. 2, p. 21-47, 2015. SANTA RITTA, José de. A
água do Rio: do Carioca ao Guandu: a história do abastecimento de água da cidade do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Synergia: LIGHT: Centro Cultural da SEAERJ, 2009.
99
MARTINS, A floresta e as águas do Rio, op. cit.
43
§8º do Título VII sobre diferentes objetos que corrompem a atmosfera, e prejudicam a
saúde pública, era bem clara:
100
Secção Primeira: Saúde Pública. Título VII: sobre diferentes objetos que corrompem a atmosfera, e
prejudicam a saúde pública. In: MORAES FILHO, Alexandre José de Mello. Código de Posturas: leis,
decretos, editais e resoluções da Intendência Municipal do Districto Federal. Rio de Janeiro: Papelaria e
Typographia Mont‟Alverne, 1894.
101
IAMASHITA, Lea Maria Carrer. A Câmara Municipal como instituição de controle social: o
confronto em torno das esferas pública e privada. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, n. 3, p. 41-56, 2009.
44
Essa especialização técnica, segundo sua própria nomenclatura, refletiu também na
modificação dos relatórios e ofícios que agora possuíam “uma nova linguagem apoiada
em recursos visuais típicos da área, como mapas, tabelas e quadros estatísticos e
demonstrativos”102.
Apontado por Maria Stella Bresciani como uma questão técnica, essa mesma
linguagem foi “uma forma conceitual de abarcar limites para além do sentido da
visão”103. Ela permitiu que a cidade fosse ao mesmo tempo percebida como “objeto de
observação e laboratório para o exercício de políticas que interferem e modificam sua
estrutura enquanto meio ambiente”104. Essa nova leitura da materialidade do tecido
urbano projetou soluções “para uma cidade ideal no espaço utópico (não contaminado)
do papel em branco”105. O controle das Obras Públicas pelos engenheiros se consolidou
com a criação da Comissão de Engenheiros, em 1852, a partir do decreto nº 598 de 14
de setembro de 1850. Com a chegada dos engenheiros civis, e sua formação técnica
cada vez mais abstrata, novas expressões de controle desenvolveram uma nova visão de
uma cidade ideal106.
102
MARTINS, A floresta e as águas do Rio, op. cit., p. 27.
103
BRESCIANI, Maria Stella Martins. Permanência e ruptura no estudo das cidades. In: FERNANDES,
A. e GOMES, M. A. A. de F. (Orgs.). Cidade e História. Modernização das cidades brasileiras nos
séculos XIX e XX. Salvador: UFBA-FAU, Anpur, 1992, p. 13.
104
BRESCIANI, Permanência e ruptura no estudo das cidades, op. cit., p. 14.
105
BRESCIANI, Permanência e ruptura no estudo das cidades ,op. cit., p. 13.
106
MARTINS, A floresta e as águas do Rio, op. cit.
107
MARTINS, A floresta e as águas do Rio, op. cit.
45
1.2.1. Planejamento fluvial: Explorações e comissões fluviais
108
Para os anos após 1850, os dados meteorológicos do Imperial Observatório Astronômico fornecessem
pistas relevantes para a compreensão do clima carioca. Cf. CRULS, Luis. O clima do Rio de Janeiro:
segundo as observações meteorológica feitas durante o período de 1851 a 1890. Rio de Janeiro: H.
Lombaerts & Comp., 1892.
109
ABREU. A cidade, a montanha e a floresta, op. cit.
110
ABREU, A cidade, a montanha e a floresta, op. cit.
46
chamada de Schotisch, e de sarampo, uniu-se a boatos de contaminação das águas do
récem encanado sistema Maracanã. Porém, após breve observação do Presidente da
Junta de Higiene, Francisco de Paula Candido, os rumores tornaram-se infundados. Pois
muitos casos ocorreram em bairros distantes que não eram abastecidos por tais sistemas,
e nem de outros. Apontando uma possível contaminação dos poços111.
Os vales das Laranjeiras e dos rios que desciam pela freguesia do Engenho
Velho, já contribuíam com o abastecimento urbano desde o século XVIII. Com o
crescimento urbano de Botafogo e os arredores dos rios Berquó e Banana Podre, a
região passou a ser ofertada com água em torneiras públicas e chafarizes nos largos dos
Leões, do Amaral, das Três Vendas e da Praia do Sapê, próximo ao morro do Pasmado.
Na década de 1850, os mananciais do vale do rio Cabeça, que desagua na Lagoa
Rodrigo de Freitas, foram em grande parte redirecionados para caixas d‟água que
passaram a abastecer Botafogo112. Doze anos depois, o encanamento do rio Cabeça, que
abastecia uma área maior, estava bastante comprometido e precisou de sua substituição
por 72 contos de réis113.
111
PAULA CANDIDO, Francisco de. Exposição do estado sanitário da Capital do Império. In:
MONT‟ALEGRE, Visconde de. Relatório do Ministério do Império para o ano de 1851. Rio de Janeiro:
Typographia nacional, 1852.
112
SANTA RITTA, A água do Rio, op. cit.
113
BELLEGARDE, Pedro de Alcantara. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das
Obras Públicas do ano de 1862. Rio de Janeiro: Typographia Paula Brito, 1863.
114
Veremos mais sobre isso na sessão 1.3. MARTINS, A florest e as águas, op. cit.
47
rede dos encanamentos que abasteciam a cidade. Para o espanto do ministro, o registro
de grande parte das atividades dos serviços de água na cidade estava “entregue à
memória de um indivíduo”. Concluiu, talvez de forma exagerada, que seria necessário
“revolver todas as ruas da cidade”115.
O Rio de Janeiro sofreu uma terrível seca no verão de 1860. Segundo os dados
pluviométricos do Imperial Observatório de Astronomia do Rio de Janeiro, os meses de
Setembro de 1859 a Fevereiro de 1860 somaram 279 mm de pluviosidade. Enquanto
que a média desses meses para o recorte de 1850 a 1890 foi de 633 mm, mais que o
dobro. O início do verão foi marcado pelo mês de Janeiro com apenas 14 mm, enquanto
que a média entre os Janeiros destes anos foi de 121 mm. Ou seja, as chuvas de janeiro
de 1860 foi oito vezes menor que a média dos meses de janeiro116.
115
GALVÃO, Manoel da Cunha. Relatório do diretor das Obras Públicas e Navegação. In: SOUZA E
MELLO, Manoel Felizardo de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras
Públicas do ano de 1861. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1862.
116
CRULS, O clima do Rio de Janeiro, op. cit.
117
ABREU, A cidade, a montanha e a floresta, op. cit.
118
ABREU, A cidade, a montanha e a floresta, op. cit.
48
O volume das águas realizado por esses e outros trabalhos foram calculados, em
1861, em 756.520 palmos cúbicos119 (9.037.516 litros) em 24 horas no tempo seco,
sendo possível ainda aproveitar mais 980.676 palmos cúbicos (11.715.321 litros) de
mananciais ainda não aproveitados. As desapropriações, conforme ocorriam,
significaram também a elaboração de uma estrutura de captação e distribuição destas
novas águas para a cidade120. Cunha Galvão, afirmou que o encanamento do Maracanã
poderia ser acrescido em 603.350 palmos cúbicos (7.207.721 litros) por dia, sendo
432.000 (5.160.745 litros) que se perdiam do rio Cascata Grande, 86.400 palmos
cúbicos (1.032.149 litros) do Trapicheiro, 64.800 (774.111 litros) do córrego Soberbo,
17.124 (204.566 litros) do Visconde Estrella, e 3.036 (36.268 litros) da fazenda dos
Araújos. Calculou para seu orçamento 230 contos de réis, sendo 106 apenas na
aquisição de terrenos que interessariam à captação das águas e 130 contos para conectar
ao encanamento do Maracanã. No entanto, a estimativa da desapropriação talvez
estivesse fora dos interesses dos proprietários. Para termos uma ideia, a chácara de João
Antonio Alves de Britto tinha uma capacidade de contribuir com 131.632 palmos
cúbicos (1.572.498 litros) por dia, porém Pedro Bellegarde, Ministro da Agricultura em
1862, mencionou que: “a quantia exagerada que pede o usufrutuário destas águas tem
feito, com que o governo não tenha efetuado esta compra (...)”121. Em paralelo aos
sistemas do Maracanã, Carioca e das águas do rio Cabeça, os encanamentos do
Andarahy Grande era bem significativo. Porém, não foi incluído nesta tese por abastecer
os bairros de São Cristóvão, Cajú, Engenho Novo, Benfica e parte da Penha. Grande
parte fora das freguesias urbanas e suburbanas de interesse desta tese, e com uma
dinâmica socionatural distante dos debates dos rios estudados.
119
A transição do palmo cúbico para o metro cúbico ou o litro foi um de vários indicadores da
institucionalização da engenharia e de sua linguagem técnica. O palmo é medida que equivale a 22
centímetros. Para cálculos de volumes, a equivalência é diferente. Portanto, para 1 palmo cúbico
equivaleria a aproximadamente a 12 litros (0,01194m³, ou 11,94 litros).
120
SOUZA E MELLO, Manoel Felizardo de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das
Obras Públicas do ano de 1861. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1862
121
BELLEGARDE, Pedro de Alcantara. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das
Obras Públicas do ano de 1862. Rio de Janeiro: Typographia Paula Brito, p. 73, 1863.
122
Santa Ritta menciona que os trabalhos de Sobragy parecem ter substituído a comissão Bellegarde. Cf.
SANTA RITTA, A água do Rio, op. cit.
49
França, Espanha. Sobragy teceu alguns comentários sobre estudos que propuseram um
abastecimento sem intermitências no Rio de Janeiro. O primeiro, do sr. Lenoir, não foi
aceito pelo presidente da Junta de Higiene, Francisco de Paula Candido. O uso de águas
estagnadas nos reservatórios afetava a saúde dos moradores e a média de 70 litros por
habitante por dia foi tida como insuficiente. O segundo, do Barão de Mauá, apresentava
um sistema duplo: um para beber (abastecimento de água convencional) outro para
limpar (destinados a limpeza urbana). A média diária por habitante era pouco maior a
que do anterior – 106 litros123. Tampouco foi aceito.
50
não poder ser realizado por estrangeiros. Para ele, não haveria “nenhum inconveniente”
em “apresentar-se o governo como empresário”. E, que, pelo contrário, a questão de
distribuição de água era um objeto “muito delicado” que poderia “deixar lucros imensos
a quem dele se encarregar”125. Assentiu também com a urgência na aquisição de
mananciais e de propriedades que assegurassem a vitalidade dos mesmos.
Reconhecendo neste momento da história do Rio de Janeiro que “a maior parte da verba
do orçamento” das obras do município estava direcionada para “consertos e outros
trabalhos relativos aos encanamentos que abastecem d‟água a capital do Império”126.
125
OLIVEIRA E SÁ, Jesuíno Marcondes. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e Obras
Públicas do ano de 1864. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, p. 80, 1865.
126
OLIVEIRA E SÁ, Relatório do Ministério da Agricultura, op. cit., p. 77.
127
OLIVEIRA BULHÕES, Antonio Maria de. Considerações sobre o abastecimento d'águas da cidade do
Rio de Janeiro. Memória apresentada à sua Ex. Sr. Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.
Anexo P In: PAULA SOUSA, Antonio Francisco de. Relatório do Ministério da Agricultura, do
Comércio e das Obras Públicas do ano de 1865. Rio de Janeiro: Typographia Perserverança, 1866.
51
Tabela 2: Quadro demonstrativo da quantidade d'água fornecida pelos mananciais em que existem
trabalhos executados para o seu aproveitamento. Fonte: OLIVEIRA BULHÕES, 1866.
fontes menores
Rio Lagoinha 629.856 248 11.000 bom
14 pequenas fontes 661.907 565 insignificante bom
denominadas Três
Mananciais
Córrego do morro do Inglês 350.000 38* 12.480 sofrível
e seis fontes menores
Total 5.557.669 - - -
478.800 114 74.000 bom
Rio Cabeça
1.684.800 91 54.000 Destruídas
Andarahy Grande completamente
Volume total das águas (em litros por dia)
Tijuca 28.894.872 Andarahy Grande 1.684.800
Serra do Corcovado 5.557.669 Rio Cabeça 478.000
Total 36.616.141 ~ 36.000.000
52
Segundo ele, “os açudes de tomada e caixas de recepção, são de tão exíguas dimensões
que não podem conter as águas fornecidas pelas nascentes, nem ao menos por 6
horas”129. Muitos dos reservatórios eram preenchidos em minutos, como, por exemplo a
Caixa do Alto da Boa Vista que continha somente 43.480 litros num fluxo de mais de
18 milhões de litros de água por dia. Dos vinte milhões captados dos mananciais,
13.130.640 litros diários eram perdidos ao longo da distribuição, somente 7.257.600
litros chegavam à cidade, dos quais ainda se perdiam mais de 648.000 litros por dia. O
fornecimento efetivo para a cidade do Rio de Janeiro foi de menos de 5.616.000 o que
dá por cabeça de habitante (para uma população da cidade estimada em 300.000 almas)
cerca de 18 litros por dia. Muito menos do que o esperado por Sobragy em seu relatório
de poucos anos antes. E numa qualidade duvidosa, já que
129
OLIVEIRA BULHÕES, Considerações sobre o abastecimento de água, op. cit., p. 6.
130
OLIVEIRA BULHÕES, Considerações sobre o abastecimento de água, op. cit., p. 6.
131
OLIVEIRA BULHÕES, Considerações sobre o abastecimento de água, op. cit., p. 15.
53
diferenciadas em relação ao aluguel das habitações. Os prédios, divididos em classes de
1ª a 6ª, possuíam aluguéis que variavam de mais de 1:800$000 réis até menos de
250$000 réis. A quantidade de água disponibilizada e a contribuição anual eram
também proporcionais às classes dos edifícios (conforme Tabela 3, abaixo). Devido aos
impedimentos da falta de verba para tais obras, era visto com bons olhos a associação
dos proprietários à empresa d‟água, como acionistas. Segundo seus cálculos, “partindo
do número considerado de 20.000 casas e da tarifa de 50$000 réis anuais, vê-se que se
todos os proprietários forem assinantes o Estado não contribuirá com um só real”132.
Tabela 3: Proposta de tarifas equitativas suficiente para cobrir as despesas do abastecimento de água
para a cidade do Rio de Janeiro feita pelo engenheiro Antônio Maria de Oliveira Bulhões. Fonte:
OLIVEIRA BULHÕES, 1866, p. 15.
132
OLIVEIRA BULHÕES, Considerações sobre o abastecimento de água, op. cit., p. 16.
54
As estimativas do relatório de Bulhões superaram em muito as mencionadas
anteriormente por Cunha Galvão, em 1863. Segundo a tabela 2 abaixo, grande parte
dessas águas foram originadas do vale do rio Cascata Grande, e desviou para o
metabolismo urbano carioca quase 40 milhões de litros por dia que teriam seguido a
direção de Jacarepaguá. Outros mananciais menores que não seguiam a direção da
cidade, também foram reposicionados. A cidade ditava a dinâmica da socionatureza
fluvial no seu entorno.
Tabela 4: Quadro demonstrativo dos mananciais que devem ser aproveitados para o abastecimento
d'águas. Fonte: OLIVEIRA BULHÕES, 1866.
Borges
Total 3.500.000 60.000.000
332.000.000
Volume total das águas
Tijuca 39.010.968
Andarahy Pequeno 2.759.952
Jardim Botânico 4.598.230
Andarahy Grande 3.500.00
Total 49.859.150 ~ 49.000.000
55
O engenheiro Oliveira Bulhões133 concluiu quatro pontos essenciais da situação
do abastecimento de água no Rio de Janeiro: 1) o fornecimento de 36 milhões era baixo
para o consumo da cidade; 2) o sistema dos canos e das caixas d‟água precisava de
ajustes e manutenções urgentes; 3) mesmo sem o desperdício, o total de água (90
litros/hab./dia) era insuficiente; 4) a situação das florestas era preocupante. Propôs para
tal a proteção e regeneração das matas, e um novo projeto de abastecimento de água de
oito mil contos de réis134. Enquanto trabalhou como Inspetor Geral das Obras Públicas
do Município da Corte entre 1865 e 1869, Bulhões esteve na direção dos trabalhos da
construção do reservatório da Quinta da Boa Vista em 1867 e da Ladeira do Ascurra em
1868135, e de outras obras.
Enquanto nas montanhas cariocas as águas confluíam para o espaço urbano, na
cidade ocorriam mudanças materiais e administrativas que evitariam os desperdícios dos
moradores. Bulhões, na função de Inspetor, e William Ginty, como engenheiro que
auxiliou na avaliação do equipamento, facilitaram a expedição do decreto nº 3645 de 04
de Maio de 1866 assinado pelo ministro da Agricultura e conselheiro, Antônio
Francisco de Paula Souza. Os abusos e desperdícios na utilização da água pelos
particulares incomodavam há anos os poderes municipais e imperiais, conforme os
relatórios dos inspetores. Para evitar isso, foi estudado e proposto a utilização de
medidores de água136, conforme o artigo 10º. Embora a instalação do medidor e do
encanamento fosse realizada pela Inspetoria Geral, a despesa seria dos próprios
concessionários interessados pela água. O ordenamento da socionatureza também
atingiria o uso da água pelos moradores. Segundo o artigo 16 deste decreto, cada pena
d‟água daria direito a 1.200 litros por dia, mediante o pagamento anual de 36 mil réis. A
cada 100 litros diários de excesso, o concessionário pagaria a quantia de dez réis.
Um ano depois da publicação do relatório de Oliveira Bulhões, o ministro da
Agricultura, Manoel Pinto de Souza Dantas, reconheceu em relatório ministerial que em
133
Santa Ritta aponta que Oliveira Bulhões foi “um líder e modelo para várias gerações de engenheiros
que chamavam carinhosamente de “Pere Bulhões”‟. Cf. SANTA RITTA, A água do Rio, op. cit., p. 98
134
Destes 8 mil contos de réis: 3 mil seriam para a construção e reparo dos reservatórios de recolhimento
e de distribuição; 4,2 mil seriam para os quilômetros de encanamentos necessários; 500 contos de réis
para a aquisição de terrenos e 300 para despesas eventuais. Cf. OLIVEIRA BULHÕES, Considerações
sobre o abastecimento de água, 1866.
135
SANTA RITTA, A água do Rio, op. cit.
136
Comumente chamados de water meter, hoje em dia esses sistemas de medição são nomeados de
hidrômetros.
56
algum momento os mananciais do maciço da Tijuca não seriam suficientes para matar a
sede da cidade. A Guerra do Paraguai parecia comprometer o orçamento para o
abastecimento de água, que há anos havia sido prioridade do governo imperial. Dantas
ordenou a redução possível de todas as despesas com aperfeiçoamentos novos nas obras
existentes 137. O que parece não ter ocorrido, pois as obras de aproveitamento de novos
mananciais do projeto proposto por Bulhões se mantiveram. Dessa maneira, foram
concluídas as captações dos rios Cascata Grande, Macacos e Branco, e parte do
Trapicheiros138. Em 1867, os encanamentos superavam 240 quilômetros de extensão,
sendo já realizadas 3.500 concessões e mais de 500 a serem instaladas. Dantas escreveu
no relatório deste ano que o número das casas que gozam da água dobrou, e que a renda
foi triplicada139.
Em paralelo a captação das águas, outros trabalhos eram realizados para
diminuir os desperdícios. Além do já mencionado sistema de medidores de água, outras
infraestruturas foram elaboradas para melhorar a eficiência do sistema de abastecimento
de água, como: a instalação de caixas d‟água maiores e de caixas de areias para
sedimentar as partículas em suspensão, a obtenção de alguns poucos terrenos próximos
aos mananciais, e os lentos trabalhos de reflorestamento na Tijuca e nas Paineiras. No
relatório da Inspetoria, publicado em 1868, Oliveira Bulhões ainda apostava na captação
das águas do maciço da Tijuca. Seu projeto não foi seguido conforme ele mesmo
propôs. As reclamações sobre o desmatamento e da necessidade da desapropriação, e de
outros serviços, foram frequentes em seus relatórios140. A demora na compra dos
terrenos acarretava em mais despesas, devido a dois pontos derivados do crescimento
urbano: 1) o aumento dos preços das propriedades; 2) a atividade predatória ilegal de
carvoeiros e lenhadores que abastecia os fornos da cidade, e que resultaria em
investimentos no reflorestamento local.
Os serviços ecossistêmicos que a floresta proporcionava no sistema hídrico
urbano eram bem reconhecidos no final da década de 1860. José Ribeiro de Castro
137
DANTAS, Manoel Pinto de Souza. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e Obras
Públicas do ano de 1866. Rio de Janeiro: Typographia Esperança, 1867.
138
DANTAS, Relatório do Ministério da Agricultura, op. cit.
139
DANTAS, Manoel Pinto de Souza. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e Obras
Públicas do ano de 1867. Rio de Janeiro: Typographia do Diario do Rio de Janeiro, 1868.
140
OLIVEIRA BULHÕES, Antônio Maria. Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas. Anexo K em
DANTAS, Manoel Pinto de Souza. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e Obras
Públicas do ano de 1867. Rio de Janeiro: Typographia do Diario do Rio de Janeiro, 1868.
57
apontou um panorama de devastação florestal quando escreveu em defesa do ministro
da Agricultura, e vice-presidente da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional,
Joaquim Antão Fernandes Leão, no relatório da mesma Sociedade141. Segundo Castro,
Fernandes Leão sofreu acusações injustas sobre os descaminhos do abastecimento da
cidade do Rio de Janeiro. Citando o presidente da Junta Central de Higiene Pública,
Barão do Lavradio, José Pereira Rego, Castro relatou que a diminuição das matas nas
últimas décadas tem acarretado em volumes hídricos menores nos rios urbanos: “Esse
fato não pode ser atribuído senão a devastação das matas nos terrenos gerativos dessas
águas”142. Apontou a importância das montanhas na formação de chuvas, e, por fim,
propôs a desapropriação dos terrenos de interesse hídrico, a conservação das matas e o
replantio do que tenha sido destruído143.
A estratégia de solucionar a questão hídrica sofreu uma reviravolta significativa
na década de 1870. Uma nova comissão imperial, agora chefiada pelo engenheiro
Antônio Rebouças, sugeria novamente que as águas cariocas fossem captadas dos
mananciais da serra do Tinguá. Poucos anos, e algumas temporadas de seca, depois, o
governo imperial finalmente adotou a proposta a partir dos serviços contratados do
inglês Antônio Gabrielli. As obras de captação e distribuição das águas dos rios do Ouro
e Santo Antônio, na serra do Tinguá, iniciaram-se no dia 12 de setembro de 1876. Essa
e outras obras serão tema de análise no capítulo 3.4144.
141
CASTRO, José Ribeiro. Relatório dos trabalhos da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional desde
1 de Maio de 1868 até 1 de abril de 1869. Anexo F do Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio
e Obras Públicas para o ano de 1868. Rio de Janeiro: Typographia do Diario do Rio de Janeiro, 1869.
142
REGO, José Pereira. Apud CASTRO, Relatório dos trabalhos da Sociedade Auxiliadora, op. cit., p. 4.
143
CASTRO, Relatório dos trabalhos da Sociedade Auxiliadora, op. cit.
144
ABREU, A cidade, a montanha e a floresta, op. cit.
145
Dentre elas destacam-se os decretos de 9 de agosto de 1817 e 17 de agosto de 1818, o Código de
Posturas da Câmara Municipal de 11 de novembro de 1838, sobre a proteção das matas nos locais de
interesse para o fornecimento de água para a cidade.
146
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil
escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
58
conforme secas poderosas e mais frequentes ocorriam, como a de 1843. Muitos propuseram
a desapropriação dessas áreas estratégicas para o fornecimento de água para a cidade, como
é o caso de Manuel de Araújo Porto-Alegre quando vereador em 1854. Este ano representou
uma reviravolta nas questões debatidas nos círculos sociais acadêmicos e políticos, para
uma posição mais assertiva e ativa, particularmente na figura de Luiz Pedreira do Couto
Ferraz147, o barão do Bom Retiro.
Concordamos com a posição de alguns historiadores148, que abordaram o
reflorestamento da Tijuca, que apontaram Couto Ferraz como principal catalizador do
referido projeto. Ao interpretar este indivíduo em nossa proposta de redes interativas,
podemos perceber as múltiplas interações que o perpassaram. Um olhar simplório pode nos
limitar em abordar Couto Ferraz somente como sua figura política, já que as principais
decisões para o reflorestamento, como a delimitação e desapropriação das terras, se deram
enquanto era ministro dos Negócios do Império entre 1854 e 1856. E quanto ao seu círculo
social e intelectual? Quais pessoas de sua rede atuaram, quais ideias estiveram presentes nos
debates que participou? Quais ideias circulavam?
José Augusto Pádua, em Um sopro de destruição149, analisa o pensamento político e
científico que embasaram a proteção das matas no século XIX. Em sua abordagem sobre a
tradição intelectual oitocentista, Pádua desenvolve uma trama das continuidades e
descontinuidades desses letrados que remonta ao século XVIII. A c rítica do
desflorestamento150 da primeira metade do século XIX acompanhou a “tendência
fisiocrata, progressista e ilustrada que vinha se definindo”151, e teve em comum um
147
Luís Pedreira do Couto Ferraz (1818-1886), barão e visconde do Bom Retiro, teve uma forte vida
política e participou de diferentes grupos. Considerá-lo como rede permite ver sua atuação como:
senador, ministro do Império, membro do IHGB e da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional,
presidente da Província do Rio de Janeiro, presidente do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, e
conselheiro de Estado. Circular por esses coletivos inseriu-o em debates sobre a devastação florestal, a
importância do ensino, a silvicultura e outros assuntos que defendeu em sua vida.
148
HEYNEMANN, Cláudia. Floresta da Tijuca: Natureza e Civilização no Rio de Janeiro – século XIX.
Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Comunicação e Informação
Cultural, Divisão de Editoração, 1995. DRUMMOND, José Augusto. O Jardim dentro da máquina: breve
história ambiental da Floresta da Tijuca. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 276-298, 1988.
ABREU, A cidade, a montanha e a floresta, op. cit.; PÁDUA, Um sopro de destruição, op. cit.
149
PÁDUA, Um sopro de destruição, op. cit.
150
Dentre os muitos pensadores desse momento Pádua aponta Manoel Ferreira da Câmara, senador do
Império e defendia o uso racional dos recursos naturais; João Severiano Maciel da Costa, ministro dos
negócios Estrangeiros e do Império, propôs uma superação do escravismo e reforma da agricultura;
Baltasar da Silva Lisboa, defendeu a conservação e uso racional das florestas, publicou o livro “Riqueza
do Brasil em madeiras de construção e carpintaria”; José Bonifácio, Freire Alemão e tantos outros.
Criticavam o desconhecimento da agricultura e da indústria, a falta de interesse em explorar
racionalmente as madeiras. A ciência aqui foi um grande mobilizador dessas discussões, já que
embasavam em teorias científicas como a do dessecamento e em técnicas agrícolas como o arado.
151
PÁDUA, Um sopro de destruição, op. cit., p. 174
59
“viés político, cientificista e economicamente progressista”152. Tal tradição teve como
principal veículo de transmissão cultural as instituições científicas e literárias, e sua
produção acadêmica. A geração de pensadores seguinte, em meados do século XIX,
também atuou contra a destruição das florestas, e argumentou a favor da proteção das
matas para clima, rios e beleza cênica, buscando um uso instrumental racional e
comedido do ambiente florestal. Criticavam a ineficácia do uso do solo, como a falta de
saberes e práticas que mantivessem mais árvores em pé. Criticavam também o regime
de trabalho escravo, que transformava o indivíduo desprovido de liberdade e de
conhecimento numa relação direta com a socionatureza. Uma condição eficiente para o
uso insensato dos ecossistemas florestais. Esses intelectuais participavam e orbitavam
um círculo social que estava ancorado em instituições e associações sob a chancela do
Imperador. O que implicava, mas não determinava, uma “etiqueta de moderação e
autocensura”153.
Cláudia Heynemann, em Floresta da Tijuca: natureza e civilização, corrobora
Pádua quando afirma que o reflorestamento se inscreveu no “conjunto de práticas e
representações que cercaram a ideia de natureza no século XIX no Brasil”154. Estas
estavam inseridas num projeto de nação concebido e esculpido em processos de
centralização e consolidação do poder, formação da classe senhorial e pelos ideais de
civilização e progresso, que contrastavam e complementavam o ideário em volta do
termo natureza. Aqui a floresta contrastava com a cidade, elas se complementavam não
somente pela necessidade de água, mas também pelas representações do ambiente
florestal e pelos anseios de grupos abastados de vivenciar a exuberância vegetal. A
floresta constituiu-se como natureza e como cultura, pois a partir dos saberes e práticas,
de uma ciência supostamente universal e de conhecimentos autóctones, as atividades
humanas moldaram o ambiente fluvio-florestal.
Heynemann critica a abordagem de Drummond sobre a causalidade direta e
ingênua de Couto Ferraz no início do reflorestamento. Drummond afirma que o início
do projeto apenas se deu pelo fato de que Bom Retiro era amigo próximo de Dom Pedro
II. Para Heynemann, o fato dele ter sido proprietário e morador do açude da Solidão,
“lhe confere uma especificidade, mas não a excepcionalidade”155. Na prática, a
152
PÁDUA, Um sopro de destruição, op. cit., p. 281
153
PÁDUA, Um sopro de destruição, op. cit., p. 167
154
HEYNEMANN, Floresta da Tijuca, op. cit., p. 23.
155
HEYNEMANN, Floresta da Tijuca, op. cit., p. 94
60
participação de Ferraz foi essencial, já que as desapropriações dos terrenos necessários
para proteger as matas arrastavam-se nos anos de estiagem da década de 1840. Como
ministro do Império (1854-1856), Bom Retiro, concluiu as avaliações fundiárias para as
desapropriações, calculou uma estimativa de verba para as desapropriações que
ocorreram na vertente sul dos Picos do Papagaio e da Tijuca, entre o Alto da Boa Vista,
a pedra do Conde e o açude da Solidão. Diferentemente dos outros autores, Drummond
afirma que o reflorestamento foi um sucesso humano resultado de uma “sucedida série
de políticas governamentais de preservação e recuperação do meio-ambiente”156.
Desinteressando-se pelos aspectos utilitários de abastecimento, lazer e saúde, e madeiras
para construção, assim como deixou de lado os ideais de Couto Ferraz de proteção e
fomento à silvicultura.
Outro estudioso desse episódio florestal foi Warren Dean, que defendia, junto a outros,
que o sucesso do plantio se deu pelo desejo da elite de se exilar do calor e das doenças das
partes baixas. A elitização tem sido um conceito-chave para entender melhor o funcionamento e
o êxito dessas atividades. E a própria história recente deste ambiente tem como início da
ocupação moderna um conjunto de personagens vinculados a monarquias francesas e
inglesas157. Esses autores tem em comum o fato dos reflorestamentos da Tijuca e das Paineiras
fazerem parte de um projeto maior de dominação e domesticação do ambiente fluvio-florestal,
visando os interesses de uma elite imperial brasileira e estrangeira.
Em relatório do Ministério do Império para o ano de 1855 158, seis anos antes do
“início” do reflorestamento, Couto Ferraz afirmava já existir uma área de 15 hectares159
onde se plantou 2.466 árvores160. Neste ano as desapropriações custaram aos cofres
156
DRUMMOND, O jardim dentro da máquina, op. cit., p. 276.
157
Essa aristocracia florestal será abordada em 3.3.
158
COUTO FERRAZ, Luiz Pedreira do. Relatório do Ministério dos Negócios do Império para o ano de
1855. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1856.
159
30.600 braças quadradas equivale a 14,81 hectares.
160
No ano de 1860 o Inspetor Geral registrava o plantio de “400 pés de óleo, fazendo-se em roda um
cercado”, além da manutenção da trilha e do roçado em volta das árvores. Conforme AZEREDO
COUTINHO, Christiano Pereira. Relatório dos trabalhos feitos pela Inspecção Geral das Obras Públicas
durante o anno de 1860. In: Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Pública do
ano de 1860. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, p. 7, 1861.
61
públicos o somatório de 93:450$000 réis em 1 terreno nas nascentes do rio Carioca161 e
10 na Tijuca162, nos arredores da junção dos mananciais que formavam o rio Maracanã.
Outros terrenos já estavam avaliados, porém sem efetuar a compra, e outros esperavam
a análise de preços e de levantamento do terreno. Conhecer o território de interesse
estratégico para a capital imperial foi de suma importância para a política do governo
imperial, e anos mais tarde um importante mapa foi elaborado para o funcionamento do
reflorestamento e para repensar o abastecimento d‟água. No ano seguinte, Bom Retiro
reafirmava a necessidade de comprar mais terrenos, porém teve de adiar essa vontade
devido a gastos excessivos no ano de 1855163. A saída de Bom Retiro do Ministério do
Império pode significar conflitos internos sobre o uso dos recursos, e assim como sofreu
influência de acontecimentos externos como os investimentos para a construção das
estradas de ferro que consumiam boa parte do orçamento, em particular a Estrada de
Ferro Dom Pedro II em 1855. Curiosamente, em 1861, o documento de instruções para
o funcionamento do reflorestamento foi desenvolvido pelo recém criado Ministério da
Agricultura, Comércio e das Obras Públicas (1860), chefiado por um homem que
também circulava nos grupos sociais de Ferraz e conhecedor dos benefícios ecológico
das florestas – Manoel Felizardo de Souza e Mello164.
A chave interpretativa de analisar Couto Ferraz como uma rede destacou alguns
personagens importantes em nossa narrativa. Outros agentes e instituições rodeavam
Ferraz, como o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (IIFA). Criado como
iniciativa imperial em 1860 como parte de uma política governamental para promover
alternativas às formas vigentes de produção agrícola de grandes latifúndios, o IIFA
promovia suas atividades sob um viés aristocrático, centralizador e defensor de uma
ciência de forte influência europeia. Fortaleceu a máquina administrativa se valendo da
ciência, dita universal, como um fator de legitimação do Estado nacional que
transformou a sociedade e o ambiente biofísico do território brasileiro. Mesmo que o
161
Terrenos que pertenciam a Agostinho José Ignácio da Costa Figueiredo e aos herdeiros de Silvestre
Pires Chaves (20:000$000).
162
Fazenda Bico do Papagaio (30:000$000 réis); e terrenos de Bernardo José de Figueiredo (3:600$000),
Luiz Rodrigues de Castro Viana (7:500$000), José Alves Correa (4:000$000), Antonio Fortes de
Bustamente e Sá e seus irmãos (10:000$000), Francisco Pedro (5:000$000), Joana Maria d‟Oliveira de
Negreiros (10:000$000), José Antonio de Araújo (550$000), Joaquim Antonio Gomes (800$000),
Antonio Joaquim de Almeida 2:000$000). Cf. COUTO FERRAZ, Relatório do Ministério dos Negócios
do Império, 1856.
163
COUTO FERRAZ, Luiz Pedreira do. Relatório do Ministério dos Negócios do Império. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1857.
164
PÁDUA, Um sopro de destruição, op. cit.
62
instituto tivesse um caráter privado e certa autonomia, prestava contas e relatórios ao
Ministério da Agricultura. Os tentáculos do governo imperial, que buscava centralizar
as ações em território brasileiro, atuavam presentemente em muitos locais ditos “fora do
Estado”.
O manejo das árvores dependia de alguns fatores essenciais para uma boa
governabilidade desse território: normatização e mapeamento. Elementos já presentes
no ideário técnico-administrativo de uma instituição que representaria a
institucionalização do corpo técnico imperial – o Ministério da Agricultura, Comércio e
das Obras Pública (MACOP). O órgão nacional anterior, responsável pelas Obras
Públicas e pelas matas cariocas, o Ministério do Império, tinha em seu quadro de
dirigentes a presença avassaladora de engenheiros militares165. Diferentemente do
MACOP, que teve seu momento histórico marcado pelo crescimento da engenharia
civil. Essa diferenciação do quadro de engenheiros militares para civis decorreu ao
longo da década de 1850 a 1870, momento em que o ensino de engenharia tomava
feições menos militares com a criação da Escola Central, em 1858, e a Escola
Politécnica, em 1872. Instituições de ensino que engrossavam o caldo técnico civil do
governo imperial influenciaram o modo de perceber o ambiente fluvio-florestal166.
Portanto, os trabalhos nas florestas precisavam ser padronizados, de modo a se
aproximar da cultura técnico-científica que veio se consolidando nas décadas anteriores;
e para ocorrer essas atividades, a floresta precisava ser interpretada pelos dirigentes. A
análise da ciência florestal em estados europeus por James Scott prescreve que a floresta
nem precisava ser vista, ela poderia ser “lida” a partir de mapas e tabelas no gabinete do
silvicultor. Isso é um aspecto curioso de nossa história, pois os administradores das
matas da Tijuca Imperial moraram em meio à comunidade vegetal, e não
confortavelmente afastados. O autor indica também que nenhum mapa poderia
representar nenhuma sociedade existente (acrescento aqui as sociedades não humanas
também) sem passar por processos esquematizantes de abstração e simplificação. A
cartografia facilitava a administração assim como legitimava o domínio do território167.
O ambiente fluvio-florestal precisava ser reduzido, ressignificado segundo os interesses
165
MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A floresta e as águas do Rio, op. cit.
166
CAPILÉ, Bruno. Racionalização e controle da Natureza: o crescimento do poder infraestrutural e a
geração de conhecimento cartográfico sobre o território no Segundo Reinado. Revista Cantareira, edição
22, p. 178-188 / jan-jul, 2015.
167
SCOTT, James. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed.
New Haven: London: Yale University Press, 1998.
63
dos cartógrafos e de seus requisitantes. As informações representadas no primeiro mapa
da área das florestas criado em 1866 abrangiam uma superfície de 2.945.000m²,
momento em que quase 40.000 árvores já haviam sido plantadas168.
Padronizar e simplificar poderia até legitimar e facilitar o funcionamento dessas
atividades, no entanto, era necessário forte policiamento para assegurar as vontades do governo
imperial. Antes da institucionalização do reflorestamento na Floresta Nacional da Tijuca, o
MACOP, preocupado com a oferta de água para a cidade, construiu o Barracão da Floresta em
março de 1860 “para os guardas da caixa d‟água e os das matas da Tijuca”. Localizado no vale
do rio Tijuca, este edifício media 9 metros de frente por 22 metros de fundo, num pé direito de 3
metros. Possuía “duas salas, duas varandas, cinco quartos, destinado não só para os guardas da
caixa d‟água como também para os das matas da Tijuca”169.
Nas instruções170 iniciais de 1861, dois artigos responsabilizariam os
administradores, feitores e serventes pelo policiamento florestal. No artigo 8º, incumbia
esses funcionários de “impedir a danificação das árvores, devendo prender e remeter à
autoridade policial mais vizinha”. Já no artigo 9º, as normas comunicavam que não
poderia admitir nenhum indivíduo nas florestas que não estivesse “competentemente
autorizado com a necessária portaria de licença, quer seja ou não para caçar, e
inspecionando-as de modo que não sirvam de asilo a mal feitores”. Esta última regra
visava selecionar quais tipos de pessoas transitariam pelo arvoredo. Concebia inclusive
caçadores que tivessem licenças, mas impedia que supostos “mal feitores” não
residissem. O artigo 15 obrigava os funcionários a residirem na floresta, inclusive o
próprio administrador171. Archer estabeleceu-se em casa no sítio Midosi172, próximo aos
seus escravos, mais ao sul, em outro morro, Escragnolle se assentou aonde hoje
corresponde o restaurante Os Esquilos173.
168
SOUZA DANTAS, Manoel Pinto de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das
Obras Públicas do ano de 1866. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1867.
169
GALVÃO, Manoel da Cunha. Relatório do Director das Obras Públicas e Navegação. Anexo G In:
SOUZA E MELLO, Manoel Felizardo de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das
Obras Públicas do ano de 1860. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, p. 23, 1861.
170
Instruções provisórias para o plantio e conservação das florestas da Tijuca e Paineiras, inscrito na
Portaria nº 577 de 11 de dezembro de 1861. In: SOUZA E MELLO, Relatório do Ministério da
Agricultura, 1861.
171
Os conflitos entre o policiamento e a presença de “mal feitores” serão debatidos na seção 1.3.4.
172
Guilherme Midosi comprou terras do Visconde de Asseca em 1824, que tinha limites com os sítios de
Francisco F. da Silva e de José Antonio de Araújo (Sítio Caveira). Hoje em dia corresponde ao
restaurante A Floresta, próximo à Cascata das Almas, no rio de mesmo nome. Conforme CASTRO
MAYA, Raymundo Ottoni de. A floresta da tijuca. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1967.
173
O restaurante Os Esquilos foi construído na administração de Castro Maya em 1943, a partir das ruínas
da casa de Escragnolle.
64
A historiografia possui algumas concordâncias e discordâncias. Alguns apontam
o lado heroico e de sucesso do reflorestamento174, enquanto outros circunstanciaram as
atividades num processo coletivo social e cultural mais amplo e longo de dominação do
ambiente florestal por uma elite imperial associada ao Estado175. Todos consideraram os
interesses de classe que fomentaram o início e a continuidade dos trabalhos.
Heynemann nos lembra convenientemente que o reflorestamento assegurou uma
legitimidade burocrática, assim como ocupou “materialmente aquele espaço
dignificador da relação sociedade escravista–natureza, que tem nesse momento, como
contrapartida da riqueza, a destruição, a imprevidência, o atraso (...)”176.
Defende-se nesta tese uma pluralidade dessas ideias e também que os
reflorestamentos sofreram influência de seus múltiplos personagens e seus múltiplos
interesses. Uma forte característica é que foi elitizado e aristocrático, mas, ao mesmo
tempo também foi uma extensão de instituições científicas que desenvolviam um
projeto tropical de silvicultura, hibridizado com os ideais de proteção ambiental do
reflorestamento. Essas mobilizações andam em paralelo aos termos convencionais de
preservação e conservação, onde o primeiro pressupõe uma área totalmente protegida e
sem a presença humana, e o segundo permite um uso racional de alguns recursos,
mediante um plano de manejo. Esquivamos de uma comparação direta e anacrônica
desses termos, mas reconhecemos proximidades nos discursos de mais de cem anos e
alguns de nossa atualidade, conforme veremos ao longo deste capítulo, onde os
discursos protecionistas andavam lado a lado com propostas de uso racional das
madeiras-de-lei.
O leitor pode estar estranhar o esforço demandado para análises sobre o
reflorestamento ter se concentrado na Floresta da Tijuca. O empreendimento que
ocorrera nas Paineiras seguiu, em grande parte, as mesmas indicações e considerações
provenientes de sua empreitada-irmã. Conforme as Instruções Provisórias que
nortearam o início dos trabalhos em ambos locais. No entanto, por ser menor e se situar
em uma área menos degradada, os trabalhos no entorno do Corcovado foram menos
intensos. A área que contemplava as águas do Carioca, Paineiras, Silvestre e Lagoinha,
era bem arborizada e preservada. Em 1868, o Inspetor Geral, Oliveira Bulhões,
174
CASTRO MAYA, A floresta da Tijuca, op. cit.; DRUMMOND, O jardim dentro da máquina, op. cit.
175
HEYNEMANN, Floresta da Tijuca, op. cit.; PÁDUA, Um sopro de destruição, op. cit.; ABREU, A
cidade, a montanha e a floresta, op. cit.; DEAN, A ferro e fogo, op. cit.
176
HEYNEMANN, Floresta da Tijuca, op. cit., p. 65.
65
comentava que “por estar há muitos anos livre da foice e do machado dos derrubadores,
não exige trabalhos importantes de replantio”177. Este cenário modificou-se em poucos
anos, conforme o interesse por lenha e por “óleos e outras substâncias medicamentosas”
atraiu diferentes “especuladores”. Nogueira da Gama saudava a “força de uma
incessante vigilância e polícia” que impedia a ação desses homens178. Já os trabalhos na
Tijuca, além de maiores e mais duradouros, representou não somente as vontades de
proteção dos rios urbanos e a utopia de uma silvicultura brasileira, mas principalmente a
presença do ambiente biofísico para contrapor a civilização que o domesticara.
177
OLIVEIRA BULHÕES, Antonio Maria de. Relatório da Inspecção Geral das Obras Públicas. Anexo
K do Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas do ano de 1867. Rio de
Janeiro: Typographia do Diario do Rio de Janeiro, p. 8, 1868.
178
GAMA, Thomaz Nogueira da. Relatório da floresta das Paineiras e da conservação dos caminhos do
aqueduto da Carioca. In: Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas do
ano de 1874. Rio de Janeiro: Typographia Americana, p. 3, 1875.
179
Assinado pelo ministro Manoel Felizardo de Souza e Mello.
180
Artigo 2 das Instruções.
66
direcionaram os interesses no manejo florestal. Conforme o terceiro artigo que instruía
para que a plantação começasse de ambos os lados das margens das nascentes com a
distância entre árvores de 25 palmos (5,5m). O argumento de matas para águas era
presente nos discursos das instituições que contribuíram para a transformação da
floresta.
181
ARCHER, Manoel Gomes. Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca. Anexo DD
EE11 do Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas do ano de 1873. Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, p. 7, 1874.
182
Aparentemente, e felizmente, Archer não seguiu essa norma, já que o referido padrão não dá para ser
percebido. Mas, é provável que durante a substituição das mudas mortas, Archer tenha descumprido essa
regra.
183
Miguel Antonio da Silva, comenta em indivíduos de 8 a 15 anos de idade.
67
mau trato, que lhes avizinhava muito o termo de sua existência, como de fato
se verificava pela grande mortalidade que sofriam as mudas, transplantadas
nestas condições184.
Este processo foi seguido de 1862 até 1868, quando Archer percebera sua
improdutividade devido à alta mortalidade. Durante este intervalo, das mais de 45 mil
árvores plantadas quase 24 mil sobreviveram, e morrearam 21 mil. Ou seja, uma
mortalidade de 46% dos indivíduos plantados. A partir desse momento plantas de 1
palmo a 1 palmo e meio de altura (0,22m a 0,33m)185 eram transplantadas para cestos de
taquara. Esses indivíduos tinham seu sistema de raízes menos entranhado no solo, o que
resultou em transplantes menos danosos e mais eficientes. Muitos dos indivíduos
provenientes de doações de mudas e sementes, que eram cultivadas nas sementeiras das
florestas, foram para estes cestos antes do plantio definitivo, em processos que serão
descritos mais adiante. Infelizmente, não foi possível montar uma série de dados para
comparar a mortalidade, já que estes se tornaram escassos, principalmente no quesito
mortalidade. Porém, em alguns anos eram relatados o número total de indivíduos que
existiam na área de reflorestamento da Tijuca. Em 1867, ainda no sistema de mudas
maiores transplantadas, havia quase 30 mil árvores. O crescimento ficou perceptível no
ano de 1871 com mais de 45 mil, e tornou evidente em 1873 com 62 mil, e em 1876,
com 68 mil árvores.
Archer em muito contribuiu para o amadurecimento e sistematização dos
trabalhos elaborados nos primeiros anos da Floresta da Tijuca. Em seu relatório anual
de 1872186 apresentado ao Ministério da Agricultura em 1873, descreveu processos de
maneira mais detalhada e com novas considerações pertinentes, dos que os presentes
nas Instruções Provisórias. Os saberes autóctones produzidos pelo Major e seus
trabalhadores foram coligidos e organizados num documento que seria base para muitos
trabalhos florestais posteriores.
Archer apontara que adquirira conhecimentos práticos com o tempo e
experiência sobre as plantas e qualidade do terreno, o que resultou num “feliz
184
SILVA, Miguel Antonio da. Silvicultura Brasileira: Trabalhos da Floresta Nacional daTijuca. Revista
Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, Rio de Janeiro, n. 5, v. 1, p. 29-33, setembro,
p. 29-30, 1870
185
Equivalente a plantas entre 1 e 2 anos de idade.
186
ARCHER, Manoel Gomes. Serviço Florestal da Tijuca. Anexo W do Relatório do Ministério da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas do ano de 1872. Rio de Janeiro: Typographia Commercial,
1873.
68
resultado”187. Realizou ensaios para cobrir os terrenos nas proximidades do rio
Maracanã, observou o estado do solo e o resultado do desenvolvimento das árvores,
experimentou diferente espécies de rápido crescimento para acelerar os trabalhos do
reflorestamento, etc. A ciência florestal empírica de Archer somou aos conhecimentos
imperiais do Segundo Reinado. Era conhecido que as florestas permitiam rios mais
volumosos. Veremos adiante como o interesse na associação entre rios e florestas
ultrapassava as políticas hídricas de abastecimento.
187
ARCHER, Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca, 1874, p. 4.
188
SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
189
DICIONÁRIO PRIBERAM. Dicionário da Língua Portuguesa, 2008-2013. Disponível em:
<http://www.priberam.pt/dlpo/paisagem>, Acesso em: 19 de dezembro de 2015.
69
que existem numa localidade, quanto aspectos culturais, estéticos, de construção de
outra realidade. Ou seja, ela surge do exercício de um olhar que percebe o que está neste
ambiente. Um olhar que foi treinado, condicionado culturalmente, a experimentar e
representar a paisagem em possibilidades diversas. Segundo Simon Schama, “paisagens
são cultura antes de ser natureza; construtos da imaginação projetada na madeira, na
água e na rocha”190. É a nossa percepção, com profundas influências do ambiente
biofísico e do ambiente cultural, que estabelece a diferença entre o que está sendo visto
e a paisagem. Então, para esta tese o conceito paisagem se articula livremente com a
noção de socionatureza trabalhada na introdução.
190
SCHAMA, Simon. Landscape and memory. New York: Vintage Books, p. 61, 1996.
70
Figura 3: Grande Cascata da Tijuca de Manuel Araújo Porto-Alegre (1833). Fonte: Pinacoteca de São Paulo
191
DIAS, Elaine Cristina. Félix-Émile Taunay: cidade e natureza no Brasil. Tese de doutorado em
História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), 2005.
71
existência de espécies semelhantes por lá192. Ao lado esquerdo, numa distância que
permite uma noção de natureza intocada, um grupo de pessoas estão sentadas no que
parece ser uma mesa e servida por um homem negro com uma bandeja. Seus chapéus e
o rapaz de bandeja pressupõem que sejam de uma elite. Entre eles e outro jovem que
contempla a cachoeira com um pequeno bloco, talvez uma representação do próprio
jovem pintor, existem duas armas de fogo na penumbra de uma rocha. O grande volume
de água que escorre pelas pedras é um espetáculo vultuoso e, perto do jovem desenhista,
um pequeno arco-íris é representado193.
A família Taunay, como tantos outros artistas franceses, buscara exílio devido às
perseguições políticas na França. Amparado pelo governo de Dom João VI através da
Missão Artística Francesa, chegou ao Rio de Janeiro em 1816. Félix-Emile, com seus
jovens 11 anos, acompanhou a família junto com seu pai, Nicolas Antoine Taunay
(1755-1830). Nicolas adquiriu o sítio vizinho à Cascatinha da Tijuca após a missão ter
degringolado por intrigas e falta de apoio, e preferiu se afastar de algumas dissidências.
Na realidade, a imersão artística nas matas a serem pintadas em aquarelas e tinta a óleo
já não era novidade. Outros franceses, como Theodore Rousseau, já se aventuravam por
entre as árvores no início do século XIX. Talvez por acaso ou por planejamento, as
192
As espécies de garça, Família Ardeidae, são comumente encontradas em águas mais paradas para
caçarem e pescarem suas presas. Como nas partes médias e baixas dos rios.
193
CRONON, William. The Trouble with Wilderness. In: CRONON, William (org). Uncommon Ground:
rethinking the man place in nature. New York: London: W.W. Norton &Company, 1996.
72
representações de florestas e cachoeiras de Nicolas e seu filho, Félix-Emile, entraram no
encanto do imaginário de uma beleza natural cênica no Rio de Janeiro194.
Figura 4: Cascatinha da Tijuca de Felix-Émile Taunay. (s/d) Coleção Particular (Fonte: Pinterest195)
Poucos anos depois, em 1821, Nicolas regressou à França com sua mulher e
alguns filhos, deixando no sítio seu irmão Auguste Marie, e outros filhos que não
quiseram retornar, como Félix. As proximidades do sítio na Cascatinha transformaram-
se numa das primeiras áreas de plantio de café através do capital e influência de
194
Maya, Raymundo Ottoni de Castro. A floresta da Tijuca, 1967.
195
TAUNAY, Felix-Émile. Cascatinha da Tijuca, Imagem particular do perfil de Sérgio Zeiger na rede
social de fotos Pinterest. Disponível em: <https://www.pinterest.com/pin/508625351642361254/>,
Acesso em: 06 de fevereiro de 2018.
73
franceses e seus descendentes. Segundo o livro A floresta da Tijuca escrito por
Raimundo Castro Maya, que coordenou a remodelação do parque na década de 1940,
alguns destes sítios cafeicultores estavam “ao longo do Rio Cachoeira. Acima da
Cascatinha ficava a Baronesa de Rouan, abaixo – na garganta que dá para leste – o
Príncipe de Montbéliard, do outro lado o Conde de Scey, o Conde de Gestas e a
Senhora de Roquefeuil”196. Possivelmente, algum desses nobres que haviam sido
expatriados da França bonapartista – que mantinham suas tradições e costumes – foram
representados pelos grupos que apareceram nos cantos inferiores de ambos os quadros.
A construção da paisagem fluvial por artistas estrangeiros foi uma tradição que
já ocorria na Europa. O diferencial é que no Velho Mundo, a representação de rios
transcontinentais estava atrelada a simbolismos de nacionalidade, seja pela fronteira ou
pelo ícone da grandiosidade de um rio. Na cidade do Rio de Janeiro, com rios pequenos
e pouco volumosos devido à sua topografia, tal tradição foi adaptada para desenhos de
cachoeiras, como esses dois exemplos. É difícil supor alguma trivialidade no
assentamento da família Taunay aos pés de uma grande cascata. O que sabemos é que a
construção dessa paisagem foi essencial para ressignificar o ambiente biofísico como
um lugar de apreciação, como natureza intocada (wilderness)197.
O nome pomposo do lugar não é por ora mais do que uma promessa;
quando porém crescerem as mudas de árvores de lei, que a paciência e
inteligente esforço do engenheiro Archer têm alinhado aos milhares pelas
encostas, uma selva frondosa cobrirá o largo dorso da montanha, onde
nascem os ricos mananciais.
Viva a imagem da loucura humana! Refazer à custa de anos,
trabalho e dispêndio de grande cabedal, o que destruiu em alguns dias pela
cobiça de um lucro insignificante! Aquelas encostas secas e nuas, que uma
plantação laboriosa vai cobrindo de plantas emprestadas, se vestiam outrora
196
MAYA, A floresta da Tijuca, op. cit., p. 19-20.
197
SCHAMA, Simon. Landscape and memory, op. cit.
198
HEYNEMANN, Floresta da Tijuca, op. cit.
74
de matas virgens, de árvores seculares, cujos esqueletos carcomidos às vezes
se encontram ainda escondidos nalguma profunda grota. Veio o homem
civilizado e abateu os troncos gigantes para fazer carvão; agora, que precisa
da sombra para obter água, arroja-se a inventar uma selva, como se fosse um
palácio. Ontem carvoeiro, hoje aguadeiro; mas sempre a mesma formiga,
abandonando a casa velha para empregar sua atividade em construir a
nova199.
199
ALENCAR, José de. Sonhos d’Ouro. Rio de Janeiro: B.L. Garnier,vol 1, p. 61-63, 1872.
200
ALENCAR, Sonhos d’Ouro, op. cit., p. 28.
201
JORGE, Eduardo. Lobisomem, sem ameaças. In: MACIEL, Mª Esther (org.). Pensar/escrever o
animal: ensaios de zoopoética e biofísica. Florianópolis: Ed. UFSC, p. 177-195, 2011.
202
Os advogados e o cavalo Galgo eram paulistas.
75
vira tão abundante d'agua, tão enfeitada e casquilha. Projetou voltar a pé,
depois do almoço, para tirar outra vista. Assim teria a Cascatinha em traje de
festa, e em desalinho203.
Seja nas pinturas ou nas letras, ficou bem evidente que já no século XIX se
desenvolvia as caminhadas por ambientes florestais, um costume romântico com
influências francesa e inglesa. Em meio a proibições de caça e corte de madeira, e
atividades de subsistência, o desfrute desse ambiente fora do contexto aristocrático foi
aprendido. De lugares perigosos e inalcançáveis, as florestas passavam a ser desejadas.
As discussões médico-científicas, discutidas no capítulo 5, influenciaram
profundamente a força da ideia do sublime. Outros costumes, estranhos para época,
também impressionavam cariocas e estrangeiros a realizar passeios pelas matas e
cascatas. A elaboração de trilhas para caminhadas pelas matas, surgida inicialmente na
França com Denencourt, ocorria ao mesmo tempo em que novas mudas eram plantadas
pelos esforços de Archer e Nogueira da Gama.
203
ALENCAR, Sonhos d’Ouro, op. cit., p. 64.
204
ALENCAR, José de. Carta a Machado de Assis. In: MACHADO DE ASSIS, J.M. Correspondência.
Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson Inc., 1938, p. 14
205
ALENCAR, José de. Sonhos d’Ouro, op. cit., p. 63-64.
76
com a função estratégica de garantir madeira para navios. Com ideais revolucionários e
os esforços de Denecourt, Fontainebleau passou de ícone da aristocracia francesa a
importante local de visitação. Le Sylvain, como era chamado o jovem sargento,
“esculpiu” cavernas e grutas, umedeceu pedras para crescimento de musgos, abriu
dezenas de quilômetros de trilhas, esboçou mapas, indicou caminhos. Promovia
passeios guiados em que milhares de turistas usufruíam seus domingos se distanciando
das complicações urbanas. Suas trilhas garantiam o sentimento de segurança dos
visitantes e fácil acesso para voltar à estação para pegar o próximo trem para Paris.
Dentre os estrangeiros que visitavam Fontainebleau na presença de Denecourt estavam
muitos ingleses – de lordes a acionistas206. Impregnado pelo imperialismo e pelo
romantismo, o fascínio inglês por esses passeios foi também captado por José de
Alencar.
O rio e a floresta que o rodeia, que o protege, que o complementa, são vistos
como a mesma paisagem. Seja pela pintura, pela literatura ou pelas caminhadas, a
paisagem florestal se constrói conforme a sociedade entrava em contato e a conhecia.
Não é estranho acompanhar que esse processo de perceber e descobrir o ambiente em
sua completude, com seus cheiros e sensações, andou juntamente com a interferência
humana. A construção da paisagem era direcionada, produzida e consumida por grupos
sociais específicos. Um fenômeno que envolvia linguagem, onde o “ato de conhecer faz
208
surgir o mundo” . Como no aforisma de Maturana e Varela, “todo fazer é um
209
conhecer e todo conhecer é um fazer” . Curiosamente esse fazer de construção da
paisagem, seja pela estética dos artistas ou pelas trilhas e árvores plantadas pelos
206
SCHAMA, Landscape and memory, op. cit.
207
ALENCAR, Sonhos d’Ouro, op. cit., p. 101-102.
208
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da
compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, p. 31, 2001.
209
MATURANA e VARELA, A árvore do conhecimento, op. cit., p. 257.
77
funcionários da Inspetoria de Obras Públicas, foi acompanhado de um fazer de
destruição. Como se as matas escorressem pelos dedos da sociedade urbana que a
consumia na forma de lenha e madeira, a floresta tornou-se cada vez mais idealizada. E
não somente do ponto de vista estética, mas também no ideológico, como as ideias
médico-científicas do momento.
As palavras de Mia Couto nos lembra que muitas ações são na realidade reações.
E poderíamos dizer o mesmo das ações violentas direcionadas a um grupo particular,
geralmente com uma agenda, propósito, por trás desses atos. A expulsão de grupos
indesejados, como falquejadores211, caçadores, foragidos, quilombolas, estabeleceu-se
como um preparo do terreno para grupos sociais “bem vindos”: luso-brasileiros e
europeus com recursos que permitiriam desenvolver as primeiras cafeiculturas
brasileiras. Sob a ótica do livro O direito à cidade de Henri Lefebvre, vemos que o
sistema urbano exerce ação em diferentes conflitos, dos quais eu destaco a extensão do
território dominado, a floresta e seus rios, e as exigências de uma organização deste
território em torno da cidade dominadora212. Em outras palavras, a expansão e a
centralidade da cidade. O direito ao usufruto dos recursos naturais – como a água, solo,
etc. – transformou-se conforme as relações de poder se reconstruíam no ambiente
sociobiofísico. Sejam grupos isolados de ameríndios que foram subjugados por grupos
europeus, quilombolas e foragidos chacinados pelo governo luso-brasileiro ou
210
COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? São Paulo, Companhia das Letras, p. 144, 2016.
211
Falquejador, ou falqueador, é o indivíduo que corta a madeira e a prepara em tábuas para construção.
212
LEFEBVRE, Henri. O direito à Cidade. São Paulo: Centauro, p. 14, 2001.
78
moradores desapropriados devido a uma política de abastecimento de água da cidade,
diferentes apropriações sociais geraram conflitos na socionatureza da floresta.
Os quilombos cariocas acompanharam os processos de aumento da população
cativa e da repressão violenta. A proximidade das matas cariocas da cidade permitiu,
aos que conquistavam sua liberdade, que mantivessem uma fonte de renda (alguns bicos
se passando por escravo de ganho ou até mesmo pequenos furtos de frutas e outros
alimentos). Estar perto de um terreno já conhecido facilitaria também o auxílio de novas
fugas de amigos e parentes. A partir de 1808, com a presença de famílias ricas e
politicamente importantes nas encostas do maciço da Tijuca, uma política de repressão
se reformulava com a criação da Intendência Geral de Polícia. Nesse momento, cada
freguesia possuía um capitão-do-mato, que era nomeado pela Câmara sem, no entanto,
os privilégios da referida patente213. O Quilombo da Tijuca foi um bom exemplo da
resistência da população negra. Localizado no maciço da Tijuca, provavelmente nas
serras de Laranjeiras ou Santa Teresa, resistiu a algumas incursões. Inclusive um grande
ataque orquestrado pelo Intendente da Polícia, Paulo Fernandes Viana, em 1811.
Segundo o historiador Luiz Carlos Soares, a operação com horas de cerco policial
apenas conseguiu capturar um negro214.
A partir de registros policiais e relatos de viajantes, Soares aponta que durante o
início do século XIX havia uma população negra residente, e resistente, nas florestas
próximas ao Vale das Laranjeiras e do Catete. Maria Graham, que residiu em
Laranjeiras, indicou um pouco da circulação paralela de bens de consumo entre o que
temos chamado de alto e médio curso. Através de sua escrava, Ana, ela comprava
frutas, ovos e aves de negros de um quilombo perto de sua casa. Difícil indicar se a
venda, ou troca, desses itens foi fruto de produção destes na floresta ou de furtos a
outras chácaras. Porém, independentemente de pequenos furtos, a população branca das
chácaras devia estremecer de medo dessa movimentação. O que motivou a organização
de outros ataques, como o organizado pelo Brigadeiro Manoel Nunes Vidigal, em 1823,
que contou com a presença do Exército. Um saldo de mais de 200 capturados215.
