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Paulo M.

Barroso

Sociologia da Comunicação
Temas e problemas fundamentais para compreender os
media nas sociedades actuais

Maio de 2021
Ficha Técnica

Autor: Paulo M. Barroso

Título: Sociologia da comunicação. Temas e problemas fundamentais para compreender os


media nas sociedades actuais

Editor: PV Editora

Design e Impressão: Eden Gráfico S.A.

Capa: Paulo Medeiros

Fotografia da Capa: Christine Sandu em Unsplash

ISBN: 978-972-8765-22-4

Depósito Legal: 484838/21

Nº de exemplares: 500
Nota Prévia

Com a obra Sociologia da Comunicação: Temas e problemas fundamentais para


compreender os media nas sociedades actuais, da autoria de Paulo M. Barroso,
docente e investigador do Politécnico de Viseu, publica a PV Editora o primeiro
livro da colecção Cadernos Temáticos.

Esta obra, intencionalmente escrita com fins pedagógicos e didácticos, nasceu


da experiência de cerca de vinte anos de docência e estudo do pensamento de
autores fundamentais, desde a Antiguidade aos nossos dias. Quando a Sociologia
não existia ainda como domínio específico do conhecimento científico, pensado-
res clássicos, medievais, modernos e contemporâneos assumiram uma atitude
epistemológica, relativamente à cultura e à sociedade, que os coloca nos primór-
dios do pensamento sociológico.

A comunicação - em toda a sua plenitude enquanto experiência humana social


primordial -, constitui-se como uma das mais enriquecedoras e transformadoras
da humanidade (todos os modos de humanamente ser) e da capacidade de exercer
a liberdade. Cada vez mais mediatizada pela tecnologia a comunicação vem-se
transformando, modificando a sociedade e as relações humanas, em todas as
suas dimensões, as preocupações sociais, as convicções e valores, toda uma mun-
dividência.

Sem pretender esgotar os ‘temas e problemas que os media suscitam nas socieda-
des actuais’, o autor percorre a história do pensamento com espírito analítico, me-
tódico, a que não falta certa inquietude intrínseca ao afã de pensar. Propõe-se
contagiar os seus leitores - os jovens estudantes de ensino superior, por afeição -
, convidando-os a participar no esforço e na aventura que é pensar sobre o pensar,
pensar criticamente a sociedade, a cultura, as relações sociais. Neste esforço vital
realiza-se a abertura ao conhecimento, nele reconhece a PV Editora a sua missão.

Destina-se este livro, também, a todos os que se interessam pelas Ciências Hu-
manas, pela Sociologia da Comunicação em particular, e pretendem alcançar uma
visão compreensiva sobre o impacto dos media nas sociedades e nos processos
humanos e sociais. Seja este um ponto de partida para outras leituras fecundas.

Viseu, Maio de 2021


A PV Editora
Sumário
Introdução....................................................................................................................9
1. Da Sociologia à Sociologia da Comunicação.................................................17
1.1. Precursores da Sociologia como ciência do social ................................25
1.1.1. Heródoto: a prática da viagem-expedição e outras culturas ........25
1.1.2. Platão e a Politeia: o ideal de sociedade e a cidade como alma ....26
1.1.3. Aristóteles e a concepção naturalista da sociedade ......................29
1.1.4. Santo Agostinho e a civitas Dei.........................................................32
1.1.5. Tomás de Aquino e o pensamento cristão ocidental .....................33
1.1.6. Ibn Kaldun e os prolegómenos do social.........................................34
1.1.7. Maquiavel e o pensamento político-social moderno .....................35
1.1.8. Morus e a utopia como sociedade ideal ..........................................36
1.1.9. Hobbes: status naturalis vs. status civilis .........................................39
1.1.10. Locke: passagem para o estado civil num quadro jurídico e moral ..42
1.1.11. Montesquieu: os fenómenos sociais e as leis .................................44
1.1.12. Rousseau e o contratualismo da vontade geral .............................45
1.2. Fundadores da Sociologia........................................................................48
1.2.1. Comte: a abordagem científica para uma “sociologia positiva”...48
1.2.2. Marx: a abordagem material e prática para o estudo das sociedades .53
1.2.3. Durkheim: Sociologia como estudo dos factores de coesão social..58
1.2.4. Weber: Sociologia compreensiva......................................................61
1.3. Ramificações da Sociologia: a Sociologia da Comunicação .................62
1.4. Questões para revisão e reflexão.............................................................65
2. A comunicação.................................................................................................67
2.1. Origem e evolução da comunicação humana........................................74
2.2. Antropologia da comunicação.................................................................78
2.3. Paul Watzlawick: pragmática da comunicação humana ......................81
2.4. Questões para revisão e reflexão ............................................................85
3. Sociedade, cultura e comunicação de massas ..............................................87
3.1. Conceito de “massa” .................................................................................88
3.2. Sociedade e sociedades de massas ..........................................................91
3.3. Cultura........................................................................................................95
3.3.1. Cultura e símbolos...........................................................................103
3.3.2. Valores e normas da cultura...........................................................110
3.3.3. Cultura popular e cultura de massas ............................................115
3.4. Comunicação de massas ........................................................................119
3.4.1. Funções da comunicação de massas .............................................122
3.4.2. Três funções sociais dos media segundo Lazarsfeld ....................123
3.4.3. Características dos actuais discursos de massas .........................123
3.4.4. Imperialismo mediático ..................................................................126
3.5. Questões para revisão e reflexão ..........................................................130
4. McLuhan: efeitos dos media e próteses técnicas ........................................133
4.1. Três culturas ou galáxias de evolução....................................................135
4.2. Aldeia global..............................................................................................138
4.3. O meio é a mensagem.............................................................................140
4.4. Questões para revisão e reflexão ...........................................................142
5. McQuail: o papel e os efeitos dos media nas sociedades ...........................143
5.1. Os media como instituição social...........................................................144
5.2. Factores de ascensão dos media.............................................................145
5.3. Perspectivas sobre o papel dos media na sociedade............................146
5.3.1. Perspectiva da sociedade de massas .............................................147
5.3.2. Perspectiva do marxismo................................................................147
5.3.3. Perspectiva do funcionalismo estrutural ......................................148
5.3.4. Perspectiva da economia política crítica.......................................149
5.3.5. Perspectiva da difusão e desenvolvimento...................................149
5.3.6. Perspectiva do determinismo da tecnologia da comunicação ...150
5.3.7. Perspectiva da sociedade da informação ......................................150
5.4. Efeitos da comunicação de massas.......................................................152
5.4.1. Influência imediata e maciça (1930-1945) ....................................153
5.4.2. Efeitos limitados (1945-1960).........................................................154
5.4.3. Efeitos complexos (1965- )...........................................................155
5.5. Opinião pública e esfera pública...........................................................156
5.5.1. Mecanismos de formação da opinião pública ..............................161
5.5.2. Benjamin Constant: liberdade dos antigos vs. dos modernos....164
5.5.3. Teoria da espiral do silêncio ...........................................................165
5.6. Técnicas de comunicação e influência da opinião ..............................166
5.7. Abordagens/estudos sobre a comunicação..........................................170
5.7.1. A Mass Communication Research: estudo das audiências.............170
5.7.2. A Escola de Frankfurt: crítica à sociedade massificada ...............172
5.7.3. Estudos culturais .............................................................................176
5.8. Questões para revisão e reflexão ..........................................................177
6. Luhmann: a sociedade como sistema de comunicação..............................179
6.1. A improbabilidade da comunicação .....................................................179
6.2. Acção, comunicação e sistemas sociais................................................181
6.3. Questões para revisão e reflexão ..........................................................184
7. Habermas: pragmática universal..................................................................185
7.1. Esfera pública: o público e o privado ...................................................187
7.2. Acção comunicativa vs. acção estratégica ...........................................190
7.3. Questões para revisão e reflexão ..........................................................193
8. Giddens: a globalização do mundo ..............................................................195
8.1. Perspectivas sobre a globalização ........................................................202
8.2. Globalização e comunicação .................................................................204
8.3. Riscos da globalização .........................................................................205
8.4. Globalização vs. tradição .....................................................................208
8.5. Os media e a ideologia .........................................................................211
8.6. Questões para revisão e reflexão ........................................................217
9. Sartori: sociedade do visível..........................................................................219
9.1. Do homo sapiens ao homo videns.........................................................220
9.2. Questões para revisão e reflexão ........................................................223
10. Victoria Camps: sociedade da informação..................................................225
10.1. Mediacracia ...........................................................................................228
10.2. Questões para revisão e reflexão ........................................................232
11. Ramonet: a tirania da comunicação............................................................233
11.1. Do interesse público ao interesse do público....................................234
11.2. Questões para revisão e reflexão ........................................................235
12. Modernidade, pós-modernidade e media ...................................................237
12.1. Nietzsche e a transição modernidade/pós-modernidade ................245
12.2. Heidegger: a questão da tecnologia na modernidade......................253
12.3. Baudrillard: o fim do social .................................................................255
12.3.1. Imagens, simulacros e hiper-realidade ......................................257
12.3.2. Comunicação instantânea ...........................................................270
12.4. Debord: a sociedade do espectáculo e o culto da imagem ..............275
12.5. Foucault: sociedades da vigilância e do controlo..............................285
12.6. Charles Taylor: a ética da autenticidade ............................................299
12.7. Lyotard: a condição humana e o pós-moderno .................................303
12.8. Lipovetsky: da pós-modernidade à hiper-modernidade ..................306
12.8.1. Era do vazio e hiper-modernidade .............................................310
12.8.2. A época do pós-dever ...................................................................313
12.8.3. Cultura-mundo: o triunfo do capitalismo e do individualismo .315
12.8.4. Ecrã global.....................................................................................317
12.8.5. Sociedade paradoxal.....................................................................322
12.9. Vattimo: a sociedade transparente e o fim da modernidade...........326
12.10. Bauman: a modernidade líquida.........................................................331
12.11. Byung-Chul Han: a mediatização digital ...........................................334
12.12. Questões para revisão e reflexão ........................................................337
13. Hiper-realidade: quando o virtual é real .....................................................339
13.1. Contemporaneidade e desrealização..................................................340
13.2. O que é a hiper-realidade?...................................................................345
13.3. O virtual e o problema do que não é verdade ...................................352
13.4. Cibercultura: realidade virtual e realidade aumentada....................354
13.5. Questões para revisão e reflexão ........................................................363
Conclusões ...............................................................................................................365
Referências bibliográficas ......................................................................................367
Sociologia da Comunicação
9

Introdução
“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma
relação social entre pessoas, mediada por imagens.”
(Debord, 2006, p. 14).

As sociedades humanas e as formas de comunicação estão em permanente


inter-relação, dinâmica e evolução. Existe uma dialéctica entre a constituição e
funcionamento das sociedades humanas e a natureza e as formas da comunicação
desde os primórdios da humanidade. Esta assunção justifica per se o interesse
em estudar, compreender, analisar e reflectir criticamente as sociedades como
fundamento para a comunicabilidade e as formas e meios de comunicação como
fundamento para a sociabilidade. Assim é principalmente na actualidade, quando
se verifica uma intensificação da dimensão digital da informação e da comuni-
cação, depois de uma recente mudança de paradigma comunicacional: das tradi-
cionais formas e meios de comunicação para os denominados novos media ou
novas tecnologias de informação e comunicação. O novo paradigma é o da ima-
nência e contingência da comunicação e das relações sociais através da imagem,
como faz referência a epígrafe de Debord nesta introdução. O paradigma define-
se por uma espécie de iconolatria moderna pelo espectacular, que é distractivo
e alienante. As relações sociais e as relações comunicacionais são, por conse-
guinte, paradoxais: invisíveis e visuais, acidentais e globais, online e offline, con-
tíguas (imediatas) e mediadas pelos novos media.
Hoje, com a globalização de todos os domínios (tecnológico, comunicacio-
nal, social, cultural, económico, político, geográfico, etc.) da vida humana, e com
os desenvolvimentos tecnológicos e a complexidade e diversidade dos novos
media e dos seus usos e efeitos nas transformações da vida colectiva e quotidiana,
as inter-relações entre as sociedades humanas e as formas de comunicação ainda
são mais pertinentes e relevantes, constituindo um objecto de estudo de interesse
geral. Conforme refere Niklas Luhmann (2006a, p. 39), em A improbabilidade da
comunicação: “sem comunicação não existem relações humanas nem vida hu-
mana”.1 A comunicação é multiforme e as sociedades são estruturas relacionais
e sistemas de interacções demasiado complexos e abrangentes para serem,
ambas, objecto de estudo unívoco e monodisciplinar.

1
Apesar de Luhmann se referir à tese da improbabilidade da comunicação, esta tese não advoga
que a comunicação seja impossível. A improbabilidade da comunicação é referida como um
problema, porque a improbabilidade da comunicação se tornou imperceptível; tem a ver com os
obstáculos inerentes à comunicação, que é entendida sob a perspectiva da selecção, e às condições
práticas para que a comunicação aconteça. Efectivamente, a comunicação acontece e não podemos
viver sem ela, porque a comunicação é um processo social e imprescindivelmente humano, que
se insere num sistema social.
Paulo M. Barroso
10

Em A sociedade transparente, Gianni Vattimo realça esta ideia de estreita-


mento e de dialéctica entre a sociedade e a comunicação, em que as ciências hu-
manas, onde se insere a Sociologia da Comunicação, procuram compreender as
sociedades que na contemporaneidade se apresentam reconfiguradas em socie-
dades da comunicação:
“A relação entre ciências humanas e sociedade da comunicação – a nossa sociedade
caracterizada pela intensificação da troca de informações e pela tendencial identi-
ficação (televisão) entre acontecimento e notícia – é mais estrita e orgânica do que
geralmente se acredita.” (Vattimo, 1992, p. 19).2

A comunicação é um fenómeno/processo social. A comunicação é multi-


forme, inevitável e natural no ser humano, que é gregário na sua essência e, por
isso, vive em sociedade. O universo da comunicação, especificamente o da comu-
nicação como fenómeno/processo social, é o domínio de estudo deste manual.
Neste sentido, pretende-se, com a elaboração desta obra, facultar uma síntese
das principais perspectivas, componentes e implicações sobre os fluxos de co-
municação nas sociedades contemporâneas. O objectivo é constituir um com-
pêndio de estudo e compreensão do fenómeno e do processo da comunicação e
dos seus efeitos nas sociedades.
Este manual destina-se a todos os que se interessam por conhecer uma
prática (acto e actividade), um fenómeno e um processo tão humano e social, tão
natural e cultural, tão frequente e espontâneo como é a comunicação. Por conse-
guinte, apesar de ser concebido a pensar nas necessidades dos estudantes dos
cursos na área científica da comunicação, não é exclusivo a estes. Este manual é,
precisamente, um compêndio, conforme se referiu, pois tem a pretensão de sin-
tetizar o que de essencial caracteriza as diversas e mais relevantes teorias e pers-
pectivas da comunicação de massas, pois não existe apenas uma teoria, um
modelo ou um sistema de comunicação, mas uma pluralidade de teorias, modelos
e sistemas. O que existe de comum a todos estes é a procura e a apresentação de
uma explicação (hipótese) para o fenómeno da comunicação, satisfazendo a ne-
cessidade em compreender a dual dimensão comunicacional e social do ser hu-
mano. O campo da comunicação é demasiado lato e este manual pretende
colmatar eventuais dificuldades no estudo, assim delimitado, desse campo, cir-
cunscrevendo-o ao campo da comunicação de massas e fornecendo os seus sub-
sídios teóricos fundamentais. Como um compendium,3 faz-se uma compilação ou
resumo do mais indispensável para o estudo das inter-relações entre a comuni-
cação e a sociedade.

2
Todas as traduções de excertos apresentadas, além da própria redacção deste livro, foram
adaptadas para a grafia antes do Acordo Ortográfico de 1990. Mantém-se a grafia de português
do Brasil nos excertos apresentados a partir de edições brasileiras.
3
Precisamente escrito assim, em latim: compendium, poupança, lucro, abreviação, resumo.
Sociologia da Comunicação
11

A comunicação é, acima de tudo, uma prática social. Todavia, é uma prática


teorizável, uma prática que precisa de teoria para ser compreendida. Da mesma
forma que Aristóteles4 concebe a acção de teorizar5 acerca de algum assunto, a
teorização da comunicação (ou dedicação em admirar a comunicação com o pen-
samento) corresponde a retirar algo daquilo que a constitui, da sua realidade
imediata, abstraindo-a e “proceder a um exercício de raciocínio logicamente
orientado” (Polistchuk & Trinta, 2003, p. 17). Uma teoria sobre algum assunto
pressupõe a constituição de um sistema ordenado de ideias que se produzem
com o acto de teorizar/ver (construir raciocínios) sobre esse assunto, formando
uma doutrina que incide sobre a realidade do objecto pensado/observado.
Por conseguinte, a vocação deste compêndio é a de compilar e estruturar
os fundamentos da área disciplinar da Sociologia da Comunicação, designada-
mente os princípios, conceitos, modelos e teorias que caracterizam a comunica-
ção como fenómeno social abrangente. Além da simples exposição de conteúdos,
pretende-se suscitar uma atitude socrática de provocar e dirimir, através da ca-
pacidade crítica e dialéctica, questões, dúvidas, ambivalências, paradoxos e apo-
rias para a interpelação, interpretação e compreensão. Neste sentido, os temas e
problemas abordados são, necessariamente, relativos à comunicação como fenó-
meno/processo social que desencadeia reacções, efeitos, influências na vida co-
lectiva.
São temas abordados de uma forma sucinta, visto que a comunicação, quer
como tema problematizante quer como corpo de conhecimentos alargado, remete
para outras áreas interdisciplinares da Sociologia da Comunicação (ou Sociologia
dos Media), mais específicas no tratamento de alguns assuntos: Filosofia (da Co-
municação), Cibernética, Semiótica (Semiótica da Comunicação e Semiótica So-
cial), Linguística, Antropologia (Antropologia Social, Antropologia Cultural e
Antropologia Visual), Psicologia (da Comunicação), Economia, História, Ciência
Política, Literatura, Estudos Fílmicos, etc., como salienta Denis McQuail (cf. 2003,
p. 12). A comunicação é interdisciplinar; não é uma disciplina.
A complexidade que envolve o estudo da comunicação enquanto fenó-
meno multifacetado de interacção, mais do que a simples transmissão de men-

4
Leia-se do parágrafo 1177a ao 1178b, do livro dez de Ética a Nicómaco, onde Aristóteles refere que
a “felicidade completa” consiste em algumas actividades contemplativas e é a actualização da
virtude suprema, que é, por seu turno, obra do que há de melhor em nós, ou seja, a “mente” (νοῦς,
“intelecto”, “mente”, “razão”). Este é, para Aristóteles, um trabalho teórico, a actividade mais
contínua, agradável, auto-suficiente e tranquila disponível ao ser humano (cf. Aristóteles, 2009a).
5
Do grego theoría, “acção de contemplar atentamente”, “admiração pelo pensamento”, “reflexão”
que permite encontrar e conferir sentidos para aquilo que se pretende compreender, aproximando
o ser humano de Theos, Deus. A palavra grega theoría (théa, “através” + horós, “ver”) significa
olhar através de, pois quem olha é chamado de theorós (espectador). No livro Termos filosóficos
gregos: Um léxico histórico, F. E. Peters (1983, p. 228) confirma este sentido etimológico, referindo
que theoría significa “teorização, especulação, contemplação, a vida contemplativa”.
Paulo M. Barroso
12

sagem,6 dificulta a definição unívoca de “comunicação”. Face a esta complexidade


inerente à comunicação, McQuail, em Teoria da comunicação de massas, considera:
“A comunicação de massas é um tópico entre muitos das ciências sociais e só parte
do campo de investigação mais vasto sobre comunicação humana. Sob o nome de
‘ciência da comunicação’, o termo foi definido por Berger e Chaffee como ciência
que ‘pretende compreender a produção, processamento e efeitos dos sistemas de
símbolos e sinais pelo desenvolvimento de teorias testáveis, com generalizações
adequadas que expliquem fenómenos associados à produção, processamento e efei-
tos. […]
É pouco provável que consigamos encontrar uma única definição do campo que
possa cobrir adequadamente a diversidade dos fenómenos e perspectivas relevan-
tes. É também pouco provável que qualquer ‘ciência da comunicação’ possa ser in-
dependente e auto-suficiente, dadas as origens do estudo da comunicação em
muitas disciplinas e a natureza alargada das suas questões, provenientes dos cam-
pos económico, jurídico, político, ético, bem como da cultura.” (McQuail, 2003, pp.
9-10).

Desde o sentido biológico da comunicação, segundo o qual a comunicação


é uma actividade sensorial e nervosa (importante para a sobrevivência da espé-
cie), passando pela concepção do modelo sistemático e de interacção da comu-
nicação (que envolve uma nova definição de comunicação como participação de
um indivíduo num sistema de interacções que o liga aos outros, no qual é im-
possível não comunicar, pois a comunicação é omnipresente e não comunicar é
já comunicar) até à pluralidade de teorias, modelos e sistemas mais complexos
subjacentes ao estudo da comunicação, pretende-se sublinhar a necessidade e a
pertinência do estudo e da relação entre as sociedades humanas e as formas de
comunicação. É como salienta Lucien Sfez (1994, p. 40), em Crítica da comunicação:
“cada domínio do conhecimento tem a sua própria definição de comunicação,
específica do campo que ela abrange”. Assim, concebemos a comunicação como
sendo muitas coisas distintas, tantas quantas as ciências que estudam a comu-
nicação nos seus âmbitos.
Mas, em Sociologia da Comunicação, os sentidos da comunicação são os
que se estabelecem, de uma maneira difundida, unilateral e massificada, com a
sociedade, com o sistema social que já integra os próprios meios de informação
e comunicação, enquanto instituições com funções e responsabilidades sociais.

6
Transmissão de mensagem que se insere no processo de produção e de recepção da mensagem
que se transmite e que, ainda por cima, produz efeitos nos destinatários. Por conseguinte, a
comunicação como simples transmissão de mensagem já é um processo complexo para ser
estudado e compreendido, dificultando a definição de “comunicação”, quanto mais a comunicação
enquanto fenómeno multifacetado de interacção. Sobre a importância da transmissão na
comunicação, veja-se a Introdução à mediologia, onde Régis Debray chega a designar o actual
período em que vivemos como “o tempo da transmissão”, sendo o assunto da mediologia o
“homem que transmite”, além da própria comunicação que, enquanto processo, já está implicada
no acto e no momento de transmissão (cf. Debray, 2004, pp. 11-16).
Sociologia da Comunicação
13

O estudo da Sociologia da Comunicação é relevante e justifica-se porque, segundo


McQuail (cf. 1994, p. 27), os meios de comunicação de massas (imprensa, rádio e
televisão, sobretudo) assumem uma importância considerável e em crescimento
nas sociedades modernas. McQuail considera que esta visão sobre os meios de
comunicação de massas está largamente difundida e os motivos radicam no facto
de os meios de comunicação suporem:
1. Um recurso de poder, um instrumento potencial de influência, con-
trolo e inovação na sociedade.
2. Uma esfera onde se desenrolam muitos assuntos da vida pública.
3. Uma fonte importante de definições e de imagens da realidade social,
ou seja, um lugar onde se constrói, armazena e se expressa, de uma
maneira mais visível, a cultura e os valores em mudança na sociedade.
4. Uma fonte primária da fama e de posicionamento dos famosos e de
um desempenho eficiente na esfera pública.
5. A origem de um sistema ordenado e público de significados.

Os meios de comunicação de massas constituem uma indústria importante


e em expansão, com implicações evidentes na sociedade. Na mesma posição as-
sumida por McQuail, Mauro Wolf considera, na introdução ao seu livro Teorias
da comunicação:
“[…] os mass media constituem simultaneamente um importantíssimo sector in-
dustrial, um universo simbólico objecto de um consumo maciço, um investimento
tecnológico em contínua expansão, uma experiência individual quotidiana, um ter-
reno de confronto político, um sistema de intervenção cultural e de agregação so-
cial, uma maneira de passar o tempo, etc.” (Wolf, 1992, p. 9).

Assim, este compêndio tem os principais objectivos de:


a) Reconhecer a importância da comunicação nas actuais “sociedades
da informação”, assim denominadas devido à preponderância dos
fluxos e dos meios de informação e comunicação.
b) Estudar, reflectir e compreender as influências dos meios e meca-
nismos de produção, transmissão/difusão e recepção da informação
e da comunicação sobre todas as sociedades, simples ou complexas,
e sobre as quotidianas interacções sociais.
c) Sensibilizar e capacitar para uma atitude crítica sobre as transfor-
mações sociais, tecnológicas e culturais em torno do fenómeno da
comunicação, considerando a recente ou actual mudança de para-
digma comunicacional dos velhos e tradicionais media para os novos
media tecnológicos, principalmente a partir de meados do século XX,7

7
O século XX é justamente considerado, nomeadamente por Adriano Duarte Rodrigues (s.d., p. 17),
como o século da comunicação social.
Paulo M. Barroso
14

quando surge a Sociologia da Comunicação como disciplina específica


e ramo de conhecimento aplicado, depois de um período de expansão
dos meios de comunicação de massas.
d) Fornecer os fundamentos teóricos dos processos sociais de comu-
nicação à luz da sua multiplicidade de formas e meios, apresentando
uma visão sistemática da comunicação como poder de expressão,
representação, influência e persuasão.
e) Enquadrar os estudos da comunicação nas correntes do pensamento
contemporâneo, considerando que a comunicação é multiforme e
que os meios e técnicas de comunicação estão em permanente trans-
formação, tal como a sociedade em que eles assentam.

Tendo em conta as múltiplas abordagens que os temas e problemas sub-


jacentes à comunicação suscitam, permitir-se-ia estabelecer um corpus de estudo
para um processo de ensino e de aprendizagem na disciplina de Sociologia da
Comunicação. Assim, com o título Sociologia da comunicação: Temas e problemas
fundamentais para compreender os media nas sociedades actuais, este compêndio
começa por abordar os primórdios da racionalidade ocidental relacionados com
temas e problemas sociais, na Antiguidade Clássica Grega. Reconhece-se que,
muito antes de se pensar numa ciência do social, transita-se de um pensamento
sobre o social para um pensamento sobre o comunicacional. O compêndio ter-
mina na compreensão das sociedades actuais, caracterizadas pelo domínio dos
novos media, do virtual e da mediação digital.
Na base da abordagem, começa-se por realçar, no capítulo 1, a relevância
das disciplinas de Sociologia, primeiro, e de Sociologia da Comunicação, depois,
enquanto reflexões compreensivas, analíticas e críticas sobre a comunicação em
algumas vertentes: a) a comunicação como fenómeno/processo social e global,
com efeitos; b) a comunicação como troca e partilha de experiências, expressão
de estados de espírito ou simples descrição ou representação do mundo; c) a co-
municação como forma de exercício de poder, forma de dominação, de influência
e persuasão, designadamente a comunicação social e as actividades e técnicas
de comunicação estratégica.
No capítulo 2, evidencia-se a importância da comunicação na história evo-
lutiva da humanidade, enquanto no capítulo 3 estuda-se a relação triádica entre
a sociedade, a cultura e a comunicação assente em efeitos comuns, como o da
massificação, e em interacções inevitáveis, pois não existem sociedades sem co-
municação (nem comunicação sem interacção social) e a comunicação é cultura.
Do capítulo 4 ao capítulo 13, desenvolvem-se abordagens e perspectivas
relevantes e acutilantes sobre a comunicação. Para todos estes capítulos, fazem-
se referências a autores fundamentais, cujas obras e reflexões sobre a comunica-
Sociologia da Comunicação
15

ção são contributos sine qua non para se compreender a complexidade e envol-
vência do fenómeno social, cultural e total da comunicação:
– Marshall McLuhan e os efeitos tecnológicos dos media (capítulo 4).
– Denis McQuail e o papel dos media, enquanto instituição social, nas
sociedades modernas (capítulo 5).
– Niklas Luhmann e a sistémica da comunicação ou a sociedade como
um macrossistema de inter-relações comunicacionais (capítulo 6).
– Jürgen Habermas e a acção social como acção racional e comunica-
cional (capítulo 7).
– Anthony Giddens e a relação inevitável entre os fenómenos sociais
da comunicação e da globalização, ambos implicados no desenvol-
vimento da tecnologia e nas transformações profundas das socieda-
des e culturas à escala mundial (capítulo 8).
– A involução do homo sapiens para homo videns, devido à preponde-
rância da imagem e do ver (o sensível) em detrimento da palavra e
do compreender (o inteligível), segundo Giovanni Sartori (capítulo 9).
– A caracterização de Victoria Camps das sociedades actuais e as suas
relações com os fluxos e meios de informação e com a cidadania no
espaço público (capítulo 10).
– As formas e manifestações de determinadas tiranias exercidas pelos
media, segundo Ignacio Ramonet (capítulo 11).
– A problematização sobre uma época de transição da modernidade
para a pós-modernidade, segundo Friedrich Nietzsche, Martin Hei-
degger, Jean Baudrillard, Guy Debord, Michel Foucault, Charles Tay-
lor, Jean-François Lyotard, Gilles Lipovetsky, Gianni Vattimo, Zygmunt
Bauman e Byung-Chul Han (capítulo 12).
– A conceptualização e problematização das actuais dimensões digitais
e virtuais da comunicação, através da produção específica de ima-
gens geradoras de hiper-realidade, com efeitos nas percepções e sen-
sações e na própria cultura convertida em cibercultura (capítulo 13).

Apresentados o objecto de estudo, os objectivos e a metodologia ou es-


tratégia seguida para a concepção deste livro, pretende-se justificar, com a es-
trutura e os conteúdos de estudo reportados anteriormente, o seguimento de
um fio condutor na abordagem sociológica de temas e problemas considerados
fundamentais para a Sociologia da Comunicação. Para o efeito, não se pode deixar
de começar por abordar os fundamentos da ciência-mãe, a Sociologia, para se
partir, já com as bases da área científica acerca do social, para o estudo e com-
preensão mais dirigidos aos reportados temas e problemas atinentes à actuação,
Paulo M. Barroso
16

aos papéis e funções e aos efeitos/influências da comunicação e dos vários media


(incluindo os media sociais e digitais), dando-se assim sentido ao título desta
obra: Sociologia da comunicação: Temas e problemas fundamentais para compreender
os media nas sociedades actuais.
Sociologia da Comunicação
17

1. Da Sociologia à Sociologia da Comunicação


“A sociologia está agora obrigada a aceitar o digital, sob pena de deixar
de investigar e teorizar faixas inteiras de actividade cultural significativa.”
(Bauman & Lyon, 2013, p. 35).8

A comunicação é constitutiva dos seres humanos. Não existem sociedades


sem comunicação, porque os seres humanos são seres sociais e a comunicação,
enquanto fenómeno antropológico essencial, conforme corrobora Dominique
Wolton (cf. 1999, p. 15), permite o relacionamento social. A comunicação é pró-
pria dos seres humanos numa vertente natural (biológica) e numa vertente cul-
tural (adaptativa ao meio e aos outros seres humanos, com quem se está em
interacção permanente e em relação comunitária). Na vertente natural, a comu-
nicação é inata, própria do ser humano que já nasce com capacidades comunica-
tivas. Na vertente cultural, a comunicação é adaptada, tal como o próprio ser
humano e tudo o que este produz para satisfazer as suas necessidades relativas
e quotidianas. Através da comunicação, os seres humanos relacionam-se e en-
tendem-se entre si e com o mundo que os rodeia.
Enquanto ramo de conhecimento científico e académico, a comunicação
constitui um objecto de estudo peculiar, ou seja, diferente dos parâmetros tradi-
cionais dos outros objectos de estudo circunscritos e específicos das outras ciên-
cias. Para os ramos de conhecimento, ciências ou disciplinas que estudam a
comunicação, esta configura-se como um objecto de estudo abstracto, abrangente
e multiforme. Por conseguinte, a noção de comunicação cobre uma multiplicidade
de sentidos, como afirmam Armand Mattelart e Michèle Mattelart (cf. 1997, p. 7)
ou McQuail (cf. 1994, p. 35). Segundo este último autor, é improvável que uma
“ciência da comunicação” chegue a ser independente e auto-suficiente, dadas as
suas origens em numerosas disciplinas e o amplo âmbito da comunicação.
Os estudos sobre a comunicação, designadamente a comunicação humana,
remontam à Antiguidade Clássica. Na Grécia Antiga, Platão9 e Aristóteles10 preo-
cuparam-se em compreender a comunicação como processo social de influência,
como no caso da aplicação da linguagem retórica.11 Todavia, a comunicação como
objecto de estudo ou campo de estudo privilegiado e aprofundado de determi-

8
Tradução do autor a partir do texto em inglês de Bauman & Lyon: “Sociology is now obliged to
come to terms with the digital, or miss investigating and theorizing whole swathes of significant
cultural activity.”
9
Cf. Crátilo; Górgias; Fedro; O sofista.
10
Cf. Periérmeneias; Retórica; Poética; Política.
11
A comunicação é um processo de influência, pois uma simples troca comunicativa provoca
mudanças. Em A comunicação como processo social, Pio Ricci Bitti e Bruna Zani (1997, pp. 237-239),
por exemplo, salientam esta característica da comunicação, desde a abordagem clássica de
Paulo M. Barroso
18

nadas ciências, mas numa perspectiva multidisciplinar (Fiske, 1993, p. 13), só se


verifica a partir do primeiro quartel do século XX, com a Mass Communication Re-
search, decorrente dos efeitos da comunicação de massas sobre a sociedade. São
precursores neste campo Harold Lasswell, Paul Lazarsfeld ou Marshall McLuhan,
mas também “a obra de Shannon e Weaver, Mathematical theory of communica-
tion”,12 de 1949 (Fiske, 1993, p. 19).
Apesar de a comunicação ter feito parte, desde sempre, do quotidiano do
ser humano, apenas recentemente se atribuiu mais atenção ao seu estudo, de-
vido, principalmente, ao desenvolvimento dos meios de comunicação social, à
multiplicação e ao aprofundamento das relações interpessoais, ao progresso das
novas tecnologias de comunicação e à especialização do objecto de estudo, dei-
xando de ser tão abrangente e abstracto e passando a ser estudado de uma ma-
neira parcelar e interdisciplinar. Ao passar a objecto de estudo sistemático com
a formulação de leis, teorias e modelos, a comunicação e a comunicação de mas-
sas constituem-se como um campo de estudo de uma ciência recente, o conjunto
de áreas disciplinares chamado de Ciências da Comunicação.13
Enquanto estudo multidisciplinar, as Ciências da Comunicação integram
os cruzamentos das disciplinas afins anteriormente mencionadas que, em con-
junto e com interdisciplinaridade, têm como objecto o estudo da comunicação e
a compreensão do fenómeno comunicacional em todas as suas envolvências e
implicações. Compreende-se a tese de McQuail de que é difícil estabelecer uma
linha divisória entre o pensamento sobre os meios de comunicação de massas e
as ciências sociais em geral, na medida em que a relação entre os meios de co-
municação e a sociedade se deve, em primeiro lugar, ao entendimento de que os
media são uma instituição social estabelecida (cf. McQuail, 1994, p. 29).

Aristóteles sobre o uso retórico da comunicação persuasiva até aos estudos contemporâneos de
Harold Lasswell e Paul Lazarsfeld (ambos de 1948) sobre os efeitos e influências da comunicação
de massas.
12
Shannon e Weaver conceberam um modelo de comunicação, o chamado Modelo da Teoria da
Informação, que se tornou numa das principais fontes dos estudos da comunicação. Segundo este
modelo, a comunicação é entendida como transmissão de mensagens. Trata-se de um modelo
processual e básico que concebe a comunicação como simples processo linear universalmente
aplicável. Um contributo útil deste modelo é a identificação de três níveis de problemas no estudo
da comunicação: 1) nível A – problemas técnicos (com que precisão se pode transmitir a
informação?); 2) nível B – problemas semânticos (com que precisão os símbolos transmitidos
transportam o significado pretendido?); 3) nível C – problemas de eficácia (com que eficácia o
significado recebido afecta a conduta da maneira desejada?).
13
Na condição de ciência recente, as Ciências da Comunicação têm acompanhado e estão
“obrigadas” a seguir os recentes desenvolvimentos das tecnologias da informação e da
comunicação, “mais especialmente das tecnologias da Internet e do multimédia, muitas vezes
designadas como os ‘novos media’”, porque, conforme defendem Jean-Pierre Meunier e Daniel
Peraya (cf. 2009, p. 383), “se estas tecnologias suscitaram novos usos e novas práticas,
nomeadamente pedagógicas, sócio e ou ludo-educativas, também suscitaram o desenvolvimento
de novas abordagens teóricas e metodológicas”.
Sociologia da Comunicação
19

Por conseguinte, o estudo da comunicação de massas não é senão um dos


muitos e diversos campos das ciências sociais e, simultaneamente, uma parte do
âmbito geral da investigação sobre a comunicação humana (cf. McQuail, 2003,
p. 9). Sob a designação geral de “Ciências da Comunicação”, Berger e Chaffee
terão procurado descrever um campo científico que visa compreender a produção,
a transmissão, o consumo, os processos de circulação e os efeitos da informação
nas sociedades. Essa informação, inserida em sistemas de signos e em estruturas
de significação, suscita estudos e investigações sobre o fenómeno da comunica-
ção, bem como o desenvolvimento de teorias explicativas e compreensivas que
resultam em generalizações (cf. McQuail, 1994, p. 35). Se a comunicação é um fe-
nómeno social, pressupõe o estudo científico dos comportamentos e das acções
de comunicação, quer do lado da produção, codificação ou emissão (e.g. intenções
e pretensões de comunicação) quer do lado do consumo, descodificação ou re-
cepção (e.g. efeitos e influências de comunicação), que se inserem neste âmbito
imprescindível da vida colectiva.
Importa compreender, antes de mais, o que é a Sociologia da Comunicação
e, para o fazer, é necessário reconhecer o que é a Sociologia e o que é uma ciência.
A Sociologia14 é a ciência que estuda os fenómenos, práticas (pautadas por nor-
mas e valores), comportamentos e relações sociais inseridos numa macroestru-
tura ou sistema de interacções chamado de sociedade.
Num texto de 1813 intitulado “De la physiologie sociale”, Saint-Simon
(1760-1825) refere-se pela primeira vez à ciência do social, ainda sem usar a pa-
lavra “Sociologia”. Saint-Simon adopta a designação “Fisiologia Social”:
“Uma fisiologia social, constituída pelos factos materiais que derivam da observa-
ção directa da sociedade e uma higiene contendo os preceitos aplicáveis a estes
factos, são, portanto, as únicas bases positivas sobre as quais podemos estabelecer
o sistema de organização exigido pelo estado actual da civilização.” (Saint-Simon,
1965, p. 29).15

Num curso sobre o socialismo,16 Durkheim (cf. 2011, p. 62) sublinha o con-
tributo de Saint-Simon na fundação de uma “nova ciência”, a “ciência do homem
e das sociedades”, que mais tarde, em 1839, Comte cunha com a palavra equiva-

14
Do latim socius, socii, “o outro” e “os outros”, e do grego logos, “estudo”.
15
Tradução do autor a partir do texto em francês de Saint-Simon: “Une physiologie sociale,
constituée par les faits matériels qui dérivent de l’observation directe de la société, et une hygiène
renfermant les préceptes applicables à ces faits, sont donc les seules bases positives sur lesquelles
on puisse établir le système d’organisation réclamé par l’état actuel de la civilisation.”
16
Referência a um curso ministrado por Durkheim em Bordéus, entre 1895 e 1896, do qual resultou
a obra Le socialisme: Sa définition – ses débuts – la doctrine saint-simonienne, publicada em 1928
por Marcel Mauss. Este livro, que conta com uma introdução de Mauss, parte da herança de Saint-
Simon e leva Durkheim a definir as condições para o bom funcionamento do corpo social e a
identificar, conceptualizar e perspectivar o desenvolvimento e a afirmação da Sociologia.
Paulo M. Barroso
20

lente de “Sociologia”. Qualquer que seja a designação desta nova ciência, reve-
lam-se progressos científicos no conhecimento de assuntos neste campo do so-
cial.17 Os fenómenos, as práticas, os comportamentos e as relações sociais não
se encontram isolados; existem num dado lugar e acontecem num certo mo-
mento. Portanto, cada sociedade tem os seus fenómenos, práticas, comportamen-
tos e relações sociais e todas as sociedades são dinâmicas, evoluem e
modificam-se, incluindo o que as constitui (fenómenos, práticas, comportamen-
tos e relações).
A Sociologia procura compreender as diversas formas de associação das
pessoas em comunidade e as suas relações sociais em dois níveis principais:
– Relações interpessoais.
– Relações entre as pessoas e o meio social (as instituições sociais).

Todas as relações resultam de formas de associação. À Sociologia interessa


estudar e compreender, por conseguinte:
– As relações sociais.
– As acções, comportamentos e práticas sociais (e.g. usos, costumes).
– As formas de associação.

Conforme se compreende na seguinte entrada da Logos: Enciclopédia luso-


brasileira de filosofia:
“O vocábulo sociologia é da invenção de Augusto Comte e resulta da junção de dois
outros, um latino (socius = associado, aliado) e outro grego ( λόγος = discurso).
Etimologicamente, sociologia será, portanto, a ciência que estuda a associação ou
a aliança dos homens entre si, bem como os comportamentos que adoptam nas
colectividades daí resultantes. As relações, as colectividades e os comportamentos
são os três elementos essenciais da vida social que a Sociologia se propõe estudar.”
(Silva A., 2000, p. 1213).

Este excerto é, todavia, redutor. Considerando que a Sociologia é uma área


de conhecimento abrangente, reduzir o seu objecto de estudo às relações sociais,
às colectividades e aos comportamentos sociais omite muito mais aspectos e ele-
mentos que compõem uma sociedade. Em The study of sociology, Herbert Spencer
(cf. 1873, p. 52) propõe que se parta do princípio geral de que as propriedades
das unidades (das pessoas) determinam a propriedade do agregado (da socie-
dade), de modo a concluir-se que existe uma ciência social que expressa a relação
entre as pessoas e a sociedade. Spencer discute se existe uma ciência social, dadas
as especificidades desta ciência e do seu objecto de estudo (cf. Spencer, 1873, p.

17
A propósito, é neste período que surge a preocupação com a sistematização e compilação do
conhecimento iluminista, resultando a publicação, em 1751, do primeiro de 28 volumes (o último
foi publicado em 1772) da emblemática obra Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des
arts et des métiers, dirigida por Denis Diderot e Jean d’Alembert.
Sociologia da Comunicação
21

73), defendendo a natureza própria dessa ciência social.18 Note-se que o termo
“sociologia” é híbrido, conforme salientam Theodor Adorno e Max Horkheimer:
“A palavra ‘sociologia’ – ciência da sociedade – é uma malformação, metade latina
e metade grega. A arbitrariedade e artificialidade do termo remete ao recente ca-
rácter da disciplina. Esta não se encontra como uma disciplina isolada no tradicio-
nal contexto da ciência. O termo foi criado por Auguste Comte, que é geralmente
considerado o fundador da sociologia. A sua principal obra sociológica, o Curso de
filosofia positiva, apareceu entre 1830 e 1842. A palavra ‘positiva’ fixava assim, com
exactidão, a ênfase que a sociologia tem mantido, desde o início, como ciência em
sentido estrito. É uma filha do positivismo, nasceu da vontade de libertar o conhe-
cimento da fé religiosa e da especulação metafísica.” (Adorno & Horkheimer, 1973,
p. 1).19

Neste excerto, Adorno e Horkheimer salientam a origem pouco ortodoxa


do termo “Sociologia” justificando com o nascimento tardio do assunto e com o
desenquadramento da disciplina entre os ramos do conhecimento científico. To-
davia, enfatizam Comte como o precursor da Sociologia, por um lado, e a atri-
buição de um cariz positivista a esta área de conhecimento ou doutrina da
sociedade. Segundo a International encyclopedia of the social sciences:
“As definições comummente aceites de sociologia concordam que esta é o estudo
científico ou sistemático da sociedade humana. O foco está na compreensão e na
explicação, oscilando entre o indivíduo em interacção social com os grupos às so-
ciedades e aos processos sociais globais. Exclusiva da sociologia é a sua ênfase na
relação recíproca entre indivíduos e sociedades à medida que se influenciam e se
moldam mutuamente.” (Kuipers, 2008, p. 660).20

A Sociologia é, por conseguinte, uma disciplina que surge na primeira me-


tade do século XIX enquanto resposta às rápidas mudanças sociais que se verifi-

18
O interesse de Spencer é o de conceber um conhecimento verdadeiro e rigoroso sobre o social,
centrando-se nas mudanças e transformações sociais que, para este autor, seguem uma linha
determinista de progresso das sociedades.
19
Tradução do autor a partir do texto da edição consultada em inglês de Adorno & Horkheimer:
“The word ‘sociology’ – science of society – is a malformation, half Latin, half Greek. The
arbitrariness and artificiality of the term point to the recent character of the discipline. It cannot
be found as a separate discipline within the traditional edifice of science. The term itself was
originated by Auguste Comte, who is generally regarded as the founder of sociology. His main
sociological work, Cours de philosophie positive, appeared in 1830-1842. The word ‘positive’ puts
precisely that stress which sociology, as a science in the specific sense, has borne ever since. It is
a child of positivism, which has made it its aim to free knowledge from religious belief and
metaphysical speculation.”
20
Tradução do autor a partir do texto da edição original em inglês da International encyclopedia of
the social sciences: “Commonly accepted definitions of sociology agree that it is the scientific or
systematic study of human society. The focus is on understanding and explaining, and ranges
from the individual in social interaction to groups to societies and global social processes. Unique
to sociology is its emphasis upon the reciprocal relationship between individuals and societies
as they influence and shape each other.”
Paulo M. Barroso
22

cavam, i.e. enquanto campo de estudo vocacionado para estudar e compreender


as profundas transformações ocorridas nos séculos XVIII e XIX, tais como:
“[…] a industrialização rápida resultando numa grande e anónima força de traba-
lho com trabalhadores que passam a maior parte do tempo afastados das famílias
e das tradições; urbanização em larga escala em toda a Europa e no mundo indus-
trializado; e uma revolução política de novas ideias (direitos individuais e demo-
cracia), dirigiu a atenção para a natureza das sociedades e a mudança social. O
pensador social francês Auguste Comte (1798-1857) cunhou primeiro o termo so-
ciologia para descrever uma nova maneira de pensar sobre as sociedades como sis-
temas governados por princípios de organização e mudança. Maioritariamente se
considera que Émile Durkheim (1858-1917), o sociólogo francês, fez a maior con-
tribuição para o surgimento da sociologia como disciplina científica social. Ambas
as investigações empíricas – recolha e quantificação de dados sociais – e concep-
ções abstractas da sociedade eram os principais elementos do trabalho de investi-
gação de Durkheim. O trabalho de Durkheim teve um grande e inicial impacto na
disciplina, quantitativa e qualitativamente.” (Kuipers, 2008, p. 660).21

De acordo com a International encyclopedia of the social sciences, nos séculos


XIX e XX, dois outros importantes autores do desenvolvimento e afirmação do
pensamento sociológico surgiram no panorama da Sociologia alemã: Max Weber
e Georg Simmel. Além destes, Karl Marx também teve um grande impacto na So-
ciologia:
“Marx estava preocupado com a opressão que resultou da industrialização e do sis-
tema capitalista ao invés da desordem à qual outros pensadores sociais estavam
reagindo. Ao advogar a revolução como o único meio de acabar com a desigualdade
entre a classe burguesa controladora e a classe proletária explorada criada pela
nova sociedade industrializada, Marx produziu grande parte de seu trabalho en-
quanto exilado de sua Alemanha natal. […] A sua escrita fornece um fio contínuo
de teoria sociológica, fortemente influente na Europa e, por vezes, nos Estados
Unidos. A importância do trabalho de Marx em moldar a sociologia inicial também
reside em como a sociologia alemã se desenvolve em oposição à teoria marxista.”
(Kuipers, 2008, p. 660).22

21
Tradução do autor a partir do texto da edição original em inglês da International encyclopedia of
the social sciences: “[…] rapid industrialization resulting in a large, anonymous workforce with
workers spending most of their time away from families and traditions; large-scale urbanization
throughout Europe and the industrializing world; and a political revolution of new ideas
(individual rights and democracy), directed a spotlight on the nature of societies and social
change. The French social thinker Auguste Comte (1798-1857) first coined the term sociology to
describe a new way of thinking about societies as systems governed by principles of organization
and change. Most agree that Émile Durkheim (1858-1917), the French sociologist, made the largest
contribution to the emergence of sociology as a social scientific discipline. Both empirical
research—collecting and quantifying social data—and abstract conceptions of society were major
elements of Durkheim’s research. Durkheim’s work had a major, early impact on the discipline,
both quantitatively and qualitatively.”
22
Tradução do autor a partir do texto da edição original em inglês da International encyclopedia of
the social sciences: “Marx was concerned with the oppressiveness that resulted from
industrialization and the capitalist system rather than the disorder to which other social thinkers
Sociologia da Comunicação
23

A Sociologia é o estudo sistemático da vida das pessoas em sociedade e as


consequentes inter-relações quer entre as pessoas quer entre estas e as várias
instituições e organismos que constituem a estrutura social. No século XIX, a So-
ciologia surge como ciência a partir de um conjunto de preocupações sociais:
– A compreensão das mudanças mais profundas (reformas sociais) que
ocorrem nas sociedades humanas.
– A observação das condições de vida e de organização social.
– A crítica social à estrutura e ao estado de coisas vigente nas sociedades.
– A recensão das consequências de determinadas circunstâncias de ano-
mia, quando as sociedades se desenvolviam mais rapidamente do que a
própria organização, normalização e regulação da vida social.

Assim, nos começos do século XIX estavam criadas as condições para o


aparecimento de uma nova ciência ou uma nova área de estudo que cobrisse pro-
blemas que não eram propriamente abrangidos por nenhuma outra. Surge a So-
ciologia como uma ciência abrangente e capaz de estudar e compreender as
sociedades e as suas transformações em três níveis fundamentais:
1 ) Nível político: a instabilidade político-social suscita interesse pelo es-
tudo da realidade social; o século XIX é caracterizado por profundas
transformações políticas, inspiradas pela Revolução Francesa de 1789.
2) Nível económico: as alterações do sector primário para o sector secun-
dário com a Revolução Industrial.23
3) Nível social: o aparecimento de novas classes sociais, a do proletariado
e a da burguesia, formação de grandes cidades com grande quantidade
de trabalhadores rurais, cujo êxodo provoca um desequilíbrio entre o
meio urbano e o meio rural e mais assimetrias sociais (as condições
precárias dos trabalhadores favorecem os ideais socialistas).

were reacting. Advocating revolution as the only means to end the inequality between the
controlling bourgeoisie class and the exploited proletariat class created by the new industrialized
society, Marx produced much of his work while in exile from his native Germany […] His writing
provides a continuous strand of sociological theory, heavily influential in Europe and, at times,
in the United States. The importance of Marx’s work in shaping early sociology also lies in how
German sociology developed in opposition to Marxist theory.”
23
Revolução profunda e em larga escala, baseada em mudanças técnicas, económicas e sociais que
primeiramente ocorreram no Reino Unido entre 1760 e 1850, quando a produção passou de uma
base artesanal para uma produção maquinizada e num contexto de fábrica, com divisão do
trabalho e produção em massa (cf. Bruce & Yearley, 2006, p. 150). Com a Revolução Industrial
surgiram as denominadas sociedades industriais, bem como vários problemas sociais que
motivaram o surgimento de uma nova ciência académica (a Sociologia) que os estudasse e
compreendesse.
Paulo M. Barroso
24

De acordo com Aron, em As etapas do pensamento sociológico, a obra de


Weber é considerável e diversa, mas distribuída por quatro categorias: a) estudos
de metodologia, de crítica e de filosofia; b) obras históricas; c) trabalhos de so-
ciologia da religião; d) o tratado de sociologia geral, obra principal cujo título é
Economia e sociedade. Todavia, o mais importante neste ponto é a sua concepção
de Sociologia:
“Sendo a sociologia ciência compreensiva da acção social, a compreensão implica
a captação do sentido que o actor dá ao seu comportamento. Ao passo que Pareto
ajuíza da lógica das acções referindo-se aos conhecimentos do observador, Weber
tem por fim e preocupação compreender o sentido que cada actor dá ao seu próprio
comportamento. A compreensão dos sentidos subjectivos implica uma classificação
dos tipos de comportamento e leva à apreensão da sua estrutura inteligível.” (Aron,
2000, p. 479).

Por conseguinte, a Sociologia é, para Weber, uma ciência que procura com-
preender a acção social e a percepção do sentido dos comportamentos. A Socio-
logia é compreensiva, é a ciência que se ocupa com a compreensão interpretativa
da acção social, procurando fornecer uma explicação a partir das causas dessa
acção e os efeitos prováveis que ela produz. Realça-se nesta perspectiva o objec-
tivo e a preocupação de compreender o sentido que cada actor dá ao seu próprio
comportamento, bem como a apreensão da sua estrutura inteligível, que definem
o âmbito científico da Sociologia. Uma compreensão interpretativa e uma expli-
cação causal apuram a Sociologia. A primeira é própria do método interpretativo
das ciências humanas; a segunda é própria do método causal das ciências natu-
rais. Conclui-se que as ciências sociais não possuem nem um método nem um
objecto de estudo circunscrito e objectivo, pois entre a compreensão e a explica-
ção existem diferenças assinaláveis.
Para que uma área de estudo seja considerada uma ciência, tem de cumprir
determinados requisitos, nomeadamente:
– Possuir um objecto e um campo de estudos específicos, delimitados.
– Ter objectivos epistemológicos, ou seja, visar a produção de conheci-
mento científico que permita compreender o objecto de estudo.
– Seguir uma metodologia que permita alcançar os objectivos e conduzir
aos resultados almejados.
– Ter um corpo sistemático de conhecimentos, permitir a formulação de
leis e teorias explicativas dos fenómenos.
Só cumprindo estes requisitos se obtém um conhecimento científico, que
é verdadeiro e comprovável como tal. É neste sentido que Platão, no diálogo Tee-
teto, fala em crença verdadeira e justificada para definir o saber, ou seja, o co-
nhecimento científico. Para Platão, o saber é opinião verdadeira acompanhada
Sociologia da Comunicação
25

de explicação (cf. Platão, 2010, 201d). A opinião verdadeira (o saber) tem de ser
acompanhada de uma terceira exigência ou requisito ou condição (além da crença
e da verdade), uma explicação racional, de modo a obter o estatuto de conheci-
mento. Considerando que a sociedade é um objecto de estudo abrangente e em
permanente mudança e que é possível estudar cientificamente a vida social das
pessoas, a Sociologia, enquanto ciência, é a obediência aos princípios de autono-
mia/interdisciplinaridade, racionalidade e objectividade.

1.1. Precursores da Sociologia como ciência do social


Partindo de Heródoto, no século V a.C., é possível vislumbrar uma linha
de evolução do pensamento sobre o social.24 Uma linha que começa com viagens
de expedição para estudar e observar outros povos e se desenvolve com a assun-
ção da diversidade de formas de vida e padrões de cultura em comunidade, num
determinado território e numa certa época. São as etapas do pensamento socio-
lógico, como a seguir se enunciam as primeiras:
“Pode considerar-se como primeira etapa do pensamento sociológico a reflexão
sobre a vida em sociedade de forma sistemática e situá-la na Grécia Antiga, lem-
brando Platão (429-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), definindo o primeiro a ‘ci-
dade ideal’ e o segundo o homem como ‘animal político’, ambos se estão a
preocupar com as inter-relações humanas com as colectividades e comportamentos
que, por exemplo, os factores geográficos e demográficos, bem como a divisão do
trabalho, possibilitam. É sem dúvida incipiente o espírito de observação e ainda
hesitante o relativismo e busca de regularidades no agir colectivo, mas é de anotar
a tendência. Do contributo do Cristianismo haverá que anotar como novidade que
‘com os seus mistérios do pecado original, da redenção e da participação efectiva
do homem na sua salvação, afirma a perfectibilidade do homem. Por extensão, esta
ideia de perfectibilidade aplicar-se-á à sociedade: é possível, por meio dos homens,
transformar e melhorar a sociedade, tornando-a conforme com os preceitos divi-
nos’.” (Silva A., 2000, p. 1213).

Deve atender-se às etapas do pensamento sociológico, ou seja, aos ante-


cedentes das reflexões sobre a vida social, designadamente os seguintes precur-
sores.
1.1.1. Heródoto: a prática da viagem-expedição e outras culturas
Na Antiguidade Clássica Grega, Heródoto (485 a.C.-425 a.C.)25 realiza ob-
servações e comparações entre formas de vida de diferentes povos. A Heródoto
é atribuída a produção da primeira narrativa histórica, por um lado, e o cruza-

24
Em rigor, ainda não se pode falar em “pensamento sociológico” propriamente dito, mas em
pensamento e conhecimento sobre a dimensão social em diferentes povos, condições, factores,
territórios e comunidades. Trata-se de um esboço do que viria a ser o pensamento sociológico no
século XIX.
25
Heródoto terá nascido em Halicarnasso, na actual Bodrum, na costa do Mar Egeu, Turquia.
Paulo M. Barroso
26

mento interdisciplinar nos estudos da História, Etnologia, Etnografia, Geografia,


Cronologia e Poesia, por outro lado (cf. Hughes-Warrington, 2002, p. 183). Foi,
portanto, um precursor nessas ciências, produzindo importantes fontes de infor-
mação sobre o mundo antigo. Todavia, Heródoto é mais conhecido por ter inau-
gurado a prática científica da História e da Geografia.26
O único trabalho conhecido de Heródoto, intitulado Histórias, sugere que
ele viajou muito e visitou vários territórios, como o Egipto, Cirene (na actual
Líbia), Babilónia (na antiga Mesopotâmia), Itália, Ucrânia, o Mar Negro e a área
envolvente ao Mar Egeu (cf. Hughes-Warrington, 2002, p. 184). Portanto, foi o
primeiro a pesquisar, observar e registar o passado, os comportamentos humanos
e as formas de vida, bem como a considerá-los problemas de investigação, estudo
e reflexão. Heródoto interessa-se pelo estudo dos costumes e usos de outros
povos, divulgando-os. O objectivo enunciado por Heródoto no início de Histórias
é original: preservar a memória do passado, registando as suas descobertas (fac-
tos e causas de acontecimentos) sobre diferentes povos, da Ásia e da Europa.
Na sua extensa obra descritiva dos diferentes povos, Heródoto apenas
menciona um predecessor, Hecateu de Mileto, que escreveu uma obra sobre geo-
grafia histórica, intitulada Períodos (cf. Hughes-Warrington, 2002, p. 186). Por ter
seguido esta prática de viagem-expedição de conhecimento de outras culturas e
formas de organização da vida colectiva, Heródoto contribui para uma metodo-
logia de observação e de registo de conhecimentos que permite compreender a
dimensão gregária do ser humano. Bem se pode admitir que Heródoto seja o pre-
cursor quer da literatura de viagens quer da prática sociológica com atitude de
observador e preocupações de conhecer e de descrever as leis, as tradições, os
usos e os costumes de povos.

1.1.2. Platão e a Politeia: o ideal de sociedade e a cidade como alma


Platão (428 a.C.-348 a.C.) é um pensador poligráfico e afirma, no que inte-
ressa à Sociologia, a necessidade e defesa dos ideais democráticos alicerçados na
opinião pública e no seu local próprio, a ágora, a polis, a res publica. Em A repú-
blica,27 esboça uma teoria social segregadora, que pode ser vista como uma dife-
rença entre classes. Esta obra é um autêntico tratado de Politeia ou de teoria da
constituição civil. Para Platão, a cidade é como a alma: é um todo composto por
três partes relacionadas conforme uma hierarquia e as suas respectivas funções.

26
Reconheça-se igualmente o contributo de Tucídides (460-400 a.C.) enquanto um dos precursores
da Sociologia. Tucídides foi um historiador grego, nascido em Atenas e autor de História da Guerra
do Peloponeso, na qual demonstra sentido crítico na compreensão dos factos e dos indivíduos do
seu tempo.
27
Obra de 380 a.C., também e mais correctamente conhecida pelo título original, Politeia (Πολιτεία),
por ser um tratado de idealização da organização política das pessoas em sociedade.
Sociologia da Comunicação
27

“A cidade pode considerar-se, também, à semelhança da alma, como um todo com-


posto de três partes, que correspondem às psíquicas. Estas partes são as três classes
sociais que Platão reconhece: o povo – composto de comerciantes, industriais e
agricultores – os vigilantes e os filósofos. Há uma correlação estreita entre estas
classes e as faculdades da alma humana, e, portanto, a cada um destes grupos so-
ciais corresponde de modo eminente cada uma das virtudes.” (Marías, 1987, p. 73).

Cada classe tem as suas virtudes: a temperança das classes produtoras, a


fortaleza dos vigilantes, guardiões ou guerreiros (cuja função é a defesa do Estado
e da ordem social e política) e a sabedoria (phronesis ou sophia)28 dos filósofos
(que são ou devem ser os governantes). Todavia, a virtude mais fundamental é a
justiça, que consiste no equilíbrio e na boa relação dos indivíduos entre si e com
o Estado (a polis grega tradicional como unidade política), bem como das dife-
rentes classes entre si e com a comunidade social. É a justiça que rege e determina
a vida do corpo político, que é a cidade. A educação é gradual e selecciona os ci-
dadãos, determinando a classe a que pertencem, consoante as aptidões e os mé-
ritos. “Em toda a concepção platónica da polis descobre-se uma profunda
subordinação do indivíduo ao interesse da comunidade” (Marías, 1987, p. 73) e
as condições para o progresso da vida colectiva são determinadas pela justiça e
pela organização dos indivíduos na cidade.
Em A república, discute-se sobre a justiça, quer a de um só indivíduo quer
a de toda a cidade. Sócrates e Adimanto debatem sobre a formação de uma cidade
e, por conseguinte, a questão da justiça também se coloca nessa cidade:
“– Ora – disse eu – uma cidade tem a sua origem, segundo creio, no facto de cada
um de nós não ser auto-suficiente, mas sim necessitado de muita coisa. Ou pensas
que uma cidade se funda por qualquer outra razão?
– Por nenhuma outra – respondeu.
– Assim, portanto, um homem toma outro para uma necessidade, e outro ainda
para outra, e, como precisam de muita coisa, reúnem numa só habitação compa-
nheiros e ajudantes. A essa associação pusemos o nome de cidade. Não é assim?
– Absolutamente.
– Mas se uma pessoa participa numa sociedade com outra, se dá ou recebe algo, é
na convicção de que isso é melhor para ela?
– Certamente.
– Ora vamos lá! – disse eu – Fundemos em imaginação uma cidade. Serão, ao que
parece, as nossas necessidades que hão-de fundá-la.
– Como não?
– Mas por certo que a primeira e a maior de todas as necessidades é a obtenção de
alimentos, em ordem a existirmos e a vivermos.
– Inteiramente.
– A segunda é a habitação; a terceira, o vestuário, e coisas no género.” (Platão, 2001,
368e-369d).

28
Os termos gregos phronesis e sophia são distintos, quer na origem etimológica quer nos
respectivos significados: phronesis significa “conhecimento prático”; sophia significa “sabedoria”.
Paulo M. Barroso
28

Platão interpreta a sucessão dos regimes políticos como resultante de


transformações sociais; defende uma harmoniosa organização social moderna
(que apelida de “cidade ideal”); apresenta a ideia de “guardiões do estado” (Platão,
2001, 374d-376c), enquanto elementos da sociedade com a função de garantir a
ordem e a segurança, e atribui o sentido de público (i.e. res publica) à “coisa
comum” nas relações mútuas entre os seres humanos. O público é o conjunto de
seres humanos que possuem coisas em comum.
Por seu turno, na obra Leis, Platão realça a normalização jurídica da socie-
dade, quando refere a necessidade de dividir as terras e as casas em proporções
iguais, bem como o número de cidadãos a admitir em função da extensão do terri-
tório (cf. Platão, 2019, 737e-738a). O número de cidadãos deve obedecer a critérios
de necessidade da cidade, nomeadamente a segurança e a defesa face a ataques ex-
ternos, preservando-se a unidade e o que esta traz: comodidade, quer para a guerra
quer para a paz, quer para os contratos e associações quer para os impostos.
Adorno e Horkheimer reconhecem a abordagem precoce e sociológica que
Platão fez sobre a sociedade do seu tempo:
“Efectivamente é verdade que a filosofia estava originalmente ligada à doutrina
da sociedade. A sociologia não é nada de novo no que diz respeito ao seu objecto
de estudo. Um texto fundamental da filosofia antiga, como é A república de Platão,
era, pela sua intenção, uma doutrina da sociedade correcta e justa, tal como poderia
concebê-la um ateniense com tendências restauradoras, isto é, a justa instituição
da polis, da cidade-estado. O design do estado ideal na obra de Platão é combinado
com uma crítica da sociedade da sua época e das várias teorias sociais dos seus
predecessores. Em grande medida, é o reflexo da sua própria experiência nesta so-
ciedade. De acordo com o testemunho de Platão na sua Sétima Carta, a observação
da licenciosidade da multidão e a luta sem escrúpulos pelo poder daqueles que go-
vernam pela força são incorporados em A república. A condenação de Sócrates levou
Platão à conclusão de que a sociedade, que ele ainda não distingue do estado, não
pode ser reformada por mudanças na constituição, que apenas substituiria o poder
do forte pelo poder do mais forte, mas apenas por uma organização racional de
toda a sociedade.” (Adorno & Horkheimer, 1973, pp. 1-2).29

29
Tradução do autor a partir do texto da edição consultada em inglês de Adorno & Horkheimer:
“Now it is in fact true that philosophy was originally linked to the doctrine of society. Sociology
is nothing new as far as its subject matter is concerned. As basic a text of ancient philosophy as
Plato’s Republic was intended to supply the doctrine of the right and just society, the society
which appeared a possible one to the mind of this Athenian concerned with the restoration of
Athens as a justly ordered polis, a city-state. The design of the ideal state in Plato’s work is
combined with a critique of the society of his time and of the various social theories of his
predecessors. To a large extent it is the reflection of his own experience of this society. According
to Plato’s testimony in his Seventh Epistle, actual observation of the crowd’s licentiousness and
the unscrupulous struggle for power of those who rule by force are incorporated in the Republic.
The condemnation of Socrates led Plato to the conclusion that society, which he does not as yet
distinguish from the state, cannot be reformed by changes in the constitution, which would only
replace the power of the strong by the power of the stronger, but solely by a rational organization
of the entire society.”
Sociologia da Comunicação
29

Segundo Adorno e Horkheimer, Platão demonstra preocupações sobre o


funcionamento da sociedade, em geral, e o governo das cidades (i.e. a adequação
das leis na educação dos cidadãos para o bem), em particular. A fim de se educar
os cidadãos para o bem, é necessário saber o que é o Bem30 e este conhecimento,
conforme advertem Adorno e Horkheimer, é a tarefa da filosofia, que se converte,
deste modo, numa base para a sociedade justa. Todavia, a perspectiva de Platão
sobre a questão social é predominantemente utópica, idealista, enquanto a de
Aristóteles é mais realista, como a seguir se enuncia.

1.1.3. Aristóteles e a concepção naturalista da sociedade


Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) observa e estuda as estruturas sociais e as
instituições políticas. Em Constituição dos atenienses, Aristóteles traça uma breve
história constitucional de Atenas e elabora uma pesquisa descritiva das institui-
ções políticas atenienses no século IV a.C.. Para o efeito, terá lido documentos
dos arquivos e de historiadores atenienses, visto que Aristóteles não era cidadão
de Atenas. Familiarizado com as práticas políticas de Atenas, a sua investigação
produz uma história compacta e bem documentada sobre os aspectos da vida
ateniense (cf. Barnes, 2000, pp. 12-13). Em Constituição dos atenienses, Aristóteles
teoriza sobre o problema político da vida em comunidade, para a qual é neces-
sário um mecanismo independente e equilibrado que estabeleça as regras sociais
e fiscalize o seu cumprimento com base no critério de justiça. Igualmente consi-
dera-se a gestão política desde a tomada do poder até ao modo como são condu-
zidos os interesses comuns, idealmente “mais à maneira de um cidadão que de
um tirano” (Aristóteles, 2009b, p. 41).
No tratado Política, Aristóteles (1965, p. 25) começa por referir que o
Homem é um animal político (“zoon politikon”), i.e. um ser eminentemente social,
gregário.31 Sendo um “animal social”, o ideal de política é a procura da melhor
forma de organização da vida colectiva, a polis. Na Política, Aristóteles demonstra
que “ocupou-se a fundo dos problemas da Sociedade e do Estado” (Marías, 1987,
p. 97). Uma vida colectiva pressupõe o espírito de comunidade: ter coisas ou as-
suntos em comum e um espaço também em comum (Aristóteles, 1965, p. 60). O
fim último da acção social é a concretização de uma ética eudaimónica32 e teleo-

30
Em maiúsculas, porque se trata de um conceito absoluto e abstracto.
31
O zoon politikon de Aristóteles equivale à ideia de animal socialis de Séneca e de São Tomás de
Aquino, por exemplo, conforme reconhece Hannah Arendt em The human condition (título original
em inglês, publicado em 1958 pela The University of Chicago Press), com a reprodução desta
mesma equivalência em latim, no original: homo est naturaliter politicus, id est, socialis (Arendt,
1998, p. 23). De acordo com Arendt, esta substituição do político pelo social sugere que a palavra
“social” seja de origem romana, não tendo equivalente na língua e no pensamento gregos.
32
Este adjectivo, eudaimónica, deriva do termo grego eudaimonía (εὐδαιµονία), que significa
“felicidade”, que, segundo Peters, “é o supremo bem prático para os homens”, conforme também
Paulo M. Barroso
30

lógica: uma política e uma ética como uma só felicidade colectiva e individual
(um bem supremo). Todas estas ideias enunciadas inserem-se no campo de preo-
cupações da Sociologia, apesar do âmbito filosófico dos escritos de Aristóteles.
Na Ética a Nicómaco, Aristóteles refere claramente o que é para si a socie-
dade: é uma espécie de comunidade e toda a comunidade se forma para alcançar
algum bem. A mais importante de todas as sociedades e que inclui todas as ou-
tras (famílias e aldeias) visa o mais importante de todos os bens: a comunidade
política (Aristóteles, 2009a, 1094a).
Em A potência do pensamento, Agamben reconhece que Aristóteles coloca
no início da sua Ética a Nicómaco o problema de uma definição da “obra do
homem [tò érgon toû anthrópou]”, ou seja, a “determinação do bem supremo como
objecto da episteme politike, da ciência política, da qual o tratado sobre a ética é
uma espécie de introdução”, considerando que “este bem supremo é a felicidade”
(cf. Agamben, 2013, p. 315). A intenção de Aristóteles em definir a felicidade leva-
o, de acordo com Agamben, a investigar sobre a “obra do homem”.
A sociedade é, para Aristóteles, physis, natureza. A sociedade não é nómos,
lei ou convenção. Ao defender que a sociedade é natureza e não convenção, Aris-
tóteles afirma que a sociedade é algo inerente ao indivíduo e não simplesmente
algo estatuído (Marías, 1987, p. 98). Todas as actividades e todas as práxis tendem
para um bem, que é um bem último e que confere sentido à vivência social. O
ser da polis é definido pela ideia de que toda a comunidade ou sociedade tende
para um bem.
Aristóteles inaugura uma concepção ou perspectiva natural sobre a socia-
bilidade. Esta concepção aristotélica é, muito depois (nos séculos XVII e XVIII),
confrontada por outra que se afirma como antagónica, a contratualista, conforme
se distinguem sucintamente na seguinte tabela:

 Concepção naturalista Concepção contratualista


da sociedade da sociedade
Autores Aristóteles, Cícero, São Tomás de Aquino, John Locke, Thomas Hobbes, Jean-Jacques
Santo Agostinho, etc. Rousseau, etc.
Tese Defesa da origem natural da sociedade, i.e. Defesa da origem da sociedade no contrato
da tendência natural para o ser humano social, i.e. a tese de que a vida em sociedade
conviver com os outros, de modo a não é natural, mas resulta de um acordo de
satisfazer as suas necessidades e realizar-se vontades.
como pessoa. 

Tabela 1: Comparação das duas perspectivas fundamentais sobre a concepção da sociedade.

Aristóteles (2009a, 1097a) revela na Ética a Nicómaco. Sobre este conceito primordial de eudaimonía,
que deve ser distinguido de hedoné, “prazer”, por ser um “‘fim sobrevindo’, algo que não se pode
querer ou buscar directamente, mas que acompanha a realização plena da sua actividade”, i.e. é
menos profundo o significado de prazer (cf. Marías, 1987, p. 96), consulte-se a obra Termos
filosóficos gregos: Um léxico histórico, de F. E. Peters (1983, p. 85).
Sociologia da Comunicação
31

Enquanto Aristóteles considera natural a sociabilidade, os autores mais


modernos (Hobbes, Locke e Rousseau) advogam o contratualismo social. Para
estes, os indivíduos, antes de viverem em sociedade, viviam num “estado de na-
tureza” (status naturalis), caracterizado por uma vida solitária e errante, sem vín-
culo comunitário e sem leis nem autoridade. A passagem ao “estado de
sociedade” (status civilis), com regras e princípios de convivência colectiva, faz-
se mediante um contrato social, pelo qual os indivíduos prescindem do estado
de natureza, criando uma entidade reguladora, o Estado, e normas que consti-
tuem o Direito, as normas jurídicas, tendo em vista o bem comum.
Já no tratado Periérmeneias,33 Aristóteles salienta logo na primeira página:
“As palavras faladas são símbolos das afecções de alma, e as palavras escritas são
símbolos das palavras faladas. E como a escrita não é igual em toda a parte, também
as palavras faladas não são as mesmas em toda a parte, ainda que as afecções de
alma de que as palavras são signos primeiros, sejam idênticas, tal como são idên-
ticas as coisas de que as afecções referidas são imagens.” (Aristóteles, 1985, 16a).

Segundo esta passagem, Aristóteles conjuga três elementos ou vértices


(conceitos, palavras e coisas) da representação da realidade, algo próximo do
triângulo da significação nas suas várias versões. Aristóteles parte de uma relação
tripartida entre: estados mentais; sons e palavras; e o mundo (coisas e factos).
Seguindo uma perspectiva representacional, Aristóteles caracteriza as palavras
faladas como símbolos da experiência mental e as palavras escritas como os sím-
bolos das palavras faladas, bem como afirma que as experiências mentais, sim-
bolizadas directamente pelos sons, são as mesmas para todos os homens, ao
contrário da escrita (palavras escritas) ou dos sons de fala (palavras faladas). Re-
lacionam-se, nesta perspectiva:
– O pensamento (fonte de informações e a origem intencional da expres-
são).
– A linguagem (instrumento social de expressão ou exteriorização de es-
tados interiores - veículo exteriorizador da expressão intencional).
– A realidade (conjunto de tudo o que é o caso, de tudo o que existe e
acontece, e o referente extralinguístico da expressão que faz com que
esta seja o caso).

Para Aristóteles, a natureza social do homem manifesta-se na linguagem.


O homem é um animal que fala e o falar é uma função social (Marías, 1987, p.

33
Tratado também conhecido por Sobre a interpretação ou Da interpretação, contido no Organon,
conjunto de seis livros (Categorias, Da interpretação, Analíticos anteriores, Analíticos posteriores,
Tópicos e Refutações sofísticas) de Aristóteles sobre lógica (enquanto instrumento da filosofia) e a
arte de filosofar.
Paulo M. Barroso
32

98). O uso e a utilidade da linguagem justificam a necessidade de uma comuni-


dade, onde o homem se insere e pode comunicar com os outros.
1.1.4. Santo Agostinho e a civitas Dei
Santo Agostinho (354-430) foi bispo, escritor, teólogo, filósofo e Doutor da
Igreja Católica, tendo contribuído para o desenvolvimento do Cristianismo no
Ocidente. Santo Agostinho dedicou-se ao estudo de temas fundamentais para o
ser humano e para a sociedade, como o problema do mal, o pecado original e o
significado das escrituras. As suas principais obras são: Confissões; O mestre; A ci-
dade de Deus; A trindade; Sobre a imortalidade da alma; Contra os académicos; Sobre
o livre-arbítrio. Santo Agostinho analisou as causas e os efeitos da queda do Im-
pério Romano e pensou sobre a vida em sociedade em A cidade de Deus.34
Segundo Julián Marías (1987, p. 131), “a ideia central de Agostinho é que
a história humana inteira é uma luta entre dois reinos, o de Deus e o do Mundo,
entre a civitas Dei e a civitas terrena”. A função do Estado é velar pelos interesses
e assuntos temporais: bem-estar, paz, justiça. Todavia, toda a autoridade do Es-
tado é divina, vem de Deus. Os valores religiosos devem ser promovidos pelo Es-
tado. Por conseguinte, o Estado deve estar impregnado de princípios cristãos
(Marías, 1987, p. 131).
Em A cidade de Deus, Santo Agostinho responde às críticas ao Cristianismo,
defendendo-o com os valores humanos das civilizações antigas, o direito natural,
a legitimidade da autoridade, a ordem social, a liberdade do indivíduo, a natureza
das leis justas e, por conseguinte, as preocupações sobre a definição do melhor
regime político. Assim, no livro dois de A cidade de Deus, Santo Agostinho reco-
nhece os contributos de Platão na idealização de uma sociedade morigerada, na
medida em que aplicou critérios selectivos de integração e participação:
“Não se deverá talvez dar antes a palma ao grego Platão que, quando concebeu a
sociedade como ela devia ser, julgou que, como inimigos da verdade, deviam ser
expulsos da cidade os poetas? Ele, na verdade, não pôde suportar, sem indignação,
as injúrias aos deuses nem quis que os ânimos dos cidadãos fossem manchados e
corrompidos por ficções. Compara agora tu a humanidade de Platão (que afasta da
cidade os poetas para proteger os cidadãos), com a divindade dos deuses que re-
clamam jogos cénicos em sua honra.” (Santo Agostinho, 2006, p. 227).

Depois de se referir, entre outros aspectos, ao carácter salvífico da religião


cristã, Santo Agostinho distingue a sociedade civil (dos ímpios) e a sociedade dos
santos e dos anjos (dos puros):
“Incomparavelmente mais gloriosa é a cidade do Alto, onde a vitória é a verdade,
onde a dignidade é a santidade, onde a paz é a felicidade, onde a vida é a eterni-
dade. Se te envergonhas de teres tais homens na tua sociedade, muito menos terá
ela tais deuses na sua. Se portanto desejas chegar à cidade bem-aventurada, evita
a sociedade dos demónios.

34
No original, em latim, Civitas Dei.
Sociologia da Comunicação
33

É indigno que sejam venerados por gente honesta aqueles que são aplacados por
gente desprezível. Sejam pois afastados da tua piedade pela purificação cristã, tal
qual como os afastou das tuas dignidades a nota do censor.” (Santo Agostinho,
2006, p. 281).

No livro catorze de A cidade de Deus, Santo Agostinho salienta a grande


diferença entre duas sociedades ou cidades, entre a diversidade de povos exis-
tentes no mundo e os seus respectivos usos e costumes:
“E por isso aconteceu que, entre tantos e tão grandes povos espalhados por
toda a Terra, apesar da diversidade dos usos e costumes da imensa variedade
de línguas, armas e vestuário, não se encontram senão dois tipos de sociedades
humanas que nós podemos à vontade, segundo as nossas Escrituras, chamar
as duas Cidades – uma, a dos homens que querem viver segundo a carne, e a
outra, a dos que pretendem seguir o espírito, conseguindo cada uma viver na
paz do seu género quando eles conseguem o que pretendem.” (Santo Agostinho,
2017, p. 1233).

A diferença entre estas duas cidades ou sociedades é radical, porque estas


cidades se opõem. É a diferença entre a cidade do Bem, a cidade de Deus (civitas
Dei), e a cidade mundana (civitas terrena): “duas sociedades de homens das quais
uma está predestinada a reinar eternamente com Deus e a outra a sofrer um su-
plício eterno com o Diabo” (Santo Agostinho, 2017, p. 1323).

1.1.5. Tomás de Aquino e o pensamento cristão ocidental


São Tomás de Aquino (1225-1274) coloca o raciocínio iluminado pela fé à
frente da observação e reflecte metodicamente sobre a realidade social. Conclui que
a forma perfeita de vida das pessoas nas suas relações recíprocas é a comunidade.
Na Summa theologica, por exemplo, Tomás de Aquino realça a importância
do social na vida humana, revelando ideais aristotélicos, como as ideias fundamen-
tais da prossecução de um bem comum e a de que o homem é naturalmente um
ser social:
“Mas um homem é o mestre de um sujeito livre, direccionando-o para seu bem-estar
adequado ou para o bem comum. Tal tipo de mestria teria existido no estado de ino-
cência entre os homens, por duas razões. Primeiro, porque o homem é naturalmente
um ser social, e, assim, no estado de inocência, ele teria levado uma vida social. De-
pois, uma vida social não pode existir entre um número de pessoas, a menos que
sob a presidência de uma pessoa para cuidar do bem comum; pois, enquanto muitos
procuram muitas coisas, um atende apenas a uma.” (Aquinas, 1947, p. 652).35

35
Tradução do autor a partir do texto da edição consultada em inglês de São Tomás de Aquino: “But
a man is the master of a free subject, by directing him either towards his proper welfare, or to
the common good. Such a kind of mastership would have existed in the state of innocence
between man and man, for two reasons. First, because man is naturally a social being, and so in
the state of innocence he would have led a social life. Now a social life cannot exist among a
number of people unless under the presidency of one to look after the common good; for many,
as such, seek many things, whereas one attends only to one.”
Paulo M. Barroso
34

Esta passagem da Summa theologica, que é a magnus opus de Tomás de


Aquino, revela as influências de Aristóteles e, no que é atinente à Sociologia, de-
monstra as preocupações do autor com a dimensão social do ser humano, para
a qual todos devem contribuir com o objectivo de alcançar o bem-estar colec-
tivo.

1.1.6. Ibn Kaldun e os prolegómenos do social


Ibn Kaldun (1332-1406), investigador e pensador árabe,36 debruça-se, na
sua obra Prolegómenos,37 sobre os factores mais significativos da evolução histó-
rica, entre o conjunto diverso de formas onde as pessoas procuram resolver os
seus problemas de subsistência. Esta obra, um exemplo de filosofia da história
ou de sociologia (Hughes-Warrington, 2002, p. 205), introduz a análise e a ciência
do social, formulando teorias sobre a organização, a coesão e o conflito sociais.
Segundo esclarece Mário Santiago de Carvalho, esta obra de Ibn Kaldun, Prolegó-
menos, consiste numa:
“[…] codificação da ‘ciência da civilização’ (para evitarmos cometer o anacronismo
que seria designá-la pelo filologicamente aberrante comteano ‘sociologia’). Dessa
ciência fazem parte a geografia, a economia, as leis culturais e histórico-dialécticas,
estas últimas em parte naturais, em parte transcendentes. Importa saber-se que,
apesar de se tratar de uma mera introdução a uma História Universal, pela sua mo-
numentalidade, tal referida Introdução ou «Prolegómenos» (1374-78) constituem
por si só uma obra independente.” (Carvalho, 2020, p. 133).

Ibn Kaldun considera a existência de relações entre as organizações eco-


nómicas e as estruturas sociais, as formas de vida política e as ideologias. Uma
das suas principais conclusões prende-se com a tese de que os acontecimentos
sociais obedecem a leis, tal como os factos naturais.
Ibn Kaldun demonstra influências da filosofia grega antiga e considera,
por conseguinte, que os seres humanos são naturalmente animais sociais com
instinto social (cf. Fromhertz, 2010, p. 160). Por isso, os seres humanos precisam
de organização social. Deduz-se, deste modo, que Ibn Kaldun adopta um método
de investigação distinto dos outros historiadores, tendo inclusivamente criticado
estes por não darem atenção a diversos aspectos sociais e dimensões da vida hu-
mana, como a demografia, a geografia, a política, a economia, a cultura e as con-
dições materiais que dão forma às civilizações (cf. Hughes-Warrington, 2002, p.
201). Para Ibn Kaldun, todos estes aspectos e dimensões são científicos e permi-
tem compreender melhor as sociedades e as civilizações. Ibn Kaldun contribui,
por conseguinte, para o conhecimento mais integral da natureza e das mudanças
sociais e para o desenvolvimento do pensamento social.