213
GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos
no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Ed UNESP / Ed Polis, 2005.
214
SOARES, Luís Carlos. O “povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro
do século XIX. Rio de Janeiro: FAPERJ / 7Letras, 2007.
215
SOARES, O “povo de cam” na capital do Brasil, op.cit.
79
Certamente, esse não foi o último golpe nos quilombos do maciço da Tijuca.
Com estas e outras derrotas, eram obrigados a se reorganizarem em outras localidades.
Além de que o crescimento do loteamento das antigas fazendas de cana no médio curso
(freguesias do Engenho Velho, Glória e Lagoa) em direção às montanhas propiciou
novas ondas de criação de novos quilombos. Em Julho de 1821, a notícia do Diário do
Rio de Janeiro afirmava que 3 negros foram presos “em um Quilombo na Tijuca, ao pé
da pedra queimada”216. Conforme o costume, os cativos ficariam na casa do Capitão-do-
mato, neste caso o Pedro Lopes, até serem entregues aos “donos” por uma quantia
acordada. Em 1830, outro registro no mesmo jornal não ofereceu tanta certeza quanto
ao paradeiro de escravos fugidos. Advertiam, porém, que “há muito boas razões para se
julgar estar no quilombo da Tijuca”217. Após esse ano ocorreu uma diminuição nos
registros de atividade quilombolas nas montanhas. O que não é sinonimo do fim da
presença e resistência negra nas florestas do Rio de Janeiro, mas sim uma modificação
qualitativa e quantitativa do tipo de apropriação da socionatureza florestal. Fruto de
modificações da estrutura da corte imperial, da população negra e da sociedade urbana,
leia-se branca.
Os impasses com o uso do ambiente biofísico entre grupos locais e o governo
imperial no Segundo Reinado estão fortemente relacionados com a determinação do
Estado de como se podia interagir com tal ambiente. Neste momento em que a cidade e
sua sede cresciam, as atividades que prejudicavam a canalização dos mananciais eram
listadas como as mais prejudiciais e comprometedoras das tentativas de civilizar a
floresta. A partir da segunda metade do século XIX, o corte das matas foi considerado o
principal vilão dos engenheiros e burocratas responsáveis pelo manejo da água.
Diferente da mera presença de negros fugidos décadas atrás.
O crescente desmatamento florestal ocorreu principalmente devido às queimadas
nas fazendas de café e da presença de grupos que se utilizavam das matas para pegar
madeira, lenha e carvão218. A perda da cobertura florestal expunha o solo às intempéries
de chuva e sol, o que causava erosão dos sedimentos e assoreamento dos rios. Além de
comprometer a quantidade de água corrente, a limpidez desta era prejudicada pela
216
DIÁRIO do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Ano 1, nº 04, p. 173, do dia 23 de Julho de 1821.
217
DIÁRIO do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Ano 10, p. 16, de 05 de julho de 1830.
218
Vale mencionar que os efeitos das fazendas de café e da extração de lenha são distintos. No caso da
extração de lenha fica ainda no sistema florestal os ramos e tocos que favoreceram a regeneração
florestal. Diferente das queimadas realizadas como preparo da cafeicultura.
80
gigantesca quantidade de areia e barro ao longo dos encanamentos. As atividades de
quem queria manter a floresta em pé, com seus serviços ecológicos, cada vez mais
entrava em oposição aos grupos que buscavam um extrativismo predatório das
madeiras; e, consequentemente, uma modificação de um ecossistema florestal para um
com poucas espécies de gramíneas.
Quem poderia se estabelecer e utilizar o que achava necessário? Como legitimar
tais atividades? A perspectiva de James Scott considera que o Estado, pela necessidade
de governar em larga escala, desenvolveu ferramentas que racionalizassem e
padronizassem o amplo leque de diversidades e adversidades da socionatureza. Esse
processo de simplificação e abstração facilitou os trabalhos de mensuração,
quantificação e comparação, os quais possibilitaram ao governo imperial a intervenção e
administração de seu território. Aqui os mapas, as tabelas, os gráficos, além de serem
formas de conhecimento e de manipulação característico de grandes instituições,
também são uma legitimação do uso territorial da floresta pelo Estado. Segundo Scott
219
Certain forms of knowledge and control require a narrowing of vision. The great advantage of such
tunnel vision is that it brings into sharp focus certain limited aspects of an otherwise far more complex
and unwieldy reality. Tradução minha de SCOTT, Seeing like a state, op. cit., p. 11.
220
COUTINHO, Christiano Pereira de A., Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas do Município
da Corte. In: Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, das Obras Públicas para o ano de
1861. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, p. 6, 1862.
81
Conforme o poder infraestrutural do governo imperial crescia, aumentavam-se
também os esforços em expulsar os grupos indesejados das serras. O poder
infraestrutural significou o quanto o Estado seria capaz de penetrar e coordenar as
atividades da sociedade civil através de sua infraestrutura. De acordo com Michael
Mann, “o poder infraestrutural do Estado deriva da utilidade social, (...), das formas de
centralização territorial que não podem ser fornecidas pelas forças da sociedade
civil”221, seu crescimento se dá na logística do controle político. Ou seja, conforme
incrementavam os investimentos na criação de instituições, formação de pessoal e
melhorias na gestão do território e da população, maior seria o seu poder infraestrutural.
Enquanto tal poder não se manifestava diretamente dos guardas, o coletivo de
carvoeiros, falquejadores, escravos fugidos “e até mesmo desertores”, “contando com a
fraqueza de tais guardas zombam de quaisquer providências que por ventura se
deem”222.
O crescimento do poder infraestrutural assegurava alguns privilégios para o
grupo dominante. Mesmo que o corte de madeira estivesse proibido por lei223 para
quaisquer fins, o MACOP mantinha sua demanda suprida aceitando o corte de “13
linhas de madeira de Lei ”224. No início da década de 1860, o Inspetor Geral das Obras
Públicas do Município da Corte, Christiano Pereira de A. Coutinho, ao mesmo tempo
em que relata para tais cortes para construções no maciço, defende que
221
MANN, Michael. O poder autônomo do Estado: Suas origens, mecanismos e resultados. In: HALL,
John A. (org.). Os Estados na História. Rio de Janeiro: Imago editora, p. 163-204, 1992. p. 187.
222
COUTINHO, Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas, 1862, p. 6
223
Por exemplo os decretos de 9 de agosto de 1817 e 17 de agosto de 1818, e o Código de Posturas de 11
de novembro de 1838.
224
COUTINHO, Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas, 1862, p. 12.
225
COUTINHO, Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas, op.cit., p. 6-7.
82
também do policiamento das florestas visando inibir tanto os carvoeiros e caçadores,
quanto outros indesejados. Ou seja, tais indivíduos, muitas vezes desfavorecidos,
estariam em conflito com a visão hegemônica da tecnocracia do MACOP. Onde essas
matas faziam parte de um plano de civilização que se desenvolvia neste momento.
A apropriação das áreas adjacentes às nascentes veio principalmente por meio da
desapropriação das propriedades existentes. Entre 1856 e 1859, 12 propriedades foram
desapropriadas nas serras cariocas para este fim226. Embora essas propriedades fossem
de sítios e chácaras com grande metragem, o esforço ainda era pequeno frente às
necessidades. Conforme, a ocupação e apropriação deste ambiente biofísico cresciam, o
desmatamento próximo aos corpos d‟água acompanhavam este processo. E mesmo que
o Estado tenha feito a aquisição de terrenos, estes eram mal delimitados por linhas retas,
e acarretavam na ilusão da proximidade dos mananciais, “quando as verdadeiras bacias
de confluência ficam longe e a mercê da foice e do machado dos lenhadores e
carvoeiros”227. Em alguns terrenos, mesmo já delimitados e com a existência de água
comprovada, ocorriam casos de especulação do proprietário e abusos nos cortes, que
resultavam no acirramento das disputas territoriais da apropriação do ambiente
biofísico.
Outros grupos sociais não tiveram tanta facilidade assim. Os indesejados, pela
cor da pele ou pela classe social, foram perseguidos e expulsos das matas do Rio de
Janeiro. Escravos, ex-escravos, funcionários das fazendas e hotéis, fugitivos e
quilombolas, ocupantes visitantes e moradores, vieram antes dos valores estéticos e
higienistas sobre as florestas do maciço da Tijuca na segunda metade do século XIX.
Outros valores e necessidades eram presentes, como os esconderijos, “templos” de
alguns orixás, ou mesmo lar. O governo imperial sutilmente utilizou-se de seu discurso
226
COUTINHO, Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas, 1862.
227
OLIVEIRA BULHÕES, Relatório da Inspecção Geral das Obras Públicas, 1868, p. 10.
228
BELLEGARDE, Pedro de Alcântara. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras
Públicas para o ano de 1862. Rio de Janeiro: Typographia Paula Brito, p. 76, 1863.
83
em prol do abastecimento da cidade para expulsar tais grupos indesejados. Em relatório
do Ministério da Agricultura para o ano de 1862, o chefe da Diretoria e Obras Públicas,
Manoel da Cunha Galvão, ao relatar sobre mudanças nos rios para o abastecimento,
comenta que
Outro discurso comum era para evitar o desmatamento. Tais palavras, contudo,
não foram proferidas pelo governo imperial para a ocupação de estrangeiros produtores
de café. No entanto, junto a categoria de falquejadores e carvoeiros, os principais
desmatadores, os indesejados foram incluídos. As constantes reclamações para maior
número de pessoal para trabalhar e monitorar as florestas foram comuns no decorrer das
atividades do governo imperial. Em relatório da Inspetoria de Obras Públicas para o ano
de 1861, o inspetor Christiano Pereira de A. Coutinho, após relatar os estragos que as
formigas causavam nas Paineiras, escreve:
229
BELLEGARDE, Relatório do Ministério da Agricultura, 1863. p. 77
230
COUTINHO, Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas, 1862, p. 6.
84
Estar na floresta, contemplar a cachoeira, respirar ares frescos, foram atividades
ressignificadas ao longo do século XIX. Por influência de costumes estrangeiros, da
tradução simbólica de quadros e livros, a paisagem se construiu. A floresta da Tijuca foi
um espaço institucionalmente concebido, ordenado. A busca pelo sublime esteve
associada a um ambiente domado, seguro. Tendo uma paisagem ao mesmo tempo
construída fisicamente pelos esforços governamentais de reflorestamento e estradas, e
também alegoricamente, através das artes e das interpretações que evocam emoções. A
socionatureza tornava-se mais complexa e rica conforme a rede de humanos e outros
animais, plantas, rios, eram delineadas231.
A saúde e o lazer, representados por instituições como sanatórios e hotéis, não
eram iniciativas de igualdade social. A argumentação para a expulsão dos grupos
indesejados muitas vezes era contraditória e arbitrária, com outras políticas públicas. Já
observamos, na seção 1.2 (sobre abastecimento de água), o discurso de desapropriação
do governo imperial em prol de um sistema de abastecimento dos mananciais do maciço
da Tijuca que já se provava ser incompleto. No capítulo 4, veremos também o
argumento de desapropriar para a companhia de uma estrada de ferro que, por seu viés
turístico, incluía um hotel. Para muitos desses, desmatar não era problema. A
desigualdade ficou bem evidente quando não havia punição para um hotel que poluira o
abastecimento de água com esgoto, enquanto que “fâmulos e escravos” eram
perseguidos expulsos por simplesmente tomarem um banho de cachoeira. Entre comidas
elaboradas pela confeitaria Paschoal, visitas do imperador e a presença de viajantes
estrangeiros, a floresta se gentrificava232.
A permanência de áreas florestais reflorestadas, ou não, esteve condicionada a
sua domesticação. A espontaneidade da geração de matos diversos, as enxurradas que
derrubavam pontes, e tantos outros aspectos do ambiente biofísico foram
aborrecimentos para a sociedade urbana. Para eles, o espaço deveria ter acessibilidade,
utilidade e beleza cênica. A partir das modificações estruturais feitas pelo governo
imperial de estradas, encanamentos e sua manutenção, a floresta se urbanizava de
maneira desigual para os que usufruíam dela. A transformação dessa socionatureza em
231
CRONON, William. The Trouble with Wilderness. In: CRONON, William (org). Uncommon Ground:
rethinking the human place in nature. New York: London: W.W. Norton & Company, 1996
232
O termo gentrificação é comumente utilizado para áreas urbanas em que a valorização da região é
seguida pela dificuldade da permanência de antigos moradores de baixa renda. Ouso utilizar este termo
para ampliar o próprio conceito de cidade. Para mais informações sobre gentrificação ver SMITH, Neil.
Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, n.
21, p. 15 - 31, 2007.
85
prol do benefício da espécie humana tem em sua história desigualdades intra e
interespecíficas como, por exemplo, a expulsão de grupos indesejados e a exploração de
animais de carga, respectivamente.
CAPÍTULO 2:
A manutenção da socionatureza:
diálogos e conflitos nos usos sociais dos rios urbanos
233
Base de madeira, normalmente fixando assoalhos, forros e pisos, que facilitaria o escoamento das
águas do rio.
86
deste modo se vem inundados sempre que há qualquer enchente, como há
pouco acabou de acontecer em todos os rios onde existiam tais açudes234
De fato, tal edital não cessou os embates sobre os usos sociais dos rios por parte
dos proprietários, de moradores locais ou do Estado. A força das enchentes complicava
a situação dos rios em relação a ser um espaço privado ou um espaço público. Para o
olhar da época, os rios necessitavam de intervenções para serem domesticados. Tais
transformações tornaram-se imperativas conforme o território urbano se expandia para
os arrabaldes. Os rios eram obstáculos e sua transformação era a solução. Em cima
destas e tantas outras questões urbanas, a classe dos engenheiros tornara-se mais forte.
Este capítulo versa sobre essa relação de conflito entre o crescimento urbano e
os rios urbanos, além da participação do Estado. De um lado, as modificações nos
corpos hídricos por parte dos proprietários muitas vezes acarretaram em consequências
para os vizinhos e transeuntes. Por outro lado, a expansão da cidade e o imaginário dos
engenheiros cada vez mais viam os rios como obstáculo. Mediando isso, o poder
municipal manejava tais conflitos e construía meios para superar os rios (estradas e
pontes). Nos termos desta tese, os engenheiros como idealizadores da socionatureza
urbana estavam a todo o momento a buscar soluções práticas para os problemas fluviais,
numa verdadeira manutenção da socionatureza. A construção de estradas, pontes e
caminhos para as águas pelos engenheiros significou a busca de um ambiente urbano
ideal para a sociedade carioca (2.1). Resistindo ao ambiente biofísico, às leis e às
normas sociais, muitos costumes rurais mantiveram-se no território suburbano (2.2).
Enquanto que ambientes biofísicos do baixo curso (praias e mangues) eram revisitados
para os interesses da urbe (2.3).
234
Edital de 11 de junho de 1853 sobre os açudes ou represas. In: MORAES FILHO, Código de
Posturas, 1894, p 95.
87
trilhos. O saco de São Diogo (desembocadura dos rios Trapicheiros, Joana, Maracanã,
Comprido e Papa-Couve), foi o principal obstáculo para o crescimento urbano do início
dos oitocentos. Após o estabelecimento da estrutura urbana nas proximidades dos rios,
as relações conflitantes foram outras: os alagamentos e inundações causaram transtornos
diversos à população; as doenças e os miasmas operaram tanto no ambiente biofísico
(com enfermidades e mortes) quanto no simbólico (com as políticas e teorias
higienistas). A relação histórica da cidade do Rio de Janeiro no século XIX e seus rios
foi uma chave interessante para compreender a emergência de duas importantes classes
políticas no final deste século – engenheiros e médicos. Abordaremos nessa seção os
problemas que a coexistência com os rios acarretaram para a expansão urbana e a
circulação de pessoas e objetos, em particular as pontes e estradas.
É no espaço urbano que se concentraram as infraestruturas de transporte de
pessoas e objetos. A rede de vias foi um indicador do ordenamento que a cidade impõs
ao seu ambiente biofísico. E isto não foi uma via de mão única. Pois conforme os
esforços humanos restringiam o comportamento espontâneo dos rios, eles mesmos
reagiam235. À média duração, aquela em que percebemos transformações conjunturais
em poucas décadas, os rios urbanos parecem se adaptar às imposições de pedras,
madeiras e concreto dos melhoramentos das Obras Públicas. Na curta duração, do
tempo individual do rio, a todo momento – segundo após segundo – ele bate sobre as
estrutura sólidas alienígenas em seu habitat. Nesta temporalidade, o indivíduo fluvial
não somente se adapta, ele reage, resiste. E conforme suas forças ganhavam das
iniciativas humanas (por mérito próprio, como uma forte inundação, ou por falta de
verbas para reconstrução de pontes), as forças sociais reagiam em atividades de
construção e de manutenção de estruturas sólidas nos rios236.
Por um lado, interferências fluviais pontuais ocorreram por parte da sociedade
urbana ao construir edificações que obstruíam os rios. Por outro, os rios e sua força
constantemente reagiam a essas restrições em sua topografia. Rios e cidades ajustavam-
se e adaptavam-se a esses esforços. Os primeiros, ao carregar sedimentos que
modificavam a estrutura do seu leito próximo à fundação da estrutura construída. Com o
235
WILLIAMS, Raymond. El campo y la ciudad. Buenos Aires: Paidós, 2001.
236
A longa e a longuíssima duração dos rios não é uma questão só da história. Somente com o uso de
ferramentas de disciplinas como a geologia, palinologia e afins, pode-se ter questões e respostas
pertinentes. A contribuição das temporalidades de Braudel pode ser compreendida melhor pela obra
BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais: a longa duração. Revista de História. Rio de Janeiro,
ano 16, v. 30, n. 62, 261-294, 1965.
88
tempo, conseguiriam remover o obstáculo. A urbanidade, ao ver que suas estruturas
começavam a ruir, investia no conserto e na reconstrução237. Em outras palavras,
enquanto houver rios e cidades ocorrerão relações de conflito e harmonia. Sendo o
conflito interpretado através de termos como imposição, pressa, controle; e a harmonia,
na ideia de negociação, calma, ordem.
Estradas e pontes podem ser interpretadas tanto como uma imposição quanto
como uma negociação. Os cálculos dos engenheiros consideraram as curvas e a
inclinação das montanhas durante a construção das estradas do maciço da Tijuca.
Porém, ao serem construídas em trechos planos, vemos que o aterro e a retilinização dos
rios foram uma imposição da engenharia, e do poder municipal e imperial. Nessas
relações, diferentes agentes compartilhavam a perspectiva de rios como obstáculos.
Vamos analisar como esses agentes se articulavam com outros grupos sociais.
Os engenheiros que ocupavam os cargos políticos têm sido os mais historicamente
importantes. José Murilo de Carvalho ao estudar a formação da elite política brasileira
no início do século XIX concluiu que houve uma redução de conflitos internos devido,
sobretudo, a uma homogeneidade ideológica e à formação em Direito em Portugal. Ou
seja, o ensino superior, na Universidade de Coimbra, de grande parte da elite política foi
um poderoso elemento unificador, seja pela socialização ou pela carreira política
seguida pelos alunos formados238. O caso dos engenheiros é bem similar. Luiz Ferreira
considera que eles necessitavam de uma matriz ideológica para se reconhecerem
enquanto grupo – neste caso seria o positivismo, a fé no progresso, a “crença de que o
conhecimento científico legítimo se constituía na sua aplicabilidade social”239.
De maneira análoga, com suas particularidades, podemos enxergar o ensino
politécnico, e em paralelo as associações desta classe, junto com a prerrogativa de um
projeto modernizador através da modificação e apropriação da socionatureza, em
particular centralizado nas atividades do MACOP, que também funcionara como um
polo de treinamento dos jovens alunos politécnicos. Ao nos debruçarmos sobre as
considerações de Bourdieu sobre esse tipo de ensino veremos que a Escola Politécnica
237
WHITE, Richard. Organic Machine: The remaking of the Columbia River. New York: Hill and Wang,
1995
238
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política. Teatro das Sombras: a política
imperial. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2010.
239
FERREIRA, Luiz Otávio. Os politécnicos: ciência e reorganização social segundo o pensamento
positivista da Escola Politécnica do Rio de Janeiro (1862-1922). Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1989. p 61.
89
constituiria, então, o fator fundamental de um consenso cultural, um “repertório de
lugares-comuns”. Um espaço não somente para “um discurso e uma linguagem comuns,
mas também terrenos de encontro e acordo”240.
Além da escola, as agremiações também eram “lugares-comuns” para esses
encontros e acordos. O Instituto Polytechnico Brasileiro foi criado em 1862, de viés
monarquista, e muitas vezes teve a presença imperial de Dom Pedro II ou Conde d‟Eu.
Já o Clube de Engenharia foi criado em 1880, de natureza republicana e abolicionista, e
claro interesse em associar-se com empresários. Um novo destino coletivo era traçado
conforme os engenheiros se organizavam internamente e associavam-se a outros grupos
sociais, como políticos, empresários, capitalistas.
No cerne da formação do engenheiro na Escola Politécnica estava o discurso
sobre o progresso, um tipo de linguagem imbuída de poder simbólico241. Dessa maneira,
um engenheiro, com sua legitimidade reconhecida, tornava-se o porta-voz com
autoridade de proferir e atuar em nome do coletivo de engenheiros. Na realidade, essa
autoridade está externa à linguagem, e alicerçada no capital simbólico acumulado.
Modelados segundo um mesmo padrão, tais alunos “encontram-se predispostos a
manter com seus pares uma relação de cumplicidade e comunicação imediatas”242.
Para um engenheiro recém-formado o IPB funcionava como um espaço de
continuidade das atividades acadêmicas de sua escola, além de um lugar para trocas e
decisões. O Instituto surgiu em 1862 em meio ao reconhecimento da engenharia nas
atividades centralizadas pelo MACOP como uma associação civil onde se reuniam
engenheiros e bacharéis para discutirem sobre profissionalização, temas científicos e
outros assuntos técnicos diversos como: criação de um mapa do Brasil, regulação do
corte de madeiras, construção de estradas e outros de interesse direto do governo
imperial. A contradição do discurso de modernidade e progresso juntamente com a
permanência do modelo escravista desestabilizou a competência desse grupo ser porta-
voz desse mesmo discurso. É nesse contexto que surge como contraposição a esta
agremiação, o Clube de Engenharia em 1880, que foi assinalado em seus primórdios
240
BOURDIEU, Economia das trocas linguísticas, 1996, p. 207.
241
O poder simbólico é o “poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que
não querem saber que lhe estão sujeitos a esse poder ou mesmo que o exercem”. De forma irreconhecível
e legitimada tal poder possibilita conquistar de maneira semelhante a força física ou o poder econômico.
Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 7-8, 2009.
242
BOURDIEU, Economia das trocas linguísticas, op. cit., p 206.
90
pela determinação em reunir engenheiros e industriais a partir de um discurso de alusão
à civilização semelhante ao executado pelos membros do IPB243.
A institucionalização e a constituição da área de engenharia civil ocorreram de
mãos dadas ao crescimento e desenvolvimento urbano. A partir da tradicional
engenharia militar dos séculos XVII e XVIII, investiu-se tempo e dinheiro em
artilharias e fortificações que marcaram o passado colonial do Rio de Janeiro, e outras
cidades do mundo. Porém, no século XIX, as cidades ganharam corpo na organização
do território nacional. A “velha” engenharia que consolidou os Estados monárquicos
europeus deu espaço para a atuação de uma nova disciplina, intimamente ligada à
transformação técnica das cidades, assim como ao seu planejamento e manutenção.
Incorporando dessa maneira novas ferramentas instrumentais (níveis de água, círculos
graduados, grafômetro, esquadro de agrimensor) que resultaram em mapas mais
apurados e planos urbanísticos mais completos244.
Verena Andreatta realizou um profundo estudo sobre os planejamentos urbanos
no Rio de Janeiro. Defendeu a ideia que o poder público propiciou condições que
provocaram a importação de ideias que resultaram na transformação e ampliação do
território carioca. Com os engenheiros no centro dessa questão, os planos urbanísticos
eram a “expressão sintetizada do poder em sua vontade de organizar e controlar um
território”245, uma socionatureza. Através de novos instrumentos da nova engenharia do
século XIX, essas propostas de urbanização foram a base simbólica para a imposição de
uma ordem social no ambiente biofísico carioca e seus rios.
Em 1843, Henrique de Beaurepaire Rohan, enquanto diretor de Obras Públicas,
apresentou à Câmara Municipal um relatório de um plano urbanístico para a cidade do
Rio de Janeiro. Graduado em engenharia militar em 1837, Beaurepaire teve a
oportunidade de estudar após a mudança curricular da Academia Militar em 1833,
como: cursos de pontes e pavimentação, a arquitetura militar e as cinco ordens da
arquitetura civil. Ordenar a cidade, para Beaurepaire e muitos outros engenheiros da
época, consistia em aplicar regras geométricas e implantar a infraestrutura urbana
necessária para seus serviços: saneamento básico, transporte, iluminação, etc. Suas
243
MARINHO, Pedro. Ampliando o Estado Imperial: Os engenheiros e a organização da cultura no Brasil
oitocentista. Tese de doutorado apresentada no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense, 2008
244
ANDREATTA, Verena. Cidades quadradas, paraísos circulares: os planos urbanísticos do Rio de
Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.
245
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, op. cit., p. 46.
91
propostas repercutiram nas atividades de modernização da cidade que foram efetuadas
nos anos seguintes. E a reação que os rios causavam pode ser descrita pela fala de
Beaurepaire quando afirmou que quase cem pontes necessitavam de obras.
O plano urbanístico foi apresentado à Câmara Municipal em 20 de Setembro de
1843, sendo, portanto, o primeiro da história do Rio de Janeiro. Atento às novidades da
saúde e higiene pública, o autor do plano previa intervenções em matadouros, hospitais,
cemitérios, assim como praças, arborização, derrubadas de morros, drenagem e aterros
de áreas alagadas. Os rios estavam subentendidos nessa modificação da paisagem
urbana. Houve a proposta de espaços públicos abertos e arborizados dentro da paisagem
urbana (exclusividade do Passeio Público até então), como o Campo da Aclamação e a
propostas de novas praças. Os interesses em purificar a atmosfera e por fim aos
miasmas estavam dispersos e difusos por todo o plano246.
Armados de teorias e intenções, os engenheiros e seus planos urbanísticos
marcaram o controle sobre a socionatureza urbana247. Em meio à expansão da malha
urbana, os rios e suas áreas alagáveis tornaram-se obstáculos à cidade – ícone do
ambiente humano coletivo no século XIX. Pontes foram construídas para dar
continuidade às estradas e circular pessoas, objetos, capital, animais. Muralhas foram
erguidas para proteger a estrutura de pontes e estradas da erosão das encostas dos rios.
246
BEAUREPAIRE ROHAN, Henrique de. Relatório apresentado a Ilustríssima Câmara Municipal pelo
Visconde de Beaurepaire Rohan. Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.
275, p. 201-232, abril-junho, 1967.
247
Comentaremos mais aprofundadamente sobre planos urbanísticos na seção 4.1.
92
privilegiados e a centralização e consolidação do poder imperial também estiveram
presentes no processo de domesticação das florestas e reflorestamentos cariocas248.
Manoel Pinto de Souza Dantas, Ministro da Agricultura, ao comentar sobre a conclusão
da Estrada de Rodagem da Tijuca em 10 de outubro de 1866, disse que
248
HEYNEMANN, Cláudia. Floresta da Tijuca: Natureza e Civilização no Rio de Janeiro – século XIX.
Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Comunicação e Informação
Cultural, Divisão de Editoração, 1995.
249
DANTAS, Manoel Pinto de Souza. Relatório do Ministério da Agricultura, Commercio e Obras
Públicas do ano de 1866. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1867, p 159.
250
DANTAS, Relatório do Ministério da Agricultura, op. cit., p 159.
251
DANTAS, Relatório do Ministério da Agricultura, op. cit.
252
PAULA SOUSA, Antonio Francisco de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das
Obras Públicas do ano de 1865. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1866.
93
um contrato do Aviso nº 7 assinado em janeiro de 1865, um mês antes. Começando no
mesmo ponto, em frente a entrada da chácara de Dona Rosa da Câmara Antunes até a
praça da Boa Vista, no atual Alto de mesmo nome. Orçada em 240 contos de réis, teria
uma extensão poucas centenas de metros menor253.
Curiosamente, no mesmo ano que a Estrada de Rodagem da Tijuca foi
construída pela Companhia de Carris de Ferro da Tijuca, o transporte público local
dessa mesma empresa levou um coice. A empresa de carris de ferro responsável pelo
transporte do pé da serra à cidade havia finalizado seus trabalhos. Manoel Dantas
mencionou tal fato em relatório, lamentando o ocorrido e argumentando que a empresa
foi “impotente” para a manutenção dos trilhos e sua estrutura. O acesso coletivo às
montanhas da Tijuca foi prorrogado para muitos meses depois254.
Os aspectos de privilégio de classe tornaram-se mais evidentes com a iluminação
da referida estrada. Apontada por Manoel Dantas como inconvenientemente iluminada,
o transito nas noites escuras era considerado perigoso. Para tal, ordenou em 1865 a
remoção de 30 combustores de luz a gás da parte antiga da estrada, sem passagem de
veículos, e 31 combustores de outros pontos da área urbana. Os 61 combustores foram
instalados na nova estrada. Vemos aqui que, enquanto pontos de grande circulação de
pessoas no centro urbano eram desprovidos de iluminação pública, na floresta, duas
estradas para carruagens já possuíam tal serviço. Tais modificações foram facilitadas
pela nova organização da Iluminação Pública carioca, quando em abril de 1865 a
Companhia de Iluminação de Mauá foi absorvida por uma nova empresa organizada em
Londres: The Rio de Janeiro Gas Company Limited255. Diferente do fim do transporte
público, que pode ser visto como coincidência, o reposicionamento dos combustores de
luz indicou um plano deliberado de segregar as matas cariocas para a elite imperial256.
Logo mais acima da Estrada da Tijuca, outra estrada já havia sido construída, a
Estrada da Cascatinha. Diferente de outras, esta foi construída a partir de contratos para
três seções distintas que somavam 861 braças (1.894m), cujas obras terminaram em
253
Contrato do Aviso nº 7 de janeiro de 1865. In: OLIVEIRA E SÁ, Jesuíno Marcondes de. Relatório do
Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas do ano de 1864. Rio de Janeiro:
Typographia Universal de Laemmert, 1865.
254
Mais sobre a história dos bondes e sua relação com a história dos rios cariocas na seção 4.3.
255
Com a nova direção da iluminação, ampliou-se o fornecimento para os subúrbios da cidade pra mais de
200 milhas de encanamento até o final dos anos 1870. Cf. SOARES, O “povo de cam” na capital do
Brasil, 2007.
256
DANTAS, Relatório do Ministério da Agricultura, 1867.
94
1862. A primeira seção257, de 264 metros, que iniciava no sítio Boa Vista e ia até a
Cascatinha, conectou uma grande demanda da cidade – a questão sanitária do clima
urbano que era “pestilento”. Os detalhes do contrato responsável pela obra mostraram
mais uma vez a quem interessava. O contrato foi assinado no dia 21 de fevereiro de
1861 entre a Inspetoria de Obras Públicas do Ministério da Agricultura e Félix Emílio
Taunay e Job Justino de Alcântara, donos de propriedade nas cercanias da Floresta da
Tijuca. Tinha como condição a construção de uma ponte de interesse paisagístico em
frente ao monumento natural aquático. Conhecida hoje como ponte Job Justino de
Alcantara258, ela deveria ter um arco de tijolo de 25 palmos (5,5m) “com quatro
pilastras, e entablamento de ordem Toscana, de granito lavrado, assim como aduelas e
pegões do arco, de cantaria rústica”. Os planos apresentados aos empreiteiros não
poderiam ser modificados sem o prévio acordo do Inspetor de Obras Públicas.
Curiosamente, a proposta dessa seção foi orçada em quase 50 contos de réis e teve como
fiador o Major Gastão Luis Henrique de Escragnolle, quem viria a assumir a
administração da Floresta da Tijuca de 1874 a 1888259.
Na face sul do maciço da Tijuca foi construída outra estrada que ligava a
freguesia da Gávea ao alto curso. O contrato para Estrada do Alto da Boa Vista para o
Jardim Botânico, de 03 de Junho de 1861260, foi firmado com o dr. Thomaz
Cochrane261. Com prazo de 6 anos, previa uma estrada com largura de 30 palmos (6,6m)
nas retas e 40 (8,8m) nas curvas. De modo a domesticar a socionatureza e impedir
inconvenientes na manutenção da estrada, o contrato previa muralhas de pedra seca para
a segurança dos aterros e bueiros com fundos lajeados. O pagamento do MACOP seria
257
Da Cascatinha da Tijuca saía a segunda seção para acima, da qual conectava-se com a terceira. A
segunda também tiveram Taunay e Job no contrato, enquanto que a terceira foi construída pelo
administrador da Cia de Carris de Ferro da Tijuca, William Ginty.
258
Remodelada por Raimundo Ottoni de Castro Maya em 1943. Cf. CASTRO MAYA, Raymundo Ottoni
de. A floresta da tijuca. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1967.
259
Contrato de 21 de fevereiro de 1861 entre a Inspetoria de Obras Públicas e Felix Emilio Taunay e Job
Justino de Alcantara, para a construção da primeira seção do caminho da cascatinha da Tijuca, para o lado
da Boa Vista e da ponte que deve ligar as respectivas seções. In: SOUZA E MELLO, Relatório do
Ministério da Agricultura, 1862.
260
Contrato de 03 de junho de 1861 In: BELLEGARDE, Relatório do Ministério da Agricultura, 1863.
261
Homônimo do almirante escocês contratado para as lutas de Independência, Thomas Cochrane, o
doutor, foi um dos introdutores da homeopatia no Brasil. Era proprietário da Chácara da Tijuca, obtida em
1855. Cf. MARIZ, Vasco. Lorde Cochrane, o turbulento Marquês do Maranhão. Revista Navigator, v. 8,
n. 16, p. 11-20, 2012.
95
realizado mensalmente, sendo previamente examinado por um engenheiro ministerial262.
Finalizada em Março de 1865, foi alvo de críticas internas ao Ministério da Agricultura.
O conselheiro Manoel Felizardo de Souza e Mello, que presidiu a repartição de Abril de
1861 a Maio de 1862, e Manoel da Cunha Galvão, Diretor das Obras Públicas,
apontaram que tal estrada não “procedeu com a ordem natural das coisas”263. Ambos
reclamaram que o acesso à referida estrada pelo lado da freguesia da Lagoa não havia
sido construído. Galvão, em relatório do ano de 1862 escreveu que:
262 Contrato nº 20 15 de maio de 1861 entre Inspetoria de Obras Públicas e Thomaz Cochrane para a
conservação e continuação da estrada de rodagem que tem de comunicar o alto da Boa Vista com o
Jardim Botânico da Lagoa Rodrigo de Freitas. In: SOUZA E MELLO, Relatório do Ministério da
Agricultura, 1862.
263
BELLEGARDE, Relatório do Ministério da Agricultura, 1863, p. 81.
264
BELLEGARDE, Relatório do Ministério da Agricultura, op. cit., p. 81.
265
BELLEGARDE, Pedro de Alcântara. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das
Obras Públicas do ano de 1863. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1864.
266
PAULA SOUSA, Antonio Francisco de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das
Obras Públicas do ano de 1865. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1866.
96
finalizada. O contrato de um ano com Antonio Joaquim de Araújo, foi assinado no 1ª de
Agosto de 1865, pela quantia de 4:800$000 réis267.
Outras estradas também foram conservadas através de empreiteiros particulares.
A primeira seção da Estrada da Cascatinha, da praça até a cachoeira, foram conservadas
por Luiz Ribeiro da Cunha por 774$000 réis por ano. No ano de 1865 ficaram sem
conservação até o mesmo 1º de Agosto, quando sua conservação foi contratada pelo
construtor da Estrada Lagoa-Alto da Boa Vista, Thomaz Cochrane, por 696$000 réis
por ano. Enquanto a segunda e a terceira seção foram conservadas por Felix Taunay por
296$000 réis anuais268. Segundo o relatório do Ministério da Agricultura para o ano de
1867, haviam no município neutro 111 quilômetros de estradas somente a cargo da
Inspetoria Geral de Obras Públicas. Destas, 80 quilômetros eram conservados por
arrematantes através de contrato com a referida Inspetoria, e o restante diretamente
conservados pela Diretoria de Obras Públicas269.
A construção de estradas no alto curso carioca passou por obstáculos físicos
diferentes das seções mais baixas das bacias hídricas. Na paisagem montanhosa, a
inclinação, além de influenciar no comportamento dos rios, afetava a edificação e a
manutenção das estradas e pontes. Nas partes planas, a inundação era o vilão mais
comum, seja nos desmoronamentos das edificações em suas margens ou na persistência
de áreas alagadas associadas a doenças veiculadas pela água (miasmas para eles,
mosquitos como vetores atualmente para nós).
O acesso terrestre que conectava Botafogo ao centro urbano foi traçado em 1797,
sendo nomeado depois de Caminho Velho de Botafogo. Os caminhos por dentro de
restingas e matas, e subidas de pequenos morros, não deveriam ser fáceis. O que
explicou em parte o surgimento do transporte marítimo pelas Barcas de Botafogo ao
Paço (atual Praça XV), em 1843. Nesse momento o acesso terrestre estava dificultado,
agora, não só pelas inconstantes estruturais do ambiente biofísico. E sim, pelo contexto
sócio político270.
Segundo o decreto 111 de 20 de dezembro de 1841, o governo imperial aprovou
a cobrança de taxas de passagem na Estrada de Botafogo por uma empresa particular. A
267
SOBRAGY, Bento José Ribeiro. Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas. In: PAULA
SOUSA, Relatório do Ministério da Agricultura, op. cit.
268
SOBRAGY, Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas, 1866.
269
SOUZA DANTAS, Manoel Pinto de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das
Obras Públicas do ano de 1867. Rio de Janeiro: Typographia do Diario do Rio de Janeiro, 1868.
270
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, op. cit.
97
mesma companhia, que havia realizado obras de melhoramentos na referida estrada dois
anos antes, teve a autorização oficial de estabelecer uma barreira junto à ponte do
Catete. Podendo construir outra no extremo oposto “se para o futuro assim o julgar
conveniente”. As pessoas com seus animais e suas cargas que se recusassem a pagar,
teriam seu direito de transito impedido. O apoio do governo imperial foi mais extenso
do que isso. Segundo o mesmo decreto, o governo se encarregaria de deslocar a força
armada necessária (Guarda Nacional ou Exército) “para dar auxílio aos cobradores das
taxas” e assegurar o sossego local. A contrapartida da empresa seria a construção de
casas para alojar os referidos soldados. A taxa por animal de carga (com ou sem ela) era
de 40 réis por eixo fixo e 80 réis por eixo móvel271. O privilégio, que era de 30 anos, se
manteve até 1865, quando o ministro da Agricultura, Antonio Francisco de Paula Souza,
criticou o abandono da conservação da estrada – também de responsabilidade da
empresa. Paula Souza afirmava que “era inútil esperar coisa alguma de uma empresa
que só tratava de auferir vantagens sem cuidar de satisfazer aos compromissos que
obrigara”272. Após contato com os Conselheiros do Império, através do parecer Seção
dos Negócios Império, o decreto foi revogado e a estrada passou a ser responsabilidade
da Câmara Municipal273.
271
Decreto 111 de 20 de dezembro de 1841: Approva o Regulamento para a cobrança das taxas de
passagem na Estrada de Botafogo.
272
PAULA SOUSA, Relatório do Ministério da Agricultura, 1866, p. 109.
273
PAULA SOUSA, Relatório do Ministério da Agricultura, 1866.
98
Maracanã. Pequenas contribuições de 4$000274 a 20$000 réis estavam ao lado de
grandes aportes de dinheiro de 100$000 réis. Infelizmente, a demora na arrecadação do
dinheiro muitas vezes significava maior exposição às intempéries, como as inundações
que destruíam as obras paradas275.
99
Os trâmites de arrematação, como o conserto de duas pontes no Engenho Velho,
ocorriam da seguinte forma. A Diretoria das Obras Municipais tornava público o
interesse pela obra através de jornais, apontando as especificações técnicas e uma data
para o recebimento de propostas de orçamento. Os orçamentos eram analisados quanto
ao custo e durabilidade da construção. Em 1854, a Câmara Municipal requisitou o
levantamento de orçamentos para conserto numa ponte no rio Maracanã e outra no
Macaco (possivelmente o rio Joana). A primeira, de madeira, necessitava de
substituição de vigas e pranchões que eram de madeira de lei. Para a segunda, também
de madeira, porém num estado precário, foi necessário substituir o estrado de madeira
por um arco de tijolo de 3 palmos (quase 1m) de espessura. O engenheiro do 2º distrito
da referida freguesia, Pedro Lima, apresentou seu parecer sobre cada uma das propostas
para tal ponte. Para a ponte do Macaco, a primeira proposta foi orçada em 418$000 réis
e a segunda em 500$000. Já para a ponte no rio Maracanã, o orçamento foi de
1:171$500 e 2:000$000 respectivamente279. A proposta de maior aptidão técnica e
menor custo era a escolhida por esse e tantos outros engenheiros nas diversas freguesias.
Conforme o material edificado poderia ter uma maior ou menor durabilidade, ele
teria, consequentemente, uma maior ou menor necessidade de manutenção. Por vezes,
conforme os elevados preços dos concorrentes, nenhum lance proposto pelos
arrematantes era recebido. A demora na resolução de problemas locais motivou a
iniciativa de moradores, como no caso de uma ponte na freguesia de São Cristóvão.
Emílio da Veiga orçou o conserto de uma ponte de madeira, para a praia de São
Cristóvão, em menos de cem mil réis (97$200)280. Oito anos depois, o diretor de Obras
Municipais, José Justino d‟Alcantara, escrevia a Câmara Municipal que esta edificação
estava arruinada. No entanto, quando recebeu a ordem de substituir por um pontilhão de
pedra, “já se achava concluído o conserto que ali mandei fazer”281.
279
Ofícios do engenheiro do 2º distrito da freguesia do Engenho Velho, Pedro Lima, a Câmara Municipal
de 15 de Julho de 1854 e 12 de Agosto de 1854. AGCRJ 47.3.58. Série Pontes. CM. PDF. CI. Pontes
sobre o rio Maracanã (1833-1899). 88ff.
280
Orçamento de Amaro Emílio da Veiga a Camara Municipal, no dia 07 de Outubro de 1843. AGCRJ
47.3.55. Fundo Câmara Municipal. Série Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho Velho (1832-1904).
130 ff.
281
Doc do Diretor das Obras Municipais, José Justino d‟Alcantara, a Camara Municipal, 27 de novembro
de 1851. AGCRJ 47.3.55. Fundo Câmara Municipal. Série Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho
Velho (1832-1904). 130 ff.
100
Os moradores locais muitas vezes não esperavam a iniciativa da Câmara
Municipal para a construção de pontes e pontilhões282. Enquanto uns reclamavam na
Municipalidade com pedidos e abaixo-assinados, outros edificaram toscos pontilhões e
pontes de madeira e aterro que eram constantemente derrubadas pela força do rio.
Conforme se deu o conserto das pontes de madeira da rua Catumby no ano de 1844, em
que Emílio da Veiga rejeitara todas as propostas283. Assim, como neste caso, meses ou
anos passavam até a intervenção municipal na infraestrutura das vias urbanas. Pois em
1847, quando Veiga observou que a deterioração dos pontilhões da rua Catumby
privavam o trânsito das pessoas, solicitou autorização de 200$000 réis284.
282
Pontilhões são pontes menores, geralmente para a passagem de pedestres ou pequenas carruagens.
283
Ofício do Diretor das Obras Municipais, Amaro Emílio da Veiga a Camara, 17 de dezembro de 1844.
AGCRJ 47.3.55. Fundo Câmara Municipal. Série Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho Velho (1832-
1904). 130 ff.
284
Ofício do Diretor das Obras Municipais, Amaro Emílio da Veiga, a Camara, 31 de agosto de 1847.
AGCRJ 47.3.55. Fundo Câmara Municipal. Série Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho Velho (1832-
1904). 130 ff.
285
Pedido de 09 de Dezembro de 1852, de Izidro Borges Monteiro a Câmara Municipal. AGCRJ 47.3.55.
Fundo Câmara Municipal. Série Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho Velho (1832-1904). 130 ff.
101
largura (12m) e obrigava os proprietários a conservar os caminhos da água (valas,
bueiros e afins) livres e desembaraçados286.
A rua São Francisco Xavier, onde se localiza a igreja de mesmo nome, cruzava
os principais eixos viários que ligavam o centro urbano aos subúrbios do Engenho
Velho e Andarahy Grande (rua Nova do Imperador, atual Mariz e Barros; Caminho do
Andarahy Pequeno, atual Conde de Bonfim), assim como cortava os rios que
delinearam tais eixos (Joana, Maracanã e Trapicheiros). A quantidade de rios significou
mais pontes, inclusive nos pequenos braços de rios como o da rua do Souto (atual
Senador Furtado), cuja ponte necessitou de exames em 1860, pois carecia de consertos
urgentes (orçados em 700$000 réis)290. No pontilhão sobre o rio Trapicheiro, na porção
mais próxima das montanhas da referida rua, foi feito um exame em 1862 pelo diretor
de Obras Municipais, Manoel da Cunha Galvão. Tal edificação represava as águas em
286
Edital de 29 de abril de 1854: dos arruamentos em diversas freguesias. In: MORAES FILHO, Código
de Posturas, 1894.
287
Documento de Zeferino José da Roza a Camara Municipal, 26 de novembro de 1853. AGCRJ 47.3.55.
Fundo Câmara Municipal. Série Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho Velho (1832-1904). 130 ff.
288
Documento de Zeferino José da Roza à Camara Municipal, de 24 de fevereiro de 1854. AGCRJ
47.3.55. Fundo Câmara Municipal. Série Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho Velho (1832-1904).
130 ff.
289
Ofício do Diretor do 2º Distrito, Pedro Macedo Lima, à Camara Municipal, de 15 de julho de 1854.
AGCRJ 47.3.58. Série Pontes. CM. PDF. CI. Pontes sobre o rio Maracanã (1833-1899). 88ff.
290
Ofício de Pedro Macedo Lima, diretor de obras municipais, à Camara, 09 de outubro de 1860. AGCRJ
47.3.55. Fundo Câmara Municipal. Série Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho Velho (1832-1904).
130 ff.
102
dias de fortes chuvas e causava prejuízo aos moradores. As águas, ao tatearem novo
leito, abriam novos caminhos na própria via e criavam valas naturais291.
A imposição das vontades humanas muitas vezes gerou resistências por parte das
forças fluviais. Novas obras, grandes planejamentos e novas imposições marcaram as
intervenções de muros e paredes de contenção. Na próxima seção, veremos essas e
outras edificações no leito dos rios e como derivou em novas consequências na
socionatureza fluvial do médio e baixo curso.
291
Ofício do Diretor das Obras Municipais a Camara Municipal, de 27 de fevereiro de 1862. AGCRJ
47.3.55. Fundo Câmara Municipal. Série Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho Velho (1832-1904).
130 ff.
103
cariocas – extraídos de caieiras e/ou antigos sambaquis como nas ilhas da Baía de
Guanabara – assim como as madeiras para vigas292.
O relatório da Inspetoria Geral de Obras Públicas para o ano de 1860 aponta
algumas dessas obras que indicam tais anseios pelo controle. Para as estradas e pontes
foram necessárias muralhas. Ao todo, mais de dez obras de muros de contenção foram
efetuadas, sendo sete destas no alto curso: uma na estrada da Tijuca, duas no rio
Maracanã, uma no Andarahy Pequeno, uma para assegurar o caminho do Aqueduto da
Carioca, uma no rio Cachoeira (perto da atual comunidade da Formiga na Usina), e dois
na ponte que havia sido recentemente construída na Cova da Onça (no Catumby) 293. A
especificidade das obras no alto curso, com dificuldades topográficas de construção e
transporte de materiais, refletiu também na reincidência de engenheiros que fechavam
contratos com o governo imperial. Como Henrique Clark que refez duas muralhas
destruídas pelas águas de março, por quatro contos de réis cada: uma na ponte da
Cachoeira, abatida por um temporal em 22 de Março de 1862, e outra no Andarahy
Pequeno, também comprometida por fortes chuvas exatamente um ano antes – sendo
fiador do contrato o dr Thomaz Cochrane294.
Para o médio curso e baixo curso, o ambiente biofísico era mais propício ao
assoreamento dos rios, em vez dos deslizamentos de encostas comuns no alto curso. A
causa era tanto derivada de fatores espontâneos (como, por exemplo, a erosão resultante
de fortes chuvas), ou de fatores premeditados (como, por exemplo, as obras inacabadas,
os aterros mal feitos e a má contenção das encostas). Desta forma, havia um esforço
constante em desobstruir o fundo e as margens dos rios para um melhor escoamento das
águas. Devido à proximidade florestal, a constante chegada de sementes de espécies
vegetais, consideradas indesejadas, era bastante comum nesta seção dos rios. Ou seja, o
assoreamento e a chegada de sementes transformaram os rios urbanos ao longo do
médio curso. Inicialmente, os poucos capinzais deram lugar a pequenos arbustos.
Alguns moradores aproveitavam o espaço “extra” em suas chácaras e plantavam no
próprio rio. Outros simplesmente jogavam o lixo de suas casas no corpo d‟água, na
esperança de serem levados na próxima chuva.
292
AMADOR, Elmo. Baía de Guanabara e ecossistemas periféricos: homem e natureza. Tese de
Doutorado submetida ao PPG em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996.
293
GALVÃO, Manoel da Cunha. Relatório do Diretor das Obras Públicas e Navegação. Anexo G In:
SOUZA E MELLO, Manoel Felizardo de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das
Obras Públicas do ano de 1860. Rio de Janeiro: Typographia Universal Laemmert, 1861.
294
SOUZA E MELLO, Relatório do Ministério da Agricultura, 1862.
104
Durante sua história, a Câmara Municipal recebia frequentes pedidos e
reclamações sobre a obstrução dos rios. Para a limpeza de valas e rios, a Câmara
despendia com cada trabalhador uma diária de 640 réis. Na presença de um bom ano
fiscal e dos trabalhos dos fiscais, a própria municipalidade se encarregava da limpeza,
sem a necessidade de reclamações por parte dos moradores. Para isso, a Casa contava
com uma verba de aterros e desmoronamentos. Utilizada para o pagamento das diárias
dos trabalhadores e do material empregado na obra. O fiscal da freguesia apresentava a
documentação relativa às compras e requisitava autorização a algum vereador295.
No entanto, houve momentos diversos em que, mesmo nas proximidades do
palácio imperial, o descaso municipal suscitou reclamações. Em 1839, os moradores do
Campo de São Cristóvão reclamaram da falta de limpeza do rio do Macaco (rio Joana).
Segundo o próprio Mordomo da Casa Imperial, era preciso realizar um açude na divisão
do rio e rebaixar o leito próximo a Ponte do Aguiar para o livre trânsito das águas.
Opinião com a qual o engenheiro municipal concordou em seu ofício296.
O mais comum era a intervenção fluvial por parte de outros moradores, levando
outros suplicantes a escreverem para Câmara para a realização de justiça. Este foi o caso
de Alexandre Moreira Alves, que em 1845 reclamava da maneira que seus vizinhos
interagiam com um riacho no Catumby. Segundo ele, dois vizinhos seus jogavam lixo
no corpo d‟água, “fazendo nele tapagens, e entupimentos que se tornam gravosos ao
suplicante”. Com a nova dinâmica fluvial, a força das águas escavava a margem de sua
chácara, diminuindo assim o seu terreno297.
Por vezes, os obstáculos eram diretamente derivados de consequências de
atividades humanas. A falta de manutenção de pontes e muralhas, somado à constante
resistência fluvial, causaram o desmoronamento dessas estruturas ao longo do leito dos
rios cariocas. Nestes casos, os moradores suplicavam ao poder municipal, através do
fiscal de freguesia. Não era estranho que ocorressem constantes reclamações, já que a
Câmara muitas vezes demorava a atender alguns pedidos. Por exemplo, Antônio José
Leite Guimarães reclamou em 1842 para o fiscal da freguesia da Glória, Manoel
295
Ofício do Fiscal da Freguesia do Engenho Velho, João José Canto Castro e Mascarenhas, a Camara
Municipal, de 25 de novembro de 1845. BR AGCRJ 49.4.79 Rios da Cidade do Rio de Janeiro: obras,
melhoramento e limpeza. 1841-1846.
296
Ofício de Joaquim José de M? a Camara Municipal, de 25 de janeiro de 1839. BR AGCRJ 49.4.77
Rios da Cidade do Rio de Janeiro: Reclamação dos moradores do campo de São Cristóvão 1838-1839.
297
Requerimento de Alexandre Moreira Alves, à Camara Municipal, de 01 de julho de 1845. BR AGCRJ
49.4.80 Rios da cidade do Rio de Janeiro e do município: Catumby, dos Coqueiros, Comprido e outros da
freguesia do Espírito Santo – 1844 a 1892.
105
Joaquim Ferreira Simoens, sobre um pedaço da muralha que caíra após grandes
enchentes. Essa muralha havia sido construída por ele mesmo, com autorização da
Câmara Municipal. O pedido de manutenção, no entanto, já havia sido feito meses
antes, sem sucesso. Aos poucos, as águas do rio Carioca removiam os sedimentos por
baixo da referida muralha. E com o tempo, a ruína duplicou de tamanho, quase
comprometendo a Bica da Rainha, que era ao lado de sua propriedade298. Seu vizinho do
outro lado do rio, Manoel José de Souza, também tinha parte de sua muralha prestes a
ruir. Buscando uma solução boa para ambos os lados, propôs, através do fiscal, que a
Câmara construísse uma laje no fundo do rio, próximo aos dois vizinhos, para sustentar
os alicerces das muralhas299. O fiscal, talvez por falta de interesse ou de conhecimento
técnico, interpretou que tal melhoramento era de pouca utilidade300.
O rio Carioca nasce na face sudoeste da Serra das Paineiras, recebendo em seu
percurso as águas de outros rios como o Silvestre e o Lagoinha (todos no alto curso).
Depois das alturas, ele desce pelo vale das Laranjeiras, passando por Cosme Velho,
Laranjeiras, Catete e até seu fim na praia do Flamengo301. Ao longo da trajetória do
médio e baixo curso, o Carioca, e tantos outros rios desta cidade, vivenciou
modificações estruturais em suas margens que tornou cada vez mais urgente a
contenção de suas encostas. O trecho do rio que percorria o Cosme Velho, também foi
resultado de disputas pela construção de muralhas de contenção. Em 1847, João
Augusto Ferreira de Almeida terminou tal trecho, sendo remunerado em 1:190$000 réis,
metade do orçamento inicialmente previsto para esta obra302. Após tais empreitadas,
cabia ao Diretor de Obras da Câmara Municipal, ou outro engenheiro da instituição,
averiguar a qualidade da edificação. Neste caso, 20 braças (44 metros) de muralhas e o
escoamento das águas das chuvas303.
298
Ofício do Fiscal da Freguesia à Câmara Municipal, de 16 de abril de 1842. AGCRJ 49.4.75 Rios
Carioca, Catete, Caboclas e Laranjeiras. 1830-1894.
299
Ofício do Fiscal da Freguesia à Câmara Municipal, de 04 de junho de 1842. AGCRJ 49.4.75 Rios
Carioca, Catete, Caboclas e Laranjeiras. 1830-1894.
300
Ofício de Manoel Joaquim Ferreira Simoens, Fiscal da Freguesia da Glória, à Camara Municipal 11 de
junho de 1842. AGCRJ 49.4.75 Rios Carioca, Catete, Caboclas e Laranjeiras. 1830-1894.
301
SCHEINER, Tereza Cristina Holeta. Ocupação humana no Parque Nacional da Tijuca: aspectos
gerais. Brasil Florestal, ano 7, nº 28, Outubro/Dezembro, p. 3-27, 1976.
302
Documento de João Augusto Ferreira de Almeida à Camara Municipal de 22 de setembro de 1847.
AGCRJ 49.4.81 Rios da Cidade do Rio de Janeiro: obras, melhoramentos e limpeza – 1847-1849
303
Ofício do Diretor de obras Amaro Emílio da Veiga, à Camara Municipal, de 29 de setembro de 1847.
AGCRJ 49.4.81 Rios da Cidade do Rio de Janeiro: obras, melhoramentos e limpeza – 1847-1849
106
No ano seguinte, outro trecho de contenção do rio Carioca foi construído.
Próximo à Bica da Rainha, outro vizinho de Antonio José Leite Guimarães mandou
construir uma muralha de pedra. A reclamação dele foi que a proposta de seu vizinho
Antonio Rodrigues Barboza deixaria pouca largura para o fluxo das águas em caso de
enchentes304. Nas documentações, outros 3 moradores vizinhos e contíguos ao rio
Carioca também solicitavam a construção de muros de contenção. O fiscal de freguesia
aconselhou que como as obras não eram de utilidade pública, deveriam ser pagas pelos
respectivos suplicantes305.
Anos mais tarde, quando a política de obras mudava lentamente para a
responsabilidade da Câmara, outro pedido de construção de muralhas por parte do
município neutro foi encaminhado. Antonio Dias Torres escrevera em 13 de Agosto de
1853, solicitando que a municipalidade procedesse no arruamento e sua demarcação
pois tinha interesse em fazer uma muralha para “cautelar as águas que por ocasiões de
chuvas alagam o terreno de sua chácara na rua das Laranjeiras nº 51”306. A Diretoria de
Obra, responde duas semanas depois, após averiguar localmente, que não permitiria
edificações “com probabilidade de sofrer alterações”. Embora reconhecesse que o
suplicante Torres estivesse, na realidade, fazendo um favor, só concedeu licença para
uma construção parcial. Segundo o pedido de Torres e o tamanho de sua chácara, era
necessário 80 braças (176 m) de muralha ao longo do rio Carioca. A licença foi de
apenas 25 braças (55 m), correspondente à extensão em que o rio era retilíneo. Enquanto
o restante do rio fazia “algumas voltas na frente da chácara”307.
Os meandros do rio Carioca seguiam uma lógica própria em relação a
espontaneidade das forças socionaturais. Os engenheiros precisavam superar essa lógica
pela imposição e controle, ou negociar, através do conhecimento topográfico e dinâmica
geomorfológica. Na visão reducionista do corpo técnico municipal e imperial, o
progresso material da cidade não tinha espaço para curvas de rios. Conforme a
304
Ofício Fiscal da Freguesia à Camara Municipal, de 18 de abril de 1848. AGCRJ CI RCRJ 49.4.75 Rios
Carioca, Catete, Caboclas e Laranjeiras. 1830-1894
305
Ofício do Fiscal da Freguesia à Câmara Municipal: Pedido de José Maria do Amaral, de 27 de abril de
1848. Ofício: pedido de Francisco José Pacheco, de 18 de agosto de 1848. Ofício do Fiscal da Freguesia a
Câmara Municipal: pedido de Manoel da Rocha Miranda, de 18 de agosto de 1848. BR AGCRJ 49.4.75
Rios Carioca, Catete, Caboclas e Laranjeiras. 1830-1894.
306
Documento de Antonio Dias Torres à Câmara Municipal, de 13 de agosto de 1853. AGCRJ 49.4.75
Rios Carioca, Catete, Caboclas e Laranjeiras. 1830-1894
307
Ofício da Diretoria de Obras Municipais à Câmara Municipal, de 30 de agosto de 1853. AGCRJ
49.4.75 Rios Carioca, Catete, Caboclas e Laranjeiras. 1830-1894.
107
inclinação diminui e os meandros se intensificam, os rios tendem a se tornar mais
assoreados. Manoel da Cunha Galvão, enquanto Diretor das Obras Municipais em 1853,
examinou o rio Carioca em sua extensão. Dizia ele que era “indispensável” desaterrar
esses sedimentos trazidos pelo rio. Nas proximidades de pontes, como a ponte do
Catete, os sedimentos e dejetos diversos são retidos pelas estruturas que sustentam a
edificação. Ao destinar 10 trabalhadores para desobstruir esta e outras seções do rio
Carioca, Galvão explicitou sua posição de dominação da socionatureza urbana. Para ele
o rio tem “causado” estragos e essa solução somente ocorrerá pela mão do homem
através da construção de muralhas para conter as margens308.
308
Ofício do Diretor de Obras Municipais, Manoel da Cunha Galvão, à Câmara Municipal, de 09 de
setembro de 1853. AGCRJ CI RCRJ 49.4.75 Rios Carioca, Catete, Caboclas e Laranjeiras.1830-1894
309
“Passing through the long street of Engenho Velho, which is lined with the residences of wealthy
families, each surrounded with its chacara or grounds, that glow with the fadeless verdure of mangeiras,
orange-groves, and palms, interspersed with flowers of the brightest hues, we reach the foot of the
mountain. Here are many picturesque villas, each having piazzas in front, and often approached by a large
stone gateway, where, in the evening, the family sit to amuse their listless hours by watching the passers-
by.” p 204. Cf. KIDDER, Daniel Parish & FLETCHER, James Cooley. Brazil and the Brazilians:
portrayed in historical perspective and different sketches. Philadelphia: Deacon & Peterson, 1857.
310
VALENTIM, Carlos Antonio. O Brasil e os brasileiros. Fides reformata, v. 15, n. 2, p. 97-107, 2010.
108
produtos que o centro urbano oferecia, e mantendo aspectos de um ambiente biofísico
comumente associado ao rural, como: a sistematização e o ordenamento das plantas de
interesse econômico, alimentar e/ou estético (hortas, pomares, jardins, e afins). Através
dos rios e seu entorno sociobiofísico, o subúrbio carioca mesclou aspectos urbanos e
rurais.
O campo e a cidade, segundo Raymond Williams311, possuem realidades
históricas variáveis em si mesmas e nas relações que mantém entre si. Contudo, o
ideário por trás destes termos tem significados que persistem localmente, e
simbolicamente. A cidade seria o motor civilizador, a centralidade do poder político e
econômico, e talvez por isso mesmo seja considerado como a fonte da corrupção moral.
O campo teria uma conotação de trabalho e inocência, e, como vimos sobre as florestas
anteriormente, de saúde e de lazer. Mesmo que em muitos casos as conotações acima
possam estar trocadas, as ideias e as imagens desse binômio urbano-rural se mantêm.
Esse contraste fez com que os citadinos relacionassem o campo com ares puros, com as
grandes casas de ilustres moradores, e não somente ao trabalho nas hortas e pomares
produtores de alimentos. Williams propôs, como uma opção retórica, a condição
humana de escolha insolúvel entre um materialismo necessário e uma humanidade
necessária. E dessa proposta compreender a divisão de trabalho e ócio, ou de sociedade
e indivíduo, ou cidade e campo, e também as casas urbanas e as campestres, a semana
de trabalho e os fins de semana. Os diretores do progresso, numa lógica semelhante,
dividiram de outra maneira, criando: a casa do campo, a chácara do subúrbio, a fazenda
na floresta. Propriedades e edificações dos “novos senhores da produção capitalista”
como formas sobreviventes e melhoradas do antigo mundo agrícola. Superando
localmente, em parte, a ideia, também arraigada, do rural como passado e da cidade
como futuro.
Os subúrbios cariocas de meados do século XIX ultrapassaram as barreiras
topográficas que dificilmente foram ocupadas em tempos anteriores: áreas alagadas,
morros, mangues e rios. Ambientes biofísicos de difícil edificação e de grandes
expressões espontâneas – espécies que interagem na socionatureza urbana sem o
consentimento humano. Conforme vimos na introdução, se estendermos a ótica da
ideologia de controle da espécie humana para outras espécies, vemos que os padrões de
negociação e de resistência também ocorrem. Nossas interações com a couve, o agrião,
311
WILLIAMS, Raymond. El campo y la ciudad. Buenos Aires: Paidós, 2001.
109
o milho, são totalmente diferentes das que temos com as pragas, o mato. Podemos
interpretar que existem vegetais que são escolhidos para coexistirem conosco – vegetais
desejados para usufruto humano na alimentação, roupas, medicina. Assim como há
também os indesejados – manifestações espontâneas de outras espécies que fogem do
controle humano. Nos rios cariocas, foram esses os indivíduos que brotaram no
sedimento assoreado, na rachadura da parede, ou nos leitos secos em épocas de poucas
chuvas. Os que precisavam ser eliminados.
Difícil determinar quando a urbanidade se destacou sobre a ruralidade,
principalmente nas recentes freguesias urbanas. Podemos pensar nos serviços urbanos
de distribuição de água, coleta de lixo e esgoto, iluminação, gás ou transporte. Em
relação ao último serviço vemos que na primeira metade do século XIX, algumas
freguesias fora da Cidade Velha já possuíam serviços de transporte coletivo de tração
animal: Engenho Velho, São Cristóvão312.
Por motivos práticos, que coincidem com o recorte temporal, utilizaremos um
critério governamental. A partir de 1850 todas as freguesias que compunham a área do
médio curso dos rios de nossa pesquisa já eram consideradas como suburbanas, e não
mais rurais: São Cristóvão, Engenho Velho, Glória e Lagoa. Henri Lefebvre em O
direito à cidade afirma que “a vida urbana penetra na vida camponesa despojando-a de
elementos tradicionais”313. Outra frase na mesma página desse texto, mais assertiva e
talvez até intensa, aponta relações similares: “Seja o que for, a cidade em expansão
ataca o campo, corrói-o, dissolve-o”314. Ambas as afirmações expressam o movimento
da cidade em direção ao campo, transformando-o. No entanto, há também processos de
transformação do campo que também se beneficiou dos serviços que a cidade
proporcionou.
No Rio de Janeiro do século XIX, o subúrbio era uma região de fronteira entre o
campo e a cidade. Sem o agito da intensa circulação de pessoas e mercadorias do centro.
Tampouco tinha a paisagem de grandes fazendas comum às freguesias de Jacarepaguá,
Campo Grande e Irajá. Segundo a clássica leitura de Lewis Mumford, A Cidade na
História, o subúrbio incorporaria as qualidades do campo de modo a reservar para
312
BERNARDES, Lysia M. C. Evolução da Paisagem Urbana do Rio de Janeiro até o início do século
XX. ABREU, Maurício de (org.). Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural,
Divisão de Editoração, 1992
313
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2001, p. 74
314
LEFEBVRE, O direito à cidade, op. cit.
110
membros de grupos privilegiados. Os privilégios e encantos dos subúrbios estavam
reservados para poucos. Segundo Mumford, o subúrbio foi uma maneira através da qual
a população urbana, em particular os mais endinheirados, redefiniu a casa de campo
como um espaço aristocrático de lazer e negócios. O movimento de retorno à natureza
do século XIX, com sua estética e psicologia, expressou-se em jardins, hortas e
pequenas lavouras. Desta forma, a domesticação da socionatureza tornou-se outro traço
em comum com a ruralidade. O gueto das elites esteve, durante décadas, limitado por
dificuldades de transporte. Somente os que tinham a possibilidade de possuir cavalos e
carruagens, além de contatos e dinheiro para a compra de uma propriedade, poderiam
usufruir dos subúrbios. O preconceito e o medo, sentimento comum às elites, foi o
motor para que muitos evitassem a área urbana e seus problemas ambientais e “morais”:
doenças, lixo, população negra escrava, pedintes, violência315.
Nas chácaras cariocas o manejo da socionatureza certamente não era realizado
diretamente pelos proprietários. Salvo alguns que tinham verdadeiro prazer nas
atividades de lavoura, a grande maioria era feita por negros escravizados. Conforme o
trabalho sobre escravidão urbana de Luis Carlos Soares, a presença de feitores também
foi um traço comum. Com a queda populacional de cativos urbanos no Rio de Janeiro
após eventos decorrentes do fim do tráfico negreiro em 1850, a presença de feitores
manteve-se de maneira mais tímida. Como em outras localidades, urbanas ou rurais,
muito proprietários empregavam escravos como seus feitores, economizando despesas e
perturbando ainda mais a lógica de dominação – onde um cativo é responsável pelos
trabalhos e castigos de outros cativos. Soares conta a história do escravo-feitor
Fortunato. Em 1832, tomou a decisão de espancar o escravo do proprietário vizinho,
pois havia conduzido animais para se alimentar e destruído assim bananeiras e pés de
café316.
Na primeira metade do século XIX a economia da sociedade brasileira não tinha
uma renda estável, aumentando a dívida pública externa. Ou seja, um momento em que
a municipalidade não tinha nem o poder político nem o poder financeiro. A ânsia
transformadora das vontades que regiam a cidade (presentes em seus governantes, suas
elites, etc.) esteve associada à dinâmica dos grupos sociais imbuídos de capital
financeiro e simbólico. No artigo 47 da lei que criou as Câmara Municipais de 01 de
315
MUMFORD, Lewis. La Ciudad en la historia: Sus Orígenes, Transformaciones y Perspectivas.
Logroño: Pepitas de Calabaza, 2012.
316
SOARES, O “povo de cam” na capital do Brasil, op. cit.
111
outubro de 1828 ficou permitido as empreitadas para as obras públicas e serviços
urbanos, para nacionais e estrangeiros317. Já o capital político do poder municipal se
transformou em 1834 com o Ato Adicional que separou a cidade da Província
fluminense, transformando-a em um Município Neutro. Diferente dos poderes
municipais republicanos, a partir de 1839 a Câmara Municipal passou a orientar todas
as obras públicas. Um misto de poder executivo com legislativo, que na década de 1830
desenvolveram-se uma série de regras municipais chamadas de Código de Posturas318.
O processo de autonomia e municipalização representado pelas mudanças na Câmara
esteve ligado também à consolidação de elites urbanas e ao próprio crescimento da
cidade.
O Código de Posturas Municipais da corte brasileira319 indicava que havia
transformações urbanas na cidade do Rio de Janeiro. O ordenamento da vida humana
pelas regras da Câmara Municipal sustentava uma multilateralidade na modificação da
socionatureza local. Talvez pela falta de poder econômico ou político, ou pela simples
falta de interesse em direcionar verbas para alguns serviços, a Câmara municipal
convidava, permitia, e às vezes até impunha, que particulares realizassem modificações
e manutenções nos espaços coletivos públicos. Alguns parágrafos do Título V – sobre
estradas, caminhos, plantações de árvores e extinção de formiga – da seção primeira,
ilustram essa relação entre a Câmara e moradores locais na transformação da
socionatureza do médio curso, ou seja, o subúrbio carioca. Conforme o §3º, os
proprietários eram “obrigados a consertar e trazer sempre limpa suas testadas, dando
esgotos às águas, e desassombrando o caminho onde preciso for”, enquanto não for
providenciado a largura ideal para as estradas320. O tímido, porém crescente, aumento
da circulação de pessoas pelos arrabaldes cariocas foi responsável pelo ordenamento
dos tipos de plantas que poderiam existir próximo ao transito público. De modo a não
machucar os transeuntes, o §6º afirmava que as cercas de espinhos deveriam ser viradas
para dentro da propriedade da chácara ou fazenda. Através de um prêmio anual da
Câmara Municipal de 10$000 réis, o §8º incentivava o plantio nas testadas das casas de
árvores de rápido crescimento como figueiras (Ficus sp.), fruta-pão (Artocarpus incisa)
317
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, 2006.
318
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, op. cit.
319
MORAES FILHO, Alexandre José de Mello. Código de Posturas: leis, decretos, editais e resoluções
da Intendência Municipal do Districto Federal. Rio de Janeiro: Papelaria e Typographia Mont‟Alverne,
1894.
320
MORAES FILHO, Código de posturas, op. cit., p. 26.
112
e anda-açú (Joannesia sp.). O prêmio podia ser acumulado com mais de uma planta se
cada um fosse maior do que quatro palmos de comprido (pouco menos de 1 metro)
espaçado de 3 braças (6,6m) de outras plantas. Nota-se nesses parágrafos que para
designar quem plantava foi utilizado o termo „lavrador‟, uma ocupação essencialmente
agrícola.
Além de incentivar o plantio, as regras também inibiam a danificação ou morte
destas árvores através do §10º que multava em 30$000 réis e condenava a 8 dias de
prisão, e do misterioso § 7º que proibia o corte de árvores nas estradas que não
possuíssem terrenos argilosos. Os interessados no corte para madeira ou lenha
precisariam buscar em locais mais distantes como nas montanhas. A manutenção da
vida vegetal ia além do manejo direto das plantas, o §12º obrigava os proprietários ou
arrendatários de chácaras, sítios ou fazendas a extinguir os formigueiros de formigas
carregadeiras, ou saúvas (Atta sp.). Dessa maneira, protegia indiretamente as árvores
que cresciam nos subúrbios.
O poder municipal crescia conforme aumentava a renda e tributação das
atividades econômicas e da população da cidade. A maturação da municipalidade
propiciou que Roberto Jorge Haddock Lobo realizasse pesquisas demográficas sobre a
cidade do Rio de Janeiro. Formado em medicina pela Academia de Medicina em 1842,
realizou seus primeiros estudos estatísticos sobre a mortalidade da cidade nos anos
1840. Por aviso de 12 de fevereiro de 1849, recebeu ordens do Ministro da Justiça,
Eusébio de Queiroz Matoso Câmara, para desenvolver o primeiro recenseamento do Rio
de Janeiro321. O documento foi publicado no Jornal do Commercio322 e, parcialmente,
no Almanak Laemmert323. Do total de 266.466 pessoas na cidade do Rio de Janeiro,
205.906 moravam nas freguesias urbanas. Destas selecionamos as que faziam parte dos
subúrbios, embora Haddock Lobo tenha separado apenas em freguesias de dentro e de
fora da cidade. Segue transcrição de parte da tabela, referente às freguesias suburbanas.
321
NORONHA SANTOS, Francisco Agenor de. Haddock Lobo. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Tomo 76, parte 1, p. 275-283, 1913.
322
HADDOCK LOBO, Roberto Jorge. Recenseamento da população do Rio de Janeiro: considerações
gerais sobre as vantagens e utilidade da estatística. Jornal do Commercio, ano XXV, n. 346, p. 3-4, 18 de
Dezembro de 1850.
323
HADDOCK LOBO, Roberto Jorge. Recenseamento da população do Rio de Janeiro: considerações
gerais sobre as vantagens e utilidade da estatística. In: LAEMMERT, Eduardo. Almanak Administrativo,
Mercantil e Industrial da corte e província do Rio de Janeiro para o ano de 1851. Rio de Janeiro,
Eduardo e Henrique Laemmert, 1851.
113
Freguesias suburbanas Livre Liberta Escrava Total "Casas"324
Santana 23.190 2.687 12.840 38.717 4.352
Engenho Velho 9.758 1.367 9.759 20.884 2.386
Glória 8.168 723 6.779 15.670 1.461
Lagoa 6.312 504 4.061 10.877 981
Total subúrbio 47.428 5.281 33.439 86.148 9.180
Total freguesias urbanas 116.319 10.732 78.855 205.906 21.694
Tabela 5: População das freguesias suburbanas da cidade do Rio de Janeiro para o ano de 1849, segundo
recenseamento de Haddock Lobo (FONTE: HADDOCK LOBO, Recenseamento da população, 1850.
O médio curso dos rios cariocas foi apropriado tanto pela ruralidade quanto pela
urbanidade da população humana do Rio de Janeiro. A idealização de uma paisagem
fluvial domesticada acarretou em mais desvios, represamentos e açudes. Enquanto o
poder estatal mantinha-se limitado por falta de verba, os proprietários locais repensavam
novas maneiras de se relacionar com os rios. Adiante veremos como o crescente embate
fluvial entre o Estado e a população local forneceu meios para compreender melhor um
pouco mais das relações entre humanos e não-humanos indesejados presentes nas
lavouras e criação de animais dos subúrbios cariocas.
324
Chamei de casas, o que Haddock Lobo chamou de fogos. Uma terminologia estratégica para contagem
de casas, já que os membros de um lar costumam comer e se abrigar ao redor de um fogo.
114
Em 1830, duas chácaras vizinhas no Andarahy usufruíam do rio Joana para suas
lavouras. Francisco de Araújo Landim, proprietário de uma chácara que atravessava a
estrada do Engenho Novo para o Andarahy – atual rua Barão do Bom Retiro –, alegou
prejuízo em suas lavouras que eram inundadas pelas águas de sua vizinha. A
proprietária da chácara ao lado, dona Rosa, havia represado as águas para proveito
pessoal desse desvio do rio. A partir da reclamação de Francisco, Manoel Joaquim
Serrão intimou-a para abrir o rio para “as águas reencaminharem ao seu antigo
estado”325. Curiosamente, mesmo com o menor alcance do poder da Municipalidade,
este caso resolveu-se de maneira bem rápida. O que não ocorreu em outros momentos e
outras localidades.
Com a consolidação do poder municipal e da criação das posturas, pode-se
desenvolver um corpo de engenheiros que ordenava a cidade – Diretoria de Obras da
Câmara. Além de simbolizar a vontade política no desenvolvimento das Obras Públicas
urbanas, esses processos asseguravam a manutenção e o manejo da estrutura urbana já
construída326.
Na Freguesia de Santana, duas chácaras pelejavam por intervenções fluviais
decorridas de transtornos de inundações. Em pedido de 21 de Junho de 1844 a Câmara
Municipal, Manoel Gonçalves Cruz reclamava que a mesma havia autorizado o desvio
do rio Catumby para favorecer Francisco de Souza Motta. Na realidade, o favorecido
Motta prejudicava-se pelos usos que Gonçalves Cruz fazia desse rio. Amaro Emílio da
Veiga, engenheiro da Diretoria das Obras Municipais que visitou o local uma semana
depois, relatou o caso em documento a Câmara. Segundo ele havia na chácara de Cruz
uma represa de pedra e cal, e outras intervenções fluviais, que havia estreitado
consideravelmente as margens e levantado bastante o leito do rio. Conforme o mesmo
Cruz afirmou, a posse da chácara e suas transformações foram parte de sua história e de
seus antepassados desde tempos imemoriais. Emílio da Veiga, acompanhado do fiscal
da freguesia, relatou que as águas do rio Catumby desciam sem obstruções até chegar a
chácara de Cruz. Mudanças estruturais, incidentais ou não, nas margens e no leito do
rio, causaram inundações sobre as quais Motta havia se queixado meses antes. Para
resolver o problema propõe a Câmara duas soluções: a primeira é obrigar Gonçalves
Cruz a desmanchar tais represas, aprofundar o leito, alargar as margens e ter sempre
325
Reclamação de Francisco de Araújo Landim à Câmara Municipal, 1830. AGCRJ 45.1.51 – Rios da
cidade do Rio de Janeiro e Inundações.
326
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, 2006.
115
limpo o rio; a segunda era aceitar a proposta de Motta e desviar o rio. No mês seguinte,
a Câmara solicitava ao Procurador que intimasse a Manoel Gonçalvez Cruz para
destruir as represas e realizar as modificações necessárias. No entanto, este preferiu
solicitar a visita de um Fiscal, que já estava presente quando o engenheiro Emílio da
Veiga visitara. Segundo o Procurador, a ideia era evitar um moroso pleito e utilizar as
posturas municipais para tal, como o §5º Título 7: os moradores de chácaras devem
deixar as valas limpas.
A contenda fluvial entre Cruz e Motta ressaltou também a persistência e
resistência do clássico poder de formação acadêmica jurídica frente ao crescente poder
dos diplomas de engenharia327. No final das contas, o Fiscal voltou ao local em agosto
para que Cruz limpasse as valas e destruísse as represas em 30 dias, mas encontrou
esses pedidos já executados. O que se mantém ainda no mês de setembro, quando
Emílio da Veiga retornou mais uma vez. Para não perder o usufruto do rio em seu
terreno, que seria desviado para atender Motta, Manoel Gonçalves Cruz optou por
suprimir seus usos tradicionais328. Contudo, não foi apontado se o alargamento das
margens e o aprofundamento do rio foi efetuado conforme as recomendações iniciais.
O amadurecimento do poder político da Câmara Municipal pode ser
compreendido em outra contenda fluvial, agora no suposto rio Catete329, no atual bairro
de mesmo nome. O diálogo de Domingos Alves Ferreira Leite com o poder municipal
iniciou em 1849, quando a Câmara mandou destruir em 26 de fevereiro uma muralha
que ele havia construído junto a margem deste rio. Com a reclamação de Ferreira Leite
em 06 de Março, o Presidente da Câmara Municipal, Francisco de Carvalho Moreira,
imbuído de determinação escreveu para o Fiscal da Freguesia da Glória em 28 de abril
que “nenhuma providência” poderia tomar sobre esta questão e de que seria
inconveniente que mandasse dar um alinhamento geral para edificações, marcando a
largura do rio. Embora houvesse uma atitude empoderada de não fazer nada após a
Câmara Municipal ter demolido a muralha de Ferreira Leite, o representante do poder
327
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política. Teatro das Sombras: a política
imperial. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2010. HERSCHMANN, Micael; KROPF, Simone;
NUNES, Clarice. Missionários do Progresso: médicos, engenheiros e educadores no Rio de Janeiro,
1870-1937. Rio de Janeiro: Diadorim, 1996.
328
Requerimento de Manoel Gonçalves Cruz à Câmara Municipal, de 21 de junho de 1844. AGCRJ
49.4.80, Rios da cidade do Rio de Janeiro e do município: Catumby, Coqueiros, Comprido e outros.
329
O que foi denominado de rio Catete foi um braço do rio Carioca. Em vez de ter sua foz na Praia do
Flamengo, desembocava na Praia do Russell, ao lado. Com as obras da Avenida Beira Mar no início do
século XX, foi completamente aterrado.
116
municipal afirmava não querer causar “inconveniente” no ordenamento do uso da
socionatureza fluvial.
Diferentemente dos moradores do local, que segundo o diretor de Obras Públicas
afirmou ser um caso de ressentimentos particulares. Em 14 de agosto os quatro
representantes da família Valdetaro e Ferreira Leite solicitam a demarcação do
alinhamento do rio para a construção de um baldrame para segurar as terras. Após visita
do engenheiro de Obras Públicas, Amaro Emílio da Veiga em 19 de novembro, a
delimitação teve como baliza os arcos que existem por baixo dos muros divisórios que
também servia como ponte.
O curioso foi que outros proprietários que tinham esse corpo de água aos fundos
de seus terrenos interagiam com ele construindo rampas, pontes e telheiros, conforme
levantamento do fiscal Bernardo José de Souza, de 10 de outubro de 1849. Segundo ele,
3 telheiros e algumas pontes estavam presentes, mas haviam edificações maiores –
como a grande ponte de pedra e cal na chácara dos Valdetaros que comunicava-se com
outro terreno, na praia do Flamengo. Meses mais tarde, Domingues Ferreira Leite
novamente entrou com recurso escrevendo ao vereador Francisco José Gonçalves,
afirmando que muitas destas propriedades estorvam o curso das águas. Embora
comente, não associou grande ponte dos Valdetaros, e sim um telheiro do Manoel José
Rabelo que estaria tomando todo o leito do rio. A nova direção das Obras Públicas, a
cargo de, Job Justino d‟Alcantara, resolveu a contenda de maneira assertiva.
Primeiramente, Job reconheceu que o que era denominado rio Catete era um aqueduto
feito por diferentes proprietários, “que do contrário elas se iriam deitar ao mar pelo leito
natural do rio”330. A obra de 1000 braças e 4 palmos de largo tinha licença municipal, e
juntava com um açude. Sobre a demolição da muralha construída por Ferreira Leite e
demolida pela Câmara:
330
Ofício de 30 de Julho de 1850 de Job Justino d‟Alcantara a Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, códice 49.4.75 – Rios Carioca, Catete, Caboclas e
Laranjeiras 1830-1894.
331
Idem
117
A dinâmica de interação entre grupos distintos no espaço fluvial urbano nem
sempre foi de conflitos. Muitas vezes negociações ou prestação de favores e serviços
ditaram o tom dos acontecimentos. Em 1850, a Ordem 3ª de São Francisco cedeu parte
de seu terreno na freguesia de Santana para a construção de uma praça. O ainda sinuoso
rio Catumbi passava ao lado do que era parte do cemitério deles. Preocupados com o
comportamento fluvial e as posturas municipais, a Ordem solicitou “emparedar o rio, e
cobrir com lajes, deixando espaço suficiente para esgoto das águas”332. Porém, por ser
uma tese em história, com documentos históricos, vemos que nossas fontes (geralmente
as oficiais do Estado) sempre nos indicam os conflitos que foram documentados. O que
não gerou problemas, dificilmente seria registrado nos arquivos municipais.
Uma das possibilidades de não gerar problemas nas modificações fluviais era
simplesmente não modificá-los ou realizar transformações lentas durante anos. As
lavadeiras cariocas, por exemplo, comumente aparecem na cena urbana de cortiços ou
estendendo as roupas em espaço público. E muitas vezes foram perseguidas no seu
ofício, em vez de terem um respaldo da municipalidade em elaborar lavanderias
públicas ou espaços para que essas mulheres pudessem trabalhar. No caso de estender
roupas, o edital de 17 de abril de 1866 proibia que elas pendurassem as roupas nas
árvores do Campo da Aclamação, seja de maneira direta, ou indiretamente através de
cordas. Nos subúrbios, os rios foram utilizados diretamente para a atividade. Segundo
os relatos dos estadunidenses Kidder e Fletcher,
332
Documento da Ordem Terceira de São Francisco para a Camara Municipal em 1850. Códice BR
RJAGCRJ 49.4.95 – Rios e Riachos: Catumbi, Coqueiros, Maracanã, Trapicheiros, Joanna, Andarahy,
Comprido e outros de menor curso e volume d‟água.
333
Tradução minha de: A shallow but limpid brook gurgles along a wide and deep ravine, lying between
two precipitous spurs of the Corcovado Mountain. Passing up its banks, you see scores of lavandeiras, or
washerwomen, standing in the stream and beating their clothes upon the boulders of rock which lie
scattered along the bottom. Many of these washerwomen go from the city early in the morning, carrying
their huge bundles of soiled linen on their heads, and at evening return with them, purified in the stream
and bleached in the sun. Fires are smoking in various places, where they cook their meals; and groups of
118
No vale do rio Berquó, na freguesia da Lagoa (no atual bairro de Botafogo)
muitas modificações em seu leito acarretaram consequências bem desagradáveis aos
moradores. Em fevereiro de 1851, o dito cidadão, Alexandre Reid 334, morador da
chácara nº 84 na São Clemente, escreveu à Camara Municipal, depois de notificar o
Fiscal de Freguesia por seis vezes. Segundo ele, dois finados moradores desviaram o
leito natural do rio e apertando-o entre dois paredões, também construídos por eles.
Além disso, um deles, o finado Bento José do Rego, sempre deixava o crescimento de
capins e outras plantas que obstruíam o curso e intensificavam as inundações. A falta de
bueiros para escoamento das águas da chuva e a falta de manutenção do novo leito de
rio também foram fatores decisivos no aumento das enchentes. Isso se multiplica com o
tempo, pois com a falta de manutenção mais plantas e sedimentos ficam presentes. O
impacto imediato era no terreno de Alexandre Reid, que, com a saída das águas
pluviais, tinha o passeio, em frente a sua chácara, destruído. E, somando a outras
intervenções fluviais em outras chácaras, também atingiu as ruas recentemente
macadamizadas no caminho do curso do rio em direção a Praia de Botafogo335.
Segundo o diretor das Obras Municipais, Job Justino d‟Alcantara, a viúva Rego
e seu finado marido teriam mudado o leito do rio. No entanto, visando simplificar essas
resoluções devido a mudanças de leito, propôs a Camara Municipal, num ofício
ordinário de 01 de março de 1851, que todos fossem obrigados a construir paredões tal
qual a família Rego fez. Reconhecendo que não era direito dele realizar isso, nem sua
função, propõe que a viúva desse uma largura de 8 palmos (1,8m) ao rio que deveria
estar sempre limpo e reestruturar outras partes da modificação que seu marido realizara.
Ou seja, que o rio fosse totalmente canalizado pelos moradores que usufruíam das
águas, e não pela Municipalidade.
infant children are seen playing around, some of whom are large enough to have toddled after their
mothers. Cf. KIDDER, Daniel Parish & FLETCHER, James Cooley. Brazil and the Brazilians: portrayed
in historical perspective and different sketches. Philadelphia: Deacon & Peterson, p. 120, 1857.
334
Nos documentos iniciais o nome Alexander Reid foi lido por mim, e por outras “fontes” da época,
como Alexandre Reis. Ficou difícil de compreender se o “s” era um “d”, ou vice-versa, e nas grafias mais
legíveis aparecem os dois tipos. Em outras documentações, aparece como Reid. Para esta tese,
consideraremos como Alexandre Reid.
335
Abaixo-assinado de Alexandre Reid à Câmara Municipal, de 18 de fevereiro de 1851. AGCRJ 49.4.84
Rios da cidade do Rio de janeiro e do município: Rios que passam na rua São Clemente, Rios Berquó,
Macaco e Banana Podre, rios da freguesia de N.S. da Conceição da Gávea, e rio que passa pela rua
Humaitá – 1851 a 1895 39 ff.
119
A confusão que se segue permite vivenciar um pouco das atividades da Camara
em meados do século XIX. Duas semanas depois do ofício de Job, o fiscal da freguesia
da Lagoa, a área que hoje corresponde a Botafogo, avisou à Camara que estava em
andamento um pleito que obrigava a viúva Rego a restituir o antigo leito do rio.
Confuso sobre o procedimento, não intimou a viúva Rego. O pleito seguiu por meses. E
para complicar ainda mais este caso, o Fiscal da Lagoa, José Batista da Cunha Pegado,
se ausentou de uma reunião com a Camara, pois foi convidado pelo presidente da Junta
de Higiene Pública para objetos de serviço público.
336
Toda a documentação da história de Reid está no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, códice
BR AGCRJ 49.4.84 Rios da cidade do Rio de janeiro e do município: Rios que passam na rua São
Clemente, Rios Berquó, Macaco e Banana Podre, rios da freguesia de N.S. da Conceição da Gávea, e rio
que passa pela rua Humaitá – 1851 a 1895
120
numa formação jurídica para uma formação técnico-científica as questões fluviais
tinham uma atuação mista.
337
Oficio de Manoel da Cunha Galvão Diretor das Obras Municipais, e João Baptista da Cunha Pegado. à
Câmara Municipal, de 20 de julho de 1854. AGCRJ 49.4.84 Rios da cidade do Rio de janeiro e do
município: Rios que passam na rua São Clemente, Rios Berquó, Macaco e Banana Podre, rios da
freguesia de N.S. da Conceição da Gávea, e rio que passa pela rua Humaitá – 1851 a 1895 39 ff.
338
Abaixo-assinado dos moradores da rua São Clemente à Câmara Municipal, de 29 de abril de 1854.
AGCRJ 49.4.84 Rios da cidade do Rio de janeiro e do município: Rios que passam na rua São Clemente,
Rios Berquó, Macaco e Banana Podre, rios da freguesia de N.S. da Conceição da Gávea, e rio que passa
pela rua Humaitá – 1851 a 1895.
121
exala miasmas que atacam a salubridade”339. Galvão e Pegado mencionaram que as
causas principais do represamento e inundação dos terrenos estavam nas “voltas” que
tem o rio nestes terrenos e na canalização de um trecho de pouca largura entre os
terrenos de Joaquim Leite Ribeiro e Marques Baptista de Leão. Dentre as propostas
estava a abertura de uma rua, que veio a ser a atual rua Visconde de Ouro Preto, que
serviria para receber parte das águas do rio. Uma solução com pouco dispêndio do
poder municipal, havendo apenas que desapropriar parte de um terreno na praia de
Botafogo.
339
Idem.
340
Edital de 11 de março de 1856. Da limpeza dos rios e valas das casas e chácaras, açudes, etc. In:
MORAES FILHO, Código de posturas, 1894, p. 114.
341
Aprofundarei mais sobre miasmas no capítulo 5.
122
abordava tornou-se mais explícita. A terceira indicava que qualquer edificação nesses
corpos d‟água teria que assegurar que os rios tivessem larguras impostas/determinadas
pelo Estado. Caso contrário, o proprietário ou morador era obrigado a ceder
gratuitamente o terreno necessário para o alargamento.
342
Requerimento de José Luiz Cardozo à Câmara Municipal. AGCRJ 49.4.80 Rios da cidade do Rio de
Janeiro e do município: Catumby, dos Coqueiros, Comprido e outros da freguesia do Espírito Santo –
1844 a 1892
123
indiretas – assentamento de trilhos para maior tração animal, novas legislações de
circulação animal pela cidade, ... – possuem uma riqueza maior de fontes. Mas, isso é
claro, não? A história é escrita pela espécie que registra sua própria história.
Novamente, o poder municipal se imbuiu de estabelecer ordem ao elaborar as
posturas municipais. E assim como as plantas na seção anterior, os animais também
seriam divididos em desejados e indesejados, porém numa relação mais complexa.
Muitos que tornaram-se indesejados não era uma relação direta com a espécie, mas sim
com as consequências sanitárias de sua morte. O §3º do Título III sobre limpeza das
ruas e praças343 proibia o depósito de animais mortos nas ruas e praças. Uma
complementação de outra postura344 que indicava que o enterramento de animais
deveria ocorrer no Campo de São Diogo. Mas o grosso dessas posturas municipais da
década de 1830 ordenava a cidade para o funcionamento de nossa espécie apenas. Os
que montavam cavalos não poderiam mais cavalgar na área urbana345 ( exceto
funcionários do Estado a serviço); tampouco prender seus animais em portas, janelas e
argolas nas ruas346; montar em pelo (sem sela, rédeas, etc.)347. Os que carregavam gado
que iria ser abatido no matadouro não podia mais pernoitar com seus animais na
cidade348. Já os que os tinham em suas propriedades nos subúrbios deveriam ter
medidas cautelares para que as vacas e bois não andassem nas ruas nem prejudicassem a
lavoura dos vizinhos, como: construir cercas reforçadas e ter número de pastores
suficiente349. As cabras, cabritos, galinhas e outros animais de pequeno porte não
podiam mais perambular pelas ruas, se alimentando espontaneamente do que
encontravam350. E os animais que poderiam oferecer outro tipo de risco também foram
expulsos – principalmente cães351.
343
Postura Municipal Secção Primeira: Polícia. Título III: sobre a limpeza e desempachamento das ruas e
praças, e providências contra a divagação de loucos e embriagados de animais ferozes e dos que podem
incomodar o público. Conforme MORAES FILHO, Código de posturas, op. cit.
344
Secção Primeira: Saúde Pública. Título I: sobre cemitérios e enterros. Vide edital de 07 de outubro
1836. In: MORAES FILHO, Código de Posturas, op. cit.
345
§9º da Seção Primeira, Título III. In: MORAES FILHO, Código de posturas, op. cit.
346
§6º da Seção Primeira, Título III. In: MORAES FILHO, Código de posturas, op. cit.
347
§11º da Seção Primeira, Título III. In: MORAES FILHO, Código de posturas, op. cit.
348
§10º da Seção Primeira, Título III. In: MORAES FILHO, Código de posturas, op. cit.
349
§16º da Seção Primeira, Título III. In: MORAES FILHO, Código de posturas, op. cit.
350
§13º da Seção Primeira, Título III. In: MORAES FILHO, Código de posturas, op. cit.
351
§14º da Seção Primeira, Título III. In: MORAES FILHO, Código de posturas, op. cit.
124
Nossa coevolução com cães (Canis familiaris) não se restringiu à caça. Além de
ser guardião e ser de afeto, os cachorros urbanos soltos comiam carniças, lixos e outros
dejetos. De maneira similar, os porcos também se enquadravam nesse papel ecológico
urbano no século XIX. A equação de suínos e caninos, vivendo num ambiente
possivelmente contaminado com vermes e outros parasitas, resultou em prejuízos para a
saúde pública.
A institucionalização da medicina fomentou mais e melhores pesquisas sobre a
saúde pública. A lógica parecia clara – o crescimento demográfico humano veio
acompanhado do aumento da população de animais para alimentação e transporte. O
incomodo com outras espécies não era somente em relação ao corpo físico dos animais
não-humanos, mas também às suas fezes. A postura sobre diferentes objetos que
corrompiam a atmosfera e prejudicavam a saúde pública acelerou o processo de
desruralizar os subúrbios cariocas352. O sétimo parágrafo obrigava quem tinha cavalos e
outras bestas, incluindo aqui os donos de estribarias de aluguel e os particulares, a
recolher o estrume amontoado nas últimas 24 horas. Serviço feito por escravizados nas
casas ricas nos arredores suburbanos. Alguns aproveitavam a oportunidade para ganhar
uns trocados, outros instituíram um a venda dos despejos fecais como fonte de renda:
um comércio de merda.
Mais bocas para comer significou mais carnes para matar, cortar, distribuir e
vender. O aumento da população de porcos atravancava as recentes teorias médicas que
chegavam em livros, em reuniões nas instituições. O sétimo parágrafo da postura sobre
a saúde pública proibiu a criação de porcos nos quintais, áreas ou lojas das casas. A
intolerância aos suínos como espécie associada a imundícies não suportava a presença
destes “ainda que se alegue ser por poucos momentos”353. Com tal postura, a
diminuição de porcos também significou uma baixa na contaminação biológica dos rios.
Já que muitos desses residiam em edificações que eram construídas nas margens dos
rios e canais. A proximidade do escoamento de águas facilitava a limpeza dos
chiqueiros e currais.
Como nos dias atuais, o costume de seguir as leis não era um aspecto
predominante. Alguns chiqueiros persistiam mesmo após a publicação das posturas. A
352
Secção Primeira: Saúde Pública. Título VII: sobre diferentes objetos que corrompem a atmosfera, e
prejudicam a saúde pública. In: MORAES FILHO, Código de posturas, 1894, p 12-14
353
Secção Primeira: Saúde Pública. Título VII: sobre diferentes objetos que corrompem a atmosfera, e
prejudicam a saúde pública. In: MORAES FILHO, Código de posturas, 1894, p. 12.
125
preocupação com a saúde pública foi a inspiração para que vizinhos denunciassem a
criação de porcos. Em pedido de Sr. Pinto a Camara Municipal em 11 de fevereiro de
1843 estava escrito:
354
Pedido do sr. Pinto à Câmara Municipal, de 11 de fevereiro de 1845. AGCRJ 39.2.40 Fundo Camara
Municipal – Coleção Conselho de Intendencia – Série Documentação Avulsa
355
Pedido de D. Felizarda Joaquina à Câmara Municipal, de 1843. AGCRJ 39.2.40 Fundo Camara
Municipal – Coleção Conselho de Intendencia – Série Documentação Avulsa
356
Dois depositários nas freguesias de Engenho Velho, Lagoa, Jacarepaguá, Guaratiba, Campo Grande, e
Irajá; e um depositário nas freguesias de Gloria, Inhaúma, Santa Cruz, Ilha do Governador, Paquetá.
126
anual na Câmara Municipal e não poderiam recusar nenhum animal. A arrematação era
função do fiscal e ocorreria 8 dias depois que publicasse data, local e hora357.
Em outubro de 1842, 13$600 réis entraram nos cofres municipais após a venda
de uma “besta sem dono” por 30$000, e os prejuízos devidamente pagos 358. Geralmente
os prejuízos eram na lavoura, já que os animais entravam, por própria vontade ou
orientados por alguém, nos terrenos vizinhos para se alimentarem. Nesse mesmo ano,
numa chácara na freguesia de Santana, Domingos d‟Azevedo Cirne exigia
ressarcimento de 9$860 réis pelo estrago feito por um boi em suas plantações359.
Outro incômodo aos moradores e também com interesse para saúde pública era
a morte de animais abandonados nas ruas. Assim como o lixo urbano, o cemitério de
animais foi um espaço temporário. A cidade cresceu e saturação de carcaças em
decomposição ocorreu em poucas décadas. Em 1842 o Diretor das Obras Municipais,
Amaro Emílio da Veiga, argumentava à Câmara Municipal que o terreno de 48 braças
quadradas (11.151 m²) no mangue da Cidade Nova destinado ao enterro de animais
estava saturado. Dizia ele que os animais “eram tão mal enterrados que em bem poucos
dias estavam descobertos, e exalando terríveis miasmas”360. Como veremos na seção
2.3, cada vez mais crescia o interesse imobiliário na região da Cidade Nova. Como
tantas outras áreas, a degradação decorrente da presença humana antecede os
investimentos em serviços urbanos como iluminação, esgoto, coleta de lixo, e até
mesmo calçadas361.
Para termos uma noção do quadro de animais mortos, o fiscal da freguesia do
Engenho Velho apontava 16 animais mortos no mês de outubro de 1846. Como era de
costume, uma pessoa era indicada para o enterramento e recebia conforme a espécie
enterrada. O preço do enterro de um boi ou cavalo era de 2$000 réis. Animais de porte
menor custavam menos. Carneiros eram enterrados a 1$240 réis, e burros e jumentos a
357
Edital de 28 de maio 1853 estabelece a maneira de serem arrematados os animais apreendidos por
infração de Posturas. Cf. MORAES FILHO, Código de posturas, 1894.
358
Documento de José Francisco de Paula e Silva à Câmara Municipal, de 22 de outubro de 1842.
AGCRJ 39.2.40 Fundo Camara Municipal – Coleção Conselho de Intendencia – Série Documentação
Avulsa
359
Ofício do fiscal da Freguesia de Santa Anna José Francisco de Paula e Silva à Camara Municipal de
30 de agosto de 1842. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, códice AGCRJ 39.2.40 Fundo Camara
Municipal – Coleção Conselho de Intendencia – Série Documentação Avulsa.
360
Ofício de Amaro Emílio da Veiga à Câmara Municipal, de 14 de maio de 1850. AGCRJ 39.2.40
Fundo Camara Municipal – Coleção Conselho de Intendencia – Série Documentação Avulsa.
361
Esses serviços urbanos serão tema do capítulo 5.
127
1$600 réis. O pequeno porte de cachorros e cabritos facilitava a atividade, e custam aos
cofres municipais 200 e 320 réis respectivamente. Na referida freguesia o sr Francisco
Xavier da Cunha era o responsável pela atividade, com o recebimento da quantia de
17$560 pelos 16 animais enterrados nesse mês362. Em outro momento, Junho de 1847,
recebia 14$640 pelo enterro de 14 animais. O fiscal era o responsável por acionar o sr
Francisco e indicar a localidade, quantificar e pedir o ressarcimento para a Câmara
Municipal. Os animais mortos eram encontrados nas ruas, praças e praias.
Mesmo que houvesse uma área destinada somente para o enterro de animais, já
era de se esperar que tal regra também possui exceções. A freguesia de Santana, zona
tampão entre a urbanidade do centro e os subúrbios do norte, possuía muitos casos desse
tipo de clandestinidade. O fiscal da freguesia escreveu à Câmara em fevereiro de 1847,
que o local era o “depósito de todos os animais mortos das freguesias centrais”. Os
“donos” acobertados pelo “manto da noite” deixava os cadáveres na praça da
Aclamação, mangue da Cidade Nova e Campo de São Diogo363.
Com a saturação das áreas para o cemitério e o crescimento da cidade, novas
localidades foram buscadas para tal finalidade. Em 1850, o fiscal do Engenho Velho
indagou em sessão da Câmara Municipal onde deveria enterrar os animais. Na ocasião,
as obras do matadouro de São Cristóvão estavam paradas. Buscou a possibilidade de
que a chácara de Manoel Joaquim Pinto, no Andarahy Grande, fosse utilizada para o
enterro de animais das proximidades (carregar cavalos mortos não deve ser fácil)364.
Três anos depois a busca manteve-se. E mais uma vez, sem sucesso, buscara uma
propriedade particular para enterrar animais. Desta vez na Fazenda do Macaco, no atual
bairro de Vila Isabel365.
Com o tempo, o Campo de São Diogo tornou-se consenso no enterro de animais.
Difícil dizer se oficialmente ou oficiosamente. A área situava-se nas proximidades do
Matadouro de São Cristóvão (construído em 1853), e para usufruto do mesmo. Por ser
362
Ofício do Fiscal do Engenho Velho, João José do Canto Castro e Mascarenhas, à Camara Municipal,
de 03 de abril de 1846. A GCRJ 39.2.40 Fundo Camara Municipal – Coleção Conselho de Intendencia –
Série Documentação Avulsa.
363
Ofício do Fiscal da Freguesia de Santana à Câmara Municipal, de 08 de fevereiro de 1847. AGCRJ
39.2.40 Fundo Camara Municipal – Coleção Conselho de Intendencia – Série Documentação Avulsa.
364
Ofício do Fiscal da freguesia do Engenho Velho a Câmara Municipal, de 12 de março de 1850.
AGCRJ 39.2.40 Fundo Camara Municipal – Coleção Conselho de Intendencia – Série Documentação
Avulsa.
365
Ofício do Fiscal da Freguesia do Engenho Velho, João José Canto Castro M?, a Camara Municipal, de
14 fevereiro de 1853. AGCRJ 39.2.40 Fundo Camara Municipal – Coleção Conselho de Intendencia –
Série Documentação Avulsa.
128
parte do baixo curso fluvial, o pequeno tamanho dos sedimentos, a lama, era
predominante. Originalmente uma área de manguezal, as marés frequentemente
expunham as carcaças mal enterradas nos lamaçais moles. A escolha do local foi
principalmente devido à proximidade da baía de Guanabara e a facilidade de
escoamento das carnes cortadas no Matadouro. Costume que também ocorria no antigo
matadouro na praia de Santa Luzia. Segundo o plano de urbanização de Beaurepaire
Rohan de 1843, o matadouro anterior era imundo e produzia gases que produziam
enfermidades endêmicas. O engenheiro militar propõe a localização de São Cristóvão
pois o aspecto rural desta freguesia permitiria também o acesso a água para o gado
beber e capim para sua alimentação. Além do mais, o Campo de São Cristóvão já era a
principal chegada das vacas e bois que chegavam das províncias366.
O aparente consenso não durou muito tempo. O inspetor de limpeza, Claudino
da Silva Coelho, constatou que um estrangeiro impedia que se utilizasse o terreno para o
enterro de animais. Argumentava que a propriedade pertencia à Estrada de Ferro Dom
Pedro II367. Com o pedido de maior presença da Municipalidade no Campo de São
Diogo, o Guarda Municipal, José Muniz Azevedo, passou a rondar em 06 de novembro
de 1855, um dia depois. A presença do guarda municipal foi responsável pela denúncia
de um cavalo e um burro mal enterrados, e a constatação de que os ingleses realmente
não deixavam enterrar mais por ali368.
O local do próprio Matadouro passou a receber os animais mortos. E, por não ser
um espaço público, a disputa gerou desconforto para o poder municipal. O diretor do
Matadouro reclamou a Câmara no ofício de 06 de agosto de 1857. Pedia providências a
respeito dos condutores de animais mortos que simplesmente depositam e retiram-se.
Após perguntar por diversas vezes a resposta que o diretor escutava era de que só
tinham obrigação de trazer e nada mais. Com o ocorrido, foi necessário empregar 8
pessoas a 1$000 cada uma. Dinheiro que o diretor requisitava de volta à Câmara
Municipal369.
366
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, 2006.
367
Aviso do Inspetor de Limpeza, Claudino da Silva Coelho, à Camara Municipal, de 05 de novembro de
1855. AGCRJ 39.2.40 Fundo Camara Municipal – Coleção Conselho de Intendencia – Série
Documentação Avulsa.
368
Aviso do Guarda Municipal José Muniz Azevedo ao Fiscal da Freguesia, 05 de novembro de 1855.
AGCRJ 39.2.40 Fundo Camara Municipal – Coleção Conselho de Intendencia – Série Documentação
Avulsa.
369
Ofício do Matadouro à Camara Municipal, de 06 de agosto de 1857. AGCRJ 39.2.40 Fundo Camara
Municipal – Coleção Conselho de Intendencia – Série Documentação Avulsa.
129
Em resumo, o ordenamento do corpo dos rios e dos animais por parte dos grupos
sociais da cidade foi parte de uma visão idealizada da cidade. Imaginada e significada
pelos idealizadores da socionatureza, esta cidade era vista sem a complexidade de seus
elementos vivos e não vivos que exerciam funções urbanas. As represas e barragens
para as lavouras resultaram em maior acessibilidade de alimentos e no aumento da
renda das famílias que plantavam. A presença de cachorros e porcos significou a
diminuição do lixo orgânico depositado diariamente em valas e rios. Esses elementos
não-humanos participavam ativamente do metabolismo social da cidade, e de sua
história. Continuaremos este debate no capítulo 4 e 5. Agora voltaremos à expansão
urbana em ambientes biofísicos recém-ocupados do baixo curso dos rios.
130
superfície de lama presente nos manguezais, a força das marés reorganizava e modelava
esses ecossistemas costeiros. Na ausência de rios, e seus diminutos sedimentos, as
restingas se expandiam pela região costeira por fora da baía de Guanabara, nos atuais
bairros de Copacabana, Ipanema, Leblon e São Conrado (objetos que não foram
contemplados nos objetivos desta tese). Em outras palavras, os sedimentos que
compõem as praias cariocas vêm, em grande parte, do Oceano Atlântico. Dentro da
baía, a dinâmica da força das águas do mar era diferente. Ali, os fenômenos geológicos
que formariam a restinga não atingiram a mesma intensidade. Formando assim praias
mais calmas.
A apropriação social das águas litorâneas ocorreu de maneira distinta nas praias
mais próximas da boca da baía da Guanabara, das praias mais distantes. Após séculos
de desenvolvimento urbano, a heterogeneidade dos usos das praias refletiu as
desigualdades sociais que observamos hoje em dia. Do antigo centro histórico, em
direção ao sul havia as praias de Santa Luzia, da Lapa, da Glória, do Russell, do
Flamengo, de Botafogo e da Saudade. Em direção ao norte, a partir da embocadura do
Canal do Mangue na Cidade Nova, existiam as praias das Palmeiras, dos Lázaros, de
São Cristóvão, e do Caju. Nas praias do norte, o modelo das praias centrais foi seguido:
pesca artesanal, uso industrial moderado, despejo de lixo e esgoto, banhos de mar
recreativos ou medicinais, e principalmente a expansão do porto no final do século XIX.
Já nas praias do sul, o uso foi um pouco diferente. O uso recreativo mais acentuado e a
proximidade de casas e chácaras de ilustres moradores das freguesias da Glória e da
Lagoa, resultou em mais iniciativas de embelezamento do que as vizinhas setentrionais.
Embora, tenha também ocorrido a criação de uma estação de barcas de Botafogo para o
centro e uma resistente pesca artesanal. Um breve passeio pelas praias cariocas e as foz
dos rios pode iluminar um pouco mais as desigualdades sociais expressas nesse sul e
norte.
2.3.1. O domínio das areias cariocas: os extremos nos usos das praias
Comecemos pela praia de Botafogo (ver Figura 5), já que sua saudosa e extinta
vizinha, da Saudade, não recebia águas fluviais. A enseada de Botafogo localiza-se
entre o morro do Pasmado, limite com a praia da Saudade, e o morro da Viúva, limite
com a praia do Flamengo. Dois rios desembocavam no século XIX, o sinuoso e um dia
navegável rio Berquó, próximo ao Pasmado, e no outro extremo, o singelo rio Banana
131
Podre. Diferente da migração francesa para as montanhas da Tijuca, essa região de
Botafogo, Laranjeiras e Flamengo foi mais frequente a presença inglesa. Inclusive o
acesso pelo Caminho Novo foi simpaticamente apelidado de Green Lane. A antiga
presença de restingas e brejos ainda era sentida na forma de alagamentos decorridos de
fortes chuvas. Conforme os corpos d‟água eram dessecados e aterrados, a “nova”
socionatureza era sentida pelos moradores. Junto a tudo isso, a construção de
calçamentos e ruas foi essencial para a urbanização da região cada vez mais loteada em
chácaras abastadas370.
370
AMADOR, Baía de Guanabara e ecossistemas periféricos, 1996.
132
Figura 5: Mapa das praias do Rio de Janeiro. Sem escala. Em tons de marrom os morros, em amarelo as áreas
suburbanas e em cinza o centro urbano. Base cartográfica: MASCHEK, E. Planta da cidade do Rio de Janeiro
e de uma parte de seus subúrbios. Rio de Janeiro: Laemmert & C., 1885. Autor: Bruno Capilé.
133
uso doméstico, exceto para edificações e consertos, era permitido371. Em 1856, o
vereador Haddock Lobo incomodado com o preço exagerado das carroças de areia,
propôs uma flexibilização dessa postura. Após breve estudo, apontou distintos lugares
entre o morro da Glória e a praia do Flamengo que não ficariam prejudicados com a
extração de areia por não haver cais. Mas, ressaltou a necessidade da presença de
“fiscais para impedir os abusos, e regularizar o benefício sem causar com ele dano
público ou particular”372. A versatilidade das leis parece ter sido maior quando os
interesses imobiliários e particulares estavam em jogo. Porém, as coisas não pareciam
tão simples, pois ficou resolvido que primeiro deveriam ouvir a opinião da capitania dos
portos e a autorização do governo imperial. As areias das praias urbanas mantiveram-se
em sua dinâmica espontânea.
Conhecida pelos nomes de praia do Uruçu-mirim, do Sapateiro, da Aguada dos
marinheiros, da Carioca, e também de outros nomes, a praia do Flamengo, onde o rio
Carioca encontra-se com o mar, foi cotidianamente visitada pelos moradores locais. Os
banhos de mar ocorriam nos meses mais quentes, de Novembro a Março, nas primeiras
horas matinais. Durante sua estadia, os missionários estadunidenses, Kidder e Fletcher,
apontaram que homens, mulheres e crianças aproveitavam as límpidas e calmas águas
salgadas. As mulheres que vinham de mais longe vinham com seus escravos que
carregavam suas roupas de banho pretas e uma tenda para se trocarem. Os viajantes
reconheceram que as roupas das “senhoras” eram bonitas, porém não tão elegantes
quanto das moças francesas, que se empenhavam como se fossem a um baile. Para
dificultar ainda mais a pose, por vezes as banhistas cariocas saíam rapidamente das
373
águas rasas após um gaiato gritar: “Tubarão! Tubarão!” . Os estrangeiros, que
possivelmente não entraram nas águas da praia do Flamengo, ouviram apenas mitos e
lendas desses “lobos dos mares”374.
Os homens, por sua vez, necessitavam seguir a moral e os costumes de sua
época, que também era explicitado nas posturas municipais. Segundo parágrafo quinto
371
Secção Primeira: Polícia. Título II: sobre edifícios ruinosos, e quaisquer precipícios nas vizinhanças
das povoações. In: MORAES FILHO, Código de posturas, op. cit., p 18-21.
372
HADDOCK LOBO, Roberto Jorge. 19ª sessão da Câmara Municipal em 10 Junho de 1856. Diário do
Rio de Janeiro, ano 36, n. 247, p. 2, do dia 05 de Setembro de 1856.
373
KIDDER & FLETCHER, Brazil and Brazilians, op. cit., p. 91.
374
Segundo o biólogo especialista em tubarões, Marcelo Szpilman, o litoral brasileiro possui 80 espécies
de tubarões. No entanto, o número de ataques a humanos é baixo. De 1955 a 1998 foram registrados 60
ataques em todo o litoral brasileiro. Sendo 12 encontros fatais. Cf. SZPILMAN, Marcelo. Animais
perigosos ao homem. Rio de Janeiro: Instituto Aqualung, 1998.
134
do Título IV sobre vozeria nas ruas, injúrias e obscenidades contra a moral pública,
ficava vedado a qualquer pessoa se lavar publicamente nas praias e rios sem se vestirem
“de maneira que não ofenda a moral pública”375.
O Hotel dos Estrangeiros, no Catete, e outros hotéis no centro urbano, ofereciam
comodidades para os hóspedes tomarem banho de mar, na década de 1850. No centro,
as praias do Boqueirão do Passeio e a de Santa Luzia também eram utilizadas pelos
banhistas. Lá no verão, os banhos iniciavam mais cedo – por volta de 3 a 4 horas da
madrugada – possivelmente seguindo ordens médicas de se banhar em jejum. Segundo
ideias médicas da época, a água do mar possuía virtudes para a saúde humana, que
tonificavam e conferiam força e vigor ao corpo inteiro. As pequenas cabanas de madeira
permitiam a troca de roupa sem carregar muito material. A vestimenta das senhoras ia
dos pés a cabeça e o uso de touca era obrigatório. Os homens usavam calças até os
joelhos, camiseta e blusa. O número de banhistas chegava a seis mil pessoas num único
dia, espalhadas pelas areias das praias e pelas casas de banho376.
Mais comum que os tubarões, outros animais vinham às praias para se
banharem. De manhã bem cedo, os cavalos, burros e mulas, eram levados para cantos
específicos na faixa de areia para serem banhados e escovados por seus humanos.
Kidder e Fletcher ficaram contentes em saber que tais “pobres criaturas” tenham essa
chance de limpeza. Caso não, “sofreriam bastante pela preguiça de seus
proprietários”377.
Embora as calmas águas da praia do Flamengo fossem o principal atrativo para
as populações banhistas, nem sempre podiam contar com tal tranquilidade. Em Maio378
de 1853, por exemplo, uma tempestade que durou dias gerou fortes ventos que
resultaram em grandes ondas. Talvez os referidos viajantes tenham exagerado quando
afirmaram que as ondas, que batiam intensamente no parapeito, elevavam-se a oitenta
375
Secção Primeira: Polícia. Título IV: sobre vozerias nas ruas, injúrias e obscenidades contra a moral
pública. In: MORAES FILHO, Código de posturas, op. cit.
376
GASPAR, Claudia Braga. Orla carioca: história e cultura. São Paulo: Metalivros, 2004.
377
KIDDER & FLETCHER, Brazil and brazilians, op. cit., p. 91.
378
Mês comumente associado a ressacas nas praias cariocas, resultado da chegada das frentes frias do
inverno que se aproxima. O mês de maio de 1853, em particular, foi extremamente chuvoso. Segundo os
dados pluviométricos do Imperial Observatório Astronômico, foram 12 dias de chuvas que acumularam
408mm. Apenas em quatro meses de Maio no intervalo de 1851 a 1890 a pluviosidade superou a linha
dos 400. A média calculada para todos os meses de Maio no intervalo mencionado foi de 125mm de
chuva. Cf. CRULS, O clima no Rio de Janeiro, 1892.
135
pés (24m). No entanto, a batalha entre o mar e a terra resultou também em grandes
estragos na praia do Flamengo.
Em Junho de 1861, outra ressaca causou graves danos no recém terminado cais
da Glória. Construído a partir de contrato com o dr. Ignácio de Barros Vieira Cajueiro
1857, o governo imperial gastou ao todo com obras e reparos mais de oitocentos contos
de réis379. Além do cais, outras intervenções urbanas transformaram este trecho do
litoral na década de 1860. A antiga praia do Catete, no final da praia do Flamengo
próximo a Ponta da Glória, também conhecida como praia de Dom Pedro I, foi aterrada
pelas obras sanitárias do inglês John Russell na década de 1860 – criando uma nova
“praia” homônima do estrangeiro naturalizado brasileiro. A intenção era ter espaço para
as instalações da primeira Estação de Tratamento de Esgoto da empresa de Russell: The
Rio de Janeiro City Improvements Limited.
A história do despejo do esgoto carioca esteve intimamente conectada a história
de seu litoral. O primeiro “sistema” desenvolvido pelo poder público foi derivado da
exploração da mão-de-obra negra: os “tigres”. À noite, escravos urbanos coletavam os
barris de fezes das residências, comércios e prédios públicos, e despejavam nas praias
mais próximas do centro urbano. Enquanto uma atividade econômica de escravos de
ganhos e livres, essa modalidade de esgoto seguiu-se até final do Império. Porém, como
um sistema oficial, ela começou a caducar a partir da década de 1860380. Entre a praia
da Glória e a de Santa Luzia, com limite para os jardins do Passeio Público no local da
extinta praia do Boqueirão, existia a da Lapa. Curiosamente, esta vizinha do ícone da
história sanitária carioca foi, durante o século XIX, o principal ponto de dejetos urbanos
pelo “sistema” dos tigres, junto com a praia de Santa Luzia, além do abandono de
carcaças de animais mortos. Mais uma vez o relato dos missionários estadunidenses
ilustra um pouco da experiência sensorial desses eventos. Ao comentar sobre o desfrute
das noites de lua cheia, os autores descrevem:
379
Decreto nº 2062 23 de dezembro de 1857. In: BELLEGARDE, Pedro de Alcantara. Relatório do
Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas para o ano de 1862. Rio de Janeiro:
Typographia Perseverança, 1863.
380
SOARES, O “povo de cam” na capital do Brasil, op. cit.
136
sorrateiramente da rua do Príncipe, e pelas próximas duas horas
transformaram numa noite horrenda. Sem gritos, mas com cheiros que
certamente foram expatriados da Arabia Infelix.
(...) Uma hora depois que os tigres terminaram seus trabalhos, a
atmosfera está livre de qualquer coisa desagradável, como se nada mais do
que a fragrância de flores de laranjeira tivesse saído da Glória e dos jardins
vizinhos; E a luz da manhã brilha sobre uma praia branca pura 381.
381
KIDDER & FLETCHER, Brazil and the brazilians, op. cit., p. 89-90.
382
MARQUES, Eduardo Cesar. Da Higiene à construção da cidade: o Estado e o saneamento do Rio de
Janeiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, II (2): 51-67, Jul-Out., 1995.
137
Figura 6: Mapa dos arredores da estação de esgoto da Glória. GOTTO, Edward. Plan of the city of Rio de
Janeiro, Brazil. Londres: Robert J. Cook & Co., 1871. Fonte: Biblioteca Nacional.
As opiniões e estudos sobre o esgoto carioca não tiveram consenso para o poder
público, tampouco para os proprietários-clientes. Segundo o decreto nº 3344 de 19 de
Novembro de 1864, o governo imperial declarou o sistema como satisfatório383. Anos
mais tarde, conforme a expansão do serviço atingia novas áreas, as coisas se
complicaram um pouco mais. A Companhia City Improvements prestava contas ao
Ministério da Agricultura, e segundo o relatório para o ano de 1866, alguns defeitos
surgiram, como: o insuficiente número de ralos do sistema de escoamento de águas
pluviais; a falta de adesão derivada de problemas na instalação dos encanamentos em
propriedades particulares; as exalações incômodas das galerias no momento da limpeza.
Com o tempo, esses e outros problemas foram sanados. Além da instalação de novos
ralos e chaminés para circulação dos ares acima da altura das casas, o ministério exigia
que vasos e latrinas fossem destinados ao uso público. Em 1866, a empresa recebeu no
primeiro semestre quase 350 contos de réis para oferecer seus serviços para 12.491
383
Decreto nº 3344 19 de novembro de 1864 : Declara satisfactorio o resultado do ensaio do novo
systema de limpeza das casas e esgoto das aguas pluviaes, feito no primeiro districto das obras da
Companhia - Rio de Janeiro City Improvement.
138
prédios384. Em 1872, cerca de 30 mil conexões fornecia a cobertura de esgoto de 47%
dos prédios urbanos385.
Além da praia de Santa Luzia, a ponta do Calabouço marcava a brusca
inclinação do litoral para o noroeste, seguindo a face voltada para a Ilha das Cobras.
Logo após a ilha, a mudança litorânea para oeste marcou o lado da costa do porto e de
sua expansão pelas praias do Valongo, Gamboa e Alferes. Até 1870, mesmo com alguns
aterros, esse trecho mantem muito de seu recorte original. A praia Formosa marca a
última parte da freguesia de Santana, tendo o estuário de São Diogo, e mais tarde o
Canal do Mangue, como divisor para as praias de São Cristóvão.
O Canal do Mangue desembocava originalmente entre a praia Formosa e a das
Palmeiras, recebendo as águas dos rios Maracanã e Joana. A rua do Imperador, saía do
palácio da Boa Vista e delimitava a praia dos Lázaros com a anterior. Por fim, a praia de
São Cristóvão e a do Caju marcavam o limite urbano. Até 1839, esse extremo
avizinhava com o Campo Santo da Misericórdia – cemitério de escravos. A partir do
decreto nº 842, de 16 de Outubro de 1851, as terras deste Campo foram destinadas ao
cemitério São Francisco Xavier, na ponta do Caju386.
Historicamente, a praia do Caju tem sido reconhecida como pioneira de banhos
de mar, devido à utilização por Dom João VI, que adquiriu a propriedade de José
Gouveia Freire387. Porém, com o crescimento urbano, e as ilhas locais utilizadas como
depósito de lixo e de carcaça de animais, a região tornou-se abandonada. O geógrafo
apontou a dinâmica urbana de lixo, descaso e crescimento urbano, em sua gigantesca
tese sobre a baía de Guanabara. Segundo ele, o lixo “teria sempre essa função de
assinalar para onde se daria a degradação e foi sempre depositado sobre manguezais:
primeiro nos manguezais de São Diogo, depois no Caju” e nas ilhas da baía388. Os
descartes significavam mais do que lixo. Corpos sempre foram achados nas praias
cariocas, seja por afogamento local ou pelo transporte dos cadáveres pelas correntezas e
marés. Mas, é no Caju, onde as mortes noticiadas nos jornais da cidade apresentavam
384
DANTAS, Relatório do Ministério da Agricultura, 1867.
385
MARQUES, Da higiene à construção da cidade, 1995; AMADOR, Baía de Guanabara e ecossistemas
periféricos, 1996.
386
Decreto nº 842, de 16 de Outubro de 1851. Além do São Francisco Xavier, este decreto formulou o
cemitério São João Batista, a partir dos terrenos de Hutton, Doutor Francisco Lopes da Cunha e Manoel
Carlos Monteiro.
387
GASPAR, Orla carioca, op. cit.
388
AMADOR, Baía de Guanabara e ecossistemas periféricos, 1996.