36
Ibn Kaldun nasceu em Tunes, actual capital da Tunísia.
37
Também conhecida como Introdução à história universal.
Sociologia da Comunicação
35

1.1.7. Maquiavel e o pensamento político-social moderno


Nicolau Maquiavel (1469-1527), conhecido pela sua obra O príncipe (1532)38
foi um pioneiro no processo de autonomização e laicização do pensamento polí-
tico (Ferreira, et al., 1995, p. 21). O conturbado contexto histórico, social e político
da península itálica nos finais do século XV e inícios do século XVI também con-
tribui para a perspectiva de Maquiavel sobre o poder político e as suas relações
e representações.
O príncipe, obra que Maquiavel inicialmente chamou De princitatibus,39 ini-
cia-se com uma dedicatória a Lourenço de Médicis. Maquiavel considera-o o
“magnífico”, o modelo de príncipe do Renascimento. O príncipe é a forma de o
autor testemunhar a sua veneração pelo governante, conforme se lê na dedica-
tória. Neste sentido, o título da obra é significativo: o “príncipe” é o principal, o
“primeiro cidadão”, aquele que deve assumir, exercer e expandir o poder político
do Estado duradouramente e que, para isso, tem de seguir um conjunto de com-
portamentos adequados e eficazes. Independentemente dos valores morais ou
religiosos enquanto meios para servir o Estado, tudo justifica o fim último que é
o próprio Estado. Em O príncipe, a intenção de Maquiavel é historizar categorias
atemporais, exemplificadas na Roma Antiga e na Florença de então, que se tor-
nam o campo de testes para a observação do governo bom ou corrupto, tal como
as categorias da virtude e do vício, que não são incompatíveis.
A obra O príncipe revela uma nova forma de fazer política, a denominada
Real politik, contendo temas de interesse para a Sociologia: as formas de comu-
nicação ideal entre governantes e governados; o reconhecimento da importância
da opinião pública (considerada maleável, sensível à força e fácil de enganar)
para o exercício do poder político; as condições que fazem um bom cidadão; a
necessidade da moral e da lei, como criações da sociedade, contra os apetites
pessoais; as estratégias para se chegar e se manter no poder político, como pos-
suir a astúcia da raposa e a ferocidade do leão, etc.
Segundo esta visão realista da política, o que justifica o Estado é a capaci-
dade dos que têm mais “virtú” (o que pertence à acção humana consciente) para

38
A obra foi escrita em 1513, mas apenas publicada post mortem em 1532. A época em que viveu
Maquiavel foi determinante para a elaboração de O príncipe. A Itália do Renascimento estava
dividida em pequenos estados (e.g. Florença, Milão, Veneza, Nápoles), governados de forma
despótica, nem sempre com tradição dinástica ou direito legítimo sobre o poder. O clima
generalizado era de instabilidade permanente, confrontos, intrigas e desconfianças propícias à
perfídia, astúcia e acção cínica e fulminante contra os adversários políticos. As cidades envolviam-
se entre si, mas também com outros países (e.g. Espanha, Inglaterra e França) já constituídos
como nações unificadas. Nas disputas pelo poder, cada cidade tentou proteger-se como podia,
exercendo influências sobre as outras. Neste contexto, O príncipe e o seu autor representam, por
um lado, a expressão de uma época, por outro, o apelo à unidade nacional.
39
Tradução do latim: Sobre os principados (ou Acerca dos principados).
Paulo M. Barroso
36

conquistar e manter o poder, fazendo face à fortuna (o que pertence à necessi-


dade natural e não pode ser conhecido e predeterminado).40
Em O príncipe, Maquiavel relata formas pérfidas e astutas de governo e de
subjugação das massas populares, através do exercício ardiloso do poder polí-
tico:
– “[…] as injúrias se devem fazer todas de uma vez a fim de que, sabo-
reando-se menos, ofendam menos: os benefícios devem ser feitos
pouco a pouco, a fim de que sejam melhor saboreados” (Maquiavel,
2009, p. 44).
– “[…] os homens hesitam menos em ofender um que se faça amar do
que um que se faça temer” (Maquiavel, 2009, p. 74).
– “[…] aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar”
(Maquiavel, 2009, p. 78).
– “Todos vêem o que parecemos, poucos sentem o que somos” (Maquia-
vel, 2009, p. 79).
– “[…] nas acções de todos os homens, e mormente dos príncipes, aí
onde não há tribunal para reclamar, apenas se atende ao resultado”41
(Maquiavel, 2009, p. 79).

Maquiavel preocupa-se com a natureza humana e a relação com o Estado.


Um dos principais problemas da vida em sociedade é a relação das pessoas com
o poder político, ou seja, a relação entre governantes e o poder, tendo este sido
desenvolvido, de uma maneira precoce e original, por Maquiavel.

1.1.8. Morus e a utopia como sociedade ideal


Tomás Morus (1478-1535) confunde-se com a obra magistral e original que
publicou em 1516, A utopia.42 O título da obra de Morus é demonstrativo da pro-

40
A “virtú” é uma característica importante que um príncipe deve possuir e engloba astúcia, força,
estabilidade e vigor. Para Maquiavel, a “virtú” representa um conjunto indeterminado de
qualidades e competências que, adquiridas e exercidas pelo príncipe, servem para este se
relacionar eficazmente com a sorte e, se considerar necessário, para governar e realizar grandes
feitos. A “virtú” é “virilidade”: as pessoas com “virtú” são caracterizadas pela capacidade de impor
a sua vontade em situações adversas ou difíceis, combinando o carácter com força e cálculo.
41
Esta frase é, por vezes, entendida como a sugerir que os fins justificam os meios. Todavia, este
entendimento frequentemente atribuído a Maquiavel não é indubitável, considerando-se que este
autor nunca terá afirmado isso. Maquiavel simplesmente afirma que o resultado (os fins) importa
quando nenhum outro meio independente existe para estabelecer uma decisão, ou seja, quando
“não há tribunal para reclamar”, i.e. ao qual apelar.
42
Obra com os títulos originais e completos em latim, De optimo reipublicae statu deque nova insula
Utopia, e em inglês, On the best state of a commonwealth and on the new island of utopia, ou seja, o
Sociologia da Comunicação
37

posta de representação da sociedade perfeita por parte do autor. Tão perfeita que
não existe, pois é uma utopia.43 Considerado humanista e Santo da Igreja Católica,
Morus critica, nesta obra, as condições sociais de Inglaterra no século XVI. A uto-
pia explora a possibilidade de projectos sociais alternativos. Esta obra narra, por-
tanto, uma utopia que é uma alternativa para a realidade, sobre a qual o próprio
autor reconhece não ter esperança que seja implementada, segundo Paul Ricoeur
(1991, p. 309). A utopia é imaginação selectiva e, por isso, é também incongruente
com a realidade. Por definição, as utopias não são realistas, mas fornecem uma
forma de pensamento experimental para examinar como seria a sociedade se se-
guíssemos as regras e os valores propostos (cf. Bruce & Yearley, 2006, p. 312).
Este é o lado pejorativo do conceito de utopia.
Por seu turno, um lado positivo pode ser identificado na faculdade de uma
utopia servir para cumprir uma função importante: explorar o possível e o me-
lhor. Fá-lo colocando em questão o que presentemente existe. A intenção de uma
utopia é suscitar a mudança social, alterar a ordem presente, melhorar a relação
de governação, sugerindo formas ideais. Conforme se lê nesta passagem de A
utopia:
“De facto, nadar no meio de delícias, saciar-se de volúpias no meio das dores e la-
mentações de um povo inteiro, não é conservar um reino, é manter uma prisão.
O médico que apenas sabe curar as doenças dos clientes comunicando-lhes outras
mais graves ainda, é considerado ignorante e imbecil; confessai, portanto, vós que
sabeis governar tirando aos cidadãos a subsistência e as comodidades da vida, que
sois indignos e incapazes de governar homens livres. A não ser assim, corrigi a
vossa ignorância, o vosso orgulho e a vossa preguiça; é isso que leva ao ódio e ao
desprezo pelo soberano. Vivei em conformidade com a justiça, fazei corresponder
as vossas despesas aos vossos proventos, dominai a torrente do vício, criai insti-
tuições benéficas que, prevendo o mal o façam abortar no germe, em vez de criar
suplícios contra desgraçados que uma legislação absurda e bárbara leva ao crime
e à morte.
Não ressusciteis leis já carunchosas, caídas em desuso e no esquecimento, criando
assim aos vossos súbditos dificuldades e motivos de errar. Não eleveis nunca o cas-

título desta obra em português seria “Sobre o melhor estado de uma comunidade e sobre a nova
ilha da utopia” (tradução do autor).
43
“Utopia” é um termo grego (composto por ou, “não” + tópos, “lugar”) que significa “lugar
nenhum”. O termo utopia refere-se, na obra ficcional de Morus, a uma ilha do Novo Mundo, uma
sociedade perfeita que, por ser perfeita, é utópica. Não se deve confundir o termo utopia com o
termo eutopia, “lugar feliz ou afortunado”, apesar de Morus referir que estes dois géneros de
lugares não estão afastados (Morus, 2016, p. 57). A obra A utopia, de Morus, que é sobre um lugar
que não existe, cunhou a palavra “utopia”, segundo Paul Ricoeur (cf. 1991, p. 269). A obra de
Morus é, para Ricoeur (1991, p. 273), um exemplo da afinidade que existe entre o método histórico
e o género literário. Por conseguinte, o significado de “utopia”, principalmente o significado
sociológico, deve corresponder ao entendimento original de Morus de “lugar nenhum”,
respeitando também quem criou o conceito e quem fez a sua paradoxal descrição de utopia como
um lugar que existe em nenhum lugar real, i.e. “uma cidade fantasma; um rio sem água; um
príncipe sem povo, etc.” (Ricoeur, 1991, p. 16).
Paulo M. Barroso
38

tigo de uma falta a um juro que o juiz consideraria excessivo e vergonhoso entre
simples particulares. Deveis ter sempre ante os olhos a bela maneira de ver dos
Macários.
Nessa nação vizinha da utopia, no dia em que o rei toma posse do seu cargo, oferece
sacrifícios à divindade, e compromete-se com um juramento sagrado a nunca ter
nos seus cofres mais de mil libras de ouro ou a soma em prata de valor equivalente.
Este costume foi introduzido por um príncipe que tinha maior empenho em traba-
lhar pela prosperidade do Estado do que em acumular milhões.” (Morus, 2016, pp.
56-57).

Desta passagem se conclui que uma pessoa que desfruta de uma vida de
luxo, enquanto todas as outras à sua volta estão em dificuldades e se lamentam,
dificilmente pode ser chamada de rei. Pelo contrário, essa pessoa é mais como
um carcereiro. Conforme a metáfora usada em A utopia, essa pessoa é um médico
muito mau que não cura ninguém de uma doença sem causar outra. Esta passa-
gem é importante para a reflexão sobre a dimensão social do indivíduo e as exi-
gências na constituição e funcionamento de qualquer sociedade, bem como os
atributos que os governantes devem possuir para melhor conduzirem os destinos
da comunidade. Acerca deste último ponto, Morus refere que um rei que não
pode suprimir o crime sem diminuir os padrões de vida deve admitir que não
sabe como governar indivíduos em liberdade, pelo que devia começar por supri-
mir um dos seus vícios: o seu orgulho ou a sua preguiça. Estas são as falhas mais
susceptíveis de fazer um rei odiado ou desprezado. Enquanto governante e so-
berano, um tal rei deve viver com os seus próprios recursos, adaptar as suas des-
pesas aos seus rendimentos, prevenir o crime através de uma boa administração
em vez de permitir que ele se desenvolva e depois começar a puni-lo.
Sem utopias, uma sociedade não teria funções e estaria “morta”, pois não
teria mais projectos, ambições e objectivos colectivos. Em A utopia de Morus, re-
conhece-se a importância da felicidade colectiva, apesar do carácter idealizado e
ficcional da “sociedade perfeita”:
“A natureza que nos inspira a caridade pelos nossos irmãos não nos ordena sermos
cruéis e impiedosos para nós próprios.
Eis o que leva os utopianos a afirmar que uma vida deve ser honestamente agra-
dável, isto é, que o prazer é o fim de todas as nossas acções; que tal é a vontade da
natureza, e que, obedecer a essa vontade, é ser virtuoso.
A natureza, dizem ainda, leva todos os homens a ajudarem-se mutuamente e a
compartilharem do alegre festim da vida. Este preceito é razoável e justo. Não há
indivíduo, por mais altamente colocado que se considere acima do género humano,
que suponha que a Providência deva ocupar-se dele apenas. A natureza deu a
mesma forma a todos, a todos aquece com o mesmo calor e a todos abrasa no
mesmo amor: o que ela reprova é que se aumente o bem-estar próprio agravando
a desgraça alheia.” (Morus, 2016, p. 105).

Nesta passagem de A utopia, compreende-se que temos um dever para


connosco mesmo e também para com o outro. Segundo a nossa natureza, deve-
mos ser gentis com os outros e usufruir a vida (ter prazer) e sermos virtuosos.
Sociologia da Comunicação
39

Esta passagem de A utopia fundamenta a natureza social das relações humanas


e a procura de um bem colectivo, como defende Aristóteles a eudaimonía, que
são os prazeres da vida. Estes prazeres, concebidos como virtudes, só podem ser
alcançados colectivamente. Segundo este excerto, o indivíduo tem um dever con-
sigo mesmo: ser gentil com os seus semelhantes. Quem dita esse dever é a natu-
reza. Esse dever promove a harmonia social e o bem-estar colectivo. Esta
passagem demonstra a perspectiva sociológica de A utopia, uma espécie de preo-
cupação ou receita de Morus para o ideal de estado social.
A obra A utopia de Morus assemelha-se à A cidade de Deus, de Santo Agos-
tinho, pois ambas as obras partilham, por um lado, a convicção de que nenhuma
sociedade humana é capaz de ser perfeita, por outro lado, a explicitação de como
os cidadãos devem relacionar-se e comportar-se de uma maneira regrada, i.e. a
natureza das relações sociais. Morus começa A utopia referindo-se às discrepân-
cias na arte da governação e evoca Platão, com quem se identifica (cf. Morus,
2016, p. 63), para quem um estado feliz da sociedade nunca será alcançado se os
filósofos (cidadãos mais letrados e esclarecidos sobre os assuntos da governação
e de interesse comum) não forem reis (ou escolhidos como governantes) ou se os
reis não forem filósofos ou estudarem filosofia (cf. Morus, 2016, p. 49).

1.1.9. Hobbes: status naturalis vs. status civilis


Thomas Hobbes (1588-1679) viveu num contexto marcado por conflitos
sociais e políticos e guerras religiosas resultantes da Reforma (Ferreira, et al.,
1995, p. 28). Tal como Maquiavel, Hobbes deve ser compreendido por este en-
quadramento social, político e histórico que condiciona quer a sua vida quer a
sua obra, onde expressa preocupações sobre a ordem, a paz e a segurança social.
“O dilema hobbesiano da ordem social, que se assume como uma das fundações
da teoria social, significa a constatação da dificuldade em estabelecer a sociedade
justa e pacífica a partir de indivíduos isolados, egoístas, sem preocupações morais
e capazes de produzir o maior dano possível aos seus semelhantes.” (Ferreira, et
al., 1995, p. 30).

Para Hobbes, a natureza humana é, em si mesma, egoísta e o indivíduo


insere-se num estado de natureza (status naturalis) que é de guerra permanente
de todos contra todos. No estado de natureza, o ser humano é o lobo do seu se-
melhante.44 Este estado de guerra, por um lado, justifica-se pela luta por bens
escassos de modo a garantir a própria preservação, por outro lado, revela a ne-
cessidade de institucionalização de mecanismos de regulação social, i.e. uma es-

44
No estado de natureza, o homem é o lobo do homem, i.e. Homo homini Deus, et homo homini lupus
(“O homem é um Deus para o homem, e o homem é um lobo para o homem”), conforme a versão
completa de Hobbes na sua epístola de dedicatória no início de Do cidadão (Hobbes, 2002, p. 3).
Paulo M. Barroso
40

pécie de contrato45 colectivo válido e vinculativo (obrigatório) para abdicar do


estado de natureza e passar para o estado de civilidade (status civilis). Com esta
transferência de direitos, o indivíduo impõe voluntariamente a si mesmo a obri-
gação para poder garantir a ordem e a coexistência social.
O contrato ou pacto social hobbesiano é motivado pelo medo dos indiví-
duos perderem a vida: cada um tem interesse em estabelecer o pacto para ga-
rantir, de um modo egoísta, a sua sobrevivência. Apesar de expressas aqui em
traços gerais, as ideias de Hobbes demonstram o fundamental: as preocupações
humanas intemporais e anónimas para a coexistência social em função de arti-
ficialismos que garantam valores indispensáveis para qualquer sociedade: ordem,
tranquilidade, segurança, direitos e garantias.
Na sua obra Leviatã, publicada em 1651, Hobbes apresenta uma justifica-
ção fundamentada para a política autoritária a partir de suposições sobre a na-
tureza humana (cf. Bruce & Yearley, 2006, p. 137). Para Hobbes, o indivíduo vive
em permanente conflito e pauta a sua acção pelo medo da morte e pelo desejo
de poder. Num estado de natureza, sem sociedade (por conseguinte, sem leis,
normas, estado, governo, bens e interesses comuns, etc.), o indivíduo, se conse-
guisse subsistir, viveria com reduzidas expectativas e não podia contar com os
outros; estaria em guerra e instabilidade permanentes, lutando pela sua segu-
rança, que seria uma necessidade das mais fundamentais. No capítulo 13 de Le-
viatã, intitulado “Da condição natural da humanidade relativamente à sua
felicidade e miséria”, Hobbes considera:
“Portanto, tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que todo homem
é inimigo de todo homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens
vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria
força e pela sua própria invenção. Numa tal condição não há lugar para o trabalho,
pois o seu fruto é incerto; consequentemente, não há cultivo da terra, nem nave-
gação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há cons-
truções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que
precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do
tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um
medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserá-
vel, sórdida, brutal e curta.” (Hobbes, 2003, p. 109).

O estado de natureza não apresenta nenhuma possibilidade de vida colec-


tiva estável e segura, pelo que a opção sensata e racional é a cedência de poder

45
A ideia de contrato é proposta pelas teorias políticas que vêem o contrato (acordo tácito ou
expresso entre a maioria dos indivíduos) como a origem da sociedade e o fundamento do poder
político. O conjunto das teorias que defendem esta tese do acordo que assinala, assim, o fim do
estado natural e o início do estado social e político é o contratualismo. Enquanto escola, o
contratualismo floresceu na Europa entre o início do século XVII e o fim do século XVIII, tendo
vários representantes ilustres que defenderam, cada um à sua maneira, esta corrente: Hobbes,
Espinosa, Locke, Rousseau, Kant (cf. Bobbio, Matteucci & Pasquino, 1998, p. 272).
Sociologia da Comunicação
41

a uma sociedade civil (uma entidade colectiva, uma instituição ou grupo social,
um estado) com poder soberano e leis, que garante a todos o que todos desejam:
estabilidade, paz e segurança:
“Visto que o fim dessa instituição é a paz e a defesa de todos, e visto que quem
tem direito a um fim tem direito aos meios, pertence de direito a qualquer homem
ou assembleia que detenha a soberania ser juiz tanto dos meios para a paz e a de-
fesa como de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas; e fazer tudo
o que considere necessário ser feito, tanto antecipadamente, para a preservação
da paz e da segurança, mediante a prevenção da discórdia interna e da hostilidade
externa, quanto também, depois de perdidas a paz e a segurança, para a recupera-
ção de ambas.” (Hobbes, 2003, p. 152).

Em troca, esta entidade ou estado exerce um poder de soberania sobre os


indivíduos. Para Hobbes, a ideia de contrato social torna-se, assim, a garantia de
segurança para o indivíduo.
A cedência de poder soberano do indivíduo a uma sociedade civil não deixa
de ser uma espécie de alienação. No contratualismo há uma alienação que é trans-
ferida do âmbito originariamente jurídico (alienatio como cessão de uma proprie-
dade) para o âmbito filosófico e político (Bobbio, Matteucci & Pasquino, 1998, p.
20). Só assim é que se explica o fundamento do Estado e da sociedade política.
Para Hobbes, trata-se de uma cedência do direito de o soberano (cada indivíduo
no status naturalis) se governar a si mesmo e, através do pacto, pertencer ao sta-
tus civilis.
Em 1642, Hobbes publica a obra Do cidadão.46 Esta obra constitui uma
abordagem relevante para o estudo e compreensão do social e para a configura-
ção do que seria a Sociologia, enquanto ciência interessada em compreender os
assuntos e os problemas decorrentes das relações quotidianas entre os cidadãos
na estrutura social e na vida colectiva. Do cidadão é considerada a primeira e
mais genuína obra de Hobbes acerca da sua perspectiva política. Logo no capítulo
1 desta obra, Hobbes aborda a condição e o estado do homem se este não tivesse
uma sociedade civil, que é motivada na sua formação pelo medo mútuo entre os
homens e para a obtenção da desejada paz (Hobbes, 2002, p. 25). É este o bene-
fício final de todas as sociedades. Ao contrário de Aristóteles, Hobbes considera
que o homem não é um animal social por natureza, porque nasce inapto para a
sociedade. Hobbes apresenta uma nota em Do cidadão em que explica esta pers-
pectiva:
“Portanto é manifesto que todos os homens, porque nascem crianças (in infancy),
nascem inaptos para a sociedade. Muitos também (talvez a maior parte), ou por
defeito de suas mentes, ou por falta de serem educados, continuam inaptos por

46
No original em latim De cive. A versão desta obra em inglês só aparece em 1651, com o título
Philosophical rudiments concerning government and society (Tradução do autor: Rudimentos
filosóficos sobre governo e sociedade).
Paulo M. Barroso
42

toda a vida; e no entanto todos eles têm, crianças ou mais velhos, natureza hu-
mana; por conseguinte, o homem é tornado apto para a sociedade não pela natu-
reza, mas pela educação.
Ademais, mesmo que o homem nascesse numa condição tal que o levasse a desejar
a sociedade, disto não se seguiria que já nascesse pronto para nela ingressar: pois
uma coisa é desejar, outra coisa termos capacidade para aquilo que desejamos. E
até mesmo aqueles que, por orgulho, não se dispõem a aceitar as justas condições
sem as quais não pode haver sociedade, apesar disso a desejam.” (Hobbes, 2002,
p. 359).

Segundo Hobbes, o homem vem de um estado de natureza e, por isso, está


inapto para viver em sociedade. Por conseguinte, precisa de educação, de um pro-
cesso de socialização para se ajustar na sociedade. Apesar de nascer numa condi-
ção natural, deseja uma outra condição social. O estado do homem sem sociedade
é um estado de guerra de todos os homens contra todos os homens (Hobbes,
2002, p. 33). A guerra é o oposto ao que todos os homens desejam, a paz. Então,
pelo consentimento, os homens ingressam num estado civil (vida social) para se
ajudarem uns aos outros sem restrições nem coerção (Hobbes, 2002, p. 35).

1.1.10. Locke: passagem para o estado civil num quadro jurídico e moral
O pensamento social de John Locke (1632-1704) é relevante para a com-
preensão do ser humano como ser eminentemente político e social. Ao contrário
de Hobbes, que justificava o pacto com interesses egoístas e psicológicos dos in-
divíduos (e.g. as paixões e o medo), Locke entende a passagem do estado de na-
tureza para o estado civil subordinada a um quadro jurídico e moral (Ferreira, et
al., 1995, p. 36). Para Locke, a organização dos indivíduos numa sociedade civil
deve ser pautada pela necessidade da lei em solucionar interesses divergentes e
em ser reconhecida como factor independente e padrão do bem.
“As leis civis são possibilitadas pela constituição da sociedade política derivada do
pacto, mas devem fundar-se na lei natural. Considerando que a lei natural é mo-
ralmente justa, então a sociedade política mais não é do que uma obrigação colec-
tiva de cumprimento dessa lei. A sociedade política nasce, como em Hobbes, do
abdicar dos direitos naturais por parte dos contratantes e da cedência definitiva
do poder de fazer cumprir a lei da natureza, isto é, punir os semelhantes, o que
anuncia a monopolização estatal dos meios de coerção e de repressão. Simples-
mente, no modelo lockeano, os direitos alienados não são cedidos a um soberano
todo-poderoso, mas a uma comunidade subordinada à lei natural e à lei que ela
própria estabeleceu.” (Ferreira, et al., 1995, p. 36).

Para Locke, o ideal de sociedade não suporta a concentração dos diferentes


poderes, pois estes entrariam em conflito, não cumpririam as respectivas funções
e não permitiriam que a sociedade funcionasse com os seus próprios mecanismos
de regulação. Numa época já considerada moderna, a forma de pensar é avançada
e moldada pela ilustração. Neste contexto de avanço cultural, surge a tese do
Sociologia da Comunicação
43

contrato social a explicar o surgimento das sociedades. Esta tese, seguida, apesar
das diferenças, por Hobbes e Locke, mas também por Montesquieu e Rousseau,
concebe a sociedade como um acordo racional entre os indivíduos, em função
das necessidades ou conveniências destes.
As obras Dois tratados sobre o governo e Carta sobre a tolerância condensam
as preocupações de Locke nestes temas e problemas que não são exclusivos da
Ciência Política; são igualmente da Sociologia. No segundo tratado sobre o go-
verno, intitulado “Um ensaio referente à verdadeira origem, extensão e objetivo
do governo civil”, Locke desenvolve uma teoria positiva do governo, uma hipó-
tese alternativa à tese de que “todos os governos do mundo são produto apenas
da força e da violência, e que os homens vivem juntos apenas segundo as regras
dos animais, em meio aos quais o mais forte leva a melhor” (Locke, 1998, p. 380).
Locke não aceita que os governos sejam apenas o produto da força e da violência
e que os indivíduos vivam em comunidade por serem apenas animais gregários,
obrigados a tal pelos mais fortes, pois estas condições estabelecem, assim, “o
alicerce da desordem, do mal, do tumulto, da sedição e da rebelião interminá-
veis”. Por conseguinte, quem “não queira dar ocasião a que se cogite” nesta tese
ou hipótese, “deve, necessariamente, descobrir outra fonte do governo, outra
origem do poder político e outro modo para designar e conhecer as pessoas que
o possuem” (Locke, 1998, p. 380).
Locke distingue entre governo civil legítimo e ilegítimo. O governo legítimo
é instituído pelo consentimento ou acordo explícito dos governados, que transfe-
rem ao governo o seu direito de exercer a lei da natureza e julgar por si. Esta trans-
ferência é o que suporta o poder do governo, forma uma comunidade política
estável e faz funcionar o sistema de justiça, que é uma função legítima para qual-
quer governo. No segundo tratado sobre o governo, Locke afirma: “Todos os ho-
mens encontram-se naturalmente nesse estado [de natureza] e nele permanecem
até que, por seu próprio consentimento, se tornam membros de alguma sociedade
política” (Locke, 1998, p. 394). A tese de Locke é a de que todo o governo legítimo
se funda em algum género de consentimento, i.e. toda a autoridade política legí-
tima está enraizada no consentimento dos governados (o contrato social).
Com este pressuposto, o governo civil legítimo tem funções fundamentais
a cumprir: preservar os direitos à vida, liberdade, saúde e propriedade dos cida-
dãos governados, por um lado, e processar e punir quem violar os direitos dos
outros, conforme sustenta o segundo tratado de Locke (cf. 1998, p. 385). Para o
efeito, deve haver um mecanismo indispensável que não existia no estado de na-
tureza: um juiz imparcial para avaliar o crime e estabelecer a correspondente pu-
nição. De acordo com o segundo tratado de Locke:
“Evitar esse estado de guerra (no qual não há apelo senão aos céus, e para o qual
pode conduzir a menor das diferenças, se não houver juiz para decidir entre liti-
gantes) é a grande razão pela qual os homens se unem em sociedade e abandonam o
Paulo M. Barroso
44

estado de natureza. Ali onde existe autoridade, um poder sobre a Terra, do qual se
possa obter amparo por meio de apelo, a continuação do estado de guerra se vê
excluída e a controvérsia é decidida por esse poder.” (Locke, 1998, p. 400).

Locke, à semelhança de Hobbes, entende o estado social como uma solução


para o estado de guerra. O estado de natureza ou um governo ilegítimo não ga-
rantem nem podem assumir esta função de uma sociedade política formada por
contrato social.
Em conclusão, a obra de Locke, no geral, manifesta o seu pensamento de-
mocrático avançado na época e ainda moderno, alicerçado na ideia de contrato
social como garantia dos direitos naturais (e.g. à vida, à liberdade, à propriedade,
etc.), por um lado, e contribui, por outro lado, para inspiração das constituições
mais defensoras da liberdade dos cidadãos, da democraticidade do Estado ou da
tolerância religiosa.

1.1.11. Montesquieu: os fenómenos sociais e as leis


Montesquieu (1689-1755) elabora uma construção teórica sobre a vida po-
lítica e social, com base em métodos históricos comparativos. Racionalista, con-
sidera que os fenómenos sociais se regem por leis e têm um princípio de
causalidade: as leis são relações necessárias que derivam da natureza das coisas.
Para Montesquieu, existe uma relação motivada entre as leis de uma sociedade
e a estrutura social:
“As leis e as características de cada sociedade não dependem de um estado de
natureza ou de um padrão universal de natureza humana. Elas são fruto do for-
tuito e do acidental e de diversos factores estruturantes, tal como o clima. Ainda
assim, Montesquieu reafirma que, para lá de toda a diversidade e multiplicidade
de leis e costumes que caracterizam as diferentes sociedades, é possível encontrar
alguns padrões comuns que possibilitam comparações e favorecem as previsões
relativas à evolução futura dessas sociedades.” (Ferreira, et al., 1995, pp. 49-50).

Montesquieu considera a existência de quatro leis fundamentais: a neces-


sidade de paz; a satisfação da fome; a atracção sexual; o desejo de viver em so-
ciedade. Todavia, um contributo relevante de Montesquieu para as formas de
organização social é a separação dos poderes fundamentais (legislativo, executivo
e judicial) em O espírito das leis (1748). Conforme explica Montesquieu, tudo (a
justiça, a autoridade, a constituição, enfim, a sociedade) estaria comprometido
se uma só pessoa ou apenas um grupo de notáveis exercesse estes três poderes.
Nesta obra-prima de Montesquieu também se distinguem três formas de governo
(a monarquia, a república e o despotismo) e abordam-se as relações entre gover-
nantes e governados. Com O espírito das leis, Montesquieu contribui para a dis-
cussão sobre a diversidade e natureza das leis, que diferem de nação para nação,
mas que formam um sistema legal sob o qual a sociedade é regida.
Sociologia da Comunicação
45

Meio século depois, as teses de Montesquieu apresentadas em O espírito


das leis constituíram a base ideológica da Revolução Francesa, o que demonstra
a relevância e modernidade quer do autor quer da obra. As ideias preconizadas
por Montesquieu (e.g. em defesa da liberdade de expressão e da república como
forma ideal de governo) são pertinentes para os estudos de temas e problemas
enquadrados nos campos da Ciência Política e da Sociologia.

1.1.12. Rousseau e o contratualismo da vontade geral


Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), na obra O contrato social,47 apresenta
o contratualismo48 como uma perspectiva de pensamento sobre a sociedade ins-
pirada pelo Iluminismo. No livro um, referente ao pacto social, Rousseau escreve:
“Considero que os homens atingiram aquele ponto em que os obstáculos que pre-
judicam a sua conservação no estado de natureza levam a melhor, pela resistência,
sobre as forças que cada indivíduo pode empregar para se manter neste estado.
Então esse estado primitivo já não pode subsistir e o género humano pereceria se
não modificasse a sua maneira de ser.
Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e
dirigir as que existem, não dispõem de outro meio para se conservar que não seja
o de formarem, por agregação, uma soma de forças que possa levá-los a vencer a
resistência, de as porem em jogo e de fazer que elas actuem concordantemente.
Esta soma de forças só pode nascer da contribuição de vários: mas, dado que a
força e a liberdade de cada homem constituem os primeiros instrumentos de con-
servação, como é que ele os fará actuar sem se prejudicar e sem negligenciar os
cuidados que deve a si próprio? Esta dificuldade, encarada dentro do tema que
trato, pode enunciar-se nestes termos:
‘Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum
a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não
obedeça, contudo, senão a si mesmo e permaneça tão livre como antes.’ É este o
problema fundamental de que o contrato social dá a solução.” (Rousseau, 1981, p.
21).

Mais adiante no livro um de O contrato social, Rousseau conclui que o pacto


social, enquanto convenção formal, compromisso expresso ou contrato tácito
que regula os direitos e deveres de um povo e a subjacente modalidade de go-
verno, submete-se a condições para se assumir como um contrato social:
“Portanto, para que o pacto social não seja um formulário vão, contém tacitamente
este compromisso, que por si só pode dar força aos outros: que quem quer que re-
cuse obedecer à vontade geral a isso será coagido por todo o corpo: o que significa
apenas que será forçado a ser livre, visto que é essa a condição que, ao dar cada in-
divíduo à pátria, o livra de qualquer dependência pessoal; condição que faz o arti-
fício e o jogo da máquina política e que por si só torna legítimos os compromissos
civis, os quais, sem isto, seriam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos.”
(Rousseau, 1981, p. 25).

47
Originalmente publicada em 1762.
48
Cf. nota 45.
Paulo M. Barroso
46

Segundo Rousseau, o contratualismo ou aceitação de um contrato social


resume-se à substituição de uma liberdade natural, assente num direito ilimitado
sobre o que deseja e pode alcançar, por uma liberdade civil, que garante o direito
de propriedade. Existe apenas uma lei que exige um consentimento e compro-
misso unânimes. Este é o denominado pacto social, a associação civil enquanto
aceitação voluntária, pois ninguém pode sujeitá-lo sem consentimento:
“Reduzamos todo este balanço a termos fáceis de comparar. O que o homem perde
pelo contrato social é a sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que o
tenta e que pode alcançar; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo
o que possui. Para não haver enganos sobre estas compensações, é preciso distin-
guir a liberdade natural, que só tem por fronteiras as forças do indivíduo, da liber-
dade civil, que está limitada pela vontade geral, e a posse, que é apenas o efeito da
força ou o direito do primeiro ocupante, da propriedade, que apenas se pode fundar
num título positivo.
Para além do que foi dito, poderíamos acrescentar à aquisição do estado civil a
liberdade moral, que é a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si,
pois o impulso apenas do apetite é escravatura e a obediência à lei que o próprio
prescreveu é liberdade. Mas creio que já falei demasiado neste ponto, e o sentido
filosófico da palavra liberdade não faz parte do meu tema.” (Rousseau, 1981, p. 26).

Os antecedentes do que hoje conhecemos como a “opinião pública” tam-


bém se devem a Rousseau, que viveu num contexto histórico e social onde foram
preconizados ideais de democracia directa e pressupostos contratualistas de go-
vernação. Rousseau propõe a teoria da soberania popular (ou “vontade geral”),
segundo a qual a soberania popular é o povo submetido à vontade geral (é o
povo quem deve deter o poder político).
No início do livro dois, Rousseau aborda a inalienabilidade da soberania,
descrevendo a “vontade geral”:
“A primeira e mais importante consequência dos princípios anteriormente estabe-
lecidos é que só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a
finalidade da sua instituição, que é o bem comum: pois, se foi a oposição dos inte-
resses particulares que tornou necessário estabelecer as sociedades, foi a concor-
dância desses mesmos interesses que tornou isso possível. É o que nesses diferentes
interesses há de comum que forma os laços sociais, e, se não houvesse qualquer
ponto comum sobre o qual todos os interesses estivessem de acordo, não seria pos-
sível a nenhuma sociedade existir. Pois é unicamente na base desse interesse
comum que a sociedade deve ser governada.” (Rousseau, 1981, p. 30).

Este conceito de “vontade geral” representa o interesse público (cf. Tra-


quina, 2007, pp. 29-30), inestimável para compreender a relação social e política
entre os media, a opinião pública e a esfera pública.
O conceito de “vontade geral” de Rousseau é relevante para a Ciência Po-
lítica e para a Sociologia, quer por ser inovador quer por ainda hoje contribuir
para cimentar os ideais democráticos de um moderno Estado de Direito. Com
esta expressão, Rousseau realça, em O contrato social, a vontade colectiva que
Sociologia da Comunicação
47

visa o interesse comum, que emana do povo e que se expressa através da lei,
pois é votada directamente pelo povo reunido em assembleia. Assim, a vontade
geral é garantida e não limita a liberdade do cidadão. Todos os cidadãos partici-
pam na vontade geral e, por conseguinte, são “soberanos”, i.e. são governados,
mas livres, obedecendo à lei para a qual contribuíram (Bobbio, Matteucci & Pas-
quino, 1998, p. 1298). Obedecer à vontade geral é obedecer à lei legítima da so-
ciedade politicamente organizada, à vontade autêntica e ao desejo de justiça.49
Segundo Rousseau, todos os homens nascem livres e a liberdade faz parte
da natureza do homem. Os problemas decorrem dos males que a sociedade cria
(e que não existem no estado selvagem). Assim se compreende que a opinião pú-
blica seja um conceito do liberalismo e racionalismo modernos (dos finais do sé-
culo XVIII, em França). Para Rousseau, os direitos e obrigações sociais
correspondem à moralidade e esta não é natural; é uma construção social. No
estado de natureza não existe moral; o indivíduo é amoral (não é nem bom nem
mau). Neste estado, não existem diferenças entre os indivíduos, porque não exis-
tem escalas de valor nem modelo ou padrões.
O homem nasce bom e a sociedade corrompe-o? Ou o homem nasce mau
e a sociedade é que o normaliza? Sobre esta questão, Rousseau defende a boa
natureza humana (que é um ideal iluminista), ao contrário de Hobbes, para quem
o ser humano, no estado de natureza, é o lobo do seu semelhante (Homo homini
lupus). Mas Rousseau responde com a “teoria do bom selvagem”: por natureza,
o ser humano é bom, nasce livre, mas comporta-se com maldade e esta advém
da sociedade (que impõem servidão, privilegiando as elites em detrimento dos
mais fracos e criando desigualdades.50 Rousseau defende que os direitos das pes-
soas foram ameaçados e destruídos pela civilização. O ser humano nasce livre,
mas deixa-se contaminar pela sociedade, tornando-se infeliz. Para voltar a ser
feliz, seria preciso um regresso à Natureza, à simplicidade primitiva, onde seriam
escassas as necessidades e diminutas as preocupações. Como este regresso é im-
possível, é preciso que se concretize um contrato social: as pessoas e os respec-
tivos haveres colocam-se sob o controlo da sociedade. Para Rousseau, a natureza
humana é boa, mas a sociedade corrompe-a. Por isso, a vida social orienta-se
mais pelos sentimentos do que pela razão.

49
Aceitar pertencer, de um modo livre, a um contrato social e obedecer à vontade geral é uma forma
de alienação, porque o indivíduo toma a iniciativa da cedência positiva de poder que institui a
vontade geral (cf. Bobbio, Matteucci & Pasquino, 1998, p. 20).
50
O indivíduo, para Rousseau, estaria numa sociedade que o normaliza, dada a impossibilidade de
ser livre no estado de natureza, ao contrário da perspectiva de Marx que, segundo Freud, entende
que o indivíduo nasce bom e a sociedade é que o torna mau. Em O mal-estar na civilização, Freud
refere: “O comunismo acredita ter encontrado o caminho para nos livrar do mal. O homem é
inequivocamente bom e quer bem ao próximo, mas a instituição da propriedade privada
corrompeu a sua natureza” (Freud, 2008, p. 67).
Paulo M. Barroso
48

1.2. Fundadores da Sociologia


Depois destes doze autores que figuram como antecedentes referenciais
para os fundamentos, temáticas e problemas de que se ocupa a Sociologia, surgi-
ram os considerados quatro fundadores da Sociologia propriamente dita, i.e. au-
tores que contribuíram para a apresentação, aceitação e afirmação da Sociologia
enquanto ciência e campo sistemático de conhecimentos e estudos da realidade
social. Esses autores são Auguste Comte, Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber.
Os fundadores da Sociologia conceberam-na, inicialmente, como estudo
do conjunto das leis fundamentais próprias dos fenómenos sociais, tendo a preo-
cupação em descortinar as leis da constituição e evolução das sociedades (Comte
e Marx); as regularidades históricas (Weber); e as relações funcionais entre fenó-
menos sociais (Durkheim).
A Sociologia surge como uma iniciativa organizada de estudo sobre as mu-
danças sociais do final do século XIX, quando se tentava compreender a transição
das sociedades tradicionais para uma nova ordem social, i.e. moderna, mais ur-
bana, massificada, industrial, laica e democrática, de economia de mercado com-
petitivo e liberal.

1.2.1. Comte: a abordagem científica para uma “sociologia positiva”


Auguste Comte (1798-1857) tem uma obra vasta, da qual se destacam Sis-
tema de filosofia positiva (1824); Curso de filosofia positiva (1830-1842); Discurso
sobre o espírito positivo (1844); Sistema de política positiva (1851). A principal preo-
cupação de Comte é a afirmação e sistematização da Sociologia como ciência na
base de uma corrente que fundou, o positivismo. O positivismo51 é a ênfase dos
valores científicos e critérios factuais no estudo da vida social e a recusa de toda
a legitimidade da metafísica.
No início do processo de afirmação da Sociologia, enquanto ciência mais
indicada para estudar e compreender determinados aspectos da vida colectiva,
esta área de estudo enfrenta, essencialmente, três questões fundamentais rela-
tivas às transformações sociais resultantes da Revolução Industrial:
– A identificação das causas das transformações sociais.
– A indicação das características da sociedade moderna (massificação das
formas de vida, dos consumos, da cultura, etc.).
– A reflexão sobre o que fazer face aos problemas sociais advindos com
as transformações na sociedade.

51
O conceito de “positivismo” deriva do verbo positare, que em latim quer dizer “pôr”, “colocar”,
tendo o particípio passado positum, que significa “posto”, “colocado”. Segundo o positivismo, a
realidade é o que está posto ou colocado diante de nós; o que é positivo é o certo, o real, o que
não admite dúvida, o que se apoia em factos e na experiência.
Sociologia da Comunicação
49

No Curso de filosofia positiva, Comte apresenta pela primeira vez o termo


“física social” para designar esta nova área de estudo que pretende fundar e en-
quadrar no ramo geral das ciências. Comte entende por “física social” a ciência
que tem por objecto próprio o estudo dos fenómenos sociais, considerados com
o mesmo espírito que os fenómenos astronómicos, químicos e fisiológicos, i.e.
submetidos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta é o objectivo especial das
suas pesquisas. O espírito dessa ciência consiste, sobretudo, em ver, no estudo
aprofundado do passado, a verdadeira explicação do presente e a manifestação
geral do futuro.
“As concepções, que tentarei apresentar a respeito do estudo dos fenômenos sociais
e de que espero fazer com que este discurso já deixe entrever o germe, não pode-
riam pretender dar imediatamente à física social o mesmo grau de perfeição que
possuem os ramos anteriores da filosofia natural, o que seria evidentemente qui-
mérico, porquanto estas já apresentam entre elas, a esse propósito, extremas desi-
gualdades, aliás, inevitáveis. Mas serão destinadas a imprimir a essa última classe
de nossos conhecimentos o caráter positivo que todas as outras já tomaram. Se
essa condição for uma vez realmente preenchida, o sistema filosófico dos modernos
estará fundado, enfim, em seu conjunto, pois nenhum fenômeno observável poderia
evidentemente deixar de entrar numa das cinco grandes categorias, desde já esta-
belecidas: fenômenos astronômicos, físicos, químicos, fisiológicos e sociais. […]
Posto que a fundação da física social completa o sistema das ciências naturais,
torna-se possível e mesmo necessário resumir os diversos conhecimentos adquiri-
dos, que atingiram, então, um estado fixo e homogêneo, a fim de coordená-los,
apresentando-os como diferentes ramos dum tronco único, ao invés de continuar
considerando-os apenas como vários corpos isolados. Para esse fim, antes de pro-
ceder ao estudo dos fenômenos sociais, considerarei sucessivamente, na ordem en-
ciclopédica anunciada mais acima, as diferentes ciências positivas já formadas.”
(Comte, 1978, pp. 8-10).

Comte aplica o método científico no estudo da sociedade. Assim, substitui


o termo “física social” pela designação de “sociologia” em 1839. Por isso, contri-
bui para a construção de uma ciência social total e unitária. Comte atribui à So-
ciologia um carácter científico e considera que todas as ciências estão
hierarquizadas (Marías, 1987, p. 341). No seu quadro de classificação das ciências,
coloca a Física e a Matemática (as mais positivas e específicas) no topo do triân-
gulo e a Sociologia (a mais abstracta e abrangente) na base. A Sociologia é con-
siderada por Comte como a ciência mais complexa e mais importante no
triângulo das ciências, porque permite a compreensão, previsão e controlo do
pensamento humano.
Em 1822, Comte defende a ideia de que o espírito e as sociedades humanas
avançam através de fases sucessivas de desenvolvimento e explicação de tudo o
que existe. Para Comte, a sociedade é como um organismo colectivo (DeFleur &
Ball-Rokeach, 1993, p. 166). Este pressuposto leva-o a estabelecer a Lei dos Três
Estados (Gane, 2006, pp. 24-27). Segundo o Curso de filosofia positiva de Comte:
Paulo M. Barroso
50

“Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana em suas di-


versas esferas de atividade, desde seu primeiro vôo mais simples até nossos dias,
creio ter descoberto uma grande lei fundamental, a que se sujeita por uma neces-
sidade invariável, e que me parece poder ser solidamente estabelecida, quer na
base de provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organização, quer
na base de verificações históricas resultantes dum exame atento do passado. Essa
lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos
conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado
teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo.
Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente,
em cada uma de suas investigações, três métodos de filosofar, cujo caráter é es-
sencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto: primeiro, o método teoló-
gico, em seguida, o método metafísico, finalmente, o método positivo. Daí três
sortes de filosofia, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenô-
menos, que se excluem mutuamente: a primeira é o ponto de partida necessário
da inteligência humana; a terceira, seu estado fixo e definitivo; a segunda, unica-
mente destinada a servir de transição.” (Comte, 1978, pp. 3-4).

A seguinte tabela-síntese caracteriza cada um desses três estados propos-


tos por Comte e extensivo à organização e funcionamento das sociedades:

Estado teológico Estado metafísico Estado positivo


(ou fictício) (ou abstracto) (ou científico)
Baseado em explicações Substituição da divindade por Centralizado no relativo,
transcendentais (agentes entidades metafísicas, ou seja, a afastando-se de todas as
sobrenaturais), sintetizando explicação transcendente pela concepções ou todos os
tudo num Deus único, como explicação imanente, sendo o conceitos absolutos.
propõe o catolicismo. panteísmo o apogeu deste
estado. Domínio da ciência.
Domínio da crença na origem
sobrenatural do direito. Domínio da razão e da natureza. Só tem valor o que é
experimental.
O poder encontra-se nos Predomínio do conhecimento
sacerdotes e militares. filosófico e, em especial, da O papel da ciência é determinar
 metafísica. as leis que explicam a
 ocorrência de todos os
fenómenos observáveis.
Tabela 2: Os três estados possíveis para as sociedades, segundo Comte.

Segundo Comte, estes três estados são incompatíveis entre si e tendem a


suplantar-se. Historicamente, a insuficiência dos estados teológico e metafísico
conduz as sociedades ao estado positivo.
Comte apresenta os fundamentos da Ciência Social com base na observa-
ção, experimentação, comparação e pesquisa histórica. Afirma que a caracterís-
tica fundamental da Sociologia é considerar que todos os fenómenos sociais estão
sujeitos às leis da natureza, devendo ser reduzidos ao menor número possível.
Ao fundar o positivismo, Comte cria um sistema doutrinário que sustenta
que a única ou a mais elevada forma de conhecimento é a descrição de fenóme-
nos sensoriais como factos científicos.
Sociologia da Comunicação
51

“Em seu sentido amplo (filosófico), o positivismo está relacionado a um forte sen-
timento antimetafísico que postula que as formas de conhecimento não científicas
(ou que não são passíveis de comprovação empírica) são destituídas de significado.
Em um sentido restrito (sociológico), o positivismo significa uma determinada ma-
neira de entender o uso do método científico na sociologia: trata-se da noção de
que a sociologia deve adotar os mesmos métodos das ciências da natureza.” (Sell,
2009, p. 29).

O positivismo define-se primeiro pelo princípio do conhecimento a partir


do observável. O pensamento só pode atingir relações e leis. A interrogação sobre
os fins e sobre a essência oculta das coisas (a metafísica) não é mais que ilusão
religiosa. O critério de verdade objectiva só pode ser o critério da experiência
sensível.
O positivismo sociológico é fiel ao conjunto de princípios epistemológicos
que postulam um tratamento matemático e lógico dos factos e a prova empírica
como fontes exclusivas de uma sociologia científica.
“Comte procurou criar uma ciência da sociedade que pudesse explicar as leis do
mundo social, à imagem das ciências naturais que explicavam como funcionava o
mundo físico. Embora reconhecesse que cada disciplina científica tem o seu próprio
objecto de análise, Comte acreditava que todas partilham uma lógica comum e um
método científico, o que visa revelar leis universais. Tal como a descoberta das leis
do mundo natural nos permite controlar e prever os acontecimentos à nossa volta,
também desvendar as leis que governam a sociedade humana nos pode ajudar a
configurar o nosso destino e a melhorar o bem-estar da humanidade. Comte acre-
ditava que a sociedade se submete a leis invariáveis, de um modo muito semelhante
ao que sucede no mundo físico. Comte via a Sociologia como uma ciência positiva.
Acreditava que a disciplina devia aplicar ao estudo da sociedade os mesmos méto-
dos científicos e rigorosos que a Física ou a Química usam para estudar o mundo
físico. O positivismo defende que a ciência deve preocupar-se apenas com factos
observáveis que ressaltam directamente da experiência. Com base em cuidadosas
observações sensoriais, podemos inferir as leis que explicam a relação existente
entre os fenómenos observados. Compreendendo o relacionamento causal entre
acontecimentos, os cientistas podem então prever o modo como futuros aconteci-
mentos poderão ocorrer. A abordagem positivista da Sociologia acredita na produ-
ção de conhecimento acerca da sociedade com base em provas empíricas retiradas
da observação, da comparação e da experimentação.” (Giddens, 2008, pp. 7-8).

Então, qual é a importância do positivismo na afirmação da Sociologia


como ciência? A importância do positivismo é determinante na afirmação da So-
ciologia como ciência, i.e. como ciência positiva, segundo a terminologia de
Comte. Sociologia positiva significa a Sociologia apetrechada pelo método da
ciência, passando de um campo de conhecimentos subjectivos, abstractos e ge-
rais para um campo de conhecimentos agora considerado positivo: objectivo,
concreto e específico das relações sociais ou da ciência da sociedade. A introdução
do positivismo na Sociologia tornou esta uma ciência mais factual, empírica e
demonstrável, tal como as ciências tradicionais.
Paulo M. Barroso
52

Adorno e Horkheimer afirmam, com base no Curso de filosofia positiva de


Comte:
“A sociologia positiva, no sentido de Comte, considerava como sua tarefa o reco-
nhecimento das leis naturais, estas então ainda concebidas como ‘imutáveis’. O
seu objectivo é a ‘precisão’ e não a verdade absoluta ou a actualização de uma so-
ciedade justa. ‘Em todos os momentos’, evita ‘conscienciosamente toda a explora-
ção inútil de uma natureza interna inacessível ou as modalidades essenciais na
produção de quaisquer fenómenos’. E os seus instrumentos consistem apenas na
‘observação pura, a experimentação no seu verdadeiro sentido e, finalmente, o mé-
todo comparativo’. Explicita e dogmaticamente pressupõe ‘que o movimento social
está necessariamente sujeito à lei natural invariável, em vez de ser governado por
este ou aquele poder da vontade’. A sociedade passa a ser meramente um objecto
de observação, não de admiração ou de condenação. Uma doutrina deve ser esta-
belecida, que ‘não tenha outra ambição intelectual senão descobrir as verdadeiras
leis da natureza’ e que ‘seja suficientemente concebida racionalmente, para que
durante o curso de todo o seu desenvolvimento activo ainda possa permanecer
completamente coerente com os seus princípios’, elevando a critério próprio a au-
sência interna de contradição. A teoria e a prática são claramente separadas, já
que ‘todas as misturas ou quaisquer ligações de teoria e prática tendem a colocar
igualmente ambas em perigo, porque inibe o âmbito total da primeira - a teoria -
e permite que a última vacile para frente e para trás sem orientação. Na verdade,
temos de admitir que, por causa da sua complexidade superior, os fenómenos so-
ciais exigem uma distância intelectual maior do que qualquer outro objecto cien-
tífico, entre as concepções especulativas, por mais positivas que sejam, e a sua
realização prática última. A nova filosofia social deve, portanto, proteger-se cuida-
dosamente dessa tendência muito comum hoje em dia, que a induziria a intervir
activamente nos movimentos políticos reais; estes devem, acima de tudo, perma-
necer um objecto permanente de observação minuciosa’. Pelo postulado da socio-
logia de Comte, ‘sempre subordinar as visões científicas aos factos, pois as
primeiras se destinam apenas a averiguar as verdadeiras interconexões destes’, a
ciência está comprometida com um carácter fundamentalmente retrospectivo.”
(Adorno & Horkheimer, 1973, p. 4).52

52
Tradução do autor a partir do texto da edição consultada em inglês de Adorno & Horkheimer:
“Positive sociology, in Comte’s sense, saw as its task the recognition of natural laws, then still
conceived as ‘unchanging’. Its goal is ‘precision’ and not absolute truth or the actualization of a
just society. ‘At all times’ it avoids ‘conscientiously every useless exploration of an inaccessible
inner nature or the essential modalities in the generation of any phenomena’. And as its means
it employs exclusively ‘pure observation, the experiment in the true sense, and finally, the
comparative method’. It explicitly and quite dogmatically presupposes ‘that the social movement
necessarily is subject to unchanging natural law, instead of being governed by this or that power
of volition’. Society becomes purely an object of observation, that is neither to be admired nor
condemned. A doctrine is to be established, which ‘has no other intellectual ambition than to
discover the true laws of nature’ and which ‘is sufficiently rationally thought out, that during
the course of its entire active development it can still remain completely true to its own principles’
thus raising immanent freedom from contradiction as its criterion. Theory and practice are
sharply separated, as ‘all intermixture or any links of theory and practice tend to endanger both
equally, because it inhibits the full scope of the former – theory – and lets the latter vacillate
back and forth without guidance. Indeed, one must admit, that because of their greater
complexity the social phenomena require a greater intellectual distance, than is the case for any
Sociologia da Comunicação
53

O que Adorno e Horkheimer sublinham neste excerto é o seguimento de


leis científicas (estáveis, consolidadas, imutáveis) por parte da Sociologia. Este
seguimento é importante, pois é como um caminho (um método53) a seguir para
o conhecimento que advém, que também se sustenta na firmeza, objectividade
e estabilidade.

1.2.2. Marx: a abordagem material e prática para o estudo das sociedades


Karl Marx (1818-1883) é um autor que contribui de um modo diferente
para a afirmação da Sociologia como ciência. Enquanto Comte e Durkheim con-
tribuem em termos epistemológicos e metodológicos, respectivamente, Marx
contribui em termos práticos, i.e. parte da realidade concreta, observa-a e inter-
preta-a para compreender a situação do indivíduo na sociedade, considerando
as condições de vida materiais e efectivas (cf. Hughes-Warrington, 2002, p. 248).
Todavia, Foucault (2002, p. 7) pergunta em A verdade e as formas jurídicas:
“como se puderam formar domínios de saber a partir de práticas sociais?”. Para
Foucault, trata-se de um “marxismo académico” que consiste em procurar de que
maneira as condições económicas de existência podem encontrar na consciência
dos sujeitos o seu reflexo e expressão. Essa tendência é, para Foucault, um defeito
grave, porque supõe que o sujeito humano, o sujeito de conhecimento, as próprias
formas do conhecimento são de certo modo dadas prévia e definitivamente, e que
as condições económicas, sociais e políticas da existência não fazem mais do que
depositar-se ou imprimir-se neste sujeito definitivamente dado. Segundo Foucault
(2002, p. 8), “as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que
não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas
também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de co-
nhecimento.” O entendimento de Foucault está mais próximo do de Nietzsche do
que o de Marx, pois considera que o conhecimento foi inventado, não tem origem;
entre o conhecimento e o mundo a conhecer existe uma grande diferença quanto
entre conhecimento e natureza humana (cf. Foucault, 2002, pp. 16-18).

other scientific object, between the speculative conceptions, no matter how positive these might
be, and their ultimate practical realization. The new social philosophy must thus carefully protect
itself from that tendency, only too general today, which would induce it to intervene actively in
actual political movements; these must above all remain a permanent object of thorough
observation for it’. By the postulate of Comtean sociology ‘to always subordinate scientific views
to the facts, for the former are only intended to ascertain the real interconnections of these’,
science is committed to a fundamentally retrospective character.”
53
A palavra “método” significa “caminho a seguir”, pois deriva do termo grego methodos, que é
composto por meta (“ao longo”, “através de”, “por meio”) e hodos (“caminho”). O método é,
portanto, uma condição sine qua non para formar e sustentar um corpo de conhecimentos
científico; é um processo racional para chegar a uma meta (obter um dado resultado
preestabelecido ou alguma coisa) de modo regular, sequencial, ordenado, explícito e possível de
proceder (ou seja, seguindo um caminho).
Paulo M. Barroso
54

Marx preocupa-se em explicar as mudanças sociais causadas pela Revolu-


ção Industrial e as relações entre os problemas económicos e as instituições so-
ciais, apresentando uma concepção materialista da história: a mudança social é
instigada por influências económicas (não pelas ideias e valores).
Para Marx, é importante entender as instituições sociais, as leis e a morali-
dade de uma sociedade, bem como as suas mudanças. Para isso, é necessário com-
preender a natureza das forças produtivas e as relações de produção. Ao estudá-las,
Marx assegura que as sociedades atravessam vários e fundamentais modos de
produção: formas ou estágios de organização económica, definidos por uma forma
característica de relação de produção: o modo comunitário primitivo, o modo an-
tigo, o feudalismo e o capitalismo (cf. Hughes-Warrington, 2002, p. 249). Neste
âmbito compreensivo das dinâmicas sociais e económicas, a investigação de Marx
faz coincidir os objectos de estudo e de interesse da História e da Sociologia.
Marx refere a luta de classes como explicativa do desenvolvimento histó-
rico. A praxis revolucionária é o convite para a mobilização social, para se fazer
alguma coisa de modo a inverter o status quo; é uma espécie de sublevação do
proletariado, a actividade de transformação das circunstâncias. Em Capitalismo
e moderna teoria social, Anthony Giddens sustenta:
“A tentativa de abolição de um tal estado de coisas, através do recurso à crítica fi-
losófica, é vã, uma vez que essa atitude se limita a preservar o desfasamento actual
entre as ideias e a realidade. A denúncia intelectual das contradições não chega
para lhes pôr cobro. É necessário passar à execução ‘de tarefas, cuja solução admite
um único meio – a prática (praxis).” (Giddens, 2000a, p. 35).

Marx usa termos peculiares para compreender o estado assimétrico e ma-


terialista das sociedades, referindo-se ao fetichismo da mercadoria e à alienação
social. Marx explora convenientemente o conceito de “alienação”.54 Em O capital,
obra publicada em 1867, Marx considera que a alienação do operário significa
não apenas que o seu trabalho se torna um objecto, uma existência exterior, mas
também que existe fora dele, independentemente do operário, estranho a este e
torna-se um poder autónomo em relação a ele e até que a sua vida se lhe opõe,
hostil e estranha. Segundo O capital de Marx:

54
O termo “alienação” deriva do latim alius, “outro”, “estranho”, “estar alheio a si próprio”,
“arroubamento de espírito”, i.e. estar privado, inconsciente de si e das suas condições, estar fora
de si ou ser outro, no sentido da teoria económica e social de Marx. A alienação também se
manifesta no indivíduo numa outra modalidade enquanto auto-alienação, processo em que o
indivíduo se deixa abstrair das condições reais, segundo Marx e Engels em A ideologia alemã (cf.
Marx & Engels, 2007, p. 74). Nesta obra, A ideologia alemã, Marx & Engels perguntam: “Como se
dá que, no interior dessa autonomização dos interesses pessoais em interesses de classe, o
comportamento pessoal do indivíduo tenha de se coisificar, se alienar, e que, ao mesmo tempo,
ele subsista sem ele, como poder independente dele, produzido pelo intercâmbio, que ele se
transforme em relações sociais, numa série de poderes que o determinam, subordinam e que, por
isso, aparecem na representação como poderes ‘sagrados’?” (cf. Marx & Engels, 2007, p. 240).
Sociologia da Comunicação
55

“Mas o que a princípio foi ponto de partida torna-se depois, graças à simples re-
produção, resultado constantemente renovado. Por um lado, o processo de produ-
ção não cessa de transformar a riqueza material em capital e meios de fruição para
o capitalista; por outro lado, o operário sai dele como para lá entrou: fonte pessoal
de riqueza, despida dos seus próprios meios de realização. O seu trabalho, já alie-
nado, feito propriedade do capitalista e incorporado no capital, mesmo antes de
começar o processo, não pode, evidentemente, realizar-se durante o processo, a
não ser em produtos que fogem da sua mão. A produção capitalista, sendo ao
mesmo tempo consumo da força de trabalho pelo capitalista, transforma sem ces-
sar o produto do assalariado, não só em mercadoria, mas também em capital, em
valor que bombeia a força criadora do valor, em meios de produção que dominam
o produtor, em meios de subsistência que compram o próprio operário.” (Marx,
1975, p. 360).

A regra do capitalista sobre o trabalhador é a regra das coisas sobre o


homem, do trabalho morto sobre os vivos, do produto sobre o produtor. As mer-
cadorias tornam-se instrumentos sobre os trabalhadores, mas instrumentos do
domínio do capital. São consequências do processo de produção; os trabalhadores
são “produtos” do processo de produção, tal como na religião se verifica a inver-
são do sujeito em objecto e vice-versa. Este estádio antagónico não pode ser evi-
tado. É a alienação do trabalhador pelo seu próprio trabalho. O trabalhador é
uma vítima do processo de escravidão. Nos Manuscritos económico-filosóficos,
Marx esclarece o sentido de “alienação” e de “trabalho alienado”, por um lado, e
as causas para esta alienação, por outro lado:
“[…] o objecto produzido pelo trabalho, o seu produto, se lhe opõe como ser estra-
nho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho
que se fixou num objecto, que se transformou em coisa física, é a objectivação do
trabalho. A realização do trabalho constitui simultaneamente a sua objectivação.
A realização do trabalho aparece na esfera da economia política como desrealização
do trabalhador, a objectivação como perda e servidão do objecto, a apropriação como
alienação.
[…] O trabalhador põe a sua vida no objecto; porém, agora ela já não lhe pertence
a ele, mas ao objecto. Quanto maior a sua actividade, tanto mais o trabalhador se
encontra sem objecto. O que se incorporou no objecto do seu trabalho já não é seu.
Assim, quanto maior é o produto, tanto mais ele fica diminuído. A alienação do tra-
balhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objecto,
assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a
ele estranho, e se torna um poder autónomo em oposição com ele; que a vida que
deu ao objecto se torna uma força hostil e antagónica.” (Marx, 1989, pp. 159-160).55

De acordo com Tom Bottomore, no seu Dicionário do pensamento marxista:


“No sentido que lhe é dado por Marx, ação pela qual (ou estado no qual) um indi-
víduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade se tornam (ou permanecem)
alheios, estranhos, enfim, alienados [1] aos resultados ou produtos de sua própria

55
Os itálicos são da edição consultada do livro de Marx.
Paulo M. Barroso
56

atividade (e à atividade ela mesma), e/ou [2] à natureza na qual vivem, e/ou [3] a
outros seres humanos, e - além de, e através de [1], [2] e [3] - também [4] a si mes-
mos (às suas possibilidades humanas constituídas historicamente). Assim conce-
bida, a alienação é sempre alienação de si próprio ou auto-alienação, isto é,
alienação do homem (ou de seu ser próprio) em relação a si mesmo (às suas possi-
bilidades humanas), através dele próprio (pela sua própria atividade). E a alienação
de si mesmo não é apenas uma entre outras formas de alienação, mas a sua própria
essência e estrutura básica. Por outro lado, a ‘auto-alienação’ ou alienação de si
mesmo não é apenas um conceito (descritivo), mas também um apelo em favor de
uma modificação revolucionária do mundo (desalienação).
O conceito de alienação, considerado hoje como um dos conceitos centrais do mar-
xismo e amplamente usado tanto por marxistas como não-marxistas, só entrou
para os dicionários de filosofia na segunda metade do século XX. Antes, porém,
era considerado como um importante termo filosófico e foi muito usado mesmo
fora da filosofia: na vida cotidiana, no sentido de afastamento de antigos amigos
ou companheiros; na teoria econômica e no direito, como termo para designar a
transferência da propriedade de uma pessoa para outra (compra e venda, roubo,
doação); na medicina e na psiquiatria, como nome para o desvio da normalidade,
a insanidade. E antes de se ter desenvolvido como um ‘conceito’ metafilosófico (re-
volucionário) com Marx, foi usado como conceito filosófico por Hegel e por Feuer-
bach. Em seus comentários sobre a alienação, Hegel teve, por sua vez, vários
predecessores, alguns dos quais usaram a palavra sem se aproximarem de seu sig-
nificado hegeliano (ou marxista); outros foram precursores da ideia sem usar a ex-
pressão, e, em alguns casos, houve até mesmo uma espécie de encontro entre a
ideia e o termo que a indica.” (Bottomore, 1988, p. 5).

Segundo A ideologia alemã, o processo de vida material condiciona o pro-


cesso de vida, política e individual em geral. “Não é a consciência que determina
a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx & Engels, 2007, p. 94).
Não é a consciência das pessoas que lhes determina o seu ser social; pelo contrá-
rio, é o seu ser social que lhes determina a consciência (Giddens, 2000a, p. 76). O
que são as mercadorias senão produtos do trabalho humano, i.e. produtos resul-
tantes das relações sociais?
Existem necessariamente esforços colectivos que criam e recriam a socie-
dade e, por acréscimo, o indivíduo, por um lado, e que readaptam as relações so-
ciais às forças de produção, por outro lado. As sociedades são totalidades,
sistemas que integram diversos componentes, tais como as forças de produção,
os instrumentos e as acções de produção, as relações de produção, a consciência
(individual e colectiva), a matéria e as obras produzidas e a ideologia. A sociedade
é a realidade humana que se manifesta de maneiras multiformes como são tam-
bém diversas as determinações, as acções e as actividades humanas. Por isso,
pensar e ser são coisas diferentes e a mesma coisa. O ser humano da natureza
não existe senão para o homem social. A sociedade é a consubstancialidade do
homem com a natureza, a realização do naturalismo do homem e do humanismo
da natureza, conforme a interpretação que Gurvitch (cf. 1982, p. 173) faz desta
dialéctica de Marx.
Sociologia da Comunicação
57

O indivíduo vive numa sociedade que o supera. O materialismo dialéctico


(o devir social material) explica o desenvolvimento das sociedades. Numa socie-
dade capitalista e materialista existem demasiados signos de distracção que mo-
delam as relações humanas com os objectos (mercadorias), tornando o indivíduo
alienado, inclusive o seu próprio trabalho (Giddens, 2000a, p. 40). O trabalhador
e o trabalho tornam-se alienados.
Segundo Giddens, Marx preocupa-se com a mudança social e considera-a
à luz de uma concepção materialista da história:
“A perspectiva de Marx assentava no que denominava concepção materialista da
história. De acordo com esta perspectiva, não se encontram nas ideias ou nos va-
lores humanos as principais fontes de mudança social. Pelo contrário, a mudança
social é promovida acima de tudo por factores económicos. Os conflitos entre clas-
ses fornecem a motivação para os desenvolvimentos históricos - eles são o ‘motor
da história’. Nas palavras de Marx, ‘toda a história humana é, até à data, a história
da luta de classes’. Embora o autor centrasse a maior parte da sua atenção no ca-
pitalismo e na sociedade moderna, analisou igualmente a forma como as socieda-
des se desenvolveram ao longo da história. Segundo Marx, os sistemas sociais
transitam de um modo de produção para outro - às vezes de forma gradual, outras
vezes por via de uma revolução - em resultado das contradições dos seus sistemas
económicos. O autor delineou uma progressão por etapas históricas, com início
nas sociedades comunistas dos caçadores-recolectores passando pelos sistemas es-
clavagistas antigos e pelos sistemas feudais baseados na distinção entre senhores
das terras e servos. A emergência de comerciantes e artesãos marcou o início de
uma classe comercial ou capitalista que acabou por substituir a nobreza fundiária.
De acordo com esta perspectiva da história, Marx defendeu que tal como os capi-
talistas se haviam unido para derrubar a ordem feudal, também os capitalistas se-
riam suplantados e uma nova ordem instalada. Marx acreditava na inevitabilidade
de uma revolução da classe trabalhadora que derrubaria o sistema capitalista e
abriria portas a uma nova sociedade onde não existissem classes - sem grandes di-
visões entre ricos e pobres. Marx não queria dizer que todas as desigualdades entre
os indivíduos iriam desaparecer, mas que as sociedades não mais iriam ser divididas
entre uma pequena classe que monopoliza o poder político e económico, por um
lado, e, do outro, uma grande massa de indivíduos que pouco benefício retiram da
riqueza gerada pelo seu trabalho. O sistema económico assentaria na posse comum,
sendo estabelecida uma forma de sociedade mais justa do que a que conhecemos
hoje. Marx acreditava que na sociedade do futuro a produção seria mais evoluída
e eficaz do que na sociedade capitalista.” (Giddens, 2008, pp. 12-13).

Por se ter interrogado sobre a natureza das relações sociais, Marx é, por
conseguinte, um dos fundadores da Sociologia. Estas relações são problemáticas
e dependem de factores económicos. Com a existência de problemas económicos,
as relações sociais tornam-se assimétricas e também problemáticas, principal-
mente nas sociedades contemporâneas, ou seja, numa época de profundas mu-
danças e diferenças sociais marcadas pela massificação, materialismo e
consumismo.
Paulo M. Barroso
58

1.2.3. Durkheim: Sociologia como estudo dos factores de coesão social


Émile Durkheim (1858-1917) também tem uma obra interessante para a
afirmação e fundamentação da Sociologia enquanto ciência. Do seu pecúlio lite-
rário destacam-se: A divisão do trabalho social (1893); As regras do método socioló-
gico (1895); O suicídio (1897); As formas elementares da vida religiosa (1912). Tal
como os outros fundadores da Sociologia, Durkheim realiza estudos pioneiros
sobre importantes tópicos sociológicos, principalmente relacionados com as
novas características das modernas sociedades industriais, tendo contribuído
para discussões igualmente relevantes sobre os métodos apropriados para o es-
tudo sociológico (cf. Bruce & Yearley, 2006, p. 78).
Na obra As regras do método sociológico, Durkheim estabelece, como o título
indica, um método claro e específico para a nova disciplina que então surgia.
Este método tinha de ser baseado na observação (não na produção de esquemas
filosóficos abstractos), fornecer explicações causais e funcionais e estudar factos
sociais (em vez de factos psicológicos (cf. Bruce & Yearley, 2006, p. 78).
Precisamente um dos temas mais pertinentes desenvolvidos por Durkheim
para a Sociologia, que então se apresentava como nova ciência, é o da definição
e caracterização de facto social, ou seja, aspectos da vida social que moldam as
acções individuais. Durkheim parte de um princípio básico: estudar os factos so-
ciais como coisas. Isto quer dizer que os factos sociais são os objectos de estudo
da Sociologia e que os mesmos factos sociais, que são relativos e subjectivos (por-
que variam de cultura para cultura) se comparam com as coisas, que são concre-
tas e objectivas.
O que é um facto social? Durkheim responde a esta pergunta no seu livro
As regras do método sociológico:
“Quando desempenho a minha tarefa de irmão, de esposo ou de cidadão, quando
executo os compromissos que assumi, cumpro deveres que estão definidos, para
além de mim e dos meus actos, no direito e nos costumes. Mesmo quando eles
estão de acordo com os meus sentimentos próprios e lhes sinto interiormente a
realidade, esta não deixa de ser objectiva, pois não fui eu que os estabeleci, antes
os recebi pela educação. […] O sistema de sinais de que me sirvo para exprimir o
pensamento, o sistema monetário que emprego para pagar as minhas dívidas, os
instrumentos de crédito que utilizo nas minhas relações comerciais, as práticas se-
guidas na minha profissão, etc., etc., funcionam independentemente do uso que
deles faço. Tomando, um após outro, todos os membros de que a sociedade se com-
põe, pode repetir-se tudo o que foi dito a propósito de cada um deles. São, pois,
maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de
existir fora das consciências individuais.
Estes tipos de comportamento ou de pensamento são não só exteriores ao indiví-
duo, como dotados de um poder imperativo e coercitivo em virtude do qual se lhe
impõem, quer queira, quer não. Sem dúvida, quando a ela me conformo de boa
vontade, esta coerção não se faz sentir, ou faz-se pouco, por inútil. Mas não é por
isso uma característica menos intrínseca de tais factos, e a prova é que ela se afirma
logo que eu procuro resistir. Se tento violar as regras do direito, elas reagem contra
mim de modo a impedir o meu acto, se ainda for possível, ou a anulá-lo e a resta-
Sociologia da Comunicação
59

belecê-lo sob a sua forma normal, se já executado e reparável, ou a fazer-me expiá-


lo se não houver outra forma de reparação. […]
Aqui está, portanto, uma ordem de factos que apresentam características muito
especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indi-
víduo, e dotadas de um poder coercitivo em virtude do qual se lhe impõem. Por
consequente, não podem confundir-se com os fenómenos orgânicos, visto que con-
sistem em representações e em acções; nem com os fenómenos psíquicos, que não
têm existência senão na consciência individual, e devido a ela. Constituem, pois,
uma espécie nova e a eles se deve atribuir e reservar a qualificação de sociais.”
(Durkheim, 1998, pp. 38-39).

Outra ideia interessante desenvolvida por Durkheim é a da teoria da coe-


são social. Para Durkheim, existe uma “consciência colectiva”, conforme este
autor a apelida, que é um conjunto cultural de ideias morais e normativas. Este
conjunto cultural é o que permite as pessoas inserirem-se e interagirem em so-
ciedade.
Como os indivíduos são integrados na sociedade? Esta interrogação atra-
vessa as pesquisas de Durkheim. A partir da sua tese A divisão do trabalho social,
onde se interroga a natureza e as causas da evolução das sociedades modernas
para uma maior diferenciação das funções sociais, Durkheim levanta de novo a
questão sobre a origem da ordem social, contesta as explicações artificiais por
meio do contrato e propõe uma teoria fundada na norma e na sanção como con-
dições primeiras de toda a vida em sociedade.
Para Durkheim, a mudança macrossocial não advém por ser útil e corres-
ponder a uma qualquer finalidade, mas porque é gerada por causas mecânicas,
como o aumento do volume, da densidade da população e das relações sociais.
Estas ideias são retomadas e aprofundadas em O suicídio. Durkheim vê neste fe-
nómeno social e no seu crescimento durante o século XIX a confirmação da sua
tese relativa às consequências do individualismo e da má integração dos indiví-
duos nas sociedades modernas.
A questão da integração social também está desenvolvida em As formas
elementares da vida religiosa, livro onde Durkheim define a essência do religioso
em função de um determinado elemento sagrado (que implica crenças, rituais e
uma instituição social chamada Igreja), considerando que o sobrenatural ou o
transcendente não são condições suficientes para uma definição universal da re-
ligião. É o sagrado, enquanto elemento colectivo e impessoal, que permite a in-
tegração de todos na sociedade. De acordo com Giddens:
“Durkheim via a Sociologia como uma nova ciência que podia ser usada para elu-
cidar questões filosóficas tradicionais, examinando-as de modo empírico. Durk-
heim, como anteriormente Comte, acreditava que devemos estudar a vida social
com a mesma objectividade com que cientistas estudam o mundo natural. O seu
famoso princípio básico da Sociologia era ‘estudar os factos sociais como coisas’.
Queria com isso dizer que a vida social podia ser analisada com o mesmo rigor com
que se analisam objectos ou fenómenos da natureza. A obra de Durkheim abrange
Paulo M. Barroso
60

um vasto espectro de tópicos. Três dos principais temas que abordou foram: a im-
portância da Sociologia enquanto ciência empírica; a emergência do indivíduo e a
formação de uma ordem social; e as origens e carácter da autoridade moral na so-
ciedade. Encontraremos as ideias de Durkheim repetidas vezes nas nossas discus-
sões teóricas acerca da religião, do desvio e do crime, do trabalho e da vida
económica. Para o autor, a principal preocupação intelectual da Sociologia reside
no estudo dos factos sociais. Em vez de aplicar métodos sociológicos ao estudo de
indivíduos, os sociólogos deviam antes analisar factos sociais - aspectos da vida
social que determinam a nossa acção enquanto indivíduos, tais como o estado da
economia ou a influência da religião. Durkheim acreditava que as sociedades ti-
nham uma realidade própria - ou seja, a sociedade não se resume às simples acções
e interesses dos seus membros individuais. De acordo com o autor, factos sociais
são formas de agir, pensar ou sentir que são externas aos indivíduos, tendo uma
realidade própria exterior à vida e percepções das pessoas individualmente. Outra
característica dos factos sociais é exercerem um poder coercivo sobre os indivíduos.
No entanto, a natureza constrangedora dos factos sociais raramente é reconhecida
pelas pessoas como algo coercivo, pois de uma forma geral actuam de livre vontade
de acordo com os factos sociais, acreditando que estão a agir segundo as suas op-
ções. Na verdade, afirma Durkheim, frequentemente as pessoas seguem simples-
mente padrões que são comuns na sociedade onde se inserem. Os factos sociais
podem condicionar a acção humana de variadas formas, que vão do castigo puro
e simples (no caso de um crime, por exemplo) a um simples mal-entendido (no caso
do uso incorrecto da linguagem). Durkheim reconhecia que os factos sociais são
difíceis de estudar. Os factos sociais não podem ser observados de forma directa,
dado serem invisíveis e intangíveis. Pelo contrário, as suas propriedades só podem
ser reveladas indirectamente, através da análise dos seus efeitos ou tendo em con-
sideração tentativas feitas para as expressar, como leis, textos religiosos ou regras
de conduta estabelecidas. Durkheim sublinhava a importância de pôr de lado os
preconceitos e a ideologia ao estudar factos sociais. Uma atitude científica exige
uma mente aberta à evidência dos sentidos e liberta de ideias preconcebidas pro-
venientes do exterior. O autor defendia que os conceitos científicos apenas podiam
ser gerados pela prática científica. Desafiou os sociólogos a estudar as coisas tal
como elas são e a construir novos conceitos que reflectissem a verdadeira natureza
das coisas sociais. Tal como os outros fundadores da Sociologia, Durkheim estava
preocupado com as mudanças que transformavam a sociedade do seu tempo. Es-
tava particularmente interessado na solidariedade social e moral - por outras pa-
lavras, naquilo que mantém a sociedade unida e impede a sua queda no caos. A
solidariedade é mantida quando os indivíduos se integram com sucesso em grupos
sociais e se regem por um conjunto de valores e costumes partilhados.” (Giddens,
2008, pp. 8-9).

Segundo este excerto de Giddens, Durkheim contribui para a afirmação


da Sociologia, porque se preocupa em estudar as mudanças sociais que ocorriam
e para as quais, até então, ainda não existia uma área específica de estudo para
as compreender e explicar. Neste sentido, Durkheim, juntamente com os outros
fundadores da Sociologia, contribuem para que esta área de estudo se enquadre
e contribua com um corpo de conhecimentos necessários, sistemáticos e inédi-
tos.
Sociologia da Comunicação
61

1.2.4. Weber: Sociologia Compreensiva


Max Weber (1864-1920) também se preocupa em compreender as mudan-
ças sociais, atribuindo relevância aos valores e às ideias culturais na formação da
sociedade e na base das acções individuais. No pensamento de Weber destaca-se
a ideia sobre o papel da religião (crenças cristãs) e as suas influências sobre a eco-
nomia e a sociedade, nomeadamente o florescimento do capitalismo, tratado na
sua obra A ética protestante e o espírito do capitalismo (cf. Weber, 2007). Ainda hoje
são estes os assuntos do campo de intervenção da Sociologia e que definem esta
ciência como o estudo sistemático da vida do indivíduo em sociedade.
A religião é uma forma de poder nas sociedades e não existem sociedades
ou culturas sem formas de vida e manifestação da religião (crenças, cultos e ritos
religiosos), pelo que são necessárias análises sobre os seus tipos de legitimidade
e modos de exercício sobre as pessoas na estrutura social. Em A ética protestante
e o espírito do capitalismo, Weber demonstra que os comportamentos dos indiví-
duos só são compreensíveis se forem analisadas as suas concepções do mundo,
principalmente moldadas pelas crenças religiosas. Segundo Giddens (2000a, pp.
181-185), em Capitalismo e moderna teoria social, a relação entre o capitalismo e
a ética protestante demonstra esta influência das crenças religiosas sobre a eco-
nomia e o desenvolvimento das sociedades.
“Tal como Marx, Max Weber (1864-1920) não pode ser simplesmente rotulado como
sociólogo; os seus interesses e preocupações abrangem muitas áreas. Nascido na
Alemanha, onde passou a maior parte da sua carreira académica, Weber era um
indivíduo de grande erudição. As suas obras cobrem os campos da Economia, do
Direito, da Filosofia e da História Comparada, bem como da Sociologia. Grande
parte da sua obra dava também particular atenção ao desenvolvimento do capita-
lismo moderno e à forma como a sociedade moderna era diferente de outros tipos
anteriores de organização social. Através de um conjunto de estudos empíricos,
Weber explicitou algumas das características básicas das sociedades industriais
modernas e identificou debates sociológicos fundamentais, que ainda hoje perma-
necem centrais para os sociólogos. Tal como outros pensadores do seu tempo,
Weber tentou compreender a natureza e as causas da mudança social. Foi influen-
ciado por Marx, mas mostrou-se também muito crítico em relação a alguns dos
principais pontos de vista de Marx. Weber rejeitou a concepção materialista da his-
tória e deu ao conflito de classes um significado menor do que Marx. Na perspectiva
de Weber, os factores económicos eram importantes, mas as ideias e os valores ti-
nham o mesmo impacto sobre a mudança social. Ao contrário dos primeiros pen-
sadores sociológicos, Weber defendeu que a Sociologia devia centrar-se na acção
social, e não nas estruturas. Argumentava que as ideias e as motivações humanas
eram as forças que estavam por detrás da mudança - as ideias, valores e crenças ti-
nham o poder de originar transformações. Segundo o autor, os indivíduos têm a
capacidade de agir livremente e configurar o futuro. Ao contrário de Durkheim ou
Marx, Weber não acreditava que as estruturas existiam externamente aos indiví-
duos ou que eram independentes destes. Pelo contrário, as estruturas da sociedade
eram formadas por uma complexa rede de acções recíprocas. A tarefa da Sociologia
era procurar entender o sentido por detrás destas acções. Algumas das obras mais
importantes de Weber preocuparam-se com a análise das características próprias
Paulo M. Barroso
62

da sociedade Ocidental, em comparação com as outras grandes civilizações. Estu-


dou as religiões da China, Índia e Próximo Oriente, e no decorrer dessas pesquisas
fez grandes contribuições para a Sociologia da Religião. Comparando os principais
sistemas religiosos da China e Índia com os do Ocidente, Weber concluiu que alguns
aspectos das crenças cristãs influenciaram grandemente o aparecimento do capi-
talismo. Este não emergira, como Marx acreditava, apenas graças às mudanças eco-
nómicas. Segundo Weber, os valores e as ideias culturais contribuem para moldar
a sociedade e as nossas acções individuais.” (Giddens, 2008, pp. 13-14).

Para Giddens, Weber interessa-se por vários temas e problemas que extra-
vasam o próprio e vasto campo da Sociologia. A perspicácia de Weber, tal como
a dos outros autores pioneiros nesta nova área de estudo sobre o social, permite
prestar atenção às novas formas de organização social. Esta circunstância justi-
fica, per se, a pertinência e a relevância da Sociologia em contribuir para o estudo
e compreensão das transformações que as sociedades modernas enfrentam.