139
um lado mais sombrio do que o de costume. Como o caso do caixão com ossos
humanos encontrados durante escavações da Marinha em Agosto de 1855389; ou o
suicídio do negro Basílio, de Benguela, por enforcamento em uma árvore na praia390.
Atualmente a segunda391 paisagem urbana carioca mais marcante é a diferença
entre a zona norte e a zona sul. Tais distinções remontam à própria história do Rio de
Janeiro, em particular no século XIX. Houve um momento em que a elites gostavam de
ambas áreas. Talvez alguns grupos mais próximos à monarquia brasileira tivessem
interesse em morar em São Cristóvão. A proximidade da família imperial, motivo
inerente para muitos, demandava melhoramentos locais como serviços de esgotos, luz,
gás, esgoto, estradas, policiamento, que ocorreram antes de outras áreas. Mais para o
final do Império, o trem, que passa nos bairros do norte, atraiu a chegada de indústrias
que poluíam os ares e os rios, e aumentava a circulação de pessoas “indesejáveis” pelas
altas classes: proletários. O pestilento Canal do Mangue na Cidade Nova superou suas
qualidades de simples barreira física e passou a ser uma barreira cultural para quem
evitava circular por áreas miasmáticas. A socionatureza urbana tem suas maneiras de ser
lembrada. Mesmo com os esforços da Municipalidade imperial e republicana, os grupos
privilegiados possivelmente não queriam passar pelo mar de lodo, resultado de décadas
de degradação. No Flamengo e Botafogo, as praias que também eram vistas como área
de cemitério de animais e depósito de lixo e esgoto, passaram a ser culturalmente
entendidas como área de banhos recreativos e medicinais. Diferente das praias do norte
que manteve suas areias e suas ilhas próximas como verdadeiros lixões. Os padrões
imobiliários de especulação têm suas origens em muitos desses fatos do século XIX.
Com o tempo, o porto expandia-se para o norte e as áreas de lazer se espalhavam para o
sul. O social, com seus trens, indústrias e afins, mesclava-se mais uma vez com o
natural, circulação de água, presença de manguezais, etc. E temos no limite urbano
norte, o Canal do Mangue, uma área de conflito de interesses que marcou os
investimentos, ou a falta deles392.
389
CORREIO Mercantil, Instrutivo, Universal. Rio de Janeiro. Ano 12, nº 233, p. 1, 23 de agosto de
1855.
390
CORREIO Mercantil, Instrutivo, Universal. Rio de Janeiro. Ano 14, nº 147, p. 3, 30 de maio de 1857.
391
A mais marcante paisagem é o contraste da desigualdade social iconizado por favelas e sua
proximidade de luxuosos prédios. Os recortes dessa tese, infelizmente, não passam perto de explicações
convincentes.
392
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, op. cit.; ABREU, Maurício de. Evolução
Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO/Zahar, 1987.
140
2.3.2. Pelo fim das lamas: a transformação do estuário de São Diogo
393
LUCCOCK, John. Notes on Rio de Janeiro and the Southern parts of Brazil; taken during a residence
of ten years in that country, from 1808 to 1818. London: Samuel Leigh, 1820.
141
pelo governo, que somente ocorreriam duas décadas depois394. Enquanto isso, o
metabolismo urbano e suas imundícies chegavam à região de maneira oficial. Como
vimos nesse capítulo, a Câmara Municipal por meio das posturas municipais, na Seção
Primeira: Saúde Pública, Título I sobre cemitérios e enterros, §3º, diz que: “Fica
provisoriamente designado o campo de S. Diogo para enterramento de animais e
carnes“. Corpos em putrefação dava nova carga de odores ao ambiente que já tinha a
presença de lixo e de maior quantidade de lama – resultado de maior assoreamento dos
rios da bacia que desagua ali.
Muitos deviam ter se perguntado por que não aterrar tudo aquilo, desconhecendo
a topografia local de altitude do nível do mar e escoamento de quatro rios que desciam
do maciço da Tijuca. Outros aproveitavam a proximidade com o mar para a
continuidade de suas atividades econômicas. Em 1845, o terreno do veador Joaquim
José de Sequeira foi desapropriado para a construção do Matadouro de São Cristóvão
que se iniciou em 1º de janeiro do ano seguinte e terminou em agosto de 1853.
Originalmente nas proximidades da praia de Santa Luzia desde o século XVIII, o
Matadouro Público tinha por fim ordenar a matança, corte e distribuição de carne
bovina no espaço urbano da corte. Beaurepaire Rohan havia aconselhado o translado do
Matadouro em seu plano de 1843. O local anterior era um galpão imundo associado
com enfermidades endêmicas na vizinhança, e propõe a transposição para um ponto
algumas centenas de metros mais ao norte do local para onde foi o Matadouro de São
Cristóvão. Para ele três fatores foram cruciais: a proximidade do mar, significando
transporte e descarte; e das pastagens. O desejo na facilidade de transporte, e do
descarte/desova das carcaças dos indivíduos mortos, foi responsável pela nova
localidade, também próxima ao mar. Até Dezembro de 1845, ano em que foi
desapropriado o terreno na freguesia do Engenho Velho, o local havia sido utilizado
como curtume – outra atividade de alto impacto ambiental. Outro fator determinante foi
a contiguidade com o Campo de São Cristóvão, até então um local de intercâmbio de
mercadorias agrícolas e de acolhimento do gado proveniente das províncias395. Segundo
Luccock, a marcha do gado para o Rio de Janeiro era de trezentas a quatrocentas milhas
(480 a 640km).
394
AMADOR, Baía de Guanabara e ecossistemas periféricos, 1996.
395
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, op. cit.
142
Muitos, naturalmente, morreram de fadiga no caminho; e aqueles
que se estendiam até o fim chegaram, em um estado muito miserável, no
Matadouro Público, perto do convento de Ajuda; pois somente ali podiam ser
abatidos, pois a venda de carne bovina era um monopólio e estava sob a
supervisão da polícia. Perto do prédio há um pequeno pátio, no qual os
animais eram amontoados, e onde frequentemente permaneciam dois ou três
dias sem comida ou água, até que chegue sua vez de cambalear para o
edifício adjacente e ceder suas vidas. (...). Assim que sua pele era retirada, as
carcaças eram cortadas em pedaços, e jogadas em toscos carros manchados
com o sangue fresco e coagulado, e nesse estado levados pela da cidade para
as várias lojas licenciadas, onde a carne era vendida em quantidades que cada
comprador podia querer396.
143
do Rio de Janeiro, e o uso aquático para despejo e transporte de material da Companhia
de Gás de Iluminação. Os planos de iluminar a cidade estiveram assim conectados com
a extinção da escura lama do mangue de São Diogo. A proposta de Mauá foi
apresentada à Câmara Municipal em 1853 e tinha como plano construir o canal desde o
Rocio Pequeno (onde se encontra atualmente a estátua de Zumbi de Palmares) até a
ponte no fim da rua do Aterrado, e dali pela praia Formosa em direção a ilha dos
Melões. A quantia despendida pelo governo imperial seria de 184 contos de réis e o
terreno na parte sul do Canal com 40 braças de fundo, que precisaria ser desapropriado.
Porém, o parecer de Luiz Pedreira do Couto Ferraz, enquanto Ministro do Império,
taxou esse ponto como inconveniente, já que a extensão do terreno exigido seria de
25.600 braças quadradas (56.320m²), equivalente a 512 contos de réis399.
Após a apreciação da Câmara, a mesma fez uma menção especial para a
construção de uma praça de mercado e de duas pontes sobre o canal. Aproveitando
assim suas águas para a navegação de canoas de pescaria e pequenas embarcações para
os mantimentos a serem vendidos no referido mercado, e para o transporte de material
para Fábrica de Gás de Mauá. Embora Mauá tenha dado ordens para iniciar obra
preliminares – como por exemplo, aterros –, em Julho de 1856, o engenheiro
responsável, William Ginty, ainda requisitava do governo imperial o nivelamento do
terreno para começar a obras400. No entanto, Mauá não construiu o respectivo mercado,
comovendo o poder municipal para que inserisse de volta o mercado no projeto401. Os
impasses pelos usos de um futuro espaço público estiveram presente ainda no
planejamento deste. Além do escoamento das águas, o canal também ofereceria um
passeio agradável pelos caminhos arborizados, que eram considerados purificadores de
ar e mais higiênicos402.
399
Parecer do Conselho de Estado dos Negócios do Império sobre a proposta de Irineu Evangelista de
Souza e Portaria do Ministro do Império Luiz Pedreira do Couto Ferraz dirigida à Câmara Municipal, 22
de outubro de 1853. AGCRJ CI CAN 40.3.44. Fundo Câmara Municipal. Coleção Conselho de
Intendência. Série Canais.
400
Ofício da 3ª Seção do Ministério dos Negócios do Império, de 16 de julho de 1856. AGCRJ 40.3.45.
Fundo Camara Municipal. Série Canais.
401
Proposta de vereadores sobre melhoramentos no canal, 21-??-1856. AGCRJ CI CAN 40.3.44. Fundo
Camara Municipal. Coleção Conselho de Intendencia. Série Canais.
402
Parecer do Conselho de Estado dos Negócios do Império sobre a proposta de Irineu Evangelista de
Souza e Portaria do Ministro do Império Luiz Pedreira do Couto Ferraz dirigida à Câmara Municipal, 22-
10-1853. AGCRJ CI CAN 40.3.44. Fundo Câmara Municipal. Coleção Conselho de Intendência. Série
Canais.
144
Em 1858, sob o decreto 2.117 de 06 de Março, o Marquês de Olinda, Presidente
do Conselho de Ministros e Ministro dos Negócios do Império, assinou contrato com o
Barão de Mauá para a “construção de um canal no mangue existente ao lado do
Aterrado da Cidade Nova”. A exorbitante quantia de 1.378 contos de réis financiava a
construção do canal de 54 palmos (12m) de largura – sendo 23 palmos (5m) embaixo
das pontes – e 11 palmos (3m) de profundidade para assegurar que haja sempre 5
palmos (1m) de água na maré baixa. Para isso foi necessário também o aterro dos
terrenos laterais, “passeios macadamizados para o recreio público”, muralhas, bueiros
para o escoamento das águas das chuvas, e três pontes de pedra e ferro, duas pontes
suspensas e um pontilhão403. As muralhas, a macadamização e algumas pontes
demoraram alguns anos a mais para serem finalizados.
O interesse de Mauá esteve associado à sua Companhia de Gás de Iluminação,
fundada em 1854. Segundo documento do Ministério dos Negócios do Império, de 15
de dezembro de 1851, assinado pelo Visconde de Montalegre, o Imperador mandou a
Câmara Municipal designar um terreno de doze braças (26,4m) para construir um
gasômetro provisório de Mauá, perto do campo da Aclamação. O intuito inicial,
presente no documento, era de “fazer gás para iluminar os teatros”404. Anos mais tarde,
em Março de 1854, Mauá escreve a Couto Ferraz ressaltando em primeiro lugar que na
construção do Canal do Mangue ele aspirava seu interesse pessoal de “melhoramento do
serviço importante da Fábrica de Gás” para onde tinha de transportar de 6 a 8 mil
toneladas de carvão por ano. E em segundo lugar, a própria utilidade pública do
melhoramento local405.
O aterro do terreno para a construção do gasômetro definitivo, no Canal do
Mangue, teve a participação de mão de obra escrava, através de acordo realizado entre
Mauá e o diretor da Casa de Correção406. Na realidade, ao longo do século XIX, os
detentos trabalharam em outros aterros na mesma localidade. Sendo o pagamento
efetuado para a Casa de Correção destinados para os “feitores, comedorias dos presos e
403
Decreto nº 2.117 - de 6 de março de 1858. Approva o contracto celebrado com o Barão de Mauá para
construcção de hum canal no mangue da Cidade Nova
404
Documento do Ministério dos Negócios do Império, em 15 de dezembro de 1851, assinado pelo
Visconde de Montalegre. AGCRJ 9.1.2. Fundo Câmara Municipal. Série Iluminação Pública.
405
Ofício de Irineu Evangelista de Souza a Luiz Pedreira do Couto Ferraz, 18 de março de 1854. AGCRJ
40.3.44. Fundo Camara Municipal. Coleção Conselho de Intendencia. Série Canais.
406
Pedido de Barão de Mauá ao Presidente da Câmara Municipal, feito em 19 de Agosto de 1853.
AGCRJ 9.1.2. Fundo Câmara Municipal. Série Iluminação Pública.
145
outras despesas”407, e em grande parte realizado através de verbas da Câmara
Municipal. As mãos negras transformaram o ecossistema de manguezal, aterrando sua
lama igualmente preta.
Após oficialização dos trabalhos da construção do Canal do Mangue em 1858, o
progresso se deu de maneira constante e ativa. Em 1860, o Ministério da Agricultura,
apontava que 350 braças (770m), de um total de 575 (1.265m), já estavam prontas; e
que uma ponte pênsil estava concluída e duas pontes de pedra e ferro já
encaminhadas408. No ano seguinte, faltaria arrematar parte do cais, terminar duas
pontes, cavar entre as paredes do canal e aterrar o espaço entre a ponte e as ruas
próximas409. Por fim, em 1862, achava-se concluída a obra “que veio melhorar as
condições higiênicas do bairro em que foi construída, e fazer aproveitar grande extensão
de terreno para a edificação da cidade”410.
O fim das obras na década de 1860 marcou apenas uma etapa da intervenção
humana na socionatureza urbana da Cidade Nova. Novo ajuste foram necessários, já que
a pretensão, por parte do poder público e de empresários, limitou a percepção do
ambiente em sua complexidade. Como vimos anteriormente, após anos de pequenos
aterros, Ginty havia afirmado que o governo imperial deveria nivelar os terrenos do
Canal do Mangue. Em 1864, Ginty sugeriu à Câmara Municipal o levantamento de 5
palmos de uma parede ao lado da rua do Mangue, igual à que existe na outra margem:
na rua do Aterrado. Como se o conhecimento da dinâmica de sedimentos e das marés, e
o despejo de esgoto fosse desconhecido pelos engenheiros responsáveis.
O descaso da falta de estudos ou da realização das obras sem considerações da
topografia local foi sentido pelos moradores da Cidade Nova. Em 1867, os moradores
das freguesias do Espírito Santo, no lado sul do canal, e de Santana, no lado norte,
encaminharam reclamações para a Câmara – somaram mais de 130 assinaturas. Ambos
documentos tinham em comum dois aspectos. Os aterros realizados com lixo e matéria
orgânica que rapidamente entravam em putrefação, “especialmente dos açougues, casas
de pasto, tabernas, quitandas”411; e as “exalações pestíferas da putrefação contínua
407
Recibo do pagamento de feitores em nome de Thomé Joaquim Torres, recebido de Antonio Carlos de
Carvalho, em 01 Agosto de 1843. AGCRJ 40.3.42. Coleção Conselho de Intendencia. Série Canais.
408
SOUZA E MELLO, Relatório do Ministério da Agricultura, 1861.
409
SOUZA E MELLO, Relatório do Ministério da Agricultura, 1862.
410
BELLEGARDE, Relatório do Ministério da Agricultura, 1863, p. 34.
411
Abaixo-assinado de moradores da Freguesia do Espírito Santo à Câmara Municipal, de 28 de outubro
de 1867. AGCRJ 40.3.45. Fundo Camara Municipal. Série Canais.
146
dessas matérias, aí amontoadas, e das pestilências mortíferas águas do dito Canal”412.
Os moradores da freguesia de Sant‟Anna reconheciam e lamentavam que “o interesse
de alguns especuladores despejam na nossa atmosfera, tendo apenas em mira
enriquecerem facilmente, embora com grande lesão da saúde pública”413.
Anos mais tarde, o diretor das Obras Municipais, José Antônio da Fonseca
Viana, escreveu sobre como a proposta inicial do Canal do Mangue estava bem distante
da realidade vivida pelos moradores. Reconheceu também o jogo político de
responsabilizar outra instância governamental a efetuar a limpeza das valas e a
dragagem do canal. Cabendo por fim à Câmara Municipal a responsabilidade pela
manutenção do referido melhoramento, e o gasto de 50 contos de réis pela limpeza e
reparo. Nas palavras de Fonseca Viana:
412
Abaixo-assinado de moradores da Freguesia de Santa Anna à Câmara Municipal, de 01 novembro de
1867. AGCRJ 40.3.45. Fundo Camara Municipal. Série Canais.
413
Idem.
414
Ofício da Diretoria das Obras Municipais, diretor José Antonio da Fonseca Viana 03-02-1871. AGCRJ
40.3.45. Fundo Camara Municipal. Série Canais.
147
PARTE 2:
A busca por mais controle da socionatureza urbana pelo Estado e o
surgimento de novas relações socioecológicas (c. 1870-1889)
Temos observado ao longo dos dois capítulos anteriores que conforme o Estado
ampliava seu controle da socionatureza, ele a transformou para seus próprios objetivos.
A modificação dessa paisagem significou o surgimento de novas relações
socioecológicas entre diferentes ambientes, incluindo com espécies distintas da humana.
Refletir sobre a história urbana da cidade do Rio de Janeiro, com suas florestas,
capinzais, animais e vegetais, amplia nossa interpretação sobre a história dos rios que
foram incorporados pela urbe carioca. Os capítulos seguintes analisam as novas e
antigas relações socioecológicas que estiveram presentes na ampliação do controle da
socionatureza urbana pelo governo imperial e municipal. Vale dizer que essa ampliação
do controle ocorreu num sentido de seguir as propostas de idealização da socionatureza,
e não de afirmar uma eficiência dos serviços urbanos ofertados pelo Estado.
A apropriação de conceitos das ciências naturais pelas humanidades, além de
ousadia interdisciplinar com possíveis desentendimentos, possibilita um entendimento
mais holístico sobre a cidade, como objeto e como fenômeno. A disciplina da Ecologia
tem em seu desenvolvimento a contribuição de muitos autores415. Mas, é na obra do
ecólogo catalão Ramón Margalef que vemos um sentido mais histórico para a
socionatureza. Para ele, a informação contida no ambiente biofísico nos permite
angariar informações sobre o passado. Os sistemas fluviais, assim como os biológicos,
também são capazes de armazenar informação, através de sua topografia, de sua história
de vida416.
Dito isso, interpretamos nesta tese a cidade como um ecossistema, considerando
suas dinâmicas populacionais humanas e não-humanas, seus fluxos de matéria, energia
e informação, e as relações entre os seres vivos e seu entorno – as relações
socioecológicas. De fato, o termo relações ecológicas já abarcariam a diversidade de
atividades humanas na cidade. No entanto, optamos pelo prefixo social para reforçar a
415
Segue alguns desses autores. ODUM, Eugéne P. Fundamentos de Ecologia. Lisboa: Fundação
Calouste Gubenkian, 1976. RICKLEFS, Robert. The economy of nature. Nova Iorque: W. H. Freeman,
2008. BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John. Ecology: from individuals to
ecosystems. Malden: Wiley-Blackwell, 2016.
416
MARGALEF, Ramón. Perspectivas de la teoria ecológica. Barcelona: Editorial Blume, 1978.
148
dimensão de nossa espécie na narrativa desta tese de história. Nesse sentido, as relações
socioecológicas seriam interações entre organismos, populações e/ou ecossistemas,
considerando tanto a diversidade sócio-cultural, a biodiversidade, assim como a
dimensão geo-ecológica. Ou seja, as cidades seriam incorporadas como sistemas
ecológicos, mas para isso seriam afirmadas como sistemas socioecológicos – ou nos
termos desta tese, socionaturais. Incluindo aspectos da materialidade biológica na
equação interpretativa do urbano, como: o corpo dos habitantes, com sua saúde e
doenças; animais e vegetais que fomentaram a transformação urbana; assim como o
próprio ambiente biofísico e todo um conjunto de ideias que foram expressados como
ciência, engenharia, planejamento, e outros usos. Voltando a Margalef,
417
La información contenida en la naturaleza – por qué la naturaleza es como es y no de otra
manera – nos permite una reconstrucción parcial del pasado. Solamente carecería de pasado un
universo hipotético compuesto de energía pura. En cualquier sistema material aparecen interacciones
y mecanismos cibernéticos y, con ellos, acumulaciones de información. Los organismos constituyen
un maravilloso ejemplo, pero este proceso de construir y transmitir historia no está restringido al
mundo orgánico. El desarrollo de los meandros en un río, la complejidad creciente de la corteza
terrestre mediante sucesivas épocas de orogénesis son dispositivos de almacenamiento de información
del mismo modo que lo son los sistemas genéticos. (…) La única prueba que deben superar los
sistemas cibernéticos que existen de modo natural – sean meandros de un río u organismos – es la
capacidad de persistir. Cf. MARGALEF, Perspectivas de la teoria ecológica, op. cit., p. 8-9.
149
industriais da cidade. Por fim, o terceiro canal, que mais nos interessa nesta tese, é o
cultural – que “transmite o que se tem aprendido por atividade individual ou experiência
e foi passado às gerações futuras de maneira externa ao canal genético”418. Neste canal a
linguagem é o veículo revolucionário de transmissão de informação. O que destacamos
da contribuição de Margalef para esta tese é que as ideias e ideais tiveram um papel
ativo na transformação do ecossistema urbano – seja na pretensão especista em excluir
espécies do ambiente urbano idealizado ou no desenvolvimento das teorias médicas que
modelaram o tipo de cidade que a elite urbana sonhava em ter.
Ao analisarmos a cidade do Rio de Janeiro oitocentista como um ecossistema
urbano, podemos repensar o papel dos idealizadores da socionatureza na dinâmica
populacional de outras espécies. Veremos então que tiveram espécies que eram
desejadas por uns e indesejadas por outros, como os equinos urbanos e as lavouras
urbanas. Assim como tiveram espécies indesejadas por todos, como as associadas a
imundície e insalubridade – como os porcos, ratos, mosquitos. Nessa idealização a
Câmara Municipal foi o principal atuante na exclusão destes indivíduos conforme as
súplicas e reclamações eram direcionadas.
Esta parte analisou as relações entre humanos, animais e vegetais nas bacias
fluviais, em um momento em que o crescimento urbano do Rio de Janeiro possuiu
transformações mais intensas. A partir da década de 1870, os processos modernizantes
urbanos, que se iniciaram poucos anos antes, foram marcados pela chegada de: espécies
exóticas transportadas pela força de navios a vapor (reflorestamento); um novo meio de
transporte (bondes); de novos materiais estruturais (cimento, pavimentação
macadamizada). Os elementos modernizantes (trem, bonde, navio a vapor, telégrafo,
instrumentos científicos, etc.), profundamente influenciados por uma ciência cada vez
mais associada à tecnologia e ao capitalismo, e o crescimento urbano foram
responsáveis pelo aparecimento de novas relações socioecológicas.
O capítulo 3 abordou às relações socioecológicas florestais, do alto curso, em
particular a transformação das florestas urbanas cariocas. Em 3.1, administradores,
naturalistas, árvores e trabalhadores do reflorestamento forneceram contribuições para a
produção e circulação do conhecimento científico florestal. Na seção seguinte (3.2),
dando continuidade aos planos florestais, vemos que o Estado possuía distintos planos
que resultaram em novas relações socioecológicas. Dentre estes planos estava a
418
MARGALEF, Perspectivas de la teoria ecológica, op. cit., p. 95.
150
elitização do alto curso carioca, através da criação de estradas e trilhos de bondes para
dar acesso aos hotéis e sanatórios e seus banhos de cachoeira (3.3). Por fim, a mudança
na política de abastecimento de água saturou a busca por rios próximos e mirou na
captação de águas distantes (3.4).
No capítulo 4 veremos como a urbanização dos arrabaldes cariocas transformou
as relações entre a cidade e seus rios. Num primeiro momento (4.1), esforços municipais
e imperiais foram voltados para planejar novos melhoramentos para a cidade. Os
engenheiros estiveram no centro desses planejamentos e decisões, redefinindo novas
interseções entre o ambiente biofísico e o social no território urbano. E em meio ao
crescimento urbano, as demandas de transporte realizado por equinos modificaram a
dinâmica territorial dos subúrbios (4.2). Para alimentar esses animais que transportaram
pessoas e materiais diversos, toda uma infraestrutura foi necessária. Assim a análise
sobre capinzais, e outros vegetais convenientes para a cidade neste momento, foi
realizada para compreender as novas dinâmicas socioecológicas do subúrbio com o
centro urbano (4.3).
Por último, no capítulo 5 analisamos como as teorias médicas transformaram o
modus operandi de planejamento e intervenção urbana. Primeiro em como as ideias
sanitárias surgiram e regeram as decisões urbanas (5.1). Depois na sistematização dos
serviços sanitários urbanos que buscavam o controle e eficiência na circulação das
imundícies do metabolismo do ecossistema urbano (5.2). Por fim, como o poder público
gerenciou excrementos indesejados, seres vivos indesejados e ambiente indesejados
(5.3).
151
CAPÍTULO 3:
Transformação da paisagem florestal e novas apropriações do alto
curso carioca
419
GAZETA de Notícias [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro, ano 13, nº 242, p. 1, de 30 de agosto de
1887. INCÊNDIO na Floresta da Tijuca [s/ autor e s/ título]. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, ano 13,
nº 243, p. 1, de 31 de agosto de 1887. INCÊNDIO na Floresta da Tijuca [s/ autor e s/ título]. Gazeta de
Notícias. Rio de Janeiro, ano 13, nº 245, p. 2 de setembro de 1887.
420
CHUVAS depois do incêndio [s/ autor]. O Paiz. Rio de Janeiro, ano 4, nº 1064, p. 2, de 04 de
setembro de 1887.
152
meses de junho a agosto, que acarretaram a morte de plântulas ou incêndios como esse.
Foi nesse cenário de déficit hídrico que a tradição de balões de festividades joaninas
intensificou as queimadas que devastaram as matas brasileiras – inclusive nos dias
atuais.
O que mais impressionou neste ocorrido foi a pronta resposta do Estado que
mobilizou diferentes instituições do governo imperial: a Inspetoria Geral das Obras
Públicas com 30 homens sob o comando do Major Freitas; a Administração da Floresta
Nacional da Tijuca com 30 homens com o barão d‟Escragnolle; o Corpo de Bombeiros
com 20 homens sob ordens do Coronel Neiva; e o Ministério da Agricultura, Comércio
e Obras Públicas e seu ministro Rodrigo Augusto da Silva, que autorizou o Major
Freitas a empregar todos os homens da Inspetoria e contratar particulares para
auxiliarem no combate ao incêndio. Porque a Princesa Regente, devido à ausência de
seu pai Dom Pedro II em tratamento de saúde na Europa, mandaria um telegrama na
noite do dia primeiro de setembro para salvar uma floresta, enquanto tantas outras
pegavam fogo por dias? Os interesses em salvar essa floresta do incêndio estão
alinhados com o projeto de nação imperial pensado pela elite governante.
Foi nessa mesma floresta, há algumas centenas de metros do evento flamejante,
que o Imperador passou alguns dias de maio desse mesmo ano no palacete da Condessa
de Itamaraty, para se recuperar de uma enfermidade. Dentre as muitas pessoas que o
receberam quando saíra do bonde por onde subiu, estavam os dois administradores da
Floresta Nacional da Tijuca, o Manuel Gomes Archer (1862-1874) e o Barão
d‟Escragnolle (1874-1888) e o Inspetor de Obras Públicas, Raimundo Teixeira Belfort
Roxo421. A presença dos criadores da Floresta ressalta dois pontos importantes. O
primeiro é o fato de que esse ecossistema foi intensamente modificado por mãos
humanas. Conforme eles próprios afirmavam, a floresta foi inteiramente replantada,
criada. O segundo ponto é de que existem motivações de ordem simbólica em
reflorestar e manter uma floresta sob a égide do governo imperial.
421
SUA MAJESTADE o Imperador [s/ autor]. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, ano 13, nº 122, p. 1,
de 02 de maio de 1887.
153
da ciência e dos usos por essa elite, buscou-se também compreender o abandono das
políticas de abastecimento de água nos mananciais locais.
422
Essa seção foi publicada anteriormente em CAPILÉ, Bruno. Circulação e hibridização na ciência
florestal imperial: reflorestamento ou silvicultura na Tijuca no final do século XIX. Anais do 15º
Seminário Nacional de História da Ciência e Tecnologia, Santa Catarina, 2015.
423
Como foi visto anteriormente no capítulo 1.3.
424
RAJ, KAPIL. Além do Pós-colonialismo... e Pós-positivismo Circulação e a História Global da
Ciência. Revista Maracanan, edição: n.13, p. 164-175, p. 170, dezembro de 2015.
425
RAJ, Além do Pós-Colonialismo, op. cit.
154
práticas quando se deslocam426. Assim, nos aproximamos também de Michel de
Certeau427 quando afirma que uma ideia que sai de sua área original de produção e entra
em outra, pode se transformar, assim como pode retornar ao ponto de origem
modificada. Dessa forma, ampliando as relações polares entre produtores e
consumidores de conhecimento, e investigando movimento e transformação do produto.
Esta circulação ocorreu de maneira gradual, portanto, as interações entre
diferentes aspectos das ciências seriam elas mesmas um local de construção e
reconfiguração do conhecimento, e não somente confinar o conhecimento científico em
espaços institucionalizados como laboratórios, universidades, etc. O referido termo nos
permite perceber um fluxo aberto que confere agência a múltiplos atores envolvidos no
conhecimento florestal imperial brasileiro – escravos, funcionários do estado,
administrador da floresta, naturalistas e tantos outros. A perspectiva de uma ciência
unidirecional num contexto binário de centro e periferia torna-se inviável nesse aspecto
de circulação – que “permite ver a ciência como sendo coproduzida pelo encontro e pela
interação entre comunidades heterogêneas de especialistas de diversas origens”428.
Dessa maneira, livros, periódicos, palestras, tornam-se nós nessa imensa rede de
circulação de conhecimento, que possui informação localizada no espaço e no tempo.
Stuart McCook desenvolve sua ideia de ciência criolla como uma alternativa
para abordar as atividades científicas transnacionais na América Latina, e “dissolver a
forte distinção entre ciência “imperial” e “nacional”429. Este conceito foi desenvolvido
deliberadamente do termo creole – idiomas híbridos de matrizes europeias e africanas –
e do termo espanhol criollo – nascido nas Américas, mas de ascendência espanhola.
Assim, sua ciência criolla seria tanto híbrida quanto autóctone. Ou seja, para ele, as
ideias europeias que chegavam na América Latina transformavam-se em algo local,
porém mantendo sua ancestralidade europeia. Mas o conceito de hibridização toma mais
corpo como uma ferramenta epistemológica para este trabalho quando concebemos um
maior alcance desse significado. O termo socionatureza satisfaz em parte nossa
426
SILVA, Matheus Alves Duarte. Circulação não é fluidez - Entrevista com Kapil Raj. Boletim
Eletronico da sociedade Brasileira de História da Ciência, v. 3, p. 2, 2016. Disponível em
<http://www.sbhc.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=944>. Acesso em: 16 de fevereiro de 2018.
427
CERTEAU, Michel de. La invención de lo cotidiano I. Artes de hacer. México D.F.: Universidad
Iberoamericana Biblioteca Francisco Xavier Clavigero, 1996.
428
RAJ, Além do Pós-colonialismo, op. cit., p. 173
429
McCOOK, Stuart George. States of Nature: science, agriculture and environment in Spanish
Caribbean, 1760-1940. Austin: Univertity of Texas Press, p. 5, 2002.
155
abordagem da floresta, e os saberes e práticas em seu manejo, como algo
simultaneamente social e natural, mecânico e orgânico. Essa socionatureza possuía
especificidades locais que implicaram problemas locais para a construção do
conhecimento científico, e soluções locais. Como partidário das ideias de geografia da
ciência de David Livingstone, a ciência foi aqui considerada ao mesmo tempo local e
global. A circulação das informações compartilhadas por diferentes atores precisaram
ser traduzidas, transformadas, para realidades locais. Transmitir conhecimento
significou sua transformação430.
Embora a hibridização dos elementos que participaram da construção de
diversos conhecimentos tenha ocorrido, não podemos dizer o mesmo do conhecimento.
Este é algo novo, da qual muitas vezes a hibridização não daria conta. Os saberes e
práticas circulam, podendo se transformar em algo completamente novo. A hibridização
está presente na construção desse conhecimento, onde diferentes agentes participam
desse processo.
No caso da ciência florestal imperial, a circulação do conhecimento na hibridez
das socionaturezas tornou-se uma boa chave de interpretação para compreender
aspectos científicos presentes nos administradores da Floresta Nacional da Tijuca. Por
exemplo, interpretamos que Archer construiu seu conhecimento sobre silvicultura e
reflorestamento tanto pela leitura de livros e pela proximidade de conhecimentos de
seus escravos e funcionários, quanto da observação da reação das mudas transplantadas
no ambiente biofísico (chuvas, secas, sol, sombra, vento…). O social e o natural,
separados em algum passado, fundiram-se novamente como uma socionatureza, na qual
também participou de maneiras diversas na construção do conhecimento. O
conhecimento florestal circulou tanto internamente na rede de Archer, quanto através
dos leitores de seus relatórios, como o próprio Escragnolle. As mudas que morriam com
a primeira prática de transplante participaram do conhecimento de Archer, assim como
o funcionário que coletava sementes e plântulas nas florestas.
Convidamos o leitor a nos acompanhar no modus operandi desenvolvido por
esses homens das matas. As técnicas serão a base da narrativa nesta seção, com avanços
e retrocessos temporais e deslocamentos espaciais que busquem indicar as modificações
humanas na comunidade vegetal no maciço da Tijuca. Assim, a narrativa seguirá a
ordem cronológica de uma jovem árvore a ser plantada. Primeiro vem a semente, obtida
430
LIVINGSTONE, David N. Putting Science in its place: Geographies of Scientific Knowledge.
Chicago: The University of Chicago Press, 2003.
156
por diferentes maneiras e plantadas nos canteiros. Conforme o vegetal se desenvolve,
novas necessidades de espaço e nutrientes resultam no transplante para viveiros ou em
pequenos cestos. Após um momento de amadurecimento, o indivíduo vai para o plantio
definitivo em uma cova previamente aberta em uma clareira que o iluminará. Já em seu
lugar vitalício, os cuidados residem na capina e outros preparos que asseguram a saúde
e desenvolvimento do jovem. Ao longo dessas quatro etapas (sementeira, viveiro,
plantio e cuidados essenciais)431, outros protagonistas dessa história surgem para
abordar assuntos como circulação de plantas e de conhecimento, história da ciência,
relações de trabalho, entre outros.
431
Os relatórios exibiam as informações seguindo, de um modo geral, esse mesmo modelo de história do
indivíduo vegetal.
432
Os viveiros e as sementeiras da floresta da Tijuca foram elaborados já em seu início. Em Paineiras, os
esforços iniciais eram empregados principalmente na conservação e construção de caminhos, e no
policiamento das matas. Anos mais tarde, em 1870, Nogueira da Gama empreendeu a organização das
sementeiras e viveiros para o reflorestamento nas Paineiras. Deixando, em grande parte, de receber as
sementes provenientes da Tijuca.
433
D'ESCRAGNOLLE, Gastão. Relatório da Floresta da Tijuca. P. 4 In: PEREIRA JR., José Fernandes
da Costa. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, das Obras Públicas do ano de 1874. Rio
de Janeiro: Typographia Americana, p. 4, 1875.
157
por Archer434; “aquele zeloso empregado”435, pelo Escragnolle. Muito provavelmente
este funcionário foi José Justino da Silva que tivera seu assalto por “larápios” registrado
no Jornal do Commercio, em 1872. Como precisava seguir para Guaratiba, pela manhã,
no primeiro trem436, para sua coleta de plantas, quis aproveitar o fim do dia no centro da
cidade. Interessado em economizar o que iria gastar no pernoite, aceitou dormir em casa
de um rapaz que acabara de conhecer. Horas mais tarde este “colega” roubava-lhe, com
mais três integrantes, seus 18$000 réis e um bilhete de loteria. Dinheiro que
provavelmente não era integralmente de José Justino, já que seus vencimentos mensais
eram de 45$000 e descontados por falta437.
434
ARCHER, Manoel Gomes. Serviço Florestal da Tijuca. Anexo W do Relatório do Ministério da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas do ano de 1872. Rio de Janeiro: Typographia Commercial, p. 3,
1873.
435
D‟ESCRAGNOLLE, Relatório da Floresta da Tijuca, 1875, p. 4.
436
Possivelmente o trajeto a ser percorrido por José Justino era de trem até a estação de Sapopemba (atual
Estação de Deodoro), de lá algum transporte pela Estrada de Santa Cruz. O ramal de Santa Cruz e sua
estação final somente foram inaugurados no ano de 1878, seis anos depois do ocorrido.
437
JORNAL do Commercio [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Ano 51, nº 121, p. 4, 1 de maio de 1872.
158
competindo desproporcionalmente por solo e luz com outras espécies exóticas. O
resultado foram populações de jaqueiras homogeneizando diversas áreas florestais,
como resultou no reflorestamento da Tijuca e no atual bairro do Horto, nos arredores do
Jardim Botânico. Nos primeiros anos do século XXI, as instituições governamentais
responsáveis pelo manejo florestal comprometeram-se a combater a jaqueira através do
arranchamento de jovens mudas e do anelamento438 de adultas439.
438
Corte pouco profundo ao redor do tronco de uma árvore, comprometendo as estruturas de circulação
de seiva e matando o indivíduo a curto-médio prazo.
439
ABREU, Rodolfo Cesar Real de; RODRIGUES, Pablo J. F. Pena. Estrutura de populações de
jaqueiras, subsídios para manejo e conservação da mata atlântica. Categoria 1: trabalhos científicos.
Ministério do Meio Ambiente. Disponível em:
<http://www.mma.gov.br/estruturas/174/_arquivos/174_05122008113744.pdf>. Acesso em: 23 de maio
de 2016.
440
OLIVEIRA BULHÕES, Antonio Maria de. Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas. Anexo K
do Relatório Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas do ano de 1867. Rio de
Janeiro: Typographia do Diario do Rio de Janeiro, p. 11, 1868.
441
ARCHER, Manoel Gomes. Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca. Anexo DD
EE11 do Relatório Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas do ano de 1873. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, p. 5, 1874.
159
higiênica e rendosa”442.
442
ARCHER, Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca, op. cit., p. 5.
443
Difícil afirmar qual espécie corresponde, já que este nome popular corresponde a diferentes espécies
de gêneros distintos da família Anacardiaceae. No Rio de Janeiro a mais comum corresponde a Schinus
terebinthifolius Raddi. Porém por ser das províncias do Norte, atual Nordeste Brasileiro, suponho que seja
a Myracrodruon urundeuva Allemao, aroeira-do-sertão. Conforme LORENZI, Harri: Árvores brasileiras:
manual de identificação e cultivo de plantas arbóreas do Brasil. Nova Odessa: Instituto Plantarum, vols. 1
e 2, 2002.
444
As províncias do Norte correspondem as atuais regiões norte e nordeste brasileiro.
445
ARCHER, Manoel Gomes. Serviço Florestal da Tijuca. Anexo W do Relatório do Ministério da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas do ano de 1872. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1873.
446
CAPILÉ, Bruno; VERGARA, Moema. Circunstâncias da Cartografia no Brasil oitocentista e a
necessidade de uma Carta Geral do Império. Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v.
5, n. 1, p. 37-49, jan- jun 2012.
447
LORENZI, Harri: Árvores brasileiras: manual de identificação e cultivo de plantas arbóreas do Brasil,.
Nova Odessa: Instituto Plantarum, vols. 1 e 2, 2002.
448
ARCHER, Manoel Gomes. Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca. Anexo DD
EE11 do Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas do ano de 1873. Rio
de Janeiro: Typographia Americana, 1874.
160
desenvolvidas nas sementeiras tiveram bastante sucesso. Esta aroeira, apontada em
relatórios como do Paraná teve mais de duzentas mudas foram plantadas em 1879, na
administração Escragnolle. Neste mesmo ano, 46 pinheiros também foram plantados, e
o interesse no uso na construção civil era constantemente relembrado nos relatórios. O
mate não houve menção de plantio. Também do sul do país vieram sementes de uma
árvore chamada Sucrajú449, doadas pelo farmacêutico alemão Hermann Otto Blumenau
em 1874, porém aparentemente não germinaram450.
449
Espécie indeterminada.
450
D'ESCRAGNOLLE, Gastão. Relatório da Floresta da Tijuca. Anexo do Relatório do Ministério da
Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas do ano de 1874. Rio de Janeiro: Typographia
Americana, 1875.
451
Chamo assim o ímpeto de naturalistas viajantes em colecionar e descrever novas espécies num frenesi
de crescimento da própria carreira, comum nos séculos XVIII e XIX. Jovens cientistas ansiavam por
publicar suas descrições taxonômicas ao mesmo tempo em que pesquisadores que chefiavam grandes
instituições, mais velhos, competiam pelo destaque, pelo ineditismo e pelo reconhecimento. A vaidade foi
um sentimento bem recorrente neste mundo taxonômico. Para maiores informações ver o caso de Barbosa
Rodrigues, Cf. SÁ, Magali Romero. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no
Brasil na segunda metade do século XIX. Revista História, Ciência e Saúde. Rio de Janeiro, v. 8, supl. p.
899-924, 2001; ou a história de Frei Veloso em KURY, Lorelai B. O naturalista Velloso. Revista
História. São Paulo, n. 172, p. 243-277, Junho 2015.
452
RAJ, Kapil. Além do Pós-colonialismo... e Pós-positivismo: circulação e a história global da ciência.
Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 13, p. 164-175, dezembro 2015.
453
RAJ, Além do Pós-colonialismo... e Pós-positivismo, op. cit.
161
Em 1881 foi indicado em relatório do MACOP o fornecimento de sementes e
mudas doadas pelo Couto Ferraz, pelo Conselheiro Beurepaire Rohan, e novamente
pelo Bernardo de Oliveira. Outras poucas menções ocorreram, como no ano de 1886
quando o Conde de Villeneuve, Senador Taunay, Auguste Glaziou, Henrique Dias, e
novamente Bernardo de Oliveira, ofertaram plantas454.
454
BELFORT ROXO, Raymundo Teixeira. Relatório da Inspetoria Geral das Obras Públicas da Corte. In:
SILVA, Augusto da. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do ano de 1886.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887
455
Ofício nº 45 de Francisco José de Freitas, chefe do 3º Distrito da Inspeção Geral das Obras Públicas,
ao Manoel Gomes Archer, administrador da Floresta da Tijuca, em 06 de setembro de 1870. Arquivo
Nacional. ANRIO TA 0.0.33
456
Ofício nº 176 de Francisco José de Freitas, chefe do 3º Distrito da Inspeção Geral das Obras Públicas,
ao Manoel Gomes Archer, administrador da Floresta da Tijuca, em 29 de setembro de 1870. Arquivo
Nacional. ANRIO TA 0.0.34
162
As sementeiras foram o primeiro lar para que as jovens plântulas tivessem mais
chances de se desenvolver. Assim que as primeiras folhas asseguravam uma vida
saudável, os indivíduos eram transplantados para cestos de taquara nos viveiros. Local
onde o amadurecimento das raízes e estruturas aéreas do vegetal dava mais
oportunidade para uma vida adulta sadia. Enquanto isso, o solo do local decisivo era
preparado e aberto para receber a jovem planta. Por fim, com o plantio definitivo, foram
necessárias repetidas “limpezas” nos terrenos, substituição das árvores mortas e a
conservação dos caminhos de acesso.
Os cuidados nas sementeiras asseguravam indivíduos saudáveis que iam para os
viveiros para se desenvolverem separadamente de suas irmãs de canteiros. Os trabalhos
consistiam no fabrico de cestos de taquara e seu preparo para as mudas, e no plantio e
manejo das plantas nos cestos. A ideia de elaborar novos recipientes, que ocorrera em
1869, para o desenvolvimento do vegetal tornou-se bastante produtiva. Archer apontou
que pouquíssimas mudas foram perdidas no processo de transplante das sementeiras
para os viveiros e destes eram plantadas juntamente com os cestos nos locais
definitivos. Tal processo foi incorporado no reflorestamento das Paineiras a partir do
ano de 1871, quando pela primeira vez Thomaz Nogueira da Gama indicou que utilizara
tal processo no plantio de 2.280 mudas em cestos457. No ano anterior, o Inspetor Geral
celebrava o início da produção de mudas através das primeiras sementeiras nas
Paineiras.
457
BARRETO, Francisco do Rego Barros. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, das
Obras Públicas do ano de 1871. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1872.
458
AGRICULTURA prática: cultura geral do cafeeiro (continuação) [s/ autor]. Revista Agrícola do
Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 89-97, 1882.
459
REBOUÇAS, André. Memória para o desenvolvimento da apicultura e da sericultura no Brazil por
Charles Stanislas Mongeon-Quétigny. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura.
Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 101-125, setembro de 1876.
460
SOARES, Antonio Joaquim de Macedo. O Matte do Paraná: noticia escripta e oferecida à Comissão
Central da Exposição do Paraná. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. Rio
de Janeiro, v. 6, n. 4, p. 168-185, dezembro de 1875.
163
vegetais. Ou seja, a iniciativa de utilizar Taquara para cestos nos trabalhos da floresta da
Tijuca fazia parte de um movimento mais amplo. Seu uso e divulgação da como
matéria-prima local foi indispensável. A instituição que mais realizava modificações
estruturais na área da capital imperial, Inspetoria Geral de Obras Públicas, recebia
ofertas de fornecimento e materiais diversos. Dentre estes haviam cestos grandes de
Taquara com preços que variavam de 600 a 700 réis461. No entanto, os trabalhos das
florestas contaram com a construção destes cestos com bambus provenientes de seus
arredores, onde foram plantados 308 indivíduos em 1862462.
O sucesso do uso de cestos nas sementeiras foi evidente e seu uso intensificado
ao longo dos anos. A produção de cestos na década de 1870, mesmo com lacunas dessa
informação em seis anos, somou-se mais de 30 mil cestos na Tijuca. Nas Paineiras o
somatório da produção neste decênio foi de mais de 3 mil cestos. Porém, muitos mais
foram feitos, já que ainda neste mesmo período quase 10 mil plântulas foram alocadas
em cestos. Muitos destes substituíram outros que haviam sido degradados ou rachados
pelo tempo, pela falta de habilidade ou pelos cuidados com o bambu.
461
DIÁRIO do Rio de Janeiro [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro, ano 41, nº 307, de 10 de novembro de
1861.
462
Na realidade, no relatório do Ministério da Agricultura deste ano não houve especificação de qual
espécie de bambu foi plantada. Sugere-se que tenha sido alguma espécie de taquara, devido aos interesses
da gramínea como matéria-prima.
463
MONTEIRO DE BARROS, Antonio Augusto. Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas.
Apenso M do Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas do ano de
1870. Rio de Janeiro: Typographia Universal de E. & H. Laemmert, p. 5, 1871.
164
abastecimento d‟água como um ótimo exemplo. Na floresta, algumas árvores, que
haviam feito um papel ecológico de proteção ao solo e sombreamento de árvores
menores, foram cortadas. Não havia mais interesse em mantê-las em pé, pois a geração
vegetal seguinte fora escolhida para seus papéis ecológicos, econômicos e/ou estéticos.
464
ARCHER, Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca, op. cit., p. 4-5.
465
ARCHER, Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca, op. cit., p. 5.
466
ARCHER, Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca, 1874, p. 4.
467
D'ESCRAGNOLLE, Gastão. Relatório da Floresta da Tijuca, 1875, p. 3.
165
Assim que assumiu a administração florestal em 1874, Escragnolle reconheceu a
dificuldade de arborizar lugares remotos, já que os viveiros se limitavam a um só ponto
da floresta, próximo à antiga residência de Archer, no Midosi. Ao reconhecer esta falha
entre a produção e a distribuição das mudas pelas diferentes áreas de reflorestamento,
Escragnolle apontou a necessidade de criar outros centros para depósitos de mudas,
construindo, convenientemente, um grande viveiro próximo a sua residência na floresta,
no vale do atual rio Archer468. Com novas áreas a serem reflorestadas o serviço consistia
no preparo e conservação do caminho para o terreno onde plantar, na derrubada do mato
silvestre que não interessasse ao reflorestamento, a plantação de novas árvores, a capina
dos terrenos e cuidado com as árvores469.
Conforme sua própria declaração, Archer desenvolvia suas técnicas segundo sua
própria experiência e tempo. Em sua época, as covas para o plantio definitivo já eram
fundas (1m) e preparadas com adubo vegetal. O reviramento do solo aerava sua
estrutura, permitindo a passagem de água e ar por entre os grãos minerais. Escragnolle,
diferente da ciência florestal de base empiricista de Archer, estava sintonizado com as
ciências produzidas na Europa. As pesquisas na área de química de solos de Humphry
Davy (1778-1829) e Justus von Liebig (1803-1873) haviam se aprofundado bastante,
com muitos destaques para experimentos. Estes e outros conhecimentos estavam
circulando entre livros, periódicos e instituições científicas da Corte oitocentista470.
Escragnolle se valeu desses conhecimentos para auxiliar seu trabalho e de seus homens.
468
D‟ESCRAGNOLLE, Relatório da Floresta da Tijuca, op. cit., p. 4.
469
ARCHER, Manoel Gomes. Serviço Florestal da Tijuca. Anexo W do Relatório do Ministério da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas do ano de 1872. Rio de Janeiro: Typographia Commercial,
1873.
470
CAPILÉ, Bruno; SANTOS, Nadja Paraense dos. A química no melhoramento da produção agrícola e
sua divulgação na Revista Agrícola. In: LOPES, Maria Margaret; HEIZER, Alda. Colecionismo, práticas
de campo e representações. Campina Grande: EDUEPB, 2011.
166
natureza em toda a parte, recursos antes tais que, sabendo-se tornar
manifestas as suas energias de ordinários latentes, dispensam-nas no mais das
vezes o ter de recorrer a gastos, elevadíssimos no caso do estabelecimento
que tenho a honra de dirigir, de compra e transporte de materiais estranhos ao
solo em que se opera471.
471
D‟ESCRAGNOLLE, Relatório da Floresta da Tijuca, 1875, p 3.
472
D‟ESCRAGNOLLE, Gastão. Informações acerca do serviço da Floresta Nacional da Tijuca. Março de
1886. Arquivo Nacional. ANRIO TA 0.0.185
473
Azoto era como o nitrogênio era comumente chamado nessa época.
167
alimento das plantas. Boussingault influenciou a escola de pensamento dos Azotistas,
que era antagônica a de Liebig, chamada de escola Mineralista. Para ele o nitrogênio
tinha um papel secundário, sendo os minerais do solo, o principal alimentador
vegetal474. Acontece que, segundo a interpretação das ciências atuais, o nitrogênio
disponível para os vegetais não é o atmosférico, mas sim uma variação molecular que se
encontra no solo. Um fato curioso é que Liebig havia sido influenciado por
Boussingault, que executou trabalhos sobre o teor de nitrogênio em diferentes plantas e
a afirmava que o valor de um fertilizante era proporcional ao seu teor de nitrogênio475.
Liebig ainda em vida, e após observar diversos experimentos em química de solos,
buscou uma posição mais conservadora.
168
gerando menor dano ao complexo sistema radicular que não crescera muito. Esses são
exemplos de uma apropriação crítica dos saberes, o que levou a um novo conhecimento
que começou a circular no reflorestamento das Paineiras e na continuidade
administrativa de Escragnolle.
No entanto, nem toda apropriação de saberes foi eficiente. O caso de
Escragnolle ter preparado as covas abrindo-as previamente, foi um caso de falta de um
senso crítico. Desconsiderar o clima do Rio de Janeiro, com alta quantidade de
irradiação solar, gerou a consequência de expor o solo ao dessecamento,
comprometendo os benéficos microorganismos locais.
169
de servir ao abastecimento público”477. Em 1863, o Ministro da Agricultura, Pedro de
Alcantara Bellegarde, apontou diferentes serventias das árvores, como: purificar o ar,
embelezar o solo, dar sombra e madeiras de construção, e lenha para o fogo. Mas, foi
nos benefícios aos rios que Bellegarde destacou sua retórica.
477
OLIVEIRA BULHÕES, Antonio Maria de. Relatório da Inspecção Geral das Obras Públicas. Anexo
K do Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas do ano de 1867. Rio de
Janeiro: Typographia do Diario do Rio de Janeiro, p. 8, 1868.
478
BELLEGARDE, Pedro de Alcântara. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das
Obras Públicas do ano de 1862. Rio de Janeiro: Typographia Paula Brito, p. 74, 1863.
479
SILVA, Miguel Antonio da. Silvicultura brasileira: trabalhos da Floresta Nacional da Tijuca. Revista
Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. Rio de Janeiro, n. 5, p. 29-33, setembro de
1870.
480
SILVA, Silvicultura brasileira, op. cit., p. 31.
481
SILVA, Silvicultura brasileira, op. cit., p. 32.
482
CAPILÉ, Bruno. A mais santa das causas: a Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de
Agricultura (1869-1891). Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História das Ciências
das Técnicas e Epistemologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010; BEDIAGA,
Begonha. Marcado pela própria natureza: o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura – 1860-1891.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014
483
SACHS, Julius von. As florestas não secam o solo. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense
de Agricultura. Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 41-46, Abril, 1875
170
l’Agriculture, o alemão Julius von Sachs descreveu uma experiência sobre o
dessecamento no sol e na sombra e concluiu que “a evaporação é três vezes menos
rápida dentro do bosque do que a descoberto”484. Por fim, listou as vantagens das
florestas: conservam a umidade; resfriam o local, pois “todo o líquido que passa ao
estado gasoso produz absorção de calórico”485; mantém as nascentes; impede os ventos
de secar o solo; bloqueiam o impacto direto da chuva; condensam os nevoeiros.
A Revista Agrícola, junto a outros periódicos como O Auxiliador, foi um ótimo
veículo de divulgação da ciência, chamado a época de vulgarização científica. Nicolau
Joaquim Moreira, fora redator do periódico desde a morte de Miguel Antonio da Silva
em 1879, até 1887. A verve “vulgarizadora” de Moreira já o tinha feito publicar mais de
20 artigos, direcionados ao grande público, a época em que assumira a redação. Sua
atuação no ramo começara na redação d‟O Auxiliador de 1866 a 1874, e como professor
no Museu Nacional. Seu currículo assegurava um interesse pela educação na
agricultura, pela divulgação de novos conhecimentos científicos.
Em seu artigo sobre Florestas em março de 1882486, uma aula feita no Museu
Nacional, Moreira associou o desmatamento ao impacto direto da luz solar que aquecia
e reduzia a frequência de chuvas e o volume dos rios. Segundo ele, as “partes
subterrâneas” das árvores consolidavam “os flancos das montanhas”, evitando, dessa
maneira, a formação de torrentes e enchentes487. Defendia também que as árvores
regulavam a temperatura e a umidade, purificavam o ar sem nunca incorporarem
“corpos organizados como são os miasmas”488, e, mais uma vez, regulava o “regime de
nossos rios”489. Essas funções ecológicas das florestas estiveram também associadas aos
interesses econômicos do uso racional das madeiras. Moreira escrevia que a importância
de “estabelecer (...) uma rotação de florestas e de culturas seria melhorar o solo,
484
SACH, As florestas não secam o solo, op. cit., p. 41.
485
SACHS, As florestas não secam o solo, op. cit., p. 41. A teoria calórica pressupunha a existência de
um fluido invisível e inodoro (calórico) que causavam as mudanças de temperatura: a substância do calor.
Desenvolvida como proposta para explicar as deficiências da teoria do flogisto (outra teoria sobre
substância do calor), o calórico foi abandonado como teoria após a elaboração da termodinâmica que
associava o calor ao movimento cinético das moléculas e não a uma substância específica. Cf.
BENSAUDE-VINCENT, Bernardette; STENGERS, Isabelle. A History of Chemistry. Harvard University
Press, 1996.
486
MOREIRA, Nicolau Joaquim. Economia rural: florestas – sua influência. Revista Agrícola do Imperial
Instituto Fluminense de Agricultura. Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 177-184, março 1882.
487
MOREIRA, Economia rural, op. cit., p. 178.
488
MOREIRA, Economia rural, op. cit., p. 180.
489
MOREIRA, Economia rural, op. cit., p. 182.
171
centuplicar a produção e conservar em sua justa proporção a fecundidade da terra com
as necessidades do homem”490.
A crença no poder de gerenciar o ambiente flúvio-florestal visava também o uso
direto das árvores como recurso natural, pelo governo imperial. A explicitação do uso
das madeiras para a construção civil e naval esteve presente em muitos relatórios e
artigos. Por vezes era associado com o embelezamento da área “mui agradável e
interessante”491, como nas palavras do empreendedor paulista Antônio da Silva Prado
enquanto ministro da agricultura em 1885; ou com a salubridade da área explicitada no
artigo de Miguel Antônio da Silva que propunha um método de “preencher dentro de
poucos anos os claros da floresta com árvores frondosas, futuro depósito de madeiras
para as construções civil e naval”492. Silva defendia uma posição de expansão da
silvicultura no Rio de Janeiro seja em outros centros de produção ou na arborização da
capital, onde aponta que “das montanhas deveria descer o plantio das árvores para as
praças, para as ruas mais largas, e principalmente as que seguem ao longo do litoral”493.
Archer também defendia que o reflorestamento era o “modo mais simples e eficaz de
tornar salubres e habitáveis as regiões que d‟antes o não eram”494.
As expressões sobre a utilidade florestal para abastecimento começaram a
decrescer e tornaram-se mais sucintas a partir da década de 1870. A continuidade dos
trabalhos florestais foram mencionadas pelo ministro da agricultura, Diogo Velho
Cavalcanti de Albuquerque, que eram realizados “como exigem a pureza e conservação
dos mananciais”495. Em 1880, Escragnolle ao escrever sobre incêndios apontou que esta
“prática abusiva pode, de um momento para o outro, destruir as matas que protegem as
águas para abastecimento da cidade”496. Ao longo dos anos 1880 os argumentos de
proteção aos rios voltaram à tona, como nos dois relatórios do Inspetor Geral das Obras
490
MOREIRA, Economia rural, op.cit., p. 187.
491
PRADO, Antonio da Silva. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do
ano de 1885. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886.
492
SILVA, Silvicultura brasileira, 1870, p. 31.
493
SILVA, Silvicultura brasileira, op. cit., p. 32.
494
ARCHER, Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca, 1873, p. 1.
495
ALBUQUERQUE, Diogo Velho Cavalcanti de. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e
Obras Públicas do ano de 1869. Rio de Janeiro: Typographia Universal de E. & H. Laemmert, p. 168,
1870.
496
D‟ESCRAGNOLLE, Barão. Relatório da Floresta da Tijuca. Anexo do Relatório do Ministério da
Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas do ano de 1879. Rio de Janeiro: Typographia Nacional,
p. 41, 1880.
172
Públicas, Raymundo Belfort Roxo. Em 1887, reforçava os trabalhos florestais como os
mais úteis pois “além da influência que exercem sobre a quantidade de chuvas e abrigo
das águas, as florestas protegem eficazmente contra a ação devastadora das chuvas
torrenciais”497. Dois anos depois sua fala tornou-se mais enfática, quando escreveu
sobre a expansão da silvicultura: “Cada vez mais se torna mais urgente a organização
definitiva de serviços florestais, impedindo-se a devastação das matas na vizinhança dos
mananciais”498.
A necessidade em expandir esse tipo de silvicultura tornava-se cada vez mais
notória. Alguns foram mais pragmáticos e diretos ao proporem a ampliação para locais
específicos. Como, por exemplo, foi o caso dos ministros da agricultura, o Barão de
Itaúna, e o senador Visconde de Sinimbú. O primeiro, Candido Borges Monteiro,
escreveu em 1872 que era preciso “ampliar a silvicultura a outras montanhas das
cercanias da cidade, como sejam as do Andarahy Grande e Alto da Boa Vista (...), e
bem assim as matas das proximidades do Jardim Botânico”499. O segundo, João Lins
Vieira Cansansão de Sinimbú, também engrossara o coro e requisitou a “criação de
centros florestais nas cabeceiras do rio da Gávea e nos terrenos do Andarahy-
Grande”500.
Outros foram mais ousados e propuseram um avanço da silvicultura no Brasil.
Dois anos antes de sair em 1874, Archer se via numa posição “agradável” ao seguir seu
“dever” florestal. Suas relações e leituras o fizeram perceber “na alta administração do
estado uma pronunciada disposição para tirar este importante ramo do serviço público
do estado embrionário em que se acha há onze anos, e dar-lhe o desenvolvimento de que
é suscetível”501. Diferente da modéstia dos ministros supracitados, Archer defendia o
manejo florestal “não só aqui nas proximidades da corte, (...), se não em todo o resto do
império”. Sua familiaridade com Couto Ferraz, na época presidente do Imperial
497
BELFORT ROXO, Raymundo Teixeira. Relatório da Inspetoria Geral das Obras Públicas da Corte. In:
SILVA, Augusto da. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas do ano
de 1886. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 10, 1887.
498
BELFORT ROXO, Raymundo Teixeira. Relatório da Inspetoria Geral das Obras Públicas da Corte. In:
SILVA, Augusto da. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas do ano
de 1888. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 6, 1889.
499
ITAÚNA, Barão de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas do
ano de 1871. Rio de Janeiro: Typographia Universal de E. & H. Laemmert, p. 162, 1872.
500
SINIMBÚ, João Lins Vieira Cansansão de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das
Obras Públicas do ano de 1877. Rio de Janeiro: Imprensa Industrial, p. 206, 1878.
501
ARCHER, Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca, 1873, p. 1.
173
Instituto Fluminense de Agricultura, reforçava suas ideias de expansão da silvicultura
através do ensino.
502
ARCHER, Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca, op. cit., p. 1
503
The city is not magnificent in its architectural features, but its suburbs are beautiful, and its inhabitants
of the upper and middle class have easy access to delightful retreats on the wooded slopes of the
mountains. One of the favorite places of sojourn is Tijuca, about twelve miles distant, reached by a
tramcar up a long steep ascent, with groves of palm-trees and bananas, and views of lovely cascades
among the rocks. The Villa Moreau is an hotel much frequented by Europeans in the hot season of the
year. (Tradução minha). THE ILLUSTRATED London News [s/ autor e s/ título]. Londres, p. 356, de 21
de março de 1894.
174
Este trecho encontra-se como parte do artigo The Brazilian Insurrection:
sketches at Rio de Janeiro sobre os acontecimentos da Revolta da Armada na capital
federal. A Tijuca a que se refere a citação se restringia à região montanhosa que
englobava a floresta de mesmo nome e seus arredores, que no final do século XIX já era
possível observar o início de uma intensa transformação. Entre discursos de uso
pragmático do ambiente florestal, em particular para abastecimento d‟água, e de
apropriação estética do sublime, como nas propagandas de hotéis, as áreas altas do
maciço da Tijuca, mesmo sofrendo crescente desmatamento, tornaram-se cada vez mais
frequentadas por grupos sociais privilegiados de dentro e fora do Brasil. A partir das
modificações estruturais de estradas, encanamentos e sua manutenção, a floresta se
urbanizava de forma desigual para os que usufruíam dela. O presente capítulo descreve
e analisa as diversas maneiras em que os diferentes grupos sociais interagiram com o
espaço natural, de modo a captar as transformações na socionatureza da seção de alto
curso das bacias hídricas deste maciço.
O contraste entre o urbano e a floresta foi a principal motivação para a ocupação
humana nas serras cariocas. Em meados do século XIX, conforme a cidade expandia
sua área urbana com poucas medidas efetivas de saneamento, sua população sentia as
perdas de vidas de queridos amigos e familiares por diversas doenças contagiosas.
Antes das contribuições epidemiológicas de Pasteur e Koch, prevaleceu o paradigma
científico da teoria dos miasmas que concebia o ambiente como a principal causa das
doenças, e não o contágio biológico. Assim a cidade, com as constantes epidemias504,
representava a insalubridade, o descaso público com as vidas perdidas. E a floresta
significava uma esperança de águas refrescantes, ares não “pestilentos”, vistas sublimes
e áreas de lazer505.
504
Somente no primeiro trimestre de 1884 morreram 382 pessoas de febre amarela. GAZETA de Notícias
[s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro: Typographia da Gazeta de Noticias, ano 11, número 99, de 09 de abril
de 1885. No capítulo 5, essas e outras questões epidêmicas e sanitárias foram debatidas e analisadas.
505
CHALHOUB, Sidney. “Cortiços”. In: _________. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte
imperial. São Paulo, Cia da Letras, 1996
175
capital do Império. Impossível, porém, se torna aos doentes transportarem-se
para ali, enquanto as carruagens não puderem chegar ao alto da Boa Vista 506.
506
SOUZA E MELLO, Manoel Felizardo. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras
Públicas do ano de 1861. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1862, p. 43.
507
ABREU, Maurício de. A cidade, a montanha e a floresta. In: ABREU, Maurício de (org.). Natureza e
Sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes,
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992.
176
Figura 7: Planta da Cidade do Rio de Janeiro organizada e desenhada por Francisco Jaguaribe Gomes de
Mattos (1910). Fonte: Fundação Biblioteca Nacional
508
Após existir nos bairros de Vila Isabel e Andarahy Pequeno, instala-se na propriedade do atual Colégio
MOPI no bairro da Usina, na Grande Tijuca.
177
ressaltavam tanto os esforços sociais (quartos arejados com camas limpas, culinária
francesa, acesso por bonde), quanto as vantagens do espaço biofísico (piscinas,
cachoeiras, árvores). Essa abordagem diminuiu a polaridade entre natureza e sociedade,
pois ao concebermos este espaço transformado pelo Homem como um ambiente
construído509, estamos tecendo as relações entre as ações humanas e este ambiente510.
Figura 8: Hotel Villa Moreau. Fonte: The Illustrated London News de 21 de março de 1894.
509
Tradução do termo built environment, que significa os locais modificados pela, e para a, ação humana,
sejam estes as cidades, campos ou áreas reflorestadas. Curiosamente, nos faz pensar na possibilidade, ou
impossibilidade, de locais que não tenham sido afetados pela ação humana nesse momento do
Antropoceno.
510
MELOSI, Martin. The Place of the City in the Environmental History. Environmental History Review,
v. 17, n. 1, p. 1-23, 1993.
178
Almanak Laemmert de 1885, as informações sobre o hotel vinham acompanhada de um
aviso de como se chegava ao local.
Essa relação entre hotéis e transporte público ficou mais evidente no exemplo do
Hotel das Paineiras512. Sua inauguração ocorreu conjuntamente com a Estrada de Ferro
do Corcovado em outubro de 1884 – primeira ferrovia brasileira com fins
exclusivamente turísticos, que no ano seguinte transportou 32.000 passageiros513. Nas
propagandas do Hotel Paineiras era recorrente a presença dos horários de chegada e
partida dos trens, e a duração da viagem. Muitas vezes mencionavam o serviço do
restaurante que possuía requintadas refeições da casa Paschoal, na rua do Ouvidor. Os
trens a vapor dessa ferrovia, uma continuação da do Cosme Velho, subiam por 3.720
metros em inclinações de até 30% a 670 metros acima do nível do mar, e deixavam os
passageiros a 40 metros de subida do Corcovado. Durante a construção da estrada de
ferro, a preocupação com a manutenção dos rios para o abastecimento d‟água esteve
presente no cotidiano dos engenheiros e dos funcionários do governo imperial514. As
pontes das Velhas e das Caboclas – passam por cima dos respectivos rios de mesmo
nome que confluíam para o vale do rio Carioca – e o viaduto do Silvestre foram
construídos com tecnologia de superestruturas metálicas que asseguravam a segurança
511
Cette ville située à 100 mètres au-dessus du niveau de la mer offreaux commerçants et aux voyageurs:
Chambres meublées avec gout. Service irreprochable – bassin de natation, duches diveres – bains chauds
– parc de promenade, billard, jeux de boules, etc. Cuisine française. Avis – Les tramways (bonds) de la
Tijuca partant du largo S. Francisco de Paula payment devant le portail de la Ville Moreau a lieu à 4
heures du matin et permet de prendre le premier train du chemin de fer Pedro II. Le dernier départ du
largo S. Francisco est a minuit e 30m, aprés la sortie des théatres. Tradução do autor. ALMANAK
administrativo, mercantil e industrial do Império do Brazil para 1885 [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro:
Laemmert& C., p. 2117, 1885.
512
Por vezes mencionado como Hotel Corcovado, teve novas edificações em 1887 e em 1920, deixando
confusa a memória de preservação deste patrimônio que virou Centro de Visitantes do Parque Nacional
da Tijuca, em 2016.
513
RODRIGUEZ, Helio Suêvo. A formação das estradas de ferro no Rio de Janeiro: o resgate da sua
memória. Rio de Janeiro: Memória do trem, 2004.
514
FREITAS, Mônica Rosa. A Estrada de Ferro Corcovado e o Hotel das Paineiras, uma implementação
turística na Floresta da Tijuca no final do século XIX. Seminário de História da Cidade e do Urbanismo,
v. 6, n. 1, 2000.
179
dos passageiros e dos mananciais515. Porém, o mesmo não pode ser dito sobre a
construção, a manutenção e a expansão do hotel que comprometeu os rios dos arredores.
Uma semana após a inauguração do hotel em 09 de outubro de 1884, que teve a
participação do Imperador e serviços exclusivos para os ilustres visitantes, houve uma
denúncia no Jornal do Commercio. Nela, o sr. Dr. Constante Jardim pediu que chame a
atenção do poder público para o fato do hotel não ter elaborado o escoamento do esgoto
que atingiam os rios Carioca da Cabeça, no Jardim Botânico516. Ainda no mesmo mês, o
a Comissão Vaccínica-Sanitária pedia providências para o descaso do hotel517.
Em outro momento, após resolver as questões sanitárias do esgoto ainda em
1884, os diretores da companhia de estrada de ferro do Corcovado e do hotel Paineiras
demonstravam sua indignação no Diário de Notícias. Juntamente aos complicados
acontecimentos na recém-República do Brasil, os diretores foram proibidos, por
intimação, de terminarem a expansão do hotel. Enquanto o Ministro da Agricultura,
Demétrio Nunes Ribeiro, alegava a necessidade de efetuarem as medidas sanitárias para
as obras, o pedido de licença de ligar o hotel com os esgotos da cidade não havia sido
despachado há mais de um mês518. A manutenção dos encanamentos, seja para
abastecimento ou para esgoto, em áreas de encostas foi comprometida pela mobilidade
deste solo em dias de fortes tormentas. Do ponto de vista da saúde pública, esses
problemas se complicavam quando ambos os sistemas estão próximos – como no caso
do cano de esgoto do hotel arrebentado próximo as Águas Férreas, em 1892.
As relações sociais entre acionistas, engenheiros e homens do Estado estiveram
presentes na construção da ferrovia E. F. Corcovado e o hotel Paineiras. Uma
concessão519 que favoreceu os engenheiros Francisco Pereira Passos e João Teixeira
Soares. Resultado dos interesses dos engenheiros em se associarem com industriais e
capitalistas para agilizar o funcionamento das obras públicas, explicitamente relatados
na primeira ata do Clube de Engenharia, criado em 24 de dezembro de 1880 520. No
515
JORNAL do Commercio [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Ano 63, nº 204, p. 2, de 24 de Julho de
1884.
516
JORNAL do Commercio [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Ano 63, nº 288, p. 2, de 15 de Outubro
de 1884.
517
JORNAL do Commercio [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Ano 63, nº 298, p. 2, de 25 de Outubro
de 1884.
518
DIÁRIO de Noticias [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Ano 4, nº 1644, p. 1, de 15 de Dezembro de
1889.
519
Decreto nº 8372, de 07 de Janeiro de 1882
520
Essa discussão voltará no capítulo 4.1.
180
decreto da concessão, o governo imperial concedia três favores: cessão gratuita de
terrenos devolutos e nacionais, sesmarias e posses para o leito da estrada, estações, e
“inclusive um hotel-restaurante” “junto de cada uma das estações da estrada”; direito de
desapropriar terrenos particulares; isenção de direitos de importação de trilhos e
máquinas, instrumentos e até carvão de pedra521.
Em meio a desapropriações e a expulsão de grupos indesejados, hotéis e
sanatórios passaram a serem permitidos e até desejados. Próximo à captação das águas
para o encanamento do Maracanã, o hotel Bennett recebia visitantes estrangeiros;
ingleses em sua maioria. O viajante Daniel Parish Kidder522 pouco antes de chegar a
este hotel se deparou com uma vista que lhe fez exclamar: “É difícil falar calmamente
da paisagem do Rio. Nenhuma pena pode fazer justiça à vista da montanha
acima”523.Em sua hospedagem no hotel comparou a ausência da fauna urbana onde
“nenhum mosquito atrapalha nosso sono com seus gritos de guerra” tampouco as
baratas “sobem pelos pés quando sentamos numa praça”. Ao mesmo tempo admiravam
o coaxar do sapo martelo (Hypsiboas faber), que “a cada som que produz, ecoa nos
ouvidos como o som de um martelo em uma bigorna”524.
O Hotel Bennett, há uns 10 quilômetros do centro urbano do Rio de Janeiro, teve
seu aspecto florestal modificado pelas habilidades paisagistas do sr. Bennett. Diferente
do Hotel Villa Moreau e a transformação de cursos d‟água originais em cascatas e
pequenos lagos artificiais, Bennett parece ter investido mais no ajardinamento. A
proximidade de cascatas volumosas e de outros pontos de beleza cênica, edênica, pode
ter uma motivação maior do que a percepção estética. Ao observarmos a ilustração
presente na obra de Kidder e Fletcher de 1857 e a foto de R. H. Klumb de 1860 (Figura
9) é possível perceber que existe pouca densidade arbórea ao redor dos edifícios. O
passado cafeicultor da região aponta para a chance dessa área toda ter sido desmatada e
replantada.Não tão diferente dos arredores do Hotel Villa Moreau. Por esses, e outros
521
Decreto nº 8372, de 07 de Janeiro de 1882.
522
Daniel Kidder, missionário protestante, chega no Rio em 1837 e publica Sketches of Residence and
Travel in Brazil em 1845. James Fletcher, também missionário, chegou no Rio em 1857 e publicou Brazil
and Brazilians a partir da obra de Kidder, e pequenos trechos adicionados. O sucesso de Brazil and
Brazilians foi enorme e com dezenas de edições sucessivas.
523
It is difficult to speak calm lyof the scenery about Rio. No pen can do justice to the view that meets the
eyehalf-way up the mountain. KIDDER, D.P. & FLETCHER, J.C. Brazil and the Brazilians: portrayed in
historical perspective and different scketches. Philadelphia: Deacon& Peterson, 1857, p. 205.
524
KIDDER & FLETCHER, Brazil and the Brazilians, op. cit., p. 205.
181
motivos originários da personalidade de Bennett, seu hotel foi muito visitado por
viajantes estrangeiros e brasileiros, naturalistas e turistas, amigos e desconhecidos.
Figura 9: Hotel Bennett – Foto de R.H. Klumb (1860). Fonte: Instituto Moreira Salles. e Bennett’s, Tijuca –
Fonte: KIDDER & FLETCHER, Brazil and Brazilians, 1857, p. 206.
525
REVISTA DE ENGENHARIA [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Número 259, p. 482, do dia 14 de
Junho de 1891.
526
REVISTA DE ENGENHARIA [s/ autor e s/ título], op. cit.
182
da Gávea funcionava como uma sociedade anônima com capital de mil contos de réis
em ações de 200$000 réis, acolhendo alienados, operados, doentes e covalescentes527.
527
REVISTA DE ENGENHARIA [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Número 253, p. 397, do dia 14 de
Março de 1891.
528
MORAES JARDIM, Jeronymo Rodrigues de. Relatório dos trabalhos feitos pela Inspetoria Geral das
Obras Públicas da Corte durante o anno de 1873. In: PEREIRA Jr., José Fernandes da Costa. Relatório do
Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas para o ano de 1873. Rio de Janeiro, Typographia
americana, 1874.
183
águas em sua quase totalidade, uma comissão foi desenvolvida em fevereiro de 1872,
para realizar um parecer sobre as propostas de abastecimento de água de diversos
particulares. Os engenheiros Francisco Torres Homem, Henrique de Beaurepaire,
Antonio de Bem, José da Cunha, Christiano Coutinho e Joaquim Manso Sayão foram
responsáveis também de analisar a possibilidade do próprio governo realizar tais
melhorias. Através dos dados fluviais das comissões da década anterior, os engenheiros
estimaram quanto de água era captado e quanto mais era possível desviar para os canos
imperiais529. Após a análise de seis propostas530, a comissão julgou que nenhuma delas
poderia ser aceita por motivos econômicos.
A iniciativa de expansão do abastecimento de água para a cidade do Rio de
Janeiro permaneceria nas mãos do governo imperial, através de um crédito
extraordinário de mil contos de réis para tais despesas. O inspetor das Obras Públicas,
Jeronimo Moraes Jardim, em 1873, apontou um plano que garantiria a curto prazo os
mananciais próximos que valeriam a pena serem captados, e, a longo prazo, os rios mais
distantes, como os rios de Jacarepaguá, e os da serra do Tinguá. Moraes Jardim dividiu
estrategicamente os esforços na captação e distribuição das águas, e estimou a captação
dos rios longínquos em 16 mil contos de réis em 6 anos de trabalho531.
Os primeiros trabalhos, nos rios do maciço da Tijuca, incluindo os rios da serra
do Jacarepaguá, foram realizados pela Inspetoria Geral das Obras Públicas já no ano
seguinte, 1874. Para isso houve a captação dessas águas, a instalação de canos,
ampliação dos já existentes, e a construção de reservatórios, melhorando
significativamente a distribuição. A resolução dos problemas de distribuição apontados
por Oliveira Bulhões na década anterior continuou com eficiência.
529
TORRES HOMEM, Francisco Salles; ROHAN, Henrique de Beaurepaire; BEM, Antonio José de;
CUNHA, José Joaquim da. COUTINHO, Christiano P. de A. SAYÃO, Joaquim Alexandre Manso.
Relatório da Comissão. In: BARRETO, Francisco do Rego Barros. Relatório do Ministério da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas para o ano de 1871. Rio de Janeiro: Typographia americana,
1872
530
John Bramley Moore & cia propôs levar 60 milhões de litros diários em 12 a 24 meses, tendo um
privilégio de 90 anos de concessão. Alexandre de Castro ofertou pouco mais de 20 milhões de litros
diários com 80 anos de privilégio. Barão de Carapebus ofertava uma média de 150 litros diários por
habitante, uma boa média, num privilégio de 50 anos. Em contrapartida, o B. Caymari e outros ofertaram
200 litros diários por habitante e um privilégio de 90 anos. Joaquim José de Souza Imenes e outros
buscariam rios fora do município em 5 anos, estimando em 70 milhões de litros diários. Por fim, Antonio
Alvares dos Santos e Souza e outros, pediam privilégio de 90 anos para ofertar 60 milhões de litros
diários.
531
MORAES JARDIM, Relatório dos trabalhos feitos pela Inspetoria Geral das Obras Públicas, 1874.
184
Já para os trabalhos da captação dos rios da serra do Tinguá foi aberta a
iniciativa privada através de contrato de 29 de fevereiro entre o governo imperial, sendo
ministro da agricultura Thomas José Coelho de Almeida, e o inglês Antonio Gabrielli.
O contrato previa a captação dos rios do Ouro, Santo Antonio e São Pedro, que estavam
a 53 quilômetros do centro urbano, em 5 anos. Em paralelo a esses serviços, uma
ferrovia deveria ser construída pelo empreiteiro para auxiliar no transporte de materiais.
Todo o material passaria ao domínio do Estado brasileiro532.
A canalização destes rios sofreu alguns impasses, principalmente, devido a
proprietários locais que se negavam a serem desapropriados por acordo – o que resultou
em desapropriações judiciais e pequenos ajustes no trajeto. A construção de duas
grandes caixas de recepção na serra do Tinguá – uma para captar as águas do rio São
Pedro e a outra dos rios do Ouro e Santo Antonio – e diversos outros reservatórios na
cidade foram também incumbidos a Gabrielli.
No ano de 1879 as obras foram momentaneamente suspensas pelo empreiteiro, o
motivo foi a dificuldade no assentamento da canalização geral entre os quilômetros 40 a
44. O ministro da agricultura Manoel Buarque de Macedo multou Gabrielli em 10
contos de réis, por julgar que os motivos não foram plausíveis. Buarque de Macedo
apontou também que neste ano muitos engenheiros saíram dos trabalhos de
abastecimento, possivelmente foram para obras ferroviárias e portuárias. Paralelo a isso,
a pendência na desapropriação da fazenda Limeira atrasou as obras no vale do rio São
Pedro. Mesmo assim, em meio a tudo isso, as águas dos rios do Ouro e Santo Antonio já
chegavam no reservatório comum do Pedregulho, em São Cristóvão533. E mesmo com a
captação dos rios próximos bem adiantada534, uma forte seca neste ano comprometeu o
antigo abastecimento da capital imperial, sendo necessário uma distribuição intermitente
e um serviço de transporte de água pela nova estrada de ferro, a Tramway do rio do
Ouro.
As obras de captação dos rios do Ouro e Santo Antonio foram finalizadas em
1881, e no reservatório do Pedregulho recebia uma média de quase 40 milhões de litros
532
Contrato celebrado entre o governo imperial do Brazil e Antonio Gabrielli, súbdito inglês
(denominado neste contrato “o empreiteiro”) para execução do projeto de abastecimento d‟água à cidade
de S. Sebastião do Rio de Janeiro. 29 de fevereiro de 1876. Através de seu procurador Stanley Peter
Youle, e o ministro MACOP Thomas José Coelho de Almeida.
533
MACEDO, Manoel Buarque de. Relatório do Ministério da Agricultura, Commercio e Obras Públicas
do ano de 1879. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1880.
534
A captação das águas de Jacarepaguá terminaram em dezembro de 1878, e somaram 1,6 milhões de
litros diários no bairro de São Cristóvão.
185
diários535. Enquanto que novos mananciais da serra do Tinguá começaram a serem
explorados para eventuais captações, e os respectivos terrenos desapropriados em 1883,
que estimavam em 54 milhões de litros diários536. Com a nova captação, o Ministério da
Agricultura estimava que os antigos sistemas de abastecimento (Carioca, Maracanã e
outros) ofereciam 26 milhões de litros diários, enquanto que os da serra do Tinguá
poderiam chegar a 74 milhões537. Porém, em 1887, a partir de cálculos mais realistas de
comissão dos engenheiros Antonio Augusto Monteiro de Barros, Herculano Velloso
Ferreira Penna e Adolpho Del Vecchio, o volume diário em época de seca era de 60
milhões de litros: sendo 28% dos antigos mananciais, 30% dos rios do Ouro e Santo
Antonio e 42% dos tributários do rio Iguassú. A chegada desses milhões de novos litros
por dia significou 26 mil contos de réis desde 1876, quando Antonio Gabrielli assumiu a
empreitada538. Desde esse momento, novos rios foram explorados para abastecer a
cidade, como o longínquo rio Mantiqueira 539.
Com a garantia da oferta de água de rios maiores e fora do maciço da Tijuca, a
região montanhosa próxima à corte passou a ter seus objetivos revisados. O
reflorestamento de Escragnolle investiu cada vez menos na continuidade de Archer,
para concentrar esforços no embelezamento e no acesso público à floresta e suas
cachoeiras. Escragnolle mandou abrir trilhas e preparou mirantes, grutas e outros pontos
de interesse de visitantes. A chegada de novas pessoas foi potencializada pelos hotéis e
sanatórios nos arredores das áreas de reflorestamento. Incentivados pelo poder público,
tais instituições foram privilegiadas com concessões e investimentos. Mesmo que as
águas do maciço da Tijuca continuassem a abastecer parte da cidade, o alto curso dos
rios próximos passou a ter novas relações socioecológicas com as diversas
transformações que sofrera em sua paisagem fluvio-floresta.
535
PENNA, Affonso Augusto Moreira. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio, Obras Públicas
para o ano de 1883. Rio de Janeiro: Typographia nacional, 1884.
536
D‟AVILA, Henrique. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio, Obras Públicas para o ano
de 1882. Rio de Janeiro: Typographia nacional, 1883.
537
PENNA, Affonso Augusto Moreira. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio, Obras
Públicas para o ano de 1883. Rio de Janeiro: Typographia nacional, 1884.
538
SILVA, Rodrigo Augusto da. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio, e das Obras Públicas
para o ano de 1887. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1888
539
PRADO, Antonio da Silva. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas para
o ano de 1885. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886
186
187
CAPÍTULO 4:
A urbanização do subúrbio carioca e seus rios
540
MUMFORD, Lewis. The city in history: its origins, its transformations, and its prospects. New York:
Harcourt Brace Jovanovich, Inc., p. 484, 1961.
541
MUMFORD, The city in history, op. cit., p. 486.
188
chamadas de éticas ou morais nos termos de época, eram indesejáveis pela fração mais
rica da sociedade, como, por exemplo: as confusões e conflitos nos chafarizes públicos,
os cheiros “incivilizados” das urinas e fezes de animais humanos e não-humanos, mas o
que mais incomodou foi o convívio com a legião de negros escravizados que circulavam
na cidade, metabolizando o sistema urbano (vendendo água, despejando esgoto,
transportando pessoas e objetos, vendendo produtos). Quem tinha o luxo de ter uma
carruagem, um cavalo, ou o dinheiro para o transporte público que se desenvolvia,
buscava se afastar do centro urbano. O controle da socionatureza urbana pelo Estado se
alinhou com as pretensões de idealização da cidade por parte dos engenheiros.
O presente capítulo analisou como a expansão urbana para os subúrbios cariocas
significou profundas transformações nas relações socioecológicas.
189
são destacadas, assim como as linhas dos bondes. Já os mangues e restingas, antes
assinalados como áreas alagadas ou areais, começam a ser tornar invisíveis, pois os
planos da cidade contam com seu aterro. Mais adiante apontaremos uma interpretação
de dois mapas temporalmente afastados para explanar melhor este ponto.
No início do capítulo 2, observamos a iniciativa de Beaurepaire Rohan de
elaborar um rico plano urbanístico em 1843. Uma proposta individual de um homem
atento às mudanças e necessidades urbanas de seu tempo. O crescimento urbano do Rio
de Janeiro aumentou a demanda de ordenar esse processo por meio de um plano de
urbanização de interesse do Estado. Em maio de 1874, o ministro do Império, João
Alfredo Correa de Oliveira, designou os engenheiros Francisco Pereira Passos,
Jeronymo Rodrigues de Moraes Jardim e Marcelino Ramos da Silva para a Comissão de
Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro. Diferente do planejamento anterior, de
Rohan, a Comissão foi iniciativa governamental para um grupo de engenheiros civis.
Higiene e circulação, igualmente indicado em 1843, foram os temas que nortearam a
tomada de decisões: alargamento e retificação de ruas, abertura de novas avenidas
arborizadas e praças, criação de calçadas e passeios, ventilação nas casas e escoamento
das águas pluviais, dessecamento de terrenos e aterro dos pântanos, e nova ordenação
urbana através de regras para novas construções e zoneamento542.
Com o intuito de simplificar, legitimar e transformar a cidade, o “primeiro
cuidado” dos engenheiros responsáveis foi “organizar uma planta geral”543. O mapa
Projecto de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro: Planta Geral 544, elaborado
pelo engenheiro Pereira Passos, foi publicado em 1876. O ordenamento racional da
socionatureza facilitava o controle do território urbano, além de legitimar
transformações nas áreas representadas e reforçar argumentos retóricos e ideológicos do
próprio Estado. A representação do espaço urbano era dotada apenas de elementos
542
O Primeiro relatório propôs 14 grandes intervenções urbanas como as modificações no mangue da
Cidade Nova, diversas ruas e avenidas largas, um grande parque destinado a indústria agrícola em São
Cristóvão, aterros entre as ruas do Conde d‟Eu e a do Sabão do Mangue, dentre outras. Cf. PRIMEIRO
Relatório da Comissão de Melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1875.
543
PRIMEIRO Relatório da comissão de melhoramentos, op. cit., p. 2.
544
PASSOS, Pereira. Projecto de melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro: Planta Geral. [S.l.: s.n.],
1876. 1 planta ms. em 4 f., desenhada a nanquim, aquarelada, 122,5 x 132cm ou menores. Arquivo
Nacional. Seção de Cartografia. ARC.033,10,028on Disponível em:
<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart521089/cart521089.html>. Acesso
em: 15 mai. 2017. Disponível em:
<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart521089/cart521089.jpg>. Acesso
em: 15 mai. 2017.
190
visuais que o cartógrafo queria que víssemos, como, por exemplo: ruas, avenidas,
ferrovias, estações, praças. Após eventos geopolíticos severos, em especial a Guerra do
Paraguai, e transformações urbanas derivadas do rápido crescimento e da chegada de
novas tecnologias (trem, bondes, navegação a vapor), o governo imperial incentivou a
institucionalização da cartografia no Brasil545. Nesses e outros interesses, em 1874, o
ensino de cartografia, que antes era responsabilidade da Escola Central, passou ser
efetuado pela recém-criada Escola Politécnica. A engenharia civil tinha nessa instituição
seu principal centro de formação de profissionais que trabalham com cartografia urbana.
No mesmo ano de 1874, Pereira Passos foi nomeado engenheiro do Ministério dos
Negócios do Império, mesma instituição para a qual foi transferida a Escola Politécnica
(anteriormente era do Ministério do Exército).
Segundo os engenheiros da Comissão, os bairros do subúrbio carioca ofereciam
melhores condições para o desenvolvimento da cidade, devido, por exemplo: os preços
das propriedades serem inferiores do centro urbano; o espaçamento entre os edifícios
permitia maiores intervenções sem onerar com desapropriações; amplo espaço plano e
com poucos acidentes topográficos. A ideia era ocupar com área residencial e comercial
com casas rodeadas de jardins e aproveitar as vantagens ambientais das florestas e rios
para a purificação da atmosfera. O empecilho mais recorrente para expansão urbana
para o oeste era os mangues da Cidade Nova: “foco permanente de infecções
miasmáticas”546. Verena Andreatta percebeu que nos argumentos justificativos do
relatório os motivos de saneamento se mesclaram com os de expansão urbana, tornando
claro os interesses de apropriação do território suburbano por uma emergente burguesia
urbana nas normas de edificação mais ampla e saudável. Sobre a preocupação higiênica,
Andreatta menciona que a contribuição desta comissão pouco acrescentou às
considerações elaboradas décadas antes por Rohan547. As modificações na região do
Canal do Mangue para a saúde pública tomaram grande atenção da comissão, o qual
será analisado mais adiante no capítulo 5.
545
O Ministério da Agricultura, criado em 1860, sediou diversas iniciativas cartográficas neste momento:
Comissão da Carta Itinerária (1874); Comissão Geológica (1875); Comissão Astronômica (1876);
Comissão da Carta Arquivo (1876); Comissão da Carta Geral do Império (1862). Conforme CAPILÉ,
Bruno; VERGARA, Moema de Rezende. Circunstâncias da Cartografia no Brasil oitocentista e a
necessidade de uma Carta Geral do Império. Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v.
5, p. 37-49, 2012.
546
PRIMEIRO Relatório da comissão de melhoramentos, op. cit., p. 2.
547
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, op. cit.
191
As árvores foram planejadas para oferecerem o serviço ecossistêmico de limpeza
dos ares, além do valor moral e estético de uma natureza domesticada a serviço direto
da humanidade. Havia uma proposta de uma grande avenida que conectava o Campo de
Santana ao Andarahy, onde havia um plano de criar uma universidade. Essa via seria
arborizada e teria um canal que receberia as águas dos rios, conectando com o próprio
Canal do Mangue. A proposta foi a redução de uma proposta que o paisagista francês
Auguste Glaziou548 fez ao Ministro dos Negócios do Império, João Alfredo Correa de
Oliveira, em 1874549. O que indicava o interesse da expansão urbana a partir de uma
linha do Canal do Mangue em direção ao oeste.
De acordo com o primeiro relatório e a planta geral do Projeto de
Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro de 1876, um complexo universitário foi
projetado nas proximidades do bairro recentemente criado: Vila Isabel. Os planos
universitários foram voltados para o desenvolvimento urbano da região da freguesia do
Engenho Velho. A área proposta550 foi de mais de 700 mil m², em um perímetro que se
iniciava nas proximidades de ruas ainda inexistentes – da atual rua Felipe Camarão
seguia uma rua paralela a rua Teodoro da Silva até próximo a rua Uruguai, e voltava
pelo o que é hoje a avenida Maracanã (Figura 10). O terreno recortado pela comissão
receberia as águas dos rios Joana e Maracanã formando um complexo sistema de canais
que comporiam o Jardim Zoológico e Horto Botânico que seriam de “grande vantagem
para o estudo da botânica e zoologia na universidade”551. A ideia era urbanizar a área e
dotá-la de um espaço acadêmico rico em águas e matas que beneficiariam a saúde local.
O domínio da socionatureza local seria retroalimentado pela formação de novos
naturalistas e de novas visões do ambiente biofísico através da produção intelectual e
debates acadêmicos que ocorreriam na hipotética universidade.
548
Auguste François Marie Glaziou (1833-1906) formou-se em engenharia civil e depois em botânica em
Paris. A convite de Pedro II, veio ao Brasil em 1858 e assumiu a Diretoria de Parques e Jardins da Casa
Imperial em 1869.
549
GLAZIOU, Auguste. Embelezamento do Rio de Janeiro: Projecto de Boulevard entre a praia dos
Mineiros e o Andarahy-Grande.
550
A área corresponde em grande parte ao loteamento da Aldeia Campista de 1897.
551
PRIMEIRO relatório da comissão de melhoramentos, op. cit., p. 3.
192
Figura 10: Mapa com algumas propostas da Comissão de Melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro. Sem
escala. Base cartográfica: PASSOS, Pereira. Projecto de melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro: Planta
Geral. [S.l.: s.n.], 1876. Fonte: Biblioteca Nacional. Autor: Bruno Capilé.
Como era de se esperar do jogo político por trás das atividades de engenheiros
no século XIX, a Comissão de Melhoramentos não foi unanimemente bem recebida. O
engenheiro Vieira Souto escreveu em 1875 uma série de artigos no Jornal do
Commercio que resultou no livro Melhoramento da Cidade do Rio de Janeiro: crítica
aos trabalhos da respectiva Comissão552. Vieira Souto evitou criticar diretamente os
três engenheiros envolvidos, que “nem de longe duvidamos de sua aptidão e
inteligência”553. Pelo contrário, ao assentir da competência destes senhores, o
engenheiro explicitava que o “estudo de melhoramentos” não era “obra para ser
conscienciosamente desempenhada em alguns meses e por três engenheiros distraídos
por trabalhos alheios554”. Incrédulo das propostas serem realizadas em 8 anos, Vieira
Souto relembra outros projetos de vias que foram ignorados pelo governo imperial e
pela municipalidade. Como o projeto de avenida de 10km que Glaziou planejara da
praia dos Mineiros até o Andarahy-Grande, ou na então recém elaborada avenida 28 de
552
O livro foi editado a partir de artigos publicados neste jornal de 23 de fevereiro a 15 de abril de 1875.
Cf. VIEIRA SOUTO, Luís Rafael. Melhoramento da Cidade do Rio de Janeiro: crítica aos trabalhos da
respectiva Comissão. Rio de Janeiro: Lino C. Teixeira & C., 1875.
553
VIEIRA SOUTO, Melhoramento da Cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 8
554
VIEIRA SOUTO, Melhoramento da Cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 9
193
setembro em Vila Isabel555, por Antônio Rebouças, que poderiam ser incorporadas aos
próprios projetos da Comissão de Melhoramentos. Nos anseios do engenheiro, buscava,
com suas contribuições de novas vias, elaborar a “capital com um passeio mais extenso
e mais belo que a afamada Broadway de New York”556.
O relatório da comissão apenas indicava as obras a serem realizadas nos
subúrbios do Engenho Velho, Andarahy e São Cristóvão (do Campo de Santana até o pé
da serra, no Andarahy), como bem apontou Souto. Sua crítica prossegue, já que “não é
em tais lugares mas no centro da cidade, que a população se acha diariamente
aglomerada (...)557”. A população do centro era bem maior do que nos arrabaldes e
carecia de melhoramentos santários urgentes. Segundo o censo de 1872, moravam nas
freguesias centrais 60% de uma população de 274.972 pessoas (165.925 habitantes),
enquanto que nas freguesias correspondentes aos melhoramentos (São Cristóvão e
Engenho Velho) tinham menos que um décimo: 26.717 pessoas. As tabelas do censo,
junto aos gráficos e mapas, constituíam ferramentas de controle social da cidade através
de informações da quantidade de moradores, quantos negros, quantos analfabetos,
quantos e quais profissionais. Segue a tabela 1 com a população e o total de casas
presentes em cada freguesia para o ano de 1872558.
555
A avenida 28 de Setembro e o próprio bairro de Vila Isabel foram criados na década de 1870 segundo
planejamento do Barão de Drummond. Mais adiante na seção 3.2.2 iremos explorar um pouco mais sobre
essa história.
556
VIEIRA SOUTO, Melhoramento da Cidade do Rio de Janeiro, op. cit. p. 35.
557
VIEIRA SOUTO, Melhoramento da Cidade do Rio de Janeiro, op. cit, p. 10.
558
BRASIL. Directoria Geral de Estatística. Recenseamento Geral da população do Império do Brasil a
que se procedeu no dia primeiro de agosto de 1872. Rio de Janeiro: Directoria Geral de Estatística, 1873.
194
Tabela 6: Censo do município neutro do ano de 1872. Fonte: Censo de 1872, vol. Município Neutro.
559
Idem
560
CHALHOUB, Cidade febril, op. cit.
561
Podemos reparar que os mapas dos séculos XVII e XVIII, momento em que a engenharia militar ainda
era bastante presente na elaboração de mapas, possuíam mais elementos gráficos do ambiente biofísico.
Enquanto que no século XIX, o crescente destaque da engenharia civil na criação cartográfica pode ser
195
financeiros de reestruturação urbana do Rio de Janeiro, que ambos engenheiros Vieira
Souto e Pereira Passos viveram, e tantos outros, transfigurou a paisagem socionatural
carioca nos mapas.
Segundo as contribuições cartográficas de John Harley, vemos que mapas são
documentos dotados de autor, que se insere em suas próprias circunstâncias. Olhar os
contextos e as supostas intenções do cartógrafo fornece pistas para interpretar o
documento e a área representada. Explorar a função dos documentos cartográficos
implica ter um vislumbre das possíveis intenções e o público em questão. Um dos
documentos históricos mais persuasivos, os mapas muitas vezes são interpretados como
um reflexo da realidade por desavisados. Mapas são discursos e, através de argumentos
de autoridade, pretendem convencer o “leitor” de sua representatividade. Ou seja, a
representação gráfica dos mapas permite interpretar a socionatureza urbana como um
território do grupo social que o elaborou, ou pagou. A apropriação do ambiente através
da racionalização cartográfica necessita ter um respaldo do observador: um engenheiro
urbanista, um capitalista que quer investir no loteamento de uma área residencial, ou o
próprio Estado a exercer controle. Portanto, além da praticidade de ilustrar uma área e
auxiliar na sua transformação, os mapas urbanos seriam também recursos visuais
associados ao progresso e civilização. E para isso, silenciar o ambiente biofísico foi
essencial562.
A historiadora ambiental urbana italocolombiana Stefania Gallini analisou
juntamente com Carolina Osório como os mapas urbanos de Bogotá silenciavam o
ambiente biofísico como indicador do processo de construção de uma cidade moderna,
divorciada de seu entorno563. Essa supressão de informação cartográfica, intencional ou
não, representou uma política de segredo ou de censura. Para elas “silenciar a natureza
tornou-se uma arma para domesticá-la”564. Os traçados urbanos das vias restringiram os
espaços para os ecossistemas aquáticos que, segundo ideais sanitários e de progresso,
deveriam ser aterrados. Mangues, restingas, pântanos – ou humedales no caso
interpretado pela maior quantidade de mapas sem essa representação do terreno. Sendo assim, esta última
se esforçando mais para silenciar paisagem natural.
562
CAPILÉ, Bruno. Racionalização e controle da natureza: o crescimento do poder infraestrutural e a
geração de conhecimento cartográfico sobre o território no Segundo Reinado. Revista Cantareira. Niterói,
n. 22, jan-jun, 2015. HARLEY, J. B. The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography.
Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 2001.
563
GALLINI, Stefania; OSORIO, Carolina Castro. Modernity and the Silencing of Nature in Nineteenth-
Century Maps of Bogotá. Journal of Latin American Geography, v. 14, n. 3, p. 91-127, 2015.
564
GALLINI & OSORIO, Modernity and the silencing of nature, op. cit., p. 93.
196
colombiano – eram cada vez menos representados. O processo de modernização das
cidades oitocentistas ganhou força com o silenciamento de aspectos naturais na cidade,
e os mapas foram ferramentas essenciais neste discurso. A leitura de parte desse
discurso evidenciou o quanto na representação cartográfica a presença e a ausência se
complementaram e interfiram na prática social565.
Conforme a cartografia deixava as mãos militares para ser apoderada por
interesses urbanos da engenharia civil, novos modos de representação foram elaborados.
Se observarmos mapas temporalmente próximos, dificilmente interpretaríamos como as
modificações visuais se deram. Isso ocorre de maneira diferente se vermos mapas mais
antigos, com os mapas da década de 1870. As técnicas e representações da antiga
tradição militar vão se perdendo conforme os interesses urbanos da engenharia civil se
fizeram presentes.
O mapa urbano de 1812, Planta da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, é
um bom exemplo dessa análise. A região do Canal do Mangue e praia tem seu terreno
representado, mostrando o saco de São Diogo e o manguezal (Figura 11). Na década de
1850, alguns mapas ainda mostravam a região e alguns detalhes do ambiente biofísico,
conforme o mapa Planta da muito leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro, de 1852. A região ficou desprovida da representação das áreas de pouco
interesse urbano (Figura 12). Na década de 1870, quando a engenharia civil adota
oficialmente a cartografia nacional e urbana, os elementos tornam-se mais
invisibilizados. Apenas permanecem os rios, o contorno do litoral e os principais
relevos. A Planta da Cidade de Sn. Sebastião do Rio de Janeiro do engenheiro arquiteto
Luiz Schreiner representa a região como se o Canal do Mangue fosse já finalizado.
Porém, ainda ilustra os alagadiços das áreas das fozes dos rios Maracanã e Joana
(Figura 13).
565
LEFEBVRE, Henri. La presencia y la ausencia: contribuición a la teoria de las representaciones.
México D.F.: Fondo de Cultura Economica, 2006.
197
Figura 11: Mapa do Manguezal de São Diogo de 1812. SOUTO, Paulo dos Santos Ferreira. Planta da Cidade
de S. Sebastião do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Impr. Régia, 1812. Fonte: Biblioteca Nacional.
Figura 12: Mapa do Manguezal de São Diogo, 1852. KER, John Edgar. Planta da muito leal e heroica cidade
de São Sebastião do Rio de Janeiro. Paris: Garnier, 1852. Fonte: Biblioteca Nacional.
198
Figura 13: Mapa do Manguezal de São Diogo, 1879. SCHREINER, Luiz. Planta da Cidade de Sn. Sebastião do
Rio de Janeiro. Berlim: Etablissement lithographique de Guill. Greve, 1879.
Esses mapas, que possuem suas intenções em meio a cores e rabiscos, também
foram por sua vez escolhidos para defender o argumento do silenciamento. Muitos
outros mapas poderiam estar presentes para esta breve análise, como o de John Edgar
Ker de 1852 (Figura 12) ou o de A.M. Kinney e Roberto Leeder de 1858 (Figura 14),
ambos representavam os mangues da Cidade Nova através de traços horizontais
simbolizando áreas alagadas ou planícies. Porém, este momento da segunda metade do
século XIX os rabiscos da engenharia militar ainda interferiam com os da civil. Esse
momento transicional tem como personagem o engenheiro Francisco Pereira Passos.
Ele, que em 1852 iniciou seu curso de engenharia civil na Escola Militar, observou as
intensas transformações urbanas da Paris de Haussmann de 1857 a 1860, trabalhou na
Comissão de Melhoramentos na década de 1870, e, por fim, desenvolveu os
melhoramentos na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. A ideia desta
análise foi apontar alguns pontos dessa mudança de tradição visual. Os tons de cinza da
lenta chegada das tintas cartográfica da engenharia civil precisam de um estudo mais
aprofundado para maiores conclusões. As mudanças da representação de rios e áreas
alagadas (mangues e brejos) nos mapas urbanos caminharam em paralelo aos aterros,
drenagens e grandes desvios. Nas palavras de Verena Andreatta, tais representações
evidenciaram uma “engenharia de alteração da topografia, drenagem de lagoas e brejos,
demolição de montes e grandes obras de condução de águas, estradas de ferros e
urbanização.566” .
566
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, op. cit., p. 34.
199
Figura 14: Mapa do Manguezal de São Diogo, 1858. KINNEY, A.M.; LEEDER, Roberto. Guia e plano da
cidade do Rio de Janeiro, 1858. Fonte: Biblioteca Nacional.
567
CURY, Vania Maria. Engenheiros e empresários: O Clube de Engenharia na gestão de Paulo de
Frontin (1903- 1933). Tese de Doutorado – PPGH-UFF. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2000.
KROPF, Simone Petraglia. Sonho da Razão, Alegoria da Ordem: o discurso dos engenheiros sobre a
cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX. Dissertação de mestrado –
Departamento de História da PUC-RJ. Rio de Janeiro. 1995.
200
outras profissões. Marinho afirma que a ideia de progresso debatida no interior do clube
era mais que um artifício retórico, era uma “estratégia de construção e afirmação de
uma dada identidade profissional alicerçada na concepção de que o Brasil devia a tais
agentes a capacidade de atingir a “civilização”568. Com o fim do Império, o Clube de
Engenharia despontaria na República como a principal instituição que debatia as
grandes obras do país – o que incluía as grandes transformações urbanas que ocorreram
no Rio de Janeiro de Pereira Passos de 1902 a 1906569.
A socionatureza urbana foi idealizada pelos engenheiros, mas, como veremos
adiante, sua transformação não ocorreu por essas ilustres mãos. Mas, sim a partir de
milhares de mãos distintas e até de cascos que exerceram força e trabalho na
modificação do território urbano. Mesmo que tais mudanças estivessem fora do
planejamento dos engenheiros, veremos na próxima seção como os cavalos e burros
estiveram presentes na urbanização e no surgimento de novas dinâmicas sociais na
cidade do Rio de Janeiro.
568
MARINHO, Pedro. Ampliando o Estado Imperial: Os engenheiros e a organização da cultura no Brasil
oitocentista. Tese de doutorado apresentada no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense, p. 89, 2008.
569
AZEVEDO, André Nunes de. A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana. Revista
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 10, p. 39-79, maio-agosto 2003.
570
Trecho de letra da música O Jumento de Chico Buarque, presente no musical infantil Os Saltimbancos
de Sergio Bardotti, que critica os esforços não reconhecidos do trabalho do Jumento. Cf. HOLANDA,
Francisco Buarque de. O Jumento. Os Saltimbancos [LP]. Rio de Janeiro: Philips Records, 1977.
571
Esta seção foi publicada em duas publicações distintas. CAPILÉ, Bruno. “Trabalha, trabalha de
graça”: explorando narrativas de coevolução e dominação do trabalho animal no Rio de Janeiro Imperial.
Scientiarum Historia IX: Congresso de História das Ciências das Técnicas e Epistemologia. Realizado no
Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nos
dias 09, 10 e 11 de Novembro de 2016. CAPILÉ, Bruno; KELLI, Marcus Vinícius. Burros, cavalos e
eletricidade: o desenvolvimento de novos suportes técnico-científicos para o transporte urbano no Rio de
Janeiro oitocentista. Boletim Eletrônico da Sociedade Brasileira de História da Ciência. Nº 12, março de
2017.
201
combustíveis fósseis. Antes da viabilidade do transporte público urbano, como os
bondes de tração animal na década de 1860, o acesso diário aos subúrbios cariocas era
um obstáculo que somente os mais abastados conseguiam superar com seus cavalos e
carruagens. Além do transporte de material para edificações e obras públicas, a presença
de equinos no transporte pessoal individual, primeiramente, e depois coletivo,
transformou o espaço urbano através da separação de uma área de trabalho e outra para
residir.
A apropriação da força equina para lazer e transporte refletiu interesses distintos
de diferentes grupos sociais. A relação entre humanos e equinos, principalmente no
transporte e circulação de pessoas e objetos, são aqui interpretadas como simbióticas,
coevoluídas. Dificilmente os cavalos teriam sobrevivido sem a domesticação humana, já
que a maioria dos grandes animais sem utilidade direta foram extintos. No entanto, as
novas relações socioecológicas com os equinos gerou diversos casos de maus tratos
animais, complexificando as relações de dominação e negociação entre ambas as
espécies. A transformação da paisagem urbana pela força equina interferiu na dinâmica
fluvial, já que muitos rios e áreas alagadas foram retilinizados e aterrados de modo a
aumentar a eficiência das vias572. Nesta seção veremos como se deu a transformação da
paisagem urbana e fluvial através das modificações das relações socioecológicas entre
humanos e equinos.
A perspectiva de dominação tem sido uma abordagem hegemônica na qual um
grupo humano domina outros grupos, inclusive de outras espécies. Uma dominação
pressupõe que haja uma polarização da relação criando uma relação hierárquica entre
um dominado e um dominador. Dessa maneira, olhamos para os equinos urbanos como
máquinas vivas, configuradas para exercerem trabalho573. Ao refletir sobre o trabalho
desses animais de carga574, precisamos repensar nossa relação coevolutiva com eles.
Alguns trabalhos que buscam criticar especismos, apontam que devemos entender que
“nossos rebanhos são nossas populações escravas”575 derivados da “guerra” entre
572
McSHANE, Clay; TARR, Joel A. The Horse in the City: living machines in the nineteenth century.
Baltimore: The John Hopkins University Press, 2007.
573
McSHANE & TARR, The horse in the city, op. cit.
574
Já não penso aqui nos cavalos de estimação presentes em Sonhos d’Ouro de Alencar, abordado no
capítulo 1.3.3, mas nos cavalos de carga, como Sansão e Quitéria em A Revolução dos Bichos de George
Orwell.
575
NUNES, Benedito. O animal e o primitivo: os outros de nossa cultura. In: MACIEL, Mª Esther (org.).
Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biofísica. Florianópolis: Ed. UFSC, p. 15, 2011.
202
humanos e animais não-humanos, e que nos apropriamos dessa força para exercer
nossas atividades e nossos interesses. Nossa relação com esses animais se aproximam
mais dos explorados dos trabalhos servis (escravos e subsalariados). Uma hibridização
que ressalta aspectos sociais sórdidos de submissão, trabalho forçado, castigos e
punições. Eduardo Jorge relata que “diante da presença de corpos híbridos de homens e
animais, existe um incômodo que está na ordem de algo que é familiar, mas ao mesmo
tempo estranho, como se algo de inquietante residisse nessa familiaridade”576. Os rios,
incapazes de distinguir o trabalho humano dos animais de carga, sofreram as ações
híbridas, sob a mesma condição servil, desses personagens. Ambos explorados
possuíam mais contiguidade com prisioneiros de guerra que desfilam numa marcha
triunfal com seu trabalho animal humano e não-humano.
O trecho da música do subtítulo prossegue relativizando a situação dessa relação
interespecífica que vai além da exploração dessas “máquinas vivas”: “mas quando a
carcaça ameaça rachar, que coices, que coices, que coices que dá”577. Esses animais
possuem um protagonismo histórico, pois exerciam uma resistência, uma reação à
dominação. Ao interatuar em nossa história humana, interpretamos a relação como
coevolução. Ao hibridizarmos nossa tecnologia equina (domesticação, carruagens,
estradas, medicina veterinária), damos uma dimensão social a essa interação simbiótica
coevolutiva.
A frase “prefiro asno que me carregue a cavalo que me derrube”578, já havia sido
utilizada na peça de teatro do século XVI A Farsa de Inês Pereira, e simbolizava a
diferença de comportamento entre as duas espécies. Os cavalos e as éguas (Equus ferus
caballus) são animais mais fogosos e agitados do que os jumentos, jegues, asnos (Equus
africanus asinus). Esses últimos possuem qualidades psíquicas de maior sobriedade,
perseverança e robustez. Ambas possuem boa massa muscular e foram selecionadas
entre diferentes raças para diferentes finalidades. Desde o antigo Império Romano, a
divisão de trabalho equina necessitava de distintas maneiras de reprodução para gerar as
variedades segundo demandas locais de trabalho: animais ágeis, como os cavalos, para
576
JORGE, Eduardo. Lobisomem, sem ameaças. In: MACIEL, Mª Esther (org.). Pensar/escrever o
animal: ensaios de zoopoética e biofísica. Florianópolis: Ed. UFSC, 2011.177-195, p. 177.
577
HOLANDA, O jumento, op. cit.
578
VINCENTE, Gil. A Farsa de Inês Pereira. Peça de teatro. Apud RIBEIRO, José Hamilton. Os
tropeiros: diário da marcha. São Paulo:Editora Globo, 2006, p. 91
203
rápidas entregas, animais lentos e fortes, como burros, mulas e jumentos, para cargas
pesadas579.
No cruzamento interespecífico de jumentos e éguas surge o híbrido, quase
sempre estéril devido a diferenças cromossômicas, com qualidades de ambas as
espécies: o burro, sendo macho, e a mula, sendo fêmea580. Cavalos, na maioria das
raças, possuem um preparo para percorrer grandes distâncias a galope. Jumentos não
são atletas de corrida. Possuem um perfil para carregar peso e percorrer grandes
distâncias numa marcha mais lenta e agradável ao montador. É também no aspecto
cultural, e não somente no pragmático das atividades de trabalho e força, que a maior
diferenciação entre as espécies se apresentava: “cavalo é montaria de chefe e mula, de
servidor”581.
A força motriz desses animais, complementada pela mão-de-obra escrava, foi o
principal mobilizador das atividades humanas até a chegada de máquinas a vapor com
outra matriz energética: a combustão. A parceria entre humanos e cavalos, éguas,
burros, jumentos e mulas foi crucial para as intervenções humanas no ambiente
biofísico das serras cariocas. Já que possibilitava carregar um barão, um visconde, ou
uma carga de pedras para a construção de um reservatório d'água, ou realizar força para
puxar arado nas plantações de café. Não incluir tais quadrúpedes nesta narrativa retiraria
um pouco da materialidade biológica, como a incrível variedade de odores, agradáveis
ou não, resultante de outros tipos de interações. Ao exercer trabalho, esses animais de
carga foram ao mesmo tempo parte das paisagens florestal-fluvial e urbana, e agente de
sua modificação.
A historiografia do triunfo da tecnologia industrial e urbana, em particular os
motores à vapor, tem sido realizado por historiadores que se limitam a mecanização. Ao
deixar de lado os equinos urbanos a narrativas de nostalgia do campo, tais historiadores
restringem os estudos de tecnologia mais abrangentes582. A cidade do Rio de Janeiro
demorou a descobrir a roda Após os abusos escravocratas de transporte pessoal de redes
e liteiras carregados por africanos escravizados na capital imperial da primeira metade
579
McSHANE & TARR, The horse in the city, op. cit.
580
ALVES, Lorenna Marques Dias. Influência da idade e do sexo sobre o perfil bioquímico sérico de
jumentos da raça brasileira. Dissertação de mestrado em Genética e Bioquímica na Universidade Federal
de Uberlândia, 2008.
581
RIBEIRO, Os tropeiros, op. cit., p. 90.
582
McSHANE & TARR, The horse in the city, 2007.
204
do século XIX, a roda tornou-se a matriz tecnológica para transporte, e os cavalos e
burros, sua principal força.
Ao considerar a roda como matriz tecnológica, todo um coletivo de
equipamentos e conhecimentos transformaram a cidade para sua utilização: terra batida,
paralelepípedos, macadamização, trilhos, concreto e asfalto. A busca era por mais
praticidade na construção e manutenção, menor atrito de maneira a aumentar o peso
carregado, mais conforto e maior eficiência nas atividades de transporte. Do mesmo
modo, o manejo de animais e a construção de carros mais eficientes estavam
profundamente relacionados aos seus suportes técnico-científicos: couros para as
amarras dos animais, variedades de capinzais para alimentação, ligas metálicas para as
estruturas dos veículos, dentre outros. Esses suportes alteravam a estrutura urbana,
tendo implicações diversas para o ambiente biofísico da cidade e seus rios.
O caminho do Aterrado, ou das Lanternas, foi um dos marcos de expansão
urbana do início do século XIX. Sua construção visava conectar o centro urbano à
Quinta da Boa Vista, e na prática significou um incentivo ao aumento do território
urbano em direção às freguesias do Engenho Velho e São Cristóvão. Para a obra, foram
necessários aterros e desvios nos terrenos de manguezal de São Diogo, e de margens
dos rios Trapicheiros e Maracanã. A busca pela estabilidade do solo para o
atravessamento das rodas das carruagens foi a primeira das grandes modificações
urbanas. Conforme surgiam novas vias, o traçado da cidade ganhava novos contornos.
As diligências, “gôndolas” e “ônibus” foram os primeiros grandes veículos para
transporte pessoal coletivo. Surgidas em 1817, as diligências tinham quatro rodas e
eram puxadas por dois pares de cavalos no trajeto do palácio em São Cristóvão à
Fazenda Imperial em Santa Cruz. Em julho de 1838, a Companhia de Omnibus iniciou
seus serviços com apenas quatro carros, que eram fechados e de dois andares, e eram
puxados por quatro equinos. O serviço, concedido aos senhores Aureliano de Sousa e
Oliveira Coutinho, Paulo Barbosa da Silva, José Ribeiro da Silva, Manoel Odorico
Mendes e Carlos Augusto Taunay, realizavam os itinerários do centro para as freguesias
de Botafogo, Engenho Velho e São Cristóvão. Em outubro desse mesmo ano, os
franceses Martin & C., da empresa Gôndolas Fluminenses ganharam concessão.
Puxados por mulas, seus veículos importados da França tinham capacidade para nove
passageiros. Carlos Augusto Taunay, proprietário nas duas últimas empresas, abaixou o
valor da passagem das Gôndolas de modo a tornar mais atrativo para seus usuários. O
ambiente social desse momento era pouquíssimo propício para novos investimentos em
205
transportes, a falta de capital tem sido um dos principais fatores no lento início do
desenvolvimento da circulação urbana583.
O padrão de preferência do transporte público ocorreu de maneira semelhante
em Paris, onde a maior frequência e menor preço se somavam às vantagens do itinerário
pré-determinado e dos horários agendados. Os passageiros também reclamavam dos
movimentos bruscos da viagem, preferindo estradas macadamizadas. E assim como no
Rio de Janeiro, tais linhas de transporte coletivo serviram inicialmente às necessidades
de burgueses e profissionais liberais que possuíam dinheiro para adotar um estilo de
vida que separava o local de trabalho de sua residência. Em ambas as cidades, a
motivação foi um lugar fresco e sadio, afastado da urbe e das condições sanitárias e
“morais” mais favoráveis584.
As ruas e estradas do Rio de Janeiro começaram a ser macadamizadas na década
de 1850. Anos antes no periódico da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, O
Auxiliador avaliava as vantagens e desvantagens do processo de macadamização.
Segundo o artigo, ele consistia na sobreposição de camadas sucessivas de rochas
fragmentadas (de até 7,5cm) e na compressão por pesados rolos compressores até
adquirir sua devida resistência585. O senador e ministro do Império, Francisco
Gonçalves Martins, concedeu o privilégio de uma máquina que preparava as pedras para
o referido calçamento a Camillo Goffredo, através do decreto 1.128 de 28 de fevereiro
de 1853. Os relatórios de Obras Públicas do Ministério do Império já apontavam o uso
da tecnologia para pavimentar o centro urbano e os caminhos para o Catete a partir de
1852586. Na área urbana a superfície lisa sofria forte atrito de carros pesados ou velozes,
e gerava uma fina poeira que virava lama em dias de chuva. Em estradas pouco
movimentadas, a alternativa não acarretava empecilhos para os usuários de cascos e
rodas587. Antes da macadamização das vias públicas, o serviço de transporte público,
583
BORGES, Ailton. A história do transporte no Brasil: dados técnicos do CTA Estatísticas. Uberlândia:
Secretaria Municipal de Transito e Transportes, 2014.
584
McSHANE e TARR, The horse in the city, op. cit.
585
AUXILIADOR. Variedades: estradas [s/ autor]. O Auxiliador da Indústria Nacional. Rio de Janeiro, v.
14, n. 12, p. 453-462, 1846.
586
COUTO FERRAZ, Luiz Pedreira do. Relatório do Ministério dos Negócios do Império. Rio de
Janeiro: Typographia do Diário, 1854. MARTINS, Francisco Gonçalves. Relatório do Ministério dos
Negócios do Império do ano de 1852. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1853.
587
LAY, M. G.; VANCE, James. Ways of the World: a history of the World‟s roads and of the vehicles
that used them. New Brunswick: Rutgers University Press, 1992.
206
que já carecia de frequências regulares, era comumente atrasado ou suspendido em
casos de fortes chuvas588.
As estradas que davam aceso à Floresta da Tijuca, no alto curso das montanhas
cariocas, foram macadamizadas para que a elite pudesse ter fácil acesso à zona de ares
mais sadios e cachoeiras refrescantes. Além de uma superfície lisa que aumentava a
eficiência do transporte, as vantagens ambientais foram o fácil escoamento de água e a
diminuição de alagamentos e lamaçais – cenário comum nas ruas não macadamizadas.
A desvantagem era um maior levantamento de poeira conforme a velocidade das
carruagens aumentava. Os cascos dos equinos e o atrito das rodas desestabilizavam as
pequenas pedras nas vias macadamizadas e liberavam pequenos sedimentos que
suspendiam como poeira no ar. A década de 1860 marcou o início do interesse de
construção de estradas no maciço. Segundo o Ministro da Agricultura do ano de 1862,
Manoel Felizardo Souza e Mello,
588
SALDANHA, Carlos Fernando Furtado. Meios de transporte coletivos de tração animal na cidade do
Rio de Janeiro (1838-1892). Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.
589
SOUZA E MELLO, Manoel Felizardo. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras
Públicas do ano de 1861. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, p. 43, 1862.
590
HEYNEMANN, A floresta da Tijuca, op. cit.
207
1.894 metros de extensão por 50 metros de largura591. O sistema de oito estradas de
rodagem das montanhas do início do século XX não foi efetuado de maneira planejada
pela IGOP. Para a estrada que ligava Jardim Botânico para as montanhas da Tijuca,
atual estrada da Vista Chinesa, o Inspetor, Manoel da Cunha Galvão, dizia que “não se
procedeu com a ordem natural das coisas”. Já que entendia que deveria “primeiro abrir
uma estrada de rodagem até o Alto da Boa Vista, onde ela começou” 592. A estrada de
rodagem da Tijuca de 4.913 metros foi concluída em outubro de 1866 com um total de
135 contos de réis, sendo 20 somente para desapropriações593. A subserviência e o
trabalho dos animais de carga, e humanos explorados, proporcionaram o acesso aos
estabelecimentos de saúde e lazer. Com a estrada de rodagem da Tijuca, e outros
acessos às montanhas cariocas, não sendo mais obrigado a “pedir a Petrópolis, a
Teresópolis ou a Nova Friburgo alívio às suas enfermidades”594. Para proporcionar
segurança aos visitantes do alto curso foram removidos 61 combustores da iluminação
pública (30 da antiga estrada, agora menos visitada, e 31 da área urbana)595.
Os equinos urbanos carregavam pedras, madeiras, canos, areia, pólvora, pessoas
e suas ferramentas para modificações estruturais na socionatureza. Para as obras de
construção e reparos do aqueduto da Carioca no ano de 1861 foi necessário mais de
1.000m³ de pedra596, 5.000m³ de areia e cal, 400m³ de aterro. Para as reformas das
caixas d‟água da serra da Tijuca, que compunham o encanamento do Maracanã do
mesmo ano foi necessário quase 2.000m³ de pedra e cal597.
Por necessidade e praticidade, os funcionários da IGOP frequentemente
propuseram o aproveitamento de material local para as obras de reservatórios, estradas e
591
COUTINHO, Christiano Pereira. Relatório dos trabalhos feitos pela Inspecção Geral das Obras
Públicas durante o anno de 1860. In: Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras
Pública do ano de 1860. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1861.
592
COUTINHO, Christiano Pereira de A., Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas do Município
da Corte. In: Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, das Obras Públicas para o ano de
1861. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1862.
593
SOBRAGY, Bento José Ribeiro. Relatório do Inspetor Geral das Obras Públicas. Anexo O do
Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, das Obras Públicas para o ano de 1865. Rio de
Janeiro: Typographia Perseverança,1866.
594
DANTAS, Manoel Pinto de Souza. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, das Obras
Públicas para o ano de 1866. Rio de Janeiro: Typographia Perserverança, p. 159, 1867.
595
DANTAS, Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas para o ano de
1866, op. cit., p. 163.
596
Metro cúbico (m³) é uma medida de volume. Para termos uma ideia, 1m³ significa um cubo com cada
lados de 1 metro. Se imaginarmos um cubo com lados de 10 metros, teremos um volume de 1.000m³, ou
uma casa grande com 300m² (3,33m de altura).
597
COUTINHO, Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas do Município da Corte, 1862.
208
pontes. O barro era escavado das proximidades do rio, dependendo da disponibilidade
do leito do rio permitir a extração de areia, pequenas pedras ou rochas maiores. Na obra
de construção da muralha na continuação da estrada do Andarahy Pequeno que subia o
Alto da Boa Vista, em 1860, “escavou-se todo o barro preciso para a argamassa e
aterros; e do rio tirou-se a pedra necessária para a construção da obra”598. Muitas vezes
as pedras eram obtidas pela explosão de rochas maiores que obstruíam o andamento das
atividades. Para a construção da Caixa do Andarahy Grande, “abriu-se e deu-se fogo em
1.258 minas, sendo a pedra resultante empregada nas obras acima ditas”599.