1.3. Ramificações da Sociologia: a Sociologia


da Comunicação
Se os doze autores anteriormente referidos e estes quatro considerados
os fundadores da Sociologia contribuíram, cada um à sua maneira e com a res-
pectiva perspectiva, para o surgimento e fundamentação de uma ciência do so-
cial, esta mesma ciência, por ser tão abrangente (o social é vago e abstracto)
ramifica-se. Considerando que o objecto de estudo da Sociologia é demasiado
vasto, existem ramificações mais direccionadas e particularizadas, designada-
mente: Sociologia do Trabalho; Sociologia da Família; Sociologia das Organiza-
ções; Sociologia da Educação; Sociologia da Religião; Sociologia da Cultura;
Sociologia Política; Sociologia do Ambiente; Sociologia Económica; Sociologia
Rural/Sociologia Urbana; Sociologia do Desporto; Sociologia da Arte; e Sociologia
da Comunicação ou Sociologia dos Media.
É este último ramo que interessa abordar e compreender, começando por
considerar que é a época em que se vive sob a égide dos meios de comunicação
social e das suas influências (desde a primeira metade do século XX e até hoje)
que caracteriza não só esta especialização da Sociologia em Sociologia da Comu-
nicação (ou Sociologia dos Media) como também a própria sociedade da informa-
ção, conforme é designada a sociedade em que vivemos.56

56
Assim é designada a sociedade devido ao predomínio dos meios de comunicação, dos fluxos de
informação e dos acessos imediatos e fáceis à informação (em qualquer hora, em qualquer lugar,
por qualquer pessoa). A designação “sociedade da informação”, que se tornou dependente de
complexas redes electrónicas de informação e comunicação (cf. McQuail & Windahl, 2003, p. 171),
terá surgido como extensão das ideias relacionadas com a “sociedade pós-industrial”.
Sociologia da Comunicação
63

A Sociologia da Comunicação pressupõe “compreender a importância da


comunicação social e a influência que os meios de comunicação têm na configu-
ração das sociedades modernas” (Espinar et al., 2006, p. 11). A comunicação, como
objecto de estudo e de análise sociológica, é encarada como um fenómeno es-
sencial à vida social. Por isso, é tratada pela Sociologia da Comunicação como
susceptível de produzir um corpo de conhecimentos sólidos e científicos. À So-
ciologia da Comunicação interessa a comunicação humana e os respectivos pro-
cessos sociais, nomeadamente a comunicação de massas, que surge de uma
forma sistemática nos EUA, em meados do século XX.
“O fenómeno comunicativo, sendo um elemento-chave da vida em sociedade e, de-
finitivamente, da existência humana, tem sido tratado com pretensões claras e co-
nhecimento científico há relativamente pouco tempo.
Quanto à investigação sociológica, a existência de uma Sociologia especializada,
centrada na comunicação (e que, portanto, pôde ser denominada ‘Sociologia da Co-
municação’) é algo muito recente. […]
A investigação sobre comunicação de massas começou, de uma forma séria e sis-
temática, nos anos trinta nos Estados Unidos. A partir desse momento, um grande
número de cientistas sociais de diferentes campos e disciplinas centraram o seu
trabalho de investigação no estudo da comunicação de massas. Desta forma, gerou-
se um importante corpo de conhecimentos que alguns autores baptizaram como
Mass Communication Research (MCR), tentando dotá-lo de um carácter de ciência
diferenciada e independente.
A Sociologia foi uma das disciplinas que, no início, mostrou maior interesse sobre
o estudo da comunicação de massas. E, durante muitos anos, investigação da co-
municação de massas foi sinónimo de Sociologia da comunicação de massas, so-
bretudo no contexto dos Estados Unidos (o de maior influência internacional).”
(Espinar et al., 2006, pp. 13-18).57

É este período propício, a partir da segunda metade do século XX, de pro-


gresso científico e tecnológico, que espoleta o desenvolvimento dos meios de co-
municação e os seus consequentes efeitos na sociedade. Efectivamente, no final

57
Tradução do autor a partir do texto da edição original em espanhol de Espinar et al.: “El fenómeno
comunicativo, aún siendo un elemento clave de la vida en sociedad y, en definitiva, de la existencia
humana, ha sido tratado con pretensiones claras de conocimiento científico sólo desde hace
relativamente poco tiempo. Respecto a la investigación sociológica, la existencia de una Sociología
especializada, centrada en la comunicación (y que, por tanto, pudiera denominarse ‘Sociología de
la comunicación’), es algo muy reciente. […] La investigación sobre comunicación de masas se
inicia, de forma seria y sistemática, en los años treinta en Estados Unidos. A partir de ese
momento, un gran número de científicos sociales, desde diferentes campos y disciplinas, han ido
centrando su labor investigadora en el estudio de la comunicación de masas. De esta forma, se
ha generado un importante cuerpo de conocimientos que algunos autores han bautizado como
Mass Communication Research (MCR), intentando dotarle de un carácter de ciencia diferenciada e
independiente. La Sociología fue una de las disciplinas que, en un principio, mayor interés mostró
hacia el estudio de la comunicación de masas. Es más, durante muchos años, investigación de la
comunicación de masas fue sinónimo de Sociología de la comunicación de masas, sobre todo en
el ámbito estadunidense (el de mayor influencia internacional).”
Paulo M. Barroso
64

dos anos 60 do século XX, o progresso tecnológico e as suas conquistas electró-


nicas aplicadas (inclusive nos meios de comunicação) permitiram produzir uma
cultura para as massas, ao ponto de se designar por mass culture o conjunto das
transformações profundas na esfera social e no campo da comunicação (cf. Po-
listchuk & Trinta, 2003, p. 13). Às transformações na esfera da comunicação acres-
centam-se as transformações na estrutura da sociedade e nas relações sociais,
causadas pelos efeitos e influências dos meios de comunicação de massa.
O interesse da Sociologia sobre a comunicação de massas deriva da cons-
tatação do papel central que os meios de comunicação ocupam na estrutura so-
cial, económica e política da sociedade (Espinar et al., 2006, p. 19). Nesta
perspectiva, a Sociologia da Comunicação é o estudo das influências da comuni-
cação de massas na interacção entre os indivíduos e entre estes e as sociedades,
focando-se as barreiras à comunicação, as funções e estratégias da comunicação.
A Sociologia da Comunicação centra-se no estudo e compreensão de:
– Implicações recíprocas entre sociedade de massas e comunicação de
massas.
– Efeitos que os meios de comunicação, cada vez mais globais e
tecnológicos, exercem sobre os padrões de culturas e os valores sociais.
– Papéis dos media e dos dispositivos tecnológicos de comunicação na
formação social, cívica, cultural, educacional e política dos cidadãos.

A Sociologia da Comunicação compreende a dialéctica entre a sociedade e


a comunicação, o papel dos media na sociedade e as implicações das designadas
novas tecnologias da informação e comunicação numa época de globalização. As
abordagens em Sociologia da Comunicação permitem críticas (positivas ou ne-
gativas, construtivas ou compreensivas) sobre o papel da comunicação nas so-
ciedades contemporâneas. A comunicação de massas é a forma privilegiada de
estudo e esta está mais próxima da cultura popular, pelo que existe um papel in-
fluente da comunicação social na formação das sociedades e culturas modernas.
As relações entre os meios de comunicação de massas e a sociedade são
complexas e, por isso, são difíceis de especificar nas suas mais diversas articula-
ções. Os estudos pioneiros e meritórios da Mass Communication Research revela-
ram-se insuficientes para a compreensão do vasto e complexo fenómeno social
da comunicação e das suas múltiplas relações e influências com a sociedade (Wolf,
1992, pp. 11-12). Progressivamente tomou-se consciência de que os problemas
relativos aos meios de comunicação são “extremamente complicados e requerem
uma abordagem sistemática e complexa”, segundo Wolf (1992, p. 12), que consi-
dera três directrizes que permitiram superar estas dificuldades:
1. A abordagem sociológica impôs-se “como pertinência fundamental dos
estudos sobre os meios de comunicação”.
Sociologia da Comunicação
65

2. O reconhecimento da “necessidade de um estudo multidisciplinar den-


tro desse quadro sociológico”.
3. “A mudança da perspectiva temporal deste âmbito de pesquisa”.

Neste sentido, afirma-se uma Sociologia da Comunicação como um estudo


apropriado e alargado das comunicações de massas, das influências dos meios
de comunicação, enquanto instituições sociais,58 sobre o público. Deve concluir-
se, todavia, que quer a Sociologia (enquanto ciência-mãe) quer a Sociologia da
Comunicação (esta enquanto ramificação da primeira) são ambas ciências difíceis
de definir como tal, visto que os objectos de estudo são relativos, multiformes e
suscitam abordagens subjectivas.

1.4. Questões para revisão e reflexão


1. O que é a “sociologia positiva”? Qual é a importância (ou os contribu-
tos) do positivismo para a afirmação da Sociologia como ciência?
2. Por que razão são importantes o estudo e a compreensão da relação
entre o indivíduo e a sociedade em que este se integra?
3. Considerando a relatividade das sociedades e das relações sociais, é
possível estudar cientificamente a vida social das pessoas? Ou seja, é
possível estudar objectivamente o que é, em si, um objecto de estudo
subjectivo?
4. A Sociologia é uma ciência como as outras? Como delimitar o objecto
de estudo da Sociologia?
5. Nas etapas do pensamento sociológico, quais são os contributos de He-
ródoto, Platão e Aristóteles? E quais são os de Maquiavel, Montesquieu
e Rousseau?
6. O que é um facto social e quais são as suas características? O que Durk-
heim quer dizer ao afirmar que se devem tratar os factos sociais como
coisas?
7. Como associar o surgimento da Sociologia ao advento do capitalismo?
O que o capitalismo terá a ver com a massificação das sociedades?
8. Qual é a relação entre os problemas económicos básicos de subsistência
do trabalhador nas sociedades pós-industriais e o surgimento dos ideais
marxistas, socialistas ou sindicalistas no final do século XIX?

58
Os media como instituições sociais, conforme defende McQuail (cf. 2003, p. 5), i.e. instituições de
produção, reprodução e distribuição de conhecimentos e de sentidos capazes de moldar a
percepção do público, o seu reconhecimento do passado e a sua compreensão actual do mundo.
Sociologia da Comunicação
67

2. A comunicação
“Esta expansão conquistadora oculta o facto da comunicação ser própria de todas as sociedades,
de todas as culturas em todas as épocas. É geradora de relações de ordem, de sentido. […]
Monopoliza o imaginário, produz o real e as suas simulações, engendra as ‘sociodiceias’ modifica-
doras, cria e impõe as figuras detentoras do poder e mantém-se na sua dependência.”
(Balandier, 1999, pp. 123-124).

Etimologicamente, a palavra “comunicação” deriva do latim communica-


tione, que significa “acto de comunicar, de dar parte”, segundo o Dicionário eti-
mológico da língua portuguesa, de José Pedro Machado (1977, vol. II, p. 198). De
acordo com este mesmo dicionário, o termo “comunicar” vem do latim commu-
nicare, que também é a origem da palavra “comungar” (“pôr ou ter em comum;
repartir, compartilhar; receber em comum, tomar a sua parte de”), ou seja, “en-
trar em relações com alguém, comunicar com alguém”. Desta etimologia se infere
que a comunicação é o estabelecimento de algo em comunhão e partilha em co-
munidade, pois entramos em comunidade quando comunicamos, isto é, quando
partilhamos informações. Está assim implícito que não existem comunidades de
pessoas sem comunicação e que, quotidianamente, comunicamos com naturali-
dade e em convivência, muitas vezes sem nos apercebermos.
Em Communication as culture: Essays on media and society, James W. Carey
enfatiza que a comunicação não é uma mera transmissão de informações. A eti-
mologia da palavra “comunicação” pressupõe a dita associação entre os termos
“comunicação” e “comunidade”. A cultura será o campo alargado que abarca a
comunicação e a comunidade. A comunicação está ligada a termos fundamentais
que a definem: compartilhamento, participação, associação, comunhão e a posse
de uma fé comum, pois a compreensão da palavra “comunicação” obriga-a a ser
definida de forma a explorar a identidade antiga e as raízes comuns dos termos
“comum”, “comunhão”, “comunidade” e “comunicação” (cf. Carey, 2009, p. 15).
“Comunicar é como jogar andebol. Eu atiro a bola e tu apanha-la. Depois,
tu atiras a bola e eu apanho-a. E, outra vez, eu atiro a bola…”, como refere, de
um modo simples, Mamoru Itoh (2009, p. 8), no livro Quero falar-te dos meus sen-
timentos. Comunicar é como jogar à bola, é como participar num jogo com bola
e com outros jogadores. Eu (o emissor) atiro (codifico) a bola (a mensagem) e o
outro (o receptor) apanha-a (descodifica). Depois, o outro atira a bola para mim
e eu a apanho já numa fase de reversibilidade do processo de comunicação, su-
cessivamente. Para participar no jogo, ou seja, para interagir, precisamos de atirar
a bola. Alguém tem de atirar a primeira bola e, deste modo, iniciar o processo de
comunicação (cf. Itoh, 2009, p. 19). Os outros precisam de estar disponíveis e ca-
pazes de receber a bola que eu pretendo atirar para eles. Existem diferentes
modos de atirar a bola; o mesmo é dizer que existem diferentes modos de comu-
Paulo M. Barroso
68

nicar. Esta é uma perspectiva simples, mas eficaz e demonstrativa sobre a comu-
nicação.
“Se a pessoa a quem atiramos uma bola com toda a nossa alma a apanhar, e se nós
apanharmos a bola que essa pessoa nos lança de volta, então um acto de comuni-
cação acontece.
Mas às vezes sentimos, ‘Ele não a apanhou do modo como eu queria que o fizesse!’
Ou, ‘Não há maneira de eu poder apanhar a bola que ele me atirou!’ Há sempre in-
felizmente muitas tentativas de comunicação que não chegam a concretizar-se.
Quando as comunicações não concretizadas se acumulam, as nossas emoções tor-
nam-se instáveis.” (Itoh, 2009, pp. 30-32).

Existe sempre a possibilidade para uma boa ou para uma má comunicação.


Todavia, desencadeia-se sempre um processo de relação qualquer que seja a co-
municação. “Se há compreensão, pode ter-se pensamentos diferentes, interesses
diferentes, sentimentos diferentes – e ainda assim estar juntos” (Itoh, 2009, p.
66). Subentende-se nesta caracterização da comunicação a necessidade da nor-
malização da prática de comunicar (ou seja, de atirar a bola), a obediência a uma
determinada gramática, um procedimento estipulado para usar os signos dispo-
níveis e seguir as regras que ditam as possíveis produções de sentido. Conforme
realça John Fiske:
“Assumo que toda a comunicação envolve signos e códigos. Os signos são artefactos
ou actos que se referem a algo que não eles próprios, ou seja, são construções sig-
nificantes. Os códigos são os sistemas nos quais os signos se organizam e que de-
terminam a forma como os signos se podem relacionar uns com os outros. Assumo
também que estes signos e códigos são transmitidos ou tornados acessíveis a ou-
tros, e que transmitir ou receber signos/códigos/comunicação é a prática das rela-
ções sociais.” (Fiske, 1993, p. 14).

A comunicação é imprescindível para o relacionamento e comportamento


sociais; é inata no ser humano e nos outros animais irracionais. A origem e evolu-
ção da comunicação revela que a história da comunicação é cumulativa: cada novo
meio ou técnica de comunicação beneficia dos anteriores meios e técnicas para se
aprimorar e tornar mais eficiente. A evolução da comunicação é longa e cada vez
mais acelerada e multifacetada. Há uma transformação progressiva e conjunta da
comunicação como processo humano de interacção. Se a comunicação é insepará-
vel das actividades sociais e comportamentais e se a Sociologia é, inclusive, o es-
tudo das interacções humanas, esta ciência beneficia muito da compreensão dos
papéis da comunicação nessas interacções. Conforme salienta a International en-
cyclopedia of the social sciences: a comunicação é inseparável das actividades sociais
e comportamentais; como consequência, tornou-se parte integrante da investiga-
ção e discussão nas ciências sociais (cf. Waltman, 2008, p. 31).
Existem, todavia, diferentes sentidos para o termo “comunicação”. Todos
os dias participamos em diversos processos de comunicação. Comunicamos e co-
municam connosco sem prestarmos atenção ou sem termos noção de que esta-
Sociologia da Comunicação
69

mos a comunicar. A capacidade de comunicar sempre acompanhou a existência


do ser humano. Nos primórdios da vida humana, as formas de comunicação não
eram tão desenvolvidas como actualmente, mas serviam para estabelecer o bá-
sico e indispensável: laços e interacções sociais entre os seres humanos e meio
de expressão ou representação.
Para responder à pergunta “o que é a comunicação?” temos de referir vá-
rios sentidos que o conceito assume. Num primeiro sentido etimológico da co-
municação, a palavra “comunicação” traduz a ideia de comunhão, como se referiu
anteriormente. Neste sentido, a comunicação significa o estabelecimento de uma
comunhão. Por intermédio da comunicação, os seres vivos que se servem da co-
municação entram em contacto entre si e trocam informações. A comunicação
é, portanto, a faculdade de tornar comum aos outros informações relativas não
só ao mundo, mas também respeitantes ao próprio sujeito, como as suas ideias,
vontades, sentimentos, percepções, etc.
Num outro plano, o sentido biológico da comunicação identifica-se com
uma actividade sensorial e nervosa (importante para a sobrevivência da espécie)
que inclui a recolha de informações, o seu armazenamento, o seu intercâmbio e
a sua transmissão. Exterioriza-se o que se passa no sistema nervoso. Sem comu-
nicação, os seres vivos não poderiam reproduzir-se.
Também podemos falar de um sentido histórico-social da comunicação.
Como os seres humanos vivem inevitavelmente em sociedade, sendo esta um
conjunto de pessoas que têm algo em comum e que estabelecem entre si um de-
terminado número de regras, só possível pela existência da comunicação, então
é a própria comunicação que permite a transmissão de ideias, de técnicas, de
costumes, de crenças, de regras, enfim, da cultura. Uma das manifestações da
natureza social dos seres humanos está na necessidade do intercâmbio de ideias,
impossível de ocorrer sem comunicação.
Desde as suas origens, a sociedade humana sempre esteve dependente do
aparecimento e do desenvolvimento da linguagem como um conjunto de símbo-
los que permite a transmissão de informações, quer entre os elementos de de-
terminado grupo social ou de grupos sociais diferentes, quer a transmissão de
informações para gerações futuras. Nesta perspectiva, a comunicação é indis-
pensável ao desenrolar da história e, ao mesmo tempo, é uma actividade educa-
tiva que modifica o comportamento dos agentes e interlocutores (o emissor e o
receptor). O aparecimento e o correspondente desenvolvimento das novas tec-
nologias de informação contribuem para a evolução social, onde ocorrem mu-
danças nos hábitos culturais dos indivíduos.
O sentido partilhado, seja do que for, é sempre o resultado de uma cons-
trução interactiva. Compreendemos vulgarmente o sentido como a direcção por
onde segue o enunciado, segundo as regras comunicacionais. Mesmo com a vio-
lação destas regras, existem sentidos que são produzidos e entendidos, emitidos
Paulo M. Barroso
70

e recebidos. O sentido está associado às ideias de expectativa, intenção e expres-


sividade. Atender aos sentidos dos enunciados permite desvelar sentidos obscu-
ros e encontrar outros. Neste desvelamento dos sentidos dos enunciados que
vulgarmente produzimos, recebemos, interpretamos e compreendemos, exige-
se atenção aos usos que fazemos quotidianamente da linguagem.
Comunicar não é apenas informar; é também convencer e seduzir; é fazer
com que o interlocutor reconheça uma intenção (que nem sempre é transportada
explicitamente pelo enunciado); é providenciar e executar diligências em direcção
a um interlocutor. O interlocutor ou receptor reconhecerá a forma das palavras
do emissor e contribuirá para a assunção de ambos enquanto interlocutores,
tendo em conta a conformidade dos comportamentos presentes em relação às
normas sociais. Convenções sociais, normas linguísticas e rituais de relaciona-
mento formam um quadro de obrigações das trocas de palavras, mas deixam a
oportunidade para o jogo da interpretação das intenções.
Depois deste apuramento conceptual de “comunicação”, conclui-se que,
de um modo geral, o conceito de “comunicação” designa qualquer processo de
transmissão de informação entre um emissor e um receptor através de signos
codificados num canal/meio.59 Comunicar é transmitir mensagens, estabelecendo
uma relação em que os actos, os pensamentos, as intenções e os sentimentos de
um emissor estimulam, influenciam e desencadeiam respostas nos destinatários
das mensagens. Neste sentido, pressupõe-se o reconhecimento do outro como
interlocutor e a possibilidade de influenciar o estado desse interlocutor, bem
como a possibilidade de resposta ou retroacção do receptor, que é o feedback.60
Segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa:
“[A comunicação] é o processo que envolve a transmissão e a recepção de mensa-
gens entre uma fonte emissora e um destinatário receptor, no qual as informações,
transmitidas por intermédio de recursos físicos (fala, audição, visão, etc.) ou de
aparelhos e dispositivos técnicos, são codificadas na fonte e descodificadas no des-
tino com o uso de sistemas convencionados de signos ou símbolos sonoros, escri-
tos, iconográficos, gestuais, etc.” (Houaiss & Villar, 2001, vol. 2, p. 1013).

Por conseguinte, pode definir-se o conceito de comunicação como o pro-


cesso temporal (desenvolve-se no tempo) e dinâmico (é dialéctico, envolve diá-
logo, interacção, reversibilidade) em que se transmitem informações e em que
um agente (o emissor) tem uma determinada informação que partilha (enquanto
mensagem) com o seu interlocutor, tornando-a comum. Toda a comunicação pres-

59
O canal distingue-se do meio: enquanto o canal é o meio físico pelo qual o sinal de comunicação
é transmitido (e.g. ondas de luz ou ondas de rádio), o meio consiste no recurso técnico ou físico
(e.g. a voz) que converte “a mensagem num sinal capaz de ser transmitido ao longo do canal”
(Fiske, 1993, p. 34).
60
O feedback é o processo pelo qual o comunicador obtém informação do receptor sobre se e como
este receptor recebeu a mensagem.
Sociologia da Comunicação
71

supõe um emissor que emite uma mensagem num certo código, um canal de
transmissão e um receptor que descodifica a mensagem. Comunicação pressupõe
uma troca de ideias, sentimentos ou experiências com outrem, através de um
processo onde intervêm os interlocutores (emissor e receptor).
Entender a comunicação como processo é conceber sistemas públicos de
trocas linguísticas, onde concorrem princípios de cooperação entre os interlocu-
tores, num mercado social que é o da linguagem, onde já existe o sentido e os
procedimentos de regulação das trocas (cf. Grice, 1989, pp. 26-28). Neste mercado
social, exerce-se um jogo de oferta e de procura sobre diferentes tipos de produ-
tos, como:
a) Contratos de comunicação: subjacentes à ideia de que todo o acto de
comunicação se inscreve num quadro pré-estruturado, que varia
consoante a definição da situação em quatro termos: i) objectivos; ii)
identidade dos interlocutores; iii) troca de mensagens; e iv) dispositivo
de comunicação.
b) Rituais de linguagem: comportamentos usuais que o emissor deve
adoptar a partir do momento em que pretende estabelecer ou manter
um contacto com um receptor.
c) Valor social das palavras: signos que veiculam uma identidade social e
podem transportar valores de verdade e de identidade, como no caso
dos sociolectos.

Segundo Pierre Bourdieu, em O que falar quer dizer: A economia das trocas
linguísticas, o que circula no mercado linguístico são “discursos estilisticamente
caracterizados”:
“Todo o acto de fala e, de um modo mais geral, toda a acção, é uma conjuntura,
um encontro de séries causais independentes: de um lado, as disposições, social-
mente moldadas, do habitus linguístico, que implicam uma certa propensão para
falar e para dizer coisas determinadas (interesse expressivo) e uma certa capacidade
de falar definida inseparavelmente como capacidade linguística de geração infinita
de discursos gramaticalmente conformes e como capacidade social que permite
utilizar adequadamente essa competência numa situação determinada; do outro,
as estruturas do mercado linguístico, que se impõem como um sistema de sanções
e de censuras específicas. […] A gramática só muito parcialmente define o sentido,
e é na relação com um mercado que se opera a determinação completa da signifi-
cação do discurso. Uma parte, e não a menor, das determinações que fazem a de-
finição prática do sentido, chega ao discurso a partir de fora e automaticamente.
Na base do sentido objectivo que se gera na circulação linguística está, antes de
mais, o valor distinto que resulta das relações estabelecidas pelos locutores, cons-
ciente ou inconscientemente, entre o produto linguístico oferecido por um locutor
socialmente caracterizado e os produtos simultaneamente propostos num espaço
social determinado. Há ainda o facto de o produto linguístico só se realizar com-
pletamente como mensagem quando é tratado como tal, ou seja, decifrado, e que
os esquemas de interpretação que os receptores põem em acção na sua apropriação
Paulo M. Barroso
72

criadora do produto proposto podem estar mais ou menos afastados daqueles que
orientam a produção. Através destes efeitos inevitáveis, o mercado contribui para
fazer não só o valor simbólico como, também, o sentido do discurso. […] O que cir-
cula no mercado linguístico, não é a ‘língua’, mas, sim, discursos estilisticamente
caracterizados, simultaneamente do lado da produção, na medida em que cada lo-
cutor cria para si um idiolecto a partir da língua comum, e do lado da recepção, na
medida em que cada receptor contribui para produzir a mensagem que percepciona
e aprecia importando para aí tudo o que constitui a sua experiência singular e co-
lectiva.” (Bourdieu, 1998, pp. 14-15).

Associado à ideia de Paul Watzlawick, de que não é possível não comuni-


car, recusar ou aceitar um contacto é já comunicar. Falar para outrem é um acto
simbólico, mas também efectivo, que o obriga ou convida a tornar-se interlocutor,
impondo feedback. A sociedade prescreve, por convenção, um número de com-
portamentos e de fórmulas de linguagem ritualizadas e adaptadas em certas di-
ligências e contextos. Estes rituais de linguagem correspondem aos hábitos
culturais de uma comunidade sócio-linguística.
Se os diferentes tipos de produtos acima referidos como a), b) e c) consti-
tuem quadros sociais de expressão, podemos representar a comunicação como
um jogo social, no interior do qual cada participante tem a liberdade de estabe-
lecer diferentes estratégias de intencionalidade. A linguagem não serve apenas
para projectar o mundo e etiquetar os objectos. O sentido é, antes de mais, uma
intenção endereçada aos parceiros dos actos de linguagem, que constroem o sen-
tido e, ao mesmo tempo, determinam o seu modo de existência como falantes.
O sentido não é necessariamente fundado na verdade, mas constrói-se sobre o
quadro da vida comunitária, o jogo quotidiano das trocas e dos simulacros cons-
cientemente assumidos ou não, a partilha de papéis, a metaforização e a figura-
ção das palavras. A linguagem constrói-se na confluência do explícito e do
implícito, porque não é apenas o dito ou o não dito, mas a relação entre ambos.
A comunicação interpessoal é bilateral: os interlocutores são alternada-
mente emissores e receptores. Por contraposição à comunicação, a informação
(padronizada na comunicação social, de massas) pode limitar-se a dar a conhecer
algo a alguém, não através de um processo, mas mediante um circuito unilateral,
onde o conteúdo circula exclusivamente do emissor para o receptor.

Comunicação Informação
Bilateral: os sujeitos (interlocutores) são Circuito unilateral, onde o conteúdo circula
alternadamente emissores e receptores. exclusivamente do emissor para o receptor.

Processo que pressupõe uma fonte que emite uma Pode limitar-se a dar a conhecer algo a alguém,
mensagem num certo código, um canal de mas não através de um processo.
transmissão e um receptor que descodifica a
mensagem.
Exige feedback. Não exige reversibilidade.
Tabela 3: Diferenças gerais entre comunicação e informação.
Sociologia da Comunicação
73

A informação é uma acção isolada, que pode ser desencadeada por um in-
divíduo ou por uma máquina (fontes ou emissores da mensagem). Na informação
não existe reversibilidade, conforme se demonstra no seguinte esquema linear:

Objectivo?
Quem? O quê? Como? A quem?
Resultado
Fonte Mensagem Meio Receptor esperado

Figura 1: Esquema da informação. 

A informação61 é o resultado do processamento, manipulação e organiza-


ção de dados. Por isso, representa uma modificação no conhecimento. A comuni-
cação é uma interacção activa, como se demonstra no seguinte esquema:

Mensagem

Codificação Descodificação
 
Descodificação Codificação

Mensagem

Figura 2: Esquema básico da comunicação como processo reversível.

Comunicar é, entre muitas coisas, expressar, representar, partilhar infor-


mações, pensamentos, percepções, sensações ou sentimentos através de signos
verbais (palavras de uma língua) ou não verbais (gestos, expressões faciais, pos-
turas corporais, vestuário, silêncio, etc.). Se a comunicação é importante, também
será importante o seu estudo. Pelo que anteriormente se referiu, a comunicação
é importante porque:
– É um fenómeno social e global.
– É um processo social imprescindível à vida em comunidade (não só do
ser humano, que é um ser gregário por natureza).
– É uma interacção que permite adquirir informações; expressar desejos,
interesses e necessidades; relacionar-se com os outros e com o meio,
mesmo que não se queira ou não se saiba.

61
O conceito de “informação” vem do latim informare, no sentido de “dar forma” ou aparência, pôr
em forma, formar, criar, representar, apresentar, criar uma ideia ou noção.
Paulo M. Barroso
74

O estudo da comunicação é importante, pois permite compreender como


somos e vivemos, como é a cultura em que nos inserimos e como nos integramos
e participamos nela, conforme as regras e valores sociais, padrões culturais e mo-
delos normativos.
Atente-se à seguinte tabela das diversas formas de comunicação:
Alfabética Publicações; jornais; revistas; cartas; telegramas;
Manuscrita
Silábica exposições; relatórios; avisos
ou
Escrita Ideográfica ou
Verbal 

impressa
pictográfica
Em relevo Publicações em sistema Braille; escrita em relevo
Aparelhagens sonoras; rádio; altifalantes; fala e audição; telefone;
Oral
seminários; palestras; reuniões; contactos; gestos
Audiovisual Televisão; cinema; videofone; projecção de slides
Gestual Linguagem dos surdos-mudos; gestos dos sinaleiros
Morse; bandeiras; código dos sinais de trânsito; símbolos matemáticos
Codificada ou simbólica
ou químicos
Não verbal 

Táctil Linguagem táctil dos cegos-surdos-mudos


Visuais Sinais de fumo; sinais de luzes
Por sinais
Acústicos Tambores; línguas assobiadas; sirenes das ambulâncias

Por acção Riso de um espectador provocado por uma cena cómica


Química Aromas provocados por petiscos
 Tabela 4: As diversas formas de comunicação, divididas entre verbal e não verbal.

Em função das diversas formas de comunicação à disposição dos indiví-


duos, demonstra-se que a comunicação é multiforme, social e naturalmente hu-
mana.

2.1. Origem e evolução da comunicação humana


Uma referência, por mais breve que seja, à origem e evolução da comuni-
cação humana, como a que aqui se propõe, é inevitavelmente também uma re-
ferência à origem e evolução da humanidade. Em E-sphere: The rise of the
world-wide mind, conforme sustenta Joseph N. Pelton, para se compreender esta
nova e actual época em que vivemos, à qual este autor atribui o nome de e-
sphere,62 é preciso reconhecer que a mesma está fundada em milhões de anos de
história da humanidade e que esta longa história não pode ser dividida (Pelton,
2000, p. 39). No livro 2001: Odisseia no espaço, Arthur C. Clarke demonstra essa
mesma referência, quando resume a ascensão do ser humano:

62
Joseph N. Pelton (2000, p. 204) caracteriza a e-sphere como a época e o mundo marcados pela
interactividade e globalidade de um só cérebro ou modo de pensar colectivo e interactivo. Trata-
se de uma aldeia global, mas diferente daquela que foi favorecida pela televisão transmitida via
satélite, em que todos viam a mesma imagem, e que foi abordada por McLuhan. Esta e-sphere é
uma aldeia global assente numa cultura electrónica, numa world-wide mind que pode pensar e
interagir colectivamente. A aldeia global de McLuhan é caracterizada pelo panopticon; a e-sphere
é caracterizada pelo synopticon.
Sociologia da Comunicação
75

“Ao contrário dos animais, que conheciam apenas o presente, o Homem adquirira
um passado; e começava a tactear em direcção a um futuro. Aprendera também a
controlar as forças da natureza; com o domínio do fogo, lançara as fundações da
tecnologia e deixara para trás a sua origem animal. A pedra deu lugar ao bronze e
depois ao ferro. À caça sucedeu a agricultura. A tribo transformou-se em aldeia e
a aldeia em cidade. A palavra tornou-se eterna, graças a certas marcas em pedra,
barro e papiro. Depois, inventou a filosofia e a religião. E povoou o céu, nem sempre
incorrectamente, de deuses.” (Clarke, 1988, p. 34).

Muito mais adiante nesse longo e lento processo de ascensão humana, as


técnicas e os meios tecnológicos aprimoraram-se e, conforme reconhece Arthur
C. Clarke:
“Quanto mais maravilhosos eram os meios de comunicação, mais triviais, espalha-
fatosos ou deprimentes pareciam ser os seus conteúdos. Acidentes, crimes, desas-
tres naturais e provocados pelo homem, ameaças de conflito, editoriais sombrios
– eis o que pareciam continuar a ser as principais preocupações dos milhões de pa-
lavras borrifadas para o éter.” (Clarke, 1988, p. 53).

As capacidades de comunicação são inatas. O ser humano começa a co-


municar instintivamente e desde muito cedo, com expressões naturais como bal-
bucios, gritos e choros. Estas expressões naturais podem manifestar fome, sono,
dor, desconforto ou medo. Vistos como comportamentos inatos, começa-se a co-
municar pressupondo necessariamente o outro como interlocutor. Pressupor e
entrar em comunhão (no sentido de comungar e partilhar algo) com o outro é
uma condição sine qua non para todos os processos de comunicação.
A comunicação é imprescindível quer para o relacionamento social quer
para o desenvolvimento de qualquer ser vivo gregário. É uma necessidade sócio-
cultural e biológica inerente ao ser humano. A cronologia dos processos de de-
senvolvimento das formas e técnicas de comunicação é remota, lenta e
cumulativa: cada nova forma, meio ou técnica de comunicação beneficia dos an-
teriores, aumentando cada vez mais a capacidade para comunicar. Apesar de
lenta, os processos de desenvolvimento das formas e técnicas de comunicação
têm sido, nos últimos anos e cada vez mais, acelerados e multifacetados graças
ao próprio avanço das ciências e da tecnologia.
Cerca de 500 mil anos separam a invenção da linguagem da invenção da
escrita mais formal e codificada (registada há 4 mil anos a.C.). Mais tarde, o alfa-
beto (1500 a.C.). Depois do tambor da selva, dos sinais de fumo, do telégrafo de
bambu dos chineses, das fogueiras, da torre, do pombo correio, do correio a ca-
valo, etc. como meios de comunicação, um momento revolucionário é a invenção
da imprensa por Gutenberg, ca. 1450, em que a forma de comunicação impressa
se expande (DeFleur & Ball-Rokeach, 1993, pp. 37-41). Foi preciso esperar à volta
de cinco mil anos entre o nascimento da escrita e o nascimento da imprensa. A
partir de então, os progressos aceleram. Pouco mais de 400 anos separam a in-
Paulo M. Barroso
76

venção da imprensa e a do telefone (com Bell, em 1876) e da rádio (com Marconi,


em 1899), que aceleram a transmissão de mensagens, sobretudo a partir da Pri-
meira Guerra Mundial.
Apenas 40 anos mais tarde, a televisão emite os seus primeiros programas
regulares. Se a televisão alargou a visão do mundo, a internet, 30 anos depois (em
1969),63 criou um outro mundo (virtual e sem fronteiras): o ciberespaço. A internet
é a terceira revolução industrial, segundo Ignacio Ramonet (2001, p. 17) em Pro-
pagandas silenciosas: Massas, televisão, cinema. No mesmo livro, Ramonet acres-
centa:
“[Com a internet] elemento integrado no sistema mediático, [apresenta-se] uma
ameaça para os media tradicionais, na medida em que constitui uma plataforma
que integra, cada vez mais, a televisão, o cinema, a edição, a música, os jogos de
vídeo, a informação, os dados da Bolsa, o desporto, a banca pessoal, as bilheteiras
de espectáculos e de viagens, o correio electrónico, a meteorologia, a documenta-
ção…” (Ramonet, 2001, p. 19).

É o multimédia (as novas tecnologias da informação e da comunicação).


Como refere Manuel Castells (2003, p. 7), em A galáxia da internet: Reflexões sobre
a internet, os negócios e a sociedade: “a Internet passou a ser a base tecnológica
para a forma organizacional da Era da Informação: a rede”.
“A Internet é um meio de comunicação que permite, pela primeira vez, a comunica-
ção de muitos com muitos, num momento escolhido, em escala global. Assim como
a difusão da máquina impressora no Ocidente criou o que McLuhan chamou de a
‘Galáxia de Gutenberg’, ingressamos agora num novo mundo de comunicação: a Ga-
láxia da Internet. O uso da Internet como sistema de comunicação e forma de orga-
nização explodiu nos últimos anos do segundo milênio. No final de 1995, o primeiro
ano de uso disseminado da world wide web, havia cerca de 16 milhões de usuários
de redes de comunicação por computador no mundo.” (Castells, 2003, p. 8).

63
Atente-se à diferença entre a internet e a world wide web, também conhecida por web (“teia”,
“rede”) ou apenas www. A internet, desenvolvida a partir da Advanced Research Projects Agency
Network (ARPANET) criada em 1969, é uma rede que conecta os milhões de computadores entre
si no mundo; a world wide web é uma das várias ferramentas de acesso à internet; é um sistema
de informações interligadas que permite o acesso de conteúdos através da internet, da qual é
dependente. A internet fornece os vários serviços, como a troca de mensagens por correio
electrónico (email); a world wide web usa o protocolo HTTP para promover essa transferência de
informações e depende de navegadores (browsers) para apresentar o conteúdo ao utilizador,
permitindo-o clicar em ligações (links) de acesso a arquivos hospedados em outros computadores.
Apesar de a internet ser muito maior e mais acessível do que a ARPANET, era difícil de usar. Podia-
se trocar mensagens, arquivos e até executar alguns programas remotamente, mas além disso
não se podia fazer muito mais, a menos que se fosse um especialista (cf. Poe, 2011, p. 214). Nesse
sentido, Castells (2003, p. 22) explica que “em colaboração com Robert Cailliau, Berners-Lee
construiu um programa navegador/editor em dezembro de 1990 e chamou esse sistema de
hipertexto de world wide web, a rede mundial. O software do navegador da web foi lançado na
Net pelo CERN em Agosto de 1991”. Sobre a invenção da world wide web, veja-se o testemunho
do próprio inventor (cf. Berners-Lee, 1999).
Sociologia da Comunicação
77

Hoje, 25 anos depois, o número de utilizadores é naturalmente muito su-


perior. Uma informação (por exemplo noticiosa) percorre o planeta em poucos
segundos pela internet e a comunicação à escala mundial é uma prática genera-
lizada. Se antigamente o acesso à informação era um privilégio das minorias com
poderes económicos, o acesso imediato à informação é, hoje, frequente e acessível
a todos, graças aos novos meios tecnológicos de comunicação. Hoje, a comuni-
cação representa-se como ideologia da modernidade e fundamento da sociabili-
dade.
“A comunicação serve, no nosso tempo, para legitimar discursos, comportamentos
e acções, tal como a religião nas sociedades tradicionais, o progresso nas sociedades
modernas ou a produção na sociedade industrial: é o mais recente instrumento
mobilizador, disponível para provocar efeitos de consenso universalmente aceite
nos mais diferentes domínios da experiência moderna. De contornos vagos e in-
definidos, a comunicação presta-se aos mais diversos usos estratégicos, a ser in-
vocada pelos diversos campos sociais e a circular pelas esferas em que se verificam
diferendos e conflitos. De facto, à medida que, no mundo moderno, as sociedades
têm vindo a segmentar-se numa diversidade de campos autónomos, comunicar
tem-se tornado um imperativo ético e uma urgência política.” (Rodrigues, 1999,
p. 13).

Nas sociedades actuais, é cada vez mais frequente o uso de redes sociais.
Todavia, esta circunstância não significa mais sociabilidade; pelo contrário, a vir-
tualidade das relações interpessoais configura um generalizado défice de relações
humanas interpessoais. Segundo Castells:
“A emergência da Internet como um novo meio de comunicação esteve associada
a afirmações conflitantes sobre a ascensão de novos padrões de interação social.
Por um lado, a formação de comunidades virtuais, baseadas sobretudo em comu-
nicação on-line, foi interpretada como a culminação de um processo histórico de
desvinculação entre localidade e sociabilidade na formação da comunidade: novos
padrões, seletivos, de relações sociais substituem as formas de interação humana
territorialmente limitadas. Por outro lado, críticos da Internet, e reportagens da
mídia, por vezes baseando-se em estudos de pesquisadores acadêmicos, sustentam
que a difusão da Internet está conduzindo ao isolamento social, a um colapso da
comunicação social e da vida familiar, na medida em que indivíduos sem face pra-
ticam uma sociabilidade aleatória, abandonando ao mesmo tempo interações face
a face em ambientes reais.” (Castells, 2003, p. 98).

De acordo com este excerto de A galáxia da internet: Reflexões sobre a inter-


net, os negócios e a sociedade, Castells adverte para o cuidado a ter com as inte-
racções sociais na internet, principalmente com as interacções que são pautadas
por identidades e informações falsas. Assim se compreende que a internet seja
“acusada” de induzir as pessoas a viver ilusões, falsidades e fantasias online, fu-
gindo intencionalmente ou tornando-se involuntariamente alienadas do mundo
real, numa cultura cada vez mais dominada pela realidade virtual.
Paulo M. Barroso
78

A era da computação traz vantagens, mas também desvantagens. O


ENIAC64 é usualmente apontado como o primeiro computador moderno, possuía
uma finalidade militar e tinha as seguintes características: 5,5 metros de altura
e 25 metros de comprimento (área de 180 m2); 30 toneladas de peso; 17 468 vál-
vulas; sem monitor, teclado nem rato. Este computador tinha bastantes limita-
ções: erros de operações, avarias e lentidão de processamento (uma operação de
multiplicar demorava 11 segundos). Foi desactivado em 2 de Outubro de 1955.
Já em 1975, Jean Cloutier, em A era do emerec ou a comunicação áudio-
scripto-visual na hora dos self-media, divide a história da comunicação em quatro
episódios. Esses episódios são caracterizados pela utilização cumulativa de novos
modos de comunicar que transformam a sociedade:
– A comunicação interpessoal: exteriorizada através de gestos e palavras.
– A comunicação de elite: caracterizada pelo desenho, música e escrita.
– A comunicação de massas: surge com a imprensa e culmina com o satélite.
– A comunicação individual: baseada no multimédia e nos self media.

Na era dos self media, é o consumidor quem compõe o produto que vai
consumir e já não lhe basta o produto acabado que lhe é oferecido. Trata-se de
um self-service da informação de prática quotidiana. Os self media pressupõem
receptores activos que também produzem e transmitem informações.

2.2. Antropologia da comunicação


A Antropologia é uma ciência social. De acordo com os investigadores
deste campo de estudo, como Mischa Titiev (2002, p. 5), “o seu objecto diz res-
peito a agregados de pessoas que geralmente ocupam uma única região e parti-
lham uma maneira de viver comum”. A Antropologia é uma ciência afim da
Sociologia e, em particular, da Sociologia da Comunicação, conforme se reconhece
na Introdução. Se inserirmos o factor “comunicação” nesta circunstância de agre-
gado de pessoas num espaço e com maneiras de viver comuns, mais pertinente
se torna uma abordagem antropológica sobre a comunicação (DeFleur & Ball-Ro-
keach, 1993, p. 43), i.e. sobre comunidades linguísticas assentes em sistemas de
inter-relações.
Considerando a naturalidade das capacidades de comunicação humana, é
pertinente e necessário abordá-la, primeiramente, numa dimensão antropológica,
como própria do ser humano gregário. Neste sentido, a abordagem antropológica
da comunicação é compreensível e demonstrável por Marcel Mauss (1872-1950),

64
Acrónimo de Electronic Numerical Integrator And Computer (“Computador e Integrador Numérico
Electrónico”), construído em 1946 por John Mauchly e John Eckert.
Sociologia da Comunicação
79

quando analisa os fundamentos da vida humana no Ensaio sobre a dádiva (1950),


ou seja, o potlatch como um sistema de inter-relações.65
A vida humana é comunitária, interactiva, enquadra-se institucional-
mente. Por conseguinte, as instituições são criadas para a vida social, porque não
há lugar para o estado-natureza. O melhor exemplo é apresentado por Mauss
com o potlatch. A dádiva funciona como um dispositivo de sociabilidade e lógica
da comunicação, considerando que o potlatch é um sistema de prestações sociais
e económicas totais. Nas sociedades onde se pratica o potlatch desenvolve-se a
dádiva como processo social e de comunicação simbólica que, por ser assim, de-
senvolve igualmente a interacção e a relação social, ou seja, é um fundamento
da sociabilidade. Segundo Mauss:
“É da natureza da sociedade expressar-se simbolicamente nos seus costumes e nas
suas instituições; pelo contrário, as condutas individuais normais ‘nunca são sim-
bólicas por si mesmas’: elas são os elementos a partir dos quais se constrói um sis-
tema simbólico, que não pode ser senão colectivo.” (Mauss, 1988, p. 15).

Para Mauss, o potlatch é uma instituição social, pois a criação e manuten-


ção de laços sociais dependem de processos de trocas simbólicas generalizadas
como as que faculta o sistema do potlatch. As trocas são realizadas através de
actos “obrigatórios” de dar, receber e retribuir.
“Ao estudar a instituição do potlatch nas tribos trobriandesas, Marcel Mauss mos-
trava que a criação e o restabelecimento dos laços sociais dependem de um pro-
cesso de troca simbólica generalizada, constituído pela obrigação de dar, de receber
e de retribuir. É este dispositivo da sociabilidade que funda também a lógica da co-
municação. Marcel Mauss descobria assim, no processo generalizado de troca e de
circulação, um dos princípios fundamentais do vínculo social, fonte de todo o valor.”
(Rodrigues, 1999, p. 16).

Se o potlatch é um sistema de prestações sociais totais, tem exigências ou


características específicas. Assim, as prestações são:
– Gratuitas: voluntárias, não obrigatórias.
– Obrigatórias: socialmente impostas e necessárias à manutenção de
laços.
– Faseadas: envolvem três momentos: dar, receber e retribuir.
– Desinteressadas: implicam a participação activa e desinteressada das
pessoas.
– Sociais: conduzem à sociabilidade (problemas sociais estão implicados).
– Económicas: assentam na lógica da troca de “ofertas” num mercado
simbólico.

65
O termo potlatch significa “dádiva” e é um sistema de prestações sociais e totais que é próprio de
algumas tribos primitivas, como as do Canadá.
Paulo M. Barroso
80

– Totais: implicam a participação de todos, sob pena de auto-exclusão e


ruptura com o sistema.
– Simbólicas: valor de troca, valor de uso e valor sígnico ou simbólico.

Qual é a relação entre o potlatch e a comunicação? Compreender o funcio-


namento do potlatch serve igualmente para compreender o funcionamento quer
da comunicação, enquanto troca simbólica e habilidade humana natural, quer
das relações sociais que se baseiam em interacções permanentes. As práticas ou
actos de potlatch e de comunicação:
– Criam inter-relações entre os agentes que integram ambos os proces-
sos.
– São formas de partilha.
– Estabelecem situações em comum (são trocas generalizadas).
– Potenciam relações de dominação e influência social.
– O poder do sistema reside no seu sentido.
– São fruto de acordo (exercido pela circulação e correspondência das re-
lações).
– Realçam o valor de ritual colectivo e sintetizam a inserção social.

Segundo Adriano Duarte Rodrigues, em Comunicação e cultura: A experiên-


cia cultural na era da informação, o problema das relações sociais é:
“[…] o de saber se, em virtude do seu ideal de racionalidade, as sociedades actuais
teriam deixado de poder contar com este dispositivo para a gestação do valor, ins-
taurando em seu lugar mecanismos objectiváveis, independentes das relações e
dos laços sociais que os agentes criam ao longo dos processos de troca simbólica
generalizada. […] Da previsibilidade do processo comunicacional depende um dos
seus princípios fundamentais, o da intercompreensão. O apaixonado que oferece
um ramo de flores à sua amada, mesmo que pretenda surpreendê-la com este seu
gesto, partilha com ela o sentido desse gesto, na medida em que, por um lado, res-
ponde a uma expectativa gerada por um relacionamento afectuoso prévio ou, pelo
menos, pretende alimentar e aprofundar essa relação mútua e recíproca. É graças
ao princípio da intercompreensão que o ramo de flores do apaixonado integra o
conjunto das manifestações entendidas pela amada como manifestações de afecto.
Sem a liberdade do gesto do apaixonado nem o reconhecimento por parte da pessoa
amada do significado do seu gesto, não há comunicação nem compreensão do
afecto que o ramo de flores representa. A saudação que dirijo a alguém não é uma
informação, mas a realização de um processo recíproco de troca simbólica.” (Ro-
drigues, 1999, pp. 17-21).

A comunicação, enquanto troca simbólica, não significa acima de tudo que


seja um produto (até pode ser assim entendida), mas quer dizer que é um pro-
cesso de troca simbólica generalizada. É um processo de que se alimenta a so-
ciabilidade, que gera os laços sociais, sobrepondo-se às relações naturais com o
Sociologia da Comunicação
81

meio ambiente. A sobrevivência dos seres vivos depende das trocas com o meio
ambiente e com os outros seres. As trocas são como uma relação entre um estí-
mulo e uma resposta.
De acordo com Mauss, em Sociologia e antropologia:
“Os factos que estudamos são todos, permitam-nos a expressão, factos sociais totais
ou, se quiserem - mas gostamos menos da palavra - gerais: isto é, eles põem em
acção, em certos casos, a totalidade da sociedade e de suas instituições (potlatch,
clãs que se enfrentam, tribos que se visitam etc.) e, noutros casos, somente um nú-
mero muito grande de instituições, em particular quando essas trocas e contratos
dizem respeito sobretudo a indivíduos. Todos esses fenómenos são ao mesmo
tempo jurídicos, económicos, religiosos, e mesmo estéticos, morfológicos etc. São
jurídicos, de direito privado e público, de moralidade organizada e difusa, estrita-
mente obrigatórios ou simplesmente aprovados e reprovados, políticos e domésti-
cos simultaneamente, interessando tanto as classes sociais quanto os clãs e as
famílias. São religiosos: de religião estrita, de magia, de animismo, de mentalidade
religiosa difusa. São económicos: pois as ideias do valor, do útil, do ganho, do luxo,
da riqueza, da aquisição, da acumulação e, de outro lado, a do consumo, mesmo a
de dispêndio puro, puramente sumptuário, estão presentes em toda a parte, em-
bora sejam entendidas diferentemente de como as entendemos hoje. Por outro
lado, essas instituições têm um aspecto estético importante que deliberadamente
deixamos de lado neste estudo: mas as danças que se sucedem, os cantos e os des-
files de todo tipo, as representações dramáticas que se oferecem de acampamento
a acampamento e de associado a associado, os objectos mais diversos que se fabri-
cam, usam, enfeitam, pulem, recolhem e transmitem com amor, tudo que se recebe
com alegria e se apresenta com sucesso, os próprios festins de que todos partici-
pam, tudo, alimentos, objectos e serviços, mesmo o ‘respeito’, como dizem os Tlin-
git, tudo é causa de emoção estética e não apenas de emoções da ordem da moral
ou do interesse.” (Mauss, 2008, pp. 309-310).

As sociedades são sistemas abertos e dinâmicos; são como extensos orga-


nismos vivos com instituições sociais e órgãos, bem como as respectivas funções
que lhes permitem funcionar de um modo integrado e complementar. Existem
nos sistemas sociais permanentes inter-relações e relações de comunicação,66
constituindo um ecossistema social e cultural que é o habitat natural do ser hu-
mano.

2.3. Paul Watzlawick: pragmática da comunicação humana


O interaccionismo simbólico é um paradigma teórico que se desenvolveu
na esteira de Georg Simmel, a partir dos trabalhos de Edgar Morin, Gregory Ba-
teson, Erwing Goffman, Paul Watzlawick, Edward Hall e outros autores da deno-
minada Escola de Palo Alto (Gonçalves, 2002, p. 78) ou Instituto de Pesquisa
Mental de Palo Alto, na Califórnia. O enfoque do interaccionismo simbólico são

66
Quer a relação (entre partes ou elementos de um sistema ou estrutura, como a sociedade) quer a
comunicação são, necessariamente, sociais, i.e. fenómenos sociais e totais.
Paulo M. Barroso
82

as práticas sociais e as relações sociais desencadeadas pela acção dos indivíduos


que se encontram, precisamente, em interacção. As relações inserem-se e são re-
produzidas na estrutura social e segundo formas institucionais, obrigando à con-
formidade com as representações e as ideologias (Gonçalves, 2002, p. 78). O
interaccionismo simbólico parte da análise da comunicação humana.
A comunicação é um elemento cultural imprescindível às práticas e às re-
lações sociais. Portanto, a comunicação é fundamental à vida colectiva e à inte-
racção social e simbólica contínua, variando os comportamentos e as práticas de
comunicação de cultura para cultura. Em cada cultura, a pragmática da comuni-
cação humana segue um padrão e produz sentidos. Por isso, os comportamentos
e as relações sociais farão sentido (i.e. serão compreendidos) dentro de um de-
terminado quadro de referências e padrões culturais.
Efectivamente, a comunicação é o fundamento de unidade e variabilidade
da cultura e da vida colectiva (Gonçalves, 2002, p. 25). É estruturante das formas
de vida, dos comportamentos, das acções e das relações sociais. Por isso, a prag-
mática da comunicação humana foi eminentemente desenvolvida pela Escola de
Palo Alto, em particular por Paul Watzlawick, Janet Beavin e Don Jackson. Esta
perspectiva baseia-se nas características mais fundamentais da comunicação hu-
mana e atribui importância aos factores psicológicos (e.g. as desordens do com-
portamento enquanto reacção comunicativa) e aos efeitos práticos ou
pragmáticos (comportamentais) da comunicação humana. A perspectiva incide
nas relações formais entre comunicação e comportamento. A comunicação é uma
condição para a vida e a ordem social, à qual todos estamos sujeitos desde o
início da existência. Em 1967, Watzlawick, Beavin e Jackson publicam a obra in-
titulada Pragmática da comunicação humana: Um estudo dos padrões, patologias e
paradoxos da interação, da qual se extraem os seguintes excertos atinente a cada
um dos cinco axiomas da comunicação:
“Em primeiro lugar, temos uma propriedade do comportamento que dificilmente
poderia ser mais básica e que, no entanto, é frequentemente menosprezada: o com-
portamento não tem oposto. Por outras palavras, não existe um não-comporta-
mento ou, ainda em termos mais simples, um indivíduo não pode não se comportar.
Ora, se está aceito que todo o comportamento, numa situação interacional, tem
valor de mensagem, isto é, é comunicação, segue-se que, por muito que o indivíduo
se esforce, é-lhe impossível não comunicar. Actividade ou inactividade, palavras ou
silêncio, tudo possui um valor de mensagem; influenciam outros e estes outros,
por sua vez, não podem não responder a essas comunicações e, portanto, também
estão comunicando. […]
Tampouco podemos dizer que a ‘comunicação’ só acontece quando é intencional,
consciente ou bem-sucedida, isto é, quando ocorre uma compreensão mútua. Se a
mensagem enviada iguala a mensagem recebida é uma importante mas diferente
ordem de análise, pois que deve assentar, fundamentalmente, nas avaliações de
dados específicos, introspectivos, relatados pelo sujeito, os quais preferimos negli-
genciar para a exposição de uma teoria comportamental da comunicação.” (Watz-
lawick, Beavin & Jackson, 2002, pp. 44-46).
Sociologia da Comunicação
83

Este primeiro excerto enuncia o axioma da impossibilidade de não se co-


municar. Este axioma é provavelmente o mais relevante dos cinco. O segundo
axioma é referente ao conteúdo e aos níveis de relação da comunicação:
“Um outro axioma foi insinuado acima, quando sugerimos que qualquer comuni-
cação implica um cometimento, um compromisso; e, por conseguinte, define a re-
lação. Isso é outra maneira de dizer que uma comunicação não só transmite
informação mas, ao mesmo tempo, impõe um comportamento. Segundo Bateson,
essas duas operações acabaram sendo conhecidas como os aspectos de ‘relato’ e
de ‘ordem’, respectivamente, de qualquer comunicação. […]
O aspecto ‘relato’ de uma mensagem transmite informação e, portanto, é sinónimo,
na comunicação humana, do conteúdo da mensagem. Pode ser sobre qualquer coisa
que é comunicável, independentemente de essa informação particular ser verda-
deira ou falsa, válida, inválida ou indeterminável. O aspecto ‘ordem’, por outro
lado, refere-se à espécie de mensagem e como deve ser considerada; portanto, em
última instância, refere-se às relações entre os comunicantes. […]
Se revertermos agora à comunicação humana, vemos que a mesma relação existe
entre os aspectos de relato e ordem: o primeiro transmite os ‘dados’ da comunica-
ção, o segundo como essa comunicação deve ser entendida.” (Watzlawick, Beavin
& Jackson, 2002, pp. 47-49).

O terceiro axioma tem a ver com a pontuação da sequência de eventos:


“A próxima característica básica da comunicação que desejamos explorar diz res-
peito à interação – troca de mensagens – entre comunicantes. Para um observador
externo, uma série de comunicações pode ser vista como uma sequência ininterrupta
de trocas. Contudo, os participantes na interação introduzem sempre o que, se-
gundo Whorf, Bateson e Jackson designaram por ‘pontuação da sequência de even-
tos’.” (Watzlawick, Beavin & Jackson, 2002, p. 50).

Watzlawick, Beavin e Jackson resumem o quarto axioma da comunicação,


a comunicação digital e analógica, da seguinte forma:
“Os seres humanos comunicam digital e analogicamente. A linguagem digital é uma
sintaxe lógica sumamente complexa e poderosa mas carente de adequada semântica
no campo das relações, ao passo que a linguagem analógica possui a semântica mas
não tem uma sintaxe adequada para a definição não-ambígua da natureza das rela-
ções.” (Watzlawick, Beavin & Jackson, 2002, p. 61).

Por fim, é apresentada a interacção simétrica e complementar como sendo


o quinto axioma:
“Os dois padrões que acabam de ser descritos passaram a ser usados sem referência
ao processo cismogenético e, atualmente, são citados apenas como interacção si-
métrica e complementar. Podem ser descritos como relações baseadas na igualdade
ou na diferença. No primeiro caso, os parceiros tendem a reflectir o comportamento
um do outro e por isso é que a sua interacção pode chamar-se simétrica. […] No
segundo caso, o comportamento de um parceiro complementa o do outro, for-
mando uma espécie diferente de Gestalt comportamental, e dá-se-lhe o nome de
complementar. Assim, a interacção simétrica é caracterizada pela igualdade e a mi-
nimização da diferença; a interacção complementar baseia-se na maximização da
diferença.
Paulo M. Barroso
84

Existem duas posições diferentes numa relação complementar. Um parceiro ocupa


o que tem sido diversamente descrito como a posição superior, primária ou ‘de
cima’ e o outro a correspondente posição inferior, secundária ou ‘de baixo’. Estes
termos são muito úteis, desde que equiparados a ‘bom’ ou ‘mau’, ‘forte’ ou ‘fraco’.
Uma relação complementar pode ser estabelecida pelo contexto social ou cultural
(como no caso de mãe e filho, médico e paciente, professor e aluno) ou pode ser o
estilo de relação idiossincrática de uma determinada díade. Num ou noutro caso,
é importante enfatizar a natureza conjugada da relação, em que comportamentos
dessemelhantes, mas ajustados se provocam mutuamente. Um parceiro não impõe
uma relação complementar ao outro mas, antes, comporta-se de maneira que pres-
supõe o comportamento do outro, enquanto que, ao mesmo tempo, fornece razões
para tal comportamento: as respectivas definições de relação encaixam-se.” (Watz-
lawick, Beavin & Jackson, 2002, p. 63).

Este excerto refere os cinco axiomas importantes para a compreensão da


comunicação humana, segundo esta perspectiva pragmática da comunicação:
1) Não é possível não comunicar, ou seja, a comunicação é inerente ao ser
humano e é inevitável para a interacção e o comportamento; portanto,
é impossível não comunicar, porque todos comunicamos, conscientes
ou não.

2) As pessoas comunicam digital e analogicamente, pois inserem-se em


sistemas (a escola, a família, a empresa onde trabalham, etc.) onde exer-
cem padrões de comunicação de dois tipos: analógico (não verbal, sem
código semântico: elevação da voz, face vermelha/exaltação, etc.) e di-
gital (codificada e essencialmente verbal). Todo o comportamento trans-
mite uma mensagem que, não possuindo um código semântico,
transporta em si um significado que pode ou não clarificar a mensagem
verbal (digital). A comunicação digital perde significado quando não é
acompanhada da comunicação analógica.

3) A comunicação inclui aspectos de conteúdo (da mensagem; informa-


tivo: o que é dito) e de relação (meta-comunicação: explica e qualifica
o conteúdo: a forma como é dito). O conteúdo e a relação são os dois
níveis em cada acto de comunicação. Os problemas de comunicação
podem surgir devido ao conteúdo ou à relação, i.e. quando a meta-co-
municação não é clara ou quando contradiz o conteúdo da mensagem
(e.g. dizer que não se está envergonhado e ter a face vermelha). Para
evitar conflitos, é importante que o conteúdo seja clarificado com a re-
lação.

4) A natureza das relações depende da forma como as partes se desem-


penham na comunicação; a mensagem depende da sua organização in-
terna.
Sociologia da Comunicação
85

5) Toda a comunicação é simétrica (revela rivalidade, competição, mini-


mização das diferenças) ou complementar (revela solidariedade por ma-
ximização das diferenças).

2.4. Questões para revisão e reflexão


1. O que é a comunicação? Quais são as diferenças entre comunicação in-
terpessoal e comunicação de massas? Em qual das formas de comuni-
cação se encaixam melhor os objectivos da Sociologia da Comunicação?
2. A comunicação e o estudo da comunicação são importantes? Porquê?
3. Como explicar a aceleração mais recente do desenvolvimento dos meios
de comunicação relativamente aos séculos passados, quando a evolução
dos meios e técnicas de comunicação foi mais lento e espaçado?
4. Como justificar a importância da dimensão antropológica da comuni-
cação relativamente a outras abordagens e dimensões?
5. Qual é a relação entre o potlatch e a comunicação? De que modo o po-
tlatch, sendo um sistema originário de um contexto primitivo, pode ser-
vir para compreender os sistemas de relações actuais das sociedades
modernas, i.e. mais desenvolvidas tecnologicamente e complexas?
Sociologia da Comunicação
87

3. Sociedade, cultura e comunicação de massas


“Para resumir numa frase o que a ideologia da cultura de massas efectivamente
acrescenta, seria preciso representá-lo na paródia do dito ‘Torna-te no que és’:
como a duplicação e justificação exageradas de condições já existentes que
destruiria qualquer perspectiva de transcendência e crítica.”
(Adorno & Horkheimer, 1973, p. 202).67

Não há sociedade humana sem cultura nem cultura sem comunicação. Os


conceitos de sociedade, comunicação e cultura estão relacionados, pertencem ao
mesmo processo social de transformação do tradicional no moderno, do identi-
tário (ou culturalmente exclusivo) no massificado (ou cultura-mundo, i.e. um
mundo cada vez mais uniformizado, homogeneizado e globalizado, com socie-
dades cada vez mais iguais). A comunicação é cultura e ambas fazem parte deste
complexo processo de transformação global das sociedades. Por conseguinte, es-
tudar a comunicação é compreender a cultura e a sociedade, pois a comunicação
é uma manifestação de cultura e de interacção social. Todavia, a sociedade, a cul-
tura e a comunicação assumem, na actual era tecnológica da globalização, uma
característica comum: são de massas. As massas formam a totalidade ou conjunto
não delimitado de indivíduos fora das estruturas sociais tradicionais.
As relações entre a cultura e a comunicação são complexas, múltiplas, pro-
gressivas, íntimas e recíprocas. As culturas relacionam-se entre si através de me-
canismos de mediação e mediatização.68 Estes mecanismos atribuem sentidos e
valores éticos e estéticos às culturas; sentidos e valores que se efectivam no quo-
tidiano por meio de práticas colectivas e individuais (Ferin, 2009, p. 9). Existem
interdependências e inter-relações entre os campos da comunicação e da cultura.
Dadas as relações, por um lado, e devido às tecnologias e aos media (tradicionais
e modernos), por outro, desenvolve-se a comunicação global e a cultura global,
“onde quotidianos, estilos de vida, tradições, crenças e visões de mundo, em
suma, as diversas culturas se interpenetram, a ritmos acelerados e com conse-
quências imprevisíveis” (Ferin, 2009, pp. 10-11). A comunicação global, tecnica-
mente apetrechada, interfere na cultura global e em cada cultura.

67
Tradução do autor a partir do texto da edição consultada em inglês de Adorno & Horkheimer: “If
one were to compress within one sentence what the ideology of mass culture actually adds up
to, one would have to represent this as a parody of the injunction: ‘Become that which thou art’:
as the exaggerated duplication and justification of already existing conditions, and the
deprivation of all transcendence and all critique.”
68
Os mecanismos de mediação ou interacção mediada são de comunicação mediada e assentam
nos processos, meios técnicos e instituições (família, escola, Igreja, media, novos media, etc.) de
socialização que transmitem informações, comportamentos, hábitos e atitudes, i.e. “criam
condições de vida em sociedade”; os mecanismos de mediatização são de comunicação
mediatizada, “aquela que se realiza através dos media, dos novos media e das indústrias culturais
e de conteúdo” (Ferin, 2009, pp. 27-28).
Paulo M. Barroso
88

3.1. Conceito de “massa”


O conceito de “massa” é, apesar de vago, abstracto e equívoco (cf. Acosta,
1979, p. 141), relevante para caracterizar as sociedades e as culturas contempo-
râneas, onde o papel dos media é determinante ao moldá-las, ao informar e in-
fluenciar as pessoas e a formar (esclarecer ou “doutrinar”) a opinião pública. No
processo de massificação também é importante o desenvolvimento da tecnologia
(transformando a sociedade em sociedade digital ou sociedade hiper-real) e dos
meios de comunicação à disposição das pessoas e das entidades colectivas. O
conceito de “massa” pressupõe um grande agregado de pessoas geralmente in-
diferenciadas e sem ordem (cf. McQuail, 1994, p. 76). É um reflexo das formas de
vida colectiva modernas que se constituem em sociedades de massas.
“Assim, quando se afirma que os novos meios de difusão são mass media e consti-
tuem um sistema de comunicação de massa, subentende-se que tendem a homo-
geneizar os indivíduos que formam os seus públicos, a criar neles certas atitudes,
gostos, comportamentos quase idênticos, relegando para um plano secundário os
sinais distintivos e as diferenças que lhe poderiam conferir, pelo contrário, a sua
pertença a uma família, a uma classe social, a uma profissão e atenuando ao má-
ximo os traços específicos da sua personalidade. No limite, chega a imaginar-se ou
a sugerir-se que, se a acção dos mass media persiste e a massificação é perfeita,
todos os indivíduos, sentados diante dos seus aparelhos de televisão, ingurgitarão
o mesmo espectáculo à mesma hora e terão as mesmas reacções.” (Cazeneuve,
1999, pp. 174-175).

A massa não possui tradições ou regras de comportamento. A massa é o


conjunto de pessoas não especialmente qualificadas. Segundo Ortega y Gasset,
a massa é o Homem médio, é o Homem enquanto não se distingue dos outros; a
massa revoluciona tudo o que é diferente (singular ou individual); a massa preo-
cupa-se apenas com o seu bem-estar e não se sente solidária com as causas de
bem-estar. É um conjunto homogéneo de indivíduos, mesmo que provenham de
ambientes diferentes e de outros grupos sociais. A massa é composta por pessoas
que não se conhecem (estão separadas umas das outras) e praticamente não têm
possibilidade de exercer uma influência recíproca.
Para Ortega y Gasset, o “homem-massa” é um ser que:
– Não se angustia, não se incomoda e sente-se bem ao ser idêntico aos
demais.
– Não possui consciência de si mesmo.
– Não tem história nem tradição.
– Está despossuído de particularidades.
– Perambula, sem se fixar nem criar raízes.

Atente-se ao seguinte excerto de A rebelião das massas, onde Ortega y Gas-


set traça o perfil psicológico de quem denomina por “homem-massa”:
Sociologia da Comunicação
89

“No nosso tempo domina o homem-massa; é ele quem decide. […]


O poder público encontra-se nas mãos de um representante de massas. […] O
homem-massa é o homem cuja vida carece de projecto e anda à deriva. Por isso
não constrói nada, mesmo que as suas possibilidades, os seus poderes, sejam enor-
mes.
E é este tipo de homem que no nosso tempo decide. Convém, pois, que analisemos
o seu carácter. […]
Em três gerações produziu de forma gigantesca uma massa humana que, lançada
como uma torrente na área histórica, a inundou. Bastaria, repito, este dado para
compreender o triunfo das massas e quanto nele se reflecte e se anuncia.
Se esse tipo humano continua dono da Europa e é definitivamente aquele que de-
cide, bastarão trinta anos para o nosso continente retroceder à barbárie. […]
Como é este homem-massa que hoje domina a vida pública - a vida política e a não
política? Por que é como é, quero dizer, como se produziu? […]
Isto leva-nos a apontar no diagrama psicológico do homem-massa actual dois pri-
meiros traços: a livre expansão dos seus desejos vitais, portanto, da sua pessoa, e
ingratidão radical por tudo quanto tornou possível a facilidade da sua existência.
Um traço e outro compõem a conhecida psicologia do menino mimado. E, com
efeito, não erraria quem utilizasse esta como matriz para ver através dela a alma
das massas actuais. Herdeiro de um passado larguíssimo e genial – genial em ins-
pirações e em esforços –, o novo vulgo foi mimado pelo mundo que o rodeia. Mimar
é não limitar os desejos, dar a um ser a impressão de que tudo lhe é permitido e a
nada é obrigado. A criatura submetida a este regime não tem a experiência dos
seus próprios confins. À força de lhe evitarem qualquer pressão em redor, qualquer
choque com outros seres, chega a acreditar efectivamente que só existe ele, e acos-
tuma-se a não contar com os outros, sobretudo a não contar com ninguém como
superior a ele. Esta sensação da superioridade alheia só lhe podia ser proporcionada
por quem, mais forte do que ele, o tivesse obrigado a renunciar a um desejo, a re-
duzir-se, a conter-se. Assim teria aprendido esta disciplina essencial: ‘Aí termino
eu e começa outro que pode mais do que eu. No mundo, pelos vistos, há dois: eu e
outro superior a mim’. […]
A minha tese é, pois, esta: a própria perfeição com que o século XIX deu uma or-
ganização a certas ordens da vida é a origem de as massas beneficiárias não a con-
siderem como organização, mas como natureza. Assim se explica e define o estado
de ânimo absurdo que essas massas revelam: não se preocupam senão com o seu
bem-estar e ao mesmo tempo são insolidárias com as causas desse bem-estar.” (Or-
tega y Gasset, 1989, pp. 66-75).

Há um sentido pejorativo do termo “massa”, no sentido de “rebanho in-


consciente”, que é justificado pelo facto de os indivíduos se encontrarem sub-
missos e maleáveis na sociedade. Num período inicial, o termo “massa” referia-se
a pessoas ignorantes e indisciplinadas (cf. McQuail, 1994, p. 75). O “homem-
massa” de Ortega y Gasset é a antítese do homem humanista e culto, sendo a
massa a “jurisdição dos incompetentes”, i.e. “tudo o que não se avalia a si pró-
prio” (Wolf, 1992, p. 20). A massa é propriedade do indivíduo acrítico, indiferen-
ciado e que subverte o que é diferente e se preocupa apenas consigo, com o seu
bem-estar.
Paulo M. Barroso
90

Salvador Giner, em Mass society, também traça as características das so-


ciedades de massas como sociedades indiferenciadas e sem referentes do passado
nem projectos ou rumos para o futuro:
“Uma das principais perspectivas sociais presentes no mundo moderno e caracte-
rística do mesmo mundo é uma concepção chamada interpretação da ‘sociedade
de massa’. Em alguns sectores, também recebe o nome de ‘teoria da sociedade de
massa’. No entanto, apresso-me a dizer, muito raramente aparece sob um disfarce
que pode merecer o título de teoria, com as suas conotações mínimas de rigor ló-
gico e falsificabilidade. No entanto, manterei a expressão ‘teoria’ em muitos casos,
a fim de permanecer fiel às fontes e ao discurso comum, consciente, porém, das
armadilhas e falácias envolvidas. (Além disso, o facto de a palavra ‘teoria’ ser usada
de maneira tão generosa pelos ‘teóricos’ da sociedade de massa para descrever as
suas cogitações é bastante revelador.) A perspectiva em questão afirma basica-
mente que a sociedade moderna é o resultado do desaparecimento generalizado
dos elementos de diferenciação que se diversificavam nas sociedades do passado,
assim como o resultado paralelo de uma perda de sentido do sagrado: a tecnologia,
a abundância económica e a igualdade política criaram uma sociedade homogénea,
em que os homens são presa das forças impessoais da burocracia e arregimentação,
sendo o fanatismo ideológico o seu único e fatal refúgio do deserto moral criado
pela apatia generalizada e a incredulidade secular.” (Giner, 1976, p. xi).69

Existe uma relação de proximidade, senão de causa-efeito, entre o desen-


volvimento dos meios de comunicação de massas e a massificação das socieda-
des. Se considerarmos que os conteúdos difundidos pelos media são populares e
superficiais (promovem espectáculo e sensacionalismo, indo ao encontro das ne-
cessidades básicas de satisfação e distracção) e são pouco exigentes em termos
de rigor (na informação) e qualidade (nos programas de entretenimento), as au-
diências dos media tornam-se naquilo que “consomem”. As audiências, ao prefe-
rirem conteúdos desta natureza, estimulam os media a difundirem-nas,
considerando que os media têm interesse em agradar os seus públicos e ter o
máximo de audiência possível.

69
Tradução do autor a partir da edição original em inglês de Giner: “As I say, one of the major social
outlooks present in, and characteristic of, the modern world is a conception called the ‘mass
society’ interpretation. In some quarters it also receives the name of the ‘theory of mass society’.
Yet, I hasten to say, it very rarely appears in a guise that can deserve the title of theory, with its
minimal connotations of logical rigor and falsifiability. I will nevertheless retain the expression
‘theory’ in many instances, in order to remain faithful to sources and common speech, conscious
however of the pitfalls and fallacies involved. (Moreover, the fact that the word ‘theory’ is so
lavishly used by mass society ‘theorists’ to describe their cogitations is quite revealing in itself).
The outlook in question claims basically that modern society is the result of a general breakdown
of the elements of differentiation that internally diversified former societies, as well as the parallel
result of a loss of the sense of the sacred: technology, economic abundance and political equality
have created a homogeneous society, in which men are the prey of the impersonal forces of
bureaucracy and regimentation, while ideological fanaticism is their only, fatal refuge from the
moral desert created by generalized apathy and secular disbelief.”
Sociologia da Comunicação
91

Segundo Adorno e Horkheimer:


“A massa é produzida socialmente – ela não é invariável na sua natureza; nem é
uma comunidade essencialmente próxima ao indivíduo, mas apenas uma amál-
gama pela exploração racional de factores psicológicos irracionais, dando às pes-
soas a ilusão de proximidade e comunhão. Mas, precisamente por ser essa ilusão,
pressupõe a atomização, alienação e impotência dos indivíduos.” (Adorno & Hork-
heimer, 1973, p. 81).70

A massa possui, por conseguinte, um sentido pejorativo, pois é um artifi-


cialismo social, “pensa” e reage de um modo irreflectido e irracional, é ilusória,
atomizada e alienada, pois absorve as diferenças e idiossincrasias para tornar
prevalecente a homogeneidade.

3.2. Sociedade e sociedades de massas


A sociedade é o “conjunto organizado e estável de pessoas que procuram
juntas a realização de determinados objectivos comuns” (Cabral, 2000, p. 1208).
A sociedade é um sistema de indivíduos, grupos, organizações e instituições em
permanente interacção, que se desenvolve através do processo de socialização.
A sociedade é uma colectividade organizada de indivíduos que vivem em comum
num mesmo território, cooperam em grupos para satisfazer as suas necessidades
sociais básicas, adoptam uma cultura e funcionam como uma unidade social dis-
tinta.
A sociedade possui, por conseguinte, as seguintes características gerais:
– Unidade demográfica ou pluralidade unificada de pessoas e inter-rela-
ções.
– Área geográfica comum.
– Grupos com diversas e específicas funções sociais, que se complemen-
tam.
– Cultura semelhante, com respectivas normas sociais (meios para a har-
monia: a norma/lei e a autoridade).
– Unidade funcional global.
– Unidade e coesão sociais.
– Conformidade, consentimento e consenso em cooperação e convivência.

Em The Sage dictionary of sociology, Steve Bruce e Steven Yearley definem


assim a sociedade:

70
Tradução do autor a partir da edição consultada em inglês de Adorno & Horkheimer: “The mass
is produced socially – in its nature it is not unchangeable; not a community fundamentally close
to the individual, but only welded together by the rational exploitation of irrational psychological
factors, it confers on people the illusion of closeness and communion. But precisely as such an
illusion, it presupposes the atomization, alienation, and impotence of the individuals.”
Paulo M. Barroso
92

“Pode parecer uma disciplina curiosa que tem dificuldades em definir sucintamente
o seu termo nuclear, mas esta palavra [sociedade] carrega uma variedade muito
ampla de significados. Mais amplo e menos útil, pode ser a totalidade dos relacio-
namentos humanos. Mais útil, significa qualquer auto-reprodução de grupo hu-
mano que ocupa razoavelmente um território delimitado e possui uma cultura
razoavelmente distinta e um conjunto de instituições sociais. Geralmente nos re-
ferimos aos estados-nação como sociedades: França ou Holanda, por exemplo. Mas
nós também podemos usar o termo para um determinado povo dentro de um es-
tado: os escoceses ou os galeses, por exemplo. Também é usado para grupos dis-
tintos que sustentam algum tipo de identidade colectiva em virtude da cultura e
interacção social, mas falta um território. Então, podemos falar de ‘sociedade his-
pânica’ nos EUA ou ‘sociedade pentecostal’ no Uganda. No entanto, a ausência de
um território provavelmente significa que ‘subcultura’ seria uma designação mais
útil.” (Bruce & Yearley, 2006, p. 286).71

Por seu turno, Adorno e Horkheimer consideram a sociedade pela seguinte


perspectiva funcional:
“Por sociedade, no sentido mais significativo, entendemos uma espécie de estrutura
integrada entre seres humanos na qual tudo e todos dependem de tudo e de todos;
o todo apenas subsiste graças à unidade das funções assumidas por todos os seus
membros, e a cada um destes é atribuída, por princípio, uma função, à medida que
cada um é determinado em grande medida pela sua pertença nesta estrutura total.
O conceito de sociedade torna-se um conceito funcional, pois designa as relações
entre os seus elementos e a legalidade dessas relações, e não apenas os próprios
elementos ou as suas descrições simples. Assim, a sociologia seria, antes de tudo,
a ciência das funções sociais, da sua unidade e da sua legalidade.” (Adorno & Hork-
heimer, 1973, pp. 16-17).72

71
Tradução do autor a partir da edição original em inglês da The Sage dictionary of sociology: “It may
seem a curious discipline that has trouble succinctly defining its core term but this word [society]
carries a very wide variety of meanings. Broadest and least useful, it can be the totality of human
relationships. More useful, it means any self-reproducing human group that occupies a reasonably
bounded territory and has a reasonably distinctive culture and set of social institutions. We
commonly refer to nation-states as societies: France or Holland, for example. But we may also
use the term for a particular people within a state: the Scots or the Welsh, for example. It is also
used for distinctive groups that sustain some sort of collective identity by virtue of culture and
social interaction but lack a territory. So we might talk of ‘Hispanic society’ in the USA or
‘Pentecostal society’ in Uganda. However, the absence of a territorial element probably means
that ‘subculture’ would be a more useful designation.”
72
Tradução do autor a partir da edição consultada em inglês de Adorno & Horkheimer: “Under
society in the most pregnant sense is understood a sort of linking structure between human
beings in which everything and everyone depend on everyone and everything; the whole is only
sustained by the unity of the functions fulfilled by all its members, and each single one of these
members is in principle assigned such a function, while at the same time each individual is
determined to a great degree by his membership in this total structure. The concept of society
becomes a functional concept as soon as it designates the relationship between its elements and
the lawfulness of such relationships rather than merely the elements themselves or when it is
merely descriptive. Sociology would thus be primarily the science of social functions, their unity,
their lawfulness.”
Sociologia da Comunicação
93

Para Adorno e Horkheimer, o que mais define a sociedade é o entendi-


mento da mesma como uma unidade composta por funções e por indivíduos em
relações e dependências entre si. Por conseguinte, a Sociologia é o estudo e a
compreensão das funções sociais que todos cumprem para que a unidade, a so-
ciedade, funcione de acordo com determinadas leis. Conclui-se que a Sociologia,
enquanto ciência do social, e a sociedade, enquanto objecto de estudo fulcral da
Sociologia, são difíceis de definir, devido à abrangência dos conceitos.73 Por outro
lado, existem elementos definidores do que é a sociedade:
– Relacionamentos humanos.
– Auto-reproduções de grupo humano.
– Ocupação de um território delimitado.
– Cultura distinta.
– Instituições sociais.

Uma sociedade de massas é uma vasta colectividade moderna gerada pela


industrialização, urbanização, assalariamento, comunicação, consumo e promo-
ção política instaurada pelo sufrágio universal. As massas representam um con-
junto social homogéneo com traços característicos e gerais:
– “Dissolução” ou, pelo menos, diluição dos grupos primários.
– “Desintegração” ou, pelo menos, desestruturação ou reconversão da es-
trutura tradicional das comunidades locais.
– Dominação de aparelhos burocráticos.
– Uniformização das condições e estilos de vida.

Estas características conduzem às seguintes consequências padronizadas:


– Deslocamento das funções de socialização para fora da família.
– “Perda” ou, pelo menos, diminuição dos laços espontâneos de solida-
riedade (incluindo a categoria de classe).
– Desenvolvimento de relações impessoais na constituição de uma vasta
sociedade anónima exposta a todos os interesses e estratégias particu-
lares.

73
Os termos “sociologia”, “sociedade” ou “comunicação” são palavras-chave importantes neste
livro, principalmente por se inserir na área científica da Sociologia da Comunicação, que está
espelhada no seu título. Estes termos não permitem, em si mesmos (i.e. fora do âmbito da
Sociologia da Comunicação), definições monotéticas, ou seja, uma classificação que utiliza apenas
um critério diferenciador. Conforme designa Wittgenstein (cf. 1998, p. 44), são odd-job words, i.e.
conceitos ambíguos, com funções referenciais irregulares e aplicáveis em contextos variados.
Aceita-se também a opção de “termo guarda-chuva” para definir estes conceitos abrangentes e
polissémicos.
Paulo M. Barroso
94

– Substituição de trabalhos físicos exigentes por novas experiências de


sensações e convivências com mais tempo livre.
As sociedades de massas começam a adquirir forma entre as décadas de
1930-1950, devido a um conjunto de desenvolvimentos recentes (cf. Bruce & Year-
ley, 2006, p. 186), como o dos meios de comunicação social, a urbanização e a in-
dustrialização (produção em massa). Estes desenvolvimentos tiveram
repercussões ao fomentarem as condições propícias para sociedades de indiví-
duos atomizados e vulneráveis à manipulação e à influência dos discursos pú-
blicos (nomeadamente políticos, propagandísticos, publicitários). Conforme refere
Hans Magnus Enzensberger, num ensaio publicado em 1970, mas actual, e inti-
tulado Elementos para uma teoria dos meios de comunicação, “toda a utilização dos
meios pressupõe manipulação”, pelo que “a questão não é se os meios são ma-
nipulados ou não, mas quem manipula os meios” (Enzensberger, 1978, p. 67).
Considerando a etimologia do termo “manipulação”, que significa uma interven-
ção técnica consciente sobre algum material que é apresentado, Enzensberger
(1978, p. 67) afirma que “se a intervenção é de uma importância social imediata,
a manipulação constitui um acto político”, pois corresponde a uma “indústria da
consciência”.
As sociedades de massas funcionam como mercados igualmente de mas-
sas, onde os interesses estratégicos e particulares (individuais) predominam sobre
os interesses mais colectivos em prol do bem-estar de todos. Como nas leis de
mercado, as sociedades ou mercados de massas são moldadas em função do que
mais convém a quem tem e exerce mais poder. Se o jornalismo é considerado o
quarto poder num regime democrático (depois dos poderes constitucionais: o le-
gislativo, o executivo e o judicial)74 e se os media, no geral, produzem e transmi-
tem conteúdos que lhes interessam para agradar aos seus públicos e ter a
máxima audiência, as sociedades onde se inserem esses media moldam-se, para
o bem ou para o mal, naquilo que é apresentado. Assim, os ingredientes do mer-
cado de massas são todos facultados em excesso, nomeadamente com:
– Informações na forma de flashes permanentes sobre fait-divers.
– Produção, promoção e consumo de conhecimentos popularizados e su-
perficiais.
– Apelos ao consumo global de marcas comerciais e produtos efémeros
em detrimento do cultivo dos valores sociais e princípios normativos.
– Entretenimento em telenovelas ou séries infindáveis para fidelizar os
públicos.