A IGOP possuía uma alta dependência energética dos equinos. No ano de 1874,
só nas obras de macadamização de algumas estradas de acesso ao maciço da Tijuca (que
sobe da Gávea, do Jardim Botânico e do Andarahy, hoje Tijuca) foram utilizados
2.970m³ de rochas e pequenas pedras, e 529m² de sarjeta600. Estimamos o peso601 dessas
rochas entre 4,5 a 5,3 mil toneladas, que seja 5 mil toneladas. Como em regiões de
topografia inclinada não é comum que mulas e burros carreguem mais de 100kg602,
estima-se uma média de 50 mil viagens neste ano para carregar essas pedras, ou algo em
torno de 130 viagens por dia603.
A velocidade das carruagens e derivados foi um problema para a Câmara
Municipal. A rápida locomoção acarretava acidentes e desconforto aos transeuntes,
além de levantar a poeira das vias. O transporte pessoal individual foi afetado a partir da
postura que afirmava que: “Nenhuma pessoa poderá correr de cavalo pelas ruas da
cidade” exceto as forças armadas e os correios604. O parágrafo sexto do mesmo
documento proibia que se atassem cavalos às portas, janelas ou argolas. Isto resultou na
598
COUTINHO, Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas do Município da Corte. 1861, p. 1.
599
COUTINHO, Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas do Município da Corte, 1862, p. 5.
600
MORAES JARDIM, Jeronymo Rodrigues de. Relatório da Inspeção Geral das Obras Públicas do
Município da Corte. In: Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, das Obras Públicas para o
ano de 1874. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1875.
601
Utilizei tabelas de peso específico de materiais comumente empregadas na Engenharia Civil em kg/m³.
Usou-se para uma humilde estimativa o peso de britas e cascalhos que deu entre 1500 a 1800 kg/m³.
PRODETEC, Peso específico de materiais. Disponível em:
<http://www.prodetec.com.br/downloads/pesos_especificos.pdf>. Acesso em: 25 janeiro de 2016.
602
ALVES, Influência da idade e do sexo sobre o perfil bioquímico sérico de jumentos da raça brasileira,
op. Cit.
603
As estimativas foram tratadas para ilustrar e não quantificar o esforço. Não afirmo que os animais
tenham feito todas essas viagens. Pois além de ser comum contratar serviços terceirizados pela Inspetoria
de Obras Públicas, é inviável esse tipo de esforço para animais de carga desse porte.
604
§9º do Título III: sobre a limpeza e desempachamento das ruas e praças, e providências contra a
divagação de loucos e embriagados, de animais ferozes e dos que podem incomodar o público. P 23. In:
MORAES FILHO, Código de Posturas, 1894.
209
necessidade dos guardiões desses animais de terem uma estrutura para alojá-los, como
estábulos e afins605. Outra postura afetava o transporte coletivo, o parágrafo oitavo, do
Título X: sobre diversos meios de manter a segurança, comodidade e tranquilidade dos
habitantes, proibia “andar de sege a galope e a trote largo nas ruas estreitas da
cidade”606.
A implantação de trilhos para os bondes urbanos a partir do final da década de
1850, marcou um segundo momento de mudança estrutural tecnológica do espaço
urbano. A proposta tecnológica era uma superfície com menor atrito possível. De
maneira a facilitar que os animais carregassem mais peso, com menor esforço.
A velocidade passou a ser um problema inédito no cotidiano urbano das pessoas.
Acidentes, que não eram raros, ocorriam pelo abuso de velocidade e direção perigosa,
assim como pela sabotagem de meios de locomoção anteriores (em especial, as
gôndolas). A primeira companhia de bondes do Rio de Janeiro, Companhia de Ferro-
Carril da Tijuca, foi um caso exemplar para compreendermos essas transições. Os carros
iniciais eram fechados e comportavam 18 pessoas sentadas em dois bancos, e 12 em pé.
Criada em 1856 e inaugurada em 1859, seus dois veículos, importados da Inglaterra,
eram puxados por burros. No ano de 1861, Irineu Evangelista, que viria a ser conhecido
depois como barão de Mauá, assumiu a empresa, e conseguiu a autorização de
modificar a energia animal por vapor. Essa curta experiência da nova matriz energética
durou até novembro de 1866, quando a empresa suspendeu os serviços. Difícil concluir
se a causa foi devido às resistências dos condutores das gôndolas que impediam a
circulação de bondes e causavam acidentes; ou aos receios da nova velocidade urbana
que também facilitavam descarrilamentos; ou até mesmo dos medos da nova tecnologia
a vapor e seus riscos de explosão607.
Nem sempre as novas relações socioecológicas, derivadas dessa simbiose entre
humanos e equinos, resultou em atividades permitidas ou bem vindas pela sociedade
urbana. O uso do Campo da Aclamação pelos cocheiros e amansadores de animais
danificavam as árvores, pelo encontro dos carros e animais mal governados, ou por
amarrarem esses animais nelas. Em consequência disso, foi publicado pela Câmara
605
Na seção seguinte 4.3, abordaremos sobre a dinâmica territorial da presença equina na cidade, com os
capinzais, prados, e outras estruturas.
606
MORAES FILHO, Código de Posturas, 1894.
607
WEID, Elisabeth von der. O bonde como elemento de expansão urbana no Rio de Janeiro. Siglo XIX.
Cidade do México, n.16, p. 78-103, 1994. ; BORGES, Ailton. A história do transporte no Brasil: dados
técnicos do CTA Estatísticas. Uberlândia: Secretaria Municipal de Transito e Transportes, 2014.
210
Municipal o edital de 17 de abril de 1866 que proibia tal apropriação das árvores por
esses serviços assim como das lavadeiras que penduravam as roupas para secar. Em
ambos os casos, o infrator pagava multa de 5 mil réis e na reincidência, 10 mil réis 608. A
negociação do uso da socionatureza urbana se deu de maneira heterogênea. Por vezes,
grupos sociais pouco abastados e suas práticas eram impedidos pela municipalidade.
Em outras vezes, as intervenções eram mais drásticas e incentivadas pelo governo,
como foi o caso da chegada dos bondes.
A inovação técnica de trilhos dos bondes conviveu com o antigo sistema
técnico, seja pelo uso da força animal ou pela divisão do espaço urbano com diligências
e gôndolas. O interesse em equinos puxando bondes manteve-se presente em outras
empresas como a Botanical Garden Railroad Company (1866), The Rio de Janeiro
Street (1869); Companhia Ferro-Carril de São Cristóvão (1873), Companhia de Vila
Isabel (1873), e tantas outras. O surgimento de novas relações socioecológicas
demandou uma revisão nas políticas de controle por parte da municipalidade. Em 1872,
ano em que as empresas supracitadas já existiam –as duas últimas iniciavam a
implantação dos trilhos –, a Câmara Municipal lançou o edital em 17 de julho, a qual
proibia velocidades dos carris de ferro acima de meio trote nas ruas do centro 609. A
antiga cidade histórica foi invadida por quadrúpedes, aumentando ainda mais o interesse
em morar longe das áreas mais urbanizadas. A separação do trabalho e casa, a busca por
áreas mais salubres nos arrabaldes, e a vontade de permanecer conectado com o centro
urbano, fomentou o crescimento dos subúrbios cariocas, e o transporte foi um elemento
chave para esse processo. Como nesse momento todas essas empresas utilizavam da
força das espécies equinas, podemos dizer que estas foram o motor de expansão
urbana610.
O incremento da eficiência dos transportes equinos significou modificações na
dinâmica de preços do mercado, no valor de imóveis que possuíam acesso aos bondes e
ônibus, dentre outras. O aumento populacional de equinos e as modificações
tecnológicas que derivaram em maior eficiência de transporte possibilitaram um
608
Edital de 17 de abril de 1866. Proíbe às lavadeiras e amansadores de animais servirem-se das árvores
do campo da Aclamação. In: MORAES FILHO, Código de Posturas, 1894.
609
Edital de 17 de julho de 1872. Proíbe às companhias de carris de ferro dar aos carros maior velocidade
do que meio trote dos animais, em certas ruas. In: MORAES FILHO, Código de Posturas, 1894.
Art. 1º É vedado às companhias de carris de ferro dar aos carros maior velocidade do que a de meio trote
dos animais, [nas ruas do centro].
610
ABREU, Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro, 1992.
211
impulso maior na expansão urbana no Rio de Janeiro, e em tantas outras cidades no
século XIX. Novas relações de poder foram tecidas, e outras esquecidas, na complexa
história da transformação urbana. As tecnologias de transporte estenderam o domínio da
cidade sobre seu entorno611. A busca pela eficiência de vias, veículos e outras
materialidades, resultou em modificações de antigos usos (comércio ambulante, passeio,
etc.) e no anseio pelas facilidades do novo uso: velocidade, conforto, e ideais de
progresso.
Figura 15: Mapa das linhas de bondes na cidade do Rio de Janeiro. Sem escala. Em vermelho as linhas de
bonde, em amarelo os subúrbios, em cinza o centro urbano, em marrom o relevo. Base cartográfica:
MASCHEK, E. Planta da cidade do Rio de Janeiro e de uma parte de seus subúrbios. Rio de Janeiro:
Laemmert & C., 1885. Autor: Bruno Capilé
611
MUMFORD, Lewis. The city in history: its origins, its transformations, and its prospects. New York:
Harcourt Brace Jovanovich, Inc., 1961
212
fluvial e urbana (ver Figura 15)612. A equação transporte e crescimento urbano foi
bastante lucrativa, e esteve fortemente associada ao capital financeiro, como no caso do
bairro de Vila Isabel. Seu idealizador, Barão de Drummond, e outros concessionários,
adquiriram terras imperiais da fazenda dos Macacos em 1872, um ano antes da criação
da Companhia Ferro-Carril de Vila Isabel e da Companha Arquitetônica. Esse pequeno
coletivo social aplicava capital financeiro e força animal para a criação do novo bairro e
transporte de seus moradores e trabalhadores. Com a necessidade de grande capital para
a construção da infraestrutura de trilhos e afins, as empresas de bondes associaram-se ao
capital estrangeiro e aos interesses de lucro garantido, como no mercado imobiliário.
Entre os acionistas principais estavam, majoritariamente, os engenheiros613. Esse padrão
foi observado em outras localidades da cidade, porém de maneira mais sutil. Como no
caso da expansão da Companhia Jardim Botânico e o crescimento de novos bairros na
zona sul614.
O bairro de Vila Isabel foi projetado seguindo o modelo das cidades europeias
com grandes avenidas e construção modernas. O percurso criado em 1873, da
Companhia Vila Isabel, ia do centro até o portão da fazenda dos Macacos. Sua
construção demorou uns meses devido a necessidade de aterros nas proximidades do
Canal do Mangue para dar um terreno estável para os trilhos615. Visando agradar
compradores e investidores que iam conhecer os lotes do novo bairro, as primeiras
viagens foram de graça. A área residencial desenvolveu-se simultaneamente com a
companhia de bondes, e um ano após a inauguração iniciaram as vendas e as
edificações616. O projeto de Vila Isabel visava uma boa circulação através de suas ruas
largas, com áreas verdes em parques e arborização. Porém, o sonho não foi somente de
Drummond e seus concessionários, já que outros tinham ambição em investir e
desenvolver um subúrbio abastado, conforme os planos comentados anteriormente de
uma universidade dotada de Jardim Zoológico, Horto Botânico, ricas áreas verdes e um
complexo hídrico gerado a partir dos rios Joana e Maracanã. O sucesso das empresas de
bondes sobre as antigas companhias das gôndolas e omnibus foi tristemente retratado
numa charge de 1868.
612
McSHANE & TARR, The horse in the city, op.cit.
613
SALDANHA, Meios de transporte coletivos de tração animal na cidade do Rio de Janeiro, 2008.
614
WEID, O bonde como element de expansão urbana no Rio de Janeiro, 1994.
615
ABREU, Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro, op. cit.
616
WEID, O bonde como elemento de expansão urbana no Rio de Janeiro, op. cit.
213
Figura 16: Charge sobre o fim das gôndolas. Fonte: REVISTA Vida Fluminense. Rio de Janeiro, n. 42, p. 504,
de 17 de outubro de 1868.
Com a expansão das vias e dos trilhos foi necessário rever grande parte das
pontes. A maior circulação de veículos fragilizava as pontes que já careciam de
manutenção ou de uma adaptação estrutural com materiais mais resistentes e
duradouros. No momento da construção dos trilhos, as pontes eram construídas ou
reformadas para terem maior resistência617. Com a maior circulação de pessoas, outras
pontes fora da rota dos bondes foi alvo de atenção por parte do poder público e dos
moradores. No Engenho Velho, Domingos José Soares da Costa propôs refazer uma
ponte em 23 de setembro de 1879. De responsabilidade da Câmara Municipal, o cidadão
que tinha muitos prédios na rua Bibiana, sugeriu que a ponte de madeira não fosse
consertada, e sim refeita de pedra e tijolos618. A região da Fábrica das Chitas, atual
617
WEID, O bonde como elemento de expansão urbana no Rio de Janeiro, op. cit.; BORGES, A história
do transporte no Brasil, 2014.
618
Pedido de Domingos José Soares da Costa à Câmara Municipal, 23 de setembro de 1879. AGCRJ
47.3.55. Fundo Câmara Municipal. Série Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho Velho (1832-1904).
214
Praça Saens Peña, densificou com a chegada dos bondes na década de 1860. Na rua
transversal próxima, Desembargador Isidro, os bondes da Cia. Ferro-Carril de São
Cristóvão rodavam diariamente, subindo por ela e descendo pela rua Bibiana. De olho
na necessidade urbana de circulação das pessoas, a Diretoria das Obras Municipais da
Corte informou a Câmara, no ano seguinte, sobre a urgência da ponte 619. Poucos anos
depois, em 1882, outra ponte de madeira na rua vizinha paralela (rua Santo Henrique)
foi destruída por fortes chuvas, enquanto esperava um trâmite de reparo bem semelhante
à da rua Bibiana620.
A crescente população de animais no metabolismo social urbano tornou-se um
inconveniente para a sociedade imperial que buscava comodidade e ideais de progresso.
Conviver com o corpo biológico desses seres representou reclamações que chegavam
aos poderes municipal e imperial: o cheiro e a crença dos miasmas exalados pelo
esterco; os conflitos especulativos de capinzais em subúrbios que se transformavam em
bairros nobres; os cascos que levantavam muita poeira. Paradoxalmente, esses animais
“causadores de problemas”, solucionavam outros problemas sanitários comumente
relacionados a áreas urbanas: esgoto e lixo621. Na década de 1860, a firma Nova
Empresa de Materiais Fecais, por exemplo, “oferecia seus serviços por 2$500 réis
mensais pela coleta domiciliar e pelos despejos diários dos dejetos e das águas
servidas”622. Mesmo assim, os inconvenientes derivados da força equina mereceram
atenção dos cuidadores de animais. Renault, ao comentar sobre os estabelecimentos
voltados para a alimentação de animais, ressalta que
619
Ofício da Diretoria das Obras Municipais da Corte a Camara Municipal, de 08 abril de 1880. AGCRJ
47.3.55. Fundo Câmara Municipal. Série Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho Velho (1832-1904).
620
Ofício da Diretoria das Obras Municipais da Corte, Engenheiro do 1º Distrito, João Caetano da Silva
Souza, a Camara Municipal, 26 de março de 1882. AGCRJ 47.3.55. Fundo Câmara Municipal. Série
Pontes. Pontes na Freguesia do Engenho Velho (1832-1904).
621
TERRA, Paulo Cruz. História Social do transporte do Rio de Janeiro – final do século XIX e início do
XX. Niterói, Marx e o Marxismo 2011: teoria e prática, Universidade Federal Fluminense, 2011.
622
SOARES, O “povo de Cam” na capital do Brasil, 2007, p. 161.
623
RENAULT, Delson. Rio de Janeiro: a vida da cidade refletida nos jornais: 1850-1870. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira; Brasília: INL, p. 262, 1978.
215
O modo como nos relacionamos com os cavalos, jumentos e seus híbridos, gerou
um montante de conhecimentos técnico-científicos de criação de animais, veterinária,
carroças, alimentação. A escolha de um conjunto de tecnologias para nos relacionarmos
com tais animais nas cidades veio acompanhada de impactos positivos (estradas mais
estáveis, novos tipos de carruagens e equipamentos utilizados nos cavalos, etc.) e
negativos (aumento na distribuição e quantidade de esterco, alto custo nos cuidados de
alimentação e saúde dos animais, etc.)624. Na realidade, os problemas derivados do uso
da força equina na cidade sempre foram reconhecidos. As toneladas de estrume, os
acidentes causados por animais ou por seus condutores, o cheiro de amônia da urina
evaporada, as carretas de capim, a poeira causada pelo atrito dos cascos no pavimento,
entre tantas outras dificuldades, inviabilizavam a presença de equinos a longo prazo na
cidade625.
As relações entre equinos e humanos pendiam mais para exemplos de
dominação, imposição. O controle biológico sobre os animais era sobre o que eles
comiam, trabalhavam, descansavam e até sobre sua reprodução. Tal controle poderia ser
realizado de maneira indireta, como, por exemplo: os capinzais, anexos às chácaras e
terminais dos bondes, que modelaram o espaço urbano, mantendo um aspecto
suburbano; a criação de estábulos e cocheiras para o descanso e abrigo dos
quadrúpedes626. Os estábulos possuíam o chão revestido de palha para absorver urina e
umidade das fezes. Se somarmos o modo de iluminação a querosene ou velas, e a
construção de madeira, temos um cenário perfeito para grandes incêndios. O controle
poderia também ser feito de maneira direta através das técnicas de controle do corpo
equino, que iam da domesticação aos equipamentos acoplados neles (cabresto,
embocadura, rédea, esporas), incluindo as castrações e cruzamentos627.
Cuidar e manusear um animal, dominar um aspecto natural e apropriar-se
biossocialmente dos animais de carga, requeria conhecimento e experiência dos
tratadores. Essa relação manteve-se necessária para o fornecimento de energia para o
metabolismo urbano. Havia na área de reflorestamento da Tijuca um funcionário
integralmente dedicado a dois desses animais: alimentá-los, limpá-los, treiná-los e
624
SCHOTT, Dieter. Urban Environmental history: what lessons are there to be learnt? Boreal
environmental research, n. 9, p. 519-528, 2004
625
McSHANE & TARR, The horse in the city, op. cit.
626
Na seção seguinte, 3.2.3, iremos abordar um pouco mais sobre capinzais e estábulos na transformação
suburbana.
627
McSHANE & TARR, The horse in the city, 2007.
216
utilizá-los para carregar. Infelizmente os relatórios oficiais não prezavam por esse tipo
de informação, nesses e em tantos outros casos, e muito se perdeu. Seria interessante
compreender como o conhecimento empírico, local, aperfeiçoou a otimização e
aproveitamento da energia no sistema ecológico.
O controle tendia a ser um problema quando gerava violência física através de
abusos e maus tratos. Algumas posturas municipais eram voltadas para outros aspectos,
porém indiretamente propôs melhorias nas relações de trabalho. Sobre o transporte de
carvão de pedra, o edital de 25 de outubro de 1873 impedia que as carroças puxadas por
dois animais tivessem um peso superior a 1.440kg628. Provavelmente o interesse estava
em evitar velocidades baixas, acidentes e sujeiras, do que com o bem-estar animal.
Sobre o transporte do lixo por carroças, o edital 09 de março de 1875 ditou as normas
sobre local de circulação, camadas de cal para impedir o cheiro, e outras questões629.
O edital sobre o transporte do café deixou claro no artigo sétimo que era
“proibido maltratar os animais com pancadas, ferindo-os ou contundindo-os”, sob pena
de 10$000 réis630. Esta postura foi publicada em 29 de novembro de 1876, sendo a
sessão ordinária presidida interinamente pelo dr. Adolpho Bezerra de Menezes: um dos
principais expoentes da doutrina espírita no Brasil e presidente da empresa de bondes,
Companhia de São Cristóvão. Ao publicar esse dispositivo legal que proibia maus tratos
animais no Brasil631, a Câmara Municipal admitia que os equinos são seres passíveis de
dor e sofrimento. Pode ser que os questionamentos espirituais de Bezerra de Menezes o
tenham levado a buscar melhores tratamentos para os animais. O Livro dos Espíritos de
Allan Kardec, marco histórico da doutrina espírita, foi publicado na França em 1857 e
teve no Brasil sua primeira edição em 1875. Lido por Bezerra de Menezes632, o texto,
para o desgosto do conservadorismo religioso brasileiro, afirmava que animais não eram
628
Edital de 25 de outubro de 1873. Sobre o transporte de carvão de pedra; peso que as carroças poderão
transportar; direção que os veículos devem tomar, seguindo da Gamboa para o saco do alferes, etc. IN:
MORAES FILHO, Código de Posturas, 1894.
629
Edital de 09 de março de 1875. Sobre as carroças que removerem o lixo das ruas e das casas da
cidade. In: MORAES FILHO, Código de Posturas, 1894.
630
Edital de 29 de novembro de 1876. Sobre carroças de conduzir café. In: MORAES FILHO, Código de
Posturas, op. cit.
631
Na realidade, existe outras menções legislativas aos maus tratos animais como o nono parágrafo do
Edital de 11 junho de 1853: Das matrículas dos cocheiros, e providências relativas ao diversos veículos.
In: MORAES FILHO, Código de Posturas, op. cit.
632
BEZERRA DE MENEZES, Adolpho. Entrevista. Reformador. Rio de Janeiro, ano 10, 15 de outubro
de 1892.
217
simples máquinas. E embora sejam dotados de uma alma intelectual, uma consciência e
uma individualidade, os animais seriam ainda inferiores ao homem633.
A doutrina espírita de Kardec, no entanto, não conseguiu evitar a violenta morte
de animais que trabalhavam para a Cia Vila Isabel, no fatídico primeiro de janeiro de
1880. O evento se circunscreveu como episódio da Revolta do Vintém, quando um
tributo de 20 réis (um vintém) foi adicionado ao preço dos bondes pelo governo
imperial. Após a notícia do aumento, um protesto nas proximidades do palácio imperial,
em São Cristóvão, no dia 28 de dezembro de 1879, reivindicava o fim da taxa, que iria
valer a partir do início do ano seguinte. Depois de serem reprimidos, os revoltosos, na
figura do jornalista republicano Lopes Trovão, promoveram um novo encontro, dias
depois634. A multidão se reuniu novamente no principal ponto final dos bondes, o largo
de São Francisco de Paula, na manhã de primeiro de janeiro de 1880. Ao começar da
tarde, as atividades tomaram um novo nível de violência, resultando na quebra de
bondes, retirada de trilhos, e, infelizmente, no esfaqueamento e morte de burros da Cia.
Vila Isabel – o sócio majoritário da empresa também foi agredido nesse mesmo dia635.
Após feridos e mortos, e muito prejuízo material, o tributo foi revogado. O número
exato de humanos mortos varia de 3 a valores pouco maiores, enquanto sujeito
desprovido de voz, os equinos mal foram noticiados636.
Em 1890, enquanto a população urbana carioca tinha aproximadamente 500.000
habitantes humanos, o coletivo de animais de carga utilizados somente pelas
companhias de bondes ultrapassava seis mil indivíduos que transportavam materiais e
pessoas por 250 km de trilhos. Conforme dito antes, para o manejo cotidiano desses
animais (alimentação, banho, moradia) era necessário um grande contingente de
tratadores e condutores com saberes específicos. A transição para outras fontes de
energia como o vapor e a eletricidade demandou a “importação” de mão-de-obra
especializada que teria de lidar com os maquinários e usinas elétricas637. Na década de
1890, a cidade ainda não possuía um sistema elétrico que desse conta da demanda
633
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: Editora FEB, 2004.
634
GRAHAM, Sandra Lauderdale. The Vintem Riot and Political Culture: Rio de Janeiro, 1880. The
Hispanic American Historical Review, v. 60, n. 3, p. 431-449, agosto 1980.
635
GAZETILHA: tumulto [s/ autor]. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, ano 59, n. 2, p. 1, 02 de
janeiro de 1880.
636
GRAHAM, The Vintem Riot and political culture, 1980.
637
A cidade ainda não era devidamente eletrificada. Para o uso da energia elétrica era comum a criação de
uma estação elétrica
218
energética do transporte público, que só viria a ter uma boa produtividade com a
construção da barragem do Ribeirão das Lajes no início do século XX638.
A transição da matriz animal para elétrica nos bondes aliviou em muito as
desvantagens de conviver com equinos: cheiros de urina e fezes, acidentes e
atropelamentos por susto dos animais, áreas para pasto. A experiência pioneira mais
eficiente de energia elétrica foi a da Companhia do Jardim Botânico que eletrificou o
trajeto do Centro à rua Dois de dezembro em 1892, onde ficava a usina elétrica que
alimentava o sistema. Outras empresas seguiram a ideia, como a Companhia Ferrocarril
Carioca na subida de Santa Teresa em 1896, e a Estrada de Ferro da Tijuca em 1898.
Em 1900, novas cláusulas contratuais exigiam a eletrificação, prometendo ampliação
dos prazos das concessões. A cidade já não queria mais os cavalos639.
Como máquinas vivas, os equinos foram explorados no trabalho urbano de
transporte de pessoas e cargas. No entanto, essas relações são mais complexas do que
uma pura dominação. Eles também eram cuidados (muitos com carinho), protegidos,
alimentados, e possivelmente não sobreviveriam à extinção se não fornecesse benefícios
de interesse humano. A despeito do que uma abordagem reducionista sobre a
socionatureza urbana pudesse interpretar, a cidade propiciou o crescimento da
população de equinos. Os discursos de modernidade, civilização e progresso não evitou
que outras espécies convivessem conosco durante muito tempo, mas apenas limitou
nossas narrativas históricas.
O impacto da presença equina na cidade decorreu de seus corpos, e também de
toda uma infraestrutura urbana que os mantinham em funcionamento: prados e
capinzais. A próxima seção versa sobre esses e outros elementos urbanos que
modificaram a socionatureza fluvial urbana do Rio de Janeiro.
638
MORRISON, Allen. The Tramways of Brazil: a 130-year survey. New York: Bonde Press, 1989.
639
WEID, O bonde como element de expansão urbana no Rio de Janeiro, 1994.
219
ônibus e bondes. Os antigos arrabaldes se suburbanizaram a partir desse acesso,
acarretando modificações materiais como o loteamento de chácaras, a abertura de novas
ruas. Porém, algumas estruturas persistiram mesmo com o fim da ruralidade desses
bairros, como os capinzais, estábulos, cocheiras. Somado a outras estruturas persistentes
da ruralidade, esta seção pretende analisar como o espaço suburbano manteve alguns
aspectos rurais mesmo após as transformações urbanas, tais como: capinzais e pastos
para os equinos, além de grandes espaços para eventos esportivos; e hortas e lavouras.
Ou seja, dando continuidade à discussão de seres vivos desejáveis e indesejáveis na
seção 2.2, essa ruralidade pode ser entendida como a persistência de vegetais desejáveis
no território urbano. Nesse novo cenário urbano, os rios cariocas foram novamente
subjugados e modificados para atender à demanda dessas novas relações
socioecológicas.
Uma tendência urbana mundial das cidades ocidentais oitocentistas foi a
proximidade de estábulos, cocheiras e pastos dos pontos finais das empresas de
transporte de carruagens (gôndolas, ônibus e afins) e bondes. As empresas buscavam
locais mais afastados devido a maleabilidade, ou falta de fiscalização, das regras
municipais, e até mesmo visando uma valorização imobiliária640. No início da década de
1880, as empresas de bondes Companhia Ferro-Carril de Villa Isabel e a Companhia de
São Cristóvão tinham suas estações localizadas nas cercanias do Canal do Mangue, o
limite urbano. Muito próximas, a primeira encontrava-se na rua Boulevard do
Imperador, e a segunda na Visconde de Itaúna. A mais antiga, da antiga Cia de Jardim
Botânico, e nesse momento, Botanical Garden RailRoad Company, localizava-se
vizinho à praça Duque de Caxias, atual Largo do Machado. Todas fora dos limites
urbanos da época. A única que permanecia na zona urbana, era a Companhia de Carris
Urbanos, localizada na rua de São Joaquim, que também possuía capinzais para seus
equinos. Conforme a cidade crescia, os pastos das empresas dos bondes também se
afastavam641.
A partir de uma busca no sistema de pesquisa da Hemeroteca Digital Brasileira
da Biblioteca Nacional com os termos chácara e capim deu para termos uma ideia de
640
McSHANE & TARR, The horse in the city, op. cit.
641
ALMANAK Admnistrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro [s/ autor e s/
título]. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1880.
220
como se deu a dinâmica pastos e capinzais na cidade do Rio de Janeiro642. Numa busca
para a década de 1850643, das mais de cem páginas encontradas, 67 foram de anúncios
de aluguel, em sua maioria, e venda de chácaras com capinzais. Dessas chácaras
encontravam-se espalhadas pelos bairros de Botafogo (11), São Cristóvão (10),
Engenho Velho (5), Rio Comprido (2), Engenho Novo (2), Praia do Flamengo (2),
Glória (1), Catumby (1). Capinzais com capacidade pequena, de um a dois animais,
média de 4 a 6, e grandes de 10 em diante. Conjuntamente a casa geralmente grande era
ofertado também hortas e disponibilidade de água, sendo que em 7 chácaras o rio
passava dentro do terreno.
A região de Botafogo apresentou apenas um anúncio mencionando chácaras de
capim com disponibilidade de rios. Diferente disso, os avisos de hortas e jardins nestas
chácaras foram mais frequentes: 5 menções para Botafogo e uma para a praia do
Flamengo. As hortas, pomares e jardins valorizavam o terreno, e houve vezes em que
uma descrição mais específica era direcionado para um público particular. No anúncio
de leilão de uma chácara no alto do morro da Glória o grupo interessado estava
evidenciado em letras garrafais: “Aviso aos srs Capitalistas”. Após mencionar a
existência de água do encanamento do Carioca, capim para dois animais e estribaria
para cinco, o trecho se estendeu descrevendo centenas de indivíduos vegetais de muitas
espécies. Dizia assim:
642
Os periódicos digitalizados da Biblioteca Nacional estão inseridos no Projeto Memória. Disponível
em: <http://memoria.bn.br>. Acessado em 20 de fevereiro de 2018.
643
Nessa busca apenas tiveram resultados para os periódicos: Correio Mercantil (50), Jornal do
Commercio (46) e Diário do Rio de Janeiro (32). A localização das chácaras nem sempre era especificado
no anúncio, e muitas vezes ocorria a repetição do anúncio, no caso da falta de interessados.
644
JORNAL do Commercio [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro, ano 35, nº1, p. 2, 01 de janeiro de 1860.
645
Foram 70 resultados espalhados no Jornal do Commercio (47), Gazeta de Notícias (17), Cidade do Rio
(3), O Fluminense (2), Gazeta da Tarde (1).
221
somente 11 chácaras nas regiões mais afastadas do centro urbano na direção oeste:
Engenho Novo (2), São Cristóvão (4), Engenho Velho (3), Vila Isabel (1). A oferta de
rios por dentro do terreno só apareceu uma vez, talvez devido à distância dos pequenos
rios do maciço da Tijuca, como a chácara de capim para 25 talhas diárias com estrutura
para 14 animais, que se localizava na rua Maxwell – próximo ao rio Joana. Segundo o
anunciante, o espaço se prestava “perfeitamente para estabelecimento de vacas de leite,
conforme as exigências da Câmara Municipal”. Outras propostas de aluguel, também de
grandes extensões territoriais, indicavam também outras possibilidades comerciais
como o anúncio de uma grande casa boa para um colégio e com água encanada, na rua
da Praia Pequena em São Cristóvão, próxima ao bonde do Pedregulho. Um pouco mais
afastado, na rua Anna Nery, no Engenho Novo, havia uma chácara que ofertava
estrebaria e cerca de doze mil talhas de capim à corte. Esta chácara muito
provavelmente oferecia seus serviços de venda de capim para os cavalos que corriam no
Prado Fluminense, próximo à Estação São Francisco Xavier, do qual falaremos um
pouco mais a frente.
Mesmo com restrições tecnológicas das ferramentas digitais de busca, como o
Reconhecimento Ótico de Caracteres (OCR), as buscas apontaram tendências
pertinentes. Em outras pesquisas, de menor fôlego e com outros termos, nesse mesmo
recurso, obteve-se outros resultados para esse mapeamento dos capinzais. Como em
1881, em um capinzal de uma chácara no Andarahy Grande da qual um animal vizinho
entrara sem ser convidado, fazendo um estrago na lavoura. O anúncio indicava que
“quem der os sinais certos e pagar o estrago e a despesa ser-lhe-á entregue”646. O aviso
está de acordo com a postura municipal que obriga o infrator, guardião do animal
invasor, a indenizar o dano e pagar as despesas com alimentação que o dono do terreno
tenha tido647.
Embora desejável por uns, a presença de capinzais não era bem vista por todos.
Os moradores do Rio Comprido publicaram uma carta aberta no Jornal do Commercio
em 1886. Segundo eles, um proprietário de terrenos no bairro concorria com a
insalubridade do lugar ao alugar suas terras para “fazerem chácara de capim, para cuja
646
JORNAL do Commercio [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro, ano 60, nº 177, 27 de junho de 1881.
JORNAL do Commercio. Rio de Janeiro, ano 60, nº 178, 28 de junho de 1881. JORNAL do Commercio
[s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro, ano 60, nº 179, 29 de junho de 1881.
647
Parágrafo 16 da Secção Primeira: Polícia. Título III: sobre a limpeza e desempachamento das ruas e
praças, e providências contra a divagação de loucos e embriagados de animais ferozes e dos que podem
incomodar o público. p 21-24 . In: MORAES FILHO, Código de Posturas, 1894.
222
melhor produção já principiaram a adubar as pantanosas terras”. E após seis anos de
intimações, pediram publicamente que o Ministro do Império, Francisco Antunes
Maciel, verificasse as providências necessárias648.
Ao longo de todo o século XIX, o estado sanitário dos capinzais urbanos era
uma preocupação de médicos imperiais. Na década de 1880, quando o campo da
medicina se apresentava bem institucionalizado, a Junta Central de Higiene Pública
elaborou o serviço das comissões vaccinico-sanitárias na corte. Dentre as diversas
atribuições das comissões, presentes no regimento criado pela portaria do Ministério do
Império de 19 de dezembro de 1883, o 3º ponto incumbia a visitar: “estábulos, estações
das empresas de ferro-carril, hortas e valas de agrião, plantios de capim, ordenando o
que for necessário para que se conservem nas condições convenientes”649.
A alimentação e suas vias de saída foram apenas algumas das atividades
biológicas dos equinos urbanos, que exerciam trabalho e transporte. Os cavalos foram
também uma fonte de entretenimento humano, principalmente através das corridas. No
Rio de Janeiro, os costumes de diversão equina foram incorporados da tradição ibérica
desde tempos coloniais. As festas equestres mais comuns eram as cavalhadas: eventos
que celebravam a habilidade do cavaleiro e do próprio cavalo através de provas e
desafios650. No entanto, com a presença inglesa e seus costumes, os clubs elaboravam
provas de turf: um sport de corridas de cavalos realizados nas praias, mais comum até a
década de 1850, e nos prados cariocas, dessa data em diante.
O Prado Fluminense foi construído pelo Club de Corridas em 1850, tendo como
destaque a figura do inglês João Guilherme Suckow, e localizava-se no Engenho Novo
próximo a Estação São Francisco Xavier da Estrada de Ferro Dom Pedro II. Os
membros do clube reuniram-se no Cassino Fluminense em maio de 1848 para a compra
do terreno e da criação dos estatutos. As corridas de cavalo ocorriam nos meses mais
frescos do ano, de maio a agosto, e o Club de Corridas negociaria 100 ações de 100 mil
réis cada. Segundo um artigo do periódico Correio Mercantil de 15 de junho de 1861, os
moradores da cidade já não toleravam as corridas de touros, nem as cavalhadas, sendo o
público de 5 mil pessoas um bom sinal disso. Nessas corridas, ocorreu pela primeira
648
JORNAL do Commercio [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro, ano 65, nº 98, p. 2, 08 de abril de 1886.
649
MACIEL, Francisco Antunes. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do ano de 1883. Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, p. 429, 1884.
650
MELO, Victor Andrade de. As touradas nas festividades reais do Rio de Janeiro colonial. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, v. 19, n. 40, pp. 365-392, 2013.
223
vez, no Rio de Janeiro, a participação do jóquei e do cavalo nos páreos. Porém, o
estádio tornou-se inoperante durante uns anos e depois foi assumido pelo Jockey Club
em 1868, até a década de 1920651.
Em 1885, não muito longe dali, as terras da Condessa de Itamaraty foram
compradas para dar lugar ao prado do Derby Club, ao lado do Palácio de São Cristóvão.
A proximidade de áreas mais abastada, como os subúrbios de São Cristóvão e Engenho
Velho, e a criação da Estação Derby no ramal Dom Pedro II foram cruciais para atender
os interessados e superar o prado vizinho652. Rodeado pelos rios Maracanã e Joana, o
prado do Derby se valeu dos capinzais já existentes nos dois bairros supracitados. A
energia solar captada pelas diversas espécies de gramíneas dos capinzais foi assimilada
pelos cavalos, e depois transformada em movimento do animal e maravilhamento
humano. Outros locais de corridas de cavalo surgiram e sumiram, mostrando as
divergências na aceitação do esporte. Das praias de Botafogo e Vermelha, aos prados
suburbanos, o turfe não foi aceito unanimemente pela sociedade carioca. Imaginem a
situação dos moradores mais próximos ao verem dezenas de cavalos defecando nas
proximidades!
O problema sanitário de aglomerações equinas era mais do que um problema
para as empresas de bonde. O fiscal da freguesia do Engenho Novo, Manoel Lourenço
Pereira Borges, apontava que era necessário que a Câmara Municipal fornecesse uma
carroça por três dias para a limpeza das ruas nas imediações do Prado Fluminense653. A
busca por meses mais frescos para ocorrerem as corridas também foi um fator favorável
para amenizar o cheiro de fezes e urina. Segundo o edital de maio de 1886, a Câmara
Municipal proibia tais corridas das 10 horas da manhã às 5 horas da tarde entre
dezembro e abril654. Em fevereiro do ano seguinte, o clube Sport Fluminense realizou
um dia de corridas em horário e dias não permitidos no Prado Guarany, em São
Cristóvão. O fiscal da freguesia do Espírito Santo, Agostinho Martins, foi enviado pelo
651
MELO, Victor Andrade de. Antes do club: as primeiras experiências esportivas na capital do Império
(1825-1851). Projeto História, São Paulo, n. 49, pp. 197-236, Abr. 2014. MELO, Victor Andrade de.
Entre a elite e o povo: o sport no Rio de Janeiro do século XIX (1851-1857). Tempo, Niterói , v. 21, n.
37, p. 208-229, Junho 2015.
652
MELO, As touradas nas festividades reais do Rio de Janeiro colonial, 2013.
653
Ofício do Fiscal da Freguesia do Engenho Novo, Manoel Lourenço Pereira Borges, à Câmara
Municipal, de 10 de Maio de 1876. AGCRJ 41.3.32 – Fundo Câmara Municipal – Coleção Conselho de
Intendências – Séria Corridas de Cavalos.
654
Artigo 1º do Edital 07 de maio de 1886. Sobre corridas. In: MORAES FILHO, Código de Posturas,
1894.
224
presidente da Câmara, Evaristo da Veiga, para impedir as corridas. Sem sucesso,
chamou o capitão Marcolino Rodrigues da Silva, que estava presente no evento.
Também sem sucesso, pois o policial esperava seu comandante, o próprio presidente da
Associação, enquanto já ocorria o primeiro páreo. As corridas ocorreram, e o fiscal
multou o clube em 30 mil réis655.
A questão sanitária passou a ser regulamentada em um segundo edital sobre
corridas, onde acresceu ao anterior: “(...) quando, à vista das condições sanitárias da
cidade, os julgar inconvenientes a Inspetoria Geral de Higiene, que será sempre ouvida
sobre as licenças requeridas (...)”656. Porém, retirou a menção aos dias que se poderiam
ter corridas, de maio a agosto. O Inspetor, Barão de Ibituruna, fez um parecer sobre as
duas posturas afirmando que era urgente que se respeitasse as datas mais frescas,
“período do ano em que menos poderão prejudicar a saúde pública”. E, em sua função
sanitária na Inspetoria, comprometeu-se a impedir esses eventos nestas datas657.
Conforme aconteceu com o pedido de corridas realizado pela Sociedade Sport Club no
início de 1889. A Inspetoria Geral de Higiene se opôs a pretensão, “e quaisquer outras
para o mesmo fim”, tendo em vista o “incremento que vai tomando a febre amarela”658.
No fim do Império, as chácaras ainda permaneciam, mas as relações
socioecológicas passaram a ser outras. Os anúncios de chácaras da busca para a década
de 1880 tiveram poucos resultados para capinzais nas chácaras suburbanas, modificando
o uso do solo para jardim, horta, e até comércio de flores. Nesta época as localidades
mais afastadas do centro urbano apresentaram mais ofertas de chácaras com capinzais,
apresentando também uma diversificação nos anúncios. Na chácara na rua Haddock
Lobo havia um terreno já plantado de horta e flores659; em Botafogo, uma propriedade
sem capinzais, possuía jardim, frutas, galinheiro na rua da Matriz660.
655
Ofício do Fiscal da Freguesia do Espírito Santo, Agostinho Thomaz Martins para Evaristo Xavier da
Veiga, Presidente da Câmara Municipal, de 02 de fevereiro de 1887. AGCRJ 41.3.32 – Fundo Câmara
Municipal – Coleção Conselho de Intendências – Séria Corridas de Cavalos.
656
Edital de 05 de maio de 1887. Sobre corridas. In: MORAES FILHO, Código de Posturas, 1894.
657
Ofício da Inspetoria Geral de Higiene à Câmara Municipal, de 28 de março de 1888. AGCRJ 41.3.32 –
Fundo Câmara Municipal – Coleção Conselho de Intendências – Séria Corridas de Cavalos.
658
Ofício da Inspetoria Geral de Higiene à Câmara Municipal de 30 de janeiro de 1889. AGCRJ 41.3.32 –
Fundo Câmara Municipal – Coleção Conselho de Intendências – Série Corridas de Cavalos.
659
JORNAL do Commercio [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro, ano 63, nº 213, p. 7, de 01 de agosto de
1884.
660
JORNAL do Commercio [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro, ano 62, nº 325, p. 8, de 22 de novembro
de 1885.
225
As lavouras suburbanas também geravam inconvenientes, principalmente nos
desvios dos rios e das consequências destes. Ou seja, o manejo de vegetais desejados
por uns acarretava resultados indesejados por outros. Em 1878, o Duque de Caxias,
residente da rua Conde de Bonfim nº 18, reclamava das inundações causadas pela
modificação do rio Trapicheiros. Segundo ele, seu vizinho Antonio Henrique de Araújo,
família tradicional com muitas terras no local, construiu um açude para suas hortaliças a
partir de uma pequena tábua que desviava o rio661. Em 1881, uma reclamação à Camara
mencionava que no Engenho Velho, as plantações de diferentes chácaras estavam
obstruindo os rios Joana e Maracanã, na altura do que veio a ser o prado Derby Club 662.
O fim dos capinzais e das lavouras urbanas se deu no início da República. A
ideologia do progresso dos engenheiros, aliada às concepções sanitárias dos médicos,
mobilizou a proibição das hortas para comércio e capinzais, em 1891. Os proprietários
precisaram aterrar e drenar suas lavouras no prazo de seis meses. Dos bairros
considerados urbanos pela Intendência Municipal da Capital Federal, apenas a Gávea e
o Engenho Novo foram permitidos manter suas plantações. No entanto, somente era
permitido adubar as plantas com produtos químicos, proibindo a adubação orgânica,
inclusive a existência de depósitos de estrumes663.
661
Rios e Riachos: Catumby, Coqueiros, Maracanã, Trapicheiros, Joanna, Andarahy, Comprido, e outros
de menor curso e volume de água. AGCRJ 49.4.95. Engenho Velho 1878.
662
Rios e Riachos: Catumby, Coqueiros, Maracanã, Trapicheiros, Joanna, Andarahy, Comprido, e outros
de menor curso e volume de água. AGCRJ 49.4.95 Rio Maracanã
663
Edital 28 de janeiro de 1891. Sobre a cultura do capim e estrumação de terrenos. In: MORAES
FILHO, Código de Posturas, op. cit., p. 306.
226
CAPÍTULO 5:
Lamas e miasmas:
as ideias sanitárias urbanas e os usos e abusos decorrentes
664
Biota portátil foi um termo cunhado por Alfred Crosby para designar as formas de vida transportadas
deliberadamente ou sem querer, em navios ou nos próprios corpos humanos. Sendo este último
constituído de microrganismos, adaptei o termo para microbiota portátil. CROSBY, Alfred W.
Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900. São Paulo: Companhia da Letras,
2011.
665
BENCHIMOL, Jaime. Pereira Passos: um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio
de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes,
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992.
666
PEREIRA REGO, José. Esboço histórico das epidemias que tem grassado na cidade do Rio de
Janeiro desde 1830 a 1870. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, p. 56, 1872.
227
dessa comissão foi aquietar o espírito público e serenar os ânimos”667 da população que
apelava com “preces ao Altíssimo pela cessação de tão devastador flagelo”668. A nova
medicina urbana repensada com teorias neo-hipocráticas ultrapassou os limites da
intervenção no corpo humano para transformações sistemáticas do corpo urbano. Numa
complexa via de mão dupla, tal medicina se apoia no Estado para realizar seu projeto de
prevenção de doenças a partir da idealização de uma nova socionatureza; e o Estado,
por sua vez, precisou dela como um discurso científico legitimador de suas ações nessa
mesma socionatureza.
Olhando em retrospectiva, observamos com mais facilidade as características
urbanas que tornaram o cenário epidêmico carioca mais desastroso. A começar pelo
“ambiente” da doença669, o corpo humano, vemos que a população mais que duplicou
de 1838 (97.162 habitantes) para 1849 (266.466 habitantes). O aumento da circulação
de navios, e suas microbiotas portáteis, no principal porto brasileiro, permitiu um
trágico aumento da probabilidade de chegar indivíduos infectados. A quantidade de
navios que aportaram no porto do Rio de Janeiro, para o intervalo de 1841 a 1850,
triplicou. Passando de 2.697 navios no ano financeiro de 1841-1842, para 8.355 para o
ano de 1849-1850670.
Independente da visão médica, o clima quente e úmido, numa relação funesta
com a topografia de baixadas e áreas alagadas, foi interpretado como importante
condição para o alastramento de epidemias671. Essas características ambientais foram
potencializadas por diversos costumes insalubres na cidade, em especial em como os
cariocas cuidavam de seus mortos. Cláudia Rodrigues, em seu artigo lúgubre, apontou
que os impactos da epidemia de febre amarela (1849-1850) modificaram profundamente
667
PEREIRA REGO, Esboço histórico das epidemias, op. cit., p. 56.
668
PEREIRA REGO, Esboço histórico das epidemias, op. cit., p. 54.
669
Numa analogia de escalas biológicas, podemos conceber o corpo humano como o ambiente das
doenças e seus patógenos. Onde cada enfermidade resultaria num local particular, como os pulmões para
o tuberculoso, a pele para o leproso, e por aí vai.
670
Os dados foram retirados dos mapas estatísticos do comércio e navegação. Dos 2.697 navios que
aportaram no ano financeiro de 1841-1842, 807 foram de longo curso (97 nacionais e 710 estrangeiros) e
1890 chegaram de cabotagem. Dos 8.355 navios do ano 1849-1850, 2.847 chegaram de longo curso (121
nacionais e 2.726 estrangeiros) e 5.508 chegaram de cabotagem. Cf. BRASIL. Colleção dos mappas
estatísticos do commercio e navegação do Império do Brasil no anno financeiro de 1841-1842. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1848. BRASIL. Colleção dos mappas estatísticos do commercio e
navegação do Império do Brasil no anno financeiro de 1849-1850. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1855.
671
MARCÍLIO, Maria Luiza. Mortalidade e morbidade da cidade do Rio de Janeiro Imperial. Revista
História. São Paulo, n. 127-128, p. 53-68, ago-dez a jan-jul, 1993.
228
os costumes fúnebres no Rio de Janeiro, a partir do discurso médico. Ela menciona por
exemplo que houve proibição de enterros nas igrejas e cemitérios públicos, além de
mudanças na liturgia católica: como a queda dos sacramentos672 de moribundos de
63,1%, antes dessa epidemia, para 22,4% logo depois673.
A mortalidade sem precedentes, de mais de 4 mil pessoas numa população de
pouco mais de 260 mil, mobilizou a transformação de costumes, das relações
socioecológicas e do ambiente sociobiofísico da cidade. O ritmo de aterros e drenagens
acelerou-se, ruas mais amplas foram planejadas e construídas, águas e esgotos foram
canalizados, os enterramentos nas igrejas foram proibidos e cemitérios públicos foram
construídos, rios perderam suas curvas e suas margens, dentre outras medidas que foram
efetuadas para amenizar as ocorrências e intensidades de tais epidemias. A idealização
da socionatureza urbana ocorria de maneira cada vez mais profunda. Mas, como
ocorreu a mudança na mentalidade médica de manter a tradição centenária de isolar os
doentes (quarentenas), para a realização de transformações materiais no ambiente? Em
outras palavras, como o fluxo de informação – teorias médicas, ideologias de progresso,
etc – no ecossistema urbano permitiu o surgimento de uma nova ambiente
sociobiofísico urbano.
Nesse âmbito, médicos e engenheiros se destacaram como idealizadores da
socionatureza urbana, e tomaram o conceito de circulação para articular distintas
estratégias de controle para amenizar e erradicar os males urbanos. O surgimento do
campo da Saúde Pública, enquanto medidas de controle do corpo da cidade, significou
uma busca mais eficiente e intensa do fim da estagnação das águas, dos ares, das
sujeiras, dos mortos. Assim como os rios, a cidade e seus elementos deveriam fluir,
circular. E, como resposta à alta mortalidade, a saúde foi um dos principais argumentos
mobilizadores. Em meio à principal premissa do campo médico – i.e. a circulação –,
veremos que as ideias também circularam pelo ecossistema urbano, forjando novas
relações socioecológicas a partir da expulsão de elementos indesejados pelos
idealizadores da socionatureza. O presente capítulo tem por objetivo analisar como as
teorias higienistas foram essenciais no entendimento do ambiente urbano e como
672
Segundo a autora, os sacramentos eram a penitência (confessar e pedir perdão), a eucaristia (comunhão
com o corpo de cristo, simbolizado pela hóstia), e a extrema-unção (quando o moribundo era ungido com
óleo da salvação para eliminar a presença maligna).
673
RODRIGUES, Cláudia. A cidade e a morte: a febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres
no Rio de Janeiro (1849-1850). História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 1, n. 6, p. 53-
80, mar-jun, 1999.
229
argumento para sua modificação. Em especial, como a história dos conhecimentos
médicos significou uma busca mais intensa pelo controle e eficiência da circulação das
coisas relacionadas a doenças no ambiente biofísico urbano.
674
FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: ______. Microfísica do poder.
Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
675
Não pude perceber diferença entre medicina urbana e social ao longo da literatura. Para os fins dessa
tese, elas serão compreendidas como sinônimos. Por vezes o termo urbano se destacará para reforçar
algum aspecto narrativo.
676
FOUCAULT, O nascimento da medicina social, op. cit., p. 53.
677
MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Angela; LUZ, Rogério; MURICY, Katia. A danação da norma:
medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.
678
COSTA, Mª Clélia Lustosa. A cidade e o pensamento médico: uma leitura do espaço urbano. Mercator
– Revista de Geografia da UFC. Fortaleza, ano 01, n. 2, p. 61-69, 2002.
230
noção de miasma foi a que mais adentrou no cenário do coletivo de médicos no Rio de
Janeiro oitocentista679. Napoleão Chernoviz, médico polonês radicado no Brasil no final
do século XIX, escreveu que os miasmas são emanações nocivas que corrompiam o ar e
prejudicavam a saúde humana. Para ele, os pântanos e a decomposição de plantas e
animais eram os principais focos de geração de miasmas680. De maneira a inibir os
efeitos deletérios dos miasmas na saúde humana, o Estado se apropriou do conceito de
circulação681 para aumentar a eficiência na limpeza das ruas, das valas, dos ares, dos
rios, e de qualquer foco produtor de miasma, como os matadouros, cemitérios, etc.
A partir das epidemias devastadoras da década de 1850 e de transformações
sociais no campo médico no Rio de Janeiro, novos serviços ecossistêmicos urbanos
surgiram ou tornaram-se mais eficientes: dragagem e aterro de alagados, limpeza das
ruas, distribuição de água e escoamento de esgoto, coleta de lixo682. Nas palavras da
historiadora Maria Clélia Costa, “tudo o que estivesse parado, estagnado, era um
elemento perigoso à saúde. O fluxo, a circulação (principalmente do ar e da água, tinha
um papel sanitário (...)”683. Ou seja, foi na medicina urbana que a noção de controle da
circulação das coisas e das pessoas tomou uma dimensão maior, tanto no ambiente
urbano quanto nos costumes dos moradores684.
Nesses meados do século XIX, duas teorias eram sempre levadas à tona para
explicar e combater as epidemias: contagionistas e infeccionistas. Na primeira, a visão
médica se voltava mais ao indivíduo, e na segunda, no ambiente. Os contagionistas
buscavam descrever e explicar a doença pela transmissão entre indivíduos, de maneira
direta – através do contato físico – ou indireta – por meio de objetos ou da respiração.
As primeiras prescrições dos médicos para a epidemia de febre amarela de 1849-1850
679
SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. São Paulo: ed.
Record, 2003. ARNOLD, David. The problem of nature: environment, culture and European expansion.
(New Perspectives on the Past). Oxford: Blackwell, 1996.
680
CHERNOVIZ, Napoleão. Dicionário de medicina popular. Rio de Janeiro: [s.i.], 1890. Apud
MASTROMAURO, Giovana Carla. Alguns aspectos da saúde pública e do urbanismo higienista em São
Paulo no final do século XIX. Cadernos de História da Ciência. Instituto Butantan, v. 6, n. 2, p. 45-63,
jul-dez 2010.
681
O conceito de circulação entrou de maneira mais intensa nos assuntos urbanos quando William Harvey
descreveu a circulação sanguínea no século XVII. Esses e outros termos da biologia e medicina estiveram
presentes no passado urbano Cf. SENNETT, Carne e pedra, op. cit.
682
Tais serviços ecossistêmicos serão abordados mais a frente, na seção 5.2.
683
COSTA, A cidade e o pensamento médico, op. cit., p. 64
684
MASTROMAURO, Alguns aspectos da saúde pública e do urbanismo higienista em São Paulo, op.
cit.
231
foram quarentenas para os navios e isolamento dos doentes em hospitais. Para os não-
doentes, aconselhavam alimentos e roupas leves, exercício moderado, e mudar-se para
as serras cariocas. Ou seja, uma abordagem mais voltada para a teoria contagionista. Os
infeccionistas, em contraposição, observavam e buscavam desvendar a doença através
de elementos no ambiente urbano que fosse prejudicial à saúde. Em particular, as
temíveis emanações mefíticas, os gases deletérios, os miasmas685.
Inexplicado pela ciência da época, os miasmas eram mais associados ao olfato
do que a análises químicas. Inspirado nas memórias sobre higiene pública do francês
Jean-Nöel Hallé (1794), Alain Corbin escreveu uma história do olfato na cidade nos
séculos XVIII e XIX. Para ele localizar os fluxos que constituíam a trama olfativa da
cidade permitiu encontrar as redes miasmáticas por onde se infiltraram as epidemias. A
nova higiene pública, um artifício biopolítico de controle social, demandou uma
aceleração das atividades de desinfecção. Desinfectar, ou desodorizar, foi a estratégia de
isolar o espaço aéreo das emanações miasmáticas686.
Para muitos, como John Domslen, a presença de odores salubres ajudaria a
amenizar os efeitos patogênicos dos maus ares. Em sua publicação sobre a salubridade
pública no Império em 1878, Domslen propôs o cultivo de plantas aromáticas, vegetais
desejados, tanto nas chácaras de ricos proprietários, quanto em pequenos vasos dos
humildes trabalhadores. Para tal, aconselhou o plantio de jacinto, limão, hortelã, cravo,
louro, alfazema687.
As instituições médicas no Rio de Janeiro estavam em sintonia com as ideias da
medicina urbana francesa688. Segundo o historiador Luiz Otávio Ferreira, a primeira
geração de catedráticos (1830-1860) da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
(1832) foi formada exclusivamente na primeira escola de medicina no Brasil, a
685
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
686
CORBIN, Alain. El perfume o el miasma: el olfato y lo imaginário social – siglo XVIII y XIX. México
D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1987.
687
DOMSLEN, John. Salubridade pública: observações sobre a vital importância da saúde pública em
relação à riqueza, poder e prosperidade deste Império. Rio de Janeiro, Typographia Universal de
Laemmert, 1878. Apud EUGÊNIO, Alisson. Saber médico, cultura e saúde pública no Brasil do século
XIX. Saeculum – Revista de História. João Pessoa, n. 22, p. 147-162, jan/jun, 2010.
688
Na realidade, o costume de incorporar ideias francesas não se limitou à medicina. Engenharia, moda, e
outros costumes francos foram absorvidos pela sociedade urbana carioca. Em menor intensidade, mas
ainda bastante intenso, foi a apropriação de pensamentos da Inglaterra e outros países.
232
Academia-Médico Cirúrgica do Rio de Janeiro (1813)689 e, principalmente, na faculdade
de medicina de Paris. Mesmo com fortes apelos a medicina clínica, essa primeira
geração contou com uma disciplina de Higiene e História da Medicina que foi lecionada
pelo José Maria Cambuci do Vale no 6º ano de curso. Para Ferreira, a consequência foi
uma homogeneização do pensamento da elite médica690. De maneira semelhante, José
Murilo de Carvalho apontou a homogeneização do pensamento da elite política na
geração de juristas do início do XIX formados na Universidade de Coimbra691. Ou seja,
a homogeneidade ideológica foi essencial na redução de conflitos internos e como
poderoso elemento unificador.
O mesmo ocorreu com a Academia Imperial de Medicina (1835), que, também
imbuída dos conhecimentos da medicina urbana francesa, passou a ser um instrumento
de política de saúde pública do Império até a década de 1850. A Academia surgiu como
continuidade da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (1829) que também foi criada
num contexto da medicina francesa. Assim como a primeira geração de catedráticos da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a Sociedade de Medicina, em seus primeiros
anos era exclusivamente de brasileiros formados na Faculdade de Medicina de Paris ou
de médicos franceses692. Importante interlocutora dos problemas médicos da cidade e
participante ativa da rede de conhecimentos médicos no mundo ocidental, a Academia
legitimava os saberes a serem praticados. Afinada com as teorias miasmáticas mais
atuais de sua época, a instituição defendia que o calor e a umidade eram os principais
potencializadores de miasmas. Porém, com a deficiência de respostas às epidemias de
1849 e 1850693, começou a perder prestígio e poder político para a Junta Central de
Higiene Pública (1850).
689
Ao longo da história da medicina no Rio de Janeiro, tal instituição teve outras denominações.
Primeiramente como Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro em 1808, passa a ser
Academia Médico-Cirúrgica em 1813, e em 1832 transformou-se em Faculdade de Medicina. Cf. o
verbete Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro do Dicionário Histórico-Biográfico das
Ciências da Saúde no Brasil (1832-1890). Disponível em:
<http://www.dichistoria.coc.fiocruz.br/iah/pt/verbetes/escancimerj.htm>. Acesso em: 16 de fevereiro de
2018.
690
FERREIRA, Luiz Otávio. João Vicente Torres Homem: descrição da carreira médica no século XIX.
PHYSIS – Revista de Saúde Coletiva. V. 4, n. 1, p. 57-77, 1994.
691
CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem : a elite política imperial; Teatro de sombras : a
política imperial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
692
RIBEIRO, Lourival. O Barão de Lavradio e a higiene no Rio de Janeiro Imperial. Belo Horizonte:
Rio de Janeiro: Editora Itatiaia Limitada, 1992.
693
Vale notar que foi a primeira grande epidemia que, curiosamente, dizimava majoritariamente os
brasileiros de origem europeia e os estrangeiros. Cf. PEREIRA REGO, Esboço histórico das epidemias,
1872.
233
Segundo Edler, a Junta esvaziou o poder da Academia de Medicina694 e
submeteu as atividades oficiais de saúde pública à pauta política até 1880, quando
surgiram modificações no ensino médico e em leis sanitárias. Nesse contexto, a
medicina brasileira foi eficiente em diferentes aspectos: contribuições de conhecimentos
sobre o corpo humano (diagnóstico, terapêutica) e o “corpo urbano” (identificação de
elementos insalubres); adequações dos saberes para a realidade tropical do Brasil;
institucionalização da pesquisa clínica e higienista; assimilação de ciência naturais
como botânica e química695. A Junta Central de Higiene Pública surgiu em meio à
demanda por conhecimentos médicos voltados para evitar e amenizar epidemias, como
as de 1850. Em 13 de fevereiro desse ano, a Câmara Municipal recebeu o coletivo de
médicos696 que constituíram a Comissão Central de Higiene para debater sobre a
epidemia de febre amarela. Os resultados foram encaminhados, para serem publicados
no relatório do Ministério do Império, em maio desse ano. Embora a febre amarela
tenha diminuído consideravelmente suas fatalidades com a baixa da temperatura e das
chuvas, em 14 de setembro de 1850 o ministro dos negócios do Império, Visconde de
Mont‟Alegre, lançou o decreto 598, de criação da Junta de Higiene. O próprio
Imperador Dom Pedro II incentivou pessoalmente a Junta, já que, além de adoecer
juntamente com parte de sua família, perdera nessa epidemia seu filho de um ano e
meio, Pedro Afonso697.
Além de instituir a Junta Central de Higiene Pública, o decreto permitiu: Art. 1º,
um crédito de 200 contos de réis para melhorar o estado sanitário da capital; Art. 2º, a
criação de uma comissão de quatro engenheiros para orientar as obras a serem
realizadas; Art. 3º a criação da Junta, incorporando também a Inspeção de Saúde do
Porto do Rio de Janeiro e o Instituto Vaccínico. Enquanto braço médico do governo
imperial a Junta deveria propor todas as medidas convenientes a salubridade pública,
694
A relação entre a Junta e a Academia era complexa e conflituosa. Embora houvessem insinuações de
incompetência para ambos os lados, os presidentes da Junta deveriam ser associados à Academia. De
qualquer maneira, Edler comenta em seu livro que a institucionalização e desenvolvimento do campo
médico no Rio de Janeiro subordinou-se a centralização administrativa do Estado. Cf. EDLER, Ensino e
profissão médica na corte de Pedro II. Santo André: Universidade Federal do ABC, 2014.
695
EDLER, Flávio Coelho. A natureza contra o hábito: a ciência médica no império. Revista Acervo. Rio
de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 153-166, jan-jun, 2009.
696
Todos da Academia Imperial de Medicina, a Comissão Central era composta por: Candido Borges
Monteiro (presidente), Manoel de Valladão Pimentel, José Pereira Rego, José Maria de Noronha Feital,
Antônio Felix Martins, Roberto Jorge Haddock Lobo, José Bento da Rosa, José Francisco Xavier Sigaud,
Luiz Vicente de Simoni.
697
CHALHOUB, Cidade febril, 1996.
234
indicar novas legislações para contemplar conhecimentos higiênicos, e exercer polícia
médica nas embarcações. O primeiro grupo era composto pelos médicos Francisco de
Paula Cândido, Joaquim Candido Soares de Meirelles, Antonio Felix Martins e José
Pereira Rego. Paula Cândido manteve-se na presidência do início até 1863, quando
Pereira Rego a assume até 1881698.
Segundo Lourival Ribeiro, Pereira Rego, o Barão de Lavradio, foi uma figura
enérgica e intensa em seus debates na medicina no Rio de Janeiro: “Teve grandes e
frequentes dissabores e desencantos. Teve desafetos. Recebeu aplausos e elogios
consagradores”699. Formado na primeira geração da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro (1833-1838), Pereira Rego presidiu também a Academia Imperial de Medicina
em dois momentos: 1855-1856, e 1864-1883. Em sessão magna de 1866, da Academia,
explicitou que a higiene pública é o “termômetro do progresso da civilização de um
povo”700. Nesse mesmo ano, o médico apresentou à Câmara Municipal um projeto de
posturas baseadas em conceitos sanitaristas modernos à época. Essa crença na gestão
científica da sociedade implicaria a falta de atribuições, proficiências e/ou formação
acadêmica de grande parte dos políticos imperiais. Com o receio de concentrar muito
poder nas mãos dos doutores dotados do saber técnico-científico médico, o governo
imperial elaborou a Junta Central subordinada ao Ministério dos Negócios do
Império701.
Aos poucos a higiene passou a se constituir como uma ideologia urbana à
caminho da civilização. Enquanto um modelo de aperfeiçoamento material e moral, a
higiene permitiu agir sobre o corpo da cidade – transformações urbanas – e do próprio
corpo humano – costumes sanitários e morais. E no caso da febre amarela de 1850, a
busca pela higiene significou a imagem de uma capital imperial salubre pronta a receber
os imigrantes europeus. Principalmente pelo fato de que esta parcela da população, a
branca, foi a mais afetada. Em contrapartida, os habitantes negros eram considerados
mais resistentes a essa doença, devido à baixa incidência. Coisa que não acontecia com
a tuberculose, que os matavam todos os anos. Enquanto nenhuma estratégia de combate
à tuberculose foi criada na cidade ao longo do século XIX, as epidemias de febre
amarela foram sempre inquietantes, alarmantes e com médicos e comissões e soluções
698
RIBEIRO, O Barão de Lavradio e a higiene no Rio de Janeiro Imperial, 1992.
699
RIBEIRO, O Barão de Lavradio e a higiene no Rio de Janeiro Imperial, op. cit., p. 93.
700
RIBEIRO, O Barão de Lavradio e a higiene no Rio de Janeiro Imperial, op. cit., p. 117.
701
CHALHOUB, Cidade febril, op. cit.
235
sanitárias. O que se buscava era conceber uma civilização europeia nos trópicos. Sidney
Chalhoub descreve melhor como se deu a estratégia da sociedade urbana de
“embranquecer” a população a partir de políticas sanitárias racistas. Segundo ele:
702
CHALHOUB, Cidade febril, op. cit., p. 95.
703
PEREIRA REGO, Esboço histórico das epidemias, op. Cit.
704
CRULS, O clima no Rio de Janeiro, 1892.
236
buscavam consensualmente as ideias infeccionistas, principalmente a eliminação das
emanações miasmáticas. Dessa maneira, tais ideias foram a base ideológica para as
transformações ambientais propostas nos planos urbanísticos de 1875 e início da
República705. Paralelo a isso, uma nova geração de periódicos médicos e modificações
no programa de pesquisa e ensino médicos reforçaram a classe médica em sua
legitimação fora da centralização imperial da Junta706.
O interesse pelo ambiente urbano, em especial aos elementos biofísicos (vento,
chuva, trovões, calor), cada vez mais foi de interesse médico. Na tese apresentada à
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1875707, o médico Luiz de Oliveira Bueno
remete aos ensinamentos dos professores desta instituição. O tema, sobre a influência da
topografia e climatologia na salubridade urbana, foi associado aos conhecimentos
hipocráticos sobre o ambiente – valendo-se, inclusive, de uma menção ao livro do
antigo médico grego, Das águas, do ar e das localidades. Bueno relacionou o aumento
da insalubridade com a diminuição das trovoadas e tempestades, decorrente do
desmatamento das montanhas cariocas. Para ele, “de ano em ano foram desaparecendo
as trovoadas e as chuvas torrenciais, e com elas também foram se extinguindo os seus
benéficos resultados”708.
O médico também conjecturou sobre os ventos que incidiam na cidade. Em
particular os ventos noturnos do nordeste ou noroeste em direção ao velho centro.
Segundo ele, de meia noite até o início da manhã “depois de haver percorrido os
inóspitos campos pantanosos que daqueles lados nos ficam, [o vento] atira-se sobre a
cidade, rebojando, segundo alguns, na elipse formada pelos morros de Santa Tereza ao
Castelo”709. Neste mesmo ano, outra tese710 com a mesma temática foi apresentada à
mesma faculdade. Nela, o médico Francisco Lobato mencionou sobre as brisas
705
CHALHOUB, Cidade febril, 1996.
706
EDLER, A natureza contra o hábito, op. cit.; EDLER, Ensino e profissão médica na corte de Pedro II,
op. cit.; FERREIRA, João Vicente Torres Homem, op. cit.
707
BUENO, Luiz de Oliveira. Da topographia e climatologia da cidade do Rio de Janeiro e sua
influência sobre a salubridade pública. Qual a influencia que o arrazamento das montanhas do Castello e
Santo Antonio exercerá sobre as condições hygienicas da mesma cidade. These apresentada à Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia Cinco de Março, 1875.
708
BUENO, Da topografia e climatologia da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 51.
709
BUENO, Da topografia e climatologia da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 52.
710
LOBATO, Francisco Procópio. Da topographia e climatologia da cidade do Rio de Janeiro e de sua
influencia sobre a salubridade pública. Qual a influencia que o arrazamento das montanhas do Castello e
Santo Antonio exercerá sobre as condições hygienicas da mesma cidade. These apresentada à Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typ. De Brown & Evaristo, 1875.
237
terrestres e virações marítimas que aprendeu nas aulas de anemologia – a ciência dos
ventos. Os mesmos ventos apontados por Bueno foram alvo de análise de Lobato. Para
este último, estes ventos “são em geral mais quentes e impregnados de emanações
mefíticas, quer vegetais, quer animais, acarretadas dos inúmeros paus e outros focos de
decomposição miasmática (...) por onde elas trajetam antes de chegar à cidade”711. O
intuito das teses deste ano foi analisar as influencias que o arrasamento dos morros do
Castelo e Santo Antonio teria na salubridade pública. Para Lobato, essa “trincheira
insuperável” direcionava e espalhava esses “ventos alterados” pelo centro urbano,
“trazendo sobre ela com seu bafo pestífero o infeccionamento inevitável”712.
As teses e outras publicações que orbitaram a Faculdade de Medicina deram
mais voz ao fortalecimento de uma elite médica, que buscava seu reconhecimento. Ao
criticar a instalação de esgotos da década de 1860713, em sua tese, Bueno aproveitou
para responsabilizar a Junta Central714. Muito possivelmente o coletivo médico da
Academia e da Faculdade estava incomodado com a centralização das atividades do
governo imperial na figura da Junta. Bueno foi enfático:
711
LOBATO, Da topografia e climatologia da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 86.
712
LOBATO, Da topografia e climatologia da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 86.
713
A continuidade da instalação do sistema de esgotos da capital imperial, iniciada no capítulo 2.3, será
tema da seção seguinte, 5.2.
714
BUENO, Da topografia e climatologia da cidade do Rio de Janeiro, op. cit..
715
BUENO, Da topografia e climatologia da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 20.
238
salubridade dos prédios. O problema das valas já havia sido noticiado para a Junta
anteriormente, em diversas reclamações realizadas pelos moradores716.
Outras vezes, as críticas circulavam nos jornais convencionais, porém dentro de
debates médicos específicos. Em 1876, José Martins da Cruz Jobim, ex-diretor da
Faculdade de Medicina, reprovou as deliberações de saúde pública elaboradas pelo
presidente da Junta de Higiene, o Barão de Lavradio. O ex-diretor julgava inconsistentes
os investimentos públicos em limpeza urbana e no aterro de pântanos. Incomodado com
o assunto, e imbuído das teorias contagionistas, Jobim questionou sobre tal
extravagância em afirmar que “o contágio vem direto das lamas e imundícies para de lá
reverberar vigoroso e entrar no corpo humano e matá-los”717. Tal como ocorrera em
1850, a preocupação de Jobim voltou em mais um ano epidêmico com muitas mortes de
febre amarela (1.292 ou 12% da mortalidade)718.
Essa mesma epidemia levou Pereira Rego a criar a Comissão Geral de
Salubridade, por vezes chamada de Comissão Sanitária, em fevereiro de 1875. Presidida
por ele, a Comissão também foi composta por Adolpho Bezerra de Menezes, e Jeronimo
José de Mesquita, o Barão de Mesquita. Com preocupação inicial com as valas e os rios
que precisavam ser limpos das imundícies geradoras de miasmas, a Comissão com o
tempo atribuiu-se de organizar as bases para outros serviços ecossistêmicos urbanos719.
Tema que será abordado na seção seguinte (5.2).
Além dos serviços ecossistêmicos que precisavam ser implantados ou revistos
(sistema de águas e esgotos, limpeza de rios e ruas, e outros), a mobilização dos saberes
médicos pós-epidemias dos anos 1870 chegou aos interesses da outra face sanitarista: os
engenheiros. As teorias sanitárias foram incorporadas pelos engenheiros da Comissão
de Melhoramentos da Cidade720, que aconselharam um remodelamento urbano tendo em
vista a circulação de elementos nocivos à saúde: alargamento e retificação de ruas,
716
CHALHOUB, Cidade febril, 1996.
717
JOBIM, José Martins da Cruz. Apud. MEDEIROS, Claudio Vinicius Felix. A cidade e os miasmas:
notas para uma genealogia da Medicina Social no Rio de Janeiro (1829-1906). História Revista. Goiânia,
n. 2, p. 4-19, mai-ago, 2015.
718
PEREIRA REGO, José. Junta Central de Hygiene Pública – Relatório do presidente apresentado em
1876. In: FIGUEIREDO, José Bento da Cunha. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do ano
de 1876. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877.
719
LIVRO de registros dos trabalhos executados pela Comissão Geral de Salubridade nomeada por João
Alfredo Correia de Oliveira, ministro do Império, para o combate à febre amarela. Rio de Janeiro,
18/02/1875 – 22/01/1876. – BN Manuscritos 14,04,001
720
A comissão e o plano de melhoramentos para a cidade do Rio de Janeiro foram tema do capítulo 4.1.
239
abertura de novas avenidas arborizadas e praças, criação de calçadas e passeios,
ventilação nas casas e escoamento das águas pluviais, dessecamento de terrenos e aterro
dos pântanos, e nova ordenação urbana através de regras para novas construções e
zoneamento721.
Na cidade do Rio de Janeiro, e em tantas outras, os rios foram os primeiros
motores de circulação do metabolismo social urbano. Por eles, ou por estruturas hídricas
anexas (aquedutos, encanamentos e afins), funcionaram os sistemas hídricos que
abasteceram casas, plantios e indústrias no território urbano. Foi também pelos rios, ou
por suas estruturas ecossistêmicas anexas (manguezais, brejos e alagados), que o que se
metabolizou na cidade (esgoto doméstico e industrial) foi descartado para fora do
sistema citadino. O solvente universal fluindo pelo tecido urbano propiciou o suporte
para a vida biológica dos habitantes, assim como foi um dos pilares para a
complexidade de atividades sociais na cidade: lavagem de roupas, limpeza de calçadas,
preparo de alimentos e higiene pessoal, esfriamento de motores das fábricas, irrigação
de hortas e pomares, etc. Ou seja, os rios urbanos cariocas constituíram o seio do
metabolismo urbano. Na próxima seção, veremos como a circulação das águas
sintonizaram-se de maneira interligada às ideias médicas e ao ambiente fluvial,
construindo uma complexa socionatureza urbana.
721
MEDEIROS, A cidade e os miasmas, op. cit.; ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos
circulares, 2006.
722
MELOSI, Martin. The Sanitary City: environmental services in urban américa from colonial times to
the presente. Abridged edition. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2008.
723
MELOSI, The Sanitary City, op. cit., p. 1.
240
características das novas tecnologias e estratégias de saneamento urbano nasceram no
que Melosi denominou de “era dos miasmas”724.
Os idealizadores apropriaram-se de interpretações miasmáticas para
desenvolverem os tipos de serviços que julgavam mais importantes para a saúde
pública. Portanto, serviços municipais que eram precários tornaram-se essenciais para o
poder público e os moradores, como, por exemplo: limpeza e dragagem de rios, limpeza
das ruas e coleta de lixo, e os serviços de esgotamento. Como já falamos, nesse cenário
os rios foram o ponto central dessas atividades.
Nesta seção abordaremos a circulação das águas no contexto urbano, onde rios e
valas eram transformados em prol de uma eficiência do fluxo hídrico e áreas alagadas
eram aterradas e dessecadas para a expansão do território urbano. Na próxima seção,
5.3, veremos a circulação de elementos indesejados pela cidade idealizada, como o
descarte do metabolismo humano pelo sistema de esgoto doméstico (5.3.1); a expulsão
de espécies indesejadas criadas e cultivadas nos rios urbanos e adjacências (5.3.2); e a
busca pelo fim de todo um ecossistema pantanoso para conectar cidade e subúrbio
através da Cidade Nova (5.3.3).
Ancorada pelos idealizadores da socionatureza urbana, o controle da circulação
dos elementos da cidade tornou-se a principal missão sanitária da municipalidade – um
controle das pessoas, dos ares, das águas725. A eficiência dos fluxos fluviais para
expulsar as imundices urbanas exigia boa quantidade de água, declividade satisfatória e
ausência de obstáculos para sua circulação. Os adeptos da nova higiene pública
professavam o aceleramento dos ritmos dos rios para a evacuação imediata do que
incomodavam os moradores. Nesse sentido, limpar significava mais do que lavar, mas
também drenar, expulsar as sujeiras. Como escreveu Alain Corbin: “Toda água
estagnada implica uma ameaça. É o movimento que purifica”726.
A cidade e sua urbanização serão interpretadas aqui como processos embebidos
em relações de poder, onde atores sociais competem entre si para se apropriarem da
socionatureza urbana. E, assim, transformá-la materialmente e modicar seus fluxos
724
MELOSI, The sanitary city, op. cit.
725
MASTROMAURO, Alguns aspectos da saúde pública e do urbanismo higienista em São Paulo, op.
cit.
726
CORBIN, El perfume o el miasma, op. Cit., p. 41.
241
metabólicos e circulatórios727. A circulação das águas é a chave interpretativa, e através
dela veremos como moradores, engenheiros e médicos, e o poder público se
relacionavam entre si e com o ambiente hídrico urbano. Rios, valas, galerias pluviais,
foram criados, modificados ou exterminados de modo que evitassem águas estagnadas e
as emanações dos terríveis miasmas. Pequenas e grandes transformações para uso
particular ou público muitas vezes resultaram em adversidades locais, como grandes
inundações ou pequenos empoçamentos.
Os rios urbanos cariocas tiveram seus leitos comprometidos inicialmente pela
diminuição do fluxo das águas por causa das captações para o abastecimento urbano de
água. A diminuição das forças permitiu o assentamento do sedimento que originalmente
seguiria para partes posteriores. Com o crescimento urbano e novas relações
socioecológicas fluviais, os rios foram comprometidos por uma imensa quantidade de
obstáculos em seu leito. Nos pedidos à Câmara Municipal, os argumentos sanitários
eram bastante comuns, e mostram como circulava com facilidade o discurso dos
idealizadores da socionatureza urbana.
Em um destes pedidos, o fiscal da freguesia do Engenho Velho dirigiu à Câmara
um ofício em 1869 que reclamava da falta de circulação do rio Trapicheiros na altura da
rua do Matoso. O bloqueio do acesso ao mar estagnara as águas, deixando o rio em um
intenso estado de putrefação. O fiscal pedia urgência “antes que se desenvolva mais
alguma epidemia”. Meses depois, com a autorização da Câmara para a limpeza dos rios,
o referido fiscal apontava a necessidade de um orçamento por parte dos engenheiros
municipais728.
Observando os mapas da cidade do Rio de Janeiro do Segundo Reinado vemos o
desenho de uma complexa malha fluvial na dita freguesia. Os encontros e desencontros
entre as chácaras suburbanas e os rios Joana, Maracanã, Trapicheiros e Comprido
formaram estruturas quadradas ou triangulares que muito provavelmente dificultavam a
circulação das águas de tais rios (ver Figuras 17, 18 e 19). Essa região já era uma
planície de baixa altitude quando os jesuítas cultivavam cana-de-açúcar séculos antes.
Porém, parece que tais modificações tinham ocorrido quando as chácaras de meados do
século XIX retalharam os antigos canaviais. A proximidade com o mar, a baixa
727
SWYNGEDOUW, Erik. Circulations and metabolisms: (Hybrid) natures and (cyborg) cities. Science
as Culture, v. 15, n. 2, p. 105-121, 2006.
728
AGCRJ CI RCRJ 49.4.76 – Manoel Caetano Pinto, Maracanã, Trapicheiros e rios que passam na rua
São Christovam (1845), pela freguesia do Engenho Velho (1869 a 1886) e ruas Santo Henrique e Barão
de Mesquita – 1832-1899 38 ff.
242
declividade e tal malha tornaram mais difícil as relações urbanas com tais rios,
conforme o relato acima e tantos outros. Reparem como os três mapas abaixo ilustram
uma região ao sul do morro da Babilônia, no Engenho Velho. Mesmo que cada
desenhista tenha seu traço, que cada cartógrafo tenha seus objetivos, o quadrilátero de
valas foi representado. Ainda que sem uma documentação extensiva sobre tais
intervenções, vemos que os rios já haviam sido transformados ao longo do século XIX.
Figura 17: Trecho de PASSOS, F. P.; JARDIM, J. R. M.; SILVA, M. R. Planta Geral do Projeto de
Melhoramentos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1876 (Fonte: Biblioteca Nacional).
Figura 18: Trecho de MASCHEK, E. Planta da Cidade do Rio de Janeiro e de uma parte dos subúrbios Rio de
Janeiro, s/d (Fonte: Biblioteca Nacional).
243
Figura 19: Trecho de SPELTZ, A. Nova Planta indicadora da cidade do Rio de Janeiro e subúrbios, incluindo
todas as linhas de ferro-carris. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1877 (Fonte: Biblioteca
Nacional).
729
PASSOS, Francisco Pereira; MORAES JARDIM, Jeronymo Rodrigues de; SILVA, Marcelino Ramos
da. Segundo Relatório da Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro. In: CUNHA E
FIGUEIREDO, José Bento da. Relatório do Ministério dos Negócios do Império para o ano de 1877. Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, 1877.
730
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, 2006.
244
mefíticas” conforme os raios solares incidiam sobre ele. O problema potencializava-se
com a deposição de lixo pela população local. Pereira Rego demandava que os “homens
da ciência” e a imprensa diária reclamassem também sobre a necessidade de aterrar
também tais áreas731.
Nos subúrbios do lado sul do maciço da Tijuca, os rios também estavam com
obstáculos à sua circulação. No Diário de Notícias de 19 de novembro de 1870 estava
escrito que o rio Berquó, em Botafogo, estava “transformado em uma verdadeira e
imunda vala, graças ao lixo e matérias fecais, que nele lançam alguns moradores em
prejuízo de outros”732. A comoção social exigiu maiores esforços, pois dois dias depois
o chefe de polícia, Francisco de Faria Lemos, escreveu ao Ministro da Justiça, Barão de
Três Barras, requisitando providências733. Após os caminhos burocráticos de costume, o
fiscal da freguesia de São João Batista da Lagoa (onde se circunscrevia o bairro de
Botafogo), fizera uma visita aos pontos críticos do rio Berquó. O fiscal informou que
uma série de obstruções ocorria nos pontilhões do leito do dito rio perto do Hospício de
Pedro II, e na ponte da Praia de Botafogo. Para ele, a Diretoria das Obras Municipais
estariam a cargo da limpeza734.
A diretoria, cumprindo as demandas da Câmara, reforçou a descrição do estado
deplorável do rio obstruído com lixo e matérias fecais, e afirmou que tal situação não
poderia continuar, “para que se evite o desenvolvimento de alguma epidemia”. Porém,
assumiu somente a responsabilidade de limpar os bueiros das ruas, já que seria de
“competência dos moradores cuidar da limpeza na parte compreendida pelos seus
terrenos”. Como solução para o problema, apontou que o fiscal deveria, sem perda de
tempo, intimar os moradores para limparem a seção do rio Berquó que passe em seu
terreno, e multar os que tenham “infringido as posturas municipais de lançar no rio lixo,
matérias fecais ou outra qualquer substância que corrompa o ar atmosférico e dificulte a
correnteza das águas”735. Em março, o Diário de Notícias mencionou que as obras
731
Ofício do Presidente da Junta Central de Higiene Pública, Barão do Lavradio, a Câmara Municipal. 10
de março de 1875. AGCRJ 49.4.80
732
AOS PODERES competentes [s/ autor]. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, ano I, n. 93, p. 1, 19 de
novembro de 1870.
733
Ofício 799 da Secretaria da Polícia da Corte ao Ministro da Justiça de 21 de novembro de 1870.
AGCRJ 49.4.84.
734
Ofício do fiscal da freguesia da Lagoa, João Baptista da Cunha Pegado, a Câmara Municipal em 14 de
dezembro de 1870. AGCRJ 49.4.84.
735
Ofício da Diretoria das Obras Municipais da Corte a Câmara Municipal de 21 de dezembro de 1870.
AGCRJ 49.4.84.
245
foram realizadas através de outro fato “noticioso”, quando as pedras retiradas para a
limpeza causou um tombo que levou a pessoa “ficar de cataplasmas”736.
A preocupação com o estado sanitário e a situação dos rios urbanos intensificava
em épocas de grande mortalidade decorrente de epidemias como a de febre amarela no
verão nos anos de 1875 e 1876. Para tal, Pereira Rego, como presidente da Junta de
Higiene, criou a Comissão Geral de Salubridade em fevereiro de 1875 737. Composta
pelo Ministro dos Negócios do Império, o João Alfredo Correa de Oliveira, do Barão de
Mesquita, e do Adolpho Bezerra de Menezes, a comissão forneceu as bases para quatro
procedimentos essenciais à salubridade urbana: a) limpeza e conservação de rios e
valas; b) aterro dos pântanos; c) contratar os serviços de limpeza urbana; d) limpeza e
conservação do Canal do Mangue.
Para o serviço de conservação e limpeza de rios, a Comissão Geral de
Salubridade elencou trechos de seis rios e duas valas que necessitavam de desobstruções
urgentes: o rio Catumby (897m), o Trapicheiros (3.740m), o Joana (1.220m), o Carioca
(2.894m), o Berquó (2.658m), o Comprido (3.880m) e as valas na rua da Passagem e na
rua São Francisco Xavier, num total de 15.469 metros738. O interesse pela limpeza de
alguns desses rios levou a Câmara Municipal a levantar 5 propostas de orçamento para a
limpeza e desobstrução em 1873739, porém esses rios somente foram desobstruídos e
limpos em abril de 1875 por 31 contos de réis, por esforço do Ministério do Império. Na
limpeza extraíram-se areia, terra, lodo, pequenos arbustos, bananeiras e outras plantas,
além de “muito lixo, colchões e até uma cama de ferro”. Foi feito também alargamento
dos rios Comprido, Catumby, Berquó e Trapicheiros740. A Comissão de Salubridade,
também chamada de Sanitária da Cidade, apelava em diferentes momentos para a
postura de 11 de março de 1856 que versava sobre a limpeza de rios e valas por parte
736
DIÁRIO de Notícias [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro, ano 2, n. 184, p. 1, 11 de março de 1871.
737
Aviso nº 159 da 1ª Diretoria do Ministério dos Negócios do Império, do Barão do Lavradio para João
Alfredo Correa de Oliveira, de 18 de fevereiro de 1875. In: LIVRO de registros dos trabalhos executados
pela Comissão Geral de Salubridade nomeada por João Alfredo Correia de Oliveira, ministro do Império,
para o combate à febre amarela. Rio de Janeiro, 18/02/1875 – 22/01/1876. – BN Manuscritos 14,04,001.
738
Ofício de 27 de abril de 1875, do Presidente da Comissão Geral de Salubridade, Barão de Lavradio,
para o Ministro do Império, João Alfredo Correa de Oliveira. In: LIVRO de registros dos trabalhos
executados pela Comissão Geral de Salubridade nomeada por João Alfredo Correia de Oliveira, ministro
do Império, para o combate à febre amarela. Rio de Janeiro, 18/02/1875 – 22/01/1876. – BN Manuscritos
14,04,001.
739
Ofício do Vereador Thomas de Mello a Câmara Municipal, de 17 de maio de 1873. AGCRJ 49.4.75.
740
Ofício de 24 de maio de 1875, da Comissão Geral de Salubridade ao ministro José Alfredo Correa de
Oliveira. In: LIVRO de registros dos trabalhos executados pela Comissão Geral de Salubridade, op. cit.
246
dos moradores das casas e chácaras adjacentes. E para minimizar os gastos e diminuir as
atribuições do Ministério do Império para os serviços urbanos, Pereira Rego assinou um
contrato de 5 anos com o empreiteiro Julio Richard em 09 de agosto de 1875, com a
subvenção anual de 18 contos de réis para a conservação e limpeza dos mesmos rios e
valas supracitados741. O contratante também seria responsável pela remoção de animais
mortos e sua condução aos depósitos das praias742 por 1,5 contos de réis mensais.
Não devia ser fácil seguir o contrato de limpeza de rios, pois a cultura urbana
carioca comumente associava os corpos d‟água para usos diversos, como: áreas de
descarte, expansão do terreno ou da própria casa. Em 1875 havia no rio Carioca uma
fábrica de gelo no lugar chamado Areal. Uma vala de um metro de largura, que captava
as águas do rio para o funcionamento da fábrica, havia sido fechada três vezes a mando
do mesmo empreiteiro Julio Richard. O diretor da fábrica reabria a vala “atirando a
lama, terra e pedras ao leito do rio e inutilizando assim o serviço da limpeza”743. O
episódio somava-se a outra questão, de ordem topográfica. Mais abaixo do Areal – por
sinal, uma toponímia curiosa resultante de possíveis assoreamentos – os moradores
expandiram seus terrenos aterrando parte da margem e cercando com árvores de
maneira que restringia o fluxo das águas. Mais abaixo, os fundos de dois prédios na rua
das Laranjeiras instalaram duas estacas para suporte de um pequeno quarto,
surpreendentemente em cima do próprio rio. Segundo Pereira Rego, que visitou a área e
foi notificado institucionalmente por ofícios, “o lixo que é arrastado pela correnteza das
águas aí se acumulam, (...) e nas chuvas torrenciais as faz refluir e transbordar pela
estrada inundando-a assim como os terrenos vizinhos”744. No ano anterior, após dois
dias de chuva consecutivos – 8 e 9 de abril de 1874 –, a inundação das cercanias do rio
741
Contrato feito pela Comissão Sanitária da Cidade, segundo a autorização dada pelo Ministério do
Império, em aviso 3 do corrente, com Julio Richard para a conservação e limpeza de alguns rios e valas.
Assinado pela Junta de Higiene no dia 09 de Agosto de 1875, depois com o adendum em 11 de agosto de
1875. Aviso de 3 de janeiro de 1877. In: CUNHA E FIGUEIREDO, José Bento da. Relatório do
Ministério dos Negócios do Império para o ano de 1877. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877.
742
O serviço de limpeza das praias possuía depósitos de lixo e dejetos para serem conduzidos a Ilha de
Sapucaia, na Enseada de Inhaúma.Cf. ABREU, Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro, 1992. Mais a
frente veremos um pouco mais sobre a coleta de lixo urbano.
743
Ofício de José Pereira Rego, Presidente da Junta Central de Higiene Pública a Câmara Municipal, de
16 de março de 1875. AGCRJ 49.4.75.
744
Ofício de José Pereira Rego, Presidente da Junta Central de Higiene a Câmara Municipal, de 20 de
março de 1875. AGCRJ 49.4.75.
247
Carioca745 foi descrita em ofício da Diretoria das Obras Públicas, do Ministério da
Agricultura:
Para um bom funcionamento das atividades de limpeza dos rios, foi feita a
canalização de alguns deles. No final dos anos 1870, 8.931 metros dos rios Carioca,
Berquó e Banana Podre haviam sido canalizados. Os dois primeiros por administração
do Ministério da Agricultura, onde os serviços ecossistêmicos urbanos se concentravam.
E a canalização do rio Banana Podre, feita pela companhia Rio de Janeiro City
Improvements, por contrato com o Ministério do Império747. Segundo a cláusula X do
contrato de 12 de junho de 1877, a City748 conservaria as águas do rio Banana Podre
“gratuitamente enquanto utilizasse as águas do rio” para os tanques de lavagem das
galerias (flushing tank)749.
Outros rios e valas, não incluídos nos contratos com Julio Richard e a City
Improvements, foram assumidos pela Inspetoria Geral das Obras Públicas, do
Ministério da Agricultura, a partir de 1877. A partir do parágrafo único do artigo
segundo da Lei de 2.792 de 20 de outubro de 1877, uma lei de orçamento do Ministério
do Império, os serviços de esgotamento, dessecamento e aterro de pântanos, reparo e
conservação das valas e rios, passaram ao MACOP, assim como o de abertura de ruas e
arrasamento de morros. Dessa maneira, transferiram os serviços e suas concessões para
a responsabilidade da pasta de Agricultura. Assim, o quadro de funcionários da IGOP, a
maior concentração de engenheiros no quadro de funcionários imperiais, tornou-se
responsáveis pela totalidade dos serviços sanitários urbanos. A crescente elite
745
Na documentação oficial do Estado e nos jornais, o rio Carioca era chamado também de rio das
Laranjeiras, rio do Catete e até mesmo das Caboclas.
746
Ofício da Diretoria das Obras Públicas de 27 de abril de 1874. AGCRJ 45.1.54
747
ALMEIDA, Thomaz José Coelho de. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e das Obras
Públicas para o ano de 1876. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1877.
748
O funcionamento da City e o serviço de esgoto serão abordados em 5.3.1.
749
SARAIVA, José Antonio. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e das Obras Públicas
para o ano de 1881. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, p. 89, 1882.
248
tecnocrática tornava-se, a largos passos, o cerne da transformação sanitária urbana.
Imbuídos na ideia médica de que para a saúde pública água não poderia parar, os
engenheiros estabeleciam um papel dominante nas políticas urbanas no final do XIX750.
O serviço de limpeza de valas manteve sua regularidade e bom funcionamento
até o fim do Império, com constante aumento nos gastos decorrente de mais atividades,
como a inclusão do rio Maracanã, após o término do contrato. Este rio, em meados de
1877, nas proximidades do Matadouro Público demandava urgente desobstrução e
limpeza. A diretoria de obras do Ministério do Império acusava que muitas partes do rio
“nunca foram limpas em tempo nenhum, conforme atesta a existência de árvores de
muitos anos, que tem sido tirada a machado do próprio leito dos rios”. Após a retirada
de “cerca de 400 tijolos e grande número de ossos de boi” o rio manteve-se limpo por
algumas semanas751. Novamente as carcaças dos animais consumidos pela cidade foram
descartadas no leito do rio após serem desossadas. Essas irregularidades e a presença da
decomposição de animais foram os principais argumentos para a transferência do
matadouro para áreas mais afastadas do centro urbano no início da década de 1880.
Conforme a Inspetoria de Obras Públicas, do Ministério da Agricultura,
angariava mais recursos, as atividades ficaram mais intensas e efetivas, em particular no
início da década de 1880. Buscando a prevenção de futuros problemas, em 1881, um
total de 464.677m² de trechos de rios e valas foram desobstruídos de lodo e lama752.
Porém, as fortes chuvas cariocas não contribuíram com tais atividades de limpeza. No
início do ano de 1882, os bairros de São Cristóvão, Andarahy Grande e Engenho Velho
foram inundados, de modo que foram feitas modificações no antigo leito do rio Joana e
na desobstrução dos rios que desaguavam na praia Formosa (Maracanã, Trapicheiro e
Rio Comprido)753. Novamente em abril de 1883, as obras de desobstrução dos rios
Joana, Maracanã e Carioca foram mais necessárias à população carioca devido à grande
750
MELOSI, The Sanitary city, op. cit.
751
Ofício da Diretoria de Obras do Ministério do Império à Câmara Municipal, de 10 de agosto de 1877.
AGCRJ 49.4.76.
752
Foram limpos 110.112m² do rio Joana, 88.960m² do rio Maracanã, 49.220m² do rio Trapicheiro,
73.355m² do rio Comprido, 106.314m² de rios de Botafogo e Laranjeiras, e 36.716m² de valas diversas.
Cf. ARAÚJO, Manoel Alves de. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e das Obras Públicas
para o ano de 1881. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1882.
753
D‟AVILA, Henrique. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e das Obras Públicas para o
ano de 1882. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1883.
249
quantidade de chuvas754. O episódio ficou registrado no humor ácido do ítalo-brasileiro
Angelo Agostini755, na Revista Illustrada. Na capa da revista, Agostini desenhou uma
arca manejada por seus personagens e escreveu na legenda: “Por causa das dúvidas ou
antes por causa das chuvas que vão tomando as proporções de dilúvios, mandaremos
construir uma arca”756. Na página 7, o cartunista satirizou um pouco do amargo
cotidiano carioca debaixo das fortes chuvas de abril de 1883 (Figura 20). Devido aos
“trabalhos extraordinários ocasionados pela excepcional enchente de abril” a despesa
com a limpeza de rios e valas deste ano alcançou o recorde de 64 contos de réis757. A
verba para tal serviço oscilou de 18 a 20 contos de réis por ano ao longo do final do
Império.
Figura 20: Charge sobre a inundação de abril de 1883. AGOSTINI, A. Revista Illustrada. Rio de Janeiro. Ano
8, nº 350, p 7, 1883. Fonte: Biblioteca Nacional.
754
Esse mês teve um somatório de chuvas de 270mm, enquanto que a média de outros meses de abril de
outros anos foi de 104,5mm. Cf. CRULS, O clima no Rio de Janeiro, op. cit..
755
Agostini (1843-1910) foi um cartunista e escritor que fundou a Revista Illustrada (1876-1898), dentre
outras obras. Fugiu do Brasil em outubro de 1888, devido a má repercussão do envolvimento amoroso
com sua aluna duas décadas mais nova do que ele.
756
REVISTA Illustrada [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Ano 8, edição 340, p. 1, 1883.
757
PENNA, Affonso Augusto Moreira. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e das Obras
Públicas para o ano de 1883. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1884.
250
Outro aspecto apontado pela Comissão Sanitária em 1875 foi sobre o
aterramento e dessecamento de áreas alagadas. Comumente encontrados na topografia
carioca de proximidade de baixadas e montanhas íngremes, os pântanos eram
associados diretamente à falta de salubridade desde tempos coloniais. Com o
amadurecimento da medicina urbana e da teoria miasmática, os idealizadores da
socionatureza urbana conseguiram gerar um discurso científico eficiente para a remoção
sistemática dos alagados. Pereira Rego, em relatório da Junta de Higiene de 1878,
indicava que o aterro e escoamento dos pântanos eram medidas indispensáveis ao
melhoramento do estado sanitário da cidade758.
Anos antes, a Comissão Sanitária criou uma lista dos pântanos que urgentemente
precisavam ser aterrados. Em Botafogo, assinalou que “todos terrenos das grandes
chácaras aproveitadas para o cultivo de capim” se alagavam e formavam charcos que
prejudicavam a saúde pública. Dos pântanos da freguesia do Espírito Santo, Pereira
Rego indicou um perímetro de ruas nas proximidades do Canal do Mangue. E no Rio
Comprido, “um pântano geral tão pernicioso” formava-se nos plantios de agrião que os
moradores locais represavam águas do rio Catumby e Comprido759. Com menor senso
de urgência, outros pântanos foram indicados. Como solução, a Comissão Sanitária
propunha a extinção das valas usadas para agricultura e proibição de novas, um serviço
de esgoto de águas pluviais nos subúrbios de Botafogo, Engenho Velho e São
Cristóvão, e o aterramento e dessecamento dessas áreas apontadas760.
Em muitos momentos, o aterramento de áreas alagadas seguiu o modus operandi
de aterrar com lixo. Nos pântanos circunvizinhos ao Canal do Mangue, a prática
remonta a tempos coloniais, e persistiu ao longo do Império. Um exemplo foi o pedido
do proprietário Antonio Pereira Ribeiro para aterrar seu terreno pantanoso na rua do
Sabão do Mangue, próximo ao depósito da Cia. de Bondes da Tijuca. Em dezembro de
1867, ele requisitou licença para aterrar com o lixo das casas da mesma maneira que
outro requisitante havia solicitado: cobrindo com uma camada de barro, e removendo
758
PEREIRA REGO, José. Relatório da Junta Central de Higiene de 05 de junho de 1878. In:
CARVALHO, Carlos Leoncio de. Relatório do Ministério dos Negócios do Império para o ano de 1877.
Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878.
759
As represas e lavouras urbanas serão tema deste capítulo na seção 5.3.2
760
Ofício da Comissão Sanitária para o Ministério do Império de 24 de Maio de 1875. LIVRO de
registros dos trabalhos executados pela Comissão Geral de Salubridade nomeada por João Alfredo
Correia de Oliveira, ministro do Império, para o combate à febre amarela. Rio de Janeiro, 18/02/1875 –
22/01/1876. – BN Manuscritos 14,04,001.
251
animais mortos para o matadouro761. Em outro caso, o vereador Antonio Ferreira Viana
denunciou irregularidades nos contratos de limpeza urbana em uma série de artigos no
Diário do Rio de Janeiro no primeiro semestre de 1872. O lixo no aterro não fora uma
questão para o vereador, mas sim os meandros dos favorecimentos particulares nas
políticas públicas. Isto se percebe pela crítica ao único contrato que se referia a aterros
na Diretoria de Obras Municipais da Corte, assinado em 14 de abril de 1871 por Mello
Junior & C. – Ferreira Viana questionava os gastos públicos excessivos que
beneficiavam contratos muitas vezes escusos. Neste caso, o legislador indagava sobre a
quantia exagerada de 26 contos para a empresa utilizar o lixo da cidade no aterro em
grande parte do matadouro. No entanto, Ferreira Vianna não criticou a própria prática
de utilizar lixo nos aterror urbanos762.
A topografia carioca somava complicações ao cenário de alagamentos. Suas
planícies na altura do nível do mar contíguas ao relevo íngreme eram ótimas para a
concentração das águas dos rios das chuvas. Aspectos que não eram novidades para os
moradores dessas baixadas que sofriam com constantes alagamentos. O fator dos solos
com proximidade das águas subterrâneas potencializava ainda mais as enchentes. Na
primeira metado do século XIX, Debret descreveu em sua estadia pela cidade que era
impossível de abrir fossas sépticas para latrinas e mijadouros, já que a água se
encontrava a 18 polegadas (45cm) de profundidade763. Paula Freitas, décadas depois,
diria que em muitos lugares, como na Cidade Nova, o solo era úmido “em consequência
da pouca profundidade do lençol d‟água e dos pântanos abafados”. Para ele, a umidade
era o principal problema sanitário da cidade, desenrolando-se em todas as enfermidades
possíveis. Esse solo úmido, então, tornava “a atmosfera brumosa e úmida pela
evaporação produzida sob a ação dos raios solares”764.
O Ministério da Agricultura responsabilizou-se pela extinção das águas
estagnadas dos pântanos cariocas. A topografia carioca e o regime de chuvas moldaram
as áreas alagadas milênios antes da ocupação urbana. Os meandros do baixo curso dos
761
VIANA, Antonio Ferreira. O presidente da Câmara ao Município. In: Diario do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, ano 55, n. 119, p. 1, 02 de maio de 1872.
762
Ofício da Diretoria de obras municipais da Corte, 17 de abril de 1872. In: Diário do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, ano 55, número 105, p. 2, 18 de abril de 1872.
763
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 2º vol,
p.169, 1981.
764
PAULA FREITAS, Antonio de. O saneamento da cidade do Rio de Janeiro. In: MACIEL, Francisco
Antunes. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do ano de 1883, Anexo F. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, p. 6, 1884.
252
rios, as lagoas perenes e temporárias, os brejos, as restingas e os mangues, foram
estruturas ecológicas que permitiram uma dinâmica de estagnação das águas, formando
o que chamamos de pântanos ou áreas alagadas. O aterro com o descarte urbano e de
pequenos desmontes dos morros próximos à cidade marcaram os primeiros esforços de
superar as barreiras físicas e extinguir áreas consideradas insalubres desde o início do
século XIX. Porém, somente após o crescimento urbano da década de 1850, e o
fortalecimento do corpo técnico do Estado imperial na década de 1870, que
sistematizou-se as atividades de aterro e dessecamento de pântanos765.
Em outubro de 1878 realizou-se o dessecamento de 14.322m² e o enchimento de
valas pluviais obsoletas a partir da escavação de mais de 4.224.522m³ de terras 766. Os
anseios imperiais voltaram-se para o grande pântano da freguesia do Espírito Santo, nas
proximidades do Canal do Mangue em frente a fábrica de iluminação a gás. A expansão
urbana para os subúrbios de São Cristóvão e Engenho Velho carecia da domesticação da
socionatureza das áreas alagadas da Cidade Nova. A área saturada em água localizava-
se próximo a dois grandes corpos d‟água – a Lagoa da Sentinela e o manguezal de São
Diogo – e tantas outras pequenas elevações – morro do Senado, Paula Mattos e de Santo
Rodrigues. Em março de 1879, foi proposto que o morro do Senado fosse posto abaixo
e assim se aterrasse esse grande pântano e sua continuação em direção à freguesia de
São Cristóvão. O concessionário do contrato, Possidônio de Carvalho Moreira, teria o
direito de vender ou arrendar lotes de terrenos, ou construir prédios nas áreas demolidas
e aterradas, exceto as terras públicas nas proximidades da Casa de Correção767.
A morosidade e a falta de informações marcaram o serviço de aterramento de
pântanos do Ministério da Agricultura. Os esforços de Possidônio foram pontuais, e seu
contrato foi transferido para o Banco Auxiliar em fevereiro de 1887. O novo contrato
restringia as vendas de terras e reconhecia que outro contrato, com o engenheiro Luiz
Raphael Vieira Souto, estava em conflito com o arrasamento do morro do Senado e o
765
GALVÃO, Maria do Carmo Correa. Focos sobre a questão ambiental no Rio de Janeiro. In: ABREU,
Maurício de (org.). Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de
Editoração, 1992.
766
Especulamos anteriormente que 1.000m³ equivaleria a uma casa de 300m². Um milhão de m³ pode ser
considerado como 1.000 destas casas grandes, ou uma pequena cidade! Uma cidade com 1km² equivaleria
a 3 milhões de m³ (1.000m X 1.000m X 3m).
767
Decreto nº 7.181 de 8 de março de 1879, e posteriormente a aprovação do mapa para as obras no
decreto nº 8.315 de 19 de novembro de 1881.
253
aterro em áreas adjacentes ao Canal do Mangue768. O contrato com Vieira Souto previa
o uso do território vizinho ao canal para a construção de edifícios para o alojamento de
mil operários. Esses trabalhadores estavam direcionados para o aterro entre as praias
dos Lázaros e Formosa, em São Cristóvão, e as ilhas dos Melões e das Moças769.
A noção de rentabilidade com terrenos depois de terem suas áreas alagadas
aterradas ou seus morros arrasados era bem disseminada. Em memorial destinado ao
ministro da Agricultura, Manuel Alves de Araújo, o autor anônimo escrevia: “A renda
do Estado aumentará com o dessecamento dos pântanos porque depois de aterrados
poderá o governo edificar prédios ou arrendar esses terrenos”770. O autor explicou
também as vantagens sanitárias em aterrar comparando com a diminuição da
mortalidade em cidades britânicas que haviam acabado de finalizar tais aterros. No final
do documento, encontravam-se as bases para os contratos para o aterramento. Neste
modelo de contrato indicava a necessidade de estudos e a produção de informações
padronizadas e simplificadas sobre o ambiente biofísico: mapas, perfis, sondagens. As
drenagens deveriam ser feitas com o uso de pedras miúdas ou de tubos de barro para a
circulação da água estagnada.
A estagnação da água no solo era visto como uma das principais causas da
insalubridade da cidade do Rio de Janeiro. Antonio de Paula Freitas acusava que os
aterros mal feitos enclausuravam a matéria orgânica de plantas e animais mortos que
permaneciam em decomposição e emitiam os gases nocivos do miasma771. Os péssimos
aterros foram atribuídos aos materiais utilizados como terra, lama e lixo, inclusive com
“matérias, fecais, restos de cozinhas e toda espécie de imundícies” sendo “raras vezes
de cascalho, saibro ou areia”772. Para Paula Freitas a única solução era a drenagem com
uma série de coletores para recolher as águas do solo e encaminhá-las para o mar.
Assim como, estabelecer um sistema de ventilação subterrânea que permitisse queimar
“certos sulfuretos e substâncias orgânicas que o solo é muitas vezes impregnado,
mudando os primeiros em sulfatos, que não exalam cheiro sulfuroso, e os segundos em
768
SILVA, Rodrigo Augusto da. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e das Obras Públicas
para o ano de 1886. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887.
769
Decreto nº 7302 de 24 de Maio de 1879.
770
MEMORIAL. Drainage dos terrenos pantanosos ou saneamento da cidade do Rio de Janeiro e seos
arrabaldes. Manuscritos BN II-34,24,024.
771
PAULA FREITAS, Antonio de. O saneamento da cidade do Rio de Janeiro. In: MACIEL, Francisco
Antunes. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do ano de 1883, Anexo F. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1884.
772
PAULA FREITAS, O saneamento da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 3.
254
corpos oxidados, que pouco a pouco se transformam em produtos minerais”773. Vemos
que o discurso de idealização da socionatureza se embasava fortemente no hermético
linguajar da quase centenária química moderna lavoisieriana de sufixos etos, atos e
osos. Simplificando e padronizando informações sobre o ambiente de maneira clara e
precisa, e também pouco compreendida para os não-iniciados. Segundo Paula Freitas:
Pensando na cidade como um sistema ecológico, vemos até agora que o ciclo da
água, e sua estagnação, contemplavam o serviço de limpeza de rios e valas, e a busca do
dessecamento das áreas alagadas. Segundo os idealizadores, as águas represadas e as
que transitavam, precisavam ser direcionadas para fora do sistema urbano através de
dois sistemas, o de águas pluviais e o de esgoto doméstico. Como já vimos, o regime de
chuvas entre os meses de dezembro e abril e a presença de áreas baixas resultou num
território urbano de baixa eficiência para o escoamento dessas águas. O governo
imperial desenvolveu a partir da década de 1860 uma política de drenagem das águas da
chuva. Nesse momento, o sistema era insuficiente devido ao número de ralos e a
quantidade e calibre dos encanamentos775.
A relação com a sociedade urbana imperial e as chuvas contemplava todo o
espectro que ia da catástrofe ao arrefecimento do calor carioca. As águas pluviais
limpavam a cidade, carregando poeiras, sujeiras, e imundícies diversas. Elas também
refrescavam a atmosfera. Em uma crônica de Machado de Assis, ele começava com a
frase “Deus seja louvado! Choveu. (...) já se pode entrar num bond, numa loja ou numa
casa (...)”776. Quando a chuva era razoável, era vista como instrumento de limpeza
urbana. Porém, quando era forte e persistente deixava diversos inconvenientes urbanos:
773
PAULA FREITAS, O saneamento da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 10.
774
PAULA FREITAS, O saneamento da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 9.
775
DANTAS, Manoel Pinto de Souza. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e das Obras
Públicas para o ano de 1866. Rio de Janeiro: Typographia Perserverança, 1867.
776
ASSIS, Machado de. Bons dias. Campinas: Editora da Unicamp, p. 231, 2008. Apud ALMEIDA Anita
Correia de Lima. Chuva, lamaçal e inundação no Rio de Janeiro do século XIX: entre a providência
divina e o poder público. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 8, p. 117-134, 2014.
255
atoleiros, ruas alagadas, alagamentos de terrenos e chácaras, além de ser ambiente
propício para enfermidades como gripes, pneumonias, febre amarela, cólera, etc777.
A política de escoamento de águas das chuvas se aprimorou com contrato com a
empresa City Improvements ainda na década de 1860. Conforme comentamos em 2.3, a
empreitada previa um teste dos sistemas de esgoto e galerias pluviais para a área central
do Rio de Janeiro. Em 1866, mais de 7.000 metros de encanamentos para água da chuva
foram assentados pela City, aumentando em pouco a eficiência778. Em 1871, a
Academia Imperial de Medicina criou uma comissão, com três professores da Faculdade
de Medicina, para ver o estado da salubridade urbana. O péssimo estado das valas
antigas, muitas de tempos coloniais, com seu decaimento insuficiente, junto aos
obstáculos nas galerias e ramais, foram os principais defeitos apontados pela
comissão779. A necessidade de impedir a estagnação das águas das chuvas passou a ser
sanada com mais aptidão após renovação de contrato com outro súdito inglês, Joseph
Hancox, em 30 de janeiro de 1877780. Deixando tal serviço dividido em três frentes de
trabalho: os trabalhos da administração da Inspetoria Geral de Obras Públicas, o
contrato com a Rio de Janeiro City Improvements, e o contrato com Hancox.
O contrato com a City, de abril de 1857, previa a utilização dos encanamentos
pluviais para empurrar os dejetos fecais do sistema de esgoto doméstico, assim como
para lavar tais encanamentos e impedir a emanação de gases. O contrato com Hancox
resultou numa complexa malha hídrica de escoamento pluvial em dois grandes distritos.
O primeiro das freguesias centrais, abrangendo da Lapa ao Canal do Mangue, em
6.570.000m². E o segundo, da Glória à Lagoa Rodrigo de Freitas, incluindo Santa
781
Teresa, numa área de 10.960.000 m² . Nos 10 anos de 1877 a 1886, Hancox se
responsabilizou em coordenar o assentamento de 87.713 metros de encanamentos,
777
ALMEIDA, Anita Correia de Lima. Chuva, lamaçal e inundação no Rio de Janeiro do século XIX:
entre a providência divina e o poder público. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 8,
p. 117-134, 2014.
778
DANTAS, Relatório do Ministério da Agricultura, op. cit.
779
PEREIRA REGO, José; BARRETO, Antonio Paulo de Mello; MACEDO, M. Buarque de. Relatório
da comissão encarregada de examinar os esgotos da cidade do Rio de Janeiro. In: PEREIRA JR., José
Fernandes da Costa. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e das Obras Públicas para o ano
de 1874. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1875.
780
Hancox já efetuava o serviço anteriormente, possivelmente a partir de outro contrato. Cf. SINIMBÚ,
João Lins Vieira Cansansão de. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e das Obras Públicas
para o ano de 1877. Rio de Janeiro: Imprensa Industrial, 1878.
781
FARINHA, João Pires. Questões hygienicas: mephitismo animal: esgotos do Rio de Janeiro e sua
influência sobre a saúde pública: alguns conselhos hygienicos ao povo. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1883.
256
galerias e coletores, 101 construções especiais, 94 caixas de areia para evitar ao
assoreamento do sistema, 482 entradas para manutenção e limpeza, e 3.428 ralos
receptores instalados nas ruas. A empreitada custou aos cofres públicos uma quantia
pouco superior a quatro mil contos de réis782.
A renúncia da City em realizar o esgotamento das águas pluviais foi um
incomodo para moradores que sofriam com as águas, e para políticos nacionalistas que
já se incomodavam com a importação de material para os encanamentos de esgoto da
empresa. Nos noventa anos de contrato, a City somente fez 9 km de galerias pluviais.
Fazendo sentido contratar outra empresa, de Hancox, para a construção de dezenas de
quilômetros de canos783. No Jornal do Commercio em 1865, um autor escreveu que os
moradores de Saúde “desejam saber até quando ficará aberta a vala que aí se fez para o
encanamento, pois o mau cheiro d‟água aí empoçada tem produzido grande quantidade
de mosquitos e algumas febres”. No final do curto artigo, no canto direito, estava escrito
“Valha-nos, Sr. Hancox”784.
Em paralelo aos investimentos na construção do sistema, a Inspetoria fornecia
uma subvenção anual ao empreiteiro inglês para a manutenção e limpeza da rede.
Segundo Belfort Roxo, uma série de obstruções ocorria nas galerias pluviais, devido aos
sedimentos carreados por rios e chuvas, além de “abusos praticados pelos quiosques,
tavernas e turmas de serviço da empresa [de limpeza urbana] Gary, que não se
importam de fazer destes esgotos (...) receptáculos de lixo e de outros despejos (...)”785.
Outro problema para a rede pluvial foi a ligação clandestina de esgoto doméstico,
denunciada muitas vezes nos relatórios do Ministério da Agricultura e nos ofícios
dirigidos à Câmara Municipal. Mesmo com tais problemas, em 1887, o ministério
reconheceu que as “estas obras funcionam bem, e, na opinião da Inspetoria, constituem
eficaz sistema de drenagem”786.
A circulação das águas também se encontrava no serviço urbano de lavagem de
ruas, chamado à época de irrigação das ruas. Seu início ocorreu na década de 1850
782
SILVA, Relatório do Ministério da Agricultura, 1887.
783
MARQUES, Da higiene à construção da cidade, 1995.
784
CITY Improvements Company [s/ título]. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, ano 43, n. 132, p. 2,
13 de maio de 1865.
785
BELFORT ROXO, Raymundo Teixeira. Relatório da Inspetoria Geral das Obras Públicas da Corte. In:
SILVA, Relatório do Ministério da Agricultura, 1887, p. 13.
786
SILVA, Rodrigo Augusto da. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e das Obras Públicas
para o ano de 1887. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 82, 1888.
257
quando grupos sociais privilegiados reivindicavam que o pavimento por onde passavam
com suas carruagens fossem lavados periodicamente. A partir da década de 1860, a
Inspetoria Geral das Obras Públicas assumiu a atividade, agora mais abrangente, com a
intenção de amenizar o calor carioca e a poeira levantada por pés e patas. Carroças
abastecidas de água “irrigavam” as ruas duas vezes por dia: início da manhã e pela
tarde. A atividade foi realizada tanto por administração, pelas mãos da própria
Inspetoria, ou por empreitada, inclusive outro contrato com Julio Richard, na década de
1870. Cotidianamente, a Câmara Municipal era acionada para resolver questões de
salubridade envolvendo o serviço de irrigação das ruas, sendo as mais comuns: a
persistência de poças donde desprendiam gases insalubres; o uso de água do mar ou de
rios e valas; a lavagem em horários inapropriados; ou a ausência da atividade787.
O discurso idealizador almejou uma maior eficiência no fim da estagnação e no
aumento da circulação das coisas como condições básicas para a higiene pública. Tais
atores sociais tornaram-se também expoentes de um novo modo burguês de se pensar a
cidade788. A exclusão das coisas indesejadas pelos tomadores de decisão da cidade foi
um dos aspectos da circulação dessas coisas, já que elas persistiam no território urbano.
Conforme a cidade era transformada para ter maior eficiência na circulação e exclusão
de aspectos indesejados, novas relações socioecológicas forjaram-se nela. Veremos a
seguir como os esforços dos idealizadores da socionatureza se deram no escoamento do
esgoto, na extirpação de espécies fora do planejamento urbano, e no apagamento de
todo um ambiente indesejado.
787
ALMEIDA, Gilmar Machado. A domesticação da água: os acessos e os usos da água na cidade do Rio
de Janeiro entre 1850 a 1889. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UNIRIO). 2010.
788
COSTA, A cidade e o pensamento medico, 2002.
789
Presente em questões já discutidas – como o aterro de pântanos, a limpeza de rios, etc. – e no
esgotamento doméstico, a ser discutido em 5.3.1.
258
de ser um local de encontro social790. Na condição 4ª do contrato de limpeza urbana
entre o Ministério do Império e Aleixo Gary de outubro de 1876, o serviço consistia em:
1) remoção do lixo, lama, imundícies, matérias líquidas, animais mortos, terra, areia,
etc.; 2) varredura de ruas e praças; 3) extração de toda a vegetação indesejada; 4)
lavagem e desinfecção das latrinas e urinários públicos; 5) remoção das águas
estagnadas791. O serviço de remoção ocorria diariamente e terminava ainda no início da
manhã, juntamente com o serviço de varredura. O material sólido era direcionado para
os depósitos da empresa de limpeza das praias, em veículo especiais completamente
fechados. De lá, iriam para a Ilha de Sapucaia, que recebeu lixo de 1865 a 1949792.
Gary concentrou em sua empresa as atividades de limpeza urbana, como as
acima mencionadas e, a partir de 1885, tentou também, sem sucesso, abarcar a limpeza
das praias e o transporte do lixo para Sapucaia. Esses últimos serviços eram necessários
desde tempos coloniais. A prática comum era o despejo de lixo e esgoto nas praias, a
espera do “serviço sanitário” das marés para limpá-las, como vimos em 2.3.1. Segundo
o relatório sobre a limpeza das praias de José Pereira Rego de 1875, “o estado de
desasseio em que permaneciam as praias (...) deviam merecer toda a atenção da
administração pública” pois era “incompatível com o nosso estado de civilização”793.
Em 06 maio de 1874, o Ministério do Império assinou contrato com o dr João Rivas y
Neyra. Pereira Rego mencionou também em seu relatório que durante o ano de 1874
“foram removidos para a Ilha de Sapucaia 5.308 animais de diversas espécies e
grandezas, que ficavam abandonados nas praias ou superficialmente enterrados” além
de ter sido “removida quantidade de lixo e imundícies calculada em 7.711.306 quilos,
que serviriam como antes, para aterro de pântanos (...) donde se exalavam miasmas
deletérios”794.
790
MELOSI. The Sanitary City, op. cit.
791
Contrato de 10 de outubro de 1876 que faz o Ministério do Império com Aleixo Gary para execução
dos serviços da limpeza e irrigação da cidade. In: CUNHA E FIGUEIREDO, José Bento. Relatório do
Ministério dos Negócios do Império para o ano de 1876. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877.
792
EIGENHEER, Emílio Maciel. A limpeza urbana através dos tempos. Porto Alegre: Palotti, 2009.
793
PEREIRA REGO, José. Serviço de limpeza das praias. In: CORREA DE OLIVEIRA, João Alfredo.
Relatório do Ministério dos Negócios do Império para o ano de 1874. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, p. 1, 1875.
794
PEREIRA REGO, Serviço de limpeza das praias, op. cit., p. 6.
259
Figura 21: Mapa dos depósito de lixo no litoral do Rio de Janeiro. Sem escala. Base cartográfica: PLANTA da
cidade do Rio de Janeiro organizada na Carta Cadastral. Rio de Janeiro: Serviço Geographico Militar, 1928.
Autor: Bruno Capilé.
260
vezes saía à cidade em prática de campo, principalmente para fiscalizar. Sanear era
importante para ele. Em 03 de outubro de 1874, cinco meses do início do contrato de
Rivas y Neyra, o depósito de lixo da praia de Dom Manoel ficou abarrotado com mais
de cem carroças que convergiram para lá. Segundo o sanitarista, “foi tal o abuso então
praticado pelos condutores do lixo que o descarregaram na rua, donde não tem a
empresa obrigação de retirá-lo segundo as cláusulas do seu contrato”796. Ele reconheceu
que o serviço da empresa era gigantesco, e requisitou a Câmara Municipal medidas
complementares: proibir o despejo de lixo nas praias no código de posturas; forçar os
moradores que tem os esgotos das casas dirigidos para o mar a dar dois metros de
distância da linha traçada pelas águas. A resposta da municipalidade foi: “Nada tem a
Câmara com o serviço de remoção do lixo devido a contrato com João Rivas y
Neyra”797.
Decerto as práticas urbanas de lidar com o lixo eram pouco salubres. Os
membros da Comissão Sanitária alertavam para uma série de problemas de limpeza nas
praias, como: o mau hábito da população de lançar imundícies nas areias, latrinas nada
asseadas, esgotos imperfeitos dirigidos ao mar, e uma porção dessas irregularidades nos
rios que desembocavam nas praias, como o Berquó, o Banana Podre e o Carioca798.
Porém de um modo geral, as reclamações sobre as atividades da empresa de limpeza das
praias orbitavam a Comissão Sanitária e a Junta Central de Higiene, na figura de José
Pereira Rego, e dos ministérios do Império e da Agricultura
A insatisfação com o serviço da empresa de limpeza das praias resultou na
rescisão do contrato em 15 de dezembro de 1883, sendo designado a Inspeção de Saúde
do Porto, através de Aviso do ministério, três dias depois. De acordo com o ministro do
Império, Francisco Antunes Maciel, em poucos meses o serviço melhorou e
economizou 5 contos de réis por mês. Segundo ele “as praias são limpas
cotidianamente; os banheiros públicos no mar visitados por escaleres da Inspeção; todo
796
Ofício da Junta Central de Higiene Pública a Camara Municipal, de 5 de outubro de 1874. In: LIVRO
de registros dos trabalhos executados pela Comissão Geral de Salubridade nomeada por João Alfredo
Correia de Oliveira, ministro do Império, para o combate à febre amarela. Rio de Janeiro, 18/02/1875 –
22/01/1876. – BN Manuscritos 14,04,001
797
Ofício da Junta Central de Higiene Pública a Câmara Municipal, de 30 de outubro de 1874. In: LIVRO
de registros dos trabalhos executados pela Comissão Geral de Salubridade, 1876.
798
Ofício da Comissão Sanitária para o ministro do Império José Alfredo Correa de Oliveira, de 24 de
Maio de 1875. LIVRO de registros dos trabalhos executados pela Comissão Geral de Salubridade, 1876.
261
o lixo removido até o meio dia e convenientemente incinerado”799. No mês de
novembro de 1883 foram incinerados, na Ilha de Sapucaia, 10.448 animais mortos
coletados na cidade. O transporte 11.181.414kg de lixo foi feito em 12.674 viagens em
carroças, 451 em saveiros, e 1.379 em escaleres. Anos mais tarde, em 1906, a sociedade
urbana carioca, com novos costumes de consumo e uma população maior, descartava
560 toneladas de lixo800.