74
Os meios de comunicação social são considerados o quarto poder, porque desempenham uma
função determinante na formação e esclarecimento da opinião pública e na vigilância crítica, livre
e independente da sociedade e das democracias constitucionais, nomeadamente sobre os órgãos
dos três poderes (legislativo, executivo e judicial).
Sociologia da Comunicação
95

– Espectáculo essencialmente visual, porque atrai e seduz mais, quer nos


conteúdos (o que é transmitido) quer na forma (como é transmitido).

A “era das massas” converte-se num mercado de consumo global e em


rede. Os próprios media, enquanto entidades colectivas especializadas na produ-
ção e transmissão de conteúdos, são indústrias mediáticas de comunicação de
massas.
A génese das sociedades de massas assenta em determinados factores e
circunstâncias, nomeadamente o papel dos meios de comunicação social, em es-
pecial no Ocidente. Os media actuam como meios ideológicos (têm mais influên-
cia do que os agentes políticos) e actuam a nível global. A interacção entre os
media e os novos meios tecnológicos tornam a comunicação social e os discursos
públicos mais influentes e provoca um recrudescimento das necessidades básicas
nos indivíduos. A força do mercado prende-se à importância dos hábitos de con-
sumo, que são desencadeados pelas técnicas de comunicação e de sedução (pu-
blicidade, marketing, etc.) e aos discursos públicos estruturados nos meios de
comunicação social. A publicidade, por exemplo, não tem fronteiras e invade
sempre novos domínios e espaços onde se manifesta, persuade e seduz. Con-
forme adverte Lipovetsky em O império do efémero: A moda e o seu destino nas so-
ciedades modernas:
“Comunicação socialmente legítima, ela acede à consagração artística, a publici-
dade entra no museu, organizam-se exposições retrospectivas de anúncios, distri-
buem-se prémios de qualidade, vendem-na em postais. Terminou a idade do
reclamo, viva a comunicação criativa, a publicidade cobiça a arte e o cinema e sonha
abraçar a história.” (Lipovetsky, 1989, p. 248).

A publicidade é comunicação de excesso, exagerada e imaginativa quer


nas formas quer nos conteúdos. É uma comunicação conativa, estruturada e se-
dutora como a moda, “cada vez mais sob a dependência do espectáculo, da per-
sonalização das aparências, da sedução pura” (Lipovetsky, 1989, p. 251). A
publicidade é a cosmética da comunicação, é a apoteose da sedução, segundo Li-
povetsky, pois dirige-se ao olhar, promete beleza, sedução das aparências.

3.3. Cultura
Existem várias definições de “cultura”, mas todas incidem em aspectos re-
lativos, como as suas representações, expressões e modelos de acção e compor-
tamento, bem como os seus elementos constituintes (os símbolos, os
conhecimentos, os valores, as crenças e as normas). Em The Sage dictionary of so-
ciology, de Steve Bruce e Steven Yearley (2006, p. 58), por exemplo, define-se cul-
tura de uma sociedade como a totalidade das suas crenças, normas, valores,
rituais, linguagem, história, conhecimento e carácter social partilhados.
Paulo M. Barroso
96

O conceito de cultura deriva do latim cultura, no sentido de agricultura,


algo cultivado, cuidado, preparado, com um espírito ou alma ornamentados (Ma-
chado, 1977, p. 264). Esta definição permite um entendimento clássico de cultura
a partir de todas as acções do ser humano sobre si mesmo e sobre o meio.
A cultura é um continuum, está em permanente mudança e, por isso, exige
adaptação, tendo em conta aspectos estáticos (conservantismo, formas acabadas
consubstanciadas na tradição) e aspectos dinâmicos (modernização, o futuro) da
própria cultura. Conforme elucida James W. Carey, em Communication as culture:
Essays on media and society, a cultura não é um processo unidireccional. Uma
compreensão da experiência social deve basear-se nas transacções culturais entre
as pessoas, que sempre contêm elementos de colaboração, de diálogo, de com-
partilhamento ou interacção ritualizada. A cultura nunca é singular e unívoca;
pelo contrário, é, como é a própria natureza, múltipla, variada e variável (cf. Carey,
2009, p. 50). A cultura é assim para cada um de nós, mesmo quando temos cul-
turas diferentes.
Todos os seres humanos possuem uma cultura que assimilam, adaptam e
transmitem. Não existe indivíduo sem cultura nem cultura sem sociedade. Ao
longo da vida assimilamos e acumulamos diversos elementos materiais ou espi-
rituais, modificando-os e até reinventando-os e inventando novos elementos. O
ser humano, gregário por natureza, é simultaneamente um produto e um pro-
dutor da sua cultura ou da cultura a que pertence. Por conseguinte, a cultura é:
“[Um] património de artefactos materiais ou espirituais em que o Homem se mo-
vimenta e de que se serve para satisfazer as suas necessidades físicas, fisiológicas
e espirituais, que recebeu dos seus antepassados ou que acrescentou, modificou,
transformou ou inventou e que transmite.” (Lima, Martinez & Lopes Filho, 1980,
p. 38).

O dinamismo cultural deve-se às naturais mudanças que as formas de vida,


no geral, sofrem em função das influências de vários factores, como o tempo e o
espaço. Todas as culturas são interpretações e não podem ser estudadas e com-
preendidas de um modo liminar (Gonçalves, 2002, p. 19), pois não denotam uma
realidade concreta, mas certos sentidos e abstracções. A cultura é uma totalidade
constituída por um conjunto de:
– Representações (conceitos e símbolos de interpretação).
– Expressões (modalidades materiais e formais).
– Normas (valores e regras de orientação das práticas, comportamentos
e acções).
– Acções (técnicas e sociais).

A cultura é o conjunto de práticas e comportamentos sociais concebidos e


transmitidos colectivamente, como os ritos e os cultos, os costumes e os usos po-
pulares. Em A interpretação das culturas, Clifford Geertz preconiza um conceito de
Sociologia da Comunicação
97

cultura que evidencia as particularidades da cultura como um processo, quando


o entendemos representado pelas manifestações e cerimoniais específicos:
“De qualquer forma, o conceito de cultura ao qual eu me atenho não possui refe-
rentes múltiplos nem qualquer ambiguidade fora do comum, segundo me parece:
ele denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em
símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por
meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conheci-
mento e suas atividades em relação à vida.” (Geertz, 2008, p. 66).

Na perspectiva de Geertz, um dos modos mais úteis para distinguir entre


cultura e sistema social é o de considerar, por um lado, a primeira como um sis-
tema ordenado de significações e de símbolos em cujos termos tem lugar a inte-
gração social e, por outro, entender o sistema social como a própria estrutura
da integração social. Segundo esta perspectiva, se num plano encontramos o
quadro das crenças, dos símbolos expressivos e dos valores pelos quais os indi-
víduos definem o seu mundo, expressam os seus sentimentos e ideias e emitem
os seus juízos, no outro plano temos o processo dinâmico da conduta interactiva.
A cultura traduz-se, portanto, num enredo de significações pelas quais os indiví-
duos interpretam a sua experiência (individual e colectiva) e orientam a sua acção
social; a estrutura social representa a forma que toma essa acção, a rede existente
de relações humanas. Deste modo, Geertz conclui que a cultura e a estrutura so-
cial são diferentes abstracções dos mesmos fenómenos.
Da concepção de cultura como a soma dos modos em que uma determi-
nada comunidade de indivíduos ou sociedade apreende condutas, Talcott Parsons
entende a cultura como um sistema de símbolos criados, convencionados e par-
tilhados pelo ser humano, em virtude dos quais o próprio dá significação à sua
experiência e orienta a sua relação com os outros e com o mundo, depois de
serem transmitidos socialmente e de apreendê-los. Para Parsons, a cultura é um
sistema simbólico partilhado. Apesar da ambiguidade do conceito, Parsons su-
blinha três aspectos fundamentais para a definição de cultura:
“[…] primeiro, que a cultura é transmitida, constitui um património ou uma tradi-
ção social; segundo, que ela é aprendida, não é uma manifestação, em sentido par-
ticular, da constituição genética do homem; e terceiro, que ela é partilhada. A
cultura é, por um lado, o produto de, por outro lado, um determinante dos sistemas
de interacção social humana.” (Parsons, 2005, p. 9).75

A cultura é tudo o que o ser humano acrescenta à Natureza. Todas as obras


humanas são cultura. Esta consideração pressupõe a radical diferença e comple-

75
Tradução do autor a partir da edição original em inglês de Parsons: “[…] first, that culture is
transmitted, it constitutes a heritage or a social tradition; secondly, that it is learned, it is not a
manifestation, in particular content, of man’s genetic constitution; and third, that it is shared.
Culture, that is, is on the one hand the product of, on the other hand a determinant of, systems
of human social interaction.”
Paulo M. Barroso
98

mentaridade entre as categorias da Natureza e da cultura. Não há ser humano


sem cultura nem cultura sem sociedade. É íntima a relação entre o ser humano,
a cultura e a sociedade. Neste sentido, uma sociedade define-se como um con-
junto heterogéneo de indivíduos ou como um extenso grupo social formado por
subconjuntos ou subgrupos, em comunhão de padrões culturais (a língua, os
usos e costumes, as tradições, as normas sociais, as leis e a constituição, as ins-
tituições sociais, etc.) e complementaridade de papéis e funções num espaço (ter-
ritório) e num tempo. A actividade humana (a intuição, o pensamento ou o
comportamento) mantém um carácter individual, mas o seu impulso e o seu mo-
delo advêm da cultura, que é necessariamente colectiva.
Se os símbolos se inserem plenamente nas estruturas culturais, os siste-
mas sociais e culturais são sempre sistemas de comunicação. Tudo ou quase tudo
na cultura comunica. Cada objecto cultural representa algo que significa; forma
um sistema codificado que contém mensagens; integra e adapta os indivíduos
no grupo ou na sociedade. Desta forma, a cultura é entendida como uma lingua-
gem (instrumento de pensamento e de comunicação) ou sistema semiológico.
Surgem no ritual, então, os símbolos (empiricamente objectos, actividades, rela-
ções, acontecimentos, gestos e unidades espaciais num dado contexto ritual)
como coisas de que, por consenso, se pensa que tipificam naturalmente, repre-
sentam ou recordam algo, seja pela posse de qualidades análogas seja por asso-
ciação ao facto ou ao pensamento.
Implicados nos processos sociais, os símbolos rituais convertem-se em fac-
tores de acção social. A estrutura e as propriedades dos símbolos rituais podem
deduzir-se a partir de três classes de dados:
1) Forma externa e características observáveis.
2) Interpretações oferecidas pelas autoridades religiosas e pelos simples
fiéis.
3) Contextos significativos.

As experiências quotidianas estão moldadas pela cultura. As normas, va-


lores, significados e costumes de uma determinada comunidade moldam todos
os que dela fazem parte. Como as culturas são padrões simbólicos e estruturados
de acção, a acção humana, no processo de simbolização cultural, é regulada por
quadros de sentido e padrões simbólicos já previamente determinados. Quadros
que também são representações sociais dos comportamentos culturais manifes-
tados colectivamente, bem como relações de significação e relações de poder so-
cial simbólico. Os símbolos são produções que representam e expressam os
valores culturais enraizados e defendidos por uma determinada comunidade. En-
volvem elementos significativos e pautam-se por construções também significa-
tivas, na medida em que são realizadas a partir da realidade concreta
representada pelos símbolos e são dotadas de valores a manter e a exteriorizar.
Sociologia da Comunicação
99

De acordo com Actos de significado: Para uma psicologia cultural, de Jerome


Bruner:
“Na concepção inversa que proponho, a cultura, e não a biologia, é que dá forma à
vida e à mente humanas, confere significado à acção ao situar num sistema impe-
rativo os seus estados intencionais subjacentes. Faz tal por meio da imposição de
padrões inerentes aos sistemas culturais simbólicos – a sua linguagem e modos de
discurso, as formas de explicação lógica e narrativa, e os padrões reciprocamente
dependentes da vida comunitária.” (Bruner, 1997, p. 44).

Ao procurar definir o que entende por “psicologia cultural” ou “psicologia


popular” enquanto sistema cognitivo de coesão cultural pelo qual as pessoas or-
ganizam as suas experiências, os seus conhecimentos e as suas transacções com
o mundo social, Bruner pretende mostrar como os indivíduos, interagindo entre
si, formam o sentido do canónico e do usual (cf. Bruner, 1997, p. 75). Também
como estes interpretam e atribuem significado narrativo às transgressões e aos
desvios dos estados normais da condição humana. Para este empreendimento,
enaltece a utilidade da narrativa, que organiza a experiência através da memória.
“[…] o que constitui uma comunidade cultural não é só a partilha de crenças sobre
o que as pessoas são e sobre o que é o mundo ou sobre o modo como as coisas se
devem avaliar. Deve, sem dúvida, haver algum consenso para garantir a realização
da civilidade. Mas o que pode ser igualmente importante para a coerência de uma
cultura é a existência de procedimentos interpretativos para adjudicar as diferentes
construções da realidade, inevitáveis em qualquer sociedade diversa.” (Bruner,
1997, p. 96).

Para T. S. Eliot (2002, p. 30), a cultura é “aquilo que torna a vida digna de
ser vivida”. Apesar de vaga, esta definição permite compreender que a cultura é
tudo o que o ser humano produz para seu proveito ou para responder às diversas
necessidades que diariamente surgem. Cada cultura tem as suas próprias formas
de se manifestar e de se expressar. O ser humano é, por isso, sujeito e objecto si-
multâneo da cultura. Por conseguinte, a cultura é um atributo colectivo que
acompanha o desenrolar da vida humana (que é um instrumento de cultura) em
cada sociedade e é, consequentemente, um conceito relativo, subjectivo, flu-
tuante.
Os valores culturais são diversos. Enquanto artefactos produzidos, os ele-
mentos da cultura pressupõem diferentes tipos de sociedades (lugares de desen-
volvimento e implementação da cultura). A comunicação é cultura e as culturas
não podem existir sem sociedades nem estas sem cultura. Sem cultura nem se-
ríamos humanos, não teríamos linguagem (formas de expressão), sentido de au-
toconsciência e a nossa capacidade de pensar estaria limitada. As variações
culturais entre seres humanos estão relacionadas com os diferentes tipos de so-
ciedade e as variações nas formas de comunicação estão relacionadas com as di-
ferentes culturas ou estádios do seu desenvolvimento.
Paulo M. Barroso
100

Regra geral, as culturas possuem as seguintes características:


– São holísticas, englobam tudo o que tem a ver com o que as pessoas
que a integram fazem, dizem e como vivem e se relacionam umas com
as outras, com as instituições de que fazem parte e com as pessoas de
outras culturas.
– São apreendidas, herdadas, transmitidas e readaptadas de geração em
geração.
– São dinâmicas, evoluem e se desenvolvem permanentemente.
– São etnocêntricas, valorizam-se, estimam-se e julgam-se as melhores
relativamente às outras.

A cultura é um fenómeno colectivo e dinâmico, uma herança tangível ou


intangível, que serve num momento ou circunstância como prática e instrumento
para as necessidades das pessoas e para estas se adaptarem ao meio (por isso é
também temporária).76 A cultura é uma herança tangível ou intangível, porque
a cultura pode ser material (elementos concretos produzidos pelo ser humano
com uma finalidade: objectos, vestuário, arco e flechas, vasos, talheres, alimentos,
habitações, etc., i.e. instrumentos, tecnologia, meios, recursos, objectos que re-
presentam o conteúdo cultural) ou imaterial (elementos intangíveis: valores,
ideais, hábitos, crenças, superstições, normas, significados, leis, tradições, usos,
costumes, etc. que constituem o teor da cultura). Se a cultura é uma herança,
todas as pessoas estão receptíveis à cultura em que se inserem. As culturas ma-
nifestam-se, pois são seguidos e colocados em prática os seus elementos (símbo-
los, conhecimentos, valores, crenças e normas). Para Carley H. Dodd (1988, p. 38),
os três níveis de manifestação da cultura são:
1. Núcleo interno (inner core).
2. Actividades culturais (cultural activities).
3. Instituições dentro da cultura (institutions within culture).

Na seguinte Figura 3, estes três níveis são demonstrados em forma de


anéis, na ordem endógena (de dentro para fora), conforme a lista numerada an-
terior:

76
A cultura é “a produção e circulação de sentido, significado e consciência”, pois é “a esfera do
significado que unifica as esferas de produção (economia) e as relações sociais (política)”, segundo
John Hartley (2004, p. 61). A cultura confere sentido à realidade e ao sistema social (relações
sociais e interacções, identidade colectiva, actividades quotidianas) de que faz parte. A cultura é,
por conseguinte, a esfera de reprodução da vida.
Sociologia da Comunicação
101

Figura 3: Modelo de cultura com os três níveis (Fonte: adaptado de Carley H. Dodd, 1988, p. 38).

Conforme refere Malinowski, em Uma teoria científica da cultura, “a cul-


tura consiste no conjunto integral dos instrumentos e bens de consumo, nos
códigos constitucionais dos vários grupos da sociedade, nas ideias e artes, nas
crenças e costumes humanos” (Malinowski, 1997, p. 37). Os elementos da cul-
tura, aspectos fundamentais e transversais a todas as culturas, por mais dife-
rentes que sejam, são:
– Símbolos (transportando significados reconhecíveis) e linguagem (sis-
tema de símbolos para comunicar).
– Conhecimentos.
– Valores (i.e. valores sociais estruturados como padrões culturais dese-
jáveis, e.g. bondade).
– Crenças (um dado credo aceite e sustentado como verdade).
– Normas (práticas sociais convencionadas e admissíveis).

Estes elementos da cultura são partilhados e tornam possíveis a coopera-


ção e a comunicação. Os elementos da cultura formam o contexto comum em
que os indivíduos de uma sociedade vivem. A cultura de uma sociedade engloba
tanto os aspectos intangíveis como os aspectos tangíveis.
Habermas coloca a esfera pública (que também é uma esfera cultural, por-
que é o lugar onde as tradições, significados, concepções, padrões culturais, ac-
ções comunicativas e entendimentos mútuos, interacções sociais etc. são vividos,
praticados, mantidos e desenvolvidos) no centro do colectivo “mundo da vida”
ou lifeworld (Wessler, 2018, p. 43). Habermas distingue três tipos de recursos (três
componentes estruturais do “mundo da vida”: a cultura, a sociedade e a perso-
nalidade) fornecidos pelo “mundo da vida”:
Paulo M. Barroso
102

a) Um repositório de conhecimento cultural.


b) Os valores e normas colectivas.
c) As competências individuais adquiridas nos processos de socialização
e inclinação.

Em O discurso filosófico da modernidade, Habermas afirma:


“Considerado como recurso, o mundo da vida divide-se de acordo com as compo-
nentes ‘fornecidas’ dos actos de fala, ou seja das suas partes constituintes de ca-
rácter proposicional, ilocucional e intencional, em cultura, sociedade e pessoa.
Cultura denomino eu o arsenal de saber no qual os agentes comunicacionais, ao
entenderem-se mutuamente sobre algo que está no mundo, se munem com inter-
pretações potencialmente consensuais. Sociedade (no sentido estrito de uma com-
ponente do mundo da vida) chamo eu às ordens legítimas das quais os agentes
comunicacionais, ao entrarem em relações interpessoais, retiram uma solidariedade
fundada na pertença a grupos. Personalidade serve de termo técnico para compe-
tências adquiridas que tornam um sujeito capaz de agir e de falar colocando-o
assim em situação de, em cada contexto dado, tomar parte de processos de com-
preensão mútua e afirmar a sua identidade em contextos de interacção alteráveis.
Esta estratégia conceptual quebra com a concepção tradicional, ainda mantida pela
filosofia da práxis e do sujeito, de que as sociedades são constituídas por colectivos
e estes, por sua vez, por indivíduos. Indivíduos e grupos são, apenas num sentido
metafórico, ‘membros’ de um mundo da vida.” (Habermas, 2010a, pp. 324-325).

O conceito de cultura é, como se constata, bastante lato e ambíguo, pois


engloba distintos elementos, uns tangíveis ou materiais e outros intangíveis ou
imateriais, podendo ser percebido consoante várias perspectivas:
– Uma perspectiva social ou estrutural, que vê a cultura como um con-
junto de categorias de organização social (e.g. a religião ou a economia)
que moldam ou adaptam os comportamentos sociais apreendidos como
modos ou estilos de vida padronizados, modelados e interrelacionados.
– Uma perspectiva histórica, que entende a cultura como uma herança
do passado da qual os elementos ou aspectos tradicionais são exemplo
ao se transmitirem de gerações em gerações.
– Uma perspectiva ética ou normativa, que concebe a cultura como orien-
tação pelas ideias e pelos ideais, valores ou regras aprendidas e parti-
lhadas para a melhor organização dos seres humanos em comunidade,
inibindo os impulsos ou colocando um freio nas vontades individuais
desmedidas.
– Uma perspectiva funcional, que enquadra a cultura como instrumento
para a resolução ou satisfação de problemas ou necessidades fundamen-
tais à vida comunitárias e quotidiana.
– Uma perspectiva simbólica, que assume a cultura como o conjunto de
todos os significados consignados de um modo arbitrário e partilhado
Sociologia da Comunicação
103

numa dada sociedade, permitindo a produção, a transmissão e a recep-


ção de sentidos em tudo o que se faz ou diz.

A propósito desta última perspectiva, o subcapítulo seguinte desenvolve


a concepção simbólica da cultura, i.e. relacionando a cultura e os símbolos.

3.3.1. Cultura e símbolos


A cultura e os símbolos têm uma relação umbilical e seminal como a de
um todo e as suas partes. Os símbolos são elementos fundamentais e imprescin-
díveis de qualquer cultura. Os símbolos tanto são o produto da cultura como são
a expressão da mesma cultura, que assim é transmitida, além das práticas sociais
(e.g. usos e costumes tradicionais), através de ideias, emoções e desejos expressos
na linguagem. Mas com a linguagem é possível assimilar uma experiência cu-
mulativa e partilhada. O pensamento é simbólico e exclusivamente humano: a
capacidade para criar símbolos e usá-los é humana. Por conseguinte, o simbo-
lismo77 é uma forma de linguagem e uma expressão de cultura ou tradição; per-
mite uma espécie de proto-interpretação sobre a maneira de viver a experiência
humana.
O símbolo é definido e compreendido pelo seu poder de duplo sentido. De
acordo com O conflito das interpretações de Paul Ricoeur (1988, p. 29), “o símbolo
dá que pensar, faz apelo a uma interpretação, precisamente porque ele diz mais
do que não diz e porque nunca acabou de dar a dizer”.
“‘O símbolo dá que pensar’; esta sentença que me encanta diz duas coisas: o sím-
bolo dá; eu não ponho o sentido, é ele que dá o sentido, mas aquilo que ele dá, é
‘que pensar’, de que pensar. A partir da doação, a posição. A sentença sugere, por-
tanto, ao mesmo tempo, que tudo está já dito em enigma e, contudo, que é sempre
preciso tudo começar e recomeçar na dimensão do pensar.” (Ricoeur, 1988, p. 283).

Em 1959, quando publicou o ensaio “Le symbole donne à penser” na fami-


gerada revista Esprit,78 Ricoeur insiste na ideia original e interessante de que “o
símbolo dá” e que não são os falantes que colocam o sentido que desejam no uso
da linguagem. É o símbolo que dá o sentido que já possui em si, porque esta posse
de sentido nos símbolos é condição exclusiva para um símbolo ser um símbolo.
Ao se partir de um simbolismo já constituído, o símbolo dá o sentido e,
por conseguinte, dá igualmente o que pensar, o que falar e o que interpretar (cf.
Ricoeur, 2013, p. 13). Só se pode fazer uso da linguagem e de qualquer outro sis-
tema de representação simbólica a partir desta doação original e fecunda, porque
tudo já está dito implicitamente pelo símbolo na forma de enigma (cf. Ricoeur,

77
Conjunto de símbolos próprios de uma cultura, religião ou povo pelos quais estes se expressam.
78
O ensaio “Le symbole donne à penser” está integrado, com algumas variações e com o título “O
símbolo dá que pensar”, no final de A simbólica do mal (cf. Ricoeur, 2013, pp. 365-375).
Paulo M. Barroso
104

1959, p. 61). É como se o pensamento que o símbolo doa possuísse uma articu-
lação prévia e consistisse, por conseguinte, num “pensamento pensado” no reino
dos símbolos. Por isso, é possível interrogar os símbolos “tendo em vista o sentido
que se esconde por trás deles, como nos podemos servir deles para levar mais
longe a reflexão” (Ricoeur, 2013, p. 13).
Os símbolos de uma cultura convidam à interpretação. Só há interpretação
da cultura se existir matéria-prima da interpretação, ou seja, símbolos com sig-
nificados e sentidos para serem lidos, descortinados, pensados, pois os símbolos
dizem mais do que deixam antever de um modo superficial, como se guardassem,
em si mesmos, o que dizem. Esta questão implica a relação dos símbolos com o
conhecimento e com a acção, i.e. com o substrato de qualquer cultura.
Um símbolo é o que representa uma coisa, está em lugar de algo, e esta
conexão pode ser simbolizada de maneira diferente segundo cada cultura. Con-
forme sublinha Gurvitch, os símbolos simultaneamente revelam e ocultam; re-
velam ocultando e ocultam revelando:
“Os símbolos são as expressões sensíveis inadequadas de significados espirituais,
ocupando o lugar entre as aparências e as coisas em si (an sich). Eles são os inter-
mediários entre esses dois e dependem de ambos. Eles simultaneamente revelam
e ocultam, ou melhor, revelam ocultando e ocultam revelando. O que expressam e
o que escondem é, por um lado, o espiritual, por outro lado, a realidade (física, bio-
lógica, psicológica, sociológica), na qual o espírito em parte se corporifica, em parte
se revela. Como George Santayana tão bem afirmou, ‘os símbolos são presenças e
são aquelas presenças particularmente agradáveis que invocamos interiormente’.”
(Gurvitch, 2001, p. 35).79

Nesta perspectiva simbólica sobre a cultura, entende-se também que a cul-


tura é comunicação e a comunicação é cultura, pois não é possível haver comu-
nicação sem a transmissão de símbolos ou, numa categoria mais geral, de signos.
A cultura é toda a intervenção humana sobre o “natural”, o que é dado sem a in-
tervenção humana, modificando-o de modo a poder ser inserido numa relação
social. A cultura é um sistema ordenado de significações, símbolos, crenças e va-
lores que permitem a interacção e a integração social.
Considerando, por um lado, a comunicação como cultura e, por outro lado,
a comunicação como um sistema de símbolos, todas as formas e meios de comu-
nicação promovem a integração social, qualquer que seja o género desta. É nesta

79
Tradução do autor a partir do texto original em inglês de Gurvitch: “The symbols are the
inadequate sensitive expressions of spiritual meanings, taking the place between appearances
and things in themselves (an sich). They are the intermediaries between these two and depend
on both. They simultaneously reveal and conceal, or rather they reveal by concealing and conceal
by revealing. What they express and what they hide is on the one hand the spiritual, on the other
reality (physical, biological, psychological, sociological), in which the spirit partly embodies itself,
partly reveals itself. As George Santayana so well put it, ‘symbols are presences and they are
those particularly congenial presences which we have inwardly invoked’.”
Sociologia da Comunicação
105

base que os autores da Escola de Chicago conceberam a comunicação como algo


mais do que a transmissão de informações, conforme sublinha James W. Carey
em Communication as culture: Essays on media and society:
“[…] os estudiosos da Escola de Chicago conceberam a comunicação como algo
mais do que a transmissão de informações. Em vez disso, eles caracterizaram a co-
municação como todo o processo pelo qual uma cultura é trazida à existência, man-
tida no tempo e sedimentada em instituições. Portanto, eles viram a comunicação
inserida na arte, na arquitectura, no costume e no ritual e, acima de tudo, na polí-
tica. E isso deu o terceiro aspecto distintivo ao pensamento deles [dos estudiosos
da Escola de Chicago]: uma grande preocupação com a natureza da vida pública.”
(Carey, 2009, p. 111).80

Segundo James W. Carey, a Escola de Chicago81 foi, por isso, caracterizada


por uma preocupação fundamental relativamente à natureza da vida pública.
Deste modo se justifica que a ideia de público seja uma noção central para a Es-
cola de Chicago. Embora os autores e investigadores desta Escola concordem com
Gabriel Tarde acerca da ideia de que é a imprensa que dá existência ao público,
eles foram além de Gabriel Tarde na tentativa de trabalhar com as condições sob
as quais a esfera pública dá origem a discursos racionais e críticos e à acção (cf.
Carey, 2009, p. 111). No que é atinente à comunicação, a Escola de Chicago de-
senvolveu a ideia de que os processos de coesão e integração na sociedade são
baseados nos símbolos acerca da vida social. O uso e a partilha dos símbolos es-
tabelecem formas de comunicação, interacção, valorização, poder e estruturação
do ecossistema social e cultural.
A cultura é um sistema simbólico de adaptação ao meio ambiente e de
transformação da condição natural e biológica do Humano numa condição cul-
tural e simbólica. A realidade é simultaneamente física e simbólica e é natural
que o ser humano seja um animal symbolicum, segundo Ernst Cassirer (cf. 1995,
p. 33) em Ensaio sobre o homem. De acordo com este mesmo autor, mas em Lin-
guagem, mito e religião:

80
Tradução do autor a partir do texto original em inglês de Carey: “[…] the Chicago School scholars
conceived communication as something more than the imparting of information. Rather, they
characterized communication as the entire process whereby a culture is brought into existence,
maintained in time, and sedimented into institutions. Therefore, they saw communication in the
envelope of art, architecture, custom and ritual, and, above all, politics. And this gave the third
distinctive aspect to their thought: an intense concern with the nature of public life.”
81
Formada por autores ligados à Universidade de Chicago, entre os anos 1920 e 1940, nomeadamente
Robert Park, Ernest Burgess e Louis Wirth, que desenvolveram trabalhos que se tornaram a base
da teoria e da investigação na área da Sociologia Urbana (cf. Giddens, 2008, p. 575). Nos finais do
século XIX e inícios do século XX, as transformações sociais e o urbanismo crescente,
principalmente nos Estados Unidos, suscitaram reflexões e uma consciência colectiva sobre os
problemas das sociedades (ao nível das assimetrias entre os meios rurais e urbanos, da coesão
social e integração, da economia ou da criminalidade), como são exemplos os trabalhos, nessa área
da Sociologia, de Robert Park, George Herbert Mead e Thomas Dewey (cf. McQuail, 2003, p. 39).
Paulo M. Barroso
106

“[…] nenhum processo mental chega a captar a realidade em si, já que, para poder
representá-la, para poder, de algum modo, retê-la tem de socorrer-se do signo, do
símbolo. E todo o simbolismo esconde em si o estigma da mediatez, o que o obriga
a encobrir quanto pretende manifestar.” (Cassirer, 1989, p. 11).

O simbolismo é uma dimensão indispensável à vida social e cultural. Sem


simbolismo não há interacção, comunicação nem comunidade. No Tratado de his-
tória das religiões, Mircea Eliade (1992, p. 552-561), sintetiza as características do
simbolismo:
– Coerência.
– Sistematização (sistema de significação).
– Polissemia.
– Economia (transmite muitas coisas com poucos recursos).
– Objectivação na significação (e.g. a pomba branca como símbolo da paz).
– Funcionamento e unificação.

Por outro lado, o simbolismo desempenha funções relevantes, segundo


Ian Craib (1992, p. 87), nomeadamente:
– Agir sobre as coisas, tendo em conta os significados que estas possuem.
– Determinar os significados como o produto da interacção social.
– Estabelecer os significados que formam/codificam o mundo.
– Favorecer as solidariedades.
– Definir a organização hierárquica das colectividades culturais.
– Ligar o presente ao passado.
– Actualizar as forças e os “seres sobrenaturais”.

Em A instituição imaginária da sociedade,82 Cornelius Castoriadis (1922-


1997) afirma que o imaginário e o simbólico estão necessariamente presentes
nas práticas sociais (nas religiões e nas ideologias e regimes políticos) são pilares
constitutivos de qualquer ordem social (Castoriadis, 2000, p. 147). O imaginário
e o simbólico desempenham funções colectivas na autonomia das sociedades,
i.e. na organização social que se assume como uma autocriação, autogestão e
auto-instituição, pois concebe-se e implementa-se o social sem recurso a leis ima-
nentes da Natureza, da História ou da Economia. Graças à imaginação e ao sim-
bólico que lhes é inerente, as sociedades criam, geram e instituem ordem e
organização consciente (Dortier, 2006, p. 61). Encontramos o simbólico em tudo

82
Obra publicada em 1975, originalmente em francês, com o título L’instituition imaginaire de la
société, (Éditions du Seuil, Paris).
Sociologia da Comunicação
107

o que se nos apresenta na sociedade. As instituições sociais só podem existir no


plano simbólico (Castoriadis, 2000, p. 142).
O que é o símbolo? De acordo com Guy Rocher:
“A maneira mais simples de definir o símbolo é dizer que é ‘qualquer coisa que
toma o lugar de outra coisa’ ou ainda ‘qualquer coisa que substitui e evoca uma
outra coisa’. Uma estátua evoca simbolicamente uma personagem, um aconteci-
mento ou uma ideia e assegura-lhe assim presença e acção contínua. Uma palavra
substitui simbolicamente uma coisa e consegue evocá-la sem que seja necessária
a presença física da coisa.” (Rocher, 1989a, p. 82).

Segundo Habermas, em Técnica e ciência como ‘ideologia’, o símbolo tem


uma dupla função enquanto nome das coisas:
“Por um lado, a força da representação consiste na actualização num outro de algo
que não está imediatamente dado; esse outro, embora não imediatamente dado,
não está por si mesmo, mas no lugar de outro. O símbolo representativo mostra
um objecto ou estado de coisas como um outro e designa-o na sua significação
para nós. Por outro lado, nós próprios é que produzimos os nossos símbolos. A
consciência falante torna-se objectiva por meio deles e experimenta-se a si mesma
neles como um sujeito.” (Habermas, 2006, p. 22).

Por seu turno, Mauss sublinha a importância capital dos símbolos para a
comunicação e para a cultura. Atente-se à seguinte passagem de Sociologia e an-
tropologia:
“Há muito Durkheim e nós ensinamos que não pode haver comunhão e comunica-
ção entre homens a não ser por símbolos, por signos comuns, permanentes, exte-
riores aos estados mentais individuais que são simplesmente sucessivos, por signos
de grupos de estados tomados a seguir por realidades. Chegamos até a supor por
que eles se impõem: é porque, em troca, pela visão e pela audição, pelo facto de
ouvir o grito, de sentir e ver os gestos dos outros simultaneamente ao nosso, os
tomamos por verdades. Há muito pensamos que uma das características do facto
social é precisamente seu aspecto simbólico. Na maioria das representações colec-
tivas, não se trata de uma representação única de uma coisa única, mas de uma re-
presentação escolhida arbitrariamente, ou mais ou menos arbitrariamente, para
significar outras e para comandar práticas.” (Mauss, 2008, p. 328).

Numa perspectiva diferente, Giddens realça o carácter relativo da cultura


como modo de vida:
“A cultura refere-se aos modos de vida dos membros de uma sociedade, ou de gru-
pos pertencentes a essa sociedade; inclui o modo como se vestem, as suas formas
de casamento e de família, os seus padrões de trabalho, cerimónias religiosas e ac-
tividades de lazer.” (Giddens, 2008, p. 22).

Por seu turno, George Steiner considera relevante o que designa por “ima-
gens do passado” para a compreensão do que nos governa, ou seja, do que é a
cultura:
Paulo M. Barroso
108

“Não é o passado literal que nos governa, excepto, talvez, numa acepção biológica.
São as imagens do passado: com frequência tão intensamente estruturadas e tão
imperativas como os mitos. As imagens e as construções simbólicas do passado
encontram-se impressas, quase à maneira de informações genéticas, na nossa sen-
sibilidade.” (Steiner, 1992, p. 13).

A importância do simbolismo é evidente para a cultura, porque o simbo-


lismo é um dos elementos constituintes da cultura e porque o mesmo simbolismo
permite a expressão e a manifestação dessa cultura. Conforme refere Mary Foster
no artigo “Symbolism: The foundation of culture”:
“Sem simbolismo não pode haver cultura. Um símbolo é um artefacto: uma ‘coisa’
que existe exteriormente em algum lado e em algum tempo. Como uma ‘coisa’, um
símbolo tem realidade material e é experienciado através dos sentidos. É uma ‘coisa’
que representa: que é culturalmente envolvida de tal modo que pode ser usada
numa multiplicidade de contextos para transmitir significados, não apenas sobre si
mesma, mas sobre relações e processos culturais. Todos os símbolos participam
numa teia de significações que chamamos cultura. Por outras palavras, qualquer
símbolo se cruza com o significado. O significado de um símbolo não é uma ‘coisa’
e apenas pode ser compreendido indutivamente por observação de várias instâncias
dos usos sociais desse símbolo ou símbolos similares.” (Foster, 1994, p. 366).83

Seja material e tangível ou imaterial, espiritual e intangível, todos os ele-


mentos constituintes da cultura provêm da mão e do cérebro humanos, i.e. da
própria cultura enquanto produção e reprodução humanas para satisfação de ne-
cessidades. O mundo cultural é um mundo artificial, porque é composto por tudo
o que se constrói para se viver, sejam elementos materiais sejam elementos es-
pirituais. O mundo da Cultura confronta-se com o mundo da Natureza, numa re-
lação simbiótica ou complementar.
A relação complementar entre estes dois mundos é salientada por Norbert
Elias, em Teoria simbólica, como um duplo carácter do mundo de que temos ex-
periência como:
– Mundo independente do ser humano.
– Mundo mediado pelo ser humano.

Por um lado, temos experiência de um mundo independente de nós, mas


incluindo-nos nesse mundo; por outro lado, temos experiência de um mundo me-
diado para a nossa compreensão e por uma “teia de representações simbólicas

83
Tradução do autor a partir do texto original em inglês de Foster: “Without symbolism there could
be no culture. A symbol is an artefact: a ‘thing’ that exists out there somewhere in space and time.
As a ‘thing’, a symbol has material reality and is experienced through the senses. It is a ‘thing’
that represents: that is culturally involved in such a way that it can be used in a multiplicity of
contexts to convey meaning, not just about itself, but about cultural processes and relationships.
Every symbol participates in a web of significances that we call culture. In other words, any symbol
resonates with meaning. The meaning of a symbol is not a ‘thing’, and it can only be grasped
inductively by observation of many instances of the social uses of that symbol, or similar symbols.”
Sociologia da Comunicação
109

humanas, predeterminadas pela constituição natural dos seres humanos, que se


materializam apenas com o auxílio de processos de aprendizagem social” (Elias,
2002, p. 131). Se o mundo não fosse representado simbolicamente, não podería-
mos conhecê-lo nem comunicar. Conclui-se que uma singularidade dos símbolos
é implicarem relações.
O mundo cultural é complexo e todos os seus elementos adquirem um
nome, um significado, uma imagem, uma ideia quando são inventados ou cons-
truídos. É o pensamento simbólico (ideias a respeito das coisas) que tem forma
de linguagem, pois é expresso. As coisas são complementadas com as ideias das
coisas. Os pensamentos, as ideias e os conhecimentos sobre as coisas constituem
a “noosfera” (do grego nous, que significa a actividade do intelecto, da mente,
da razão).84 O termo noosfera (ou esfera da mente) foi desenvolvido por Teilhard
de Chardin (cf. 2004, p. 125) e inclui, além da actividade do pensamento, a lin-
guagem e o simbolismo, que também são expressões do pensamento e das ideias
que se associam aos respectivos sentidos e significados atribuídos.
O simbolismo pertenceria, recordando a teoria dos “três mundos” de Karl
Popper, ao mundo 3, que é o lugar dos símbolos e das expressões. De acordo com
esta teoria de Popper, existem, precisamente, três mundos:

Mundo 1 Mundo 2 Mundo 3


Acontecimentos físicos e Acontecimentos mentais e Criações objectivas da mente
objectos exteriores (e.g. pedras, eventos subjectivos, da humana, dos produtos da mente
árvores, animais, substâncias, experiência consciente, humana (e.g. teorias, hipóteses,
etc.). perceptiva, visual, auditiva. problemas, argumentos,
expressões linguísticas, etc.).

Tabela 5: Os três mundos, segundo Popper.

De acordo com Popper, em Conhecimento objectivo:


“Nesta filosofia pluralista, o mundo consiste de, pelo menos, três submundos on-
tologicamente distintos; ou, como eu diria, há três mundos: o primeiro é o mundo
material, ou o mundo dos estados materiais; o segundo é o mundo mental, ou o
mundo dos estados mentais; e o terceiro é o mundo dos inteligíveis, ou das ideias
no sentido objectivo; é o mundo de objectos de pensamento possíveis: o mundo
das teorias em si mesmas e de suas relações lógicas, dos argumentos em si mesmos,
e das situações de problema em si mesmas.” (Popper, 1975, p. 152).

Estes três mundos são reais, independentes e ontologicamente distintos.


Os mundos 1 e 2 opõem-se, pois o primeiro é material e o segundo é mental. O
mundo 3 (mundo das teorias, argumentos ou problemas) é peculiar e mais dis-
tinto dos demais, assemelhando-se ao mundo das ideias ou formas platónicas,

84
O termo nous dá origem ao conceito de noésis, a operação do nous, ou seja, a operação do
pensamento, em contraste com a actividade dos sentidos, segundo F. E. Peters (cf. 1983, p. 147).
Paulo M. Barroso
110

em que as ideias são imutáveis, eternas e verdadeiras (cf. Platão, 2001, 507b).
Mas o mundo 3 de Popper é o dos produtos da mente, que estão em permanente
mudança; é o mundo do conhecimento objectivo.
Na sua autobiografia intelectual intitulada Busca inacabada, Popper (cf.
2008, p. 252) explica que, se chamarmos ao mundo das coisas ou dos objectos fí-
sicos o mundo 1 e ao mundo das experiências subjectivas e dos processos mentais
o mundo 2, podemos chamar ao mundo dos enunciados em si o mundo 3. Então,
pergunta Popper: “Devemos chamar ‘reais’ às imagens que vemos na televisão?”.
Como as imagens de televisão são o resultado de um processo pelo qual o apare-
lho descodifica mensagens transmitidas através de ondas, devemos chamar
“reais” a essas mensagens codificadas e abstractas, pois o resultado da sua des-
codificação é “real” (Popper, 2008, p. 256).
Se o ser humano é um animal simbólico, o mesmo é dizer que é um animal
cultural. Todas as sociedades possuem cultura e um sistema de significação sim-
bólica que são interdependentes. Todos os elementos materiais ou espirituais da
cultura, todos os modos de manifestação da cultura (rituais, festas, jogos, modas,
costumes, usos, formas de artes, etc.) e todas as relações sociais são formas sim-
bólicas, porque verificam-se trocas de signos, i.e. interpretações e significados.
Por conseguinte, os sistemas sócio-culturais são fundamentalmente sistemas in-
tegrados de comunicação (cf. Lima, Martinez & Lopes Filho, 1980, p. 63), pois
tudo ou quase tudo na cultura comunica. A cultura é um dado universal e tudo
o que o ser humano acrescenta à Natureza (tudo o que o ser humano faz ou con-
cebe de diferentes maneiras e resultados como obra da sua acção) é cultura. Não
é geneticamente transmitida, i.e. não nascemos com cultura; a cultura é herdada
socialmente (cf. Lima, Martinez & Lopes Filho, 1980, p. 67). O ser humano passa
por um processo de endoculturação85 ou inculturação86 que os integra no seu sis-
tema social. Por isso, existem diferentes culturas (relativismo cultural), mas tam-
bém os elementos da cultura (símbolos, conhecimento, valores, crenças e normas)
estão presentes em diferentes modos e proporções em todas as culturas.

3.3.2. Valores e normas da cultura


Os valores prescrevem modos ideais de ser, estar e agir em conformidade
com certos padrões que definem o que é importante, útil ou desejável para se
viver em comunhão, i.e. para haver coesão e harmonia social. Por isso, os valores
são fundamentais em todas as culturas. São ideais abstractos que atribuem sig-
nificado e orientam os seres humanos na sua interacção no mundo social.87

85
Conjunto de processos de aquisição ou aprendizagem pelo qual o ser humano se apropria da
cultura do sistema social a que pertence.
86
Processo de adaptação cultural.
87
Um exemplo de um valor é a monogamia, que é proeminente na maioria das sociedades
ocidentais.
Sociologia da Comunicação
111

As normas88 são regras de comportamento que reflectem ou incorporam


os valores de uma cultura. As normas e os valores determinam a forma como os
membros de uma determinada cultura se comportam.89 As normas são social-
mente compartilhadas e expressam o que se deve e não se deve fazer. São regras
ou padrões de autoridade sobre o certo e o errado. Desde os antigos pensadores
gregos, as normas são vistas como a personificação dos valores e das virtudes
(cf. Barroso, 2020a, p. 1269). Por exemplo, pensar em cometer um crime não viola
nenhuma norma jurídica, mas viola uma norma moral. As seguintes máximas
clássicas justificam a existência da normalidade na sociedade: ubi homo, ibi so-
cietas (“onde há homem, há sociedade”) e ubi societas, ibi jus (“onde há sociedade,
há direito”). As normas são, por conseguinte, indispensáveis em qualquer asso-
ciação e relação de pessoas, pois são regras, preceitos e modelos que governam
e guiam o curso das acções sociais.90
As normas visam estabelecer e fundamentar um conjunto de princípios e
regras de acção que permitam evitar e resolver conflitos nas relações entre os ci-
dadãos, tendo em vista a harmonia social. Todas as normas são normas sociais.
As normas sociais são mecanismos eficientes para alcançar fins sociais (e.g. ordem
social e regulação, cooperação e retribuição, maximização do bem-estar, etc.). As
normas devem ser incondicionais, claras e universais (para todos), mas não eter-
nas, porque a sociedade muda e desenvolve-se e a cultura é flexível ao tempo e
às necessidades humanas.

88
O conceito de “norma” deriva do grego nómoi, lei ou convenção, contrapondo-se ao conceito de
physis, natureza. O termo “norma” significa etimologicamente “esquadro de carpinteiro, regra,
padrão” e pressupõe regras de comportamento ou acção socialmente partilhadas, expressando o
que se deve ou não deve fazer em determinadas circunstâncias (cf. Barroso, 2020a, p. 1269).
89
Por exemplo, numa cultura que valoriza a hospitalidade, as normas culturais estimulam
expectativas quanto à dádiva de presentes ou ao comportamento social de convidados e
anfitriões.
90
Atinente ao efeito normalizador e dissuasor das normas sociais (em particular, as normas morais
e religiosas), Oscar Wilde, por intermédio do personagem Lord Henry, em O retrato de Dorian Gray,
refere com perspicácia e pertinência: “O temor à sociedade, que é a base da moral, e o temor a
Deus, que é o segredo da religião, são as duas coisas que nos governam” (Cf. Wilde, 1999, p. 36).
Por seu turno, Nietzsche também apresenta uma perspectiva similar, original e interessante sobre
as normas morais e religiosas, quando se refere ao nascimento social da falta (pecado) e da culpa,
que passa a ser encarnada pelo indivíduo. Em A genealogia da moral, Nietzsche critica o que
denomina como “ideal ascético ao serviço de uma finalidade, a exaltação dos sentimentos”,
considerando ser esta a “obra-prima do sacerdote ascético para produzir na alma humana esta
música estática” enquanto “perfeição do sentimento de culpabilidade”. Assim, o pecado é o nome
atribuído pelo sacerdote à “má consciência animal” (crueldade interiorizada); o pecado é “o
acontecimento capital na história da alma doente, é a frase mais nefasta da interpretação
religiosa”, a partir da qual passou a haver uma “nova doença no mundo: o pecado”, pois é um
freio da vontade, da liberdade, do pensamento, da acção e do comportamento do indivíduo
inserido e em convívio numa comunidade (cf. Nietzsche, 1997b, pp. 116-117).
Paulo M. Barroso
112

“Nas sociedades modernas ocidentais, o funcionamento dos sistemas sociais das


normas é criticamente analisado por Michel Foucault na década de 1970; a obra
de Foucault é frequentemente condensada quer pela tese de uma massiva norma-
lização do comportamento individual quer pelo poder exercido sob o regime das
normas em vez de acordo com as leis. Foucault define a norma como uma mistura
de legalidade e natureza, prescrição e constituição. Diferentes grupos, comunidades
e sociedades possuem diferentes normas com diferentes funções. Por conseguinte,
poder-se-ia questionar, relativamente à perspectiva de Foucault, se não existem
normas, mas apenas o simples e virtual uso normativo.” (Barroso, 2020a, p. 1269).91

Os valores e as normas variam entre as culturas. Umas culturas valorizam


o individualismo, enquanto outras enfatizam as necessidades colectivas. Giddens
apresenta um exemplo para esta disparidade de concepção de valores entre as
culturas:
“A maioria dos alunos britânicos sentir-se-iam indignados se descobrissem um co-
lega a copiar num exame. Na Grã-Bretanha, copiar do colega do lado vai contra os
valores fundamentais da realização individual, da igualdade de oportunidades, do
trabalho árduo e do respeito pelas regras. No entanto, os estudantes russos sentir-
se-iam intrigados com esta noção de ultraje dos seus colegas britânicos. A entrea-
juda entre colegas num exame é reflexo do quanto os russos valorizam a igualdade
e a resolução colectiva de problemas face à autoridade. Pense na sua reacção face
a este mesmo exemplo. O que será que revela acerca dos valores da sua sociedade?”
(Giddens, 2008, p. 23).

No seio de uma sociedade ou comunidade, os valores podem ser contradi-


tórios. Por exemplo, alguns grupos ou indivíduos podem valorizar crenças reli-
giosas tradicionais, enquanto outros podem aprovar o progresso e a ciência. A
época moderna, marcada pela mudança, está repleta de movimentos globais de
pessoas, bens e informação e, por isso, existem muitos casos de valores culturais
em conflito.
Muitos hábitos e comportamentos sociais estão enraizados em normas
culturais. Simples gestos, movimentos e expressões são fortemente influenciados
por factores culturais. Por exemplo, o sorriso. Todas as formas de cultura contêm
valores, normas e padrões seleccionados, canalizados e manifestados, que se ex-
teriorizam na composição de certas ideias e comportamentos sociais.
Os valores e as normas são dinâmicos, evolutivos ou flutuantes, tal como
a própria cultura em que se inserem; os valores e as normas estão sempre em

91
Tradução do autor a partir do texto original em inglês: “In modern Western societies, the
functioning of social systems of norms was critically analyzed by Michel Foucault in the 1970s;
his work is often reduced either to the thesis of a massive normalization of individual behavior
or to the power exercised under the regime of the norms instead of according to laws. Foucault
defined the norm as a mix of legality and nature, prescription, and constitution. Different groups,
communities, and societies have different norms with different functions. Therefore, regarding
Foucault’s perspective, one could question whether there are no norms, but only the simple and
virtual normative use.”
Sociologia da Comunicação
113

mudança na cultura em que são ingredientes fundamentais. Os valores e as nor-


mas não são perpétuos (mudam, porque o mundo está em permanente evolução).
Muitas normas que hoje tomamos como assentes nas nossas vidas contradizem
valores que até há algumas décadas eram partilhados por muitos. Por exemplo,
ter relações sexuais antes do casamento. Os valores e as normas culturais podem
alterar-se de uma forma espontânea ou deliberada.
Uma consequência ou inevitabilidade desta característica dinâmica dos
valores e das normas, bem como da própria cultura, é a existência de diversidade
cultural. Não são apenas as crenças culturais que variam de cultura para cultura;
também a diversidade dos comportamentos e das práticas sociais. Por exemplo,
cachorros tratados como animais domésticos na Europa e vendidos como uma
iguaria na China, segundo Giddens, representam um choque cultural entre Oci-
dente e Oriente.
“Por exemplo, no Ocidente moderno as crianças de doze ou treze anos são consi-
deradas demasiado novas para casar. No entanto, em outras culturas são arranjados
casamentos entre crianças dessas idades. No Ocidente, comemos ostras, mas não
comemos gatinhos e cachorros, e tanto uns como outros são considerados, em al-
gumas partes do mundo, iguarias gastronómicas. Os Judeus não comem carne de
porco, enquanto os Hindus, embora comam porco, evitam a carne de vaca. Os Oci-
dentais consideram o acto de beijar uma parte natural do comportamento sexual,
mas em muitas outras culturas esse acto ou é desconhecido ou considerado de
mau-gosto. Todos estes diferentes tipos de comportamento são aspectos das gran-
des diferenças culturais que distinguem as sociedades umas das outras.” (Giddens,
2008, p. 22).

Esta questão confronta a uniformidade cultural (monocultura) e a homo-


geneidade cultural (e.g. Japão) com a diversidade cultural (multicultura) e a he-
terogeneidade cultural (e.g. EUA). O mundo está em permanente transformação
e a tendência actual parece aceitar uma emergência de sociedades culturalmente
mistas (população constituída por grupos de diferentes origens culturais, étnicas
e linguísticas): comunidades de subculturas. É o caso de Londres, segundo Gid-
dens:
“Nas sociedades modernas, por exemplo, muitas comunidades subculturais vivem
lado a lado – negros oriundos das Índias Ocidentais, paquistaneses, indianos na-
turais do Bangladesh, italianos, gregos e chineses habitam, hoje em dia, algumas
zonas centrais de Londres.” (Giddens, 2008, p. 24).

Face ao dinamismo dos valores e das normas, por um lado, e da cultura,


por outro lado, surge a questão do relativismo cultural. O relativismo implica jul-
gar todos os costumes e comportamentos como igualmente legítimos? Existirão
padrões universais que todos os seres humanos deveriam seguir?
Segundo a perspectiva do relativismo cultural, existem padrões culturais
diferentes para cada cultura. Como resultado desta premissa, temos:
Paulo M. Barroso
114

– Culturas diferentes têm códigos sociais e morais diferentes: se um có-


digo determina o que é correcto na respectiva cultura, outro código faz
o mesmo noutra cultura.
– Não há um padrão cultural único, mas costumes diferentes: não se pode
dizer que os costumes estão correctos, porque implicaria um padrão in-
dependente do que é certo para se julgar as coisas.
– Se todos os padrões são determinados por uma cultura, o nosso próprio
código social e moral não tem um estatuto especial.
– Há uma relatividade da objectividade e universalidade da verdade e dos
códigos sociais e morais.

Outro tema importante e decorrente da problemática sobre a cultura é a


subcultura.92 A cultura tem papel importante na perpetuação das normas e va-
lores e também oferece oportunidades de criatividade e mudança. As subculturas
e as contraculturas (grupos que rejeitam a maior parte das normas e dos valores
vigentes numa sociedade) podem promover pontos de vista alternativos à cultura
dominante. Os movimentos sociais e os grupos que partilham os mesmos estilos
de vida constituem forças de mudança nas sociedades. As subculturas oferecem
às pessoas a possibilidade de se expressarem e agirem de acordo com as suas
opiniões, aspirações e valores.
Também a questão do etnocentrismo93 se coloca na abordagem compreen-
siva sobre a cultura. Todas as culturas têm um padrão de comportamento próprio,
que parece estranho a pessoas de outros contextos culturais. Atente-se ao viajar,
entendido como o contacto com outra cultura (língua, hábitos, costumes e modos
de comportamento). As culturas podem ser difíceis de entender quando vistas
de fora. Não é possível compreender crenças e práticas se as separamos do todo,
do sistema completo que são as culturas de que fazem parte. Pelo contrário, deve-
se compreender uma cultura segundo os seus próprios significados e valores. Se-
gundo Giddens:
“O etnocentrismo é uma desconfiança em relação a estranhos combinada com uma
tendência para avaliar as outras culturas em termos da nossa própria cultura. […]
Todas as culturas têm sido virtualmente, em grau maior ou menor, etnocêntricas,
e é fácil ver como o etnocentrismo se combina com o pensamento estereotipado.
Os forasteiros são considerados diferentes, bárbaros ou moral e mentalmente in-
feriores. Foi assim que a maioria das civilizações concebeu, por exemplo, os mem-
bros de culturas mais pequenas, e esta atitude contribuiu para fomentar inúmeros
confrontos étnicos através da história.” (Giddens, 2008, p. 256).

92
Culturas mais pequenas e específicas formadas e assentes em outras culturas mais vastas e
complexas, com a qual estabelecem uma cisão ou demarcação.
93
Julgar uma cultura tomando como medida de comparação outra cultura que é considerada
superior ou melhor e que, por norma, é aquela à qual pertence quem faz o juízo de valor.
Sociologia da Comunicação
115

Associado ao etnocentrismo está a aculturação.94 Num mundo cada vez


mais globalizado, o etnocentrismo é um fenómeno e um processo que de-
monstra:
– Diversidade e relativismo cultural (há culturas e culturas).
– Diferença entre culturas mais “fortes” e influentes e outras mais peque-
nas e singelas.
– Flexibilidade e adaptação do ser humano à cultura (principalmente a
tendência para novas ou diferentes culturas).
– Capacidade humana permanente de aceitação de novos padrões, valores
e normas, mesmo numa fase adulta.

Num mundo cada vez mais globalizado, o etnocentrismo pode assumir


maior ou menor expressão, considerando que os meios e as tecnologias de co-
municação facilitam e promovem tanto a homogeneização ou uniformidade da
mediação e conectividade das relações sociais, como sentimentos de intolerância,
populismo e extremismo contra a diferença cultural.

3.3.3. Cultura popular e cultura de massas


A cultura popular é o conjunto de produtos ou artefactos culturais, ima-
gens, ideias, objectos e estilos de aceitação fácil (coincidentes com as preferências
da maioria das pessoas, por serem produtos pouco exigentes e satisfazerem de
imediato), disseminados de uma maneira global e rápida, em função “de se estar
interessado nos significados que são produzidos pelas ou para ‘as pessoas’, e de
se considerar esses significados como prova ‘daquilo que o público quer’ ou ‘da-
quilo que o público obtém’”, segundo John Hartley (2004, p. 212). O que pode ex-
plicar a enorme popularidade de um filme como Titanic ou uma artista como
Madonna? O que pode explicar essa enorme popularidade é:
– A disseminação e promoção em larga escala do “produto” ou da “marca”
(além de artista pop, Madonna é uma marca, um símbolo cultural).
– A simplicidade e imediatismo do consumo do produto cultural, do gé-
nero fast-culture ou cultura light.
– A sumptuosidade e espetacularização da sua produção e trabalho de
marketing na orquestração da apresentação do produto no mercado.
– A reprodução de ideais e valores cativantes em sintonia com a moda vi-
gente.

94
A aculturação é o processo pelo qual um indivíduo ou grupo humano pertencentes a uma
determinada cultura entra em contacto permanente com uma cultura diferente (supostamente
considerada “superior”, mais forte ou dominante) e se adapta a esta ou retira dela elementos
culturais.
Paulo M. Barroso
116

Para a compreensão do conceito de “cultura popular”, James W. Carey (cf.


2009, p. 29) situa a palavra “popular” no contexto de certos objectos e práticas
que envolvem todos os estratos da população, enquanto o termo “cultura” refere
os artefactos expressivos (palavras, imagens e objectos) que assumem e trans-
portam significados. De um modo geral, a cultura popular está conotada com
entretenimento popular proporcionado por certas formas de expressão da mú-
sica, do cinema ou da literatura.
Se, no mundo contemporâneo globalizado, a cultura se encontra unifor-
mizada, homogeneizada, então também está massificada. Se o nível ou qualidade
é pouco exigente e atrai ou seduz a maioria dos consumidores dos produtos cul-
turais (música, cinema, literatura, etc.), essa cultura está popularizada e impera,
de um modo global, no mundo, independentemente das diferenças radicais entre
as culturas. É como um imperialismo cultural que se instala sobre tudo e todos,
com base no pressuposto da globalização de “um só mundo, uma só cultura”. A
cultura popular tem uma identidade híbrida. Por exemplo:
“[…] um cidadão negro e urbano da África do Sul actual pode permanecer for-
temente influenciado pelas tradições e perspectivas culturais das suas raízes
tribais, mas simultaneamente adoptar um gosto e estilo de vida cosmopolitas
– na roupa, no lazer e nos tempos livres, etc. – que resultam da globalização.”
(Giddens, 2008, p. 65).

A cultura de massas é o conjunto de comportamentos, mitos e represen-


tações produzidas e difundidas segundo uma técnica industrial (conteúdos di-
fundidos pelos meios de comunicação social). Por regra, as modernas culturas de
massas não são tradicionais nem elitistas, porque não vivem no passado nem
são exclusivas de uma minoria social de alto estatuto, respectivamente. As mo-
dernas culturas de massas produzem tudo em larga escala e para todos. Portanto,
são populares, comerciais e homogeneizadoras. Segundo McQuail (cf. 2003, p.
45), a cultura de massas:

– Não é tradicional.
– Não é elitista nem erudita.
– É uma produção (melhor, reprodução) em massa.
– É popular.
– É comercial.
– É homogeneizada.

Se entendermos a cultura de massas como factor de fragilização dos laços


culturais que unem as pessoas às suas tradições, a cultura de massas enfraquece
as instituições intermediárias na sociedade (e.g. a família ou a escola), diluindo
Sociologia da Comunicação
117

o seu papel e sobrepondo-se a estas instituições. Por exemplo, os tribunais95 são


instituições sociais tradicionais e importantes para o normal e harmonioso fun-
cionamento da vida colectiva, mas quando as pessoas recorrem às redes sociais
para exercer pressão sobre as decisões judiciais em determinados processos me-
diatizados e politizados, essa prática é popularizada e torna-se numa forma de
cultura habitual e, por conseguinte, prejudicial. A justiça não se deve fazer na
praça pública, que hoje está convertida numa dimensão virtual, as redes sociais.
Num Estado de Direito democrático, a justiça faz-se nos órgãos próprios e de uma
maneira imune às pressões populares.
A cultura de massas diz respeito a todos os produtos fabricados para o
mercado, incluindo a arte e a própria cultura. A cultura deixa de ser privilégio
de alguns para ser apanágio de todos. Hoje não há um só público, mas existem
públicos diferentes tanto para a televisão como para a imprensa. Os géneros tí-
picos da cultura de massas na televisão são as telenovelas e as séries, porque fi-
delizam os hábitos de consumo desses produtos culturais, que são igualmente
produtos comerciais.
A cultura de massas é difundida pelos media (imprensa, rádio, cinema, te-
levisão).96 Os media têm, por conseguinte, um papel na formação da cultura, ao
disseminarem e comercializarem produtos típicos dessa cultura. Os produtos me-
diáticos (não apenas as telenovelas e as séries, mas também os programas noti-
ciosos) são produtos formatados para se tornarem populares, i.e. cumprirem os
requisitos que anteriormente foram referidos a propósito do filme Titanic e da
artista Madonna. O poder dos media na cultura de massas assenta nos seguintes
aspectos:97
– Informação.
– Persuasão e influência.
– (Re)estruturação e (re)definição da sociedade e dos seus valores cultu-
rais.
– Concessão arbitrária de estatuto social e legitimidade através da noto-
riedade mediática.
– Atracção e direcção da atenção dos públicos.

95
Em Portugal, os tribunais são um dos órgãos de soberania, administram a justiça em nome do
povo exercendo o poder judicial, que é fundamental a par do poder legislativo (exercido pela
Assembleia da República) e do poder executivo (exercido pelo Governo que aplica a lei enquanto
órgão superior da Administração Pública).
96
A cultura de massas será o resultado da acção, em especial, dos meios de comunicação de massas,
segundo Gabriel Cohn (1973, p. 99), “em sociedades tecnologicamente avançadas e de alto grau
de urbanização”. Concordamos com Cohn, segundo o qual a cultura de massas implica, como seu
substrato social, a sociedade de massas e, no plano interactivo, a comunicação de massas.
97
Estes cinco aspectos coincidem com as cinco funções dos media na sociedade (informar, persuadir,
educar, socializar e distrair ou entreter), que serão abordadas mais adiante, no subcapítulo 3.4.1.
Paulo M. Barroso
118

A propósito do poder dos media na cultura de massas, George Gerbner de-


senvolve a teoria de que uma cultura comunica através da sua produção mediá-
tica, mantendo ou modificando o consenso sobre os seus valores. Assim, as
características dos media constituem os padrões da produção cultural, que são
absorvidos pelos públicos dos media, sem que estes tenham consciência deles
(Fiske, 1993, p. 191). Ao analisar o conteúdo dos media, Gerbner sustenta a teoria
do relacionamento do sistema dos meios de comunicação de massas com a cul-
tura. Trata-se do relacionamento de cultivo, segundo o qual os media cultivam
atitudes e valores na cultura em que se inserem.98
O poder dos media é positivamente reconhecido pela informação que
transmitem aos públicos. Estar informado sobre o que acontece no mundo é im-
portante, pois é saber o que se passa à sua volta. Todavia, se informação é poder,
o conhecimento é ainda mais. O conhecimento é sólido e desenvolvido, enquanto
a informação assenta, cada vez mais com a globalização da informação e comu-
nicação, no carácter instantâneo, efémero e superficial que não esclarece em pro-
fundidade e se substitui ao conhecimento e ao significado da factualidade.
O poder de persuasão e influência é conseguido pela atribuição de estatuto
e legitimidade aos media por parte dos públicos, que, por falta de literacia me-
diática e capacidade em distinguir e fazer juízos críticos, aceitam sem questionar
o que lhes é apresentado. Por vezes, os públicos até consideram apenas real
aquilo que aparece na televisão. O poder de persuasão e influência assenta sobre
assuntos populares que formam a opinião pública, moldando atitudes e compor-
tamentos de conformismo e mimetismo dos públicos dos media.
Se os media são uma instituição social, a par de outras, é porque são im-
portantes por poderem desempenhar um papel único e necessário na sociedade,
como o de informar e esclarecer ou o de socializar e educar. Para isso, os media
devem seguir e cultivar os valores sociais e os princípios morais que são estima-
dos na cultura em que se inserem.
Efectivamente, os mass media são factores de socialização, normalização,
coesão social e reprodução dos valores culturais. Além dos factores tradicionais
e institucionais de socialização (família, escola, grupos de pertença, etc.), os mass
media têm a vantagem de atingir uma audiência vasta. Por isso, o campo dos
media deve ser escrutinado:
“A actividade jornalística é necessariamente regulada por códigos de ética que ga-
rantem a orientação de práticas importantes, como a confirmação das fontes de
informação, a garantia do contraditório, a objectividade e imparcialidade, a procura
da verdade; caso contrário, os princípios morais e os valores sociais fundamentais
da sociedade, como a verdade, serão violados. Portanto, a produção dos media tam-

98
Os media não criam as atitudes e os valores na cultura, pois estes (as atitudes e os valores) já
estão presentes; os media apenas alimentam e propagam as atitudes e os valores, ajudando as
culturas a manter e a adaptar os seus valores (Fiske, 1993, p. 200).
Sociologia da Comunicação
119

bém deve ser regida por normas, examinando o que pode e deve ser publicado.
Embora existam áreas dos media em que é difícil implementar essas normas, é ne-
cessário introduzir directrizes éticas para o blogging e os outros social media, por
exemplo, que se tornaram cada vez mais populares e influentes, permitindo que
qualquer pessoa produza e publique conteúdos na web. A introdução de normas
em novas áreas pode regular o seu uso e impedir acções ofensivas ou desviantes.”
(Barroso, 2020a, p. 1270).99

Os media possuem estatuto e legitimidade que são dados pelos seus pú-
blicos, mas também concedem arbitrariamente (seguindo os critérios editoriais
que escolhem) estatuto social e legitimidade a pessoas anónimas (e.g. nos reality
shows) através do tempo de antena que lhes dão, aumentando a sua notoriedade
mediática, ou seja, tornando-as populares.
O poder dos media em termos de atracção e direcção da atenção dos pú-
blicos está comprometido em função de determinados interesses editoriais (estilo
mais formal e rigoroso ou mais espectacular e sensacionalista adoptado pelo
órgão de comunicação) e comerciais (concorrenciais, de guerra de audiências). A
adopção de um estilo mais espectacular e sensacionalista vai mais ao encontro
dos interesses colectivos de uma cultura popular. Os media, os conteúdos (pro-
gramas de entretenimento e de informação) e os públicos identificam-se, pois
são todos populares. O poder dos media também é distractivo, ou seja, é o poder
de distrair os públicos com programas de entretenimento ou até o simples cultivo
do aparato e do espectáculo informativo (nos noticiários) que causa sensação.

3.4. Comunicação de massas


A expressão “comunicação de massas” possui demasiadas acepções para
ser entendida de uma maneira simples e acurada. O mesmo sucede com os seus
termos isoladamente, “comunicação” e “massas”, principalmente o termo “mas-
sas”, que está carregado de valores e de ambiguidades (cf. McQuail, 1994, p. 40).
A comunicação de massas é um processo de interacção social assimétrica, através
da produção e transmissão unidireccional de informações estandardizadas em
larga escala, para públicos amplos e anónimos, por parte de instituições, meios
e técnicas específicos.

99
Tradução do autor a partir do texto original em inglês: “The journalistic activity is necessarily
regulated by codes of ethics that guarantee the guidance of important practices such as
confirming the sources of information, ensuring the contradiction, following objectivity and
impartiality, or seeking the truth; otherwise, moral principles and fundamental social values of
society, such as truth, will be violated. Therefore, the media production must be also governed
by norms, scrutinizing what can and should be published. Although there are areas in media
where it is difficult to implement such norms, it is necessary to introduce ethical guidelines for
blogs and other social media, for example, which have become increasingly popular and
influential, enabling anybody to produce and publish content on the web. Introducing norms in
new areas might regulate their use and prevent offensive or deviant actions.”
Paulo M. Barroso
120

Os meios de comunicação de massas, agora apetrechados de recursos tec-


nológicos, tornam possível este processo social de transmissão de informações
para públicos amplos, diversos e anónimos. Além de ser um processo e recorrer
a meios específicos, a comunicação de massas é um fenómeno social, i.e. veri-
fica-se na esfera pública e envolve o sistema social onde se insere. Por conse-
guinte, os meios de comunicação de massas têm um longo alcance e um grande
impacto, que define o seu próprio poder.
A comunicação de massas (ou mass media) representa o conjunto de téc-
nicas (redes de transmissão, equipamentos e meios) que permite colocar à dis-
posição de um público bastante vasto todas as mensagens informativas. O termo
mass media designa o conjunto dos meios de comunicação social enquanto ins-
trumentos eficientes (tecnicamente aptos) de difusão simultânea, rápida e gene-
ralizada de conteúdos em larga escala, ou seja, para um número indiscriminado
de indivíduos. Devido a este papel dos mass media, fala-se em sociedades media-
tizadas, ou seja, sociedades trespassadas pelas influências dos meios e fluxos de
informação e de comunicação de massas.
“Por comunicação de massa entende-se todo o processo de produção e transmissão
de informações (sons, imagens, dados, etc.) capazes de atingir de modo simultâneo,
ou então num tempo brevíssimo, uma grande massa de indivíduos em diferentes si-
tuações especiais. Os meios de comunicação de massa são instrumentos que, para
usar uma expressão de McLuhan, permitem estender as potencialidades do corpo
humano de modo a possibilitar uma comunicação extensa, que ultrapassa os vínculos
espaciotemporais, conseguindo assim veicular a mesma informação a massas de in-
divíduos. Como se sabe, a expressão ‘meios de comunicação de massa’ é normalmente
usada em relação à imprensa, ao cinema, à publicidade e, cada vez mais, na referência
aos meios electrónicos: rádio, televisão e redes informáticas. A peculiaridade destes
últimos é a possibilidade de dar a disfrutar em tempo real a informação a indivíduos
distantes entre si milhares de quilómetros.” (Demartis, 2006, p. 168).

Desde o início, em meados do século XX, a comunicação de massas suscita


preocupações e estudos acerca da influência sobre os comportamentos e as atitudes
dos públicos. Primeiro, a influência dos meios de comunicação tradicionais (im-
prensa, rádio e televisão, bem como o cinema e a publicidade), depois, a influência
dos meios de comunicação modernos (os novos media digitais e interactivos).
Sejam tradicionais ou modernos, o sistema de comunicação de massas implica:
– Produção, distribuição e recepção (consumo) de conteúdos em grande
escala.
– Transmissão rápida, imediata e efémera dos conteúdos.
– Fluxo unidireccional (por norma, sem feedback, mas com a possibilidade
de estudo de audiências).
– Relação assimétrica, impessoal e anónima entre os media e os seus pú-
blicos.
– Relação baseada na lógica do mercado (concorrência pelas audiências).
Sociologia da Comunicação
121

– Conteúdos estandardizados (secundarização da preocupação com o cri-


tério de qualidade) e generalistas ou populares (que agradam a todos
os públicos), com um nível de linguagem corrente/popular.
– Predomínio das funções de entretenimento (até nos conteúdos informa-
tivos, apresentados com mais espectacularidade).
– Audiências de massas (homogeneizadas e maleáveis), que são: grande
número de pessoas, dispersas, anónimas e não interactivas, não orga-
nizadas e sem participação e iniciativa no campo dos media (audiências
cada vez mais passivas).
– Meios técnicos de comunicação e de produção (“indústrias da informação”),
ou seja, informação como mercadoria capitalizável e comercializável.

De acordo com McQuail e Windahl, em Modelos de comunicação: Para o es-


tudo da comunicação de massas:
“Em comunicação de massas, o ‘emissor’ faz sempre parte de um grupo organizado
e é muitas vezes membro de uma instituição com outras funções além da comuni-
cação. O ‘receptor’ é sempre um indivíduo, mas pode muitas vezes ser visto pela
organização emissora como um grupo ou colectividade com certas características
gerais. O canal já não é uma relação social, forma de expressão ou órgãos sensoriais,
mas envolve equipamentos e sistemas de distribuição baseados em alta tecnologia
de difusão. Estes sistemas mantêm, todavia, uma componente social, uma vez que
dependem da lei, do hábito e da expectativa. Em comunicação de massas, a men-
sagem não é um fenómeno único e transitório, mas uma estrutura simbólica, mui-
tas vezes de grande complexidade, produzida em massa e que se pode repetir
infinitamente. São de particular importância em comunicação de massas: a natu-
reza pública e aberta de toda a comunicação; o acesso limitado e controlado aos
serviços de ‘emissão’; a impessoalidade da relação entre emissor e receptor; o de-
sequilíbrio da relação entre eles; a intervenção de acordos institucionalizados entre
emissor e receptor. Com efeito, não existe uma forma universal única do processo
de comunicação de massas e a realidade é tão diversa que explica, em parte, a mul-
tiplicidade de modelos possíveis para representar o todo ou partes dele.” (McQuail
& Windahl, 2003, pp. 13-14).

Por contraposição à comunicação interpessoal, a comunicação de massas


demarca-se pelas seguintes características:

Comunicação de massas Comunicação interpessoal

Massificação no “consumo” dos media torna as Relações pessoais pela proximidade entre o
relações impessoais. emissor e o receptor.

Direcção unilateral: transmissão/difusão da Direcção bilateral: reversibilidade das trocas de


comunicação. informação.

Público vasto e desconhecido, sem feedback e sem Público restrito, conhecido e, por vezes, presente,
conhecimento das reacções ou efeitos (excepto com reacções imediatas e directas.
quando há estudo de audiências).

Tabela 6: Distinção entre as formas de comunicação de massas e comunicação interpessoal.


Paulo M. Barroso
122

Os fenómenos da comunicação e da massificação das sociedades são in-


terdependentes. A comunicação é um fenómeno social que se torna cada vez
mais global, massificando as próprias sociedades nas formas e nos conteúdos de
comunicação. Em A globalização da comunicação, Mattelart (2000, p. 15) afirma
que “a internacionalização da comunicação é filha de dois universalismos: o Ilu-
minismo e o liberalismo”. A partir de então estabeleceram-se e difundiram-se a
liberdade de pensamento e a liberdade de expressão enquanto direitos naturais
do ser humano. “A invenção da comunicação como ideal ocorreu sob o signo das
ideias de modernidade e perfectibilidade das sociedades humanas”, ou seja, “é
fruto da esperança no futuro”, segundo Mattelart (2000, p. 16). Com o longo e
gradual desenvolvimento dos meios e técnicas de comunicação, as sociedades e
culturas aproximam-se e até se identificam, pois “a comunicação encurta as dis-
tâncias não somente entre dois pontos, mas entre uma classe e outra” (Mattelart,
2000, p. 40). Assim, “o século XIX inventa a news e, com ela, o ideal da informação
instantânea” (Mattelart, 2000, p. 47), que ainda hoje não só prevalece como ainda
possui mais notoriedade. A comunicação torna-se sinónimo de modernização
(Mattelart, 2000, p. 85). Surgem as indústrias da informação, da comunicação e
da cultura. As sociedades tornam-se globais e, para isso, contribuem as tecnolo-
gias de comunicação. Quer as sociedades quer a comunicação interligam-se e for-
mam um mesmo e gigantesco sistema em rede.

3.4.1. Funções da comunicação de massas


Na sequência dos aspectos enunciados anteriormente no subcapítulo 3.3.3.
referente à cultura popular e à cultura de massas, para as quais contribuem os
media, tradicionalmente se reconhecem as seguintes cinco funções da comuni-
cação de massas:
a) Informar: procurar, editar e transmitir informações aos respectivos pú-
blicos-alvo (e.g. noticiários).
b) Persuadir e influenciar, transmitindo conteúdos para serem aceites sem
reservas pela audiência, moldando os modos de ver, pensar, sentir ou
agir (e.g. discursos públicos/políticos, opiniões, comentários, esclareci-
mentos ou campanhas de sensibilização).
c) Educar, divulgação de conhecimentos para a aprendizagem (e.g. a te-
lescola).
d) Socializar, comunicação para conviver ou confraternizar (e.g. campa-
nhas contra a SIDA ou de sensibilização para a prática da reciclagem).
e) Distrair/entreter: programas de entretenimento (e.g. telenovelas, séries,
reality shows).
Por norma, um programa televisivo, por exemplo, pode cumprir em simul-
tâneo mais do que uma destas funções ou até mesmo as cinco, pois elas não são
incompatíveis; são cumulativas.
Sociologia da Comunicação
123

3.4.2. Três funções sociais dos media segundo Lazarsfeld


Segundo Paul Lazarsfeld, os media desempenham três funções sociais re-
levantes:
i) A função de atribuição de status.
ii) Reafirmação de normas sociais.
iii) Disfunção narcotizante.

Na primeira função enunciada por Lazarsfeld, os meios de comunicação


de massas conferem status às questões públicas, às pessoas, às organizações e
aos movimentos sociais. Dão, assim, prestígio e aumentam notoriedade de indi-
víduos e grupos, legitimando-lhes o status.
Quanto à segunda função, os media servem para reafirmar as normas so-
ciais, revelando ao público os desvios de tais normas. Os media expõem, diante
do público, anormalidades e, em regra, esta revelação solicita, em certa medida,
uma acção pública contra o que se havia tolerado privadamente. Os media
podem, por exemplo, submeter a graves pressões a discriminação étnica, recla-
mando a atenção pública sobre este procedimento que é contrário às normas da
não discriminação.
Relativamente à terceira função, a constante exposição a um grande fluxo
de informações pode servir para narcotizar, mais do que para vitalizar, o leitor,
ouvinte ou telespectador. A quantidade cada vez maior de tempo dedicado ao
consumo dos conteúdos dos media retira tempo à acção organizada. O cidadão
chega a confundir o conhecimento dos problemas do dia com a acção em relação
aos mesmos (cf. Lazarsfeld & Merton, 1971).

3.4.3. Características dos actuais discursos de massas


O surgimento de formas tecnológicas de comunicação de massas suscita
interrogações sobre as possibilidades de manipulação da informação por parte
de quem detém ou controla os meios. A eventual manipulação da informação e
dos conteúdos transmitidos tem efeitos directos sobre os públicos. Considerando
os actuais discursos dos mass media, identifica-se um conjunto de peculiaridades.
São discursos:
– Totalitários, porque dão a ilusão de possibilidade de interacção, diálogo
ou feedback que não acontece e se baseiam em aparências ou desvios
sensacionalistas e prepotentes sobre a verdade e a factualidade.100

100
A propósito do totalitarismo mediático, Leonardo Acosta (1979, p. 141) sublinha: “Os termos
‘comunicações de massa’ e ‘meios de comunicação de massas’, que emergiram nos Estados
Unidos, são enganadores em mais do que um sentido. Em primeiro lugar, tais media não
constituem realmente um veículo da comunicação humana, porque comunicação implica um
diálogo, uma troca, e os mass media falam, mas não permitem uma resposta”. Tradução do autor
Paulo M. Barroso
124

– Hiperbólicos, porque utilizam recursos de estilo, de conteúdo, formais


e técnicos que amplificam as mensagens.
– Tautológicos, porque repetem as formas e os conteúdos/ideias como es-
tratégia de maior assimilação e evidência de certas mensagens.
– Ideológicos ou retóricos, porque veiculam ideias ou interesses particu-
lares (opiniões misturadas ou camufladas com informações).
– Imediatos, porque obedecem às imposições do factor tempo, o que os
torna discursos instantâneos, flashes superficiais e repentinos.
– Efémeros, porque possuem reduzida permanência (as informações que
os media transmitem são descartáveis, fragmentadas e superficiais) e
não permitem tempo para a maturação nem a reflexão do que é notícia.

A escala de valores dos diferentes agentes que convertem um aconteci-


mento em notícia sofre alterações. As notícias não existem à margem dos meios
de comunicação nem dos jornalistas. De acordo com Mar de Fontcuberta, em A
notícia: Pistas para compreender o mundo, os meios de comunicação são constru-
tores de uma sociedade que os reconhece como referentes e não como meros es-
pelhos. Os meios de comunicação decidem sobre quais os factos que são ou não
notícias e, por conseguinte, gerem os conteúdos informativos que formam e in-
fluenciam a opinião pública. Por vezes, os meios de comunicação esquecem os
valores-notícia tradicionais e seguem critérios comerciais que lhes permite mais
audiências mediante a opção pelo “não-acontecimento jornalístico”, mesmo afas-
tando-se da sua linha editorial e em detrimento do que é notícia.
“O discurso jornalístico tradicional tem cinco características fundamentais: a) ac-
tualidade: o objecto da notícia é o que acaba de se produzir, saber ou descobrir; b)
novidade: o facto noticiável afasta-se da rotina quotidiana, é excepcional e trans-
mite-se o mais rapidamente possível; c) veracidade: as notícias devem ser verídicas,
isto é, corresponder o mais fielmente possível à realidade; d) periodicidade: os factos
noticiáveis apresentam-se ao público com um intervalo fixo de tempo; e e) interesse
público: os factos jornalísticos têm como característica fundamental serem pontos
de referência ou corresponderem às expectativas e necessidades de informação de
um público massivo.” (Fontcuberta, 2010, p. 14).

A comunicação social tem um poder inerente, o da própria capacidade em


difundir e partilhar informações, sendo inclusivamente designada por “o quarto
poder”. Esse poder pode manifestar-se, de um modo genérico, de duas maneiras,
seguindo dois modelos dos meios de comunicação (Espinar et al., 2006, p. 97):

a partir do original em inglês: “The terms ‘mass communications’ and ‘mass media’ which
emerged in the United States are misleading in more than one sense. In the first place, such
media do not really constitute a vehicle of human communication, for communication implies a
dialogue, an exchange, and the mass media speak, but do not permit a response.”
Sociologia da Comunicação
125

Modelo de dominação Modelo pluralista

Meios de comunicação de massas controlados por Não estabelece a existência de uma elite unificada
outras instituições. e homogénea sob os meios de comunicação.

Difusão de uma visão interessada e limitada. Asseguram a independência recíproca.

Redução da capacidade crítica das audiências (os Conteúdos pluralistas e competitivos para as
cidadãos tornam-se espectadores). audiências.

Audiências levadas a aceitar a visão proposta. As audiências são capazes de resistir à persuasão.

Legitimação da estrutura de poder estabelecido. Liberalismo e mercado livre da comunicação.



Tabela 7: Distinção entre o modelo de dominação e o modelo pluralista.

O poder da comunicação social afigura-se indiscutível, seja para o bem


seja para o mal, i.e. o jornalismo tem um poder inerente, que é o de amplificar
um determinado discurso que produz, por isso, efeitos espalhados na sociedade,
seja para tornar os cidadãos informados, críticos e vigilantes, denunciando a ver-
dade dos factos, seja para tornar os mesmos cidadãos formatados, acríticos e
passivos.101 Um exemplo da primeira situação é o caso Watergate, ocorrido entre
1972 e 1974, demonstrativo da excelência da investigação jornalística (de Bob
Woodward e Carl Bernstein, jornalistas do Washington Post) na procura da ver-
dade e na denúncia das ilegalidades, mesmo contra as adversidades e os poderes
instituídos.102 Um exemplo da segunda situação é sarcasticamente evocado por
Oscar Wilde, em A alma do homem e o socialismo, de 1891, segundo o qual:
“Nos velhos tempos tínhamos a tortura. Hoje temos a imprensa. O que é sem dúvida
um avanço. Mas não é por isso que deixa de ser uma coisa má, prejudicial e desmo-
ralizadora. Houve alguém – Burke, talvez? – que chamou ao jornalismo o quarto
poder. Isso era verdade na altura, sem dúvida. Mas, hoje em dia, o jornalismo é, ver-
dadeiramente, o único poder. Devorou os outros três.” (Wilde, 2012, p. 82).103

101
Neste segundo caso, os cidadãos nem podem ser denominados como tal, porque o conceito de
cidadão não pressupõe públicos formatados, acríticos e passivos dos meios de comunicação
social.
102
Sobre o caso Watergate, que resultou na demissão de Richard Nixon do cargo de presidente dos
EUA, em 1974, por estar envolvido num processo de espionagem política através de escutas
telefónicas na sede do Partido Democrata em Washington, localizada nos escritórios do edifício
com o nome de Watergate, veja-se a obra Watergate: O processo de uma presidência, redigido pelos
próprios jornalistas que realizaram a investigação (cf. Woodward & Bernstein, 1974). Esta obra
deu origem ao filme Os homens do presidente (All the president’s men) de 1976, realizado por Alan
J. Pakula.
103
No cinema existem inúmeras representações de boas e de más práticas do jornalismo e que
servem o propósito da Sociologia da Comunicação: reflectir sobre o papel e as influências sociais
do jornalismo. Estes casos são frequentemente reportados no cinema, nomeadamente Citizen
Kane (1941), de Orson Welles, que caracteriza a prepotência dos magnatas no campo dos media,
com interesses privados e divergentes aos do serviço público e informativo do jornalismo, e
Spotlight (2015), de Tom McCarthy, que mostra, a partir de um caso real, como deve proceder a
Paulo M. Barroso
126

Efectivamente, foi Edmund Burke quem utilizou pela primeira vez a ex-
pressão “quarto poder”, conforme atesta Francis Balle:
“Edmund Burke, político e escritor britânico, utilizou pela primeira vez a expressão
‘quarto poder’ em 1790, para condenar a Revolução Francesa. Em 1840, Balzac apro-
priou-se desta fórmula, no mesmo artigo da Revue parisienne onde lançou a sua cé-
lebre diatribe: ‘Se a imprensa não existisse, não era preciso inventá-la…’ Em Junho
de 1978, Aleksandr Soljenitsyne, dirigindo-se aos estudantes da Universidade de
Harvard reunidos para o ouvir, lançava este aviso às democracias ocidentais: a im-
prensa tornou-se a força mais poderosa dos Estados Unidos, ela ultrapassa, em po-
tência, os três outros poderes.” (Balle, 2003, p. 103).

O poder da comunicação assume a dimensão de uma “mediacracia”, se-


gundo a expressão e o título de um livro de François-Henri de Virieu, ou de “cão
de guarda”, na terminologia de Serge Halimi (cf. Balle, 2003, p. 103). Qualquer
que seja a expressão, reconhece-se o poder associado ao campo da comunicação
de massas, pois são vastos os efeitos e as influências provocados por aquilo que
é transmitido. O poder dos media reside na capacidade de influenciar e de per-
suadir.104 O desenvolvimento das comunicações de massas, aliado aos avanços
científicos e tecnológicos, conduz ao aperfeiçoamento das técnicas de transmis-
são e recepção das mensagens. Este aperfeiçoamento também contribui para a
existência de cidadãos mais informados, esclarecidos, alfabetizados, exigentes e
participativos?

3.4.4. Imperialismo mediático


O conceito de “imperialismo mediático” foi colocado em evidência nas dé-
cadas de 1960-70, num contexto de divisão do mundo entre duas potências (os
EUA e a então URSS) e de processo de colonização e de descolonização, consoante

investigação jornalística para a descoberta da verdade mesmo contra instituições poderosas,


como é o caso da Igreja Católica. Acerca da cultura profissional do jornalismo, que é
idiossincrática (existe um ethos jornalístico), rica em mitos, símbolos e representações sociais,
Nelson Traquina (cf. 2007, p. 162) recorre a filmes para o exemplificar: O homem que matou Liberty
Valance (1962), de John Ford; Deadline U.S.A. (1952), de Richard Brooks; His girl friday (1940), de
Howard Hawks; The front page (1974), de Billy Wilder; e Switching channels (1988), de Ted Kotcheff.
104
A respeito do filme Citizen Kane, a influência e persuasão dos media é exemplificada na cena em
que Charles Foster Kane, o protagonista, refere que o público pensará o que ele disser para pensar
(cf. Rasmussen, 2006, p. 31). Neste filme realizado pelo próprio Orson Welles (1941), são várias
as lições de jornalismo que se podem extrair para reflectir acerca da intervenção e da influência
positiva e negativa dos mass media na sociedade. Nomeadamente: o que surge reportado na
comunicação social nem sempre corresponde à verdade; os mass media praticam sensacionalismo
com certas manchetes escolhidas de propósito para causar impacto e venderem mais jornais; os
media são empresas com interesses comerciais e, por vezes, até formam impérios económicos
com poderosas influências, como o do próprio Charles Foster Kane, personagem interpretado
por Orson Welles e supostamente baseado no magnata da imprensa William Randolph Hearst
(1863-1951).
Sociologia da Comunicação
127

os casos. O conceito aponta para o poder dos media,105 enquanto estruturas pro-
fissionais e indústrias especializadas na produção e transmissão de produtos me-
diáticos, e para os seus efeitos e influências sociais e culturais.
“Os meios de comunicação de massa são um dos mais influentes meios institucio-
nalizados pelos quais esse processo geral [o imperialismo mediático] é organizado
e alcançado, e o termo imperialismo dos media é frequentemente usado para des-
tacar o seu papel específico.” (O’Sullivan, Hartley, Saunders, Montgomery & Fiske,
1994, p. 74).106

Para este foco não são alheios os modelos (de dominação e pluralista) de
implementação dos media anteriormente abordados nem o mais recente e tec-
nológico processo de globalização dos media. Por conseguinte, o imperialismo
mediático não pode ser separado dos media enquanto instituição social, que de-
sempenha um papel activo e de influência nas sociedades, nem das suas activi-
dades e práticas de produção e difusão de conteúdos mediáticos que não deixam
de ser produtos comerciais ou mercadorias de consumo em massa. Segundo Leo-
nardo Acosta:
“Os meios de comunicação de massa, da imprensa à televisão, foram desenvolvidos
pela primeira vez nos Estados Unidos, o paraíso do capital monopolista e do impe-
rialismo financeiro moderno. Os meios de comunicação de massa e seu produto
final, a chamada ‘cultura de massa’, assumem um papel mais importante a cada
dia, como um complexo ideológico-industrial dedicado à justificação e perpetuação
do sistema capitalista e, em particular, do complexo financeiro-político-militar
norte-americano que constitui o núcleo do imperialismo yankee.” (Acosta, 1979, p.
141).107

O imperialismo mediático admite uma dominação e formatação dos media


(designadamente através dos conteúdos transmitidos, da agenda definida e do
estilo editorial adoptado) sobre a sociedade e a cultura, pelo que, sendo o campo
dos media inserido no mais vasto campo da cultura, se confunde o imperialismo
mediático e o imperialismo cultural (cf. Boyd-Barrett, 2020, p. 14). Em O poder do

105
O poder dos media não reside apenas na vertente comunicacional (produção e difusão de
conteúdos ou produtos mediáticos), mas também económica (base capitalista) e política
(transmissão e cultivo de ideologia, opiniões politizadas e comentários parciais de líderes de
opinião, muitos deles partidários, nos meios de comunicação social).
106
Tradução do autor a partir do original em inglês: “The mass media are one of the most influential
institutionalized means whereby this general process [the media imperialism] is organized and
achieved, and the term media imperialism is often used to highlight their specific role.”
107
Tradução do autor a partir do texto original em inglês de Acosta: “The mass media, from the
press to television, were developed for the first time in the United States, the paradise of
monopoly capital and modern financial imperialism. The mass media and their final product,
so-called ‘mass culture’, assume a more important role every day, as an ideological-industrial
complex devoted to the justification and perpetuation of the capitalist system, and in particular,
the North American financial-political-military complex that constitutes the core of yankee
imperialism.”
Paulo M. Barroso
128

jornalismo: Análise e textos da teoria do agendamento, Nelson Traquina (2000, p.


17) reconhece que “a hipótese da existência de uma relação causal entre a agenda
mediática e a agenda pública já tinha sido sugerida nos anos 20 no livro [Opinião
pública] de Walter Lippmann (1922)”. “Nas sociedades capitalistas, a classe do-
minante cria sistemas culturais úteis para a transmissão de valores fundamentais
para perpetuar a dominação” (Espinar et al., 2006, p. 98). Neste contexto, os media
são responsáveis pela identidade social e cultural.
“O termo imperialismo cultural, juntamente com outros como imperialismo ideo-
lógico ou imperialismo económico, ocuparam um papel fundamental em todos os
estudos que se realizaram na década dos anos setenta sobre as comunicações nas
relações entre diversas nações. Nas palavras de Herbert Schiller, o imperialismo
cultural podia definir-se do seguinte modo: ‘o conjunto de processos pelos quais
uma sociedade se introduz no seio do moderno sistema mundial e forma a sua ges-
tão pela indução da fascinação, pressão, força ou corrupção, modelando as insti-
tuições sociais para que correspondam os valores e as estruturas do centro
dominante do sistema ou convertendo-se em ser seu promotor.” (Espinar et al.,
2006, p. 106).108

Por conseguinte, os conceitos de “imperialismo cultural” e de “imperia-


lismo mediático” estão associados. Em traços gerais, o conceito de “imperialismo
cultural” reporta-se à imposição de valores americanos ou ocidentais sobre as
sociedades não ocidentais, em grande parte através da exportação de produtos
dos mass media (cf. Bruce & Yearley, 2006, p. 58). Qualquer que seja o tipo de im-
perialismo, este termo está subjacente à ideia de império e de dominação, i.e. de
um dominador e de um dominado.
O imperialismo mediático é o resultado do agendamento (agenda-setting),
a “acção dos meios de comunicação social no processo de extensão do imperia-
lismo cultural” (Espinar et al., 2006, p. 106). Atente-se, por exemplo, às seguintes
considerações de Carl Bernstein, um dos jornalistas responsáveis pela investiga-
ção do caso Watergate, num artigo intitulado “The idiot culture” e publicado em
1992 na imprensa norte-americana:
“Reportagem não é estenografia. É a melhor versão possível da verdade. As ten-
dências realmente importantes no jornalismo não têm seguido a direcção de um
compromisso com a melhor e mais complexa versão da verdade possível de se
obter, nem a direcção da construção de um novo jornalismo baseado em reporta-

108
Tradução do autor a partir do texto da edição original em espanhol de Espinar et al.: “El término
imperialismo cultural, junto a otros como imperialismo ideológico o imperialismo económico,
ocuparon un papel fundamental en todos los estudios que sobre las comunicaciones en las
relaciones entre diversas naciones se llevaron a cabo en la década de los años setenta. En palabras
de Herbert Schiller, el imperialismo cultural se podría definir del siguiente modo: ‘El conjunto
de procesos mediante los cuales una sociedad se introduce en el seno del moderno sistema
mundial y la forma en que su capa dirigente es inducida, mediante fascinación, presión, fuerza
o corrupción, a modelar las instituciones sociales para que se correspondan con los valores y
estructuras del centro dominante del sistema o a convertirse en su promotor’.
Sociologia da Comunicação
129

gens sérias e reflectidas. Essas não são as prioridades para o leitor ou telespectador
da maior parte de nossos jornais, nem o que o telespectador recebe quando liga o
noticiário local das 11 horas ou, com muita frequência, até mesmo as produções
de notícias da rede de televisão.
‘Bem, foi mesmo o melhor sexo que você já teve?’ Estas foram as palavras de Diane
Sawyer numa entrevista com Marla Maples no Prime Time Live da ABC News (onde
‘mais americanos obtêm as suas notícias, mais do que em qualquer outra fonte’).
Estas palavras marcaram uma nova baixa (de onde a própria Sawyer tem escalado
activamente). Por mais de 15 anos temo-nos afastado do jornalismo de verdade e
seguido em direcção à criação de uma cultura fraca do infotainment, em que as li-
nhas entre Oprah, Phil, Geraldo, Diane e até Ted, entre o New York Post e Newsday,
muitas vezes não se distinguem. Nesta nova cultura de excitação jornalística, en-
sinamos aos leitores e telespectadores que o trivial é importante, que o melodra-
mático e o bizarro são mais importantes do que notícias de verdade. Não servimos
os nossos leitores e telespectadores, nós os alcovitamos. E condescendemos a eles,
dando a eles o que achamos que eles querem e o que calculamos que vá vender e
aumentar a nossa audiência e a quantidade dos leitores. Muitos, tristemente, pa-
recem justificar a nossa condescendência, e se entusiasmam com o lixo. Ainda
assim, o papel dos jornalistas é desafiar as pessoas, não apenas entretê-las.
Estamos no processo de criar o que merece ser chamado de cultura idiota. Não uma
subcultura idiota, que toda a sociedade tem borbulhando sob a superfície e que
pode trazer diversão inócua; mas a própria cultura. Pela primeira vez, o esquisito,
o estúpido e o grosseiro estão se tornando a nossa norma cultural, até mesmo o
nosso ideal cultural. […]
Não pretendo atacar a cultura popular. O bom jornalismo é cultura popular, mas
cultura popular que amplia e informa os seus consumidores em vez de apelar para
o cada vez mais baixo denominador comum. Se, por ‘cultura popular’, queremos
designar expressões de pensamento ou sentimento que não requerem trabalho da-
queles que a consomem, então o jornalismo popular decente acabou. O que acon-
tece hoje, infelizmente, é que a mais baixa forma de cultura popular – a falta de
informação, a desinformação e um desprezo pela verdade ou pela realidade da vida
da maior parte das pessoas – atropelou o jornalismo real. Hoje, os americanos co-
muns estão sendo entupidos com lixo.” (Bernstein, 1992, pp. 24-25).109

109
Tradução do autor a partir do texto original em inglês de Bernstein: “Reporting is not
stenography. It is the best obtainable version of the truth. The really significant trends in
journalism have not been toward a commitment to the best and the most complex obtainable
version of the truth, not toward building a new journalism based on serious, thoughtful
reporting. Those are certainly not the priorities that jump out at the reader or the viewer from
Page One or ‘Page Six’ of most of our newspapers; and not what a viewer gets when he turns on
the 11 o’clock local news or, too often, even network news productions. ‘All right, was it really
the best sex you ever had?’ Those were the words of Diane Sawyer, in an interview of Marla
Maples on ‘Prime Time Live,’ a broadcast of ABC News (where ‘more Americans get their news
from… than any other source’). Those words marked a new low (out of which Sawyer herself
has been busily climbing). For more than fifteen years we have been moving away from real
journalism toward the creation of a sleazoid info-tainment culture in which the lines between
Oprah and Phil and Geraldo and Diane and even Ted, between the New York Post and Newsday,
are too often indistinguishable. In this new culture of journalistic titillation, we teach our readers
and our viewers that the trivial is significant, that the lurid and the loopy are more important
than real news. We do not serve our readers and viewers, we pander to them. And we
condescend to them, giving them what we think they want and what we calculate will sell and
Paulo M. Barroso
130

Segundo este excerto de Carl Bernstein, o papel nobre reconhecido aos


mass media na formação da opinião pública (“proporcionar a mais fiel versão da
verdade” sobre o que é de interesse público) é substituído por aquilo que este
jornalista chama de “triunfo da cultura idiota”. Há uma diferença assinalável
entre aquilo que se deve conhecer e aquilo que se deseja conhecer, entre infor-
mação (esclarecimento rigoroso dos factos) e entretenimento (distracção e desvio
da atenção do importante). Todavia, ambos se prendem com critérios jornalísticos
que determinam o que transmitir como interesse público (serviço público de in-
formação) ou interesse do público (entretenimento). O que é notícia é, por con-
seguinte, bastante relativo e subjectivo (depende das escolhas de uma linha
editorial), apesar dos tradicionais manuais de jornalismo se referirem a critérios
absolutos e fundamentais, tais como a actualidade, o interesse público, a objec-
tividade e a relevância que devem presidir à selecção do que acontece e à sua
transformação em notícia.

3.5. Questões para revisão e reflexão


1. Porque é que o jornalismo é considerado o quarto poder?
2. O que podem ou devem fazer os mass media em prol da organização,
regulação e normalização da sociedade ou dos valores sociais?
3. Existirão padrões universais que todos os seres humanos deveriam se-
guir?
4. Devemos chamar “reais” às imagens que vemos na televisão?
5. O que explica a enorme popularidade de um filme ou de uma música?
6. O que caracteriza ser (uma sociedade ou cultura) de “massas”?
7. Quando é que surge a cultura de massas? A cultura de massas é o pro-
duto do capitalismo do século XX? É uma resposta aos desejos incons-
cientes e conspícuos dos consumidores?

boost ratings and readership. Many of them, sadly, seem to justify our condescension, and to
kindle at the trash. Still, it is the role of journalists to challenge people, not merely to amuse
them. We are in the process of creating, in sum, what deserves to be called the idiot culture. Not
an idiot subculture, which every society has bubbling beneath the surface and which can provide
harmless fun; but the culture itself. For the first time in our history the weird and the stupid and
the coarse are becoming our cultural norm, even our cultural ideal. […] I do not mean to attack
popular culture. Good journalism is popular culture, but popular culture that stretches and
informs its consumers rather than that which appeals to the ever descending lowest common
denominator. If, by popular culture, we mean expressions of thought or feeling that require no
work of those who consume them, then decent popular journalism is finished. What is happening
today, unfortunately, is that the lowest form of popular culture–lack of information,
misinformation, disinformation, and a contempt for the truth or the reality of most people’s
lives–has overrun real journalism. Today ordinary Americans are being stuffed with garbage.”
Sociologia da Comunicação
131

8. A cultura de massas é boa ou má? Quais são as suas vantagens e des-


vantagens? O que a cultura de massas traz de positivo e de negativo?
9. O desenvolvimento das comunicações de massas, aliado aos avanços
científicos e tecnológicos, conduz ao aperfeiçoamento das técnicas de
transmissão e recepção das mensagens. Este aperfeiçoamento também
contribui para a existência de cidadãos mais informados, esclarecidos,
alfabetizados, exigentes e participativos?
Sociologia da Comunicação
133

4. McLuhan: efeitos dos media e próteses técnicas


“O meio, ou processo, de nosso tempo – de tecnologia elétrica – está
remodelando e reestruturando padrões de interdependência social e
todos os aspectos de nossa vida pessoal.”
(McLuhan & Fiore, 1973, p. 36).

Marshall McLuhan (1911-1980) é conhecido por obras marcantes, como A


galáxia de Gutenberg; Os meios de comunicação como extensões do homem e O meio
são as massagens.110 Segue um quadro conceptual assente na teoria e epistemo-
logia da comunicação de massas, criticando a excessiva dependência às novas
tecnologias da comunicação e a perda de capacidades ou faculdades humanas
que estas provocam nos indivíduos.
As obras de McLuhan contribuem para compreendermos os tempos mo-
dernos definidos pelo desenvolvimento dos media e da tecnologia, bem como as
consequências destes, como a “aldeia global” e a “era da informação”. McLuhan
é um autor importante e precursor nos estudos dos efeitos da comunicação de
massas. Procura identificar a lógica dos media, ou seja, o modo típico dos media
operarem ou funcionarem nas sociedades tecnologicamente mais desenvolvidas.
Assim, o seu modelo de compreensão dessa denominada lógica dos media pode
ser rotulado de histórico-evolucionista ou técnico-antropológico da comunicação
(cf. Polistchuk & Trinta, 2003, p. 134). Este modelo de McLuhan não se preocupa
com a eficácia técnica da comunicação, conforme acontece com o modelo de co-
municação de Shannon e Weaver, mas com os efeitos da tecnologia sobre as so-
ciedades e as capacidades humanas.
Com o surgimento de formas electrónicas de informação e comunicação
(de que são exemplo os meios de comunicação social), as estruturas sociais, as
interacções sociais e os próprios comportamentos sociais se modificam e se mas-
sificam. Com este desenvolvimento, também se questionam as ditas formas elec-
trónicas a respeito do problema da manipulação da informação. Os media serão
causas dessas transformações sociais, mas também serão consequências.
Se os media já influenciam as pessoas, a manipulação da informação au-
menta o problema das influências e dos efeitos dos media, que, assim, são essen-
cialmente negativos. É este contexto de transformação social que também arrasta
o ser humano para uma mudança inevitável. Neste sentido, McLuhan adverte
para o papel dos media como próteses técnicas e massificadores das sociedades
e das formas de comunicação.
Segundo McLuhan, em Os meios de comunicação como extensões do homem:

110
Obras publicadas em 1962, 1964 e 1967, respectivamente.
Paulo M. Barroso
134

“Há um princípio básico pelo qual se pode distinguir um meio quente, como o
rádio, de um meio frio, como o telefone, ou um meio quente, como o cinema, de
um meio frio, como a televisão. Um meio quente é aquele que prolonga um único
de nossos sentidos e em ‘alta definição’. Alta definição se refere a um estado de
alta saturação de dados. Visualmente, uma fotografia se distingue pela ‘alta defi-
nição’. Já uma caricatura ou um desenho animado são de ‘baixa definição’, pois
fornecem pouca informação visual. O telefone é um meio frio, ou de baixa definição,
porque ao ouvido é fornecida uma magra quantidade de informação. A fala é um
meio frio de baixa definição, porque muito pouco é fornecido e muita coisa deve
ser preenchida pelo ouvinte. De outro lado, os meios quentes não deixam muita
coisa a ser preenchida ou completada pela audiência. Segue-se naturalmente que
um meio quente, como o rádio, e um meio frio, como o telefone, têm efeitos bem
diferentes sobre seus usuários.” (McLuhan, 1999, pp. 38).

Consequentemente, McLuhan estabelece uma tipologia dos media, se-


gundo as suas possibilidades, entre meios quentes e meios frios:
Meios frios Meios quentes
(cool media) (hot media)
Não impõem marcas nítidas, sendo as suas Transmitem uma mensagem clara e precisa,
mensagens mais subtis e convidando quem as imposta ao espírito do público como a marca de
recebe a participar. um ferro em brasa.

Exemplos: a televisão, o telefone, a palavra e a Exemplos: a escrita alfabética, a imprensa, a


escrita ideográfica. rádio, o cinema.

São inclusivos: permitem completude e mais São exclusivos: dispensam que as informações
participação sensorial para apreensão das sejam complementadas pelas audiências;
mensagens. permitem menos participação.

Transmitem informações menos desenvolvidas, Transmitem informações mais tratadas; não é


porque são completadas pelo destinatário. necessário muito esforço do receptor.

Estimulam vários sentidos humanos para a Prolongam ou estendem um único sentido


compreensão das mensagens. elementar em “alta definição”.

Tabela 8: Tipologia dos media (entre “cool media” e “hot media”), segundo McLuhan.

Nesta tipologia não consta, por óbvias razões históricas, a internet como
meio de comunicação. Seria impossível classificar a internet nesta tipologia bi-
nária, porque a internet é um meio híbrido, uma mistura de todos os meios. A
classificação da internet depende do uso e da experiência comunicacional que se
faz deste meio num dado momento, pois a “Internet incorpora rádio, filmes e te-
levisão e distribui-os através de uma tecnologia especial” (McQuail, 2003, p. 121).
Deste modo, esta tipologia, já ultrapassada em função da própria evolução dos
media,111 sustenta que os meios são quentes (quando mobilizam um só sentido,

111
Conforme reconhece McQuail (cf. 2003, p. 30), hoje é mais difícil diferenciar os vários tipos de
media do que era antes, porque “algumas formas mediáticas são agora distribuídas por tipos
diferentes de canal de transmissão, reduzindo a unicidade original da forma e da experiência de
uso”.
Sociologia da Comunicação
135

e.g. a imprensa ou a rádio, com pouca participação do público) e são frios (menos
expressivos e mais sugestivos, e.g. o telefone ou a televisão, quando solicitam
mais a participação do utilizador (Balle, 2003, p. 93).
Esta tipologia pode ter uma vertente pedagógica, de advertência para os
efeitos exercidos pelos media sobre os sentidos humanos, ao ponto de McLuhan
ter admoestado para essa situação, dizendo “Mind your media men!”.112

4.1. Três culturas ou galáxias de evolução


Em função dos efeitos da tecnologia e dos mass media, McLuhan apresenta
um quadro evolutivo das sociedades/culturas em função dos factores que pro-
movem o desenvolvimento técnico e tecnológico. Segundo McLuhan, a evolução
dos sistemas de comunicação define três culturas/galáxias de evolução da hu-
manidade ou da vida social, conforme A galáxia de Gutenberg:
“Na era eletrônica que sucede à era tipográfica e mecânica dos últimos quinhentos
anos encontramos, com efeito, novos modelos e estruturas de interdependência
humana e de expressão que são ‘orais’ na forma, mesmo quando os componentes
da situação sejam possivelmente não-verbais. Examinamos mais amplamente esta
questão na parte final de nosso livro. Em si, não é questão difícil, mas exige certa
reorganização da vida imaginativa. Essa mudança de modos de ver e de tomar cons-
ciência das coisas é sempre retardada pela persistência dos modelos mais velhos
de percepção. Os elisabetanos, aos nossos olhos, parecem muito medievais. Mas o
homem medieval tinha-se na conta de clássico, do mesmo modo que nós nos con-
sideramos homens modernos. A nossos sucessores, no entanto, pareceremos como
inteiramente Renascença em carácter e completamente inconscientes dos novos e
importantes fatores que pusemos em ação durante os últimos cento e cinquenta
anos.
Longe, entretanto, de ser determinista, o presente estudo elucidará – esperamos –
um fator capital das transformações sociais que poderá conduzir a genuíno au-
mento de autonomia humana. Peter Drucker, ao escrever sôbre a ‘Revolução Tec-
nológica’ de nossos tempos em Technology and Culture (vol. II, nº 4, 1961, p. 348),
diz: ‘há apenas uma coisa que não sabemos sobre a Revolução Tecnológica, mas
que é essencial: Que aconteceu para que se produzisse a mudança básica nas ati-
tudes, crenças e valores que a deflagrou? O Progresso Científico – procurei mostrar
– pouco teve a ver com isso. Mas, até que ponto teria sido responsável a grande
mudança na visão do mundo que, um século antes, conduzira à grande Revolução
Científica? A Galáxia de Gutenberg vai pelo menos tentar alcançar aquela ‘única
coisa que não sabemos’. Mas mesmo que o faça, poderá muito bem deixar evidente
que existem outras mais!” (McLuhan, 1977, pp. 19-20).

Cada cultura ou galáxia é caracterizada por formas e estruturas distintas


de interacção social. Estas três culturas são:

112
Tradução: “Prestem atenção aos meios de comunicação que usam!”.
Paulo M. Barroso
136

Cultura oral Cultura tipográfica Cultura electrónica


ou acústica ou visual
Própria das sociedades não Galáxia de Gutenberg que Galáxia Marconi: velocidade e
alfabetizadas ou pré-alfabéticas caracteriza as sociedades instantaneidade.
(sem escrita, sem leitura). alfabetizadas.
O meio de comunicação por Privilégio atribuído à escrita e à Meios electrónicos de
excelência é a palavra oral. leitura. comunicação.
Sociedade tradicional e tribal. Valorização do sentido da vista. Integração sensorial. Fim da
supremacia visual.

Uso de todos os órgãos naturais O nascimento do alfabeto Entrada na era da globalização.


de expressão e sentidos. finaliza a expressão oral.

Tabela 9: As três culturas ou galáxias de evolução tecnológica das sociedades, segundo McLuhan.

Uma cultura não é uma civilização. Uma cultura manifesta-se como uma
forma de pensar, sentir, agir, comunicar, etc.; é o conjunto de técnicas para o
ajustamento e adaptação da espécie humana ao meio e para a interacção social.
Baseia-se no entendimento partilhado dos significados que incorporam as estru-
turas de significação de tudo o que rodeia a comunidade à qual se pertence e se
está inserido ou com a qual se identifica em termos de padrões culturais. As es-
truturas de significação caracterizam as culturas, porque funcionam como ma-
trizes onde se inscrevem os significados interpretáveis para serem seguidos, pois
são importantes para a inserção, participação, identidade e interacção social.
O conceito de civilização é muito mais aglutinante do que o de cultura.
Uma civilização pode incluir várias culturas. Uma civilização é pautada por um
determinado ideal de progresso colectivo em todos os níveis: intelectual, moral,
social, cultural, político, técnico e científico. É uma sobreposição humana sobre
o estado primitivo ou natural de barbárie.
No entanto, estas três culturas propostas por McLuhan correspondem a
três mundos ou três configurações civilizacionais: a oral (logosfera, a do predo-
mínio da palavra oral), a impressa (grafosfera, a do predomínio da escrita ou da
palavra impressa) e a electrónica (videosfera, a do predomínio da audiovisuali-
dade). Em Vida e morte da imagem: Uma história do olhar no ocidente, Régis Debray
(1994, p. 360) sintetiza estas três culturas:
1. Logosfera, que segue a invenção da escrita e é o domínio da palavra,
“o que era verdadeiramente, estava ausente” e “a suspeita incidia sobre
o visível”.
2. Grafosfera, que se constrói a partir da imprensa, “o visível recuperou a
sua dignidade, mas como contingência que persegue ou regula uma
necessidade logicamente acessível pelo discurso ou abstracção”.
3. Videosfera, onde a “dissimulação comprova o falso ou o inconsistente
e a suspeita incide sobre o inobservável”; “o que não é visualizável não
existe”.113
113
Para mais desenvolvimento acerca destas três culturas, a logosfera, a grafosfera e a videosfera,
veja-se também o Curso de midiologia geral, de Régis Debray (1993).
Sociologia da Comunicação
137

Na perspectiva de McLuhan, o estudo dos meios de comunicação permite


concluir:
– Uma visão evolucionista das sociedades.
– Culturas difundidas e transformadas pelas técnicas de comunicação.
– Transformações sociais causadas pela evolução das técnicas de comu-
nicação.114
– Cada medium tem características e efeitos próprios.
– A mesma mensagem transmitida por diferentes media resulta em dife-
rentes consequências e efeitos no público.

Por um lado, são inúmeros os meios e as técnicas de comunicação electró-


nica, por outro lado, são cada vez mais intensos os usos desses meios e dessas
técnicas, bem como os efeitos decorrentes. Uma nova técnica traz sempre consigo
um novo modo de pensar.
As principais ideias de McLuhan incidem sobre as influências nefastas dos
media. Devido aos desenvolvimentos tecnológicos, essas influências incidem
sobre os indivíduos e as sociedades. Os media têm influência determinante sobre
os modos de pensar, sentir e agir. Antevê-se o surgimento de uma sociedade mun-
dial “retribalizada” sob a influência dos meios de comunicação. As pessoas mo-
dificam-se com a transformação das tecnologias. Toda a tecnologia está associada
à extensão de um sentido (o livro é a extensão do olho, a rádio é a extensão da
orelha). Os media são próteses, prolongamentos tecnológicos dos indivíduos. As
modificações técnicas dos media desencadeiam transformações do contexto so-
cial e do modo de percepção (psiquismo individual e psiquismo colectivo). O
modo e o meio de comunicação revelam-se mais determinantes do que a mensa-
gem, pois o meio é agora a mensagem: antes de comunicar uma mensagem, o
veículo de comunicação exprime uma certa relação com o mundo e torna-se
numa outra mensagem.
Se o uso generalizado de novos meios tecnológicos de comunicação e de
informação afectam a percepção e alteram as estruturas culturais, conforme ad-
verte McLuhan, essa afectação pode ser diagnosticada com maior propriedade
hoje, nas sociedades contemporâneas, com a utilização frequente de meios tec-
nológicos móveis e em permanente interconexão na rede.
O acesso à informação é cada vez mais fácil e simples, está ao alcance de
todos e em todos os momentos e lugares. Os novos meios tecnológicos de comu-
nicação divulgam informações cada vez com mais rapidez e espectro.

114
A escrita, a imprensa e os meios electrónicos tiveram o efeito de criar mutações nos fundamentos
da vida social. O meio aplicado para transmitir uma mensagem exerce um efeito específico, mais
importante até do que a própria mensagem.
Paulo M. Barroso
138

4.2. Aldeia global


Em A galáxia de Gutenberg, McLuhan explora o conceito de “aldeia global”.
O sentido atribuído a esta expressão é o de que o local perde definitivamente a
sua posição restrita e torna-se global, em função do desenvolvimento tecnológico
dos meios de comunicação. Ao ser interligado electronicamente, o mundo torna-
se uma aldeia global.
A ideia de globalização tecnológica já tinha sido explorada em 1945 por
Arthur C. Clarke, quando este autor se refere aos satélites de comunicação, num
artigo publicado no Wireless World (cf. Thompson & Thompson, 2008, p. 19). A ideia
de comunicação via satélite é, por conseguinte, originariamente usada por Arthur
C. Clarke no sentido de assinalar o potencial dos satélites para a comunicação à
escala mundial. Num livro intitulado Para além da aldeia global: A era das comuni-
cações transcontinentais,115 Arthur C. Clarke começa logo por referir no prefácio:
“Uma grande parte da Europa e do Japão estava ainda em ruínas quando, dois anos
depois do final da 2ª Grande Guerra, o famoso historiador Arnold Toynbee fez uma
conferência na sede do Senado da Universidade de Londres intitulada ‘A Unificação
do Mundo’. Não consigo recordar-me do que me levou a assistir, e tudo aquilo de
que me lembro da conversa é a sua teoria básica: que os desenvolvimentos dos
transportes e comunicações tinham criado – ou viriam a criar – uma única socie-
dade planetária. Em Novembro de 1947, tratava-se de um ponto de vista invulgar-
mente avançado: ainda faltava uma década para a expressão ‘aldeia global’ entrar
no nosso quotidiano e Marshall McLuhan ainda tinha de anunciar a alvorada da
cultura electrónica.” (Clarke, 1994, p. 11).

O transístor e o microchip garantiram essa alvorada da cultura electrónica,


conforme admite Arthur C. Clarke, apesar de o mundo ainda estar longe da uni-
ficação. Arthur C. Clarke reconhece que Toynbee tinha razão, pois:
“[…] à excepção de umas poucas tribos em vias de extinção em (mal de nós!) flo-
restas igualmente cada vez mais reduzidas, a raça humana quase se transformou
actualmente numa entidade única, dividida por zonas temporais e não pelas fron-
teiras geográficas naturais” (Clarke, 1994, p. 11).

Arthur C. Clarke continua e fundamenta a sua perspectiva sobre o avanço


e desenvolvimento global do mundo que, por via dos mesmos meios tecnológicos
e conteúdos de comunicação, contribui para formar uma única sociedade global:
“As mesmas redes de notícias televisivas cobrem o globo; os mercados do mundo
estão ligados pela mais complexa máquina jamais concebida pelo género humano
– o sistema de transferência internacional de telefone/telex/telefax/dados. Os mes-
mos jornais, revistas, modas, bens de consumo, automóveis, bebidas não alcoólicas
podem ser encontrados em qualquer lado entre os Pólos Norte e Sul; e, na Final da
Taça do Mundo, pelo menos 50% dos machos do género humano poderão ser en-
contrados sentados em frente de um aparelho de televisão, provavelmente fabri-
cado no Japão. […]

115
O título original em inglês, publicado em 1992, é How the world was one: Beyond the global village.
Sociologia da Comunicação
139

A actual sociedade global foi em grande medida criada pelas tecnologias dos trans-
portes e das comunicações, e podia argumentar-se que a segunda é a mais impor-
tante. Pode imaginar-se um planeta (generosamente, apresento a ideia aos meus
colegas escritores de ficção científica) em que as deslocações de longa distância
sejam extremamente difíceis ou até impossíveis. Mas, se os habitantes de tal
mundo tivessem desenvolvido comunicações eficientes, poderiam, mesmo assim,
considerar-se membros de uma única sociedade.” (Clarke, 1994, pp. 11-12).

Apesar das fronteiras linguísticas, religiosas e culturais persistentes que


ainda separam algumas nações ou as reduzem a tribos mais pequenas, Arthur C.
Clarke considera que a unificação do mundo ultrapassou o ponto da possibilidade
de retorno. A nossa civilização não podia existir sem comunicações eficientes,
refere Arthur C. Clarke, pois achamos impossível imaginar uma época em que
uma mensagem demora um mês a atravessar o Atlântico e outro mês a receber
a resposta. O comércio internacional, as trocas culturais ou as notícias interna-
cionais não poderiam florescer nem existir nestas circunstâncias. Por conse-
guinte, Arthur C. Clarke conclui que a aldeia global, há muito proclamada, está
quase sobre nós, mas durará apenas um momento palpitante na História da hu-
manidade, na medida em que, antes de termos consciência de que chegou, será
ultrapassada pela família global.
A expressão “aldeia global” serve para denominar um mundo em mu-
dança, mais local, onde tudo e todos estão mais próximos entre si em virtude
dos desenvolvimentos e transmissões da comunicação via satélite. Através dos
satélites, todos os habitantes no mundo recebem as mesmas mensagens e vêem
as mesmas imagens em simultâneo. Por isso, McLuhan adverte para os efeitos
negativos (niveladores ou cilindro-compressores das diferenças culturais) da mas-
sificação das sociedades e da comunicação. McLuhan insiste nas implicações do
progresso da técnica e da tecnologia na comunicação de massas. Este progresso
é notório, todavia, em alguns aspectos:

– O rácio entre habitantes no mundo e aparelhos de rádio e televisão au-


mentou exponencialmente nas últimas décadas.
– O poder de contacto (indivíduos abrangidos pelas mensagens) dos meios
electrónicos é elevado.
– Os níveis de audiência (ou índice de escuta) são igualmente elevados.
– Existem programas de televisão transmitidos para diferentes continen-
tes via satélite e com mais de mil milhões de espectadores.

McLuhan reconhece, muito antes da época áurea do consumismo e do uso


de dispositivos tecnológicos para comunicar, o papel preponderante dos meios
de comunicação social:
Paulo M. Barroso
140

“Ao colocar o nosso corpo físico dentro do sistema nervoso prolongado, mediante
os meios elétricos, nós deflagramos uma dinâmica pela qual todas as tecnologias
anteriores – meras extensões das mãos, dos pés, dos dentes e dos controles de
calor do corpo, e incluindo as cidades como extensões do corpo – serão traduzidas
em sistemas de informação. A tecnologia eletromagnética exige dos homens um
estado de completa calma e repouso meditativos, tal como convém a um organismo
que agora usa o cérebro fora do crânio e os nervos fora de seu abrigo. O homem
deve servir à tecnologia elétrica com a mesma fidelidade servomecanística com
que serviu seu barco de couro, sua piroga, sua tipografia e todas as demais exten-
sões de seus órgãos físicos. Com uma diferença, porém: as tecnologias anteriores
eram parciais e fragmentárias, a elétrica é total e inclusiva. Um consenso ou uma
consciência externa se faz agora tão necessário quanto a consciência particular.
Com os novos meios também é possível armazenar e traduzir tudo; e, quanto à ve-
locidade, não há problema. Nenhuma aceleração maior é possível aquém da bar-
reira da luz.” (McLuhan, 1999, pp. 77-78).

Para McLuhan, verifica-se um processo de fusão entre o ser humano e o


dispositivo tecnológico, em que a dimensão humana perde potencialidades na-
turais e inerentes face ao carácter inorgânico e insensível da máquina. As tecno-
logias são extensões ou próteses do corpo humano que, além de criarem
dependência, enfraquecem as qualidades inatas e naturais do humano.

4.3. O meio é a mensagem


Em Os meios de comunicação como extensões do homem, McLuhan enfatiza
a importância dos suportes de comunicação e das tecnologias: os conteúdos mo-
dificam-se em função dos meios que os veiculam (as tecnologias em detrimento
dos conteúdos).
“A tecnologia elétrica está dentro dos muros e nós somos insensíveis, surdos, cegos
e mudos, ante a sua confrontação com a tecnologia de Gutenberg, na e através da
qual se formou o modo americano de vida. Mas não é o momento de sugerir estra-
tégias, quando a existência da ameaça sequer foi reconhecida. Estou na mesma po-
sição de Pasteur, ao dizer aos doutores que seu maior inimigo era perfeitamente
invisível – e perfeitamente irreconhecível por eles. Nossa resposta aos meios e veí-
culos de comunicação – ou seja, o que conta é o modo como são usados – tem
muito da postura alvar do idiota tecnológico. O ‘conteúdo’ de um meio é como a
‘bola’ de carne que o assaltante leva consigo para distrair o cão de guarda da mente.
O efeito de um meio se torna mais forte e intenso justamente porque o seu ‘con-
teúdo’ é um outro meio. […] Os efeitos da tecnologia não ocorrem aos níveis das
opiniões e dos conceitos: eles se manifestam nas relações entre os sentidos e nas
estruturas da percepção, num passo firme e sem qualquer resistência.” (McLuhan,
1999, pp. 33-34).

A ideia de que “o meio é a mensagem” assenta na importância da tecno-


logia dos meios de comunicação sobre os conteúdos, ou seja, na influência do
meio sobre a mensagem. Para McLuhan, os suportes da comunicação e as tecno-
logias são determinantes: os conteúdos modificam-se em função dos meios que
os veiculam. Existe uma interferência dos meios de comunicação nas sensações
Sociologia da Comunicação
141

humanas, pois os meios de comunicação são extensões ou próteses técnicas. O


impacto sensorial dos media sobre as pessoas e sobre as sociedades é inevitável.
Os meios de comunicação electrónicos criam, assim, uma aldeia global.
Se nas actuais sociedades globalizadas se aplica, com propriedade, a ideia
da “aldeia global” e a do papel preponderante do medium sobre a mensagem,
conclui-se que, apesar dos efeitos dos media sobre as sociedades e sobre as pes-
soas e além das mudanças sociais produzidas pelo avanço tecnológico, estamos
na era da informação electrónica, em que a comunicação de massas está asso-
ciada, para o bem ou para o mal, à modernização das sociedades. Segundo McLu-
han e Fiore, em O meio são as massagens:
“O meio, ou processo, de nosso tempo – de tecnologia elétrica – está remodelando
e reestruturando padrões de interdependência social e todos os aspectos de nossa
vida pessoal. Por ele somos forçados a reconsiderar e reavaliar, praticamente, todos
os pensamentos, todas as ações e todas as instituições anteriormente aceitos como
óbvios. Tudo está mudando - você, sua família, sua vizinha, sua educação, seu em-
prego, seu governo, sua relação com os ‘outros’. E essa mudança é dramática.
As sociedades sempre foram moldadas, mais pela natureza dos meios que os ho-
mens usam para comunicar-se que pelo conteúdo da comunicação. O alfabeto, por
exemplo, é uma tecnologia absorvida pelas crianças de tenra idade de maneira in-
teiramente inconsciente, quase se poderia dizer por osmose. As palavras e o signi-
ficado das palavras predispõem a criança a pensar e agir automaticamente de certa
maneira.” (McLuhan & Fiore, 1973, p. 36).

O que caracteriza um determinado meio de comunicação são as mudanças,


as influências e os efeitos que esse meio provoca nos seus públicos e na sociedade
em geral. Os meios condicionam (modificam, entenda-se), a percepção do mundo
por parte dos públicos. Com a mudança de percepção do mundo provocada pelos
meios, muda também o próprio mundo e aquilo que as pessoas são. Se o meio é
tecnológico (e.g. a televisão, o telemóvel ou o computador), mais repercussões
provoca. Para McLuhan, conforme o excerto anterior, as sociedades são mais mol-
dadas pela natureza dos media pelos quais as pessoas comunicam do que pelos
conteúdos da comunicação, que são cada vez mais electrónicos. O meio é a men-
sagem; por extensão, o meio é também a anestesia dos sentidos, das percepções
e das capacidades.
Para McLuhan, uma mensagem mass-mediática não pode ser considerada
um conteúdo, mas apenas uma mensagem psíquica alterada ou transformada,
ou seja, um conjunto de resultados práticos de uma tecnologia da comunicação
sobre a sensibilidade humana. McLuhan advoga um determinismo tecnológico,
não apenas nesta tese de que o meio é a mensagem, como também na definição
do conceito de prótese técnica como extensão do corpo humano e dos seus sen-
tidos. Não são os efeitos ideológicos da acção dos media que interessam a McLu-
han; são os efeitos tecnológicos decorrentes das transformações das sensações e
percepções humanas.
Paulo M. Barroso
142

4.4. Questões para revisão e reflexão


1. Qual é a relação entre a tese evolucionista das culturas, segundo a pers-
pectiva de McLuhan, e a ideia de “próteses técnicas”? Como é que o
processo de desenvolvimento tecnológico afecta as sociedades e os in-
divíduos?
2. Quais são as vantagens e os inconvenientes do desenvolvimento tec-
nológico dos meios de comunicação?
3. Em que medida um meio de comunicação pode ser, ele mesmo, a men-
sagem? Se o “meio é a mensagem”, segundo McLuhan, o que significa
ou como se estruturam os elementos do processo social de comunica-
ção?
4. As sociedades são mais moldadas pela natureza dos media pelos quais
as pessoas comunicam ou pelos conteúdos da comunicação?
Sociologia da Comunicação
143

5. McQuail: o papel e os efeitos dos media nas


sociedades
“Uma questão central diz respeito à direcção e à força da relação entre
a comunicação de massas e outras mudanças da sociedade – resumidamente,
são os media a causa ou o efeito da mudança social?”
(McQuail, 2003, p. 76).

Segundo Denis McQuail (1935-2017), as actuais sociedades definem-se pelo


predomínio e influência dos fluxos de informação. Por conseguinte, são socieda-
des da informação e possuem, no geral, as seguintes características (cf. McQuail,
2003, pp. 29-30):
– Predomínio da produção, edição e difusão da informação.
– Grande volume e muitos fluxos de informação.
– Relações interactivas (virtuais).
– Integração e convergências das actividades (massificação de usos e cos-
tumes).
– Crescimento e interligação das redes (globalização da comunicação em
rede).

As relações entre o campo dos media e o campo social confundem-se, por-


que existem influências recíprocas e porque os dois campos se sobrepõem. Os
media são, nesta perspectiva, uma instituição social e desempenham papéis va-
riados e necessários.
Se McLuhan insiste na tese dos efeitos dos media tecnológicos em todos
os domínios da vida humana, referindo-se a efeitos cognitivos, psicológicos, sen-
soriais, motores, etc., McQuail envereda pela dimensão social dos media como
instituições com funções fundamentais em qualquer sociedade. Os efeitos dos
media são as consequências positivas ou negativas que resultam do uso, consumo
ou contacto social dos media. Em particular, os efeitos decorrem da actividade
peculiar de produção e transmissão de informações, independentemente de o
conteúdo produzido e transmitido aos públicos (informações, conhecimentos ou
entretenimentos) ter sido estrategicamente adaptado, modificado ou orientado
em função de certos interesses dos media.
Neste capítulo 5, acerca do papel e os efeitos dos media nas sociedades,
também não deixa de ser pertinente a abordagem de Enric Saperas apresentada
na obra Os efeitos cognitivos da comunicação de massas.
“Através da expressão ‘efeito’ da comunicação de massas tentou-se agrupar o con-
junto das consequências resultantes da actividade das instituições emissoras de
informação, nas quais desenvolvem o seu labor um conjunto de profissionais es-
pecializados na narração dos acontecimentos que ocorrem no meio. Enquanto con-
Paulo M. Barroso
144

sequência da actividade comunicativa, os efeitos pressupõem a finalização do pro-


cesso de comunicação, ou, por outras palavras, a consideração dos efeitos implica
– se tomarmos em consideração o eixo da temporalidade da acção comunicativa –
a produção e transmissão de um estímulo comunicativo (de uma mensagem dotada
de um conteúdo estrategicamente orientado) realizadas por um comunicador ins-
titucional e a execução de um impacto num determinado público.” (Saperas, 1993,
p. 21).

Saperas destaca os efeitos cognitivos dos media, considerando que esses


efeitos resultam da transmissão da informação. Não se trata de uma simples e
inócua transmissão de informação; é uma transmissão de um determinado con-
teúdo com capacidade para desencadear uma acção ou reacção no público.

5.1. Os media como instituição social


Segundo McQuail, os media são uma instituição social, equiparável às ou-
tras instituições sociais (os órgãos de soberania, as leis, a política, a religião, a
economia, etc.) e com funções úteis e insubstituíveis, actuando na esfera pública.
“As instituições dos media desenvolveram-se gradualmente à roda das activida-
des-chave da publicação e da disseminação geral de informação e cultura”
(McQuail, 2003, p. 15). Os media são especializados na produção e disseminação
de informações e de sentidos sobre os acontecimentos e contextos da vida social.
Por conseguinte, o estudo e compreensão do papel dos media na sociedade é re-
levante, não apenas para conhecer as influências e relações entre os meios de
comunicação, as mensagens e as sociedades, mas também para reconhecer os
valores sociais e os efeitos das mensagens e conteúdos dos media.
Em Teoria da comunicação de massas, McQuail afirma:
“O ponto de vista seguido neste livro é de que os media constituem uma ‘instituição
social’ separada, mas dentro da sociedade, com as suas próprias regras e práticas,
mas sujeita a definições e limitações no contexto da sociedade mais alargada. Ou
seja, em última análise os media estão dependentes da sociedade, embora tenham
alguma margem para influenciar de forma independente e estejam a ganhar in-
fluência à medida que crescem a sua autonomia, gama de actividades, significado
económico e poder informal. Trata-se de uma espiral potencial e de um processo
de auto-realização, liderado pela avaliação sempre crescente da sua relevância pelos
actores políticos e culturais.” (McQuail, 2003, p. 5).

É nesta perspectiva que McQuail (cf. 2003, p. 15) refere a instituição dos
media na sociedade, na base de:
– Produção e distribuição de conteúdos com impacto (influência) e signi-
ficado (efeito) nos públicos.
– Organização formal profissional dos media como empresas modernas
de cariz liberal, concorrencial e capitalista.
– Operacionalização estratégica na esfera pública.
– Regulação constante como garantia para um Estado de Direito.
Sociologia da Comunicação
145

A influência da informação e dos seus fluxos e usos nas sociedades reflec-


tem-se, por exemplo, na internet como meio de comunicação generalizado (cf.
McQuail, 2003, pp. 29-30). A internet é um meio de informação e comunicação
caracterizado pelo:
– Uso de tecnologias baseadas na computação.
– Potencial interactivo.
– Interconexão (conectividade em larga escala).
– Diminuição das barreiras entre a esfera privada e a esfera pública.
– Reduzido grau de regulação.116

Para McQuail, o conceito de “media de massas” (mass media) descreve os


meios de comunicação que operam em grande escala sobre as sociedades, atin-
gindo e envolvendo os seus membros em maior ou menor grau. Este termo re-
fere-se a meios de comunicação social familiares e tradicionais, i.e. há muito
estabelecidos (e.g. jornais, revistas, filmes, rádio, televisão e música), mas também
tem uma fronteira mal definida, porque novas espécies de media se incorporam
neste conceito e diferenciam-se por serem mais individuais, diversificados e in-
teractivos, como é a internet (cf. McQuail, 2003, p. 4).

5.2. Factores de ascensão dos media


Segundo McQuail, existem três factores de ascensão dos media na socie-
dade:
1) A Reforma Protestante.
2) Os movimentos democráticos.
3) A industrialização capitalista.

A respeito de 1), deve considerar-se que, na Igreja Católica do século XVI,


as pessoas confiavam cegamente nos padres sobre o que a Bíblia ensinava. Em
1517, Martinho Lutero protestou contra certas práticas da Igreja, pretendendo
que as pessoas tivessem um contacto mais pessoal com a Bíblia. Em 40 anos, a
nova forma de Cristianismo de Lutero (protestantismo) estava estabelecida em
metade da Europa, e a Bíblia tornou-se o primeiro produto “media” no Ocidente
e o livro mais vendido. A difusão da Bíblia e de outros livros só foi possível devido
a melhorias tecnológicas na fabricação do papel e na impressão (e.g. a “invenção”
da imprensa, por Gutenberg). Foram produzidos mais livros nos 50 anos que se

116
Segundo McQuail (2003, p. 30), “a Internet não existe em parte alguma como entidade legal e
não está sujeita a qualquer conjunto singular de leis ou regulações nacionais”, mas “quem usa
a Internet pode ser responsabilizado pelas leis e regulamentos do país onde habita como também
pelas leis internacionais.”
Paulo M. Barroso
146

seguiram à impressão da Bíblia de Gutenberg, ca. 1450, do que nos mil anos an-
teriores (cf. McQuail, 2003, p. 20).
Relativamente a 2), a partir do século XVIII, o cidadão comum da França,
dos EUA e de outros países exigiu e obteve representação nos respectivos gover-
nos. Ao mesmo tempo, o cidadão comum desejou ser alfabetizado e ter acesso a
instituições escolares, que antes eram restritas. Os governos democráticos, por
sua vez, dependiam de cidadãos instruídos e, em consequência, encorajaram a
alfabetização em massa e o crescimento de uma imprensa livre (cf. McQuail, 2003,
p. 21).
Quanto a 3), as indústrias modernas exigiam uma força de trabalho ins-
truída e capaz de lidar com números. Também necessitavam de meios de comu-
nicação rápidos para realizar os seus negócios com eficiência. Os media
tornaram-se fonte de lucro e a comunicação de massas tem sido um grande ne-
gócio (cf. McQuail, 2003, p. 22).

5.3. Perspectivas sobre o papel dos media na sociedade


McQuail refere sete perspectivas fundamentais para compreender o papel
dos media na sociedade. São perspectivas que defendem posições distintas entre
si, mas alguns aspectos são comuns.
Conflito

• Marxismo
• Economia política
• Sociedade de • Sociedade de massas
Centração informação
Centração
nos Media na Sociedade
• Determinismo da tecnologia • Funcionalismo estrutural
de comunicação

• Difusão e desenvolvimento

Consenso
Figura 4: Posicionamento conceptual das perspectivas ou teorias consoante o que cada uma defende ser
o papel dos media na sociedade (cf. McQuail, 2003, p. 92).

A Figura 4 representa a diversidade de posições (umas positivas, outras


negativas; umas compreensivas, outras críticas) que os media suscitam acerca
do papel que desempenham nas sociedades. A distribuição das sete perspectivas
abordadas obedece ao que cada uma defende ser o papel dos media na sociedade,
ou seja, os media como modeladores e os media como espelhos da sociedade, por
um lado, e os media como factores de conflito ou os media como factores de con-
senso, por outro lado.
Sociologia da Comunicação
147

5.3.1. Perspectiva da sociedade de massas


A teoria da sociedade de massas vai ao encontro do modelo de dominação
dos media, referido anteriormente a propósito das características dos actuais dis-
cursos de massas. Esta teoria parte do princípio de que as sociedades estão mas-
sificadas, nomeadamente com o desenvolvimento da industrialização. Segundo
McQuail:
“A teoria da sociedade de massas dá primazia aos media como factor causal. Assenta
muito na ideia de que oferecem uma visão do mundo, um substituto ou pseudo-
ambiente que é um potente meio de manipulação das pessoas, mas também uma
ajuda para a sua sobrevivência psíquica sob condições difíceis. […] Esta visão da
sociedade é pessimista e mais um diagnóstico da doença dos tempos do que uma
teoria social, misturando elementos do pensamento crítico da esquerda política
com uma nostalgia de uma idade de ouro da comunidade e da democracia. Como
teoria dos media, invoca fortemente imagens de controlo e encara a direcção da
influência como um fluxo descendente. A sociedade de massas é, ao mesmo tempo
e paradoxalmente, ‘atomizada’ e centralmente controlada. Os media são vistos
como contribuindo significativamente para esse controlo em sociedades caracte-
rizadas pela grandeza da escala, por instituições remotas, pelo isolamento dos in-
divíduos e falta de forte integração local ou de grupo. A teoria postula que os media
serão controlados ou geridos de forma monopolista e serão um meio eficaz de or-
ganizar pessoas em massas como audiências, consumidores, mercados, eleitores.
Os media de massas são usualmente a voz da autoridade, fornecedores de opinião
e instrução e também de satisfação psíquica. Estabelecem uma relação de depen-
dência da parte dos cidadãos comuns, a respeito não só de opiniões, mas também
da sua identidade pessoal e consciência.” (McQuail, 2003, pp. 77-78).

Consequentemente, de acordo com McQuail (cf. 2003, p. 79), a perspectiva


da massificação sustenta que:
– A sociedade é em larga escala.
– O público é atomizado.
– Os media estão centralizados.
– A transmissão é unidireccional.
– As pessoas dependem dos media para a identidade colectiva.
– Os media são usados para controlar e manipular.

5.3.2. Perspectiva do marxismo


Apesar de Marx não ter chegado a conhecer e a considerar os media como
meios de comunicação de massas, McQuail apresenta uma visão marxista sobre
os media modernos com base nas ideias defendidas por Marx. Segundo McQuail:
“Os media como indústria conformam-se a um tipo capitalista geral, com relações
produtivas e factores de produção (materiais, tecnologia e trabalho). É provável
que sejam propriedade de uma classe possuidora de capital monopolista e que es-
tejam organizados a nível nacional ou internacional para servirem os interesses
dessa classe. Fazem-no explorando materialmente trabalhadores (extraindo a mais
Paulo M. Barroso
148

valia do trabalho) e consumidores (gerando lucros excessivos). Trabalham ideolo-


gicamente disseminando ideias e pontos de vista mundiais da classe dominante,
negando o acesso a ideias alternativas que possam levar à mudança ou a uma cons-
ciência crescente de parte da classe trabalhadora e dos seus interesses. Evitam tam-
bém a mobilização dessa consciência no sentido de uma oposição política activa e
organizada.” (McQuail, 2003, p. 79).

A perspectiva do marxismo sobre o papel dos media na sociedade sus-


tenta que, segundo McQuail (cf. 2003, p. 81):
– Os media são propriedade da classe burguesa.
– Os media agem no interesse da sua classe.
– Os media promovem uma falsa consciência da classe trabalhadora.
– O acesso aos media é negado à oposição política.

Para o marxismo, o poder desequilibra as relações sociais, porque o poder


não está distribuído de uma maneira simétrica pelas classes sociais. Como os
media são um poder e um instrumento de controlo ao serviço de uma classe pri-
vilegiada e dominante, têm a capacidade de disseminar conteúdos que são do
interesse de quem os detém. Assim, os media têm um papel negativo nas socie-
dades.

5.3.3. Perspectiva do funcionalismo estrutural


Para o funcionalismo, existe um conjunto de necessidades fundamentais
a garantir para o bom funcionamento da sociedade, como a continuidade dos
valores, a ordem social, a integração, adaptação e socialização dos indivíduos,
etc. Na perspectiva do funcionalismo, a sociedade é, no seu todo, um sistema so-
cial amplo e constituído por partes distintas que o fazem funcionar, porque cada
parte desempenha uma função específica e mutuamente dependente. O ponto
ideal do sistema social é a situação de equilíbrio entre as partes e o bom funcio-
namento do sistema. Nesta perspectiva, procura-se satisfazer necessidades en-
quanto se cumprem as respectivas funções.
Algumas destas necessidades são garantidas pelos media, pois estes fazem
parte da estrutura social, possuem funções relevantes e a sociedade é vista como
um sistema organizado e dinâmico de partes interligadas. De acordo com
McQuail (cf. 2003, p. 81), “é por responderem às necessidades dos indivíduos e
das instituições de um modo consistente que os media conseguem benefícios não
intencionais para a sociedade no seu conjunto”. Os media nas sociedades garan-
tem o cumprimento de funções peculiares, que foram referidas anteriormente
(informar, persuadir, educar, socializar e entreter). A estas cinco funções podem
acrescentar-se a função de vigilância e controlo da ordem social e a de estabele-
cimento de relações entre as instituições sociais.
Sociologia da Comunicação
149

Segundo McQuail (cf. 2003, p. 83), os media são essenciais à sociedade, se-
gundo o funcionalismo estrutural, para:
– Integração e cooperação.
– Ordem, controlo e estabilidade.
– Adaptação à mudança.
– Mobilização.
– Gestão da tensão.
– Continuidade da cultura e dos valores.

Depreende-se que, na visão do funcionalismo, o papel dos media é positivo,


pois os media garantem condições indispensáveis para qualquer sociedade.

5.3.4. Perspectiva da economia política crítica


De acordo com McQuail (cf. 2003, p. 86), a perspectiva da teoria da econo-
mia política crítica sobre o papel dos media na sociedade defende que:
– O controlo e a lógica económica são determinantes.
– A estrutura dos media tende para a concentração.
– Desenvolve-se a integração global dos media.
– Os conteúdos e as audiências passam a ser mercadorias.
– A diversidade diminui.
– A oposição e as vozes alternativas são marginalizadas.
– O interesse público na comunicação é subordinado a interesses pri-
vados.

A teoria da economia política apresenta uma abordagem “socialmente crí-


tica que foca sobretudo a relação entre a estrutura económica e a dinâmica das
indústrias dos media, por um lado, e o seu conteúdo ideológico, por outro”
(McQuail, 2003, p. 84).

5.3.5. Perspectiva da difusão e desenvolvimento


Para a perspectiva da difusão e desenvolvimento, segundo McQuail (cf.
2003, p. 87), os media servem como agentes de desenvolvimento por:
– Disseminarem os saberes técnicos.
– Encorajarem a mudança e a mobilidade individuais.
– Disseminarem a democracia (e.g. esclarecimentos das eleições).
– Promoverem as necessidades de consumo.
– Ajudarem a literacia, a educação, a saúde, o controlo demográfico, etc.
Paulo M. Barroso
150

5.3.6. Perspectiva do determinismo da tecnologia da comunicação


Para a perspectiva do determinismo da tecnologia da comunicação, existe
uma relação directa entre a tecnologia da comunicação dominante numa época
e as características marcantes da sociedade. Segundo esta perspectiva (cf.
McQuail, 2003, p. 89):
– A tecnologia da comunicação é fundamental para a sociedade.
– Cada tecnologia tem certas formas, conteúdos e usos da comunicação.
– A sequência da invenção e da aplicação da tecnologia da comunicação
influencia a mudança social.
– As revoluções na comunicação lideram as revoluções sociais.

5.3.7. Perspectiva da sociedade da informação


Vários autores começaram precocemente a diagnosticar nas sociedades
modernas o predomínio e sobrecarga de uma dimensão nova, a informação, em
meados do século XX. O predomínio justifica a designação de “nova era da infor-
mação” ou “sociedade da informação”. A sociedade da informação é definida pela
sobrecarga de informação.
Alvin Toffler é um dos autores que diagnosticou a informação como ele-
mento marcante nas sociedades a partir dos anos 1950, quando se iniciou um
ritmo acelerado de mudanças sociais e tecnológicas. Em Choque do futuro, de
1970, Toffler adverte para a dimensão veloz da informação, que surge nas socie-
dades de um modo tão rápido que provoca mudanças drásticas e inauditas. As
sociedades tornam-se cada vez mais complexas e tecnológicas, com grandes e
rápidos fluxos de informação. “A informação atravessa a sociedade tão depressa,
são tão rápidas as mudanças tecnológicas radicais, que o futuro terá de ser ca-
racterizado por formas organizacionais de reacções cada vez mais imediatas”
(Toffler, 1970, p. 145).
O choque do futuro é marcado pelo desenvolvimento e aprofundamento
da informação e da tecnologia dos meios. Toffler (1970, pp. 18-24) tornou-se co-
nhecido pela teoria das três vagas da modernização das sociedades:
1) A invenção da agricultura no Neolítico, que transformou os caçadores
e recolectores nómadas em agricultores sedentários, suscitando a aglo-
meração de pessoas em locais cada vez maiores.
2) A industrialização do século XVIII, que beneficiou com o avanço cien-
tífico e o desenvolvimento da tecnologia.
3) A informação, a partir de meados do século XX.

Hoje confirmam-se estas três revoluções ou vagas marcantes na história


da humanidade e no longo processo de modernização social. Desde esta inter-
pretação de Toffler, as sociedades caminham para a hegemonia da informação,
Sociologia da Comunicação
151

na qual os indivíduos passam a desempenhar um papel mais activo num processo


de massificação das sociedades e da própria comunicação e informação. Toffler
chama estes indivíduos de prosumer, uma junção de produtor e de consumidor,
i.e. o produtor daquilo que consome e que antes era produzido por outrem. São
os casos dos bloggers e dos youtubers.
Procurando não fazer previsões, mas análises sobre o presente, Toffler faz
inferências acuradas para compreender o desenvolvimento da sociedade em ter-
mos tecnológicos. Apesar das análises e das inferências situarem-se num domínio
incerto, como é o do desenvolvimento tecnológico, Toffler consegue abordagens
aproximadas ao modo como as mudanças sociais ocorrem. Por exemplo, a comu-
nicação através de computadores, a realidade virtual ou a diversidade em todos
os campos, incluindo o da comunicação. Em A terceira vaga, Toffler refere:
“Em todas as sociedades anteriores a infosfera forneceu os meios de comunicação
entre humanos. A Terceira Vaga multiplica esses meios. Mas também fornece, pela
primeira vez na história, poderosas possibilidades de comunicação máquina-com-
máquina e, o que é ainda mais espantoso, de conversa entre humanos e o ambiente
inteligente em seu redor. Quando recuamos e olhamos para o quadro alargado,
torna-se evidente que a revolução na infosfera é pelo menos tão profunda como a
da tecnosfera, do sistema energético e da base tecnológica da sociedade.” (Toffler,
1984, p. 177).

A revolução das tecnologias de informação e o impacto da computadori-


zação e virtualização das acções sociais conduzem a transformações estruturais
das sociedades e das culturas, que agora são digitais. Neste sentido, de acordo
com McQuail:
“O termo ‘revolução das comunicações’, juntamente com o termo ‘sociedade de in-
formação’, tem sido aceite quase como uma descrição objectiva do nosso tempo e
do tipo de sociedade que está a emergir. É difícil escapar ao elemento determinís-
tico de muito pensamento corrente acerca dos ‘novos media’, com efeitos sociais a
serem atribuídos outra vez a características intrínsecas da tecnologia.” (McQuail,
2003, p. 90).

Para a perspectiva de uma sociedade da informação, segundo McQuail (cf.


2003, p. 91), as novas tecnologias dos media conduzem a uma sociedade onde a
informação predomina e é marcada pelos seguintes aspectos:
– Predomínio do trabalho de informação.
– Grande volume do fluxo de informação.
– Interactividade das relações.
– Integração e convergência das actividades.
– Crescimento e interligação de redes.
– Tendências globalizantes.
– Cultura pós-moderna.
Paulo M. Barroso
152

O que é que nos aponta para o facto de estarmos a viver numa sociedade
da informação? A resposta breve e concisa de Hartley (2004, p. 251), que coloca
esta mesma questão em Comunicação, estudos culturais e media: Conceitos-chave,
é a de que “o uso, o armazenamento e a distribuição da informação contribuíram
para transformar as estruturas sociais ao longo da história”. Todavia, se todas
as sociedades dependem de informações como poder determinante, podemos
afirmar que esta era é a da sociedade da informação e que os séculos anteriores
não eram?
A informação é importante para todas as sociedades, mas a diferença é
que, agora, a informação é tecnológica, i.e. é produzida, transmitida e recebida
instantaneamente através de novos dispositivos tecnológicos, cujos usos modi-
ficam os hábitos e os estilos de vida colectiva. Segundo Hartley (2004, p. 251), al-
guns autores argumentam que é a proliferação de mercados baseados em
informações (e o correspondente rápido aumento da quantidade de produtos ba-
seados em informações) que define a era da informação e esta situação é recente,
tal como são recentes os computadores para processamento de informações, te-
lemóveis e outros meios tecnológicos para receber e transmitir informações de
uma maneira mais fácil, simples e imediata.

5.4. Efeitos da comunicação de massas


Os meios de comunicação de massas suscitam efeitos. Através dos con-
teúdos transmitidos (e.g. de violência) e da maneira como são transmitidos (e.g.
com mais ênfase, espectáculo, repetição e sensacionalismo), aumenta o poder de
influência dos media. As mensagens alteram-se quando são transmitidas pelos
meios de comunicação, tornando-se mais espectaculares, de modo a serem mais
atraentes e seduzirem mais os públicos-alvo. Conforme refere McLuhan, os meios
de comunicação suscitam efeitos a partir dos conteúdos transmitidos e dos
modos como operam. Quando uma mensagem ou informação é codificada, já não
é a mesma, pois sofre “um processo de modificação suscitado justamente pelo
meio que faculta a sua fruição” (Demartis, 2006, p. 171).
Os efeitos dos media são inúmeros, por exemplo:
– Criação de empresas especializadas na gestão, regulação e avaliação de
conteúdos e audiências.
– Aceleração dos processos de difusão cultural.
– Incidência nos modos de uso da língua escrita e falada.
– Modificação na estrutura familiar (e.g. menor papel da autoridade pa-
rental).
– Aumento da visibilidade dos bens materiais e consequente surgimento
de novas necessidades, modificação de desejos e comportamentos de
aquisição.
Sociologia da Comunicação
153

– Fomento de fama, estatuto e autoridade.

É neste âmbito dos efeitos da comunicação de massas que McQuail apre-


senta três períodos de influência dos media na sociedade:

1º período 2º período 3º período


(1930-1945) (1945-1960) (a partir de 1965)
Influência imediata e maciça. Efeitos limitados (e indirectos). Efeitos complexos (a longo
prazo).
Predomina a ideia de que os Efeitos produzidos consoante os Efeitos cumulativos e
media têm uma forte tipos de comunicação, os cognitivos.
repercussão nas audiências. públicos e o contexto.
Influências dos media explicada Influências dos media explicada Influências dos media explicada
117
pela Teoria Hipodérmica. pela teoria Two Step Flow, de pela Teoria do Agendamento, de
118 119
Lazarsfeld, Berelson e Gaudet. McCombs & Shaw (1972).
Os media são os principais Os indivíduos são selectivos e a Os media podem provocar
instrumentos de persuasão; são comunicação interpessoal tem mudanças nas formas de pensar
capazes de formar a opinião mais influência. das pessoas.
pública e mobilizar as massas.
E.g. mensagens E.g. o papel de influência dos E.g. temas discutidos em
propagandísticas. líderes de opinião. campanhas eleitorais.
 Tabela 10: Três períodos de influência dos media, segundo McQuail.

Nestes três períodos, as influências dos media são distintas, consoante o


que caracteriza cada período e conforme os factores existentes em cada mo-
mento.

5.4.1. Influência imediata e maciça (1930-1945)


Neste período, os media têm um efeito imediato, intenso e prescrito sobre
as audiências. Este período foi marcado pela Teoria Hipodérmica, segundo a qual
os media são conhecidos por propagarem directamente as mensagens na cabeça

117
Segundo a teoria hipodérmica, cada elemento do público é atingido, de uma maneira pessoal e
directa, pelas mensagens dos meios de comunicação de massas (cf. Wolf, 1992, p. 18). Esta teoria
pressupõe a existência de uma sociedade de massas, onde cada indivíduo é um átomo, i.e.
encontra-se isolado e reage isoladamente aos impulsos e estímulos que são as mensagens dos
meios de comunicação de massas.
118
A base teórica deste modelo de comunicação “a dois níveis”, como também é designado, são as
obras The people’s choice (1944) de Paul Lazarsfeld, Bernard Berelson e Hazel Gaudet, sobre o voto
e a formação da opinião pública durante as eleições presidenciais dos EUA de 1940, e a obra
Personal influence (1955), da autoria de Elihu Katz e Paul Lazarsfeld. Para mais desenvolvimento
sobre este modelo de comunicação, leia-se Teorias da comunicação, de Mauro Wolf (cf. 1992, pp.
44-50).
119
Teoria que defende que os mass media apresentam ao público uma lista de assuntos sobre os
quais é preciso formar uma opinião e discutir. A compreensão que o público tem de grande parte
da realidade social é fornecida pelos mass media (cf. Wolf, 1992, p. 128). Assim, o público inclui
ou exclui do seu conhecimento os assuntos em função de estes serem ou não tratados pelos mass
media.
Paulo M. Barroso
154

das pessoas. Nesta altura surgem os estudos sobre os efeitos comportamentais


das campanhas de persuasão.
Também a ideia de dominação ideológica caracteriza este período. Os
membros críticos da Escola de Frankfurt (Max Horkheimer, Theodore Adorno,
Walter Benjamin, Erich Fromm, Leo Löwenthal, Herbert Marcuse, Franz Neumann
e Friedrich Pollock) teorizaram a ideia de que os media (ou as “indústrias cultu-
rais”) são instrumentos de difusão da ideologia dominante. A sua influência con-
siste numa uniformização dos quadros de pensamento e de comportamento, no
sentido da aceitação do sistema capitalista.

5.4.2. Efeitos limitados (1945-1960)


Depois dos anos 50, o desenvolvimento dos media (imprensa, rádio e tele-
visão) é acompanhado por mutações sociais importantes no campo da comuni-
cação social: o desenvolvimento da publicidade e do marketing; a proliferação do
telefone, fax e recursos electrónicos; o desenvolvimento da comunicação política
e da comunicação empresarial (com o surgimento da profissão de director de co-
municação); a revolução nas relações sociais; declínio da autoridade tradicional
(casal, família, escola, empresa). As relações de comunicação alargam-se a todos
os níveis.
Neste contexto, a Sociologia da Comunicação ou Sociologia dos Media
surge pertinentemente enquanto área de estudo, face ao advento e desenvolvi-
mento dos meios de comunicação de massa. Também a decorrente e natural preo-
cupação sobre a influência dos media na sociedade motiva o surgimento da
Sociologia da Comunicação, bem como dos vários modelos de comunicação que
pretenderam compreender a circulação social da comunicação.
Neste período de efeitos limitados e indirectos, a influência dos media é
explicada pela teoria Two Step Flow, também conhecida como modelo de comu-
nicação “a dois níveis” (ou “difusão em duas etapas”). Esta teoria defende que os
media não actuam directamente sobre as audiências. A influência dos media é in-
termediada pelos líderes de opinião. Este modelo propõe duas etapas de recepção
de uma comunicação de massas. As influências transmitidas pelos media alcan-
çam primeiro os líderes de opinião e depois estes transmitem aos seus grupos,
sobre os quais exercem influência.
De início, o objectivo é subtrair o público das manipulações da propa-
ganda. Depois, o problema é encontrar a eficácia das campanhas eleitorais. As
preocupações incidem com a propaganda durante a guerra e através da televisão
e da rádio. Foi necessário estudar a influência dos media sobre o público. A eficácia
dos media só é susceptível de ser analisada no contexto social em que se inserem.
Mais do que o conteúdo que difundem, a influência depende das características
do sistema social circundante. Atribui-se atenção à análise do processo de tomada
de decisão no decorrer de uma campanha eleitoral, compra ou expressão de uma
Sociologia da Comunicação
155

opinião, etc. A investigação foi organizada a partir de problemas socioeconómi-


cos, religiosos, etários e outros factores sociológicos na predisposição das orien-
tações de voto: grau de interesse, motivação e participação ou exposição na
campanha.

5.4.3. Efeitos complexos (1965- )


Este período caracteriza-se pelo reconhecimento da importância da tele-
visão sobre a opinião pública. Também a técnica suscita preocupação, ao ponto
de Harold Innis e McLuhan reconhecerem que os media têm uma influência de-
terminante sobre os modos de pensar, sentir e agir. Em A galáxia de Gutenberg,
McLuhan afirma que o ser humano se modifica à medida que as tecnologias tam-
bém se transformam. Surge assim o conceito de prótese técnica.
Uma perspectiva sobre os efeitos da comunicação de massas é a do agen-
damento (agenda-setting),120 que defende que os mass media produzem efeitos na
opinião pública só por prestarem atenção a alguns assuntos e negligenciarem
outros, pois “as pessoas têm tendência para conhecer o que é tratado pelos mass
media e para adoptar a ordem de prioridades atribuída aos diferentes assuntos”
(McQuail & Windahl, 2003, p. 93).
“Entre os mais recentes proponentes da hipótese de agenda-setting, os mais conhe-
cidos são os investigadores americanos Malcolm McCombs e Donald Shaw. Escre-
veram que ‘as audiências não só sabem pelos media quais as questões públicas e
outros assuntos, como a importância a atribuir a um assunto ou tópico a partir da
ênfase que os media lhe dão. Por exemplo, ao mostrarem o que dizem os candidatos
durante uma campanha, os mass media determinam aparentemente os temas im-
portantes. Por outras palavras, os mass media determinam a agenda da campanha.
Esta capacidade de influenciar a mudança cognitiva dos indivíduos é um dos as-
pectos mais importantes do poder da comunicação de massas’.” (McQuail & Win-
dahl, 2003, p. 94).

Em Communication as culture: Essays on media and society, James W. Carey


considera que os media, hoje, são inevitáveis para a vida quotidiana e que as pes-
soas se sentem um pouco menos vivas quando estão sem acompanhar, durante
muito tempo, os programas de informação e de entretenimento da televisão. É
como acontece com o protagonista de Midnight Cowboy, Joe Buck, que nunca es-
tava longe de um aparelho de televisão e não tinha a certeza de que a vida con-
tinuava quando a imagem no ecrã não estava presente (James Leo Herlihy citado
por Carey, 2009, p. 1). As comunicações modernas têm alterado fortemente os
termos quotidianos da experiência e da consciência, as comuns estruturas de in-

120
Segundo Nelson Traquina (cf. 2000, p. 13), o conceito de agendamento foi exposto pela primeira
vez por Maxwell McCombs e Donald Shaw em 1972, quando “o paradigma então vigente na
communication research apontava claramente para uma ideia acerca do poder dos media, mais
tranquilizadora para a sociedade em geral: a de que esse poder era reduzido e os seus efeitos
limitados”.
Paulo M. Barroso
156

teresse e sentimento, a sensação normal de estar vivo, de ter uma relação social
(cf. Carey, 2009, p. 1). Esta situação acontece porque:
– Existem cada vez mais formas e meios de comunicação, nomeadamente
electrónicos e de acesso (visualização) fácil e imediato.
– Os media têm um papel preponderante e absorvente na vida quotidiana.
– Os media produzem e disseminam uma cultura de massas.
– Os efeitos dos media são complexos.

Acerca do papel da comunicação na construção ou produção simbólica da


realidade e dos seus efeitos sociais, James W. Carey considera:
“Um dos principais problemas que se encontra quando se fala sobre comunicação
é que o substantivo se refere à experiência humana mais comum e mundana. É
verdadeira a afirmação de Marshall McLuhan de que a única coisa da qual o peixe
não tem consciência é a água, o meio que forma o seu ambiente e suporta a sua
existência. Da mesma forma, a comunicação, através da linguagem e de outras for-
mas simbólicas, abrange o ambiente da existência humana. As actividades que co-
lectivamente chamamos de comunicação – ter conversas, dar instruções, transmitir
conhecimentos, partilhar ideias importantes, procurar informações, entreter e ser
entretido – são tão comuns e mundanas que é difícil prenderem a nossa atenção.
Além disso, quando visitamos intelectualmente esse processo, frequentemente fo-
camos no trivial e no não problemático, tão habituados estamos ao misterioso e
ao incrível em comunicação.” (Carey, 2009, p. 19).121

Este excerto de James W. Carey sublinha a ideia de que os fenómenos e os


processos, como a comunicação, podem tornar-se tão familiares que nem damos
conta da sua ocorrência.

5.5. Opinião pública e esfera pública


Os conceitos de “opinião pública” e de “esfera pública” implicam-se mu-
tuamente. Não existe opinião pública sem esfera pública. A opinião pública e a
esfera pública são ambas públicas, i.e. não são nem poderiam ser privadas. A opi-
nião pública nasce do debate público na esfera pública e sobre “a coisa pública”.

121
Tradução do autor a partir do texto original em inglês de Carey: “One of the major problems one
encounters in talking about communication is that the noun refers to the most common,
mundane human experience. There is truth in Marshall McLuhan’s assertion that the one thing
of which the fish is unaware is water, the very medium that forms its ambience and supports
its existence. Similarly, communication, through language and other symbolic forms, comprises
the ambience of human existence. The activities we collectively call communication—having
conversations, giving instructions, imparting knowledge, sharing significant ideas, seeking
information, entertaining and being entertained—are so ordinary and mundane that it is difficult
for them to arrest our attention. Moreover, when we intellectually visit this process, we often
focus on the trivial and unproblematic, so inured are we to the mysterious and awesome in
communication.”
Sociologia da Comunicação
157

Se é uma opinião, é sempre discutível e volátil; baseia-se mais em juízos de valor


(subjectividades) e menos em juízos de facto (objectividades). A opinião pública
(doxa) não coincide com a verdade (episteme),122 porque uma opinião é sempre
flexível, subjectiva, relativa e inconsistente.
A condição sine qua non para existir opinião pública é a existência de uma
época e de uma sociedade modernas, pois a opinião pública pressupõe uma esfera
pública de livre discussão, expressão e formação de opiniões, i.e. uma sociedade
civil distinta do Estado. Por conseguinte, o conceito de “opinião pública” assume
um papel e um significado prático relevante na construção e manutenção das
sociedades modernas e desenvolvidas. A opinião pública (enquanto fonte de au-
toridade e força/pressão social) pode representar o apoio e a legitimação do poder
político formal.
A opinião pública é um processo de comunicação entre cidadãos. A opinião
pública depende da possibilidade de discussão pública, conforme se referiu. A
possibilidade de discussão depende da disponibilidade e flexibilidade dos factores
de comunicação pública, dos media e dos encontros públicos numa esfera social.
Em sentido político, a opinião pública representa o conjunto das opiniões
sobre assuntos de interesse para as sociedades e são expressas de um modo livre
e público por cidadãos (por norma, não pertencentes ao governo ou poder insti-
tuído) que reivindicam para as suas opiniões o direito de influenciar ou determi-
nar acções, pessoas ou o próprio governo. Os grupos de interesses têm os seus
objectivos e a prossecução destes objectivos leva-os a tentar manipular ou, pelo
menos, condicionar a opinião pública.
A opinião pública é formada pela maioria das opiniões anónimas sobre
um determinado assunto que esta maioria considera relevante. É uma opinião
entre muitas outras; uma opinião relacionada com assuntos de natureza pública
e de interesse geral. A opinião pública é analisada como um facto social concreto,
dada a sua importância na sociedade. Uma opinião é um conjunto de crenças
acerca de um assunto ou facto sobre o qual se forma um juízo de valor.
A opinião pública é uma força social poderosa capaz de influenciar a ima-
gem de um governo, empresa, instituição ou figura pública. A opinião pública é
um sistema de forças e de tensões que se traduz num conjunto de opiniões con-
sensuais.
Por conseguinte, o contexto em que se expressa a opinião pública deve-se a:
– Controvérsia social de interesse colectivo (assunto com interesse pú-
blico).
– Liberdade de opinião e expressão.

122
Os termos doxa e episteme são ambos gregos e antónimos. Enquanto doxa significa “opinião” e
um grau inferior de cognição, episteme significa “conhecimento (verdadeiro e científico)” e “corpo
organizado de conhecimento” (cf. Peters, 1983, p. 56 e 77).
Paulo M. Barroso
158

– Meios de comunicação pública.


– Espaço público de discussão e de oportunidade de discussão.
– Decisão ou opinião colectiva dominante.

Só estamos perante uma opinião pública quando a opinião sobre determi-


nado assunto representa o público como um todo. Na emergência e na discussão
de um tema podem surgir opiniões diferentes associadas a determinados subgru-
pos numerosos: são as correntes de opinião. Para existir opinião pública ou cor-
rente de opinião é necessário um pronunciamento geral ou um pronunciamento
da maior parte dos membros do grupo em determinada direcção. Caso contrário,
estaremos perante uma série de opiniões em vez de uma opinião pública.
Uma opinião pública é considerada como uma realidade objectiva que tra-
duz ora o consenso ora a média das opiniões individuais sobre um assunto num
determinado espaço geográfico e num tempo. Enquanto realidade objectiva, a
opinião pública não é um somatório de opiniões.
“Origem remota mas essencial da Opinião Pública é a experiência de uma nova
forma de sociabilidade: os públicos. A sua génese, rápida expansão social e singu-
laridade (por oposição às formas de sociabilidade do passado) definem uma marca
decisiva da modernidade ocidental. Na caracterização, ainda hoje modelar, que Ga-
briel Tarde realiza dos públicos, destacam-se os seguintes traços fundamentais: 1.
redes de interdependências sociais muito extensas (que dispensam os laços físicos
de presença directa entre os seus membros); 2. carácter simbólico (uma coesão in-
terna de ordem espiritual); 3. estrutura comunicacional (fluxo regular de informa-
ções, pelo qual se faz a circulação de temas/assuntos mobilizadores dos públicos e
em que os indivíduos – como membros dos públicos – são convocados a um exer-
cício regular de juízo).” (Esteves, 2012).