799
MACIEL, Francisco Antunes. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do ano de 1883. Rio
de Janeiro: Typograpia Nacional, p. 90, 1884.
800
QUEIROZ, Humberto Alves de; MARAFON, Gláucio José. Os caminhos do lixo na cidade do Rio de
Janeiro. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense. Rio de Janeiro, p. 37-53, jul-dez 2015.
262
ressurgirem inofensivas, sem cheiro”801. Porém estava atento aos interesses da empresa
de capital estrangeira, que conseguira um contrato de 90 anos com o monopólio do
tratamento de esgoto. Bellegarde concluiu que era “indispensável que o governo nomeie
um engenheiro para fiscalizar as obras”802. A ideia foi boa!
O primeiro saneamento de esgoto doméstico latino-americano na capital
imperial brasileira, não deu muito certo em seu início. Bellegarde, ainda sem estar
ciente do que ocorreria depois, escreveu em relatório seguinte: “julguei acertado nomear
uma comissão de engenheiros para examinar este serviço, receber e apreciar as
reclamações dos particulares (...)”803. Após uma série de reclamações da população
urbana, duas comissões imperiais foram geradas. A primeira, de 27 de março de 1864,
encontrou defeitos de responsabilidade da City, “dando em resultado de sua obstrução o
refluxo das águas servidas e das matérias fecais para as bacias assentadas nos quintais,
ou sua estagnação das mesmas”804. A empresa teve de reconstruir grande parte dos
encanamentos nos arredores de Santa Teresa e aumentar os sumidouros para recepção
das águas pluviais nas ruas. A segunda comissão, criada em 19 de setembro de 1864805,
revelou que a “artéria principal dos esgotos imundos” funcionava bem, com um bom
nivelamento e uma construção regular, “podendo respirar-se sem dificuldade o ar
contido neste cano”806. Porém nos coletores subsidiários encontraram uma interrupção
de continuidade e defeitos de construção.
Por estar subterrâneo, o principal problema derivado dessas irregularidades da
empresa de esgotos era invisível, porém bastante perceptível em diversas narinas de
humanos incomodados. Assim muitos moradores reclamaram em jornais no ano de
1864. Em artigo direcionado a City, um assinante do Diário do Rio de Janeiro reclamou
801
BELLEGARDE, Pedro de Alcantara. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das
Obras Públicas para o ano de 1862. Rio de Janeiro: Typographia Paula Brito, p. 92, 1863.
802
SOUZA DANTAS, Relatório do Ministério da Agricultura, 1867, op. cit.
803
BELLEGARDE, Pedro de Alcântara. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das
Obras Públicas para o ano de 1863. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1863.
804
PEREIRA REGO, José. Relatório apresentado à Academia Imperial de Medicina pelo seu presidente
dr. José Pereira Rego. Para ser discutido e depois levado ao conhecimento do governo imperial. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, p. 9, 1873.
805
A comissão era composta pelo Manoel Felizardo de Souza e Mello, José Antonio da Fonseca Lessa,
Carlos Neath, Manoel de Frias Vasconcellos e Christiano Pereira de Azeredo Coutinho. Cf. PEREIRA
REGO, Relatório apresentado à Academia Imperial de Medicina pelo seu presidente dr. José Pereira
Rego, op. cit.
806
PEREIRA REGO, Relatório apresentado à Academia Imperial de Medicina pelo seu presidente dr.
José Pereira Rego, op. cit., p. 10.
263
que os empregados da companhia deixaram aberto por dias o respiradouro de esgoto na
rua das Mangueiras, próximo ao Passeio Público. Tal era o “mau cheiro que não se pode
continuar a residir naquela localidade”807. Em outro artigo também direcionado a
empresa de esgoto, o autor ironizava que “a tal boa City Improvements grandes
prejuízos tem causado (...), com o atrevimento e ousadia que teve em colocar-lhes às
portas de seus prédios pestilentos alçapões, pelos quais manda essa boa City
Improvements fazer limpeza do encanamento!!!”808. Em outro artigo, agora direcionado
ao ministro da agricultura, reclamava dos registros de ar instalados pela companhia que
privavam os moradores “de chegarem às suas janelas em razão do mau cheiro que
exalam”809.
Outros maus cheiros decorreram de maneira indireta por parte da City. Um deles
foi a continuidade das antigas práticas de descartar águas servidas nas ruas. Em
dezembro de 1865, um autor gaiato escreveu no Correio Mercantil que: “um
pachorrento curioso deu-se ao trabalho de contar as caldeiradas de águas servidas que
durante a noite passada foram despejadas na rua de d. Manoel, travessa do Paço, largo
da Assembleia e becos adjacentes. Foram elas 37”. E não apareceu nenhum guarda
fiscalizando810. Além disso, as próprias obras de construção do esgoto sanitário
revolviam os terrenos durante o verão, causando a liberação de miasmas. A City deveria
diminuir os trabalhos no verão, no entanto, fazia o contrário para aproveitar uma
jornada de trabalho maior nos dias mais longos. E para piorar, o terreno desnivelado da
cidade causava quebras e rachaduras nos canos de pouca espessura que possuíam pouca
pressão devido ao curto volume de água. A consequência foi “o surgimento de poças de
merda estagnada por toda parte”811.
Com o tempo, os problemas foram saneados deixando dois grandes ainda por
resolver: a pouca declividade e falta de água para empurrar o que havia sido excretado.
Segundo os engenheiros do Ministério da Agricultura, a perfeição do funcionamento da
City dependia de um bom abastecimento de água para empurrar as fezes urbanas.
807
NOTICIÁRIO: Companhia de esgotos [s/ autor]. Diario do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Ano 44, n.
197, p. 1, do dia 18 de julho de 1864.
808
A COMPANHIA City Improvement [s/ autor]. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro. Ano 40, n; 358,
p. 2, do dia 26 de dezembro de 1864.
809
MELHORAMENTOS da cidade [s/ autor]. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro. Ano 40, n. 319, p. 2,
do dia 19 de dezembro de 1864.
810
NOTÍCIAS diversas [s/ autor]. Correio Mercantil, e Instrutivo, Político, Universal. Rio de Janeiro.
Ano 32, n. 337, p. 2, do dia 11 de dezembro de 1865.
811
CHALHOUB, Cidade febril: op. cit., p. 88.
264
Mesmo após a conclusão das obras dos primeiros distritos812 em 1867, o sistema ainda
dependia das águas dos rios813. E na falta disso, as reclamações persistiam. No relatório
do Ministério da Agricultura de 1868 dizia-se: “Alguns proprietários hão representado
contra as exalações, que nas entradas laterais para as galerias (flushing tanks),
ventiladores, etc., se desprendem, e prejudicam os moradores das circunvizinhanças”814.
Neste ano, a proposta de uma comissão de engenheiros para a falta de água foi a
captação da água do mar para limpar os tanques galerias e encanamentos. Mas, a ideia
não teve seguimento por argumentos sanitários em utilizar água do mar para tais fins815.
Em 1873, um ano após a saída de Russell da presidência da City, Pereira Rego
escreveu em nome da Junta de Higiene sobre os problemas do sistema de esgoto.
Mesmo que a água seja o “elemento principal para o bom serviço dos esgotos”, só sua
abundância não remediaria os defeitos do serviço da City. Argumentou que em 1872
havia chovido 154 dias de chuva com 1.340mm de águas, e reconheceu que as
obstruções também eram uma questão a ser resolvida. As obstruções pioravam depois
de grandes chuvas por razão do carreamento de areias e terras para as galerias de esgoto.
Resultando na necessidade de desobstruções constantes, como as 177 que ocorreram em
1869, 219 em 1870, 192 em 1871, e 197 em 1872, num total de 785 aberturas em quatro
anos. Dentre as várias soluções que Pereira Rego apontou neste relatório destaca-se: o
aumento da abundancia de águas e do declive, em pontos específicos, para bom
escoamento; assentar canos subsidiários em base sólida para evitar depressões causadas
por irregularidades nos terrenos, muitas vezes mal aterrados; desinfetar regularmente os
reservatórios; levantar o leito das ruas ou aprofundar mais o assentamento dos canos
para prevenir que se quebrem com o peso dos veículos816. No ano seguinte, 1874, os
problemas das emanações foi quase resolvido. Principalmente devido a diminuição das
obstruções, a boa quantidade de chuvas, 1.568 mm817, e a abertura de ventiladores818.
812
Consistindo no antigos bairros centrais urbanos mais a Glória.
813
SOUZA DANTAS, Relatório do Ministério da Agricultura, 1868.
814
LEÃO, Joaquim Antão Fernandes. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras
Públicas do ano de 1868. Rio de Janeiro: Typographia do Diário do Rio de Janeiro, p. 102, 1869.
815
LEÃO, Relatório do Ministério da Agricultura, op. cit.
816
PEREIRA REGO, José. Relatório apresentado à Academia Imperial de Medicina pelo seu presidente
dr. José Pereira Rego, op cit.
817
CRULS, O clima no Rio de Janeiro, 1892.
818
PEREIRA JR, João Fernandes da Costa. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, das
Obras Públicas do ano 1874. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1875.
265
Quando Russell requisitou exoneração, foi nomeada a firma social John Moore
& C. para assumir a empresa, e inseriram Edward Gotto na chefia. A nova empresa se
eximiu da obrigação de obter água para a lavagem das galerias a partir dos flushing
tanks, deixando tal atribuição para o Estado. Sendo mais uma das regalias que a
empresa de capital inglês obteve das políticas imperiais. O citado aparelho somente teve
seu funcionamento otimizado quando o volume de águas que entraram no sistema
urbano aumentava com as novas captações longínquas de Tinguá no início da década de
1880. Seu funcionamento dependia de uma boa oferta de água, da qual enchia um
reservatório e depois lançavam as águas pelos encanamentos enfezados como uma
grande descarga sanitária. Em 1886, o gasto hídrico com os flushing tanks, somados aos
mictórios e latrinas públicas de responsabilidade da City, consumiram diariamente
2.500m³, numa oscilação de fornecimento que iria de uma máxima de 235.719m³ no
chuvoso dia 13 de abril a uma mínima de 35.874m³ numa seca anormal em 31 de
janeiro819.
O serviço de esgotos dos subúrbios do Engenho Velho, São Cristóvão e
Botafogo foi inaugurado na véspera de natal de 1878. A preocupação para evitar o
desastre do início da década anterior, com a criação de novos estudos e a utilização de
novas ferramentas e mecanismos, assegurou um natal sem cheiro de merda para as
elegantes chácaras e sobrados que já existiam nestes bairros. O novo metabolismo de
esgoto sanitário transformou-se materialmente em um sistema mais eficiente a partir da
década de 1880, e, agora, com uma boa oferta diária de água. Ao menos para os distritos
novos, onde o sistema tinha maior entrada de água por parte de reservatórios. Em 1881,
o engenheiro fiscal da City Improvements descrevia a situação dos antigos e novos
distritos.
819
Para termos uma ideia de outros gastos hídricos diários, as 29.327 penas d‟água consumiram uma
média de 44.058m³ por dia, enquanto que as 662 bicas públicas sugavam 2.979m³, os grandes
consumidores com 5.000m³, a lavagem das ruas com 1.500m³, outros serviços e edifícios públicos com
8.000m³, e perda na distribuição dos encanamentos nas ruas de 3.693m³. Naquele ano, a quantidade total
que foi captada nos mananciais próximos e longínquos somou mais de 37 milhões litros de água. Cf.
SILVA, Rodrigo Augusto da. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas
do ano de 1886. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887.
266
necessária água (...). Resulta que as matérias ficam muitas vezes estagnadas
nas galerias, produzindo exalações que se tornam sensíveis nas casas e nas
ruas (...)820
820
OLIVEIRA, Alvaro Joaquim de. Relatório do Engenheiro fiscal da Rio de Janeiro City Improvements
Company Limited. In: SARAIVA, José Antonio. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio,
das Obras Públicas do ano de 1881. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, p. 5, 1882.
821
Aviso ao visconde do Rio Branco comunicando que João Batista dos Santos foi autorizado para ir
estudar nas principais cidades da Europa o sistema de esgoto destas para saber as influências que possa
exercer sobre a salubridade da cidade do Rio de Janeiro. Manuscritos - 37A,01,004 n.045. Biblioteca
Nacional. 05/05/1873. Oliveira, João Alfredo Corrêa de, 1835-1915.
267
vegetal e o emprego de ventiladores para a eliminação dos miasmas gerados nas
chaminés e respiradouros822.
O aparato tecnológico sanitário manteve-se atualizado, resultando num sistema
de esgoto cada vez mais eficiente. Menos por iniciativa da City, e mais pela demanda
jurídica do contrato ou de recomendações técnicas de engenheiros e médicos do
ministério do Império e da Agricultura, e da Câmara Municipal. Destacamos algumas
atualizações sanitárias na década de 1880 pertinentes a eficácia do sistema. O uso do
carvão vegetal foi amplamente adotado nas partes em que os encanamentos entravam
em contato com o ar urbano. Assim, em 1881, todos os 351 ventiladores e todas as 52
entradas laterais das galerias receberam peneiras de carvão. As quais eram trocadas e
higienizadas mensalmente. Outra inovação foi a substituição dos flushing tanks por
sifões intermitentes. O primeiro lançava descargas de água para limpar os encanamentos
mediante a supervisão de algum funcionário. Já este tipo de sifão permitia o lançamento
regular de água de maneira a evitar as exalações mal cheirosas823.
Grande parte do material sólido não era aproveitado pela agricultura carioca, e
sim destinado à Ilha de Sapucaia como descarte. Na década de 1880, o engenheiro fiscal
da City apontou uma estratégia tecnológica que reorientava os fluxos materiais do
metabolismo urbano, num sentido de reaproveitamento de materiais. A partir da técnica
de calcinação do material sólido do esgoto, a substância final passou a ser “uma espécie
de argamassa, a princípio muito fluida, mas que pela exposição ao ar e ao sol
endurece”824. Anteriormente a companhia oferecia este material como aterro, ou lançava
ao mar. A partir de experimentos, conseguiu transformar de maneira simples os resíduos
dos tanques de precipitação em cimento825. A partir da incineração, o material tornava-
se isento de água e de matérias orgânicas, e com altas concentrações de cal e alumina,
“quase nas mesmas proporções em que tais substâncias entram no cimento de
Portland”826. Até o final da década de 1880, dois fornos (4º e 5º distritos) participavam
do processo de elaboração de cimento pela City.
822
RELATÓRIO da Comissão nomeada para examinar os trabalhos e serviço dos esgotos da cidade do
Rio de Janeiro [s/ autor]. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875.
823
SARAIVA, José Antonio. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas
do ano de 1881. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1882.
824
OLIVEIRA, Alvaro Joaquim de. Relatório do Engenheiro fiscal da Rio de Janeiro City Improvements
Company Limited. In: SARAIVA, Relatório do Ministério da Agricultura, 1882, p. 5.
825
O funcionamento das casas de máquinas será descrito mais a frente.
826
OLIVEIRA, Relatório do Engenheiro fiscal da Rio de Janeiro City Improvements op. cit., p. 6.
268
A partir dos incômodos, das reclamações dos moradores e das visitas técnicas de
engenheiros e médicos, o funcionamento do esgoto da City estava mais asseado, mais
desinfetado. No entanto, a eficácia era limitada, o descarte final do esgoto mal realizado
e as ligações clandestinas nos encanamentos das águas pluviais ainda prejudicavam a
saúde hídrica do Rio de Janeiro. O coletivo social carioca, antenado ao mal
funcionamento da empresa, lia as publicações semanais sobre as operações de
desinfecção e das casas de máquinas no Diário do Rio de Janeiro827.
Tabela 7: Distritos contemplados pelo serviço de esgoto doméstico no Rio de Janeiro em 1883828.
Na década de 1880, em cada um dos cinco distritos (ver tabela 1, acima) haviam
pequenas estações de tratamento de esgoto, que funcionavam a partir de máquinas a
vapor alimentadas por carvão mineral. Segundo João Pires Farinha, os excrementos
urbanos chegavam dos canos para um grande reservatório denominado câmara de
recepção, através da força da gravidade e da declividade dos encanamentos. Com a
força das máquinas, as matérias eram desinfetadas nos cilindros de desinfecção e
lançadas nos tanques de precipitação. Neste último tanque, adicionavam agentes
químicos para precipitação dos sólidos para o fundo, enquanto que a parte líquida era
filtrada e lançada ao mar. A dosagem dos químicos empregada era de “duas partes de
sulfato de alumina para uma e meia de cal e carvão”829.
827
SARAIVA, Relatório do Ministério da Agricultura, 1882.
828
FARINHA, Questões hygienicas, op. cit.
829
FARINHA, Questões hygienicas, op. cit., p. 26.
269
matérias orgânicas; o sulfato de alumínio reage sobre a cal em excesso,
formando-se sulfato de cálcio e alumina; esta (a alumina) apresenta-se em
flocos, que prendem as matérias sólidas (precipitado formado pela cal e o
sulfato de cálcio), levando-as ao fundo dos tanques de precipitação; o carvão,
que é o verdadeiro desinfetante, absorve os gases amoniacais que se
formaram durante a reação, tornando o líquido, que deve ser lançado ao mar,
inodoro e incolor. Quando os reagentes são empregados em quantidade
conveniente o resultado é satisfatório. É difícil, porém, determinar as
proporções que dependem do estado das matérias na câmara de recepção das
casas de máquinas. Compreende-se que o estado mais ou menos pastoso das
matérias varia com a quantidade d‟água que vai ter às galerias de esgoto,
lançada nas latrinas ou nos ralos dos pátios e quintais: do que resulta que a
dosagem de desinfetantes que convém em certo momento, deixa de ser a
mais conveniente algum tempo depois830.
830
OLIVEIRA, Relatório do Engenheiro fiscal da Rio de Janeiro City Improvement, op. cit., p. 4-5.
831
MOURA, João Ferreira de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras
Públicas do ano de 1884. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 104, 1885.
832
BARROS, Antonio Augusto Monteiro de. Relatório da Rio de Janeiro City Improvements Company.
In: SILVA, Rodrigo Augusto da. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras
Públicas do ano de 1886. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887.
833
SILVA, Relatório do Ministério da Agricultura, 1888.
270
apontavam que os processos de desinfecção adotados eram insuficientes, já que: “cerca
de dois terços das substâncias orgânicas conservam-se em dissolução no líquido
desinfetado e entram facilmente em putrefação, contaminando as águas da baía e
saturando-se de germes perniciosíssimos”834.
Vemos então que a entrada de teorias bacteriológicas esclarecia a perniciosidade
dos germes no ambiente, e não miasmas. Porém, o embate teórico não seria suficiente
para elaborar um bom sistema de tratamento de esgoto. Os descartes foram sendo
direcionados para cada vez mais longe do litoral, e depois diretamente no mar aberto.
A presença de médicos e engenheiros no sistema sanitário teve um papel
dominante nas políticas de saneamento. Essa elite tecnocrática tornou-se o braço técnico
do Estado de maneira a agilizar as transformações sanitárias. Os idealizadores da
socionatureza atuaram nas limitações ambientais e técnicas do antigo arranjo urbano, e
orientaram e fiscalizaram as atividades da City Improvements nas melhorias do esgoto
doméstico.
834
SILVA, Rodrigo Augusto da. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras
Públicas do ano de 1888. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 122, 1889.
271
estiveram associadas no tecido urbano, em especial os cultivos de porcos, agriões e
outras lavouras nos rios e seus derivados.
Dessa maneira podemos dividir dois tipos de seres que conviveram na
socionatureza urbana carioca. Os primeiros são os seres indesejados pela sociedade
urbana como um todo. Tanto os vegetais que espontaneamente ocupavam os espaços
urbanos, e foram associados como fonte de insalubridade, como o mato que crescia
pelas ruas e rios. Quanto os animais indesejados que viviam de nossos estoques de
comida ou de nossos descartes metabólicos de lixo e esgoto. Convivendo assim, com
fontes de doença e participando da ecologia insalubre das infecções. Os esforços da
sociedade urbana foram direcionados para o aniquilamento de seus ecossistemas, e não
a manutenção de sua eficiência.
Vale notar que em tempos de medicina neo-hipocrática dos miasmas, o ambiente
era tido como o principal causador de moléstias à saúde da população. Um ambiente
insalubre, claro. Portanto, os ratos, mosquitos, urubus, baratas e outros seres
oportunistas não eram considerados como vetores de doenças, já que as teorias
bacteriológicas não estavam em voga. O que não significava que as relações
socioecológicas com a sociedade urbana fossem amistosas. De um modo geral o uso dos
nomes era associado de maneira pejorativa, como por exemplo: ratazana simbolizava
esperteza, malandragem, aproveitamento; porco significava uma pessoa sujismunda,
com pouco asseio; já os vadios e perambulantes urbanos eram cães ou cachorros. E,
comum também era as tentativas de aniquilação. As propagandas de substâncias
exterminadoras eram comumente veiculadas nos jornais como o Vermin Killer, que os
ratos comiam-no “com avidez” e morriam no mesmo lugar835. Além das famigeradas
ratoeiras que eram vendidas em lojas de artigos específicos para caça. Nestas lojas
vendiam-se também “ratoeiras todas de ferro e arame (...), visgo para apanhar pássaros,
alçapões de rede (...), redes de seda para apanhar borboletas (...), zarabatanas para matar
pássaros”836.
O outro grupo são as espécies que foram intencionalmente cultivadas para serem
usufruídas por alguns humanos. No caso do território urbano fluvial do Rio de Janeiro,
já conversamos sobre os equinos (4.2) e os capinzais (4.3), e agora os agriões plantados
nas valas e os porcos em chiqueiros a beira rio. Essas espécies são desejadas por alguns,
835
RATAZANAS [s/ autor]. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, n. 82, p. 4, 24 de março de 1879.
836
ARTIGOS para caça [s/ autor]. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, ano 63, nº 233, p. 5, 22 de
agosto de 1885.
272
e geralmente aproveitadas para alimentação. Como ato de sua intencionalidade, há a
necessidade de criar um ecossistema eficiente para eles, seja na criação de valas para
lavoura ou o preparo dos chiqueiros. No caso do agrião, a insalubridade estava
associada ao seu ambiente aquático em valas e regatos. E não às plantas propriamente
ditas. O mesmo não poderia dizer dos porcos, que eram associados à imundície. Na
transição de aspectos majoritários de ruralidade para os de urbanidade, muitas dessas
atividades mantiveram-se no território urbano. Porém, conforme as ideias médicas
associavam tais ambientes como causa de enfermidades, eles eram mal vistos pelo
poder público, sendo posteriormente proibidos pela Câmara Municipal – a partir das
reflexões e atribuições dos médicos idealizadores da socionatureza da Junta Central de
Higiene Pública.
Segundo a medicina da época, o agrião (Nasturtium officinale) possuía
propriedades antiescorbúticas e tem bons resultados na cura de afecções escrufulosas e
pulmonares837. Em uma cidade afetada por frequentes recorrências em doenças como a
tuberculose, o cultivo e o consumo do agrião vieram a calhar. Boa fonte de vitamina C,
ferro, iodo e ácido fólico, o agrião provavelmente enriqueceu a saúde da população
carioca. O ambiente ideal para seu crescimento são os fornecidos por água corrente,
como nas valas abastecidas por rios e riachos.
Em artigo no Jornal do Agricultor, indicava o tamanho ideal para as valas de 75
a 80 metros de comprimento, por 5 metros de largura e uma profundidade de 70
centímetros. Elas necessitariam de estrumação anual, e mesmo assim em momentos de
baixa produtividade aconselhava-se toda a retirada da planta e preparar novamente a
vala para o replantio. O agrião era colhido à mão e cortado em punhados de modo a
fazer um maço, ou molho. A colheita de um “homem habituado a este serviço” durante
oito horas de trabalho resultaria em aproximadamente mil maços de agrião. Como o
maço pesa pouco mais de 100 gramas, este homem habituado colheria cem quilos neste
dia838. A vantagem no cultivo era mencionada em alguns terrenos a venda e para alugar,
como o terreno bom “para horta e boas valas para agrião” na rua do Riachuelo, nº 23839.
837
HYGIENE geral dos legumes [s/ autor]. Jornal do Agricultor: princípios práticos de economia rural,
ano 1, n. 2, p. 375, 1880.
838
AGRIÃO da fonte [s/ autor]. Jornal do agricultor: princípios práticos de economia rural. Rio de
Janeiro, ano 2, n. 3, 1880.
839
ALUGA-SE [s/ autor]. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, ano 49, nº 163, p. 4, 22 de fevereiro de
1870.
273
O cultivo urbano do agrião acarretou diversas reclamações publicadas nos
periódicos e direcionadas à Câmara Municipal, tendo dois principais problemas, a
distribuição de água e a insalubridade das águas estagnadas. Os moradores do morro de
Paula Mattos reclamaram em agosto de 1877 da escassez de água que sofriam devido a
um enorme rombo no encanamento da caixa das Paineiras. O “curioso” era que as águas
eram direcionadas para uma vala de agrião no Catumby. “Por isso é que o guarda deixa
lá ficar o rombo: falta água em Paula Mattos, mas em Catumby abunda o agrião! Valha-
nos isso!!”840. Além do Catumby, as lavouras da crucífera localizavam-se
majoritariamente no Rio Comprido e em parte do Engenho Velho, além de
pontualmente em São Cristóvão e Botafogo. A partir dessas reclamações direcionadas à
municipalidade presente no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, e da pesquisa
na hemeroteca e mapas digitalizados da Biblioteca Nacional pode-se traçar um esboço
da localidade de cultivos de agrião e outras valas.
Embora o consumo do agrião fosse considerado bom para a saúde, as
reclamações mais comuns eram sobre a insalubridade decorrente de seu cultivo.
Conforme dito acima, o vegetal se dava melhor em águas correntes de rios e regatos. No
entanto, nos subúrbios cariocas imperou o uso de águas estagnadas de represas nos rios,
das valas pluviais ou de valas artificiais com o uso de água de poço. Além da circulação
das águas fluviais, as represas eram obstáculos para a limpeza dos rios urbanos. Os
transbordamentos dos açudes e valas pluviais contribuíam com o cenário de inundações
em épocas de fortes chuvas na cidade. O presidente da Junta de Higiene, José Pereira
Rego, em uma de suas várias visitas fiscalizadoras, afirmava que “o dessecamento do
leito” dos rios dos Coqueiros e Comprido sujeitava as “matérias depositadas em seu
fundo a exalações mefíticas tanto mais copiosas, quanto maior é a ação dos raios
solares”. Os inconvenientes pioravam conforme a população vizinha aproveitava as
valas para o descarte de lixo. Por motivos de salubridade, Pereira Rego abominava a
cultura de agrião em território urbano, “a qual” devia “ser reservada para lugares mais
distantes e para valas ou regatos alimentados por água corrente”841.
Conforme vimos em 5.2, esses e outros rios foram desobstruídos e limpos em
abril de 1875. Essas e outras ações da Junta Central de Higiene Pública contra as
atividades que dificultavam a circulação das águas tornaram-se mais sistemáticas com a
840
GAZETA de Notícias [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Ano 3, nº 238, p. 2, 28 de agosto de 1877.
841
Ofício do Presidente da Junta Central de Higiene Pública, José Pereira Rego, a Câmara Municipal, de
10 de março de 1875. AGCRJ 49.4.80
274
criação da Comissão Sanitária, em fevereiro de 1875. Em relatório da Junta
encaminhado ao ministro do Império, José Figueiredo, em 1877, Pereira Rego “insistiu
na necessidade de destruírem-se as represas”842. No ano seguinte, mobilizada pelas
afirmações da Junta, a Câmara Municipal realizou um projeto de postura que proibia
especificamente as culturas de agrião nas freguesias de Engenho Velho, São Cristóvão,
Espírito Santo, Glória, Santo Antônio da Lagoa, Santa Rita, Santana e São José. Para
tal, as valas deveriam ser aterradas em 30 dias da publicação da lei, que ocorrera em 24
de outubro de 1878. Segundo o artigo 4º, o aterro não poderia ter lixo, e o 5º informava
a multa de 30$000 réis e 8 dias de prisão e as despesas do aterro para quem não
realizar843.
O surgimento de uma legislação, como em tantos outros exemplos históricos e
atuais, não significou o fim da irregularidade. As principais causas das perturbações
sanitárias apontadas pela Junta em 1879 ainda eram as exalações miasmáticas das áreas
pantanosas e das “valas artificiais como as para o agrião”. Em menor prioridade de
perturbações estavam as moradias populares consideradas insalubres e as escavações e
revolvimento de terras nas diversas obras urbanas844. Muitas reclamações eram feitas
coletivamente, como os 42 proprietários e moradores de Rio Comprido que solicitaram
à Câmara Municipal o desaparecimento de focos de infecção de hortas em terrenos
baixos e úmidos, e das valas de agrião com águas represadas 845. No mesmo bairro, em
1885, os moradores reclamavam no Diário de Notícias sobre o “hábito de descarregar
as carroças de estrume” para os regos da crucífera. Segundo o artigo no periódico,
depois da reclamação, “já lá andou o pessoal da câmara. Aterradas as valas de agrião,
foi-se embora; e mal tinha virado costas, continuavam os hortaleiros no trafego de tal
seleta”846.
842
PEREIRA REGO, José. Relatório da Junta Central de Higiene apresentado em 1876. In:
FIGUEIREDO, José Bento da Cunha e. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do ano de
1876. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877.
843
PROJETO de posturas. IN: CARVALHO, Carlos Leôncio de. Relatório do Ministério dos Negócios
do Império do ano de 1877. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878.
844
PEREIRA REGO, José. Relatório do presidente da Junta de Hygiene sobre o estado sanitário durante o
ano de 1878. In: CARVALHO, Carlos Leôncio de. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do
ano de 1878. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1879.
845
MAMORÉ, Barão. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do ano de 1885. Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1886.
846
PUBLICAÇÕES [s/ autor]. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, ano 1, n. 74, p. 2, 27 de novembro de
1885.
275
O incômodo da sociedade urbana com a insalubridade das valas de cultivos de
agrião potencializou-se com as epidemias da década de 1870. O ambiente aquático e
seus miasmas eram os inimigos públicos. Outra proibição da cultura do agrião em
território urbano ocorreu novamente, após os esforços da Junta Central de Higiene e da
Câmara Municipal, nos anos 1880. O edital de 22 de outubro de 1885 impedia o cultivo
de agrião nas freguesias centrais, e na do Engenho Velho e São Cristóvão. As valas
existentes deveriam ser aterradas em 60 dias, 30 a mais do que na postura anterior, de
1878847.
Diferentemente do agrião, a perseguição aos porcos urbanos ocorreu antes. Em
1836, na seção primeira sobre Saúde Pública, a proibição de porcos em quintais estava
sob título VII, sobre os objetos que corrompem a atmosfera848. Décadas depois, novas
legislações ordenavam sobre os suínos urbanos. Em março de 1850 publicou um edital
sobre a localidade dos depósitos para os quais os porcos eram direcionados849. Já em
maio do mesmo ano, liberou ambos os lados do Aterrado, no Canal do Mangue, para
serem designados para chiqueiros850. A legislação de depósitos de porcos de 1876,
proibia-os no perímetro urbano de Campo de São Cristóvão e rua São Francisco Xavier
por um lado, e da rua Real Grandeza e largo dos Leões do lado sul. Nestes limites eram
permitidos apenas nos fundos das grandes chácaras, “sob a condição de ser o solo do
lugar (...) calçado, cimentado, e nivelado” e instalar cisternas para as porcarias851. Em
1890, a área incluía as freguesias supracitadas, mais a totalidade do Engenho Velho, de
São Cristóvão, da Lagoa, e incluíu-se a do Engenho Novo852.
Os fiscais das freguesias realizavam rondas periódicas em casas de negócio,
cortiços e outras propriedades buscando irregularidades que afetassem a saúde pública.
Não era difícil que porcos e outros animais fossem removidos de maneira a “purificar o
847
Edital de 22 de outubro de 1885 sobre a cultura de agrião. In: MORAES FILHO, Código de Posturas,
op. cit.
848
Secção Primeira: Saúde Pública. Título VII: sobre diferentes objeto que corrompem a atmosfera, e
prejudicam a saúde pública. In: MORAES FILHO, Código de Posturas, op. cit.
849
Edital de 21 de março de 1850, que delibera onde devem ser os depósitos de porcos. In: MORAES
FILHO, Código de Posturas, op. cit.
850
Edital de 28 de maio de 1850, permite chiqueiros de porcos no lado esquerdo do Aterrado. In:
MORAES FILHO, Código de Posturas, op. cit.
851
Edital de 5 de dezembro de 1876 sobre o depósito de porcos. In: MORAES FILHO, Código de
Posturas, op. cit.
852
Edital de 1 de dezembro de 1890, sobre criação de suínos. In: MORAES FILHO, Código de Posturas,
op. cit.
276
ar”853. Era comum que as casas de negócio estivessem em bom estado. No entanto, além
de chácaras e margens de rios, nos cortiços também se encontravam suínos indesejados
por grande parte da sociedade urbana. Assim os 12 porcos apreendidos em 3 cortiço da
Glória854, ou os 8 da freguesia do Engenho Velho855, foram apenas alguns dos
chiqueiros desmantelados. De um modo geral, os porcos eram direcionados para
depósitos localizados em cada freguesia, podendo ser revisto pelo dono ou não;
dependendo da possibilidade da criação em certos lugares da cidade.
Em outros momentos os fiscais visitavam e não resolviam completamente a
questão suína, ou pareciam nem se dar ao trabalho de realizar visitas. Em 1876, antes da
postura de dezembro, o Campo de São Cristóvão era noticiado com o “escandaloso
fato” de ter se tornado “chiqueiro de porcos” e “pasto de toda a espécie de animais”,
expondo os moradores aos “horríveis miasmas”. O fiscal apresentou-se e apreendeu
somente algumas cabras, “das quais algumas foram postas em liberdade”, e “a grande
quantidade de porcos não foi incomodada!”856. No mesmo ano, um chiqueiro localizado
numa chácara na rua Haddock Lobo tornara-se “um verdadeiro foco de miasmas
pútridos”. Um assinante da Gazeta de Notícias indagava se haveria algum fiscal que
teria “competência para fazer executar as respectivas posturas e promover as
providências que se tornarem necessárias a bem da saúde pública?”857. Por vezes, os
leitores mais versados mandavam recados anônimos para os fiscais sobre o estado
sanitário.
Nem tudo se achava nas mãos do fiscal da freguesia. O chefe de polícia recebia
por vezes elogios de suas atividades fiscalizadoras, “dando resultados benéficos” “à
853
NOTICIÁRIO [s/ autor]. Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Ano 42, nº 224, p. 1, de 15 de
agosto de 1862.
854
VISITA [s/ autor]. Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Ano 48, nº 37, p. 3, de 7 de fevereiro de
1868
855
NOTICIÁRIO, op. cit.
856
S. CHRISTOVÃO [s/ autor]. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, ano 2, nº 122, p. 2, 3 de maio de
1876.
857
GAZETA de Notícias [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro, ano 2, nº 8, p. 2, 8 de janeiro de 1876.
858
AO SR. FISCAL da Glória [s/ autor]. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, ano 49, nº 172, p. 1, 24 de
junho de 1870.
277
epidemia reinante” após um chiqueiro de porcos ser destruído na freguesia do Espírito
Santo859. Já os bombeiros também notificavam irregularidades de animais urbanos,
como a indicação de 38 chiqueiros após combaterem incêndio na rua São Leopoldo860.
O conhecimento técnico sobre criação de porcos afirmava questões de
insalubridade dos chiqueiros que eram “redutos pequenos, escuros, acanhados,
lamacentos, onde se respiram constantes miasmas”. Em artigo no Jornal do Agricultor,
o mesmo autor mencionou que o porco “prefere os lugares úmidos (...) pela necessidade
que sente de refrescar-se continuamente”. Seria bom para o animal ficar “em lugar onde
houver água corrente” e também aproveitar essas águas para limpar o chiqueiro861. Ou
seja, exceto em épocas de engorda, as várzeas dos rios urbanos configuravam-se ótimos
ambientes para os suínos862. Neste contexto, a proximidade entre porcos e rios ofertava
ao sistema fluvial uma quantidade anual de 800 a 1.400 quilos de estrume por animal,
contaminando as águas863.
Em 1872, o Vereador Eduardo Augusto Pereira de Abreu foi investigar as
condições de potabilidade do rio Macaco na freguesia da Lagoa. O sr. Marques,
proprietário da fazenda do Macaco, havia feito um chiqueiro de porcos no citado rio,
comprometendo a salubridade pública. Pouco abaixo da casa da fazenda existiam 2
açudes, sendo o antigo construído por um dos engenheiros irmãos Rebouças. A água
tinha a “cor turva, mau cheiro e de consistência gomosa”. Um dos empregados das
Obras Públicas, residente no local, afirmava que esta água não era aproveitada, e sim a
do outro açude. No entanto, o vereador seguiu investigando a propriedade e encontrou
“oito a dez porcos retidos em um depósito, cujo cano de esgoto (...) dirigia-se para o rio
que lança as suas águas nos citados açudes”. Seguindo o rio, encontrou também “dois a
três desses animais que em plena paz passeavam junto às margens do rio”, onde
observou “sinais evidentes de sua permanência nesses lugares”864. Realmente, os porcos
pareciam gostar das várzeas fluviais. Mais tarde, o empregado que residia ali confessava
859
GAZETA de Notícias [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Ano 2, nº 99, p. 1, de 9 de abril de 1876
860
GAZETA de Notícias [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Ano 2, n 175, p 1, 25 de junho de 1876.
861
JORNAL do Agricultor [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro. Ano 1, tomo 1, pág 27.1879.
862
JORNAL do Agricultor [s/ autor e s/ título]. Rio de Janeiro, ano 3, tomo 5, p. 179, 1881
863
SILVA JUNIOR, Dias.Mosaico. Jornal do Agricultor. Rio de Janeiro, ano 12, tomo 22, p. 103, 1890
864
Ofício do Vereador Eduardo Augusto Pereira de Abreu ao Presidente da Câmara Municipal, Antonio
Ferreira Vianna, de 25 de janeiro de 1872. AGCRJ 49.4.84.
278
que na falta de água e com muita chuva, as comportas dos açudes eram abertas para
lançar as águas para circulação, contaminando o sistema fluvial.
O diligente sanitarista, Pereira Rego, também denunciava os chiqueiros urbanos.
Como em sua visita às margens do Rio Comprido, onde encontrara “uma imunda latrina
e cinco chiqueiros” em frente ao terreno da Companhia Vila Isabel de bondes865. O
presidente da Junta buscava medidas mais sistemáticas contra tais abusos, como a
destrução de todos os desvios de águas nos rios do Rio de Janeiro. Política que levou
adiante, conforme vimos em 5.2.
Como em tantas cidades ocidentais do final do século XIX, o Rio de Janeiro teve
seu ecossistema urbano transformado por políticas sanitárias que respondiam aos surtos
epidêmicos866. As doenças urbanas afetaram a saúde humana e a presença de outras
espécies que conviviam na socionatureza urbana. Seja pela estagnação das águas do
cultivo do agrião, ou das porcarias dos suínos, a presença das duas espécies iam de
encontro com as ideias sanitárias debatidas anteriormente. Os idealizadores prescreviam
a circulação das coisas como a principal verve sanitarista. O bem comum, sob o pretexto
de salubridade, foi elevado à bem maior. Enquanto que o bem privado, as valas e
chiqueiros, fora enquadrado como mal quisto.
Nos anos iniciais da República, uma nova ciência médica urbana se
desenvolveu. Os ambientes socionaturais continuaram a serem moldados segundo a
vontade de poucos. No entanto, muitas espécies foram diretamente associadas à
transmissão de doenças epidêmicas em humanos. A partir desse momento, na virada
para o século XX, que outros animais passaram a serem perseguidos. Ratos foram
caçados em troca de alguns mil-réis, numa política sanitária contra a peste negra;
mosquitos foram aniquilados para evitar a febre amarela e depois outras doenças; cães
vadios eram perseguidos por episódios de mordidas e de contágio de raiva. Fora do
recorte temporal desta tese, a cidade do século XX já não via motivos para terem
animais não-humanos em seu território urbano.
865
Ofício do presidente da Junta Central de Higiene Pública, José Pereira Rego, a Câmara
Municipal, de 10 de março de 1875.
866
Em meio a muitos exemplos nas cidades ocidentais, temos o caso da epidemia de peste bubônica em
San Franscisco (1907). A guerra aos ratos decorrente gerou leis sanitárias que proibiam animais como as
galinhas, no território urbano. O fim das galinhas significou acabar com o fluxo material de esterco para
as fazendas adjacentes à cidade. A guerra à peste transformou o modo de produção de alimento na cidade
californiana. Cf. DYL, Joanna L. The war on rats versus the right to keep chicken: plague and the paving
of San Francisco, 1907-1908. In: ISENBERG, Andrew C. The nature of cities: culture, landscape, and
urban space. Rochester, NY: University of Rochester Press, 2006.
279
5.3.3. Ambiente indesejado - o fim do manguezal de São Diogo
867
Ver seção 2.3.2.
280
2.144 comerciantes, 22 capitalistas, 28 lavradores, 98 pescadores, 87 marítimos, 6.611
nas manufaturas e ofícios, 6.604 no serviço doméstico (sendo 2.476 escravos), e mais de
14 mil de ofícios desconhecidos (sendo 1.791 escravos). Em outras palavras, a região
passou de um aspecto aristocrático com chácaras nas décadas de 1830-1840 para um
espaço proletário nas décadas de 1870-1880868.
Com o loteamento e surgimento de ruas, as fábricas se instalaram no novo
bairro. A Cervejaria Jacob Nauerth instalou-se na rua Nova do Conde no final da década
de 1850. Na década seguinte, um pouco mais afastado do Canal do Mangue, a cervejaria
Luzo-Brasileira de Carvalho & Tavares situava-se nas proximidades do Campo de
Santana. Nos anos 1880, a Manufatura de Cerveja Brahma, Villiger e Cia. foi construída
bem próximo ao canal, na rua Visconde de Sapucahy, com uma produção diária de 12
mil litros e 32 funcionários869. Além das cervejarias, outras fábricas estiveram presentes
na região, como a pioneira fábrica de gás. De posse de Mauá MacGregor & Cia., a
empresa passou a Rio de Janeiro Gás Company Limited com capital estrangeiro em
1871, e depois Societé Anonyme du Gás de Rio de Janeiro, em 1886.
É certo afirmar que a fábrica de gás foi a iniciativa privada que mais se
aproveitou das águas do Canal do Mangue. Seja pelo acesso ao mar para a chegada de
carvão importado que resultou na primeira grande obra de criação do Canal, por
iniciativa de Mauá. Ou pelo uso cotidiano das águas a partir de 1871. O gerente da
recente Rio de Janeiro Gás Company Limited, William Holman, requisitou a Câmara
Municipal o aproveitamento das águas do canal. A contrapartida da empresa seria o
reparo e o fechamento da represa existente próximo a ponte que comunicava o Caminho
do Aterrado à rua Miguel de Frias. Outra condição do requerimento de Holman foi de
não elevar a represa ao ponto de inundar os terrenos adjacentes e não prejudicar as
margens e leito do canal870.
868
PINTO, Fernanda Mousse. A invenção da Cidade Nova do Rio de Janeiro: agentes, personagens e
planos. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e
Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.
869
SANTOS, Sérgio de Paula. Os primórdios da cerveja no Brasil. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
870
Requerimento de William Henrique Holman, gerente da Rio de Janeiro Gas Company Limited, 1870.
AGCRJ 9.1.9.
281
Figura 22: Sequência de mapas da cidade do Rio de Janeiro com o traçado das ruas em diferentes décadas. Em
verde as áreas alagáveis. Sem escala. Base Cartográfica: PASSOS, Francisco Pereira. Planta dos
melhoramentos projetados. Rio de Janeiro: Offic. Graph. E. Bevilacqua & C., 1903. Autoria Bruno Capilé.
282
Engenho Velho. O Canal do Mangue tinha um papel chave, já que foi planejado seu
prolongamento em direção ao Andarahy, nos terrenos adjacentes ao rio Maracanã.
Como medida indispensável para o melhoramento do canal e melhor aproveitamento
dos terrenos julgou a comissão intensificar os aterros dos pântanos marginais. De onde
se construiriam um ramal da estrada de Dom Pedro II, uma estação marítima para a
estrada de ferro, um parque em São Cristóvão, um edifício de exposição permanente e
um mercado871. Para eles, não bastaria “calçar as ruas, iluminá-las a gás, dar água e
esgoto às casas”, era preciso “remover os pântanos e outros focos de infecções
permanentes”872. Duramente criticadas, tais ideias não foram levadas a frente. No
entanto, a região passou a ser cada vez mais de interesse de médicos e engenheiros ao
longo do Império873.
O primeiro e o segundo relatório da Comissão foi base para muitos
planejamentos urbanos do Rio de Janeiro, em especial as obras do início do século
XX874. No entanto, as propostas do primeiro documento foi duramente criticada. Em
1883, Antonio de Paula Freitas escreveu sobre a constante umidade do solo como causa
da insalubridade carioca875. Segundo ele, “a vegetação dos pântanos, os mangues,
ficaram sepultadas nos aterros, e, em consequência da umidade e calor, permanecem
ainda hoje em continua decomposição”876. Sobre o projeto do engenheiros, Paula Freitas
afirmou que o prolongamento do canal “não traria vantagens e concorreria ainda mais
para a conservação da umidade no interior da cidade”877. Segundo ele, tal planejamento
deveria ser melhor estudado, em especial após os “desastrosos fatos de fevereiro de
1882 e abril de 1883” quando a obstrução dos rios Comprido, Joana e Maracanã, gerou
graves inconvenientes na foz compartilhada, na Praia Formosa878. Outra crítica foi
871
PASSOS, Francisco Pereira; MORAES JARDIM, Jeronymo Rodrigues de; SILVA, Marcelino Ramos
da.Segundo Relatório da Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro. In: CUNHA E
FIGUEIREDO, José Bento da. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do ano de 1875. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1877.
872
PASSOS et al., Segundo Relatório da Comissão de Melhoramentos, op. cit., p. 2.
873
Conforme visto em 2.3.2. Para maiores informações, ver ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos
circulares, op. cit..
874
ANDREATTA, Cidades quadradas, paraísos circulares, op. cit.
875
PAULA FREITAS, Antonio de. O saneamento da cidade do Rio de Janeiro. In: MACIEL, Francisco
Antunes. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do ano de 1883, Anexo F. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1884.
876
PAULA FREITAS, O saneamento da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 4.
877
PAULA FREITAS, O saneamento da cidade do Rio de Janeiro, op. cit, p. 10.
878
PAULA FREITAS, O saneamento da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., p. 12.
283
elaborada pelo Raymundo Teixeira Belfort Roxo, em 1886. Segundo o engenheiro, a
falta de declividade para as galerias laterais no prolongamento do canal inviabilizaria o
escoamento das águas das chuvas879.
No ano seguinte à publicação do primeiro relatório da Comissão de
Melhoramentos, o Ministério do Império celebrou um contrato para novas obras no
Canal do Mangue e seu embelezamento. Segundo o contrato de 12 de fevereiro de 1876
com João Rivas y Neyra, o empreiteiro seria responsável pela desobstrução e limpeza
do canal, mantendo uma profundidade mínima de 2 metros, e também pela instalação de
um gradil de ferro, pelo conserto de pontes e muros, pelo plantio de gramas e árvores e
pela conservação das obras por 12 meses880. Diferentemente dos acordos com a fábrica
de gás de Mauá, ou da Rio de Janeiro City Improvements, o contrato com Neyra teve
maior compromisso do poder público, em especial no quesito saúde pública. O aterro
para o plantio de árvores teve terras aproveitadas da limpeza do canal, desde que fossem
“cobertas imediatamente com uma camada de terra da espessura de um metro”881.
Devido ao calor carioca, a plantação somente ocorreu de julho a setembro de 1876.
Outra medida sanitária foi sobre as escavações do canal, onde era necessário a
deposição de uma camada de cal de 15 centímetros de espessura no dia anterior.
Os terrenos pantanosos a serem aterrados eram adquiridos pelo governo
imperial, e depois transformados pela empresa de Neyra. A dificuldade na
desapropriação devido a preços exagerados gerou pendências no cronograma de
extinção de pântanos urbanos. Os aterros também serviam para estabilizar encostas,
como a das propriedades situadas no morro de Santos Rodrigues, ao lado do Canal do
Mangue. As quais foram aterradas pela empresa de Neyra ainda em 1876, a mando do
Ministério do Império882.
Expirado o contrato em 1877, a conservação do Canal do Mangue passou a ser
jurisdição do Ministério da Agricultura, e não mais dos Negócios do Império. Junto a
uma série de outros serviços urbanos como a abertura de ruas, arrasamento dos morros
879
BELFORT ROXO, Raymundo Teixeira. Relatório da Inspetoria Geral das Obras Públicas da Corte. In:
SILVA, Relatório do Ministério da Agricultura, 1887.
880
Contrato que o Ministério do Império celebra com o dr. João Rivas y Neyra para execução das obras
da desobstrução e limpeza do Canal do Mangue da Cidade Nova e embelezamento das margens deste. In:
PINTO SILVA, Antonio da Costa. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do ano de 1876. Rio
de Janeiro: Typographia Montenegro, 1877.
881
Condição 3ª do contrato, p. 2.
882
PINTO SILVA, Antonio da Costa. Relatório do Ministério dos Negócios do Império do ano de 1876.
Rio de Janeiro: Typographia Montenegro, 1877.
284
do Castelo e Santo Antonio, aterros, etc883. A Inspetoria Geral de Obras Públicas, da
pasta de agricultura, assumiu administrativamente a conservação do canal a partir do
artigo 2º da Lei nº 2.792 de 20 de outubro de 1877. As obras a cargo do ministério
anterior terminaram em novembro de 1881884. A conservação seguiu seu rumo sem
muitos percalços. O lodo era frequentemente retirado do fundo do canal. Estimado em
25 contos de réis anuais pelo Inspetor Manoel Buarque de Macedo em 1880 885, o
orçamento para o referido serviço não ultrapassou 17 contos886 – para a extração uma
estimativa de 2 mil a 5 mil metros cúbicos de lodo.
Após as inundações de abril de 1883, que resultou em mais terras no fundo do
canal, o ministro da agricultura, Affonso Penna, buscou maior eficiência na conservação
da socionatureza do canal. Uma draga manual já se encontrava em via de construção na
fábrica alemã Krupp, com a capacidade de extrair de 3 a 4 m³ de lodo por hora887. Em
1888, a empresa City Improvements concluíra uma casa de máquinas na rua Visconde
de Itaúna, com uma máquina a vapor e duas bombas com uma força correspondente a
uma capacidade de extrair 20m³ de lodo por minuto888!!
O prolongamento do canal até o mar e seu embelezamento ocorreu, de fato,
somente no início do século XX. No entanto, o preparo material e imaterial ocorrera ao
longo da segunda metade do século anterior. Aterros, desapropriações, arruamentos e
loteamentos foram seguidos de uma série de estudos e levantamentos que resultaram em
muitos trabalhos gráficos, mapas, nivelamentos, sonda, perfurações e observações de
marés. Idealizar a socionatureza significou sua redução, sua limitação técnica. Nas mãos
do Ministério da Agricultura a partir da década de 1870, a eficiência da conservação
melhorou e tais planejamentos foram efetuados.
883
ALMEIDA, Thomaz José Coelho de. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das
Obras Públicas do ano de 1876. Rio de Janeiro: Typographia Nacional
884
SARAIVA, José Antonio. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas
do ano de 1881. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1882.
885
Aviso do Inspetor Geral das Obras Públicas da Corte, Manoel Buarque de Macedo, de 22 de outubro
de 1880.
886
Segundo os relatórios do Ministério da Agricultura, a quantidade de lodo retirado em 1881 foi de
2.708m³; em 1884 extraiu-se 5.881m³ custando 12:894$830 de réis; em 1885 a extração de 5.894m³
custou 14:623$864; em 1886 foram retirados 4.783m³, com o custo de 13:191$300; em 1887 13:801$243
réis foram usados para extrair um recorde de 7.191m³ de lodo.
887
PENNA, Affonso Augusto Moreira. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras
Públicas do ano de 1883. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1884.
888
SILVA, Relatório do Ministério da Agricultura, 1889.
285
O Estado imperial teve um papel importantíssimo na transformação do
ecossistema indesejado em um bairro inserido na continuidade urbana. Primeiramente
nos aterros para a conexão do início do bairro da Cidade Nova, nas proximidades do
bairro imperial de São Cristóvão. O loteamento e arruamento das antigas chácaras
coloniais em proto-urbanidades na primeira metade, também foi articulada pelo poder
imperial. O início da era dos engenheiros teve no Canal do Mangue um laboratório
social para repensar a conexão do centro urbano com os subúrbios do oeste. O capital
estrangeiro e dos proprietários locais, especulativo imobiliário ou da fábrica de gás,
esteve também associado às atividades estatais. De área de chácaras a bairro proletário,
a extinção dos mangues e alagados da Cidade Nova estiveram na pauta dos projetos
urbanísticos dos idealizadores da socionatureza. A nova configuração populacional de
cortiços e moradias populares consideradas insalubres marcou a futura geração de
intervenções ambientais na localidade, no que ficou conhecido como a era das
demolições889. Uma nova socionatureza urbana indesejada se configurava, acarretando
na exclusão social de milhares de desalojados na jovem república tropical.
889
ROCHA, Oswaldo Porto. A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro (1870-1920). Rio de
Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995. CARVALHO, Lia de Aquino. Contribução ao estudo das
habitações populares: Rio de Janeiro (1886-1906). Rio de Janeiro: Secretaria de Cultura, 1995.
BENCHIMOL, Pereira Passos, op. cit.
286
CONCLUSÃO:
o que seria do Rio de Janeiro sem seus rios?
287
As nascentes dos rios que brotavam do alto curso foi alvo de uma abordagem
ecossistêmica florestal mais profunda. A crescente demanda por água para uma cidade
cada vez mais sedenta foi motivação e legitimação para políticas hídricas e florestais
por parte do governo imperial. No alto curso, a intensa transformação da paisagem
florestal, que amparava o bom funcionamento dos cursos d‟águas, gerou novas relações
socioecológicas e uma forte exclusão de populações negras. O poder infraestrutural do
Estado garantiu o plantio de árvores, o desvio e captação de rios, a construção de
estradas e caixas d‟água. Embora o principal argumento para a domesticação da
paisagem florestal tenha sido o abastecimento de água, outras atividades sociais foram
incentivadas e motivadas pelo governo imperial, como: o embelezamento da Floresta da
Tijuca para visitação, a edificação de hotéis e sanatórios para o deleite de poucos.
Descendo os rios, a cidade expandia-se exprimida por entre morros, áreas
alagadas e o mar. A institucionalização dos engenheiros e o fortalecimento de seus
discursos fomentou os anseios de controle por parte dos dirigentes imperiais. Enquanto
pântanos eram aterrados e drenados, parcos aspectos da ruralidade carioca resistiam às
ações da Câmara Municipal. As áreas privilegiadas dos subúrbios foram profundamente
afetadas pelas relações que a sociedade urbana tinha com seus rios. As decisões
presentes nos planejamentos urbanos dos engenheiros orbitaram temas que tinham o
controle mais eficaz dos rios e outros corpos d‟água. Segundo estes idealizadores da
socionatureza, para um crescimento urbano eficiente era necessário domesticar os rios
no médio e baixo curso.
As práticas rurais dentro da cidade persistiram até que novas leis sanitárias
surgissem em resposta a surtos epidêmicos, como os das décadas de 1850 e 1870. Os
idealizadores da socionatureza apontavam as áreas alagadas e a proximidade de vegetais
como fontes de miasmas causadores de doenças. Dessa maneira, foram perseguidos os
cultivos de agrião nas valas públicas e privadas; as plantações de capim para alimentar a
principal força animal, os equinos; e outros cultivos que também ocorriam nas
proximidades dos rios urbanos. A resposta às doenças humanas afastaram plantas e
animais que ofereciam alimento e trabalho para a sociedade urbana. As políticas
sanitárias transformaram o ecossistema urbano, seus fluxos e suas interações
socioecológicas.
Essas e outras ideias foram fortemente afetadas pelo surgimento da medicina
social, ou medicina urbana, do século XIX. Essas teorias sanitárias foram influenciadas
por uma revisão de antigas teorias hipocráticas sobre a importância do meio na saúde
288
humana. Sendo assim, melhorar a saúde pública da epidêmica cidade do Rio de Janeiro
significou a transformação de seu ambiente urbano. O que colocou em destaque a
importância de médicos e suas ideias na sistematização de serviços ecossistêmicos
urbanos, ou serviços sanitários: coleta de lixo, limpeza de rios, sistema de esgoto, aterro
de áreas alagadas, etc.
Deslocar os rios urbanos e outros agentes não humanos mais para o centro da
narrativa histórica da cidade do Rio de Janeiro significou o silenciamento de aspectos
sociais humanos tradicionalmente abordados historiograficamente. As trocas
ministeriais e outras mudanças políticas internas na corte imperial foram silenciadas
para que outros aspectos mais diretos ao tema da tese fossem abordados. O mesmo se
deu com fatores externos como a Guerra do Paraguai, ou a expansiva política comercial
britânica. No entanto, para mim, foi mais dolorido deixar de atender às análises mais
profundas das estruturas raciais e de gênero por questões de fontes historiográficas. Tal
apropriação social dos rios urbanos e outros ambientes biofísicos, por parte de negros e
mulheres, limitou-se a relatos, periódicos, e documentos oficiais. Os silêncios derivaram
da falta de informações qualitativas mais detalhadas, devido ao fato de sermos uma
sociedade imperial urbana escravocrata e patriarcal. Assim, limitamos a classe
escravizada sem nos aprofundarmos em sua complexa estrutura social de trabalho. De
certa maneira, ambos os grupos foram levemente contemplados através da chave do
trabalho. O que resultou na análise, mesmo que superficiais, de personagens que
estiveram interatuando com o ambiente biofísico através de seu trabalho. Nesse sentido,
foi abordado nesta tese a presença e a atividade de negros e negras como carvoeiros,
trabalhadores dos aterros de áreas alagadas, reflorestadores, carregadores de água,
lavadeiras, cozinheiras, lavradores do subúrbio, cuidadores de animais, dentre tantos
outros. O trabalho aqui significou uma relação direta de intervenção na, e conhecimento
sobre a socionatureza urbana.
Esses agentes puderam ser interpretados também como pontos de uma complexa
rede socionatural urbana. Mesmo sem muitas fontes historiográficas, ao analisarmos os
fluxos e conexões com outros atores históricos, pudemos inserí-los de uma maneira
mais colaborativa em nossa narrativa. Tais relações sociais foram vistas como processos
mais amplos e redenominadas de relações socioecológicas. E assim, compreender os
silêncios documentais sobre negros e negras da mesma maneira que outros agentes
excluídos e indesejados dessa socionatureza urbana.
289
No caso dos rios, apesar de vivenciarem eventos de intensa modificação
estrutural, eles permaneceram. Sujos, canalizados, mas não descaracterizados de sua
essência fluvial, seus fluxos, suas quedas, sua foz. A narrativa buscou apresentar um
híbrido urbano que era ao mesmo tempo ambiente dos urbanitas, além de processo e
produto de suas atividades. As atividades dos personagens humanos contemplaram
aspectos socionaturais riquíssimos. Para isso foi preciso olhar para a água, para os
sedimentos, para os movimentos, para os animais, para as plantas, para o esgoto.
Diferentes personagens históricos foram apresentados de maneira um pouco mais
abrangente e rica. Portanto, foi mais proveitoso considerar a cidade como um
ecossistema urbano do que adentrar em versões declensionistas de uma cidade como
vírus ou como um câncer destruidor.
Para esta tese, o termo socionatureza foi favorável para muitas interpretações
sem cair na limitação de trabalhar conjuntamente com as palavras sociedade e natureza.
O que era visto como empecilho para muitos idealizadores foi repensado aqui como
aspectos do ambiente biofísico, como as áreas alagadas ou o manguezal de São Diogo.
Os rios urbanos foram então contemplados como parte autônoma, “natural”, espontânea,
e também como criação humana, a partir da relação da sociedade urbana e estes corpos
d‟água. Compreender as características dos rios proveu as análises com mais processos
socionaturais, seja pelos aspectos do curso de água (volume, velocidade, inclinação) ou
de seus sedimentos (argila, areia, pedras). Pela hibridez do termo socionatureza, esses e
outros quase-objetos vieram à tona de nossa análise. De maneira que a cidade e seus
processos pudessem também fluir com e através dos rios urbanos.
Operar com o termo socionatureza propiciou também uma riqueza temática.
Esse entendimento ecossistêmico da cidade, seus processos e interações, permitiu
analisar atuações de humanos, cavalos, porcos, e outras espécies. Isso ampliou uma
perspectiva monoespecífica da cidade: onde somente o humano importa. Tal abordagem
foi profundamente influenciada por questões ecológicas e budistas. Embora duas
máximas do budismo estejam marcadas na divisão das duas partes desta tese e nos
termos transformações e interações, resolvi mencionar esse fato ao final da tese, para
não afetar sua leitura. A primeira premissa – transformações – afirma que 1) no
universo nada é permanente, tudo está em transformação. Essa premissa evidencia que
tudo está em constante movimento e modificação. Na primeira parte da tese, apontei os
esforços dos idealizadores da socionatureza em controlar tais transformações urbanas, e
as consequências desse inevitável fracasso. O controle, diferente da ordem, prescreve
290
uma imposição, uma dominação. Além da impermanência, 2) todas as coisas e seres
estamos conectados - interações. O leitor talvez lembrará da epígrafe da tese do monge
budista vietnamita Thich Nhât Hanh, que afirmou que nós intersomos com o resto do
universo. Assim, na segunda parte busquei analisar as consequências do controle na
geração de novas relações socioecológicas. Tudo muda, e tudo está conectado.
Por fim, respondendo a pergunta do subtítulo desta conclusão, afirmo que o Rio
de Janeiro e tantas outras cidades são fluviais. Colocar em destaque o protagonismo
ambiental dos rios promoveu uma reflexão sobre a própria delimitação e significado da
cidade. As cidades precisam de seus rios para os inúmeros processos sociais e
biológicos que ocorrem em seu interior. E mesmo que os discursos dos idealizadores da
socionatureza tenham apagado o sentido histórico dos rios urbanos. Vemos que nossos
rios urbanos precisavam de um revisionismo historiográfico para reafirmar seu
protagonismo na história humana. Dessa forma vimos como a história ambiental da
transformação urbana do Rio de Janeiro conectou-se em nossa narrativa aos muitos rios
do Rio de Janeiro.
291
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ANEXO I
Figura 23: Mapa das freguesias do município neutro. Sem escala. Em verde as freguesias rurais, em amarelo o
subúrbio e em cinza o centro urbano. 1- Candelária, 2- Sacramento, 3- Santa Rita, 4- São José. Base cartográfica:
PINTO, Fernanda Mousse. A invenção da Cidade Nova, op. cit.
312