A origem da opinião pública é remota, conforme se afirma no excerto an-


terior, mas a Antiguidade Clássica Grega assume-se como uma fase antecedente
importante e crucial. Na Grécia do século V a.C. surge a ágora como um “lugar
de reunião” nas praças públicas. A ágora é o centro da vida social, onde nasce a
democracia. Para participar nesse espaço público de discussão, a racionalidade é
um critério. Desenvolve-se o ideal da polis (cidade) a partir de um modelo de par-
ticipação na esfera pública. Neste contexto democrático, desenvolvem-se as ci-
dades-estado com autonomia organizativa.
Em 1922, o jornalista, escritor e comentador político Walter Lippmann
(1889-1974) publica o livro Opinião pública, onde aborda as relações entre os
media e os poderes políticos, económicos e sociais. Lippmann foca a influência
(consciente ou inconsciente) dos media sobre as pessoas e conclui que uma com-
petência importante do público é julgar os resultados políticos e vigiar a aplica-
ção dos programas ideológicos escolhidos ou adoptados.
“O mundo que temos que considerar está politicamente fora de nosso alcance, fora
de nossa visão e compreensão. Tem que ser explorado, relatado e imaginado. O
Sociologia da Comunicação
159

homem não é um Deus aristotélico contemplando a existência numa olhadela. É


uma criatura da evolução que pode abarcar somente uma porção suficiente da rea-
lidade que administra para sua sobrevivência, e agarra o que na escala do tempo
são alguns momentos de discernimento e felicidade. E ainda assim esta mesma cria-
tura inventou formas de ver o que nenhum olho nu poderia ver, de ouvir o que ou-
vido algum poderia ouvir, de considerar massas imensas assim como infinitesimais,
de contar e separar mais itens que ele pode individualmente recordar. Está apren-
dendo a ver com sua mente vastas porções do mundo que ele não podia nunca ver,
tocar, cheirar, ouvir ou recordar. Gradualmente ele cria para si próprio uma imagem
credível em sua cabeça do mundo que está além de seu alcance. Aqueles aspectos
do mundo exterior que têm a ver com o comportamento de outros seres humanos,
na medida em que o comportamento cruza com o nosso, que é dependente do nosso,
ou que nos é interessante, podemos chamar rudemente de opinião pública. As ima-
gens na cabeça destes seres humanos, a imagem de si próprios, dos outros, de suas
necessidades, propósitos e relacionamentos, são suas opiniões públicas. Aquelas
imagens que são feitas por grupos de pessoas, ou por indivíduos agindo em nome
dos grupos, é Opinião Pública com letras maiúsculas.” (Lippmann, 2008, p. 40).

Lippmann interessa-se por questões pertinentes que ainda hoje têm cabi-
mento. Por exemplo:
– Como é que as pessoas formam concepções sobre o que acontece no
mundo?
– Como é que as pessoas seleccionam uma parte das mensagens que re-
cebem?
– Como é que o público processa as mensagens e como é que as retrans-
mitem?
– Como é que as pessoas se informam, formam juízos e agem em confor-
midade?

Lippmann conclui que a opinião pública é vulnerável, influenciável e ba-


seada em estereótipos com carga emocional. A opinião pública é o fruto da acção
de grupos de interesses; são as opiniões “feitas públicas”.
“Um dos argumentos de Lippmann neste livro é a de que a teoria democrática pede
demasiado aos cidadãos, uma vez que não se pode esperar deles que actuem como
legisladores, que sejam activos e que se envolvam em todos os assuntos importan-
tes. Os cidadãos têm muitas dificuldades para formar a sua opinião de um modo
racional e democrático, porque estão ocupados com os seus próprios assuntos pes-
soais, com os problemas da sua vida quotidiana e não lhes resta tempo para se de-
dicarem aos assuntos políticos. Na sua opinião, nenhum indivíduo podia estar
informado sobre os assuntos do dia nem ter uma opinião sobre cada assunto.
Para Lippmann, a responsabilidade na hora de tomar decisões devia recair nos go-
vernantes e nos representantes eleitos, porque são eles os que estão qualificados
para analisar a informação relevante e debater os relatórios dos especialistas. Nesta
perspectiva, a única competência do público seria julgar os resultados e vigiar a
colocação em prática dos programas eleitos. […]
O autor chega à conclusão de que a influência dos meios sobre os cidadãos é, em
grande medida, inconsciente. […]
Paulo M. Barroso
160

Uma das contribuições mais importantes do livro de Lippmann consiste em mostrar


o modo como as pessoas se informam e posteriormente formam os juízos que
guiam as suas acções no mundo moderno. Dito de outro modo, de que maneira as
pessoas elaboram as suas concepções, como seleccionam uma parte das mensagens
que lhes chegam, como as processam e como as transmitem.
A pedra angular da opinião pública era, para este autor, a cristalização das con-
cepções e das opiniões em ‘estereótipos’ com carga emocional.” (Espinar et al., 2006,
pp. 35-36).123

A opinião pública é sempre a opinião sobre um determinado assunto de


interesse geral ou público (um bem comum ou res publica) para a sociedade, re-
presentando a expressão do público como um todo. É uma opinião que se torna
pública (é difundida entre a maioria dos cidadãos) e é do público (a maioria dos
cidadãos), conforme a sua própria designação. Neste sentido, a opinião pública
é republicana, tal como Nietzsche se refere ao uso da retórica antiga na esfera
pública em 1872-73, num ensaio sobre a retórica enquanto arte:
“[A retórica] é uma arte essencialmente republicana: tem de se estar habituado a
suportar as opiniões e os pontos de vista mais alheios e mesmo sentir um certo
prazer na contradição; deve-se escutar de tão bom grado como quando nós próprios
falamos, e deve-se como ouvinte apreciar mais ou menos o desempenho da arte.”
(Nietzsche, 1995, pp. 27-28).

Na retórica antiga, de que fala Nietzsche neste ensaio, e na actual retórica


presente nos discursos dos media (sociais e de massas) das sociedades contem-
porâneas, as opiniões são adaptadas, i.e. preparadas para serem eficazes e este-
ticamente apresentadas, de modo a melhor persuadir. Nas sociedades modernas
industrializadas e de massas (sem os tradicionais elementos culturais diferencia-

123
Tradução do autor a partir do texto da edição original em espanhol de Espinar et al.: “Uno de los
argumentos de Lippmann en este libro es que la teoría democrática pide demasiado a los
ciudadanos, ya que no puede esperar-se de ellos que actúen como legisladores, que sean activos
y que, además, se impliquen en todos los asuntos importantes. Los ciudadanos tienen muchas
dificultades para formar su opinión de un modo racional y democrático porque están ocupados
con sus proprios temas personales, con los problemas de su vida cotidiana y no les queda tiempo
para poder dedicarse a los asuntos políticos. En su opinión, ningún individuo podía estar
informado sobre los temas del día, ni tener una opinión sobre cada tema. Para Lippmann la
responsabilidad a la hora de tomar decisiones debería recaer en los gobernantes y en los
representantes electos, ya que son ellos los que están cualificados para analizar la información
relevante y debatir los informes de los expertos. Desde esta perspectiva, la única competencia
del público sería juzgar los resultados y vigiar la puesta en práctica de los programas elegidos
[…] El autor llega a la conclusión de que la influencia de los medios en los ciudadanos es, en
gran medida, inconsciente. […] Una de las aportaciones más importantes del libro de Lippmann
consiste en mostrar el modo en que las personas se informan y posteriormente forman los juicios
que guían sus acciones en el mundo moderno. Dicho de otro modo, de qué manera elabora la
gente sus concepciones, cómo selecciona una parte de los mensajes que le llegan, cómo los
procesa y cómo los transmite. La piedra angular de la opinión pública era para el autor la
cristalización de las concepciones y las opiniones en ‘estereotipos’ con carga emocional.”
Sociologia da Comunicação
161

dores), a opinião pública adquire uma importância e uma força própria para se
manifestar e exercer pressão. O desenvolvimento da opinião pública (e.g. dos me-
canismos de formação e de expressão da opinião pública) acompanha o desen-
volvimento dos meios de comunicação de massas.
Existem modos de auscultação da opinião pública, nomeadamente:
– Referendo: direito dos cidadãos em se pronunciarem sobre questões ou
assuntos de interesse público e social, previsto na Constituição da Re-
pública Portuguesa.
– Sufrágio universal por voto secreto: instrumento ao qual os cidadãos
recorrem nos períodos de eleições democráticas (para a Assembleia da
República, Presidência da República, Poder Local ou Parlamento Euro-
peu).
– Sondagem de opinião: técnica ou instrumento de pesquisa da opinião.

As sondagens de opinião devem ser analisadas como uma fonte de infor-


mação parcelar. As sondagens podem não ser representativas nem objectivas,
pois dependem de quem as realiza (segundo certos objectivos e de acordo com
uma certa metodologia) e de quem interpreta e comenta os seus resultados.

5.5.1. Mecanismos de formação da opinião pública


Existem determinados factores na origem da formação de movimentos de
opinião pública: os acontecimentos, o interesse do público, períodos de crise, a
emoção, etc. Segundo Jean Cazeneuve (1999, pp. 191-197), os mecanismos de for-
mação da opinião pública são:
– Rumores.
– Estereótipos.
– Grupos e as suas normas.
– Líderes de opinião.
– Mecanismos psicossociológicos de selecção da informação.

Os rumores são a forma mais antiga e primitiva de formar opiniões colec-


tivas. São mecanismos interpessoais que contornam a informação oficial e são
abundantes em períodos de crise de confiança social. Têm por base acontecimen-
tos sobre os quais a informação é escassa. Por isso, correspondem a deformações
da realidade e nos rumores intervêm certos mecanismos psicossociológicos
(medo, desejo, preconceitos, etc.). Os rumores associam-se a acontecimentos im-
portantes e ambíguos; servem para explicar e aliviar tensões emocionais. São ca-
racterísticos das sociedades de massas. Terminam quando a situação que lhes
deu origem deixa de ser problemática.
Paulo M. Barroso
162

“Os investigadores pensam que muitas vezes os rumores circulam simultanea-


mente num grupo e num circuito interindividual, um peso proporcional à impor-
tância e à ambiguidade que o assunto apresenta para a vida de cada um. Ao circular,
o boato aumenta esta importância e ambiguidade devido à acumulação de senti-
mentos e histórias contraditórias; o estudo estatístico mostra que os rumores têm
as suas raízes no ódio e no medo, conduzem a uma explicação e cumprem a função
de aliviar a tensão emocional dos indivíduos ao basearem a explicação e a derivação
afectiva num bode expiatório (minoria racial). Allport e Postman efectuaram um
estudo experimental sobre os boatos: mostra-se, num ecrã, uma cena com vinte
pormenores a um indivíduo que deve transmiti-la a uma segunda pessoa, a qual
não assistiu à projecção da cena e a retransmitirá por sua vez - enquanto o boato
artificial se propaga assim, a audiência presente pode confrontar a narrativa de-
formadora com a cena projectada no ecrã. É certo que as condições experimentais
diferem da realidade, porquanto a imposição de regras e a audiência impedem o
boato de se desenvolver com toda a espontaneidade: todavia, os resultados são
significativos. O boato experimental revela, tal como o boato natural, um processo
de distorção em que se podem distinguir três mecanismos: o nivelamento, a esti-
mulação e a assimilação. O nivelamento exprime o facto de o rumor, à medida que
circula, comportar menos pormenores e menos palavras, até atingir uma forma es-
tereotipada em que a transmissão o deixa inalterado. Esta fase verifica-se a partir
das primeiras trocas interindividuais. A estimulação consiste, ao mesmo tempo,
na selecção de um número limitado de pormenores escolhidos devido ao seu ca-
rácter insólito; no seu exagero e adaptação ao presente; nas explicações acrescen-
tadas que interrompem ou orientam a propagação do rumor. A assimilação apoia-se
nas paixões de quem escuta; traduz-se por vezes num conjunto de processos que
estruturam a história em torno de um tema essencial e completam os vários por-
menores com um fim coerente; é às vezes uma assimilação por condensação (vários
pormenores num só); é com frequência uma assimilação em suspenso; apresen-
tam-se as coisas como as pessoas estão habituadas a vê-las; sugerem-se estereóti-
pos verbais; assimila-se sobretudo através da lógica do interesse ou da paixão e
dos preconceitos. A essência do rumor consiste, pois, numa persuasão que nasce
da própria actividade de transformação da notícia original, feita em função das re-
presentações do grupo.” (Cazeneuve, 1999, pp. 192-193).

Os estereótipos constituem outro mecanismo de formação da opinião pú-


blica. Lippmann introduziu a palavra “estereótipo” no seu livro Opinião pública
(1922), definindo-o como um molde a partir do qual se pode reproduzir inúmeros
exemplares: permite reproduzir as mesmas atitudes mentais face a situações se-
melhantes. Um estereótipo perfeito, segundo Lippmann (2008, p. 98), “precede
o uso da razão; é uma forma de percepção, impõe certo carácter nas informações
do nosso sentido antes que as informações atinjam a inteligência”. Um estereó-
tipo é um óculo pelo qual se vê o mundo deformado.
O estereótipo é um conceito classificativo, ao qual está sempre ligada uma
intensa tonalidade afectiva de agrado ou desagrado. O estereótipo reduz-se a
uma palavra, como “negro”, “judeu”, “capitalista”, “comunista” etc. Os meios de
comunicação de massas costumam ser veículos e reforçadores de estereótipos
ao difundirem informações usando, de um modo voluntário ou involuntário, de-
terminados termos e expressões.
Sociologia da Comunicação
163

Uma característica principal do estereótipo é a esquematização, em que


as qualidades de quem se fala são reduzidas a uma só. A simplificação permite a
retenção pela memória. Engloba muitos indivíduos diferentes num conceito só.
Mas a selecção da qualidade que é mantida obedece a uma semântica afectiva,
com mecanismos como os já descritos de projecção, identificação, rejeição.
Uma outra característica principal prende-se como o facto de o estereótipo
ser persistente. Afirma a persistência do próprio grupo, a sua coesão e, no caso
de um conflito, a identidade dos seus membros perante “o outro”. Neste caso, o
estereótipo é um dos factores integrantes da percepção social, sendo elaborado
por um grupo para se definir ou definir outro grupo. Outra função do estereótipo,
decorrente da anterior, é a de apresentar ao grupo uma imagem idealizada dele
próprio. As regras de idealização seguem mecanismos afectivos.
O estereótipo situa-se no plano da fantasia. Mas, tratando-se de um tipo
de atitude social, é uma fantasia que pode levar à acção. Os preconceitos raciais
e nacionalistas, que se nutrem de estereótipos, chegam a expressar-se através
de acções violentas. Quanto maior for o número de estereótipos que comportam
uma cultura, mais monolíticas serão as manifestações da opinião pública.
Segundo Lasswell, os preconceitos políticos, as preferências eleitorais, as
necessidades que lhes estão ligadas, são frequentemente formuladas de uma
forma sumamente racional, mas crescem de uma maneira sumamente irracional.
O estereótipo é uma construção mental na abordagem da realidade; é elaborado
a partir de características que se julgam reais.
Quanto aos grupos e às suas normas, todo o agrupamento humano tem
as suas características próprias de natureza geográfica, étnica, cultural, etc.
Esses traços são transmitidos de geração em geração. Formam-se de acordo
com vários factores. Todavia, de um modo geral, o tipo de comportamentos
que tornam exclusivo um agrupamento resulta da forma peculiar como os in-
divíduos desse conjunto humano resolvem os seus problemas ao longo dos
tempos.
A vida em grupo conduz ao desenvolvimento de regras e procedimentos
que, espelhando os valores aceites, concorrem para a satisfação das necessidades
da colectividade. Uma vida em grupo é uma vida em estado de cultura. A cultura
representa a expressão de um grupo e concretiza tudo o que é socialmente apren-
dido e partilhado. Todos os grupos têm as suas normas que condicionam os com-
portamentos dos seus membros.
Relativamente aos líderes de opinião, estes são pessoas que se destacam
na comunidade pelo seu estatuto social. A sua posição depende dos valores so-
ciais vigentes na comunidade. O contacto com os líderes de opinião é importante
para que o grupo seja influenciado e adopte o comportamento desejado. O tipo
de indivíduo que é considerado guia ou líder de opinião varia consoante a comu-
nidade.
Paulo M. Barroso
164

A função fundamental do líder de opinião é a de ser catalisador e trans-


missor de opiniões: provocar reacções do grupo, catalisar e transmitir opiniões
para o grupo. Mas existem outras funções dos líderes de opinião:
“Um aspecto importante é o da comunicação dentro de cada grupo. Em primeiro
lugar, podemos considerar todas as relações entre indivíduos como processos de
transmissão de informação. Em segundo lugar, o grupo no seu conjunto actua como
receptor e fonte de informação: receptor de informações para os seus membros,
fonte, enfim, para grupos exteriores a ele. Nesse sentido, a formação das opiniões
será influenciada não só pelo envolvimento afectivo ligado a maior ou menor acção,
mas também pela quantidade de informação recebida, a sua orientação, o seu sen-
tido. Dentro dessa perspectiva, há um papel privilegiado: o do líder. A função fun-
damental do líder parece ser precisamente o de catalisador e transmissor: provoca
reacções no grupo, catalisa-as e transmite em retorno a informação para o grupo,
provocando novas reacções; e assim sucessivamente, num mecanismo em cadeia.
Na formação da opinião, a sua influência é particularmente importante. Há o perigo
de o líder transmitir uma informação tendenciosa, para provocar reacções num
sentido determinado (é o caso do demagogo). Embora a história forneça casos de
manipulação da opinião em proveito de uma só pessoa, tal fenómeno só pode pro-
cessar-se com o consentimento implícito do grupo. As reacções do grupo são ge-
nuínas; podem ser reflectidas, mas não criadas a partir do nada. Em última análise,
o líder actua como canal de transmissão do grupo para si próprio, num verdadeiro
processo em feedback.” (Augras, 1980, pp. 42-43).

5.5.2. Benjamin Constant: liberdade dos antigos vs. dos modernos


Benjamin Constant (1767-1830) enfatiza uma questão fundamental para ca-
racterizar as sociedades modernas em relação às antigas: os direitos individuais
de liberdade relativamente aos interesses colectivos. Constant argumenta que a
liberdade das repúblicas antigas é constituída mais pela participação activa no
poder colectivo e menos nos interesses (direitos e liberdades) individuais. Para ga-
rantir a participação, é necessário que os cidadãos sacrifiquem parte de seus inte-
resses. A liberdade individual é um valor da democracia representativa? A
democracia representativa é limitada por valores, como o da liberdade individual?
Segundo Constant, em “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”:
“No entanto, como várias outras circunstâncias que determinavam o carácter das
nações antigas existiam também em Atenas; como havia uma população escrava e
como o território era muito limitado, encontramos aí vestígios da liberdade dos
antigos. O povo faz as leis, examina a conduta dos magistrados, intima Péricles a
prestar contas, condena generais à morte. Ao mesmo tempo, o ostracismo, acto
legal e louvado por todos os legisladores da época, o ostracismo, que nos parece
uma revoltante iniquidade, prova que o indivíduo era ainda subordinado à supre-
macia do corpo social em Atenas, mais do que em qualquer Estado social livre da
Europa dos nossos dias. Conclui-se do que acabo de expor que não podemos mais
desfrutar da liberdade dos antigos a qual se compunha da participação activa e
constante do poder colectivo. Nossa liberdade deve compor-se do exercício pacífico
da independência privada. A participação que, na antiguidade, cada um tinha na
soberania nacional não era, como em nossos dias, uma suposição abstracta. A von-
tade de cada um tinha uma influência real; o exercício dessa vontade era um prazer
forte e repetido. Em consequência, os antigos estavam dispostos a fazer muitos sa-
Sociologia da Comunicação
165

crifícios pela conservação de seus direitos políticos e de sua parte na administração


do Estado. Cada um, sentindo com orgulho o que valia seu voto, experimentava
uma enorme compensação na consciência de sua importância social. Essa compen-
sação já não existe para nós. Perdido na multidão, o indivíduo quase nunca percebe
a influência que exerce. Sua vontade não marca o conjunto; nada prova, a seus
olhos, sua cooperação. O exercício dos direitos políticos somente nos proporciona
pequena parte das satisfações que os antigos nela encontravam e, ao mesmo
tempo, os progressos da civilização, a tendência comercial da época, a comunicação
entre os povos multiplicaram e variaram ao infinito as formas de felicidade parti-
cular. Conclui-se que devemos ser bem mais apegados que os antigos à nossa in-
dependência individual. Pois os antigos, quando sacrificavam essa independência
aos direitos políticos, sacrificavam menos para obter mais; enquanto que, fazendo
o mesmo sacrifício, nós daríamos mais para obter menos. O objectivo dos antigos
era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era
isso o que eles denominavam liberdade. O objectivo dos modernos é a segurança
dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituições a esses privilégios.” (Constant, 1985, p. 3).

Constant define a liberdade dos modernos da seguinte maneira: a “liber-


dade dos modernos” é o género de liberdade que consiste em garantir uma esfera
de autonomia individual face ao poder político, reduzindo a intervenção política
dos cidadãos à escolha periódica dos representantes, em geral políticos profissio-
nais. O objectivo dos modernos é a segurança do seu bem-estar privado, chamando
liberdade às garantias que as instituições concedem a esse bem-estar. A “liberdade
dos modernos” corresponde ao gozo tranquilo da independência privada.
Por seu turno, a “liberdade dos antigos” é o género de liberdade que con-
siste no direito de intervenção directa dos cidadãos nas decisões colectivas rela-
tivas à polis. O objectivo dos antigos é a partilha do poder social entre todos os
cidadãos, chamando a isso liberdade. A liberdade dos antigos corresponde a uma
participação activa e constante no poder colectivo. Segundo Constant, a liberdade
dos antigos é a liberdade positiva enquanto participação política. Tem como ob-
jectivo a partilha do poder social.

5.5.3. Teoria da espiral do silêncio


Elisabeth Noelle-Neumann (1916-2010) apresenta esta teoria na década de
1970, ao conciliar os media e a opinião pública. Segundo esta teoria, que rompe
com a teoria dos efeitos limitados dos media, as pessoas são gregárias, têm medo
do isolamento, sentem-se desconfortáveis assumindo uma posição sozinhas e,
por isso, procuram a integração social, estão atentas às opiniões que circulam
na sociedade, nomeadamente as da maioria. Estas opiniões resultam das relações
entre os media, a comunicação interpessoal e a percepção individual. Em socie-
dade, as pessoas comunicam, entram em processos de interacção e influenciam-
se quer mutuamente quer como resultado dos conteúdos e formas veiculados
pelos media. Assim, surgem necessidades de mudança. Mas, como se forma a es-
piral do silêncio? Se a mudança vai no sentido das suas opiniões, expressam as
Paulo M. Barroso
166

suas opiniões; se as opiniões vão no sentido contrário, as pessoas têm tendência


a ficar em silêncio. Quando as pessoas observam as opiniões que surgem, vão
nesse sentido; caso contrário, forma-se uma espiral do silêncio.
Qual é o papel dos media na espiral do silêncio? Os media tendem a des-
tacar mais as opiniões dominantes, reforçando-as ao mesmo tempo que abafam
as minorias. A opinião pública confunde-se com as opiniões expressas pelos
media. As opiniões divergentes não são expressas, porque não são consideradas
nem destacadas pelos media.
Segundo McQuail (2003, p. 103), o conceito de espiral de silêncio “deriva
de uma teoria mais vasta sobre a opinião pública, a qual tem sido desenvolvida
e testada ao longo de vários anos por Elisabeth Noelle-Neumann”. De acordo com
McQuail e Windahl:
“Em termos gerais, a teoria da espiral do silêncio diz respeito à acção recíproca
entre quatro elementos: comunicação de massas; comunicação interpessoal e rela-
ções sociais, expressão individual da opinião; e percepção pelos indivíduos do ‘clima
de opinião’ que os rodeia no seu ambiente social. A teoria baseia-se em princípios
sociopsicológicos fundamentais referentes à dependência da opinião pessoal rela-
tivamente ao que (se supõe que) os outros pensam. Noelle-Neumann expôs da se-
guinte forma os principais pressupostos da teoria: 1. A sociedade ameaça com o
isolamento os indivíduos que se desviam. 2. Os indivíduos sentem continuamente
o medo do isolamento. 3. Este medo do isolamento leva os indivíduos a tentar ava-
liar constantemente o clima de opinião. 4. Os resultados desta estimativa afectam
o comportamento público, em especial no que respeita à expressão aberta ou à
ocultação de opiniões. Noelle-Neumann acrescenta que este quarto ponto liga entre
si os anteriores e todos eles são ‘considerados os responsáveis pela formação, de-
fesa e mudança da opinião pública’. Basicamente, a teoria defende que, para evitar
o isolamento no que respeita a assuntos públicos importantes (como o apoio a um
partido político), muitas pessoas procuram, no seu ambiente, pistas sobre a opinião
dominante e os pontos de vista que ganham força ou estão em declínio. Alguém
que vê os seus próprios pontos de vista entre os que declinam fica menos inclinado
a expressá-los abertamente. Como resultado, os pontos de vista considerados do-
minantes parecem ganhar ainda mais terreno e os alternativos decair mais rapi-
damente.” (McQuail & Windahl, 2003, p. 103).

Segundo a Teoria da Espiral do Silêncio, a sociedade ameaça com o isola-


mento quem se desvia do consenso. Por isso, os indivíduos têm medo (incons-
cientemente, na maioria dos casos) de serem isolados pela sociedade e, assim,
inibem-se de expressar as suas opiniões divergentes e tendem a conformarem-
se com a opinião da maioria.

5.6. Técnicas de comunicação e influência da opinião


A informação é tratada de modos diferentes consoante as estratégias e os
interesses envolvidos, podendo revestir a forma de comunicado (informações
convenientes, com interesses particulares) ou de relato da factualidade (informa-
ções verdadeiras, sem interesses particulares, mas com interesse público rele-
Sociologia da Comunicação
167

vante). Neste último caso, a informação é notícia; no primeiro caso, a informação


é trabalhada em função das conveniências de quem a elabora e a difunde, como
acontece com a publicidade, a propaganda124 e as relações públicas.
A publicidade, a propaganda e as relações públicas são três géneros de
técnicas de comunicação estratégica, i.e. três aplicações distintas da comunicação
enquanto técnica de persuasão, mais do que como técnica de informação. A co-
municação aplicada em estratégias de publicidade, propaganda e relações públi-
cas é operacional, adequa-se se tiver resultados práticos: permitir as pessoas
“fazer X”, conforme reconhece Baudrillard:
“A comunicação não é o falar, é o fazer-falar. A informação não é o saber, é o fazer-
saber. O verbo ‘fazer’ indica que se trata de uma operação, não de uma ação. Na
publicidade, na propaganda, trata-se não de crer mas de fazer-crer. A participação
não é uma forma social ativa nem espontânea; é sempre induzida por uma espécie
de maquinaria ou de maquinação, é um fazer-agir, como a animação e outras coisas
semelhantes.” (Baudrillard, 1990b, p. 53).

As mais comuns técnicas de comunicação estratégica caracterizam-se assim:


 Publicidade Propaganda e Relações públicas
contrapropaganda
Sentido da Comunicação unilateral Comunicação unilateral Comunicação bilateral
comunicação (sem feedback). (sem feedback). (com ou sem feedback).
Direcção da De dentro para fora. Todas as direcções. Todas as direcções.
comunicação
Emissor É obrigatória por lei a Nem sempre identifica o Emissor identificado.
identificação do emissor. emissor.
Público-alvo Consumidores, líderes de Indeterminado: quem se Indeterminado: todos os
opinião, influenciadores identificar ou interessar que se encontrem sujeitos
digitais. com as mensagens. à acção da comunicação.
Proximidade com Nula. Mista.
o público
Referente da Actividades, produtos e Ideais e valores subjacentes aos remetentes.
comunicação serviços dos remetentes.
Media utilizados Meios de comunicação de Meios de comunicação de massas e meios
massas. interpessoais.
Área ocupada nos Claramente identificada e Escamoteada ou Escamoteada ou
media paga para o efeito. manipulada. manipulada.
Etapas da Atenção, interesse, Atenção, interesse e Atenção, interesse,
mensagem desejo, memória, acção e imposição (acrónimo informação e (motivação).
repetição (AIDMAR). AII).125
Veracidade da Hiperbólica e pode mentir Sensacionalista e pode Segue política de verdade
mensagem por omissão. mentir por estratégia. ou de conveniência.
Objectivos da Divulgar, sugerir ou Impor e promover a Gerir a comunicação e a
comunicação incutir a compra/consumo adesão a uma ideologia boa imagem da
de uma marca, produto ou política, religiosa, social organização com clima
serviço. ou económica. favorável (“good will”).

124
O termo “propaganda” e a acção que implica surgiu quando o Papa Gregório XV criou a
Congregato Propaganda Fide (Congregação para a Propagação da Fé) em 1622, numa época em
que a Igreja Católica estava em decadência, perdendo fiéis com a Santa Inquisição.
125
Chama a atenção, desperta o interesse e impõe ideias (cf. Lampreia, 1988, p. 79).
Paulo M. Barroso
168

Durabilidade da Descontínua: serve para Contínua: acompanha o ciclo de vida da empresa,


comunicação objectivos conjunturais. instituição ou organização.
Resultados ou Imediatos. Imediatos. Curto, médio e longo
efeitos prazos.
Concorrência Leal, sem referência Oposição agressiva e Actividade similar.
directa. contrapropaganda.
Regulação Código da publicidade, Não se rege por nenhum Rege-se pelo denominado
127
consoante as leis de cada código nem legislação Código de Atenas.
126
país. específicos.
Exemplo Omissões ou hipérboles Ideologias e enganos, sem Informações, mas com
(e.g. “O gelado mais a observância aos factos interesses (e.g. “A marca X
delicioso do mercado”, (e.g. “Vote X, para não lança o produto Y que
omitindo que contém pagar mais impostos”). estava à espera no dia Z”).
gordura animal).
Tabela 11: Diferenças mais assinaláveis entre a actividade da comunicação na publicidade, na
propaganda e nas relações públicas (Fonte: adaptado de Lampreia, 1988).

Estas três técnicas de comunicação são estratégias planificadas de aplica-


ção da comunicação; são usos conscientes da comunicação para a obtenção de
certos objectivos. São formas organizadas de comunicação aplicada em certas si-
tuações e seguem planos traçados. Do objectivo de quem implementa esta es-
tratégia até ao efeito alcançado sobre a informação, as atitudes ou os
comportamentos dos destinatários, seguem-se várias etapas.
No caso da publicidade, as mensagens produzidas e disseminadas estra-
tegicamente são um factor de influência do modo de ver pela “força” (conteúdo
e forma) os produtos, imagens, ideias, palavras, gostos, necessidades, etc. Além
de ser um instrumento estético e comercial (mecanismo de influência das mas-
sas), a publicidade é instigadora de atenção, interesse, desejo, memória, acção e
repetição (AIDMAR) de práticas de consumo de produtos, marcas, bens e serviços.
A publicidade é um canal de comunicação estratégica e uma técnica de comuni-
cação aplicada e multiforme (especialmente visual, implícita e retórica). Mani-
festa-se em vários campos; é omnipresente e, também por isso, é influente no
sistema de produção e recepção de enunciados verbais ou não verbais.
Nas relações públicas, os modelos de comunicação nesta actividade englo-
bam quatro géneros principais ou amplamente aceites para descrever a sua evo-
lução, conforme enuncia a Encyclopedia of public relations editada por Robert Heath:
“[…] o modelo de assessoria de imprensa ou publicidade, o modelo de informação
pública, o modelo assimétrico bidireccional e o modelo simétrico bidireccional. O
primeiro, que é o modelo de assessoria de imprensa ou publicidade, é descrito como

126
Em Portugal, é o Código da Publicidade, Decreto-Lei nº. 330/90 de 23 de Outubro, alterado pelo
Decreto-Lei n.º 66/2015, de 29 de Abril (14ª versão, a mais recente).
127
O Código de Atenas (Code of Athens) foi adoptado em 1965 e modificado/melhorado em 1968 e em
2009, consistindo numa normalização do comportamento ético dos membros da International
Public Relations Association (Associação Internacional de Relações Públicas) e é recomendado a todos
os que praticam relações públicas em todo o mundo.
Sociologia da Comunicação
169

comunicação unidireccional na qual a verdade não é um componente essencial. O


modelo de informação pública foca-se na publicidade, no entanto, na medida em
que a disseminação de informações verdadeiras é importante para a prática. O mo-
delo assimétrico bidireccional tenta persuadir e depende do feedback dos stakehol-
ders. Por outro lado, o modelo simétrico bidireccional é considerado a forma mais
sofisticada de prática, pois concentra-se na compreensão mútua, mediação e fluxo
bidireccional equilibrado de informações.” (Heath, 2005, p. 713).128

A seguinte tabela sintetiza e distingue estes quatro modelos:


Modelo de assessoria Modelo de informação Modelo assimétrico Modelo simétrico
de imprensa / publicity pública bidireccional bidireccional
129
(ca. 1900) (ca. 1920) (a partir de 1920) (a partir de 1960)
Comunicação
Comunicação Comunicação Comunicação bidireccional:
unidireccional. unidireccional. bidireccional. modificação dos dois
lados.
Sistema fechado. Sistema fechado. Sistema aberto. Sistema aberto.
Responde às
Ivy Lee: “O público tem Recorre à investigação necessidades do
Manter o status quo. o direito de ser sobre o público para o público (e.g.
informado”. persuadir melhor. reclamações,
sugestões).
Difusão de informação Relação de
Função persuasiva e
nem sempre com comunicação,
propagandística.
intenção persuasiva. equilíbrio, partilha e
iniciativa dos
Função primordial ao
Veracidade da interesses.
serviço da organização.
Informação incompleta informação é Rompe visão da
ou manipulada. considerada manipulação dos
importante. públicos em benefício
da organização (ética).

Tabela 12: Os modelos de comunicação de relações públicas.

O modelo simétrico bidireccional de relações públicas caracteriza-se assim,


conforme refere Alison Theaker em The public relations handbook:
“Às vezes, este modelo é descrito como o ‘ideal’ das relações públicas. Ele descreve
um nível de igualdade de comunicação que não é frequentemente encontrado na
vida real, em que cada parte está disposta a alterar o seu comportamento para aco-
modar as necessidades da outra. Enquanto os outros modelos são caracterizados

128
Tradução do autor a partir do texto original em inglês da Encyclopedia of public relations: “[…]
the press agentry or publicity model, the public information model, the two-way asymmetric
model, and the two-way symmetric model. The earliest, which is the press agentry or publicity
model, is described as one-way communication in which truth is not an essential component.
The public information model focuses on publicity, however, to the extent that disseminating
truthful information is central to the practice. The two-way asymmetrical model tries to per-
suade and relies on feedback from stakeholders. On the other hand, the two-way symmetric
model is considered the most sophisticated form of practice because it focuses on mutual un-
derstanding, mediation, and two-way balanced flow of information.”
129
Modelo introduzido por James Grunig.
Paulo M. Barroso
170

pela comunicação do tipo monólogo, o modelo simétrico envolve ideias de diálogo.


Poderia levar a gestão de uma organização a trocar pontos de vista com outros
grupos, possivelmente levando a gestão e o público a serem influenciados e a ajus-
tarem as suas atitudes e comportamentos. A comunicação neste modelo é total-
mente recíproca e as relações de poder são equilibradas. Os termos ‘emissor’ e
‘receptor’ não são aplicáveis a este processo de comunicação, onde o objectivo é o
entendimento mútuo.” (Theaker, 2005, p. 15).130

O modelo simétrico de relações públicas proposto por James Grunig tem


implicações sobre a responsabilidade social das empresas modernas. A teoria si-
métrica bidireccional é uma teoria normativa das relações públicas, um modelo
para atingir a comunicação excelente. O conceito de simetria implica equilíbrio
de interesses entre a organização e os públicos. As acções são precisamente diri-
gidas e a sua eficácia é avaliada. Tudo é realizado em função do quadro ético e
político da organização em questão. Este modelo define a comunicação como
uma operação a dirigir. Para este modelo, a resolução de problemas é a principal
preocupação da comunicação.

5.7. Abordagens/estudos sobre a comunicação


As mais destacadas abordagens ou estudos sobre a comunicação de massas
apresentam perspectivas peculiares que demonstram e justificam a relevância
dos media nas sociedades, principalmente as mais desenvolvidas. Estas aborda-
gens têm pertinência devido aos desenvolvimentos tecnológicos dos media, que
se tornam mais eficazes e influentes, e aos efeitos, cada vez maiores e mais com-
plexos, dos media nas sociedades.

5.7.1. A Mass Communication Research: estudo das audiências


À medida que os meios de comunicação se desenvolvem e começam a ter
audiência e a exercer influência na década de 1930 nos Estados Unidos, os estu-
dos e as investigações sobre a comunicação de massas começam, de um modo
sério e sistemático, gerando um corpo de conhecimentos útil, diferenciado e in-
dependente (Espinar et al., 2006, p. 18). Surgiram, assim, tradições ou correntes
de estudo e de investigação sobre o fenómeno social da comunicação de massas.

130
Tradução do autor a partir do texto original em inglês de Theaker: “This model is sometimes
described as the ‘ideal’ of public relations. It describes a level of equality of communication not
often found in real life, where each party is willing to alter their behavior to accommodate the
needs of the other. While the other models are characterized by monologue-type communication,
the symmetric model involves ideas of dialogue. It could lead an organization’s management to
exchange views with other groups, possibly leading to both management and publics being
influenced and adjusting their attitudes and behaviors. Communication in this model is fully
reciprocal and power relationships are balanced. The terms ‘sender’ and ‘receiver’ are not
applicable in such a communication process, where the goal is mutual understanding.”
Sociologia da Comunicação
171

“A primeira dessas tradições recebeu designações distintas, como Mass Communi-


cation Research, investigação positivista, funcionalista, paradigma dominante, so-
ciologia empírica, sociologia norte-americana da comunicação. Todos estes termos
fazem referência à investigação que, de uma forma predominante, se desenvolveu
nos Estados Unidos, de cariz positivista, empirista e quantitativista, orientada para
a solução de problemas práticos da comunicação e com um início marcadamente
ligado à sociologia funcionalista.” (Espinar et al., 2006, p. 19).131

A Mass Communication Research é uma corrente de investigação sobre a co-


municação social, que se desenvolveu essencialmente nos EUA, a partir dos anos
1930. A motivação para esta corrente são as influências e pressões sociais exerci-
das pelos meios de comunicação de massas (primeiro, a rádio, depois, a televisão)
sobre as audiências. As várias influências e pressões sobre as opiniões, conheci-
mentos, atitudes, comportamentos ou acções das audiências estimulam estudos
de natureza empírica e quantitativa das ditas audiências. O objectivo é conhecer
o número e as características das audiências dos meios de comunicação, designa-
damente as formas de consumo do produto mass-mediático e encaminhar as au-
diências para as empresas anunciantes, que assim podem adequar a mensagem
publicitária às características dos diversos públicos (Espinar et al., 2006, p. 20).
A investigação sobre a comunicação de massas centra-se no estudo das
audiências, nos efeitos dos meios de comunicação, na formação da opinião pú-
blica, nas técnicas de persuasão e propaganda política, mediante uma aplicação
prática directa com orientação empírica (Espinar et al., 2006, p. 22). Os represen-
tantes mais destacados desta corrente de investigação são Harold Lasswell, Kurt
Lewin, Paul Lazarsfeld e Carl Hovland.
Sobre o contributo de Lasswell e o impacto da propaganda na comunicação
de massas, Armand Mattelart e Michèle Mattelart afirmam:
“A primeira peça do dispositivo conceptual da corrente da Mass Communication Re-
search data de 1927. É o livro de Harold D. Lasswell (1902-1978), intitulado Propa-
ganda Techniques in the World War, que extrai as lições da guerra de 1914-18, a
primeira guerra ‘total’. Os meios de difusão apareceram, então, como instrumentos
indispensáveis à ‘gestão governamental das opiniões públicas’, quer as das popu-
lações aliadas quer as dos inimigos. De um modo mais geral, as técnicas de comu-
nicação, do telégrafo e do telefone ao cinema, passando pelas radiocomunicações,
deram um considerável salto. Para Lasswell, propaganda rima doravante com de-
mocracia. A propaganda constitui o único meio de suscitar a adesão das massas;
ela é, ademais, mais barata do que a violência, a corrupção ou outras técnicas de
governação desse estilo. Simples instrumento, não é nem mais nem menos moral

131
Tradução do autor a partir do texto original em espanhol de Espinar et al.: “La primera de esas
tradiciones ha recibido distintos calificativos, como Mass Communication Research, investigación
positivista, funcionalista, paradigma dominante, sociología empírica, sociología norteamericana
de la comunicación. Todos estos términos hacen referencia a la investigación que, de forma
predominante, se ha venido desarrollando en Estados Unidos, de corte positivista, empirista y
cuantitativista, orientada a la solución de problemas prácticos de la comunicación, y con un
inicio marcadamente ligado a la sociología funcionalista.”
Paulo M. Barroso
172

ou imoral do que ‘a manivela da bomba de água’. Tanto pode ser utilizada para
bons como para maus fins. Esta visão instrumental consagra uma representação
da omnipotência dos media, considerados como instrumentos de ‘circulação dos
símbolos eficazes’. O senso comum que prevalece no pós-guerra é que a derrota
dos exércitos alemães se deve, em grande medida, ao trabalho de propaganda dos
Aliados. A audiência é encarada como um alvo amorfo que obedece cegamente ao
esquema estímulo/resposta. O medium é suposto agir segundo o modelo ‘agulha
hipodérmica’, termo criado pelo próprio Lasswell para designar o efeito ou o im-
pacto directo e indiferenciado sobre os indivíduos atomizados.” (Mattelart & Mat-
telart, 1997, p. 31).

Os teóricos funcionalistas, que corporizaram a Mass Communication Re-


search, têm em comum com os teóricos da Escola de Frankfurt a preocupação sobre
a cultura industrializada, homogeneizante e produtivista (e acrítica) criada pelos
meios de comunicação. Enquanto corrente de pensamento sobre os meios de co-
municação e os seus efeitos na sociedade, o funcionalismo sociológico foca-se num
compromisso teórico baseado em dados empíricos. As principais diferenças entre
estas duas principais abordagens de estudo e compreensão da comunicação e dos
seus efeitos nas sociedades são sintetizadas na seguinte tabela:

Mass Communication Research Escola de Frankfurt


EUA (a partir dos anos 1930). Europa (1924-32).

Corrente de investigação. Corrente de pensamento.

Fundamento: constatação do papel dos media na Proposta: reformulação do pensamento marxista


estrutura social, económica e política. e atenção à influência do capitalismo na cultura.

Harold Lasswell; Kurt Lewin; Paul Lazarsfeld. Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter
Benjamin, Herbert Marcuse, Leo Löwenthal, Erich
Fromm, Franz Neumann, Friedrich Pollock, Jürgen
Habermas, etc.
Abordagem funcionalista: perspectiva sobre o Abordagem estruturalista: perspectiva dialéctica
papel dos media nas massas populares. sobre a realidade como totalidade social.

Abordagem aplicada e análise empírica (e.g. Abordagem crítica (à sociedade moderna de


quantificação das audiências). cultura de massas).
 Tabela 13: Diferenças entre as duas principais abordagens sobre a comunicação: a Mass
Communication Research e a Escola de Frankfurt.

Conforme se deduz pela leitura desta tabela e pelo que no seguinte sub-
capítulo 5.7.2. se enuncia, a teoria crítica da Escola de Frankfurt representa a
“contracorrente de muita communication research”, como realça Mauro Wolf
(1992, p. 71).

5.7.2. A Escola de Frankfurt: crítica à sociedade massificada


A Escola de Frankfurt é uma corrente de pensamento crítico e social de
inspiração marxista. Este movimento intelectual surge em 1924 e dilui-se em
Sociologia da Comunicação
173

1932. A Escola de Frankfurt recupera o pensamento de Marx, principalmente na


questão da influência e da massificação das sociedades capitalistas modernas em
termos culturais.
A Escola de Frankfurt foi formada por marxistas dissidentes agregados do
Instituto para Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt: Theodor Adorno,
Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Leo Löwenthal, Erich
Fromm, Franz Neumann, Friedrich Pollock e, mais tarde, Jürgen Habermas, etc.
A Escola de Frankfurt apresenta uma crítica às sociedades modernas e às culturas
de massas. Para esta corrente de pensamento crítico, as indústrias da cultura
controlam e danificam a cultura moderna, abarcando todas as áreas (cinema, te-
levisão, música popular, rádio, imprensa, etc.). Advertem para o perigo de difusão
das indústrias culturais, porque consideram que estas limitam o desenvolvimento
das capacidades dos indivíduos para pensarem de uma forma crítica e indepen-
dente (Espinar et al., 2006, p. 24).
Enquanto teoria crítica, insurge-se contra a “cultura de massa”, pela qual a
arte se torna mercadoria ou até desaparece. Este movimento incide na “superes-
trutura” (mecanismos que determinam a personalidade, a família e a autoridade),
segundo o léxico de Marx.132 A Escola de Frankfurt afasta-se da análise determinista
da infra-estrutura económica e centra-se na superestrutura cultural, ou seja, insiste
no facto de que a ideologia se converte no principal instrumento de dominação
das consciências, permitindo prescindir da coacção explícita e proporcionando as
legitimações do sistema político e económico (Espinar et al., 2006, p. 24).
Para a Escola de Frankfurt, a indústria da cultura133 é a principal respon-
sável pela massificação da sociedade, da cultura, da arte e do conhecimento.
Assim, esta corrente de pensamento crítico denuncia a capacidade destrutiva do
capitalismo, responsável pela estagnação da consciência política, crítica e cultu-
ral. O contexto em que surge a Escola de Frankfurt é marcado pela cultura de
massas como um instrumento importante do êxito do monopólio capitalista, se-
gundo McQuail (cf. 1994, p. 163), pois os mesmos processos de produção em série
de bens, serviços e ideias consolidaram o sistema capitalista e a sua devoção pela
racionalidade tecnológica, o consumismo, a satisfação imediata e o mito da au-
sência de classes.

132
O termo “superestrutura” pertence ao léxico de A ideologia alemã, de Marx e Engels (2007, p.
74), usado para a organização social a partir da produção e do comércio (cf. Bottomore, 1988, p.
27), e relaciona-se com o conceito de “infra-estrutura”. Trata-se de uma metáfora, pois são termos
que se referem a um edifício, mas servem para representar a ideia de que a estrutura económica
da sociedade (a infra-estrutura) condiciona a existência e as formas do Estado e da consciência
social (a superestrutura).
133
Segundo Adorno (cf. 2003a, p. 97), a expressão “indústria da cultura” foi provavelmente utilizada
pela primeira vez no livro Dialéctica do iluminismo que Adorno e Horkheimer publicaram em
1947, referindo-se inicialmente a “cultura de massas”.
Paulo M. Barroso
174

Segundo Adorno, em “Breves considerações acerca da indústria da cultura”,


“os produtos são fabricados mais ou menos segundo um plano, talhados para o
consumo das massas e, em larga medida, determinando eles próprios esse con-
sumo” (Adorno, 2003a, p. 97). As massas são a ideologia da indústria da cultura.
“A indústria da cultura transforma-se em public relations, na mera produção de um
good will, sem ter em conta empresas particulares ou específicos produtos comer-
cializáveis. O que se vende é um consenso acrítico, fazendo-se publicidade para o
mundo de tal modo que cada produto da indústria da cultura é um anúncio publi-
citário a si próprio.” (Adorno, 2003a, p. 99).

A Escola de Frankfurt, enquanto teoria crítica, constituiu um movimento


de intervenção social crítico das perversidades das sociedades industrializadas
e de massas:
“Segundo autores como T. W. Adorno, M. Horkheimer, W. Benjamin, H. Marcuse e J.
Habermas, a análise dos mass media deve levar-se a cabo no seio da mais ampla
análise sobre o sistema social industrial e pós-industrial, de que eles são parte inte-
grante. A análise dos meios de comunicação de massa surge, assim, como inerente
a um aspecto específico da relação indivíduo-sociedade, ou seja, aos mecanismos
de manipulação da consciência individual mediante os quais o sistema capitalista
se impõe à consciência individual. Em nome do bem-estar económico, o homem re-
nuncia à sua liberdade individual, tornando-se uma presa fácil das modas consu-
mistas e uniformizando o seu comportamento com os da massa. Daí, a emergência
de fenómenos como o conformismo e o mimetismo, típicos das sociedades actuais.
No interior desta perspectiva, a função primária dos meios de comunicação de massa
é então a de difundir os valores do consumo, indicando como desejável, bela, ne-
cessária, mas também artística, ora esta ora aquela mercadoria. A sociedade indus-
trial consegue assim perpetuar-se, criando ao mesmo tempo nos indivíduos um
consenso interior, que assegura a sua fidelidade.” (Demartis, 2006, p. 173).

A incidência da Escola de Frankfurt sobre a denominada “indústria da cul-


tura” é central na crítica à cultura de massas. Segundo Giddens:
“A Escola de Frankfurt era constituída por um grupo de autores que se inspiravam
em Marx, mas que, no entanto, acreditavam que os pontos de vista de Marx preci-
savam de ser radicalmente revistos para serem aplicados na actualidade. Entre ou-
tras coisas, acreditavam que Marx não tinha dado atenção suficiente à influência
da cultura na sociedade capitalista moderna. A Escola de Frankfurt fez um estudo
extensivo do que designavam como ‘indústria da cultura’, que para eles abrangia
as indústrias de entretenimento dos filmes, a televisão, a música popular, a rádio,
os jornais e as revistas. Sustentavam que a proliferação da indústria da cultura,
com os seus produtos estandardizados e pouco exigentes, minava a capacidade
dos indivíduos no que diz respeito ao pensamento independente e crítico. A Arte
desaparece, dominada pela comercialização – ‘Os Maiores Sucessos de Mozart’.”
(Giddens, 2008, p. 465).

Os produtos da indústria cultural “paralisam a imaginação e a esponta-


neidade”, porque “são feitos de tal modo que a sua adequada apreensão exige
não só prontidão de instinto, dotes de observação e competência específica como
Sociologia da Comunicação
175

também são feitos para impedir a actividade mental do espectador” (Wolf, 1992,
p. 76). São produtos construídos de propósito para o consumo descontraído e
não comprometedor, i.e. o espectador não deve agir pela sua própria cabeça, pois
o produto prescreve todas as reacções, como justificam Adorno e Horkheimer em
Dialéctica do iluminismo.
No ensaio intitulado “Television and the patterns of mass culture”, Adorno
denuncia a influência e a manipulação das mensagens dos meios de comunicação
de massas ao serviço de uma indústria da cultura, como é o caso da televisão:
“Mas a herança do significado polimórfico foi assumida pela indústria cultural,
pois o que ela [a televisão] transmite torna-se organizado com o objectivo de en-
cantar os espectadores simultaneamente em vários níveis psicológicos. De facto, a
mensagem oculta pode ser mais importante do que aquela que se vê, na medida
em que esta mensagem oculta escapará ao controlo da consciência, não será ‘exa-
minada’, não será evitada pela resistência psicológica às vendas, mas provavel-
mente penetrará na mente do espectador.” (Adorno, 1957, p. 479).134

Enquanto medium peculiar, a televisão “insere-se no esquema abrangente


da indústria da cultura”, diferenciando-se ao “entregar o seu produto em casa
do consumidor” (Adorno, 2003b, p. 161-163). A televisão manipula o público atra-
vés dos efeitos das suas mensagens latentes, que fingem dizer uma coisa e dizem
outra. São mensagens ideológicas. A manipulação do público é pretendida e con-
seguida pela indústria da cultura como forma de domínio sobre as sociedades
(cf. Wolf, 1992, p. 79). O espectador sabe, de antemão, como é que a história de
um filme ou livro, produtos light da indústria da cultura, termina. Em suma, para
a teoria crítica da Escola de Frankfurt:
– O ponto de partida é a análise do sistema da economia de mercado.
– A sociedade é entendida como um todo.
– O indivíduo não está separado nem oposto à sociedade; está em poder
de uma sociedade que o manipula a seu bel-prazer.
– O mercado de massas impõe uma estandardização nos gostos e neces-
sidades do público, promovendo estereótipos e baixa qualidade dos con-
sumos.
– A indústria da cultura massifica a arte e a cultura e nasce nas massas.
– Os meios de comunicação de massas são indústrias da cultura com efei-
tos nefastos e não beneficiam os públicos com o incumprimento das
suas funções sociais.
134
Tradução do autor a partir do original em inglês de Adorno: “But the heritage of polymorphic
meaning has been taken over by cultural industry inasmuch as what it [television] conveys
becomes itself organized in order to enthrall the spectators on various psychological levels
simultaneously. As a matter of fact, the hidden message may be more important than the overt,
since this hidden message will escape the controls of consciousness, will not be ‘looked through,’
will not be warded off by sales resistance, but is likely to sink into the spectator’s mind.”
Paulo M. Barroso
176

– A estrutura e o conteúdo das mensagens dos meios de comunicação de


massas reflectem a estratégia de manipulação da indústria cultural.
– Os produtos da indústria da cultura têm baixa qualidade, mas satisfa-
zem os indivíduos, pois estes são pouco exigentes e acríticos.

Adorno e Horkheimer terão criado o conceito de “dialéctica do esclareci-


mento”, para criticar a razão instrumental (a razão que governa e privilegia a
procura apenas daquilo que pode ser útil ou operacional), que suplantava a razão
objectiva, que admite uma ordem no mundo e um sentido para a vida humana.
A Escola de Frankfurt coloca em relevo o papel fundamental que a ideolo-
gia desempenha nas formas de comunicação nas sociedades modernas, pois os
meios de comunicação seriam os veículos propagadores de ideologias das classes
dominantes, impondo-as às classes populares pela persuasão, manipulação ou
camuflagem.

5.7.3. Estudos culturais


De acordo com Hartley (2004, p. 110), em Comunicação, estudos culturais e
media: Conceitos-chave, os estudos culturais são relativos a:
– “nexos entre consciência e poder – cultura como política”;
– “formação de identidade na modernidade – cultura como vida vulgar”;
– “cultura de entretenimento popular mediatizada – cultura como texto”;
– “expansão da diferença – cultura como plural”.

Os estudos culturais constituem um modelo teórico que incide sobre a co-


municação e os seus efeitos nas sociedades. Surgido nos anos 70 do século XX,
com os pensadores marxistas Raymond Williams e Stuart Hall, os estudos culturais
situam os meios de comunicação no âmago da sociedade, relacionando-os com
instituições e indivíduos (cf. Polistchuk & Trinta, 2003, p. 129). O contributo desta
abordagem é a moldura intelectual necessária à compreensão da dimensão cultu-
ral em que estão envolvidos os indivíduos e as instituições, nas quais se incluem
os media. Por isso, os estudos culturais são considerados uma abordagem cultu-
rológica (uma “lógica [dialéctica] da cultura”) (cf. Polistchuk & Trinta, 2003, p. 129).
Enquanto o receptor é entendido pela teoria crítica como estando desapa-
recido nas massas onde se insere, os estudos culturais consideram o receptor como
alguém com características idiossincráticas e necessidades peculiares, dotado de
capacidades culturais e cognitivas; não é uma abstracção, é um ser concreto com
repertório cultural ao qual recorre quando recebe, selecciona ou interpreta e assi-
mila as mensagens que lhe são destinadas pelos meios de comunicação.
Para os estudos culturais, a comunicação e a cultura estão em estreita
inter-relação. Comunicar não é manipular, como geralmente entende a teoria crí-
Sociologia da Comunicação
177

tica, mas é uma troca simbólica sempre renovada. Os estudos culturais centra-
ram-se nas relações entre a estrutura social, o contexto histórico e a acção dos
meios de comunicação, com o objectivo de determinar como se procede à atri-
buição de sentido à realidade quotidiana em práticas partilhadas (cf. Polistchuk
& Trinta, 2003, p. 131).
“O interesse dos cultural studies centra-se, principalmente, na análise de uma forma
específica de processo social, relativa à atribuição de sentido à realidade, à evolução
de uma cultura, de práticas sociais partilhadas, de uma área comum de significados.
[…] No conceito de cultura, estão englobados quer os significados e os valores, que
surgem e se difundem nas classes e nos grupos sociais, quer as práticas efectivas
através das quais esses valores e esses significados se exprimem e nas quais estão
contidos. Relativamente a tais definições e modos de vida – entendidos como es-
truturas colectivas – os mass media desempenham uma função importante, na me-
dida em que agem como elementos activos dessas mesmas estruturas.” (Wolf, 1992,
p. 94).

A cultura é entendida como um conjunto de significados, valores, expe-


riências, usos e costumes adoptados por uma determinada sociedade, enquanto
os media são concebidos como elementos dinamizadores nas culturas onde se
inserem. Neste contexto, a Sociologia da Comunicação deve expor e compreender
a dialéctica que se instaura entre o sistema social e as transformações do sistema
cultural (cf. Wolf, 1992, pp. 94-95), i.e. as estruturas e processos pelos quais os
meios de comunicação de massas (enquanto instituições sociais) mantêm e re-
produzem a estabilidade social e cultural.
Todavia, os estudos culturais identificam-se com a teoria crítica ao reco-
nhecerem a existência de um sistema cultural dominante que actua sobre os de-
mais por intermédio ou interposição dos meios de comunicação (cf. Polistchuk &
Trinta, 2003, p. 131). Reconhece-se um papel ideológico desempenhado pelos
media sobre a cultura e, consequentemente, sobre todos os indivíduos. Na cultura
são difundidos e circulam fluxos informacionais ortodoxos, com sentidos prefe-
renciais e ideologicamente codificados pelos media. Ao contrário da teoria crítica,
defende-se um mínimo grau de liberdade para os indivíduos apreenderem esses
sentidos, pois parte do público, que é diferenciado, pode reconhecer e interpretar
os sentidos veiculados à sua maneira, ou seja, de um modo heterodoxo. As reac-
ções dos indivíduos aos conteúdos que recebem dos media (e.g. de um programa
de televisão) são heterogéneas.

5.8. Questões para revisão e reflexão


1. O que é que nos aponta para o facto de que estamos a viver numa so-
ciedade da informação?
2. Os media são a causa ou o efeito da mudança social?
Paulo M. Barroso
178

3. De acordo com a caracterização dos públicos de Gabriel Tarde, quais


são os traços fundamentais da opinião pública?
4. Segundo McQuail, quais são as principais perspectivas acerca do papel
dos media na sociedade?
5. Como se explica a emergência de uma opinião pública iluminada? Esta
será consequência ou causa do papel dos media na sociedade?
6. Qual é a relação entre formação da opinião pública e massificação das
sociedades?
7. Como diferenciar o processo de socialização e o processo de influência
moral ou doutrinação dos meios de comunicação social?
8. Como é que as pessoas formam concepções sobre o que acontece no
mundo? Como é que seleccionam uma parte das mensagens que rece-
bem? Como é que processam essas mensagens e como é que as retrans-
mitem? Como é que se informam, formam juízos e agem em
conformidade?
9. Qual é o papel dos media na formação de uma espiral do silêncio?
10. O que é a Escola de Frankfurt e o que defende/critica? Qual é o papel
dos media na crítica às indústrias culturais por parte da Escola de
Frankfurt?
11. Os media aumentam ou diminuem a conformidade social?
12. Os media fortalecem ou enfraquecem as instituições sociais?
13. Os media beneficiam ou prejudicam a formação cívica e intelectual
dos seus públicos?
14. Os media esclarecem ou controlam e manipulam a opinião pública?
Sociologia da Comunicação
179

6. Luhmann: a sociedade como sistema de


comunicação
“A comunicação acontece apenas se alguém a entende pelo menos
aproximadamente ou talvez até não a entenda; em qualquer caso,
alguém deve entender o suficiente para que a comunicação possa continuar.”135
(Luhmann, 2013, p. 54).

Niklas Luhmann (1927-1998) enfatiza a relação entre a comunicação e a


sociedade. A sociedade é um sistema do qual faz parte a comunicação. A comu-
nicação é imprescindível e funciona para afirmar o próprio sistema. Conforme
Luhmann reconhece em Introdução à teoria dos sistemas,136 o sistema depende da
comunicação (cf. Luhmann, 2013, p. 210). Luhmann atribui, deste modo, mais
importância ao sistema social do que aos indivíduos (sujeitos ou agentes de co-
municação) que o integram. Para Luhmann, a comunicação é o elemento ou dis-
positivo mais fundamental dos sistemas. Sem comunicação, os sistemas não
evoluem nem são sistemas, pois um sistema é caracterizado pelo dinamismo. A
comunicação dá dinamismo ao sistema e regula as relações sociais no sistema.
Para Luhmann, os sistemas sociais são simbolicamente constituídos, são entida-
des limitadas produzidas através da comunicação humana, constituindo estru-
turas de significado dentro das quais as pessoas vivem as suas vidas (cf. Scott,
2007, p. 166).

6.1. A improbabilidade da comunicação


A perspectiva de Luhmann sobre a comunicação é cibernética e problema-
tizante. Cibernética,137 porque privilegia a condução e regulação do processo de co-
municação no sistema; problematizante, porque incide sobre os obstáculos que se
atravessam no processo de comunicação, como é o caso da improbabilidade da co-
municação, ou seja, a perspectiva de Luhmann questiona as condições de impro-
babilidade da comunicação, havendo a necessidade de eventuais ajustamentos.
Estas condições de improbabilidade da comunicação pressupõem vários
tipos de selectividade, pois Luhmann entende a comunicação como um processo
selectivo que regula as relações sociais. Para Luhmann, a comunicação é um pro-
cesso de selecções de três níveis distintos:

135
Tradução do autor a partir da edição consultada em inglês de Luhmann: “Communication
happens only if somebody understands it at least roughly or perhaps even misunderstands it;
in any case, somebody must understand enough so that communication can continue.”
136
Tradução do título Introduction to systems theory, que é a edição em inglês utilizada neste livro
(cf. Luhmann, 2013).
137
Conforme o termo original grego kubernetikê, arte ou técnica de pilotar, governar, conduzir.
Paulo M. Barroso
180

1. Selecções na produção de conteúdos informativos (e.g. idiossincrasia,


individualismo da consciência).
2. Selecção na transmissão ou difusão de conteúdos informativos (e.g. pre-
disposição no momento de transmitir, decisão do que é transmitido).
3. Selecção na recepção de conteúdos informativos (e.g. contexto, inte-
resses).

A improbabilidade da comunicação é um problema, porque a comunicação


apenas acontece e prossegue como processo se existir alguma (mínima) com-
preensão (cf. Luhmann, 2013, p. 54). Por exemplo, quando o processo de comu-
nicação se inicia, existe logo à partida a questão da improbabilidade da
compreensão da comunicação. Esta improbabilidade da compreensão é justificada
pela condição natural do emissor, que é um indivíduo com subjectividades ine-
rentes. Aquilo que se quer transmitir, escolhendo-se, para o efeito, os termos e
os modos que são considerados mais apropriados ou que são o resultado de idios-
sincrasias (nível 1 de selecção) é, por vezes, diferente daquilo que se transmite
(nível 2 de selecção) e é igualmente diferente daquilo que o destinatário recebe
(nível 3 de selecção).
Por outro lado, a comunicação funciona apenas se uma consciência estiver
presente, ou seja, se houver alguém que preste atenção ao processo de comuni-
cação, segundo Luhmann (cf. 2013, p. 196), e isso nem sempre é observado na
comunicação.
Em A improbabilidade da comunicação, Luhmann (2006a, p. 39) começa por
referir que “sem comunicação não existem relações humanas nem vida humana
propriamente dita”. Eleva-se a importância da comunicação para as relações so-
ciais e para o próprio sistema social. “Sem comunicação não podem formar-se
sistemas sociais” (Luhmann, 2006a, p. 43). Todavia, o mais paradoxal, depois
deste reconhecimento, é a abordagem que se desenvolve sobre a comunicação
como problema. Luhmann considera que a comunicação é improvável, apesar
de, todos os dias, experimentarmos e praticarmos a comunicação, pois não po-
demos viver sem ela (cf. Luhmann, 2006a, p. 41). A improbabilidade da comuni-
cação é uma dupla adversidade:
i) Primeiro, porque é uma dificuldade para a comunicação acontecer, pois
a comunicação não é provável (a comunicação é um problema).
ii) Segundo, a improbabilidade da comunicação, que é um problema em
si, tornou-se imperceptível e isso é uma outra adversidade.

Ao tornar-se imperceptível, exige-se um esforço suplementar: superar uma


série de dificuldades e problemas da comunicação para que esta aconteça e con-
siga produzir os resultados pretendidos e esperados:
Sociologia da Comunicação
181

“Em primeiro lugar, é improvável que alguém compreenda o que o outro quer dizer,
tendo em conta o isolamento e a individualização da sua consciência. O sentido só
se pode entender em função do contexto, e para cada um o contexto é, basica-
mente, o que a sua memória lhe faculta. A segunda improbabilidade é a de aceder
aos receptores. É improvável que uma comunicação chegue a mais pessoas do que
as que se encontram presentes numa situação dada. O problema assenta na exten-
são espacial e temporal. […] A terceira improbabilidade é a de obter o resultado
desejado. Nem sequer o facto de que uma comunicação tenha sido entendida ga-
rante que tenha sido também aceite.” (Luhmann, 2006a, pp. 42-43).

A perspectiva de Luhmann sobre a comunicação é original e paradoxal: di-


fere da tendência geral e simples em entender a comunicação como transmissão
de informações entre um emissor e um receptor. Para Luhmann, a comunicação
envolve um processo muito mais complexo e problemático. A comunicação não
é uma mera transmissão nem é dada como garantida; a comunicação é proble-
mática e (imperceptivelmente) improvável.

6.2. Acção, comunicação e sistemas sociais


Na teoria da comunicação de Luhmann, a socialidade não é nenhum caso
especial de acção; nos sistemas sociais, a acção constitui-se por meio da comu-
nicação.138 Em Sistemas sociais,139 Luhmann reforça a ideia de que não se pode se-
parar a comunicação e a acção, pois o processo elementar que constitui o social
como realidade especial é um processo comunicacional (cf. Luhmann, 1996, p.
141). A comunicação é acção; é acção selectiva (cf. Luhmann, 1996, p. 142). A co-
municação é uma operação que se reproduz a si mesma continuamente (cf. Luh-
mann, 2013, p. 80).
Em A realidade dos mass media,140 Luhmann começa por enaltecer o papel
da comunicação na sociedade, afirmando que o que quer que seja que sabemos
sobre a nossa sociedade, ou acerca do mundo onde vivemos, sabemo-lo por inter-
médio dos mass media (cf. Luhmann, 2000, p. 1). Esta tomada de posição reforça
a importância da comunicação e dos meios de comunicação de massas no sistema,

138
Luhmann faz questão de distinguir a sua concepção de comunicação da teoria da acção
comunicativa de Habermas, nomeadamente na questão do consenso produzido pelo acto de
comunicação na teoria de Habermas (cf. Luhmann, 2013, pp. 205-206). O que vem depois do
consenso? Luhmann também discorda da distinção de Habermas entre acção estratégica e acção
comunicativa, preferindo atribuir mais relevância à continuação temporal e sequencial do
processo de comunicação, o que o autor designa por autopoiesis da comunicação, i.e. a auto-
reprodução da vida por aqueles elementos que, por sua vez, foram produzidos no e pelo sistema
de vida (cf. Luhmann, 2013, p. 43).
139
Tradução do título em inglês Social systems, que é a edição utilizada neste livro (cf. Luhmann,
1996).
140
Tradução do título The reality of the mass media, que é a edição em inglês utilizada neste livro (cf.
Luhmann, 2000).
Paulo M. Barroso
182

na sociedade, que constrói. Segundo Luhmann (cf. 2013, p. 61), o que quer que
aconteça na sociedade é comunicação. De certo modo, a construção do sistema
por parte dos meios de comunicação estende-se à opinião pública, que também é
formada como o resultado da acção dos media (cf. Luhmann, 2013, p. 115).
Luhmann apresenta uma concepção de opinião pública, realçando o seu
papel social pela negativa. Nos seus estudos sobre comunicação de massas, con-
sidera que a opinião pública perdeu o seu significado original: deixou de ser o
resultado da discussão racional sobre temas de interesse público, por parte dos
indivíduos integrados na sociedade civil, para se converter na coincidência da
atenção geral sobre um tema, aquele que, por diversas circunstâncias, se consi-
dera mais relevante do que outros.
Um dos principais focos de análise de Luhmann tem a ver com a comuni-
cação pública, sobre a qual é importante saber:
– Como é que se elaboram os temas/assuntos?
– Como é que os temas passam a ser de interesse prioritário?
– Como é que alguns temas substituem outros?

Segundo Luhmann, a opinião pública cumpre a sua função quando con-


segue levar um tema à discussão pública, à mesa das negociações (Espinar et al.,
2006, p. 44). Considera-se que:
– Existem sempre demasiados temas.
– Há temas prioritários (mais urgentes) relativamente a outros.
– A selecção dos temas decorre de regras de atenção.
– Existe uma ordem nos acontecimentos que dão origem aos temas.

Então, Luhmann conclui que são os media que criam e mantêm a atenção
e o diálogo público sobre os temas (Espinar et al., 2006, p. 45), seguindo o prin-
cípio do agenda-setting. Os media usam mecanismos para seleccionar aconteci-
mentos, convertê-los em notícias e opiniões, estruturar temas e mantê-los na
ordem do dia.
Os estudos e a perspectiva de Luhmann constituem uma teoria da socie-
dade como sociologia da comunicação, assente nos seguintes pressupostos:
– As sociedades formam-se com pessoas e relações sistemáticas entre
pessoas.
– As sociedades são constituídas e integradas pelo consenso e pela com-
plementaridade de opiniões e objectivos comuns.
– As sociedades são unidades regionais, geograficamente delimitadas.

Nestes moldes assenta a teoria sistémica da comunicação, em que o con-


senso e a complementaridade são produtos de processos sociais e não elementos
Sociologia da Comunicação
183

constitutivos: a constituição e integração social não se dão por consenso, mas


pela criação de identidades, referências, valores próprios e objectos através de
processos de comunicação.
A teoria dos sistemas concebe a realidade complexa como um sistema,
cujos elementos interagem, segundo um modelo de circularidade. Nesse sistema,
todos os elementos condicionam-se mutuamente. “O significado de cada ele-
mento singular não se busca, portanto, no próprio elemento, mas no sistema de
relações em que ele está inserido” (Demartis, 2006, p. 24). Ocorrem fenómenos
no sistema em recíproco relacionamento. Os sistemas não são estáticos; são di-
nâmicos, estão em constante evolução e interacção.
Segundo esta teoria, o sistema social é composto apenas por comunicações
(mensagens e informação). A teoria sistémica surge como a melhor adequação à
sociedade global sem fronteiras de comunicação, onde o sentido das sociedades
territoriais desaparece.
O que são os sistemas sociais? Os sistemas sociais são estruturas de liga-
ções comunicativas, que produzem e processam informações. A informação é
tida no sentido de “novidade” e não simplesmente como qualquer mensagem
transmitida ou recebida. Uma mensagem, um símbolo ou um código transforma-
se em “informação” quando produz um efeito selectivo num sistema. Um sistema
social é constituído por comunicações, por interacções que contêm informação.
Comunicações conectam comunicações. O sistema cessa quando a comunicação
acaba. Por conseguinte, os sistemas sociais são auto-organizados e auto-produ-
tivos, uma espécie de autopoiesis.
No ensaio “The concept of society”, Luhmann parte do conceito de “co-
municação” e transpõe a teoria sociológica do conceito de “acção” para o de “sis-
tema” (cf. Luhmann, 1992, p. 73). Para Luhmann, apenas com o conceito de
“comunicação” um sistema social pode ser concebido como um sistema auto-
poiético, i.e. um sistema de elementos (nomeadamente comunicações) que pro-
duz e reproduz através das comunicações. Luhmann desenvolve uma concepção
de sociedade como um sistema autopoiético e caracteriza o funcionamento re-
produtivo do sistema como comunicação. Segundo Luhmann, o conceito de “co-
municação” é um factor decisivo na determinação do conceito de “sociedade”.
Uma sociedade é definida dependendo de como a comunicação é definida. Luh-
mann explica que o conceito de “comunicação” não pode ser reduzido a uma
acção comunicativa e registar a concordância de outras pessoas, seja como mero
efeito dessa acção, bem como implicação normativa (no sentido de Habermas)
nem pode ser compreendido como a transmissão de informações de um lugar
para outro. Na teoria dos sistemas e na teoria da comunicação, o conceito de “co-
municação” permite afirmar que toda comunicação só pode ser produzida por
meio da comunicação (Luhmann, 1992, p. 72).
A comunicação de massas exerce efeitos sociais, porque:
Paulo M. Barroso
184

– Os media possuem o poder de influência sobre as massas.


– Existem múltiplas relações entre os media e o campo social (no domínio
da política, cultura, economia, etc.).
– Atribui-se uma maior importância aos estudos sobre os meios de comu-
nicação social e as suas influências.
– Reconhece-se a necessidade de interrogar sobre os efeitos dos media no
público.

Todavia, os efeitos ou influências dos media na sociedade não são mecâni-


cos nem uniformes; são indirectos, difusos e diferenciados. A comunicação tam-
bém é genuinamente social, pois de nenhum modo e de nenhum sentido pode
produzir-se uma consciência colectiva comum. A comunicação funciona sem que
possa chegar a um consenso no pleno sentido de um acordo verdadeiramente
completo. A comunicação é uma unidade imprescindível de um sistema social. A
comunicação é autopoiética, na medida em que apenas se produz em relação re-
cursiva com outras comunicações e, portanto, somente numa estrutura cuja re-
produção coincida com cada uma das comunicações (cf. Luhmann, 2006b, p. 58).
Portanto, a sociedade é um sistema de comunicação, além de ser um sistema so-
cial de múltiplas e permanentes relações entre todos os seus elementos consti-
tuintes.

6.3. Questões para revisão e reflexão


1. O que são sistemas sociais e qual é, nesses sistemas, o papel dos meios
de comunicação?
2. Os meios de comunicação de massas ampliam ou reduzem a possibili-
dade de um debate público aberto?
3. Como é que se elaboram os temas/assuntos mais relevantes e como é
que os mesmos passam a ser de interesse prioritário?
Sociologia da Comunicação
185

7. Habermas: pragmática universal


“O mundo criado pelos meios de comunicação de massa só na aparência ainda é esfera pública.
[…] no âmbito da esfera pública estabelecida, os meios de
comunicação de massa surgem apenas como transmissores de propagandas.”
(Habermas, 2003, pp. 202 e 253).

A obra de Habermas (1929- ) pode ser compartimentada em cinco tópicos


gerais de investigação:
i) A teoria pragmática do significado.
ii) A teoria da racionalidade comunicativa.
iii) O programa da teoria social.
iv) O programa da ética do discurso.
v) O programa da teoria democrática e legal ou teoria política.

Para a Sociologia da Comunicação interessarão todos estes tópicos, mas


mais os tópicos i), ii) e iv), que envolvem a interacção entre a comunicação e a
sociedade. A concepção de Habermas sobre o conjunto da sua própria obra de
teoria crítica, vista no geral como um programa de investigação em desenvolvi-
mento, consiste numa teoria geral da comunicação ou uma pragmática universal,
que segue a fase seguinte de servir como base para uma teoria geral da sociali-
zação ou teoria da aquisição da competência comunicativa, culminando numa
teoria da evolução social.
Num ensaio intitulado O que é a pragmática universal?, de 1976, Habermas
explica que a tarefa da pragmática universal é identificar e reconstruir as condi-
ções universais de possível entendimento (Verständigung).
“A função da pragmática universal é identificar e reconstruir condições universais
de possível compreensão mútua [Verständigung]. Noutros contextos, fala-se igual-
mente em ‘pressupostos gerais de comunicação’, embora, pessoalmente, prefira-
mos falar em pressupostos gerais de acção comunicativa, visto que encaramos
como fundamental o tipo de acção que é adoptado com o objectivo de se conseguir
entendimento. Partimos assim do princípio (cuja validade não vamos tentar de-
monstrar nesta obra) de que outras formas de acção social (por exemplo, o conflito,
a competição e as acções estratégicas de um modo geral) derivam da acção orien-
tada para o entendimento [verständigung]. Além disso, dado que a linguagem é o
meio específico de se atingir esse objectivo no estádio sócio-cultural da evolução,
é nosso objectivo dar um passo mais à frente e isolar as acções de discurso especí-
ficas de outras formas de acção comunicativa. Ignoremos assim as acções não ver-
bais e as expressões culturais.” (Habermas, 2002a, pp. 9-10).

Para a acção comunicativa alcançar o entendimento que se propõe, exis-


tem pressupostos, tal como qualquer outra acção social. Segundo Habermas,
qualquer pessoa que actue comunicativamente deve, ao executar qualquer acção
Paulo M. Barroso
186

de fala, apresentar reivindicações de validade universal e supor que estas possam


ser justificadas ou redimidas. Se essa pessoa pretende exercer uma acção comu-
nicativa e efectivamente a realiza, é porque previamente deseja participar num
processo social para alcançar o entendimento. Ao participar nesse processo, não
pode evitar reivindicações de validade:
a) Pronunciar algo compreensível.
b) Dar [ao ouvinte] algo para entender.
c) Tornar-se ele próprio, por conseguinte, compreensível.
d) Chegar a um entendimento com outra pessoa (Habermas, 2002a, p. 12).

Segundo Habermas, a acção comunicativa será e permanecerá aceitável e


estável se estes requisitos de validade forem cumpridos:
“Em todo este processo, o falante deve escolher uma forma de expressão inteligível
(verständlich), de forma a que tanto ele como o ouvinte possam compreender-se um
ao outro. O falante deverá ter intenção de comunicar uma proposição verdadeira
(wahr) – ou seja, um conteúdo proposicional, cujas pressuposições existenciais es-
tejam satisfeitas – de forma a que o ouvinte possa partilhar o conhecimento do fa-
lante. Este último deverá assim pretender exprimir as suas intenções de uma forma
verdadeira (Wahrhaftig), de forma a que o ouvinte possa considerar o seu discurso
credível (ou seja, digno de confiança). Por fim, o falante deverá escolher um discurso
que esteja correcto (richtig) no que respeita às normas e valores permanecentes,
de forma a que o ouvinte possa aceitá-lo e que ambos possam, neste discurso, con-
cordar mutuamente no que toca a uma base normativa reconhecida. Além de tudo
isso, a acção de comunicação só poderá permanecer intacta enquanto todos os par-
ticipantes supuserem que as pretensões de validade que reciprocamente efectuam
são apresentadas justificadamente.” (Habermas, 2002a, p. 12).

O objectivo da vida em sociedade (a sociabilidade) e da prática comunica-


tiva (a comunicabilidade) é chegar a um entendimento e conseguir um acordo
assente no conhecimento compartilhado e na confiança mútua. Habermas
(2002a, p. 13) esclarece que o acordo é baseado no reconhecimento das reivindi-
cações de validade correspondentes de compreensibilidade, verdade, veracidade
e rectidão, mas também reconhece que a palavra “entendimento” é ambígua. O
entendimento tanto significa que dois interlocutores entendem uma expressão
linguística da mesma maneira como significa que, entre os dois, existe um acordo
relativo à correcção de um enunciado em relação a um contexto normativo mu-
tuamente reconhecido (Habermas, 2002a, p. 13).
Todas as acções comunicativas devem ser pautadas por este fundo nor-
mativo da pragmática universal, seguindo rotinas, papéis, formas convencionais
de comunicação para o entendimento. Caso contrário, a acção comunicativa per-
maneceria indeterminada.
“No seu todo, as acções de comunicação tanto podem satisfazer como violar as ex-
pectativas ou convenções sociais normativas. Satisfazer uma destas convenções
através de uma acção significa que um sujeito capaz de falar e agir estabelece uma
Sociologia da Comunicação
187

relação interpessoal com pelo menos mais um sujeito. Assim, o estabelecimento


de uma relação deste tipo é um critério que não é suficientemente selectivo para
os nossos fins.” (Habermas, 2002a, p. 58).

Habermas apresenta a acção e a razão comunicativas como um caso para-


digmático de acção e de razão explícitas, orientadas para alcançar o entendimento
(Habermas, 2010c, p. 158). A acção comunicativa é a acção cujo sucesso depende
da resposta do receptor às pretensões de validade colocadas pelo emissor.
As pretensões de validade são de três tipos:
1. Pretensões de verdade sobre o que é afirmado ou pressuposto.
2. Pretensões de rectidão normativa do acto do discurso num dado con-
texto.
3. Pretensões de veracidade do falante.

A acção comunicativa é uma “interacção simbolicamente mediada”, que


se rege por “normas vinculativas que definem expectativas de comportamento
mútuas e têm de ser compreendidas e aceites por pelo menos dois sujeitos agen-
tes”, segundo Habermas (2010b, p. 39) em “Prelecções para uma fundamentação
linguística da sociologia”.

7.1. Esfera pública: o público e o privado


Os conceitos de “esfera pública” e “público” são polissémicos. Habermas
reconhece a dificuldade em defini-los, mas adianta que ambos estão subjacentes
à ideia de algo (e.g. eventos ou ocasiões) que se tornam acessíveis a todos, abertos
à participação de quem quiser, ao contrário dos que são fechados, privados ou
exclusivos. O carácter de possuir publicidade (no sentido de algo tornado público)
ajuda a entender o que é a esfera pública e o público. Em Mudança estrutural da
esfera pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa,141 Ha-
bermas desenvolve uma crítica imanente à categoria de esfera pública, i.e. de pu-
blicidade, transparência e abertura. Segundo Habermas:
“O sujeito dessa esfera pública é o público enquanto portador da opinião pública;
a sua função crítica é que se refere a ‘publicidade’ (Publizität) como, por exemplo,
o caráter público dos debates judiciais. No âmbito dos mídias, a ‘publicidade’ cer-
tamente mudou de significado. De uma função da opinião pública tornou-se tam-
bém um atributo de quem desperta a opinião pública; public relations, nome com
que recentemente foram batizados os ‘relacionamentos com o público’ e que têm
por objetivo produzir tal publicity. – A própria ‘esfera pública’ se apresenta como
uma esfera: o âmbito do que é setor público contrapõe-se ao privado. Muitas vezes
ele aparece simplesmente como a esfera da opinião pública que se contrapõe dire-
tamente ao poder público. Conforme o caso, incluem-se entre os ‘órgãos da esfera
pública’ os órgãos estatais ou então os mídias que, como a imprensa, servem para
que o público se comunique.” (Habermas, 2003, pp. 14-15).

141
Obra originalmente publicada em 1962.
Paulo M. Barroso
188

Ao desenvolver o conceito de “esfera pública”, Habermas pretende definir


a ideia de espaços ou ambientes próprios onde as pessoas entram e se expressam
livremente para discutir questões de interesse colectivo. Em Imaginários sociais
modernos, Charles Taylor considera, a respeito de Mudança estrutural da esfera
pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa, que:
“Um tema central do livro de Habermas é a emergência na Europa ocidental sete-
centista de um novo conceito de opinião pública. Publicações dispersas e intercâm-
bios de grupos pequenos ou locais redundam num debate mais vasto, do qual
emerge a opinião pública de toda uma sociedade. Por outras palavras, entende-se
que pessoas espacialmente afastadas, mas partilhando a mesma visão, se associa-
ram numa espécie de espaço de discussão, onde puderam trocar ideias com outras
e alcançar este ponto final comum.” (Taylor, 2010, p. 88).

Na obra de Habermas acima mencionada, este conceito assim caracteri-


zado por Habermas revela as estruturas de poder associadas ou subjacentes à
dita esfera pública, podendo conduzir, assim, para a mudança social (cf. Bell, Loa-
der, Pleace & Schuler, 2005, p. 130). O conceito de “esfera pública” possui um sen-
tido abstracto, impreciso e abrangente, mas serve para a crítica e a acção social.
“De acordo com Habermas, os ideais do Iluminismo histórico – liberdade, solida-
riedade e igualdade – estão implícitos no conceito de esfera pública e fornecem o
padrão de crítica imanente. Por exemplo, a sociedade burguesa dos séculos XVIII e
XIX pode ser criticada por não viver conforme os seus próprios ideais.” (Finlayson,
2005, p. 9).142

Em Mudança estrutural da esfera pública: Investigações quanto a uma cate-


goria da sociedade burguesa, Habermas define a emergência de um raciocínio pú-
blico exterior ao público literário dos salões, clubes e cafés da Europa do século
XVIII (Habermas, 2003, p. 45) e também retrata o seu gradual declínio e desinte-
gração. O advento de um conjunto de liberdades (de imprensa, de pensamento,
de expressão e opinião, de acção) foi cimentado por um contexto político e social
favorável ao desenvolvimento da esfera pública como espaço:
– Político e liberal, central na polis e centro das dinâmicas sociais e das
acções políticas colectivas.
– Discursivo, propício à formação e expressão de opiniões.
– De sociabilidade, fomentador de interacções sociais.
– De mediação, propenso à veiculação e disseminação de ideias, ideais,
valores, críticas, opiniões e informações, também por parte dos media.

142
Tradução do autor a partir do texto original em inglês de Finlayson: “According to Habermas,
the ideals of the historical Enlightenment – liberty, solidarity, and equality – are implicit in the
concept of the public sphere and provide the standard of immanent criticism. For example, 18th-
and 19th-century bourgeois society can be criticized for not living up to its own ideals.”
Sociologia da Comunicação
189

Nas concepções mais recentes e acutilantes sobre a opinião pública, des-


taca-se a de Habermas pela sua complexidade e pragmatismo. Ao interessar-se
sobre a comunicação de massas e sobre a sociedade e participação política, Mu-
dança estrutural da esfera pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade
burguesa estabelece a distinção entre “público” e “privado” para sustentar a con-
cepção de opinião pública como manifestação de atitudes.
“A esfera pública é um espaço de debate público onde se podem discutir questões
de interesse geral e uma área na qual se podem formar opiniões. A esfera pública,
segundo Habermas, desenvolveu-se, primeiro, nos salões e cafés de Londres e Paris
e outras cidades europeias. […] Contudo, Habermas conclui que o que se esperava
deste desenvolvimento inicial da esfera pública não se realizou totalmente. O de-
bate democrático é abafado, nas sociedades modernas, pelo desenvolvimento da
indústria da cultura. O desenvolvimento dos meios de comunicação social de mas-
sas e o entretenimento de massas leva a que a esfera pública se torne, em grande
parte, um logro. A política é encenada no parlamento e nos meios de comunicação
social, ao mesmo tempo que os interesses comerciais triunfam sobre os interesses
do público. A opinião pública não se forma através de uma discussão aberta e ra-
cional, mas sim através da manipulação e do controlo – como, por exemplo, na pu-
blicidade.” (Giddens, 2008, p. 455).

Habermas analisa as condições comunicativas sob as quais se forma a opi-


nião pública nas sociedades actuais, tendo por base duas dimensões para a opi-
nião pública:
a) A opinião pública como instância crítica dos cidadãos face às instituições.
b) A opinião pública como instância receptiva dos cidadãos isolados (Es-
pinar et al., 2006, p. 41).

Habermas entende que a comunicação está voltada para o entendimento


entre falantes e defende que é possível extrair regras de acção com conteúdo
normativo (pragmática discursiva universal) a partir da estrutura da linguagem.
Regras que condicionam determinadas formas de agir e que traduzem acções e
comportamentos éticos.
Habermas considera que o público é o que tem interesse geral e
envolve/afecta o cidadão enquanto membro de uma sociedade. Para Habermas,
a esfera pública é do âmbito da vida social, aberto a todos os indivíduos, no qual
se pode constituir uma opinião pública. Os cidadãos são públicos reunidos e con-
certados com liberdade e racionalidade, sem pressões e com garantia de poder
manifestar e publicar livremente opiniões.
Os públicos amplos requerem formas de comunicação social, meios de
transferência e influência (meios da esfera pública). A função da opinião pública
é, para Habermas, legitimar o domínio público por meio de um processo crítico
de comunicação, sustentado em princípios de argumentação e de consenso racio-
nalmente motivado (Espinar et al., 2006, p. 43) no espaço público de discussão.
Paulo M. Barroso
190

7.2. Acção comunicativa vs. acção estratégica


A partir do conceito de racionalidade de Weber, Habermas desenvolve, em
Técnica e ciência como ‘ideologia’, a ideia de racionalização da acção ou prática de
comunicação. A racionalização é a “ampliação das esferas sociais, que ficam sub-
metidas aos critérios da decisão racional” (Habermas, 2006, p. 45). É a racionali-
zação da sociedade, que depende da institucionalização do progresso científico
e técnico e que corresponde à “tecnificação” do social, da acção instrumental, da
comunicação, pois “só quando os homens comunicarem sem coação e cada um
se reconhecer no outro, poderia o género humano reconhecer a natureza como
um outro sujeito”. Em Técnica e ciência como ‘ideologia’, Habermas critica a razão
instrumental imposta pelo domínio da técnica:
“A superioridade do modo de produção capitalista sobre os anteriores funda-se nas
duas coisas seguintes: na instauração de um mecanismo económico que garante a
longo prazo a ampliação dos subsistemas da acção racional teleológica, e na criação
de uma legitimação económica sob a qual o sistema de dominação pode adaptar-
se às novas exigências de racionalidade desses subsistemas progressivos. Max
Weber concebe esse processo de adaptação como ‘racionalização’.” (Habermas,
2006, p. 65).

As formas tradicionais, incluindo a rede de notícias e da comunicação,


ficam sujeitas às condições de racionalidade instrumental ou estratégica, sur-
gindo a infra-estrutura de uma sociedade sob a coação à modernização, que se
apodera das esferas vitais, como a da comunicação (Habermas, 2006, p. 65).
“Desde o final do século XIX, impõe-se cada vez com mais força a outra tendência
evolutiva que caracteriza o capitalismo tardio: a cientificação da técnica. No capita-
lismo sempre se registou a pressão institucional para intensificar a produtividade
do trabalho por meio da introdução de novas técnicas. As inovações dependiam,
porém, de inventos esporádicos que, por seu lado, podiam sem dúvida ser introdu-
zidos economicamente, mas tinham ainda um carácter natural. Isso modificou-se,
na medida em que a evolução técnica é realimentada com o progresso das ciências
modernas. Com a investigação industrial de grande estilo, a ciência, a técnica e a
revalorização do capital confluem num único sistema. […] Deste modo, a ciência e
a técnica transformam-se na primeira força produtiva e caem assim as condições
de aplicação da teoria marxista do valor-trabalho.” (Habermas, 2006, p. 72).

A ciência e a técnica tornam-se “ideologia” e formam um sistema com-


plexo técnico-científico sujeito à produção industrial. Segundo Jean-François Dor-
tier (2006, p. 247), a razão não se reduz, todavia, à sua dimensão utilitária, pois
tem também uma finalidade comunicacional que resiste na linguagem e que as-
pira à intercompreensão. Surge, assim, a acção comunicativa, que não é nem ins-
trumental nem estratégica. A acção comunicacional constitui, segundo
Habermas, um conceito político pertinente, pois permite pensar a democracia e
a participação do indivíduo no espaço público, fundando-se a discussão em vez
da dominação.
Sociologia da Comunicação
191

Em O que é a pragmática universal? Habermas esclarece que não pretende


incorporar a acção comunicativa (aquela que é orientada para alcançar o enten-
dimento) em outros tipos de acção, porque distinguem-se a acção comunicativa e
a acção estratégica. Para Habermas (2002a, pp. 65-66), a acção estratégica (aquela
que é orientada para o sucesso do agente, identificando-se com modos de acção
que correspondem ao modelo utilitário de acção racional-proposicional) e a acção
simbólica (aquela que corresponde a modos de acção que estão vinculados a sis-
temas não-proposicionais de expressão simbólica, como a música ou a dança) di-
ferem da acção comunicativa, pois as reivindicações individuais de validade são
suspensas (na acção estratégica, veracidade; na acção simbólica, verdade).
Em Técnica e ciência como ‘ideologia’, Habermas distingue a acção estraté-
gica da acção comunicativa, afirmando:
“A acção estratégica distingue-se das acções comunicativas que ocorrem sob tradi-
ções comuns, em virtude de a decisão entre possibilidades alternativas de escolha
poder e ter de tomar-se de forma fundamentalmente monológica, isto é, sem um
entendimento ad hoc.” (Habermas, 2006, p. 22).

Já em “Acções, actos de fala, interacções linguisticamente mediadas e o


mundo vivo”, pode entender-se a distinção entre acção comunicativa e acção es-
tratégica, duas variáveis da interacção, na base da racionalidade dos actos de
fala face ao entendimento obtido:
“A acção comunicativa pode assim ser distinguida da acção estratégica no seguinte
aspecto: a bem sucedida coordenação da acção não assenta na racionalidade pro-
positada dos respectivos planos de acção específicos, mas sim no poder racional-
mente motivante do cumprimento dos feitos de se obter entendimento, isto é,
numa racionalidade que se manifesta nas condições para um acordo racionalmente
motivado.” (Habermas, 2002b, p. 111).

Na acção comunicativa, os participantes coordenam entre si os seus planos


de comunicação por intermédio de processos linguísticos de entendimento, en-
quanto na acção estratégica este potencial para a racionalidade comunicativa
permanece por explorar, mesmo quando as interacções são linguisticamente me-
diadas, por um lado, e os participantes coordenam os seus planos de acção entre
si por intermédio de um exercício recíproco de influência, por outro lado (cf. Ha-
bermas, 2002c, p. 205).
Na obra A teoria da acção comunicativa,143 Habermas distingue acção co-
municacional e uso estratégico da linguagem, baseando-se na procura (acção es-
tratégica) dos interlocutores por entendimento e influência. A acção estratégica

143
A edição desta obra de Habermas utilizada neste livro é a versão The theory of communicative
action, traduzida para inglês por Thomas McCarthy (Boston: Beacon Press). Esta obra está dividida
em dois volumes: Reason and the rationalization of society (Vol. 1) e Lifeworld and system: A critique
of functionalist reason (Vol. 2). Cf. Habermas, 1984a e 1984b.
Paulo M. Barroso
192

é aquela em que um falante usa, através de um enunciado, o seu interlocutor


como um meio para realizar um determinado interesse (e não apenas para co-
municar). “No entender de Habermas, só há acção comunicativa quando a inte-
racção está voltada para o entendimento válido e os participantes do diálogo
harmonizam sem reservas os seus fins ilocucionários (obtêm consensos)” (Ma-
galhães, 2010, p. 155).
Em “A racionalidade do entendimento”, Habermas explica a sua perspec-
tiva sobre a racionalidade comunicativa:
“É inerente, não à linguagem per se, mas à utilização comunicativa de expressões
linguísticas, uma racionalidade peculiar que não pode ser reconduzida nem à ra-
cionalidade epistémica do saber (como é opinião da semântica da verdade clássica),
nem à racionalidade orientada para fins da acção (como supõe a semântica inte-
raccionista). Esta racionalidade comunicativa exprime-se na capacidade unificadora
do discurso orientado para o entendimento que assegura aos locutores interve-
nientes, ao mesmo tempo, um mundo da vida intersubjectivamente partilhado e,
com ele, o horizonte no qual todos se podem referir ao mesmíssimo mundo objec-
tivo.” (Habermas, 2010d, p. 101).

Habermas desenvolve uma teoria global da acção social: “o agir é consi-


derado nos termos de uma interacção que se constitui na base de regras alicer-
çadas na comunicação linguística” (Demartis, 2006, p. 23). Por isso, interessa-se
sobre os modelos universais do agir que estruturam a comunicação linguística
como um conjunto de dizer e de fazer (universais pragmáticos).
“Sublinhe-se, pois, o carácter duplo da comunicação. Se a comunicação é dirigida
à produção de convenções finalizadas para o consenso perante o poder constituído,
a interiorização de formas ideológicas codificadas provoca no sujeito formas co-
municativas sistematicamente distorcidas. É, portanto, no seio da relação comuni-
cativa que devem ser apreendidos os pressupostos gerais implícitos de
racionalidade e verdade que, se explicitados, permitem distinguir a comunicação
distorcida da autêntica. Daí, a possibilidade de um agir comunicativo orientado
para a compreensão, que se contrapõe ao agir orientado para o êxito e que tem o
seu fim na prossecução de interesses.” (Demartis, 2006, p. 24).

O conceito de “agir comunicacional” associa-se a uma prática ética, pois


releva os critérios de funcionalidade social. Para Habermas, a debilitação das re-
lações comunicacionais entre os sujeitos enaltece a ética face à “irresistível as-
censão de uma lógica de sistemas integrados, que se organizam em torno da
tecnologia e do mercado” (Polistchuk & Trinta, 2003, p. 116). Com esta possibili-
dade, Habermas propõe um racionalismo próprio ao agir comunicacional, exer-
cido por meio de actos discursivos, pelos quais os sujeitos podem orientar as
acções para um sentido comunitário. Por isso, a ética surge como bússola para o
sujeito proceder às suas escolhas práticas e discursivas.
Sociologia da Comunicação
193

7.3. Questões para revisão e reflexão


1. A esfera pública surge espontaneamente ou é fabricada? Qual é o papel
da comunicação social na formação da esfera pública?
2. Como a teoria geral da comunicação se assume uma pragmática uni-
versal?
3. O que é a pragmática universal? Qual é a sua tarefa ou utilidade?
4. Quais são as reivindicações de validade da acção comunicativa?
5. Qual é a diferença entre uma acção comunicativa e uma acção estra-
tégica?
Sociologia da Comunicação
195

8. Giddens: a globalização do mundo


“[…] o mercado e os meios de comunicação (de massa) estão dialeticamente
interligados; vivemos numa ‘sociedade do espetaculo’ (Guy Debord) em
que a mídia estrutura antecipadamente nossa percepção da realidade
e a torna indiscernível de sua imagem ‘esteticizada’.”
(Žižek, 1999, p. 21).

A industrialização, nomeadamente a invenção e implementação da má-


quina a vapor bem como o desenvolvimento dos meios de transporte de longo
curso, deu um novo impulso ao processo de modernização de um sistema social
à escala global. Com a máquina a vapor e com meios de transporte, passou a ser
possível qualquer pessoa estar em contacto com outras sociedades e culturas em
pouco tempo (Almeida, 1994, p. 40). A vida social passa a ser globalizada; cria-se
uma sociedade única que coincide com o planeta: uma sociedade-mundo. Assim,
“nada do que se passa no mundo nos é estranho” (Almeida, 1994, p. 42). Mais
uma vez, a comunicação (os sistemas de comunicação à escala planetária) é o
factor decisivo e determinante para este fenómeno social e complexo chamado
de globalização.
A globalização é um fenómeno social, total, irreversível e acelerado. É tam-
bém um fenómeno transformador de todas as dimensões da vida, visível nos
usos e costumes quotidianos. Conforme reconhece Anthony Giddens, o mundo
encontra-se numa prateleira de supermercado graças à globalização, pois as pes-
soas já não têm de esperar pela época das suas frutas e vegetais preferidos e en-
contram-nos, mesmo fora de época, perto de suas casas provenientes de locais
remotos e exóticos.
Importa, antes de mais desenvolvimentos sobre a globalização, concep-
tualizar e problematizar alguns aspectos, nomeadamente questões colocadas por
Giddens:
– O que é a globalização?
– Quais são as causas da globalização?
– Quais são as posições, facções ou perspectivas que se podem assumir
acerca da globalização e das suas implicações?
– Qual é a relação entre os fenómenos da globalização e da comunicação?
– Quais são os riscos e os efeitos inerentes à globalização?
– Qual é o papel da ciência e da tecnologia no mundo actual? Sem esse
eventual papel, haveria globalização?
– Qual é o papel dos media na “democratização das democracias”?

Considere-se o seguinte excerto de Giddens:


Paulo M. Barroso
196

“O supermercado é um local que nos pode dizer muito sobre fenómenos sociais de
grande interesse para os sociólogos no início do século XXI: o ritmo vertiginoso da
mudança social e o aprofundar da sociedade global. Na próxima vez que for ao seu
supermercado preste atenção à grande variedade de produtos expostos nas prate-
leiras. Se, como muitas pessoas fazem, iniciar as compras pela secção de produtos
frescos, é provável que encontre ananases do Hawai, uvas de Israel, maçãs da África
do Sul e abacates de Espanha. No corredor seguinte, poderá dar de caras com uma
vasta gama de pastas de caril e de especiarias para a cozinha indiana, variadíssimos
ingredientes típicos do Médio Oriente como cuscuz e falafel, bem como com leite
de coco enlatado para a cozinha tailandesa. Continuando as compras, tome atenção
ao café proveniente do Quénia, da Indonésia ou da Colômbia, à carne de ovelha da
Nova Zelândia, às garrafas de vinho da Argentina ou do Chile. Se prestar atenção
a um pacote de bolachas ou a uma tablete de chocolate, notará que os ingredientes
vêm descritos em oito ou dez línguas diferentes. Que dimensões sociológicas estão
associadas a esta curta ronda pelo supermercado? Como vimos na discussão em
torno da sociologia do café […] não podemos separar as nossas acções locais de
contextos sociais mais amplos que se estendem pelo mundo. A enorme variedade
de produtos que nos habituámos a ver nos supermercados ocidentais depende de
laços económicos e sociais complexos que ligam as pessoas e os países do mundo
inteiro. Tal reflecte igualmente processos de mudança social em larga escala - pro-
cessos que forçaram diferentes partes do mundo a entrar em relação umas com as
outras. Em relação ao passado, o mundo em que vivemos hoje em dia tornou-nos
muito mais interdependentes das outras pessoas, ainda que estas estejam a mi-
lhares de quilómetros de distância. Estas relações entre local e global são bastante
recentes em termos de história humana, tendo-se acelerado nos últimos trinta ou
quarenta anos, em resultado dos progressos dramáticos no campo da comunicação,
da tecnologia de informação e dos transportes. Graças ao desenvolvimento de
aviões a jacto, de velozes navios cargueiros de grande dimensão, e de outros meios
de transporte de grande velocidade, pessoas e bens podem hoje ser transportados
de forma contínua através do mundo inteiro. Da mesma forma, o sistema mundial
de comunicação por satélite, estabelecido apenas há cerca de trinta anos, tornou
possível que as pessoas entrem em contacto umas com as outras de forma instan-
tânea. Os sociólogos usam o termo globalização quando se referem a estes proces-
sos que intensificam cada vez mais a interdependência e as relações sociais a nível
mundial. Trata-se de um fenómeno social com vastas implicações, muitas das quais
serão analisadas mais à frente. Não deve pensar-se na globalização apenas como o
desenvolvimento de redes mundiais - sistemas económicos e sociais afastados das
nossas preocupações individuais. É também um fenómeno local, que afecta a vida
quotidiana de todos nós. Como ilustração, voltemos ao exemplo do supermercado.
Os efeitos da globalização reflectem-se de várias formas nas prateleiras de um su-
permercado. Em primeiro lugar, assistiu-se nas últimas décadas a um enorme au-
mento na quantidade e variedade de produtos à venda nos supermercados. Estes
são cada vez maiores, de modo a albergar a gama crescente de produtos disponí-
veis. As barreiras ao comércio internacional têm vindo a diminuir, abrindo os mer-
cados a um leque mais vasto de produtos. Em segundo lugar, os produtos que
encontra à venda no supermercado foram cultivados ou produzidos em cem ou
mais países diferentes. Antigamente, por razões práticas, era quase impossível
transportar tantos produtos, em particular artigos frescos, através de longas dis-
tâncias. Em terceiro, alguns dos produtos mais populares à venda nos supermer-
cados hoje em dia podiam há uns anos atrás ser relativamente desconhecidos - é
o caso das ‘comidas étnicas’ referidas atrás. Uma explicação para o facto pode estar
Sociologia da Comunicação
197

nos padrões de migração global, que produzem sociedades culturalmente diversas


e novos gostos culturais. Em último lugar, muitos dos produtos mais comuns à
venda nos supermercados são hoje em dia distribuídos simultaneamente em mui-
tos países, e não se destinam a mercados nacionais específicos. Os rótulos dos pro-
dutos reflectem esta nova diversidade geográfica: as instruções e os ingredientes
são muitas vezes impressos em várias línguas, de modo a tomar o produto acessível
a consumidores de muitas nacionalidades. A globalização está a mudar a forma
como o mundo se nos apresenta e a maneira como olhamos para o mundo. Se adop-
tarmos uma perspectiva global, tornamo-nos mais conscientes dos laços que nos
ligam às pessoas de outras sociedades. Tornamo-nos igualmente mais conscientes
dos problemas que o mundo atravessa no início do século XXI. A perspectiva global
lembra-nos que os laços cada vez mais fortes que nos unem ao resto do mundo im-
plicam que o que fazemos tem consequências na vida dos outros e que os proble-
mas mundiais têm consequências para nós. […] Por constituir um conjunto de
processos imprevisíveis, é difícil controlar a globalização, o que leva a novos riscos
que nos afectam a todos.” (Giddens, 2008, pp. 50-51).

Este excerto é claro e elucidativo acerca do que é a globalização e das suas


implicações sociais. Todavia, o sentido do conceito de “globalização” é também
enunciado na International encyclopedia of the social sciences:
“No discurso popular e académico, o termo globalização é amplamente usado para
dar um nome à forma do mundo contemporâneo. Nos domínios da publicidade, da
elaboração de políticas, da política, da academia e da conversação quotidiana, a
globalização refere-se ao sentido de que vivemos agora num mundo profunda-
mente e gradualmente interconectado, móvel e acelerado, que é inédito, impulsio-
nado pelas inovações tecnológicas e pelas transformações geopolíticas e
económicas. Como forma de nomear o nosso momento contemporâneo, o termo
globalização entrou nos media populares e na publicidade no início dos anos 1990.
Após a queda do muro de Berlim em 1989 e da dissolução da União Soviética, o en-
tusiasmo acelerou com o aumento do comércio internacional, o desregulamento
das economias nacionais, as privatizações do estado, ajustando estruturalmente
as economias do mundo em desenvolvimento e aumentando a transnacionalização
das corporações. A globalização foi o novo termo que sinalizou este triunfo do mer-
cado capitalista. À medida que a ciência social se tornou cada vez mais focada na
globalização, as teorias da globalização enfatizaram as transformações no trabalho,
capital, estado e tecnologia que criaram um intensificado sentido de interconexão
global ou o que foi chamado pelo geógrafo David Harvey de ‘compressão tempo-
espaço’.” (Lukose, 2008, pp. 330-331).144

144
Tradução do autor a partir do original em inglês de International encyclopedia of the social sciences:
“In popular and scholarly discourse, the term globalization is widely used to put a name to the
shape of the contemporary world. In the realms of advertising, policy making, politics, academia,
and everyday talk, globalization refers to the sense that we are now living in a deeply and
increasingly interconnected, mobile, and sped up world that is unprecedented, fueled by
technological innovations and geopolitical and economic transformations. As a way to name
our contemporary moment, the term globalization entered popular media and advertising in
the early 1990s. After the fall of the Berlin Wall in 1989 and the breakup of the Soviet Union,
enthusiasm accelerated for increasing international trade, deregulating national economies,
privatizing the state, structurally adjusting developing-world economies, and increasing the
Paulo M. Barroso
198

Uma análise crítica interessante e acurada sobre a globalização é, como


se reconhece, a de Giddens, que se tem dedicado e destacado no estudo com-
preensivo deste fenómeno, com várias obras pertinentes: Capitalismo e moderna
teoria social (1971); As consequências da modernidade (1990); O mundo na era da
globalização (1999).145 Seguindo a teoria social como perspectiva de pensamento,
Giddens reconhece a importância dos estudos sobre a globalização e sobre as
suas múltiplas consequências.
Para a compreensão do conceito de globalização, Giddens associa ao termo
a ideia de transformação social acelerada à escala mundial. As ideias de “fim do
mundo” e de “fim da história” são percepcionadas pela observação de um mundo
em constante e veloz transformação, que provoca angústias quando se reflecte
mais profundamente.
Por um lado, está subjacente a esta consideração as teses de devir histórico
de Friedrich Hegel (o Estado racional como forma superior) e Karl Marx (o fim
das classes sociais com o comunismo e com o fim da divisão entre o trabalho e
o capital), bem como as teses do fim da história de Francis Fukuyama, apresen-
tadas em 1992 na obra O fim da história e o último homem,146 por outro lado, a
concepção ficcionada de uma sociedade do controlo e da vigilância a partir do
desenvolvimento da ciência e da tecnologia e a culminar numa sociedade mais
estável, previsível e ordenada, em obras literárias como 1984, de George Orwell,
e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Situação que terá levado Max Weber,
no ensaio “A ciência como vocação”, a concluir pelo “desencantamento do
mundo”, uma forma de distopia, ou seja, fracasso e desilusão das utopias e ideo-
logias inspiradoras do progresso social.
“O destino de nossos tempos é caracterizado pela racionalização e intelectualização
e, acima de tudo, pelo ‘desencantamento do mundo’. Precisamente os valores últi-
mos e mais sublimes retiraram-se da vida pública, seja para o reino transcendental
da vida mística, seja para a fraternidade das relações humanas directas e pessoais.”
(Weber, 1946, p. 182).

O conceito de “desencantamento do mundo” caracteriza as sociedades


modernas do racionalismo, considerando este processo de desencantamento con-
substancial ao desenvolvimento das sociedades, por um lado, e desproporcional

transnationalization of corporations. Globalization was the new term that signaled this triumph
of the capitalist market. As social science became increasingly focused on globalization, theories
of globalization emphasized the transformations in labor, capital, state, and technology that
have created a heightened sense of global interconnection or what has been called by the
geographer David Harvey ‘time-space compression’.”
145
Cf. as edições consultadas destas três obras publicadas, respectivamente em Giddens, 2000a,
2005 e 2000b.
146
A tese de Fukuyama (cf. 1992) assenta num consenso global sobre o triunfo e supremacia do
liberalismo democrático e do mercado capitalista, com o fim da Guerra Fria e do comunismo,
restando um único modelo para o mundo.
Sociologia da Comunicação
199

ao processo de criação de mitos e ídolos, celebridades efémeras alimentadas por


uma cultura popular e mediatizada, por outro (cf. Barroso, 2013, p. 107). “Desen-
cantamento” significa, para Weber, a diluição dos valores e tradições de um
mundo, em benefício do conhecimento, dos meios e dos fins técnicos e racionais.
Esta ideia de Weber, apresentada no fim do século XIX, deve-se à raciona-
lidade das sociedades (a ideia de “des-ilusão”); à autonomização das esferas do
agir social; à privatização da religião nas sociedades modernas. Segundo Giddens:
“Temos boas razões, razões objectivas, para pensar que estamos a viver um período
histórico de transição muito importante. Além do mais, as mudanças que nos afec-
tam não estão confinadas a nenhuma zona do globo, fazem-se sentir um pouco
por toda a parte. A nossa época evoluiu sob o impacto da ciência, da tecnologia e
do pensamento racionalista, que tiveram origem na Europa setecentista e oitocen-
tista. A cultura industrial do Ocidente foi moldada pelas ideias do Iluminismo, pelos
escritos de pensadores que rejeitavam a influência da religião e do dogma, e que,
na prática, queriam substituí-los por formas mais racionais de encarar a vida.” (Gid-
dens, 2000b, p. 15).

Regressando à globalização, enquanto período actual de transformação


social permanente e acelerada à escala mundial, segundo Giddens, importa re-
flectir se este fenómeno é novo, se é uma repetição cíclica ou se o seu início e o
seu desenvolvimento gradual, que culmina na forma de mundo em que hoje vi-
vemos, é ancestral.
Quem não considera a globalização como um fenómeno novo admite um
primeiro globalismo ou época de alargamento do mundo ao “novo mundo” com
os Descobrimentos de há 500 anos, em que se descobriram muitas terras, povos
e comercializaram-se, à escala mundial, inúmeras especiarias e outros produtos
pertencentes a identidades culturais locais. Tratou-se de uma época de intensi-
ficação de um novo tipo de comércio global e com muitos produtos então desco-
nhecidos, que passaram a sê-lo por todo o lado.147
Agora, as formas de vida social alteradas pelo desenvolvimento são muito
diferentes, mas possuem em comum (com o admissível primeiro globalismo) a
radical abertura ou aproximação do mundo e suas consequências na reestrutu-
ração do mesmo. Em 1999, na edição original de O mundo na era da globalização,
Giddens admite que:
“Vivemos num mundo de transformações, que afectam quase tudo o que fazemos.
Para o melhor ou para o pior, estamos a ser empurrados para uma ordem global
que ainda não compreendemos na sua totalidade, mas cujos efeitos já se fazem
sentir em nós. A palavra ‘globalização’ pode até nem ser muito elegante ou atrac-
tiva. Mas ninguém, absolutamente ninguém, que pretenda progredir neste final
de século a pode ignorar.” (Giddens, 2000b, p. 19).

147
Por exemplo, as especiarias asiáticas (pimenta, gengibre, canela, cravo e noz-moscada) que já
tinham muita procura na Europa no século XV, com os Descobrimentos, ao ponto de
determinarem a vontade e necessidade de definir uma rota comercial específica para estes
produtos se globalizarem nos hábitos de consumo.
Paulo M. Barroso
200

O que é a globalização? Primeiro, a palavra “globalização” é equívoca e


polissémica, apesar de conhecida e usada em todo o lado. O seu significado não
é claro, podendo, todavia, remeter para a ideia de que “agora vivemos todos num
único mundo” (Giddens, 2000b, p. 20). A globalização tem sido definida em ter-
mos contraditórios. No essencial, define:
– Homogeneização (uniformização ou, para os mais críticos, americani-
zação)148 das necessidades das pessoas, dos usos de dispositivos tecno-
lógicos de comunicação, das informações difundidas pelos meios de
comunicação de massa, etc.
– Mundialização, no sentido de um alargado “mercado-mundo”, em que
o espaço de produção, o consumo e a comercialização se estendem a
um mercado que é o próprio mundo.
– Cosmopolitanismo, no sentido contrário do localismo, com uma “iden-
tidade” global (por oposição às identidades culturais e locais mais pe-
culiares e singulares).
É neste sentido que McLuhan se baseou primeiramente, quando usou o
termo “aldeia global” para referir a expansão do local a uma escala global. Com
a transformação das aldeias locais em aldeias globais, verifica-se a estandardi-
zação em larga escala dos estilos de vida, incluindo as motivações, interesses e
objectivos comuns, que são partilhados, bem como a transformação dos sistemas
de comunicação.
A globalização é a intensificação das relações sociais à escala mundial que
conectam localidades distantes (Giddens, 2005, p. 45). O que acontece localmente
tem repercussões distantes, tal como eventos distantes implicam acontecimentos
locais.
A globalização é um processo geográfico, conduzido pelos factores espaço
e tempo, influenciadores do desenvolvimento das sociedades. Resulta num au-
mento de percepção sobre o mundo como um todo e impõe um reajustamento
do pensamento e da acção social: de uma dimensão nacional para uma dimensão
internacional e global.
As causas da globalização são difusas, mas a globalização pode ser consi-
derada uma consequência da modernidade. O crescimento e avanço das tecnolo-
gias da informação e comunicação são relevantes para a globalização, porque
permitem ou favorecem informações que fluem de um modo mais livre e rápido.
Segundo Giddens, a ciência e a tecnologia também estão a globalizar-se e a tornar
globais os conhecimentos e as práticas sociais. Giddens também considera a glo-
balização como “a intensificação da interdependência e das relações sociais mun-

148
A americanização significa a aculturação das identidades culturais locais face à hegemonia,
industrialização e liberalização económica norte-americanas. Assim, a globalização não é um
incidente passageiro; é uma mudança radical e permanente nas formas e estilos de vida globais.
Sociologia da Comunicação
201

diais”, resultado de vivermos num “único mundo” onde as acções se repercutem


a uma escala alargada:
“Um dos fenómenos sociais de maior importância para os sociólogos contemporâ-
neos é a globalização - a intensificação da interdependência e das relações sociais
mundiais. A globalização traduz-se no facto de vivermos cada vez mais num ‘único
mundo’, onde as nossas acções têm consequências para os outros e os problemas
mundiais têm consequências para nós. A globalização afecta hoje em dia a vida
das pessoas de todos os países, sejam ricos ou pobres, transformando não apenas
os sistemas globais, mas também a vida quotidiana. A globalização é muitas vezes
tida como um fenómeno económico, embora este ponto de vista seja demasiada-
mente simplista. A globalização resulta da conjugação de factores sociais, políticos,
económicos e culturais. É conduzida, sobretudo, pelos avanços nas tecnologias de
informação e comunicação, que intensificam a velocidade e a amplitude da inte-
racção entre as pessoas em todo o mundo. Vários factores estão a contribuir para
o incremento da globalização. Em primeiro lugar, factores como o fim da Guerra
Fria, o colapso dos regimes comunistas de estilo soviético e o crescimento das for-
mas de governação regionais e internacionais, criaram as condições para uma
maior aproximação entre os países de todo o mundo. Em segundo lugar, a divulga-
ção das tecnologias de informação veio facilitar o fluxo de informação à volta do
globo, encorajando as pessoas a adoptar uma postura global. Em terceiro, as mul-
tinacionais aumentaram em dimensão e importância, tendo constituído redes de
produção e de consumo que abrangem o mundo inteiro e ligam os mercados eco-
nómicos. […] A globalização não se restringe aos grandes sistemas globais. O seu
impacto reflecte-se nas nossas vidas pessoais, na maneira como pensamos acerca
de nós próprios e nas nossas relações com os outros. As forças globalizantes pene-
tram nos nossos contextos locais e nas nossas vidas pessoais, seja através de fontes
impessoais como os meios de comunicação e a Internet, seja através de contactos
pessoais com pessoas de outros países e culturas.” (Giddens, 2008, p. 75).

Todos os campos da vida são afectados e existem implicações para o modo


como vivemos: a globalização envolve aspectos económicos, políticos e culturais.
O Estado moderno não é apenas definido pela sua base económica, mas pelo
facto de ser uma nação-estado. O papel da nação-estado, a sua posição política
(em termos de autonomia e independência) e a sua evolução são questionados
ou superados pela globalização.
A globalização cria uma configuração de pensamento e de relacionamento
transnacional que afecta o modo como as nações-estado interagem entre si, al-
terando as dinâmicas de identidade, relações internacionais e negócios mundiais.
A sociedade global é cosmopolita, mas o seu desenvolvimento emerge do con-
junto de factores económicos, tecnológicos e culturais.
As instituições tradicionais (como a nação, família, trabalho, tradição, na-
tureza, etc.) modificam-se em termos estruturais e funcionais. A globalização é
um fenómeno diversificado. Em O mundo na era da globalização, Giddens esclarece
que a globalização não é só o desenvolvimento de uma cultura global, mas o de-
senvolvimento de novas texturas de experiência no tempo e no espaço e a trans-
formação da vida quotidiana.
Paulo M. Barroso
202

O que um cidadão faz na vida quotidiana tem consequências globais e o


que acontece no nível global tem consequências pessoais. É um mundo muito
diferente, em constante transformação. A globalização afecta as experiências da
vida de cada um, principalmente pelo impacto dos meios electrónicos de comu-
nicação. A globalização é uma nova agenda para o mundo.

8.1. Perspectivas sobre a globalização


Segundo Giddens, o fenómeno da globalização, independentemente de ser
ou não percepcionado na sociedade por via das transformações sociais e exigên-
cias de adaptação aos padrões culturais, não suscita uma perspectiva única nem
consensual. Pelo contrário, duas facções extremas149 são reconhecidas por Gid-
dens a respeito da globalização:
– Os cépticos, para quem “toda esta conversa acerca da globalização não
passa disso mesmo, de conversa”, pois “quaisquer que sejam os seus
benefícios, preocupações ou dificuldades, a economia global não é assim
tão diferente da que existia em períodos antecedentes” (Giddens, 2000b,
p. 20).
– Os radicais, para quem “a globalização é um facto bem concreto, cujos
efeitos se fazem sentir por toda a parte”, estando o mercado global agora
muito mais desenvolvido do que no passado (Giddens, 2000b, p. 20).

Para os cépticos, a globalização não passa de um mito, de “uma ideia posta


a correr pelos adeptos da liberalização do comércio que querem destruir os sis-
temas de segurança social e diminuir os gastos públicos” (Giddens, 2000b, p. 20).
Os cépticos tendem a pertencer à esquerda política, conforme admite Giddens
(2000b, p. 21), porque as ideologias de esquerda são contra a ideia de capitalismo
e consumismo que se sustentam no processo de globalização como forma de pro-
duzir, transaccionar e consumir em massa cada vez mais mercadorias (produtos,
bens, marcas e serviços globais).150
Qual é a facção mais razoável? Giddens (2000b, p. 21) aproxima-se mais
dos radicais, porque “o volume do comércio externo de hoje é superior ao de
qualquer período anterior e abrange uma gama muito mais extensa de bens e
serviços”. Para Giddens (2000b, p. 22), a globalização “não é apenas uma coisa

149
Em O mundo na era da globalização, Giddens identifica e caracteriza apenas estas duas facções
que assumem posições extremas: a dos cépticos e a dos radicais. Uma terceira facção, a dos
transformacionalistas, é reconhecida por Giddens como a moderada e sensata, com a qual o
autor mais se identifica.
150
Por outro lado, as ideologias de direita poderão ser entendidas como mais propensas à criação
de desigualdades sociais e económicas, bem como à concentração do capital e ao aumento do
fosso entre os mais ricos e os mais pobres.
Sociologia da Comunicação
203

nova, é também algo de revolucionário”. Todavia, quer os cépticos quer os radi-


cais assumem posições extremas e, como tal, dificilmente cativam assentimento:
“Porém, creio que nem os cépticos nem os radicais compreenderam inteiramente o
que é a globalização ou quais são as suas implicações em relação às nossas vidas.
Para ambos os grupos, trata-se, antes de tudo, de um fenómeno de natureza econó-
mica. O que é um erro. A globalização é política, tecnológica e cultural, além de eco-
nómica. Acima de tudo, tem sido influenciada pelo progresso nos sistemas de
comunicação, registado a partir do final da década de 1960.” (Giddens, 2000b, p. 22).

Além destas duas facções extremas, Giddens (2008, p. 59) refere uma ter-
ceira perspectiva sobre a globalização: a dos transformacionalistas. Esta é uma
perspectiva mais moderada, defendendo uma posição mais sensata, razoável e
aceitável:
“A globalização tornou-se um assunto de acesas discussões. Os ‘cépticos’ defendem
que a ideia de globalização é exagerada e que os níveis actuais de interdependência
não são historicamente inéditos. Alguns cépticos centram-se antes nos processos
de regionalização que estão a intensificar a actividade no âmbito de grandes grupos
financeiros e comerciais. Os ‘hiperglobalizadores’ adoptam uma postura contrária,
defendendo que a globalização é um fenómeno real e de grande magnitude que
ameaça reduzir a zero o papel dos governos nacionais. Um terceiro grupo, os trans-
formacionalistas, acredita que a globalização está a alterar muitos aspectos da ac-
tual ordem mundial - incluindo as relações sociais, políticas e económicas - embora
os velhos padrões ainda se mantenham. Segundo esta perspectiva, a globalização
é um processo contraditório, envolvendo um fluxo multidireccionado de influências
que por vezes se opõem entre si.” (Giddens, 2008, p. 76).

Acerca das facções de discussão sobre a globalização e as diferenças de


posições que se podem assumir face a esta problemática, confira-se a seguinte
tabela:
Cépticos Radicais ou Transformacionalistas
hiperglobalizadores
Os actuais níveis de A globalização é um fenómeno A globalização é a força motriz de
interdependência económica não bem real, cujas consequências se um conjunto amplo de mudanças
são inauditos. podem sentir praticamente em que, actualmente, estão a alterar
todo o lado. as sociedades modernas.
A actual economia mundial não
está suficientemente integrada A globalização é um processo A ordem global está a ser
para se poder falar numa indiferente às fronteiras transformada, mas muitos dos
economia globalizada. nacionais. Está a produzir uma padrões tradicionais continuam a
nova ordem global, que deriva de existir.
A crescente regionalização é poderosos fluxos de comércio e
prova de que a economia de produção que atravessam As transformações não se
mundial se tomou menos fronteiras. confinam apenas às economias,
integrada, e não o contrário. mas fazem-se sentir igualmente
Um processo que conduz a um em outros domínios.
Os governos nacionais mundo sem fronteiras, onde as
continuam a ser figuras-chave forças do mercado têm mais
na regulação e coordenação da poder do que os governos
actividade económica. nacionais.

Tabela 14: Possíveis posições sobre a globalização.
Paulo M. Barroso
204

Através deste quadro-síntese, distingue-se o que cada facção defende


acerca da globalização e, por conseguinte, às duas posições mais extremas dos
cépticos e dos radicais destaca-se, por ser mais razoável e moderada, a posição
dos transformacionalistas, que reivindicam o que não pode ser negado: que o
mundo está em permanente transformação e essa transformação tende para a
globalização de todos os domínios da vida.

8.2. Globalização e comunicação


A globalização e a comunicação são dois fenómenos sociais e totais. Além
desta semelhança, são complementares, porque não há globalização sem comu-
nicação. A globalização tem sido influenciada pelo progresso dos sistemas de co-
municação a partir da década de 1960. O melhor exemplo é o da comunicação
electrónica e instantânea que altera o quadro das nossas relações sociais.
“A comunicação electrónica instantânea não é apenas um meio de transmitir in-
formações com maior rapidez. A sua existência altera o próprio quadro das nossas
vidas, ricos ou pobres. Quando a imagem de Nelson Mandela nos pode ser mais fa-
miliar do que a do vizinho que mora na porta ao lado da nossa, é porque qualquer
coisa mudou na nossa vida corrente. Nelson Mandela é uma celebridade a nível
global e a celebridade é, em grande parte, o produto da nova tecnologia das co-
municações. O alcance das novas tecnologias de comunicação aumenta com cada
vaga de inovações. Nos Estados Unidos, a rádio levou quarenta anos para atingir
os cinquenta milhões de ouvintes. O mesmo número de pessoas usava o computa-
dor pessoal, apenas quinze anos depois de a máquina ter sido inventada. Só foram
precisos uns meros quatro anos, para haver cinquenta milhões de americanos que
usam a internet com regularidade. É um erro pensar-se que a globalização só diz
respeito aos grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização
não é apenas mais uma coisa que ‘anda por aí’, remota e afastada do indivíduo. É
também um fenómeno ‘interior’, que influencia aspectos íntimos e pessoais das
nossas vidas.” (Giddens, 2000b, p. 23).

A globalização não é um processo simples; pelo contrário, é uma rede com-


plexa de processos, “é a razão que leva ao reaparecimento das identidades cul-
turais em diversas partes do mundo” (Giddens, 2000b, p. 24).
A televisão, por exemplo, tem exercido um papel preponderante no avanço
da globalização, ao transmitir conteúdos e formatos uniformizados, exportados
pelos EUA. A queda do comunismo e as guerras em directo (as mais recentes, a
partir de 1989, como os dois conflitos bélicos do Golfo Pérsico, em 1991 e 2003)
amplificam os efeitos globais das influências dos meios de comunicação na for-
mação de sociedades de massas.
Em Olhando o sofrimento dos outros, Susan Sontag (cf. 2015) questiona a ca-
pacidade de a fotografia de guerra comunicar, significar ou sensibilizar alguma
coisa substancial. O papel da fotografia na imprensa cumpre funções sociais e in-
formativas sobre o que acontece no mundo. Já na década de 1990 Baudrillard per-
guntava se as fotografias nos media nos poderiam realmente mostrar a Guerra do
Sociologia da Comunicação
205

Golfo, pois esta seria o que Baudrillard (1991, pp. 40-41) designa por “hiper-visua-
lização da guerra”, uma espécie de frisson do real, uma estética do hiper-real, um
frisson de exactidão vertiginosa e falsa, um frisson de distanciamento e ampliação
simultâneos, de distorção de escala, de uma transparência excessiva (cf. Barroso,
2020b, p. 33). As fotografias de guerra na imprensa podem, por conseguinte, as-
sumir um realismo que as caracteriza como hipotiposes da realidade (cf. Barroso,
2020b, p. 38), descrições vivas e realistas de uma situação.
Conforme refere Baudrillard (cf. 2005, p. 77), as imagens de guerra não são
diferentes da própria guerra. As imagens de guerra produzem efeitos consoante
a difusão à escala global que tiverem nos media. Difundidas massivamente pelos
media e circulando livremente num mundo cada vez mais globalizado, as imagens
são estetizadas para produzir espectáculo e visualidade (cf. Barroso, 2020b, p. 34),
pois a globalização “globaliza” tanto o que é positivo como o que é negativo.
“[…] a globalização não está a evoluir de forma imparcial, e as suas consequências
não são totalmente benignas. Para muitos povos que vivem fora da Europa e da
América do Norte, parece que se trata de uma ocidentalização que causa descon-
forto ou, talvez, de uma americanização, visto que os Estados Unidos são agora a
única superpotência, que desfruta de posições dominantes, económicas, culturais
e militares, na ordem global. Muitas das expressões mais visíveis da globalização
são americanas: Coca-Cola, McDonald’s, CNN.” (Giddens, 2000b, p. 25).

Para Giddens, a globalização é um fenómeno transversal em termos de


efeitos, mas não em termos de benefícios. Estando mais favorável a posições ca-
pitalistas e de economia liberal, a globalização não traz as mesmas vantagens
para outros países ou regimes económicos fora do quadro de economia liberal,
ocidental e capitalista. Esta ideia é corroborada por Eric Hobsbawm (2008, p. 13),
para quem “o impacto desta globalização é mais sentido pelos que menos bene-
ficiam dela”. A globalização não é global. A globalização do mercado livre gera
cada vez mais desigualdades económicas e sociais.

8.3. Riscos da globalização


A globalização não se afigura apenas democrática na forma como se alas-
tra por todo o mundo, mas, pelo contrário, reparte diferentemente os seus bene-
fícios e malefícios. A globalização acarreta riscos (ecológicos, financeiros,
económicos, etc.) que estão estreitamente associados à inovação. Os principais
riscos da globalização devem-se a questões ambientais, que são também globais:
“Enfrentamos situações de risco, de que o aquecimento global é apenas um exem-
plo, que nenhuma geração anterior teve de enfrentar. Muitos dos novos riscos e
incertezas afectam-nos qualquer que seja o lugar em que vivamos, pouco impor-
tando que sejamos privilegiados ou pertencentes às classes mais desfavorecidas.
Estão relacionados com a globalização, esse conjunto de transformações […] Mas
a globalização é um fenómeno diversificado, tem outras dimensões. Está a trazer
para a ribalta outras formas de risco e novas incertezas, em especial as que se re-
Paulo M. Barroso
206

lacionam com a economia electrónica global, ela própria de criação muito recente.
Como acontece com a ciência, também neste caso o risco tem duas faces. O risco
está estreitamente ligado à inovação. E existe sempre a tendência para o minimizar;
o enlace activo entre o risco financeiro e o risco empresarial é a verdadeira loco-
motiva da globalização da economia. […] De uma maneira muito profunda, a glo-
balização está a reestruturar as nossas formas de viver. É dirigida pelo Ocidente,
está profundamente marcada pelo poderio político e económico dos Estados Unidos
da América e arrasta com ela consequências muito desiguais. Mas a globalização
não é apenas uma questão de domínio do Ocidente sobre o resto do mundo; afecta
tanto os Estados Unidos como os outros países.” (Giddens, 2000b, p. 16).

Em Um só mundo: A ética da globalização, Peter Singer realça a tese de que


vivemos actualmente num mundo em mudança influenciado profundamente pela
globalização. “Somos agora um só mundo”, refere Singer, fundamentando-se de
um relatório de uma comissão das Nações Unidas151 no qual se indica que, mesmo
sem uma preocupação altruísta das nações ricas com a prestação de auxílio aos
pobres do mundo, o seu próprio interesse deveria levá-las a pô-lo em prática. Se-
gundo Singer, vivemos há tanto tempo com a noção de estados soberanos que
estes também passaram a fazer parte do pano de fundo da ética (cf. Singer, 2004,
p. 34). A globalização está implícita nos seus próprios riscos e na ideia de que vi-
vemos um só mundo, i.e. que está além do conceito de estado-nação.
“[…] a forma como sobreviveremos à era da globalização (se lhe sobrevivermos)
depende da forma como reagirmos eticamente à ideia de que vivemos num só
mundo. O facto de as nações ricas não assumirem uma perspectiva ética mundial
é, há muito, gravemente errado do ponto de vista moral.” (Singer, 2004, p. 40).

Se a globalização é para todos, os riscos da globalização também afectam


todos. A ética da globalização é a assunção necessária de uma responsabilidade
global sobre os riscos da globalização. O conceito de “risco” está associado às
ideias de probabilidade e de incerteza. O risco implica perigo e exposição a si-
tuações futuras. Há riscos inevitáveis e esses são resignáveis, o mesmo não acon-
tecendo com os evitáveis que, consequentemente, provocam outros riscos
inevitáveis e naturais, pois advêm do que os seres humanos provocam no am-
biente. Os dois tipos de riscos são, por conseguinte:
– Riscos inevitáveis, naturais ou provocados pela Natureza, são os riscos
exteriores ao ser humano (e.g. más colheitas, inundações, pragas, fomes,
etc.).
– Riscos evitáveis, os que são decorrentes da acção directa do ser humano,
pois são provocados, manufacturados.

151
Relatório da Grande Comissão para o Financiamento do Desenvolvimento, segundo o qual “na
aldeia global, a pobreza de outrem rapidamente se torna um problema nosso: falta de mercados
para os nossos produtos, imigração ilegal, poluição, doenças contagiosas, insegurança, fanatismo,
terrorismo” (Singer, 2004, p. 33). Ou seja, todos estes problemas são actuais e são de todos, sejam
nações ricas ou pobres, pois defrontamo-los num mundo que é só um, conforme alerta Singer.
Sociologia da Comunicação
207

Efectivamente, o risco acompanha a globalização. Num mundo cada vez


mais globalizado, os riscos são também mais globais e ameaçam mais os aspectos
vulneráveis, i.e. as grandes aglomerações de pessoas, as interdependências e os
inevitáveis contactos físicos. Partindo desta premissa, o jornal alemão Der Spiegel
apresentou, na sua edição do dia 1 de Fevereiro de 2020, uma primeira página
(Figura 5) polémica a propósito da pandemia por Covid-19. A capa traz o título
“CORONA-VIRUS, Made in China, Wenn die Globalisierung zur tödlichen Gefahr
wird”.152 Várias críticas se insurgiram contra esta publicação, acusando-a de pro-
pagar fobias em relação à China.

Figura 5: Primeira página do jornal Der Figura 6: Manchetes de jornais do Reino Unido
Spiegel, de 1 de Fevereiro de 2020, colocando dominadas, à semelhança de toda a imprensa
em causa os efeitos da globalização (Fonte: mundial, pela pandemia de coronavírus
Der Spiegel). (Fonte: The Guardian e Russell, 2020).

Conforme escreve o Der Spiegel na sua edição online de 4 de Fevereiro de


2020, com o título “How the Coronavirus made globalization a deadly threat”:153
“por mais paradoxal que possa parecer, as coisas que são mesmo necessárias
para salvar a globalização neste momento são isolamento, calma e paciência”,
ou seja, precisamente o oposto da ordem planetária imposta pela globalização,
i.e. para salvar a globalização é preciso a anti-globalização.
Se a globalização, segundo Giddens, é rápida e multifacetada, estas carac-
terísticas justificam a natureza do risco que, tal como é a globalização, é global,
rápido e multifacetado, conforme prova o caso do Covid-19. A globalização acar-
reta riscos e efeitos assimétricos ainda pouco compreendidos:
“A globalização é um processo em aberto e contraditório - produz fenómenos difí-
ceis de controlar e prever. Da globalização resultam novas formas de risco diferen-
tes das anteriores. Os riscos externos são ameaças provenientes do mundo natural,
como os terramotos. Os riscos manufacturados resultam do impacto do saber e da
tecnologia humana sobre o mundo natural. Alguns observadores acreditam que vi-

152
Tradução do autor: “CORONA-VÍRUS, fabricado na China, quando a globalização se torna um
perigo mortal”.
153
Tradução do autor: “Como o Coronavírus fez da globalização uma ameaça mortal”.
Paulo M. Barroso
208

vemos hoje numa sociedade global de risco, em que as sociedades humanas en-
frentam riscos (como o aquecimento global) produzidos pela nossa própria acção
sobre a natureza. A globalização é um fenómeno em rápida expansão, ainda que
de forma assimétrica. Foi referida a separação crescente entre os países mais ricos
e os países mais pobres do mundo. A riqueza, o rendimento, os recursos e o con-
sumo concentram-se nas sociedades desenvolvidas, enquanto grande parte do
mundo em vias de desenvolvimento debate-se com a pobreza, a fome, as doenças
e a dívida externa. Muitos dos países que mais necessitam dos benefícios da glo-
balização correm o risco de ser marginalizados. Nas últimas décadas, as barreiras
ao comércio internacional têm sido progressivamente reduzidas e muitos obser-
vadores acreditam que o comércio livre e os mercados abertos permitirão que os
países em desenvolvimento se integrem de uma forma mais plena na economia
mundial. Os que se opõem a esta visão argumentam que as entidades internacio-
nais de comércio, como a Organização Mundial de Comércio, são dominadas pelos
interesses dos países mais ricos e esquecem as necessidades do Terceiro Mundo.
Argumentam que as regras que ditam o comércio mundial devem, acima de tudo,
defender os direitos humanos, os direitos laborais, o meio ambiente e as economias
nacionais, e não apenas procurar garantir maiores lucros para as empresas. A glo-
balização está a produzir riscos, desafios e desigualdades que atravessam fronteiras
nacionais e diminuem a capacidade das estruturas políticas existentes. Em virtude
de os governos não estarem preparados para sozinhos lidarem com estas questões
transnacionais, há necessidade de novas formas de governação global, para lidar
com os problemas mundiais de uma formal global. Reafirmar a nossa vontade no
mundo social em rápida mudança em que vivemos pode constituir o maior desafio
do século XXI.” (Giddens, 2008, pp. 75-76).

Os riscos da globalização são imprevisíveis, incontroláveis e globais, dadas


as circunstâncias de desenvolvimento rápido do próprio fenómeno da globaliza-
ção, bem como a velocidade com que as transformações profundas ocorrem no
mundo.

8.4. Globalização vs. tradição


A tradição é o conjunto dos valores, normas, usos, costumes, acções, com-
portamentos, memórias, crenças, mitos e lendas que pertencem a uma cultura e
que são transmitidos de geração em geração. O que é transmitido ou entregue
do mesmo modo como antes se recebeu é a tradição, pois a tradição é o que é
transmissível. É precisamente este o sentido etimológico do termo tradição, con-
forme a acepção da palavra.154
As tradições são próprias das culturas, ou seja, cada cultura possui as suas
próprias tradições. Logo, diferentes culturas possuem tradições distintas. As tra-
dições são integradoras dos indivíduos nas culturas, porque os indivíduos, ao
segui-las, estão a fazer como os outros e estão a respeitar o que é valorizado na
cultura à qual pertencem. Por vezes, os indivíduos seguem tradições sem saberem

154
O conceito de “tradição”, proveniente do latim traditio, do verbo tradere no particípio, significa
“acto ou efeito de transmitir”, “entregar”.
Sociologia da Comunicação
209

o seu significado nem questionarem os motivos pelos quais as cumprem. Por


exemplo, nos rituais religiosos tradicionais, cumpre-se a tradição porque assim
fazem os outros indivíduos, conforme é costume e prática social enraizada (con-
vencionada), e assim fizeram os antepassados. Nos sacramentos religiosos (e.g.
baptismo ou casamento), a tradição corresponde à transmissão de práticas e de
valores espirituais, o conjunto de crenças que são conservadas e seguidas com
respeito e conservadorismo ao longo de muitos anos.
Na obra A invenção das tradições, Eric Hobsbawm e Terence Ranger referem
que existem dois tipos de tradição:
– A tradição genuína, que é ancestral e mantém os seus traços originais
mesmo com o passar dos anos.
– A tradição inventada, caracterizada por adaptações e um conjunto de
regras de natureza ritual e simbólica que se estabelecem com a repetição
continuada face ao passado.

Segundo Hobsbawm e Ranger (2008, p. 9), as tradições que parecem ou


afirmam ser antigas são de origem bastante recente e algumas vezes inventadas:
“O termo ‘tradição inventada’ é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido.
Inclui tanto as ‘tradições’ realmente inventadas, construídas e formalmente insti-
tucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num pe-
ríodo limitado e determinado de tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas - e
se estabeleceram com enorme rapidez. A transmissão radiofônica real realizada no
Natal na Grã-Bretanha (instituída em 1932) é um exemplo do primeiro caso; como
exemplo do segundo, podemos citar o aparecimento e evolução das práticas asso-
ciadas à final do campeonato britânico de futebol. É óbvio que nem todas essas tra-
dições perduram; nosso objectivo primordial, porém, não é estudar suas chances de
sobrevivência, mas sim o modo como elas surgiram e se estabeleceram.
Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente regula-
das por regras tácita ou abertamente aceitas, tais práticas, de natureza ritual ou
simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da re-
petição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado his-
tórico apropriado. […]
Contudo, na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições ‘in-
ventadas’ caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante arti-
ficial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas que ou assumem a
forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado atra-
vés da repetição quase que obrigatória. É o contraste entre as constantes mudanças
e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e
invariável ao menos alguns aspectos da vida social que torna a ‘invenção da tradição’
um assunto tão interessante para os estudiosos da história contemporânea.” (Hobs-
bawm & Ranger, 2008, pp. 9-10).

A tradição é diferente da rotina e do costume. Estas duas últimas são ba-


nais: o costume é variável na vida comunitária, enquanto a tradição é uma repe-
tição invariável (Hobsbawm & Ranger, 2008, p. 10); a rotina ou convenção não
Paulo M. Barroso
210

possui ritual significante nem função simbólica como a tradição, que adquire um
significado cultural enraizado na identidade de uma comunidade (Hobsbawm &
Ranger, 2008, p. 11). Uma rotina (no sentido de um caminho já trilhado e conhe-
cido) não tem qualquer função simbólica nem ritual importante para a vida co-
lectiva. Um costume é variável; é uma prática habitual, um modo de proceder,
um mero hábito. Então, colocam-se as perguntas:
– Qual é a relação entre a tradição e a globalização?
– Como é que a globalização, sendo um fenómeno social e total, pode
afectar a tradição, os elementos peculiares e locais de uma identidade
cultural?
– A globalização é um risco para a tradição?

Entre os riscos da globalização, também se destacam os que modificam


os valores tradicionais ou, simplesmente, o que é considerado tradicional numa
determinada cultura. A este propósito, Giddens refere-se à transformação da tra-
dição pela globalização, designadamente à transformação da vida local e à des-
tradicionalização. Este último conceito, o de “destradicionalização”, não significa
o desaparecimento da tradição, mas implica uma reorganização, em que a tradi-
ção é retrabalhada.
Verifica-se, por conseguinte, uma oposição ou confronto entre a novidade
e a antiguidade, entre o global e o local, entre a globalização e a tradição. Apesar
deste confronto, existem consequências ou riscos, como o de muitas tradições
não passarem de modernidades, segundo Giddens. As tradições que persistem
sofrem alterações (Giddens, 2000b, p. 46). Nesta perspectiva, todas as tradições
foram inventadas e nunca houve uma sociedade inteiramente tradicional.
As tradições são penetráveis à mudança, evoluem com o tempo, mas
podem ser transformadas ou alteradas rapidamente (são inventadas e reinven-
tadas), pelo que não há tradições inteiramente puras, segundo Giddens (2000b,
p. 48). As tradições possuem características genéricas para serem consideradas
como tais. Por exemplo:
– Incorporam poder e relações de poder.
– Possuem rituais simbólicos.
– Repetem-se no tempo (Giddens, 2000b, p. 49).

Todavia, Giddens (2000b, p. 51) reconhece que as tradições são necessárias


às sociedades e vão persistir sempre. Por exemplo, os kilts dos escoceses servem
para as celebrações de identidade cultural ancoradas na tradição de se usar estas
vestes como símbolo do antigo. Segundo Giddens, estes não são símbolos da
identidade escocesa, porque são de criação recente ou invenção industrial. “Os
kilts foram um produto da Revolução Industrial” e com estes não se pretendia
honrar uma tradição.
Sociologia da Comunicação
211

“Quando os escoceses se reúnem para celebrar a sua identidade nacional, fazem-


no de formas ancoradas na tradição. Os homens vestem o kilt, cada clã usa o tartan
com as suas cores próprias e as cerimónias são acompanhadas pela música das gai-
tas-de-foles. Através destes símbolos, demonstram que se mantêm fiéis aos rituais
de antanho, cujas origens são antiquíssimas. Só que isso não é verdade. Como é o
caso com muitos outros símbolos da identidade escocesa, todas estas coisas são
de criação recente. O kilt curto parece ter sido inventado por um industrial inglês
de Lancashire, Thomas Rawlinson, no início do século XVIII. Decidiu alterar o ves-
tuário que as gentes das terras altas então usavam para lhes facilitar a vida como
trabalhadores. Os kilts foram um produto da Revolução Industrial. Com eles, não
se pretendia honrar uma tradição; a ideia era absolutamente contrária: permitir
que as gentes das terras altas abandonassem o vestuário de couro para poderem
trabalhar nas fábricas. O kilt não começou por ser o traje nacional da Escócia. Os
habitantes das terras baixas, que constituem a maioria dos Escoceses, considera-
vam que os das montanhas se vestiam de uma maneira bárbara, que muitos olha-
vam com desprezo. E quanto aos tartans agora usados, muitos deles foram
elaborados, em pleno período vitoriano, por alfaiates empreendedores, que correc-
tamente viram neles uma boa fonte de negócios. Muitas das coisas que considera-
mos tradicionais, alicerçadas na neblina dos tempos, não passam, na verdade, de
produtos do último par de séculos, e por vezes são ainda mais recentes.” (Giddens,
2000b, pp. 45-46).

O kilt é um caso paradoxal, porque:


i) É inventado.
ii) É inventado por um industrial.
iii) É inventado por um industrial inglês, que ainda por cima alterou o
vestuário que as pessoas das terras altas usavam, com objectivos de
produtividade industrial.

8.5. Os media e a ideologia


Qual é a relação que se poderá estabelecer entre os media e a ideologia?
Aparentemente, os media e a ideologia não têm nada a ver entre si. Todavia, para
compreender as eventuais relações entre os media e a ideologia, convém esclare-
cer o que é a ideologia para além do sentido meramente político e corriqueiro.
Atente-se ao seguinte excerto de Giddens:
“O estudo dos media está intimamente relacionado com o impacto da ideologia na
sociedade. Por ideologia entendemos a influência das ideias nas crenças e nos com-
portamentos das pessoas. Este conceito tem sido amplamente utilizado em estudos
dos meios de comunicação social, bem como noutras áreas da sociologia, mas desde
há muito suscita controvérsia. A palavra foi usada pela primeira vez por um escritor
francês, Destutt de Tracy, no final do século XVIII. Nessa altura ele utilizou-a com
o sentido de ‘ciência das ideias’. Contudo, mais tarde, outros autores que se lhe se-
guiram utilizaram o termo com um sentido muito mais crítico. Marx, por exemplo,
considerava a ideologia como uma ‘falsa consciência’. Grupos poderosos são capa-
zes de controlar as ideias dominantes que circulam numa sociedade de modo a jus-
tificar a sua posição. Por isso, segundo Marx, a religião é, muitas vezes, ideológica:
Paulo M. Barroso
212

ensina os pobres a contentarem-se com o que têm. O analista social deveria pôr a
descoberto as distorções da ideologia, de modo a permitir que os mais desfavore-
cidos adquiram uma perspectiva verdadeira da vida que têm - e para que empreen-
dam acções que levem a melhorar as suas vidas.” (Giddens, 2008, p. 468).

Se o conceito de ideologia, segundo Giddens, só foi usado pela primeira


vez no século XVIII (mais concretamente em 1796, por Destutt de Tracy),155 o con-
ceito foi desenvolvido meio século depois por Littré, quando definiu a entrada
“idéologie” no seu Dictionnaire (1863-1869). Nesta ocasião, Littré enumera três
significados para o conceito de ideologia:156
1. Ciência das ideias, consideradas em si mesmas, ou seja, como fenóme-
nos do espírito humano.
2. Ciência que trata da formação das ideias, num sentido mais restrito,
depois sistema filosófico segundo o qual a sensação é a fonte única dos
nossos conhecimentos e o princípio único das nossas faculdades.
3. Teoria das ideias, segundo Platão.

Mais ou menos consensualmente, a definição de ideologia é a de um sis-


tema de representações e percepções, ideias e ideais, valores e juízos, um sistema
“explícita e geralmente organizado, que serve para descrever, explicar, interpretar
ou justificar a situação de um grupo ou de uma colectividade”, propondo uma
orientação precisa para a acção, segundo Guy Rocher (1989c, pp. 55-56). É um
sistema coerente de percepções e representações. Mas o conceito de ideologia
pode ter uma conotação positiva e outra negativa, i.e. ser compreendido por duas
concepções opostas e fundamentais, uma pejorativa e outra laudatória:157
a) A concepção marxista de ideologia como distorção.
b) A concepção integradora de ideologia como sistema cultural.

A primeira concepção é a de Marx, principalmente a que é apresentada


nas suas obras iniciais e em A ideologia alemã; a segunda concepção é represen-
tada por Geertz, em A interpretação das culturas.

155
Através da obra Elements d’idéologie, segundo Adorno e Horkheimer (cf. 1973, p. 203).
156
Cf. Vuillemin, 1999, p. 484.
157
Existem outras concepções de ideologia, algumas dignas de registo por serem originais e
interessantes, como a de Max Weber, que concebe a ideologia como legitimação da autoridade
ou do sistema de poder, segundo a qual o poder esforça-se sempre por se legitimar. Para Weber,
não existe poder dominante sem uma pretensão de legitimidade e uma crença na legitimidade.
Weber atribui uma função de mediação diferente à ideologia: a função de legitimação. Esta serve
de elo entre a concepção marxista de ideologia como distorção e o conceito integrador de
ideologia de Geertz. Para mais desenvolvimento sobre esta concepção de ideologia de Weber,
veja-se Ideologia e a utopia, de Ricoeur (cf. 1991, pp. 323-346).
Sociologia da Comunicação
213

Com a primeira concepção, o termo “ideologia” adquire uma maior noto-


riedade. Todavia, se o primeiro uso por parte de Destutt de Tracy tem o sentido
de “ciência das ideias”, o uso de Marx tem um sentido essencialmente crítico e
pejorativo, porque significa “falsa consciência” ou “falsa realidade”, pois “é alie-
nante no sentido em que deforma a realidade e disfarça os factos ou os apresenta
por detrás de uma cortina de fumo” (Dortier, 2006, p. 270). Em Ideologia e utopia,
Paul Ricoeur discute o conceito de ideologia nas primeiras obras de Marx como
estando determinado pela sua oposição à realidade. A tarefa de Marx é determi-
nar o que é o real e esta determinação afecta o conceito de ideologia, “uma vez
que a ideologia é tudo o que não é esta realidade” (Ricoeur, 1991, p. 93). A opo-
sição é entre ideologia e realidade. É preciso fazer a crítica da ideologia para se
proceder à reversão, pois as coisas foram invertidas na consciência humana e é
preciso “inverter a inversão”. Este é o procedimento da crítica, traçado em Crítica
da filosofia do direito de Hegel, escrito em 1843, se bem que o conceito de ideologia
só é desenvolvido por Marx posteriormente, em A ideologia alemã.158
“É interessante ver que o termo é introduzido por Marx mediante uma metáfora
tirada de uma experiência física ou fisiológica, a experiência da imagem invertida
que encontramos numa máquina fotográfica ou na retina. A partir desta metáfora
da imagem invertida e da experiência física por detrás da metáfora, obtemos o pa-
radigma ou modelo da distorção como reversão. Esta imagística, o paradigma de
uma imagem invertida da realidade, é muito importante para situarmos o nosso
primeiro conceito de ideologia. A primeira função da ideologia é a produção de
uma imagem invertida.” (Ricoeur, 1991, p. 70).

Para Marx, o sentido crítico e pejorativo da ideologia face à realidade re-


fere-se a grupos influentes na sociedade, capazes de incutir e controlar as ideias
dominantes que circulam, de modo a justificar a sua posição. Neste grupo de in-
fluência inserem-se os media. Marx pretende lançar as bases de uma análise crí-
tica das ideologias enquanto conjunto de representações, ideais e valores de uma
classe ou grupo social, pois a ideologia é o produto de uma dada posição social;
é uma superestrutura; é o reflexo da posição social de uma classe dominante,
“que tende a legitimar o seu poder justificando-o com valores universais” (Dor-
tier, 2006, p. 270).
Nesta concepção de Marx, observa-se uma relação entre a ideologia e o
poder, na medida em que os sistemas ideológicos servem para legitimar o poder
detido por certos grupos. Segundo Giddens, a ideologia é o exercício do poder

158
A crítica começa com a crítica da religião, trabalho já realizado e completado por Feuerbach.
Assim, a crítica da ideologia de Marx apoia-se na crítica da religião de Feuerbach. Trata-se do
modelo da consciência invertida, notório na Crítica da filosofia do direito de Hegel, quando Marx
(cf. 2005, p. 145) afirma que o fundamento da crítica irreligiosa é este: o homem faz a religião
(que é uma consciência invertida do mundo, uma “realização fantástica”, uma realidade não
verdadeira); a religião não faz o homem (cf. Ricoeur, 1991, pp. 95-96).
Paulo M. Barroso
214

simbólico, ou seja, “do modo como as ideias passaram a ser utilizadas para es-
conder, justificar ou legitimar os interesses dos grupos dominantes da ordem so-
cial” (Giddens, 2008, p. 469). A ideologia é, por conseguinte, um conjunto de
ideias ou crenças que são partilhadas para justificar os interesses de determina-
dos grupos dominantes. Existem ideologias em todas as sociedades com desi-
gualdades entre os indivíduos, segundo Giddens (2008, p. 694).
A relação entre os media e a ideologia surge com a questão da possível
carga ideológica dos conteúdos transmitidos, quer noticiários televisivos quer
programas generalistas. A transmissão é realizada de um modo imperceptível e
influente sobre os públicos. Se as notícias favorecem o governo em detrimento
da objectividade informativa, os meios de comunicação de massas difundem
ideologia e alargam o seu raio de acção na sociedade, pois as mensagens chegam
a grandes audiências. Neste caso, os media difundem “valores e crenças que con-
tribuem para assegurar o domínio de grupos mais poderosos sobre os menos po-
derosos” (Giddens, 2008, p. 672).
Segundo Adorno e Horkheimer, a relação entre os media e a ideologia é
notória e violenta, alimentando a indústria cultural:
“Face ao poder indescritível que esses meios de comunicação exercem sobre os
seres humanos hoje – e aqui o desporto, que há muito tempo já se transformou
em ideologia em sentido lato, também deve ser incluído – a determinação concreta
do seu conteúdo ideológico é de urgência imediata. Este conteúdo produz uma
identificação sintética das massas com as normas e as condições que se situam
anonimamente atrás da indústria cultural, ou são propagadas conscientemente
por ela.” (Adorno & Horkheimer, 1973, p. 201).159

Para Habermas, na mesma linha crítica de pensamento da Escola de Frank-


furt, tal como Adorno e Horkheimer, a ideologia é um modo de comunicação dis-
torcida, a distorção sistemática da relação de diálogo. Num contexto de
reconhecimento das partes em interacção e relação dialógica, a situação de não
comunhão deve ser superada pelo reconhecimento, mas é uma doença da comu-
nicação. “A ideologia é, pois, em si, uma doença da comunicação”; “a ideologia
não é distorção acidental, mas antes sistemática da relação dialógica” (Ricoeur,
1991, p. 388).
Com a segunda concepção, por contraposição, a ideologia é identidade e
integração para Geertz; não é distorção. Com Geertz, o conceito e a interpretação

159
Tradução do autor a partir da edição consultada em inglês de Adorno & Horkheimer: “In the face
of the indescribable power which these media exercise over human beings today – and here
sport, which for a long time already has gone over into ideology in the broader sense, must also
be included – the concrete determination of their ideological content is of immediate urgency.
This content produces a synthetic identification of the masses with the norms and the conditions
which either stand anonymously in the background of the culture industry, or else are
consciously propagated by it.”
Sociologia da Comunicação
215

de ideologia não são pejorativos. Em “A ideologia como sistema cultural”, texto


inserido na obra A interpretação das culturas, Geertz (2008, p. 125) entende a ideo-
logia como um mapa; uma guardiã da identidade. Ricoeur (cf. 1991, p. 430) con-
sidera esta a função integrativa da ideologia para Geertz, a função de preservar
a identidade. A ideologia é uma mediação simbólica e é constitutiva da existência
social. “A função da ideologia consiste em tornar possível uma política autônoma,
fornecendo os conceitos autoritários que lhe dão significado, as imagens suasó-
rias por meio das quais ela pode ser sensatamente apreendida” (Geertz, 2008, p.
124). A ideologia tem a ver sempre com o poder político.160 É através da constru-
ção de ideologias, enquanto imagens esquemáticas da ordem social, que se cons-
titui, para o bem ou para o mal, o “animal político” (Geertz, 2008, p. 124).
Em última análise, a ideologia tem a ver, segundo Ricoeur, com a natureza
da acção humana, que é mediatizada, estruturada e integrada por sistemas sim-
bólicos. Ricoeur defende, por conseguinte, que existe um lado positivo e um lado
negativo no conceito de ideologia: a concepção integradora da ideologia como
identidade e integração; e a concepção marxista da ideologia como distorção.
Será possível haver uma época, uma sociedade ou uma cultura sem ideo-
logia? Não, se considerarmos que as formas de vida e os padrões de cultura, prin-
cipalmente os mais globalizados, massificados e visuais, são ideológicos. O que
se consome (produtos/mercadorias tangíveis ou intangíveis) incorpora ideologia,
pois quase sempre recorre a signos/imagens com significados ocultos. Estas for-
mas implicam o não conhecimento dos seus participantes sobre a sua essência,
que não reconhecem a ideologia ou nem pensam no que fazem. É a ideologia
como distorção da visão sobre a realidade.
Conforme sustenta Slavoj Žižek, em Eles não sabem o que fazem: O sublime
objeto da ideologia, a dimensão fundamental da ideologia é a que a torna não
apenas uma “falsa consciência”, uma representação ilusória da realidade, mas
uma falsa consciência misturada com a própria realidade (Žižek, 1992, p. 25). Em
A ideologia alemã, Marx e Engels apresentam a ideologia como um reflexo inver-
tido do real na consciência das pessoas, que vivem em sociedade, sobre a natu-
reza das suas relações. É como acontece com a inversão das imagens numa
câmara escura. Segundo Marx e Engels em A ideologia alemã:
“A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente
[bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se, em toda ideo-
logia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câ-
mara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma
forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida ime-
diatamente físico.” (Marx & Engels, 2007, p. 94).

160
Porque a ideologia tem sempre a ver com a questão do poder (político), Ricoeur confessa que
está tentado a afirmar que a ideologia tem uma função mais vasta do que a política, na medida
em que é integrativa (cf. Ricoeur, 1991, p. 433).
Paulo M. Barroso
216

A ideologia fomenta a ideia de que é a consciência que determina a vida.


Marx e Engels afirmam o contrário: “não é a consciência que determina a vida,
mas a vida que determina a consciência” (Marx & Engels, 2007, p. 94).
Para Žižek, o sentido primordial de “ideologia” está na concepção do livro
O capital, de Marx: as pessoas não sabem o que fazem nem que participam no
sistema. De acordo com Žižek, em Eles não sabem o que fazem: O sublime objeto da
ideologia:
“A definição mais elementar da ideologia é, provavelmente, a de Marx, o célebre ‘disso
eles não sabem, mas o fazem’. Atribui-se à ideologia, portanto, uma certa ingenuidade
constitutiva: a ideologia desconhece suas condições, suas pressuposições efetivas, e
seu próprio conceito implica uma distância entre o que efetivamente se faz e a “falsa
consciência” que se tem disso. Essa “consciência ingênua” pode ser submetida ao
método crítico-ideológico, que supostamente a leva à reflexão sobre suas condições
efetivas, sobre a realidade social de que ela faz parte.” (Žižek, 1992, p. 59).

Em Um mapa da ideologia, Žižek considera que a ideologia parece surgir


quando tentamos evitá-la e deixa de aparecer quando tal não se esperaria:
“‘Ideologia’ pode designar qualquer coisa, desde uma atitude contemplativa que
desconhece sua dependência em relação à realidade social até um conjunto de cren-
ças voltado para a ação; desde o meio essencial em que os indivíduos vivenciam
suas relações com uma estrutura social até as ideias falsas que legitimam um poder
político dominante. Ela parece surgir exactamente quando tentamos evitá-la e
deixa de aparecer onde claramente se esperaria que existisse.” (Žižek, 1999, p. 9).

A ideologia não tem de ser entendida numa relação de causa-efeito com a


sociedade e com a economia. Para Louis Althusser (1918-1990), a ideologia é um
conjunto contínuo e abrangente de práticas no qual todas as classes participam
(cf. Althusser, 1980, pp. 84-85). Ao contrário do entendimento marxista da ideo-
logia como um conjunto de ideias impostas por uma classe dominante ou privi-
legiada sobre as outras classes, Althusser (1980, p. 101) sustenta que todas as
ideologias interpelam os indivíduos como sujeitos e operam de dentro para fora
(em vez de operarem de fora para dentro, conforme a interpretação marxista),
pois estão inscritas nas maneiras de pensar e de viver de todas as classes.
Em determinadas circunstâncias históricas, a ideologia assume a forma
material ou institucional nas sociedades de classes. Althusser denomina estas
duas formas por “aparelhos ideológicos de estado” e “aparelhos repressivos de
estado”:
Sociologia da Comunicação
217

Aparelhos ideológicos de estado Aparelhos repressivos de estado

Conjunto das instituições sociais que surgem na Complexo de forças coercivas ou reguladoras à
sociedade civil, desempenhando funções disposição do Estado e directamente sob o seu
reguladoras e reproduzindo a ideologia do Estado controlo.
(e.g. a esfera do privado em oposição ao Estado).
Incluem a educação, a família, a religião, o Incluem o sistema penal, a polícia, o exército, a
sistema legal, o sistema político-partidário, a legislatura e a administração do governo.
cultura e a comunicação.
São caracterizados pelo consentimento, em vez Caracterizam-se pela autoridade legitimada do
da coerção, e pela relativa autonomia em relação Estado para impor ordens ao povo.
à classe económica dominante ou aos
representantes no Estado.

Tabela 15: Diferenças entre “aparelhos ideológicos de estado” e “aparelhos repressivos de estado”,
segundo Althusser (cf. Hartley, 2004, p. 25).

A função dos “aparelhos ideológicos de estado” é reproduzir a submissão


das pessoas às relações de produção, i.e. discipliná-las conforme os interesses
mais convenientes à manutenção das relações de produção existentes. Os inte-
resses de classe são representados de uma maneira subtil. Por exemplo, os media
são neutros (porque as suas representações do mundo social são imparciais), mas
apenas determinadas ideologias são representadas como merecedoras de trata-
mento imparcial (cf. Hartley, 2004, p. 25).
Todas as formas de manifestação da ideologia implicam um modo de alie-
nação (dominação e exploração). No caso dos media, existe um fosso entre a ima-
gem e a realidade que estes apresentam, ou por via do sensacionalismo e do
espectáculo das imagens ou pela incúria em separar o trigo do joio, ou seja, a
verdade e os factos, por um lado, e as notícias e imagens falsas, por outro. Se-
gundo Hartley (2004, p. 133), “o conceito de ideologia revelou-se muito influente
no estudo da comunicação e cultura”, pois adverte para a não existência de sig-
nificados naturais inerentes a um evento, mas que os significados nos quais even-
tos são construídos são sempre orientados socialmente, i.e. são alinhados com a
classe, o género, a raça ou outros interesses.

8.6. Questões para revisão e reflexão


1. Qual é a relação entre os fenómenos da globalização e da comunicação?
Qual destes fenómenos, a globalização ou a comunicação, é a causa do
outro?
2. Qual é a relação entre a globalização e o capitalismo?
3. Qual é a relação entre a globalização e a queda do comunismo?
4. A globalização dos meios e dispositivos electrónicos de comunicação
melhora ou piora a nossa compreensão do mundo, a nossa tolerância
face à diferença e as nossas relações com os outros?
Paulo M. Barroso
218

5. O que é a globalização para Giddens e quais são os seus riscos? Quais


são as perspectivas sobre a globalização?
6. O que Giddens quer dizer com “as culturas tradicionais não dispõem
do conceito de risco, porque não precisam dele”?
7. Comente esta afirmação de Giddens: “Muitas das coisas que conside-
ramos tradicionais, alicerçadas na neblina dos tempos, não passam, na
verdade, de produtos do último par de séculos, e por vezes são ainda
mais recentes.”
8. Quais são os papéis da ciência e da tecnologia no mundo actual?
9. Qual é o papel dos media na “democratização das democracias”? A in-
tervenção dos media no campo político é positiva para a democracia?
10. Qual é a relação entre a tradição e a globalização? Como é que a globa-
lização pode afectar a tradição, os elementos peculiares e locais de uma
identidade cultural? A globalização é um risco para a tradição?
11. Qual é a relação entre os media e a ideologia?
12. Será possível haver uma época, uma sociedade ou uma cultura sem
ideologia?
13. As transnacionais têm, realmente, mais poder do que os governos?
14. Porque se diz que os riscos são, cada vez mais, manufacturados?
Sociologia da Comunicação
219

9. Sartori: sociedade do visível


“Uma coisa sobre a qual os peixes não conhecem rigorosamente nada é a água,
pois eles não têm nenhum anti-ambiente que lhes permitiria perceber o elemento em que vivem.”161
(McLuhan & Fiore, 1968, p. 175).

A epígrafe deste capítulo é paradoxal e sintomática relativamente à carac-


terização que McLuhan apresenta das relações entre os indivíduos ou públicos e
os meios electrónicos de comunicação. É paradoxal, porque apresenta uma apa-
rente contradição: os utilizadores dos meios de comunicação não têm consciência
dos próprios meios que utilizam nem conhecem os seus efeitos. É sintomática,
pois o meio de comunicação é tão imperceptível como a água é para o peixe. No
entanto, quer o meio de comunicação (ou a cultura electrónica em que vivemos)
quer a água enquanto meio ambiente vital para os peixes, envolvem completa-
mente e numa condição sine qua non os indivíduos e os peixes, respectivamente.
Conclusão: somos como os peixes que não se apercebem da água onde nadam e
vivem. Também é paradoxal Giovanni Sartori (1924-2017), seguidor das principais
teses de McLuhan, referir-se à tendência para as actuais sociedades se tornarem
sociedades do visível, da primazia da imagem, quando os indivíduos são como
peixes dentro das suas culturas e sociedades, sem se aperceberem da estrutura
social onde estão inseridos e dos efeitos que sobre eles exerce o uso predominante
dos meios electrónicos nessas estruturas e culturas modernas. “O que os peixes
são capazes de ver tem uma analogia próxima com o grau de consciência que
todas as pessoas têm em relação a qualquer novo ambiente criado por uma nova
tecnologia - quase zero” (cf. McLuhan & Fiore, 1968, p. 175).162
Depois da invenção do alfabeto e da escrita, numa primeira fase, e da im-
prensa, numa segunda fase, o ser humano passa a reproduzir e a distribuir in-
formações em grandes quantidades. Com o desenvolvimento dos sistemas
electrónicos de comunicação (a terceira fase revolucionária na história da comu-
nicação), o ser humano passa a comunicar com mais facilidade e rapidez.
As actuais redes de telecomunicações (suporte das auto-estradas da infor-
mação) tornam possível a comunicação interactiva e biunívoca, ultrapassando a
era da comunicação unívoca (a alternância em ser emissor e receptor). Os pro-
gressos nos sistemas informáticos de comunicação proporcionam maior autono-
mia e liberdade.

161
Tradução do autor a partir da edição consultada no original em inglês War and peace in the global
village, de McLuhan e Fiore: “One thing about which fish know exactly nothing is water, since
they have no anti-environment which would enable them to perceive the element they live in.”
162
Tradução do autor a partir do original em inglês de McLuhan e Fiore: “What fish are able to see
bears a close analogy to that degree of awareness which all people have in relation to any new
environment created by a new technology - just about zero.”
Paulo M. Barroso
220

O advento da internet abriu a possibilidade de todas as pessoas, em qual-


quer momento, entrarem num infindável mundo virtual de informações. Actual-
mente, as organizações enfrentam novos desafios resultantes da globalização
dos mercados, que conduzem à procura de novas soluções organizativas, permi-
tindo-lhes enfrentar a concorrência de uma forma mais segura e rentável. Uma
das mais vantajosas soluções é a adopção e utilização correcta de tecnologias de
informação e comunicação.
Estes novos media combatem o isolamento e são oportunidades de sucesso
para as empresas, instituições e organizações que, se não adoptarem meios tec-
nológicos de informação e de comunicação actualizados, podem até colocar em
causa a sua sobrevivência. Sem meios de comunicação adequados e actuais, as
empresas, instituições e organizações ficam mais isoladas e os seus produtos e
serviços não são tão conhecidos nem podem ser a escolha nem a preferência dos
consumidores.
As novas tecnologias de informação e de comunicação são interpretadas
como um conjunto de conhecimentos reflectidos, quer em equipamentos e pro-
gramas, quer na sua criação e utilização pessoal e organizacional. Estas novas
tecnologias envolvem processos de tratamento, controlo e comunicação de con-
teúdos baseados, essencialmente, em meios electrónicos: computadores ou sis-
temas informáticos. Todavia, este “admirável novo mundo” também coloca
problemas, dificuldades e implicações nefastas, como as que Sartori salienta e
são apresentadas neste capítulo 9.

9.1. Do homo sapiens ao homo videns


Em Homo videns: Televisão e pós-pensamento, Sartori considera algumas ca-
racterísticas que definem e permitem compreender o mundo actual em plena e
rápida revolução multimediática (tecnológica e digital). Trata-se de um processo
com muitos tentáculos (internet, computadores pessoais, ciberespaço, etc.). To-
davia, Sartori critica este processo, porque é baseado no virtual, no vazio.
“Atualmente estamos passando por um rapidíssimo processo revolucionário dos
Meios de Comunicação. Um processo com muitos tentáculos (Internet, computa-
dores pessoais, espaço cibernético, etc.), mas que, basicamente, é caracterizado por
um denominador comum: a capacidade de ver à distância – tele-ver – surgindo daí
o nosso vídeo viver. […] o vídeo está transformando o homo sapiens produzido pela
cultura escrita em um homo videns no qual a palavra vem sendo destronada pela
imagem. Tudo se torna visualizado. Mas, neste caso, o que vai acontecer com as
coisas que não são visíveis, que constituem de facto a maior parte da realidade?
Assim, enquanto nos preocupamos com os que controlam os meios de comunica-
ção, não nos damos conta de que escapou do nosso controle o próprio instrumento
em si.
Muitos se queixam da televisão, achando que está incentivando a violência, que
está informando pouco e mal, ou até mesmo acusando-a de ser causa de retrocesso
(como escreveu Habermas). Isso é verdade. Todavia, é ainda mais verdadeiro e ainda
Sociologia da Comunicação
221

mais importante entender que a televisão está mudando a natureza do ser humano.
É este o aspecto essencial, aliás essencialíssimo, que até hoje escapou da atenção
da maioria das pessoas. Entretanto, é bastante evidente que o mundo em que vi-
vemos já está se apoiando nos ombros da ‘geração-televisiva’: uma espécie recen-
tíssima de ser humano criado pela tele-visão – diante de um televisor – antes
mesmo de saber ler e escrever.
Por isso, na primeira parte deste livro vou tratar e me preocupar com a primazia
da imagem, isto é, com uma espécie de predomínio do visível sobre o inteligível
que conduz para um ver sem entender. […] A respeito desta matéria, o mais cáus-
tico é Baudrillard: ‘A informação – ele escreve – em lugar de transformar a massa
em energia, produz ainda mais massa’. É óbvio que a televisão – ao contrário dos
instrumentos de comunicação que a precederam (até o rádio) – destrói mais saber
e mais entender do que transmite.” (Sartori, 2001, pp. 7-9).

Sartori identifica um denominador comum nesta revolução: o “telever”. É


o reconhecimento da importância e da influência da televisão, pois o “telever”
está a mudar a natureza do ser humano. Outro conceito importante utilizado por
Sartori é o de “videoviver”. Estes dois conceitos remetem para a ideia de visua-
lidade, que é frequente nas culturas actuais, que são cada vez mais visuais. Para
Sartori, o vídeo está a transformar o homo sapiens, produto da cultura escrita,
em homo videns, no qual a palavra é destronada pela imagem. Relacionado com
estes dois conceitos e com a ideia de visualidade, temos um outro conceito, o de
“videocriança”.
Para Sartori, a visualidade é dominante na cultura e nos comportamentos
sociais, originando opiniões teledirigidas. Existe uma primazia da imagem, uma
prevalência do visível sobre o inteligível, que leva a um ver sem compreender. A
televisão também entra no quadro de referências de Sartori e concorre para a re-
ferida ideia de visualidade, em que a imagem funciona como uma outra lingua-
gem. Existem inúmeras linguagens cuja unidade significante não é a palavra,
mas é a própria e simples imagem. É o que acontece, por exemplo, com a lingua-
gem do cinema. Conforme realça Sartori, a imagem não se vê em chinês, árabe
ou inglês, porque simplesmente se vê.
A televisão permite ver tudo sem ir ver: o que é visível entra em casa gra-
tuitamente e em todo o lado. A televisão modifica a natureza da comunicação,
deslocando-a do contexto da palavra (enquanto símbolo) para o contexto da ima-
gem (enquanto pura e simples representação visual, i.e. imagem que simples-
mente se vê).163 Segundo Sartori:
“O ponto de viragem, portanto, é dado pela informação visual. Tal viragem começa
com a chegada da televisão. Por isso, eu também começo pela tele-visão. Sejam

163
É como afirma Roland Barthes a propósito da mensagem fotográfica, que é de leitura universal,
bastando olhar para o seu conteúdo. Segundo Barthes, em O óbvio e o obtuso: “Temos então o
estatuto particular da imagem fotográfica: é uma mensagem sem código; proposição da qual
temos imediatamente de extrair um corolário importante: a mensagem fotográfica é uma
mensagem contínua.” (Barthes, 2009, p. 13).
Paulo M. Barroso
222

quais forem, depois da televisão, os desenvolvimentos virtuais da televisão, é jus-


tamente a televisão que, antes de mais nada, vai modificar, e essencialmente, a
própria natureza da comunicação, deslocando-a do contexto da palavra (seja im-
pressa ou transmitida pelo rádio) para o contexto da imagem. A diferença é radical.
A palavra é um ‘símbolo’ totalmente resolvido naquilo que significa, naquilo que
faz entender. E a palavra leva alguém a compreender somente quando for enten-
dida, quer dizer, quando conhecemos a língua a que pertence; caso contrário é letra
morta, um sinal ou um som qualquer. Ao contrário, a imagem é pura e simples re-
presentação visual. Assim, para entender uma imagem, é suficiente vê-la; e para
vê-la basta a visão, é suficiente não ser cego. De facto, não se vê a imagem em chi-
nês, árabe ou inglês. Repito: é só vê-la e basta. Enquanto a palavra é parte inte-
grante e constitutiva de um universo simbólico, a imagem não é nada disso.
É óbvio, então, que o caso da televisão não pode ser tratado por analogia, isto é,
como se a televisão fosse uma continuação e uma mera ampliação dos instrumen-
tos de comunicação que a precederam. Através da televisão nos aventuramos numa
realidade radicalmente nova. Por isso, a televisão não é um acréscimo, mas, antes
de mais nada, uma substituição que derruba a relação entre o ver e o entender. Até
hoje nós tomávamos conhecimento tanto do mundo como também dos seus acon-
tecimentos mediante a narração oral ou também escrita; hoje, porém, podemos
vê-los com os nossos olhos e a narração – ou a sua explicação – é quase apenas em
função das imagens que aparecem no vídeo.” (Sartori, 2001, pp. 21-22).

Sartori refere-se ao empobrecimento da capacidade de compreensão da


realidade por parte do ser humano, quando este se expõe às imagens e aos efeitos
da televisão. A apetência pelas imagens é uma característica fundamental das
sociedades e das culturas visuais. A imagem (para o culto e a prática da visuali-
dade) prolifera nas sociedades modernas, ao ponto de elevar estas sociedades ao
nível de renovadas sociedades da iconolatria e da iconofilia. A imagem retira ca-
pacidades inteligíveis aos indivíduos, que preferem maneiras mais fáceis, cómo-
das e passivas de absorver impressões do mundo. Sartori conclui, por
conseguinte, que a televisão inverte o desenvolvimento e progressão inteligíveis:
“Em suma, e sintetizando: todo o saber do homo sapiens se desenvolve na dimensão
de um mundus intelligibilis (de conceitos e de concepções mentais) que não é de
modo algum o mundus sensibilis, o mundo percebido pelos nossos sentidos. Por
isso, a questão consiste no facto que a televisão inverte o progredir do sensível
para o inteligível, virando-o num piscar de olhos (ictu oculi) para um retorno ao
puro e simples ver. Na realidade, a televisão produz imagens e apaga os conceitos;
mas desse modo atrofia a nossa capacidade de abstração e com ela toda a nossa
capacidade de compreender. […] Portanto, o que nós vemos e percebemos concre-
tamente não produz ‘ideias’, mas insere-se nas ideias (ou conceitos) que o classifi-
cam e ‘significam’. E é justamente este o processo que vem sendo atrofiado quando
o homo sapiens é suplantado pelo homo videns.” (Sartori, 2001, pp. 32-33).

A televisão inverte a progressão do sensível para o inteligível, porque pri-


vilegia a imagem e, consequentemente, impõe a passividade do acto de ver. Con-
forme também salienta Balandier em O poder em cena, “a televisão consegue a
pouco e pouco a invasão pela imagem que suplanta a palavra; o ecrã torna-se o
Sociologia da Comunicação
223

lugar onde tudo pode ser mostrado sob um aspecto dramático, para que o julga-
mento se formule de acordo com o conselho de Maquiavel a partir do que é visto”
(Balandier, 1999, p. 103).
Actualmente, com a utilização massificada (por qualquer pessoa, em qual-
quer lugar e em qualquer momento) de telemóveis e redes sociais (e.g. o Insta-
gram, rede que promove o culto da imagem), as sociedades e culturas tendem a
privilegiar a visualidade. Através da proliferação de ecrãs (incluindo outdoors
electrónicos e dinâmicos) e de imagens, o culto da imagem re-semantiza uma
época de iconofilia (amor ou gosto pelas imagens) e iconolatria (culto e adoração
das imagens).

9.2. Questões para revisão e reflexão


1. Quais são os principais inconvenientes da televisão enquanto meio po-
pular de comunicação de massas?
2. Porque é que se verifica a passagem do homo sapiens para o homo vi-
dens, segundo Sartori?
3. Qual é o problema identificado e imputado às imagens? Porque é que
uma iconofilia ou iconolatria moderna é prejudicial?
4. A sociedade evolui ou regride com o culto e a primazia das imagens? E
a inteligibilidade humana?
5. Qual é a relação entre as perspectivas de Sartori e a de McLuhan?
Sociologia da Comunicação
225

10. Victoria Camps: sociedade da informação


“A cultura de massas é medíocre se apenas procura a atenção das massas.
Não pode ser alta cultura porque apenas alguns estão preparados para entendê-la
e apreciá-la. Os meios de comunicação são meios de massas, essa é a sua
razão de ser, não podem fingir ser outra coisa.”
(Camps, 1996b, p. 154).164

Em Paradoxos do individualismo, Victoria Camps reflecte sobre o individua-


lismo e o seu papel nas sociedades modernas. O individualismo é apresentado
nesta obra como um traço negativo e fundamental da modernidade. Segundo
Camps:
“O individualismo é, para nós, a anti-ideologia, o maior obstáculo para criar e apos-
tar em empreendimentos ou ideais comuns. São individualistas os membros das
sociedades liberais avançadas, porque se mostram insolidários, insensíveis em re-
lação às desigualdades, sem qualquer interesse pelos assuntos públicos. […] E são
individualistas sociedades inteiras, precisamente as mais desenvolvidas, que são,
por sua vez, as mais indiferentes às misérias daqueles que vivem pior.” (Camps,
1996a, p. 16).

Para Camps (1996a, p. 17), o “individualismo significa atomização, fecha-


mento na esfera privada e desafecto em relação ao público”. Por conseguinte, o in-
dividualismo ameaça a democracia e os ideais modernos de igualdade, fraternidade
e liberdade, bem como os ideias absolutos e os valores liberais de justiça social, so-
lidariedade e direitos/garantias fundamentais de todos os seres humanos.
No que mais interessa à Sociologia da Comunicação, Camps implica os
meios de comunicação social e o seu contributo ou envolvimento no individua-
lismo, perguntando:
– Os meios de comunicação devem servir para aquilo que estão a servir?
– A racionalidade económica permite-nos ser razoavelmente humanos?
– Se a cultura em que vivemos é uma cultura do individualismo e se a rea-
lidade que se apresenta ao indivíduo é insatisfatória, qual é o papel dos
meios de comunicação social no fomento dessa cultura do individua-
lismo e da insatisfação geral?

Segundo Camps, os meios de comunicação funcionam paradoxalmente,


fomentando o contrário daquilo que é suposto, i.e. promovem o isolamento social
em vez do contacto comunicacional:

164
Tradução do autor a partir do texto original em espanhol de Camps: “La cultura de masas es
mediocre si sólo busca la atención de las masas. No puede ser alta cultura porque sólo unos
pocos están preparados para entenderla y apreciarla. Los medios de comunicación son medios
de masas, esa es su razón de ser, no pueden pretender ser otra cosa.”
Paulo M. Barroso
226

“Os meios de comunicação, por estranho que pareça, não nos fazem comunicar,
contribuindo antes para nos isolar no nosso próprio mundo. Nada faz com que o
indivíduo se sinta mais compreendido, mais atendido, mais acompanhado. A so-
ciedade da comunicação não é mais solidária nem mais afectiva. Não soube pôr os
meios e o progresso técnico ao serviço da democracia e do entendimento mútuo.
Muito menos ao serviço do ser humano. A técnica vale por si própria e só se sub-
mete ao poder económico.” (Camps, 1996a, p. 21).

Camps critica a comunicação social, principalmente por considerar que


esta não está a servir para aquilo que mais podia e devia, principalmente sendo
a comunicação o paradigma da nossa época. Neste aspecto do desenvolvimento
da comunicação, graças às inovações técnicas e tecnológicas, bem como ao seu
estatuto de paradigma, Camps (1996a, p. 144) reconhece que McLuhan tinha
razão ao referir-se à “aldeia global”. Assim, Camps refere-se a uma sociedade de
incomunicados:
“A comunicação é o paradigma cultural do século XX. Graças à técnica, é muito
simples comunicar: o telefone, o telefax, a rádio, a televisão, a imprensa, os trans-
portes aéreos, tudo nos leva longe com uma rapidez que ainda nos surpreende. Os
meios de comunicação, desenvolvidos até ao inacreditável, constituem o ‘quarto
poder’, um poder indiscutível de que deixa testemunho a irrefutável expressão –
ainda que nos custe – de que só é real o que aparece nos meios de comunicação.
Não demorou a aparecer uma profissão, insólita ainda há poucos anos: a dos co-
municólogos, destinada a investigar e a teorizar o alcance e limites da comunica-
ção. A possibilidade de comunicarmos é um valor do nosso século, um valor que
muito provavelmente ocupou o lugar dos valores ilustrados do progresso e a razão.”
(Camps, 1996a, p. 143).

É um paradoxo falar em incomunicação num tempo e numa sociedade da


comunicação. Todavia, é o que faz Camps, seguindo outros autores, como Bau-
drillard:
“Baudrillard disse que ‘a essência da comunicação é a não comunicação’. Parece
um paradoxo, mas tem o seu sentido. Porque é que começámos a falar de comuni-
cação – pergunta-se o comunicólogo francês – porque temos que ‘comunicar-nos’
quando é tão fácil falar? E responde: ‘Quando se fala de comunicação, é porque já
não se comunica nada, é porque a comunhão de sentido se perdeu’. Surgem então
as técnicas da comunicação, os profissionais da comunicação, as ciências da comu-
nicação e toda uma série de termos: emissor, receptor, código, mensagem, contexto.
Tem razão: devemos perguntar-nos o que é que queremos dizer quando dizemos
‘comunicação’. O que é comunicar? Falar por telefone? Trocar faxes? Nada mais?”
(Camps, 1996a, p. 147).

Na perspectiva de Camps existe uma latente crítica à pós-modernidade


mediática, aos efeitos sociais da globalização informática, ao papel das novas
tecnologias da informação e comunicação sobre os indivíduos e à perda (ou, pelo
menos, à mudança) de um quadro de valores sociais. Por conseguinte, há lugar
para as ideologias e para as identidades locais/culturais nas sociedades contem-
porâneas globalizadas?
Sociologia da Comunicação
227

A crítica de Camps aos meios de comunicação social também se estende


ao campo da ética ou dos imperativos comerciais que se sobrepõem aos princípios
editoriais. Em El malestar de la vida pública, Camps considera que:
“Os meios de comunicação realizam um serviço chamado ‘público’. Mas também
se organizam em empresas que devem ser rentáveis economicamente. É fácil que
o serviço ao dinheiro acabe anulando o serviço à informação, à cultura ou, inclusi-
vamente, a um entretenimento com critérios de bom gosto e de bem fazer. O ob-
jectivo de vender e de arrecadar audiências nem sempre se compadece com outros
objectivos menos materialistas. Geralmente se faz a simples e nem sempre acertada
dedução de que o público quer e, sobretudo, pede aquilo que consome com mais
fruição. Nem sempre a equação é certa. É puramente numérica, quantitativa: com
mais vendas, mais prestígio profissional.” (Camps, 1996b, pp. 145-146).165

Se a equação for numérica e pretender apenas alcançar o objectivo de ter


mais vendas, os meios de comunicação tendem a secundarizar programas de in-
teresse público e a privilegiar programas que o público quer ou pede para con-
sumir com mais fruição. Os media estão inseridos numa sociedade de consumo
e uma sociedade de consumo produz em excesso e tem de vender tudo o que
produz, tendo mais o critério quantitativo em linha de conta. Para vender tudo
o que produz em excesso, a sociedade de consumo cria necessidades de consumo,
mesmo que o produto seja inútil, conforme salienta Camps (cf. 1996b, p. 146).
Os meios de comunicação são meios de massas. As características dos pú-
blicos definem a natureza dos meios de comunicação. Em função das expectati-
vas, interesses, necessidades ou preferências dos públicos, conhecem-se os meios
e vice-versa. Existe uma relação de simbiose que é necessariamente assim, de vida
em comum e de complementaridade entre os media e os seus públicos ou au-
diências.
Conforme a epígrafe no início deste capítulo, Camps considera que a cul-
tura de massas é medíocre se não instruir as massas, i.e. se apenas visar a dis-
tracção das massas. A cultura de massas não pode ser alta cultura, porque apenas
poucas pessoas estão preparadas para entender e apreciar esta forma mais exi-
gente de cultura (cf. Camps, 1996b, p. 154). Por essência, os meios de comunica-
ção são meios de massas.
Todavia, se os meios de comunicação de massas são essencialmente meios
populares, i.e. são precisamente meios de massas, dirigem-se e inserem-se numa

165
Tradução do autor a partir do texto original em español de Camps: “Los medios de comunicación
realizan un servicio llamado ‘público’. Pero también se organizan en empresas que deben ser
rentables económicamente. Es fácil que el servicio al dinero acabe anulando al servicio a la
información, a la cultura o, incluso, a un entretenimiento con criterios de buen gusto y buen
hacer. El objetivo de vender y recabar audiencias no siempre se compadece bien con otros
objetivos menos materialistas. Se suele efectuar la simple y no siempre acertada deducción de
que el público quiere y, sobre todo, pide, aquello que consume son más fruición. No siempre la
ecuación es cierta. Es puramente numérica, cuantitativa: a más ventas, más prestigio profesional.”
Paulo M. Barroso
228

cultura que também é de massas, independentemente de ser considerada me-


díocre. Se a cultura é medíocre, qual é a responsabilidade dos media? Se a cultura
é medíocre, o que os media podem e devem fazer? Certamente não procurar ape-
nas a atenção das massas a qualquer custo, com programas de baixa qualidade
e nível de instrução só por serem atractivos, apelativos e populares.
Camps adverte para a responsabilidade social dos meios de comunicação
social. Como os media são uma instituição social ou, pelo menos, uma empresa
comercial ou entidade colectiva com interesses económicos, os interesses colec-
tivos e as responsabilidades sociais entram em conflito.
“Se os meios de comunicação querem servir a democracia e responsabilizarem-se
por esse serviço, devem combater, sem os anular, os dois poderes que os tiranizam:
o mercado e a técnica. Ambos são os elementos de uma modernização que nem
sempre significa progresso humano.” (Camps, 1996b, p. 166).166

Os meios de comunicação são, por um lado, empresas económicas e, por


outro lado, técnicas de comunicação. Como refere Camps (cf. 1996b, p. 167), os
meios de comunicação são “técnicas para conseguir vender o produto o melhor
possível” e, por conseguinte, estão condicionadas pelos poderes económicos e
técnicos que os tiranizam.

10.1. Mediacracia
Numa conferência intitulada “Sociedad de la información y ciudadanía”,
Camps reconhece que as denominadas sociedades da informação apresentam ca-
racterísticas peculiares, justificando esta denominação com:
– O desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação.
– Uma nova organização mundial das sociedades em rede, que afecta
todas as pessoas e envolve todos os domínios da vida.
– Mudanças nas maneiras de viver, quer em termos instrumentais (novas
maneiras ou novos instrumentos de comunicação) quer em termos qua-
litativos (novos estilos de vida, novas formas de aceder ao conhecimento
e reestruturação da escala de valores).

Dadas estas características das sociedades da informação diagnosticadas


por Camps, a problematização assenta nas seguintes questões que a própria au-
tora formula:

166
Tradução do autor a partir do texto original em espanhol de Camps: “Si los medios de
comunicación quieren servir a la democracia y responsabilizarse de ese servicio, deben combatir,
sin anularlos, los dos poderes que los tiranizan: el mercado y la técnica. Ambos son los elementos
de una modernización que no siempre significa progreso humano.”
Sociologia da Comunicação
229

– As mudanças sociais significam uma vida de melhor qualidade? Ou seja,


vivemos melhor?
– Somos mais sábios?
– Custa menos relacionarmo-nos uns com os outros? Estamos menos iso-
lados? Temos mais facilidades para a vida em comum?
– Somos mais livres e autónomos?
– A sociedade da informação contribui para a construção de sociedades
mais democráticas e humanistas?

A cidadania é, conforme um qualquer dicionário elementar, a qualidade


de cidadão no gozo dos direitos civis e políticos de um estado livre e também do
cumprimento dos deveres cívicos (e.g. votar, enquanto forma de participação na
construção da “demo + cracia”). Segundo o Dicionário das ciências humanas, coor-
denado por Jean-François Dortier: “Ser um cidadão é ser reconhecido como um
membro activo de uma comunidade política. Isso dá direitos (cívicos, políticos,
sociais), deveres (fiscais, militares) e dá a possibilidade de uma participação cívica
nos assuntos da cidade” (Dortier, 2006, p. 65).
Ser um cidadão é assumir uma relação no espaço público com os seus con-
temporâneos (cf. Carey, 2009, p. 4). Então, o que significa ser uma pessoa? Será
o mesmo do que ser um indivíduo ou um cidadão? Atente-se ao seguinte excerto
do livro Horizontes da ética: Para uma cidadania responsável, de João Baptista Ma-
galhães:
“No direito romano ‘ser pessoa’ significava ser sujeito de direitos e obrigações.
Na Antiguidade e durante a Idade Média, o valor da pessoa humana dependia da
sua condição social. Mas São Tomás de Aquino, na linha do pensamento tradicional
da Igreja Católica, considerava que a pessoa humana tinha uma dignidade superior
em relação aos outros seres, dignidade que provinha de ser feita à imagem e se-
melhança de Deus.
Por sua vez, Santo Agostinho identificou ‘pessoa’ com a interioridade da alma na
sua relação consigo mesmo, com os outros e com Deus. […]
Como ‘pessoa’, o homem não está fechado sobre si próprio nem distante dos outros
seres: abre-se a si mesmo, aos outros e ao mundo. […]
No pensamento moderno, a Constituição ou Lei Fundamental de um Estado de Di-
reito estabelece que a pessoa humana é o valor máximo (a razão de ser) de uma re-
pública. Nela se fundam todos os valores: políticos, económicos, sociais, etc. e todos
os direitos.
De uma forma sintética, podemos dizer: a dignidade da pessoa humana é irrenun-
ciável e inalienável, não é conquistada, nem depende de factores externos, nem mesmo
da prática de actos dignos.” (Magalhães, 2010, pp. 22-24).167

167
Itálicos conforme o original.
Paulo M. Barroso
230

Por conseguinte, o ser humano pode ser entendido segundo três dimen-
sões distintas, ou seja, como indivíduo, como pessoa ou como cidadão:

Dimensão biossocial: indivíduo Dimensão moral: Dimensão política:


pessoa cidadão
Ser humano de relações sociais, Ser humano capaz da tomada de Ser humano com intervenções e
com direitos garantidos pela consciência de si, dos outros, do interacções com a realidade,
Declaração Universal dos mundo e do sentido da com direitos garantidos pela
Direitos Humanos existência, com direitos Constituição (as leis de um
garantidos pelos códigos morais Estado).
e pela própria pessoa (amor
próprio e auto-estima).
 Tabela 16: Três dimensões humanas: indivíduo, pessoa e cidadão.

Estas três dimensões realçam o carácter social do ser humano, pois “o de-
sejo de ser reconhecido pelos outros é inseparável do ser humano”, na medida
em que apenas através do reconhecimento dos outros pode constituir-se como
pessoa, segundo Agamben (2010, p. 61).168
Segundo Camps, a cidadania possui características que não são respeitadas
nas sociedades actuais. Se ser um “cidadão” é ser uma pessoa livre e igual às de-
mais que coopera socialmente, então devem existir condições gerais, tais como:
a) Liberdade política e democrática (existência de espaço público).
b) Vontade de cooperar.
c) Ideal democrático: estado de bem-estar.
d) Direitos civis, políticos e sociais.
e) Sujeito de obrigações/deveres.

Camps diagnostica um défice das democracias actuais, principalmente as-


sente em três factores negativos:
i) Escassa participação na cidadania (absentismo).
ii) Falta de compromisso do cidadão com a sociedade à qual pertence.
iii) Opinião pública pouco acutilante, principalmente em sociedades de-
senvolvidas e esclarecidas pelos meios de comunicação de massas.

Camps refere-se a uma democracia convertida em “media-cracia”, i.e. num


predomínio e prepotência dos media. Segundo Camps, a lógica dos media é o exer-
cício de uma série de tiranias que impõe aos meios de comunicação determinadas
formas de fazer e de proceder. É o caso da tirania da velocidade e da tirania do
espectáculo.

168
Segundo Agamben, persona significa, na origem, “máscara” e é através da máscara que o
indivíduo adquire um papel e uma identidade social (cf. Agamben, 2010, p. 61).
Sociologia da Comunicação
231

A tirania da velocidade é imposta e determinada pelo factor tempo, im-


pondo um ritmo e um estilo de vida na base de uma espécie de “crono-mentali-
dade”. Há uma aceleração da produção e do consumo em massa de conteúdos
informativos. O tempo também se caracteriza pelo imediatismo, a possibilidade
de se conhecer os acontecimentos “transformados” em notícias em tempo real.
Também pela efemeridade, brevidade, fragmentação e incompletude da informa-
ção e dos conhecimentos; a instantaneidade, o surgimento repentino das notícias,
porque existem ecrãs em todo o lado; e a fugacidade, esquecimento imediato das
informações e conhecimentos, i.e. das notícias e dos seus posteriores desenvol-
vimentos.
A tirania do espectáculo surge quando a informação dá lugar ao espectá-
culo da informação (uma fusão que resulta em infotainment,169 uma informação-
entretenimento). Há uma teatralidade ou encenação, dando-se importância à
imagem com aparato e espectacularidade impressionante na comunicação, ou
seja, a função de entretenimento dos media. A fugacidade alimenta o espectáculo,
na medida em que as informações são rápidas e superficiais. Quando a informa-
ção não tem imagens a acompanhar ou a completar, torna-se menos aliciante
para os públicos. O uso de imagens capta a atenção.
Perante estas duas tiranias, as notícias tornam-se mediocráticas, num ce-
nário em que a informação-entretenimento tem a essencial função de produzir
espectáculo e dar primazia ao sensacionalismo.
Pelo exposto, como formar uma “massa crítica” se as pessoas apenas vêem
televisão e consomem espectáculo? A cidadania é afectada, segundo Camps, pela
media-cracia. Se a massificação das sociedades é um fenómeno irreversível, é evi-
tável a redução da democracia em media-cracia?
Para Camps (cf. 2003), a media-cracia corresponde a uma democracia do-
minada por uma nova elite, cuja cultura e pensamento são apenas fast culture e
fast thinking. Esta nova elite não deseja a informação como tal, mas a informação
convertida em propaganda. A media-cracia é uma democracia medíocre.
Para lutar contra a mediocridade, impõe-se, segundo Camps, recuperar a
ideia de que o ser humano é, sobretudo, logos: razão e linguagem. Seguindo a
ideia de Nietzsche, segundo a qual pensar é ruminar, Camps considera que o im-
portante é não dar por digerida nenhuma ideia nem nenhuma informação sem
regressar a ela várias vezes, analisar as coisas a fundo; não ficar na superficiali-
dade do fast thinking.

169
Termo no original em inglês, uma espécie de soft media, um género de programas populares que
combinam informação e entretenimento (este último, incluindo espectáculo, sensacionalismo,
teatralização). Neste sentido, a infotainment possui valor e qualidade depreciativos, apesar de
condensarem as preferências dos telespectadores devido à facilidade de compreensão ou baixo
nível de exigência e rigor dos conteúdos.
Paulo M. Barroso
232

10.2. Questões para revisão e reflexão


1. O que é ser um cidadão? Quais são as condições para a cidadania? Qual
é a relação entre a cidadania e a sociedade da informação?
2. Quais são as características de uma sociedade de informação?
3. Se vivemos numa cultura e numa sociedade individualistas, onde os
mass media têm uma presença marcante, então qual é o papel dos
meios de comunicação social no fomento do individualismo e da insa-
tisfação geral?
4. Se a sociedade actual é fortemente caracterizada pelos meios e pelos
fluxos de informação, com mais acesso à informação, as mudanças so-
ciais resultantes significam uma vida de melhor qualidade? Vivemos
melhor? Somos mais informados, esclarecidos, interrelacionados e par-
ticipativos?
5. A sociedade da informação contribui para a cidadania e para a cons-
trução de uma sociedade mais democrática e humanista?
6. Como informar, formar e esclarecer os públicos se estes se interessam
mais pela televisão e por conteúdos sensacionalistas e espectaculares?
7. Qual é o papel dos media (ou qual é a lógica dos media) na construção
da democracia?
8. De que maneira podemos compreender a influência ou a responsabili-
dade dos meios de comunicação social para os diversos problemas so-
ciais que surgem nas sociedades contemporâneas?
Sociologia da Comunicação
233

11. Ramonet: a tirania da comunicação


“Se a fotografia surge de um conjunto de contextos, como se encontram
num Sander, numa Germaine Krull ou num Blossfeldt, emancipados de interesses
fisionómicos, políticos ou científicos, então, ela torna-se ‘criativa’.
O tema da objectiva será ‘englobar pelo olhar’; surge a loucura da fotografia.”
(Benjamin, 1992b, p. 132).

Ignacio Ramonet, em A tirania da comunicação, apresenta uma perspectiva


crítica e negativa acerca do papel desempenhado pelos media na sociedade, apon-
tando essencialmente as influências dos media e reconhecendo que estes são, ao
mesmo tempo, influenciados pelos poderes políticos e económicos. A perspectiva
do autor sobre as modernas tecnologias da comunicação é demonstrada e de-
preendida no seguinte excerto:
“Uma das grandes doenças da informação é a confusão existente entre o universo das re-
lações públicas e o da informação. Os jornalistas foram perdendo progressivamente, a par-
tir do final dos anos 60, o monopólio que detinham nas sociedades democráticas, desde o
fim do século XVII, de difundir livremente informações. Vivemos hoje num universo de
comunicação – alguns chamam-lhe a ‘sociedade da informação’ - em que toda a gente co-
munica. Os actores económicos (empresas, patronato), políticos (governo, partidos, colec-
tividades) ou culturais (teatros, óperas, centros culturais, casas da cultura, editores,
livreiros) produzem informação, têm o seu próprio jornal, o seu próprio boletim, os seus
próprios responsáveis pela comunicação. A comunicação é, em tal sentido, ‘um discurso
emitido por uma instituição e que a favorece’. Neste contexto, o que vem a ser a especifi-
cidade do jornalista? Esta forma de comunicação acaba por perturbar, tornar supérfluo,
confundir o trabalho do jornalista; retira-lhe a sua particularidade, a sua singularidade, a
sua originalidade. Além disso, essas instituições fornecem informações aos jornalistas e
pedem-lhes que lhes dêem projecção. Claro que não se trata bem de uma exigência, mas
de uma sugestão que pode ser formulada de uma forma extremamente sedutora e con-
vincente. A isso dá-se, por vezes, o nome de corrupção… As novas tecnologias favorecem,
também elas, o desaparecimento da especificidade do jornalismo. À medida que as tecno-
logias da comunicação se vão desenvolvendo, aumenta o número de grupos ou de indiví-
duos que comunicam. Assim, a Internet permite a cada indivíduo não apenas ser
efectivamente, à sua maneira, um jornalista, mas até colocar-se à cabeça de um medium
de dimensão planetária.” (Ramonet, 2003, pp. 55-56).

Nesta obra, Ramonet refere uma série de conceitos e expressões para ca-
racterizar o campo dos media. Por exemplo: “messianismo mediático”; “imprensa
people”; “curto-circuito mediático”; “mimetismo mediático”; “era da suspeição”;
“censura democrática”; “efeito biombo”; “é verdade porque é tecnológico”; “ver-
dade mediática”; “fictício é estético”; “teratologia televisiva”; “dejectos telegé-
nicos”; “televisão necrófila”. Todos estes conceitos e expressões possuem
significados depreciativos, através dos quais Ramonet pretende caracterizar a
actividade mediática.
Paulo M. Barroso
234

11.1. Do interesse público ao interesse do público


Vivemos numa época de desconfiança, em que a verdade (ou “interesse
público”) é preterida a favor do interesse mediático (ou “interesse do público”).
Conforme refere Ramonet (2003, p. 45), “no nosso meio intelectual, a verdade
que conta é a verdade mediática”, pois, actualmente, a verdade é aquilo que os
media propagam como tal.
Através do poder da palavra, os media pretendem fabricar consensos e
consentimentos. A manufactura do consenso é capaz de “grandes refinamentos”,
garante Lippmann (2008, p. 218), para quem “a criação do consenso não é uma
arte nova”. Transmitir informações ou ideias e influenciar mentalidades são ope-
rações indissociáveis. Por conseguinte, os discursos dos media são propaganda,
a construção de um certo tipo de verdade aparente ou aparência de verdade, fa-
bricando ou ocultando factos (Ramonet, 2003, p. 47).
A perspectiva de Ramonet sobre o papel dos media é negativa. Os media
manipulam as massas de uma maneira cada vez mais sofisticada e dissimulada.
Agora, a manipulação é multiforme, porque o meio é a internet. Se a televisão,
enquanto media de massas, tinha essencialmente as funções sociais de informar,
educar e distrair, agora só tem uma delas: distrair. Em Propagandas silenciosas:
Massas, televisão, cinema, Ramonet refere:
“A distracção que se pode tornar alienação, cretinismo, embrutecimento. E conduzir
à colectiva ausência de cérebro, ao domesticar das almas, ao condicionamento das
massas e à manipulação dos espíritos. Hoje, porém, o receio central é que, com a
Internet, as três principais funções deste novo media cibernético, ainda pouco do-
minante, passem a ser: vigiar, anunciar e vender.” (Ramonet, 2001, p. 20).

Ramonet refere-se a uma revolução coperniciana: antes, os media vendiam


informação (ou distracção) aos cidadãos; agora, via internet, vendem consumido-
res aos anunciantes (Ramonet, 2001, p. 21). Já não se dirigem aos públicos para
transmitir informações objectivas, mas para conquistar o seu espírito, obter um
efeito.
Em A manipulação dos media: Os efeitos extraordinários da propaganda,
Noam Chomsky (2003, p. 22) refere que “a propaganda está para uma democracia
como o cacete está para um Estado totalitário”. Os poderes instituídos nos EUA,
por exemplo, manipulam os media ao ponto de os fazer veicular para a opinião
pública uma determinada “verdade ideológica”.170 Chomsky adverte para a actual
ambiguidade de se viver numa eventual sociedade livre e de se estar sujeito a

170
Apesar de este livro de Chomsky ter sido publicado em 1991, há muito tempo para um campo
dos media em acelerado desenvolvimento (principalmente tecnológico), as ideias-chave
continuam actuais e até se cimentam com a passagem dos anos, pelo que se considera pertinente
esta obra para a compreensão do papel e das influências dos media na sociedade.
Sociologia da Comunicação
235

um auto-imposto totalitarismo. Por conseguinte, conclui que os media são par-


ciais e, ironicamente, “necessitamos de alguma coisa para domesticar o rebanho
tolo e essa alguma coisa é a nova revolução na arte da democracia: a fabricação
do consentimento” (Chomsky, 2003, p. 19).
A ideia de uma racionalidade universal é utópica. Há contextos que deter-
minam a formação dos significados. É como admitir que não há a possibilidade
de aceder ao ponto de vista de Deus sobre a realidade. Todavia, é essa fórmula
de um “ponto de vista de Deus” que nos propõem os media na sua missão de
evangelização das massas.
No entanto, devido às recentes mudanças impostas pelo fenómeno da glo-
balização, a especificidade dos media tende a desaparecer com as novas tecnolo-
gias de comunicação, na medida em que há, cada vez mais, pessoas a utilizarem
essas tecnologias para comunicarem à sua maneira, num modo de self media, os
mais diversos assuntos privados ou públicos. Segundo Ramonet (2003, p. 56): “se
cada cidadão se torna um jornalista, que restará especificamente aos jornalistas
profissionais? Esta interrogação está no centro da actual crise dos media”.

11.2. Questões para revisão e reflexão


1. O que é a “tirania da comunicação” para Ramonet?
2. As práticas jornalísticas menos éticas, que levam Ramonet a falar em
prepotência e tirania da comunicação social, têm tendência para se
agravarem no futuro? A objectividade jornalística é, cada vez mais, um
mito?
3. Com a diluição do campo dos mass media e a proliferação de meios in-
dividuais de produção e transmissão de conteúdos na internet, qual é a
especificidade do jornalista?
Sociologia da Comunicação
237

12. Modernidade, pós-modernidade e media


“A fotografia é nosso exorcismo. A sociedade primitiva tinha suas máscaras,
a sociedade burguesa seus espelhos, nós temos nossas imagens.”
(Baudrillard, 1990b, p. 160).

Por norma, mas com controvérsia, divide-se a história da humanidade em


quatro grandes períodos: Antiguidade (ou Idade Antiga), Medievalidade (ou Idade
Média), Modernidade (ou Idade Moderna) e Contemporaneidade (ou Idade Con-
temporânea).171 Estes quatro períodos resumem-se da seguinte forma:
1. Depois de uma pré-história, com sociedades nómadas anteriores ao do-
mínio da escrita, rotula-se por Antiguidade o período que se inicia apro-
ximadamente há 4 mil anos a.C., com várias civilizações (e.g.
Mesopotâmia, Egipto, Fenícios, Hebreus e Pérsia). Posteriormente, a An-
tiguidade Clássica é o período de desenvolvimento de civilizações como
a da Grécia e a de Roma, quando se estabeleceram as cidades-estado, a
democracia ateniense e a ascensão e domínio do Império Romano. Este
período estende-se até ao ano de 476 d.C., quando se verifica a queda
do Império Romano do Ocidente.
2. A Idade Média é caracterizada pela ascensão e domínio da religião, no-
meadamente da Igreja Católica e das Cruzadas (militares católicos que
pretendiam conquistar a terra santa), bem como relações feudais. Este
período durou cerca de dez séculos, terminando no ano de 1453, com
a Tomada de Constantinopla pelo Império Otomano.
3. A Idade Moderna é o período caracterizado pelas transformações em
todos os domínios, como a transição do feudalismo para os Estados Na-
cionais de configuração moderna. Com os Descobrimentos e a Expansão
Marítima do século XV, o mundo tornou-se territorialmente conhecido
e conectado, culminando com as revoltas populares que originaram a
Revolução Francesa de 1789 e difundiram os ideais iluministas por todo
o mundo.
4. A Idade Contemporânea começa, precisamente, com a Revolução Fran-
cesa e estende-se até aos dias actuais. É um período, tal como os outros,
de ruptura com o precedente, de um modo mais radical, pois este é mar-
cado pelo Iluminismo, pelo desenvolvimento da ciência e da técnica.

171
Esta periodização é, com mais propriedade, da História. A Idade Moderna ou a modernidade para
a História inicia-se com a queda de Constantinopla, em 1453, e vai até meados do século XVIII,
com o Humanismo, o Renascentismo, o Iluminismo e a Revolução Francesa. A emancipação, o
esclarecimento, a confiança no progresso científico, tecnológico, da razão e do ser humano são
ideias centrais do Iluminismo e, por consequência, da modernidade.
Paulo M. Barroso
238

O terceiro período mencionado, a Idade Moderna, induz que se rotule por


sociedade moderna as sociedades que se apresentam desenvolvidas em termos
políticos, sociais, económicos, culturais e científicos, depois das conturbações
ocorridas no século XVIII, pois “desde o Renascimento e a Reforma Protestante,
haviam sido estabelecidos no mundo ocidental padrões de desenvolvimento dis-
tintos do resto do mundo” (Polistchuk & Trinta, 2003, p. 75). O entendimento da
modernidade pressupõe um desenvolvimento complementar de três domínios:
i) Domínio científico e cultural: racionalismo, Iluminismo, certeza do pro-
gresso e das teorias ou narrativas científicas (evolucionismo, positi-
vismo, ideal democrático, etc.).
ii) Domínio social e económico: processos de industrialização, crescente
urbanização, égide do capitalismo, mercados liberais, concorrenciais e
alargados, etc.
iii) Domínio político: ideais nacionalistas e surgimento de Estados nacio-
nais, afirmação e valorização dos ideais e valores da democracia, mas-
sificação das sociedades suportada pelos meios de comunicação de
massas (cf. Polistchuk & Trinta, 2003, p. 76).

Segundo esta perspectiva, uma sociedade é considerada moderna com


a afirmação destes três domínios, designadamente:
a) Afirmação da autonomia da razão humana.
b) Reforço da crença no progresso.
c) Assunção utópica (o futuro como possibilidade de realização plena do
ser humano e das sociedades), alicerçada pelas ideologias e narrativas
de progresso civilizacional.

Hoje, os meios de comunicação social (principalmente a televisão) desem-


penham um papel importante e referencial sobre o quadro de valores sociais, no
âmbito de uma psicossociologia colectiva. Os meios de comunicação (mass media
e social media) são referências à orientação da vida quotidiana e colectiva. Há
uma simbiose entre a modernidade e os media: o desenvolvimento e expansão
dos media (a partir da expansão das técnicas de impressão de Gutenberg) conduz
ao desenvolvimento das sociedades modernas ou transição das sociedades para
a modernidade. Mas o contrário também se verifica: os media são um produto
do desenvolvimento das sociedades modernas.
Todavia, como é possível determinar a passagem ou mudança de um pe-
ríodo ou de um tempo para outro? Na verdade, não é o tempo que muda; o tempo
é um contínuo fluido. O que muda são as sociedades, as pessoas e as suas visões,
mentalidades, culturas e formas de estar (tradições, padrões, necessidades, usos
e costumes). Quando a mudança é profunda, quando as sociedades substituem
modelos e quadros referenciais de norma e valor como se fossem opostos ou an-
Sociologia da Comunicação
239

tagónicos, verifica-se uma mudança de paradigma cultural ou até mesmo civili-


zacional. Numa situação de mudança profunda, a modernidade define as expe-
riências marcadas pela ruptura face à tradição, conforme a acepção da palavra
“tradição”.172
A modernidade designa, ao mesmo tempo, um período da história humana
inaugurado na Europa e o conjunto dos fenómenos que o caracterizam. Não se
discute relativamente ao lugar do seu aparecimento, mas o momento em que se
produziu. Quando surge a modernidade?
– No século XVI com o racionalismo cartesiano?
– No século XVII com o desenvolvimento da ciência e da filosofia política
contratualista?
– No século XVIII com a Filosofia das Luzes e a industrialização?
– No século XIX com o triunfo da ciência, da técnica e da indústria?

E quando surge a pós-modernidade, o pensamento pós-moderno ou o mo-


delo de sociedade pós-moderna? Estas perguntas pressupõem que se acredite na
existência da pós-modernidade, i.e. de um tempo, um pensamento, uma condição
humana e sociedades pós-modernas. Se existe (ou existiu, para alguns autores)
pós-modernidade, como caracterizá-la? Como demarcá-la do período anterior?
Segundo Lipovetsky, em “Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermo-
derna”, texto inserido em Os tempos hipermodernos:
“A partir do final dos anos 70, a noção de pós-modernidade fez sua entrada no
palco intelectual com o fim de qualificar o novo estado cultural das sociedades de-
senvolvidas. Tendo surgido inicialmente no discurso arquitetônico (em reação ao
estilo internacional), ela bem depressa foi mobilizada para designar ora o abalo
dos alicerces absolutos da racionalidade e o fracasso das grandes ideologias da his-
tória, ora a poderosa dinâmica de individualização e de pluralização de nossas so-
ciedades. Para além das diversas interpretações propostas, impôs-se a ideia de que
estávamos diante de uma sociedade mais diversa, mais facultativa, menos carre-
gada de expectativas em relação ao futuro. Às visões entusiásticas do progresso
histórico sucediam-se horizontes mais curtos, uma temporalidade dominada pelo
precário e pelo efémero.” (Lipovetsky & Charles, 2004, p. 51).

A pós-modernidade ou o pós-moderno será uma ruptura da contempora-


neidade, um tempo e modos de vida (mentalidade, atitudes, comportamentos,
acções, valores, normas, experiências e vivências) que rompem com o tempo e
os modos de vida precedentes, porque agora são totalmente distintos, descontí-
nuos, disruptivos e plurais. Os fundamentos estáveis e habituais das sociedades
são abalados e entra-se em dúvida, descrédito ou crise de valores sociais, crise
de confiança no futuro e crise de identidade (e.g. o indivíduo e a sociedade como
projectos inacabados). É um período de distopia e de transição de paradigma.

172
Cf. nota 154.
Paulo M. Barroso
240

No livro 44 Letters from the liquid modern world,173 Bauman refere o mo-
mento exacto do surgimento da revolução pós-moderna, segundo o sociólogo
francês Alain Ehrenberg. Trata-se de um curto momento, uma pequena e aparen-
temente inofensiva e pontual acção comunicativa (um acto de comunicação num
meio de comunicação de massas, ou seja, no espaço público mediatizado) que
ilustra o que depois se viria a instalar como habitual no espaço público dos meios
de comunicação tradicionais (como a televisão e a rádio) ou nos meios inovadores
(como as redes sociais):
“Alain Ehrenberg, sociólogo francês e exímio e perspicaz analista da trajectória
convulsiva do indivíduo moderno, tentou identificar a data de nascimento da úl-
tima revolução cultural moderna (pelo menos do seu ramo francês) que nos con-
duziu aos tempos em que continuamos a habitar; uma espécie de revolução cultural
equivalente ao primeiro tiro da Primeira Guerra Mundial, disparado em 28 de Junho
de 1914 sobre o Príncipe Arquiduque Franz Ferdinand da Áustria e sua esposa em
Serajevo, ou à salva do navio de guerra Aurora em 7 de Novembro de 1918, sinali-
zando o ataque bolchevique e a captura do Palácio de Winter. A escolha de Ehren-
berg foi a noite de uma quarta-feira de Outono de 1980, quando uma certa Vivienne
declarou, durante um talk show popular na TV e diante de vários milhões de es-
pectadores, que o problema de ejaculação precoce do seu marido Michel a impedia
de experimentar o orgasmo no decorrer da sua vida conjugal.
O que havia de tão revolucionário no pronunciamento de Vivienne? Duas coisas.
Primeiro: um tipo de informação que até então era considerada essencialmente, e
até mesmo pelo seu nome, privada, foi tornada pública. E segundo: o espaço pú-
blico foi usado para desabafar e debater uma questão de preocupação totalmente
privada.” (Bauman, 2010, p. 26).174

Este episódio é entendido como um marco, pois terá inaugurado uma ten-
dência, que hoje se confirma como uma prática recorrente: falar de qualquer as-
sunto, em qualquer momento, em qualquer lado, especialmente no espaço

173
Título da obra de Bauman utilizada e publicada originalmente em inglês (Polity Press,
Cambridge), em 2010. Esta obra está editada e traduzida para português do Brasil com o título
44 Cartas do mundo líquido moderno (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro).
174
Tradução do autor a partir do original em inglês de Bauman: “Alain Ehrenberg, a French
sociologist and uniquely insightful analyst of the convoluted trajectory of the modern individual,
attempted to pinpoint the birthdate of the late modern cultural revolution (at least of its French
branch) that ushered us into the times we continue to inhabit; a sort of cultural revolution’s
equivalent to the first shot of the First World War aimed on 28 June 1914 by Gavrilo Princip at
Archduke Franz Ferdinand of Austria and his wife in Sarajevo, or the battleship Aurora’s salvo of
7 November 1918, signaling the Bolshevik assault and the capture of the Winter Palace.
Ehrenberg’s choice was an autumnal Wednesday evening in the 1980s when a certain Vivienne
declared during a popular TV talk show, and so in front of several million spectators, that her
husband Michel’s bane of premature ejaculation prevented her from ever experiencing orgasm
in the course of her marital life. What was so revolutionary about Vivienne’s pronouncement?
Two things. First: a kind of information that until then was deemed to be quintessentially, even
eponymously private, was made public. And second: the public arena was used to vent and
thrash out a matter of thoroughly private concern.”
Sociologia da Comunicação
241

público. Esta prática tornou-se ainda mais frequente e banal com os avanços tec-
nológicos dos meios de comunicação. A internet aumenta a ressonância dessas
confissões privadas.
A modernidade refere-se a modos de vida e organizações sociais que emer-
gem na Europa Ocidental e que exercem influências em todo o mundo. No domí-
nio político, manifesta-se pela instauração de políticas estáveis empenhadas no
concerto das nações europeias e pela construção de regimes políticos fundados
na distinção entre o privado e o público, no direito, na limitação e no controlo
do poder político e na capacidade de viver desenvolvimentos democráticos.
No domínio religioso, traduz-se pela laicização, isto é, pelo acantonamento
da religião no âmbito privado, e pela irreligião. A modernidade seculariza as prá-
ticas sociais, que perdem um forte pendor doutrinário e adquirem um pendor
mais liberal e desprendido do regramento religioso e moral.
Em termos económicos, a economia moderna é caracterizada pelo esforço
constante em injectar nas técnicas de produção e de distribuição processos cada
vez mais eficazes, por serem inspirados pelo progresso científico. Assim, verifica-
se o crescimento do saber racional e o desenvolvimento das nações, bem como
o florescimento do individualismo.
A modernidade é um período de transição difícil de designar, recebendo a
sociedade distintas designações: sociedade da informação; sociedade de con-
sumo; sociedade do capitalismo; sociedade do espectáculo; sociedade moderna;
sociedade pós-moderna ou sociedade pós-industrial.
As causas da modernização ou massificação das sociedades são apontadas
a vários aspectos, entre os quais:
– Assunção dos direitos universais dos seres humanos pela ONU, depois
da Segunda Guerra Mundial.
– Urbanização industrial, nascimento e desenvolvimento de uma classe
operária que escapa, em grande parte, à influência da Igreja, divisão do
trabalho e laicização da vida social depois da Revolução Industrial.
– Crescimento exponencial da população e concentração populacional,
bem como o surgimento do designado “homem-massa” de Ortega y Gas-
set e o crescimento das cidades, depois da Revolução Demográfica.
– Advento da burguesia: classe social vocacionada para o desenvolvi-
mento das actividades económicas e comerciais e, consequentemente,
para o capitalismo e o enriquecimento.
Desenvolvimentos técnicos que, aplicados às técnicas e processos de comu-
nicação, conduzem ao desenvolvimento dos meios de comunicação de massas.
Por conseguinte, é num sentido interrogativo que Giddens segue:
“O que é a modernidade? Como primeira aproximação, digamos simplesmente o
seguinte: o termo ‘modernidade’ refere-se a modos de vida e de organização social
Paulo M. Barroso
242

que emergiram na Europa cerca do século XVII e que adquiriram, subsequente-


mente, uma influência mais ou menos universal. Esta definição associa a moder-
nidade com um período temporal e com uma localização geográfica inicial, mas,
por enquanto, deixa as suas características mais importantes guardadas, em segu-
rança, numa caixa negra. Muitos defendem que, hoje em dia, nos finais do século
XX, nos encontramos no início de uma nova era, que as ciências sociais devem
questionar, a qual nos estará a levar para além da própria modernidade. Tem sido
sugerida uma variedade estonteante de termos para designar esta transição, alguns
dos quais se referem positivamente à emergência de um novo tipo de sistema social
(tais como ‘sociedade da informação’ ou ‘sociedade de consumo’), mas cuja maioria
sugere, antes, que um estado de coisas precedente se aproxima do fim (‘pós-mo-
dernidade’, ‘pós-modernismo’, ‘sociedade pós-industrial’, ‘pós-capitalismo’, etc.)”
(Giddens, 2005, p. 1).

O avanço e desenvolvimento complexo das sociedades contemporâneas


conduzem a questões típicas da pós-modernidade, como o imediatismo, a efeme-
ridade, a diluição das fronteiras entre o privado e o público (que suscitam a bana-
lidade ou o culto de celebridades). A modernidade assume uma dimensão mais
visível e emergente na forma de modernidade mediática, que se caracteriza por:
– Relação directa com a economia de mercado.
– Tentativa de ampliar o mercado até envolver todo o globo.
– O processo de globalização não avança de forma linear nem pacífica.

Deste modo, duas vias se colocam:


– Ampliação extensiva do mercado: incorporar novos territórios e novos
consumidores, novas formas de produção e comércio.
– Ampliação intensiva do mercado: criar necessidades de consumo além
das que já estão integradas no mercado (marketing cada vez mais intenso
e apelativo das empresas e dos governos para ampliar o consumo de
massa).

Pelo exposto, importa não confundir a modernidade com o modernismo.


Para distinguir estes dois conceitos e fenómenos, atente-se à seguinte tabela:

Modernismo Modernidade

“Atitude ideológica” em relação à modernidade; Conjunto de acontecimentos. Período de


reflexão e crítica ou autocrítica sobre a desenvolvimento e progresso das sociedades para
modernidade (cf. Hartley, 2004, p. 174). uma fase moderna, recente, actual.
Estilo, linguagem, código, sistema de signos com Acção com conotação: ser moderno é estar num
normas e unidades de significação. Implica uma tempo e espaço actualizado em termos de estilos,
visão de mundo, uma representação. gostos, modas (“hodierno”, “hoje”).
Estilos e movimentos no campo da literatura, Conceito aplicável ao campo social, económico e
pintura, artes plásticas ou arquitectura: aspectos político.
de reflexão estética.

Tabela 17: Distinção geral entre modernismo e modernidade.
Sociologia da Comunicação
243

No geral, o modernismo define os diversos movimentos artísticos ou cor-


rentes de vanguarda do final do século XIX e até à primeira metade do século XX
(cubismo, dadaísmo, expressionismo, futurismo ou surrealismo). O modernismo
influenciou a produção da literatura, da arquitectura, da pintura, do design, etc.
(cf. Hartley, 2004, p. 175).
Sobre uma eventual confusão terminológica, Giddens, em As consequências
da modernidade, esclarece o âmbito dos termos modernidade e pós-modernidade,
por um lado, e modernismo e pós-modernismo, por outro lado:
“O termo ‘pós-modernidade’ é muitas vezes usado como se fosse um sinónimo de
pós-modernismo, de sociedade pós-industrial, etc. Embora a ideia de sociedade
pós-industrial, pelo menos tal como foi concebida por Daniel Bell, esteja bem ex-
plicada, os outros dois conceitos acima mencionados não o estão certamente. Es-
tabelecerei aqui uma distinção entre eles. O pós-modernismo, se é que significa
alguma coisa, é mais indicado para referir estilos ou movimentos no âmbito da li-
teratura, da pintura, das artes plásticas e da arquitectura. Diz respeito a aspectos
de reflexão estética sobre a natureza da modernidade. Embora por vezes seja desig-
nado apenas de forma bastante vaga, o modernismo é, ou foi, um ponto de vista
discernível naquelas várias áreas e pode dizer-se que foi substituído por outras cor-
rentes de tipo pós-modernista. […] A pós-modernidade refere-se a algo diferente,
pelo menos da maneira como irei definir esta noção. Se estamos a avançar para
uma fase de pós-modernidade, isso significa que a trajectória do desenvolvimento
social está a levar-nos para longe das instituições da modernidade, em direcção a
um tipo novo e distinto de ordem social. O pós-modernismo, se existir de forma ir-
refutável, poderá expressar uma consciência de uma tal transição, mas não mostra
que ela existe.” (Giddens, 2005, pp. 31-32).

De igual modo, importa distinguir a modernidade e a modernização175 e,


principalmente, distinguir a modernidade e a pós-modernidade com base nos
seguintes elementos do quadro:

Modernidade Pós-modernidade
Valorização do inteligível (a razão). Valorização do sensível (o sentimento).
Razão crítica (idealização do Homem moderno Razão instrumental (operativa e utilitária). Os
como ser racional). valores da razão são colocados em causa.
Subordinação aos valores morais e às doutrinas em Vazio ideológico e social (declínio dos ideais).
prol do colectivo (e.g. justiça social). Narcisismo e individualismo; desvanecimento do
interesse pelas causas públicas.
Período de ideais (utopias, ideologias e Crise de ideais, referências e valores; distopia,
176
metanarrativas) = ideal de progresso da natureza desilusão e perda de fé no progresso.
humana (essencialismo).
Concepção de Homem como categoria universal. Mundividências. Fim da concepção de Homem
como categoria universal e constante na História.

175
Processo de desenvolvimento moderno de um país em termos económicos, científicos e
tecnológicos, i.e. uma renovação e reorganização da vida comunitária. A modernização é o estado
resultante da acção de modernizar, actualizar, tornar moderna a sociedade. A modernização é,
por conseguinte, uma face da modernidade.
176
No livro A vontade de poder, Nietzsche reflecte sobre a fé no progresso que corresponde a um
progresso da própria humanidade. Se o tempo avança, segue em frente, tudo o que nele está


Paulo M. Barroso
244

Incentivo ao sacrifício, obrigação e abnegação Incentivo ao desejo e sedução: vivência dos


como fontes do progresso individual e social. Ética prazeres imediatos (procura de conforto, felicidade
do dever. e prazer individuais). Ética hedonista.
Sacralização do sacro. Secularização (ou sacralização) do profano.
Predomínio da ética da existência. Predomínio da estética da existência.
Realidade/objectividade e unidade. Aparência e simulação/subjectividade e pluralismo
Conhecimento objectivo (ortodoxia). (heterodoxia).
Transcendência dos valores: liberdade, igualdade e Imanência dos valores: imediatismo e contingência.
fraternidade (trindade valorativa da modernidade). Materialidade (“muito de tudo”: tirania da escolha).
Tempo e sociedades do futuro. Valorização do presente (carpe diem). Inovação e
Respeito pelo passado (tradições). reinvenção, mas tirania do tempo e
superficialidade.
Relações sociais sólidas (Bauman). Relações sociais líquidas (Bauman).
Sociedade light: pessoas “deletáveis” em relações
virtuais (superficiais, instantâneas e efémeras).
Cultura moral e regrada. Formas e padrões Cultura do pós-dever ou ética light e indolor
culturais estabilizados e pré-definidos. (Lipovetsky). Cultura e educação liberal.
Separação entre a esfera pública e a esfera privada. Fusão entre a esfera pública e a esfera privada
(plurissignificação da vida quotidiana).
 Tabela 18: Distinção geral entre modernidade e pós-modernidade.

Em síntese, designa-se por pós-modernidade o conjunto de fenómenos e


transformações sociais, culturais e políticos que ocorrem nas sociedades pós-in-
dustriais a partir das últimas décadas do século XX, predominados por grandes
fluxos de informação, o tratamento automático de dados e sinergias da informa-
ção (acção simultânea e cooperada) na estrutura social em rede, frutos da verti-
ginosa aceleração da produção tecnológica. Na pós-modernidade, tudo acontece
velozmente e dentro do campo dos media, i.e. a consciência colectiva é formada
pelos consumos de produtos e conteúdos mediáticos e virtuais, e só é real o que
é mediatizado, veiculado pelos media.
O período pós-moderno ou pós-modernidade é tão difícil de balizar cro-
nologicamente como é de caracterizar. Estas duas dificuldades prendem-se às di-
vergentes perspectivas de vários autores sobre o que é a pós-modernidade, no
primeiro caso, e pelo carácter difuso e ambíguo daquilo que se considera ser a
pós-modernidade, no segundo caso. Aproveitando estas dificuldades, principal-
mente a segunda, pode caracterizar-se a pós-modernidade como sendo ambiva-
lente, incerta e equívoca, mas igualmente crítica e céptica relativamente às
sociedades, culturas e indivíduos.
Não existe um padrão de modernidade ou de pensamento moderno, pois
este período engloba e relaciona diferentes níveis de desenvolvimento e vários
campos (social, cultural, político ou ideológico, filosófico ou intelectual, estético
ou artístico, etc.).
No livro As consequências da modernidade, Giddens resume a modernidade
com duas imagens metafóricas:

também avança e progride. O futuro é o progresso e Nietzsche questiona e critica a sua época
que parece não avançar mais do que avançou o século precedente (cf. Nietzsche, 2011, pp. 58,
67, 75 e 82).
Sociologia da Comunicação
245

“Duas imagens do que é viver no mundo da modernidade têm dominado a literatura


sociológica, embora pareçam ambas longe de ser apropriadas. Uma é a de Weber,
de acordo com o qual os elos da racionalidade são cada vez mais apertados, aprisio-
nando-nos numa gaiola incaracterística de rotina burocrática. […] A segunda é a
imagem de Marx […] a modernidade é vista como um monstro. […] Marx com-
preendeu quão violento e irreversível seria o impacto da modernidade. Ao mesmo
tempo, ela era para Marx o que Habermas adequadamente chamou ‘projecto inaca-
bado’. O monstro pode ser domesticado dado que o que os seres humanos criaram
pode sempre ser submetido ao seu próprio controlo. O capitalismo seria, simples-
mente, uma maneira irracional de governar o mundo, uma vez que substitui a sa-
tisfação controlada das necessidades humanas pelos caprichos do mercado. Sugiro
que substituamos estas imagens pela do ‘carro de Jagrená’, um engenho descontro-
lado de enorme potência que, colectivamente, enquanto seres humanos, podemos
conduzir até certo ponto, mas que também ameaça fugir ao nosso controlo e des-
pedaçar-nos. O carro de Jagrená esmaga aqueles que tentam resistir-lhe, e embora
algumas vezes pareça seguir um caminho estável, há ocasiões em que muda errati-
camente de rumo em direcções que não podemos prever. […] mas, enquanto dura-
rem as instituições da modernidade, nunca seremos capazes de controlar
completamente quer o caminho quer o andamento da viagem. Em consequência,
nunca nos poderemos sentir inteiramente seguros […]” (Giddens, 2005, p. 97).

Conforme o próprio Giddens explica, “Jagrená” é um termo de origem


hindu, que significa “senhor do mundo”. Uma imagem desta divindade hindu
era conduzida anualmente pelas ruas num carro, “sob o qual se diz que os crentes
se lançavam, sendo esmagados pelas suas rodas”. Nesta metáfora da moderni-
dade, o carro de Jagrená alude às consequências da modernidade, ao tornarmo-
nos vítimas das nossas próprias obras que admiramos.

12.1. Nietzsche e a transição modernidade/pós-modernidade


A transição do pensamento moderno para o pensamento pós-moderno
(i.e. a passagem de uma época de modernidade para uma outra época de pós-
modernidade) suscita uma discussão infindável. Uns autores consideram que não
existe essa passagem, simplesmente porque ainda estamos na modernidade e a
pós-modernidade é, quanto muito, uma miragem; outros autores entendem que
existe uma transição, mas esta é uma continuação ou uma síntese com ligeiras
diferenças, transformações ou mudanças sociais; e outros autores identificam
uma ruptura entre épocas, que se caracteriza por diferentes mudanças qualita-
tivas nos estilos de vida e nos modos de ser e de estar em sociedade.
O conceito de “modernidade” está subjacente ao de “secularização”,177 no
mesmo sentido em que Friedrich Nietzsche (1844-1900) se refere à ideia de tempo

177
A ideia de secularização é fiel à etimologia latina da palavra saeculum (cf. Barroso, 2018, p. 99),
como a vemos empregue por Nietzsche, que se refere a uma dimensão temporal de um tempo
presente e imanente. É a essência ou a característica constitutiva da modernidade, que designa
um tempo da história humana inaugurado na Europa. Em Sociologia, a secularização significa o
Paulo M. Barroso
246

imanente.178 Se a secularização tem a ver com uma dimensão temporal (i.e. face
ao tempo presente e imanente), essa é a essência ou o traço constitutivo da mo-
dernidade.
A secularização das sociedades e das culturas de massas também se re-
flecte ao nível intelectual, nas reflexões sobre a importância da condição humana.
Segundo Giddens (2005, p. 33), Nietzsche foi um dos primeiros autores a chamar
a atenção para esta transição de mentalidade, maneira de ser e de estar, modos
de pensar, agir, sentir e compreender o mundo em mudança.
Um desígnio peculiar na obra de Nietzsche é o combate contra os falsos
ídolos, as verdades aparentes, as doutrinações e os valores vigentes do espírito
179

decadente do Cristianismo, o pretenso objectivismo da ciência e do conhecimento


e a incapacidade do homem em se transformar e superar esse combate cultural,
mas também civilizacional. Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche aborda a possi-
bilidade ou alternativa aos valores e propõe a vida (a vontade de viver) como
valor supremo. A afirmação da vida em vontade de viver refuta os falsos valores,
por um lado, e eleva o homem num novo modelo: o super-homem (Marías, 1987,
p. 353). É assim, de uma maneira apoteótica, que Nietzsche anuncia este novo
modelo de homem, proclamado por Zaratustra, no preâmbulo do livro Assim falou
Zaratustra. Agora trata-se de um novo homem, esclarecido, livre dos velhos mitos
e valores, que se transforma num super-homem acima do bem e do mal e capaz
de criar os seus próprios valores. O super-homem é o fruto de três transformações
ou metamorfoses do espírito:
1. Camelo: o homem submetido às leis e ao que lhe mandam.
2. Leão: o homem rebelado contra a ordem imposta.
3. Criança: o homem depois de renovar os valores e numa posição su-
prema.

Conforme Nietzsche (2008, p. 21) afirma em Assim falou Zaratustra: “Vou


dizer-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se transforma em ca-
melo, o camelo em leão e, finalmente, o leão em criança”. As figuras do camelo,
do leão e da criança são metáforas, são tipos de atitudes e comportamentos hu-
manos. O ser humano passa por estas fases ao longo da sua vida, mas generalizar

processo de perda de poder, popularidade e função social das crenças e das instituições religiosas
(cf. Bruce & Yearley, 2006, p. 272).
178
Tempo presente e inseparável do sujeito.
179
Na obra Ecce homo, Nietzsche explica o que quer referir com a palavra “ídolo”, nomeadamente a
respeito de um outro livro, precisamente com o título Crepúsculo dos ídolos: “O que no frontispício
chamei ‘ídolo’ é precisamente o que até agora se chamou Verdade. ‘Crepúsculo dos Ídolos’
significa: estamos no fim das velhas verdades.” (Nietzsche, 1961, p. 147). Por conseguinte, os
ídolos são, para Nietzsche, os ideais e as “verdades” fabricadas e impostas como tais na sociedade.
Sociologia da Comunicação
247

e conceber este processo numa nova espécie de ser humano será, certamente,
impossível de resultar num super-homem e todos nós sermos como tal.
As mudanças de mentalidade ou de perspectiva sobre questões centrais e
tidas como absolutas ou inquestionáveis são, por vezes, difíceis de aceitar. Prin-
cipalmente quando dizem respeito ao entendimento sobre o próprio ser humano
ou à natureza humana. Por isso, de acordo com Foucault, em Nietzsche, Freud e
Marx: Theatrum philosophicum:
“Segundo Freud, há três grandes feridas narcisistas na cultura ocidental: a ferida
imposta por Copérnico; a feita por Darwin, quando descobriu que o homem des-
cendia do macaco; e a ferida ocasionada por Freud quando ele mesmo, por sua vez,
descobriu que a consciência nasce da inconsciência. Interrogo-me se não se poderia
afirmar que Freud, Nietzsche e Marx, ao envolverem-nos numa interpretação que
se vira sempre para si própria, não tenham constituído para nós e para os que nos
rodeiam, espelhos que nos reflitam imagens cujas feridas inextinguíveis formam
o nosso narcisismo de hoje.” (Foucault, 1997a, p. 17).

Os efeitos da secularização fazem-se sentir na laicização, nomeadamente


contra a unanimidade religiosa absoluta como regra, mesmo quando uma religião
domina a vida pública e regula a vida privada; no pluralismo e liberdade das op-
ções religiosas individuais; na indiferença religiosa; no ateísmo; no declínio pro-
gressivo da influência das instituições religiosas tradicionais a partir do século
XIX; na diminuição da taxa de prática dos fiéis; nas dificuldades crescentes no
recrutamento do clero; no processo de descristianização que abriu caminho às
teorias sociológicas da secularização.
Neste sentido, advoga-se a secularização como:
a) Fenómeno de individualização da religião atinente às instituições reli-
giosas.
b) Adaptação da religião à modernidade.
c) Processo irreversível de marginalização social do religioso e das suas
instituições.

Entre 1873 e 1876, Nietzsche publica quatro Considerações intempestivas.


A segunda intempestiva, intitulada “Da utilidade e dos inconvenientes da história
para a vida”,180 é como um combate pessoal contra a concepção de tempo e de
cultura da sua época, mas também contra o historicismo, a história e a razão his-
tórica (eminentemente artificial). Conforme Nietzsche reconhece em Ecce homo:
“A segunda ‘intempestiva’ põe em relevo o que há de mais perigoso, de corrosivo
e envenenador da vida na nossa forma de cultivar a ciência: a vida que adoece desta
engrenagem e mecanismo desumano, desta ‘impersonalidade’ laboratorial, da falsa
economia da ‘divisão do trabalho’. O fim, isto é, a cultura, está perdido: o meio, a

180
Texto de 1874.
Paulo M. Barroso
248

forma moderna de cultivar a ciência, barbariza-nos… Nesta dissertação, o ‘sentido


histórico’, de que o nosso século se orgulha, foi pela primeira vez reconhecido como
doença, como típico sintoma de decadência.” (Nietzsche, 1961, p. 95).

Este combate de Nietzsche também representa o conflito da vida humana


com a temporalidade e introduz os conceitos de “sentido” e de “valor”. Nietzsche
também faz uma crítica à intelectualidade da época, colocando em causa o papel
do intelectual na sociedade. Para Deleuze (2001, p. 161), a “filosofia tem com o
tempo uma relação essencial: sempre contra o seu tempo, crítico do mundo ac-
tual, o filósofo forma conceitos que não são nem eternos nem históricos, mas in-
tempestivos e inactuais”. É isso que faz Nietzsche, pois a oposição na qual a
filosofia se realiza é a do inactual com o actual, do intempestivo com o nosso
tempo.
Efectivamente, o problema do valor da história está inerente ao problema
da consciência histórica. Esta distingue os seres humanos, que a possuem, e os
animais, que ignoram o que são e que vivem os impulsos do instante, sem me-
lancolia nem saciedade. O ser humano orgulha-se da sua humanidade quando se
compara aos outros animais, mas inveja a felicidade destes. Com ironia, Nietzsche
(cf. 1976, p. 105) ridiculariza os seres humanos, por serem capazes de se admira-
rem de si mesmos e que não podem aprender a esquecer, ficando presos à histó-
ria, ao passado. Às vezes, é preciso aprender a esquecer para se libertar do
passado. Os animais esquecem imediatamente; vêem “o instante morrer”, porque
vivem uma vida não histórica, absorvendo-se completamente no momento pre-
sente e sem saber dissimular ou esconder. Os animais mostram-se tal e qual são
a cada instante. Diferem do homem, que se defende “do peso progressivamente
mais pesado do passado, que o esmaga ou o desvia, que torna pesada a sua ca-
minhada como um invisível fardo de trevas” (Nietzsche, 1976, p. 106).
Sobre a consciência moderna do tempo, a posição de Nietzsche é radical.
Este autor concebe o tempo como algo que sempre nos escapa e, por isso, consi-
dera que também não será seguro nem útil o passado. Assim, não será acertado
tomar a essência do tempo através do passado, porque retiraria importância ao
presente. “Tudo evoluiu; não há realidades eternas: tal como não há verdades ab-
solutas”, refere Nietzsche (1997a, p. 23) em Humano, demasiado humano. É este
o perspectivismo de Nietzsche, i.e. todo o conhecimento que temos sobre a rea-
lidade é apenas uma perspectiva, é relativo às circunstâncias e às necessidades
do sujeito que conhece uma dada realidade.
Nietzsche estima e elogia a Antiguidade Clássica Grega, porque nesse pe-
ríodo houve uma harmonia entre saber e acção. Nietzsche pretende restaurar a
dita harmonia criando uma necessidade estratégica que torna o presente inadiá-
vel, aberto ao futuro e que remete o passado para o esquecimento. Esquecer é
necessário, pois a possibilidade de esquecer seria “a faculdade de nos sentirmos
momentaneamente fora da história”:
Sociologia da Comunicação
249

“[…] é possível viver quase sem recordar e viver feliz, como o demonstra o animal,
mas é impossível viver sem esquecer. Ou, mais simplesmente, há um grau de insó-
nia, de ruminação, de sentido histórico que prejudica o ser vivo e que acaba por destruí-
lo, quer se trate de um homem, de uma nação ou de uma civilização. […] Trata-se de
saber esquecer a tempo, como de saber recordar a tempo; é imprescindível que um
instinto vigoroso nos advirta sobre quando é necessário ver as coisas historica-
mente e quando é necessário não as ver historicamente. É este o princípio sobre
que o leitor deve reflectir: o sentido histórico e a sua negação são igualmente neces-
sários à saúde de um indivíduo, de uma nação e de uma civilização. […] o passado e
o presente são uma única e mesma coisa e, apesar de toda a sua diversidade, con-
servam a unidade profunda de um mesmo tipo e realizam a omnipresença de tipos
indestrutíveis, apresentando uma estrutura estável de valor invariável e de signi-
ficação sempre idêntica.” (Nietzsche, 1976, pp. 107-113).

Nietzsche define o grau preciso e o limite em que é “absolutamente ne-


cessário esquecer o passado”, senão o homem torna-se “o coveiro do presente”.
Esse grau e limite seria dado pela necessidade de se conhecer a medida exacta
do que Nietzsche chama de “força plástica de um homem, de uma nação, de uma
civilização”, i.e. “a faculdade de crescer por si mesmo, de transformar e de assi-
milar o passado e o heterogéneo, de cicatrizar as suas feridas, de reparar as suas
perdas, de reconstruir as formas destruídas” (Nietzsche, 1976, p. 108).
Todas as acções exigem esquecimento. A vida histórica é o epicentro da
tensão entre memória e esquecimento. Todas as acções, todas as possibilidades
de história, necessitam do esquecimento, do não histórico. A vida humana é his-
tórica, mas a sua força histórica ou capacidade de acção e perpetuação tem ori-
gem em algo que não é histórico. Por isso, é necessária a dita força plástica capaz
de traçar uma linha de demarcação entre aquilo que é claro e visível e aquilo que
é obscuro e impenetrável. Esta é uma condição sine qua non para que toda a acção
e a própria vida não se tornem impossíveis.
Se os homens, ao contrário dos animais, possuem sentido histórico e têm
um horizonte alargado, devem estimular e preservar “a faculdade de sentir di-
rectamente as coisas”, usar a faculdade que lhe permite “servir o passado à vida
e de refazer a história com o passado” (Nietzsche, 1976, p. 110). Todavia, Nietzs-
che adverte que o excesso de história destrói o homem. Paradoxalmente, a au-
sência de sentido histórico, que Nietzsche compara a uma “nebulosa” que
envolve a vida, é útil ao permitir começar a pensar.
Existe também um ponto de vista supra-histórico que corresponde aos
que possuem um espírito histórico, onde o espectáculo do passado os impele
para o futuro (Nietzsche, 1976, p. 112). São os homens históricos que pensam
que o sentido da existência se revela cada vez melhor no decurso da evolução,
olhando para trás apenas para melhor compreender o presente em função da
evolução anterior. Nietzsche critica-os, todavia, por não saberem que os seus
pensamentos e actos são pouco históricos e não são comandados pela necessi-
dade de conhecimento.
Paulo M. Barroso
250

Nietzsche indica, claramente, o sentido da cultura. Esse sentido é grego,


porque vê na cultura uma nova e melhorada physis,181 sem distinção entre um
interior e um exterior, sem dissimulações nem convenções. Esta seria, para
Nietzsche, a concepção de uma civilização onde se realizaria o acordo da vida e
do pensamento, do aparecer e do querer. Seria um acordo originário que derivaria
de uma concepção cíclica do tempo.
Nietzsche refere-se ao Cristianismo para explicar a sua época. O excesso
de história derivaria do memento mori182 medieval e da ilusão que o Cristianismo
alimenta quanto ao futuro da existência na terra (Nietzsche, 1976, p. 172). Ao
excesso de história e ao Cristianismo, Nietzsche junta a filosofia de Hegel como
as bases de todo o problema do epigonismo.183
Para Hegel, todo o acontecer está dirigido para um fim último do mundo
(cf. Hartmann, 1983, pp. 633-647). Neste sentido, Hegel admite, no prefácio de
Princípios da filosofia do direito, “o que é racional é real e o que é real é racional”
no seu caminho para o Espírito Absoluto (cf. Hegel, 1997, p. xxxvi). Esse caminho
sugere que se divinize o momento último, isto é, a época actual como sendo a
que possui o sentido e o fim da evolução anterior.
Devido ao extraordinário desenvolvimento das novas tecnologias de in-
formação e de comunicação, é frequente ouvirmos dizer que vivemos hoje numa
sociedade em plena e constante transformação, numa sociedade que é o produto
mais imediato do fenómeno da globalização ou, simplesmente, numa sociedade
da informação. Enfim, numa sociedade cujo instrumento mais fundamental é a
“rede”. Um instrumento com consequências notórias na estrutura e organização
do mundo numa rede virtual.
Face a este cenário de transformação incessante do mundo, as transfor-
mações sociais (novas maneiras de comunicar, interagir, conhecer e viver) signi-
ficam uma vida melhor? Temos sociedades mais democráticas, justas, tolerantes
e humanas?
A actual época é a do triunfo do espectáculo, consumismo, liberalismo do
mercado global, capitalismo ou, conforme refere Agamben, qualquer outro nome
para o processo que domina hoje a história mundial. Uma época onde o capita-
lismo “não estava apenas dirigido para a expropriação da actividade produtiva,
mas também, e sobretudo, para a alienação da própria linguagem, da própria na-
tureza linguística e comunicativa do homem, do logos” (Agamben, 1993, p. 62).
Tomando este repto como advertência em relação às emergentes transformações
sociais, numa época global em que a comunicação surge como paradigma da mo-

181
Conceito grego que significa Natureza (cf. Peters, 1983, p. 189).
182
Em latim, no original: “lembra-te que vais morrer”.
183
Crença na velhice da humanidade. Segundo Nietzsche, a cultura histórica não seria mais do que
um “envelhecimento congénito”.
Sociologia da Comunicação
251

dernidade, as consequências mais evidentes são a crise de valores sociais e a


perda de humanidade e, paradoxalmente, a incomunicabilidade. Conforme acres-
centa Agamben (1993, p. 64): “O que impede a comunicação é a própria comuni-
cabilidade, os homens estão separados por aquilo que os une. Os jornalistas e os
mediocratas são o novo clero desta alienação da natureza linguística do homem.”
Esta alienação ou desenraizamento do ser linguístico ou do novo homo
comunicans deve-se, em parte, a esta época de excessos de comunicação e co-
nhecimentos. A crítica de Nietzsche insere-se no combate às tiranias da moder-
nidade, do tempo e da história, ao defender a “recuperação” do homem como
ser dotado de pensamento útil. Para Nietzsche, pensar é como ruminar: não se
dá por digerida nenhuma ideia nem nenhuma informação sem se analisar as
suas condições de possibilidade e evitando a superficialidade de um suposto e
imposto ready-to-think:
“Tem-se agora vergonha do repouso; quase se experimentaria um remorso em me-
ditar. Pensa-se de relógio na mão, mesmo quando se está a almoçar, com um olho
no correio da bolsa; vive-se constantemente como o cavalheiro que tem medo de
‘falhar’ alguma coisa. […] a verdadeira virtude consiste agora em fazer uma coisa
mais depressa do que o outro.” (Nietzsche, 1987, pp. 213-214).

De acordo com esta citação de A gaia ciência, Nietzsche alerta para o de-
clínio da dimensão espiritual e intelectual da humanidade, resultado do seu en-
velhecimento precoce. A reflexão de Nietzsche incide sobre o errado uso das
valências das acções humanas em sociedade. O que é também interessante,
nesta reflexão, prende-se com o facto de as palavras de Nietzsche se assumirem
como uma representação próxima da situação actual que caracteriza as socie-
dades ocidentais.
A questão sobre a pertinência do pensamento de Nietzsche para a com-
preensão das actuais sociedades está subentendida neste excerto de A gaia ciên-
cia, que representa, com fidelidade, a posição filosófica do autor face a uma
cultura que não sabe pensar por si nem pensar em si. Desde a época de Nietzsche,
o desvio das sociedades ocidentais face às heranças históricas tem sido cada vez
maior, o que torna mais emergente uma filosofia crítica nietzscheana do sentido
e dos valores.
Uma consequência do mundo moderno foi primeiramente reconhecida por
Nietzsche como uma crise e depreciação dos valores associada a uma desorien-
tação existencial, segundo Lipovetsky e Serroy em A cultura-mundo: Resposta a
uma sociedade desorientada:
“Ninguém melhor do que Nietzsche conseguiu teorizar a angústia do homem mo-
derno diante da ‘morte de Deus’. Mais nada é verdadeiro, mais nada é bom: quando
os valores superiores perderam o direito de dirigir a existência, o homem ficou so-
zinho com a vida. Enquanto o sentimento de vazio aumenta, multiplicam-se com-
portamentos inebriantes para escapar à noite de um mundo sem valor, ao abismo
da falta de objectivo e de sentido.” (Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 31).
Paulo M. Barroso
252

Efectivamente, é possível um conhecimento sistemático da acção humana


ou das tendências do desenvolvimento social, tomando em linha de conta o nii-
lismo de Nietzsche que, para Giddens, liga à modernidade a ideia de que “a his-
tória pode ser identificada como uma apropriação progressiva dos fundamentos
racionais do conhecimento” (Giddens, 2005, p. 33). Em As consequências da mo-
dernidade, Giddens considera:
“Se Nietzsche foi o principal autor a separar a pós-modernidade da modernidade,
um fenómeno que está supostamente a ocorrer nos dias de hoje, como é possível
que ele tenha visto tudo isto há quase um século? Porque é que Nietzsche foi capaz
de lograr uma tal ruptura, não fazendo mais do que, como ele afirmava largamente,
pôr a descoberto os pressupostos ocultos do próprio iluminismo?” (Giddens, 2005,
p. 33).

Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche (cf. 2002, pp. 17, 41-42) também ad-
verte para a necessidade de desmistificar a importância relativa que as pessoas
atribuem a determinadas entidades e à ideia (que se tornou inútil, supérflua) do
que consideram ser o “mundo verdadeiro”. É necessário mostrar que os funda-
mentos sobre os quais edificamos as nossas verdades, principalmente as mais
sagradas ou absolutas para nós (ao ponto de se assumirem na forma de “nossos
ídolos”) eram um produto da história. Por conseguinte, a proposta é a de uso da
razão para compreender o poder de decisão, a vontade de poder como um desejo
insaciável de manifestar poder que é o mais crucial, e não tanto a própria vida e
a natureza. Nietzsche faz uma concepção heterodoxa da verdade: a verdade não
era concebida como algo que descobrimos sobre o mundo; mas uma qualidade
moral e, por conseguinte, algo subjectivo, controverso e interpretável. Para
Nietzsche, a moralidade é a província do colectivo, não do indivíduo.
Segundo Nietzsche, em A gaia ciência:
“Preparadores. – Saúdo com alegria tudo o que anuncia o aparecimento de uma
época mais viril, mais guerreira, que honrará outra vez a coragem, antes de mais
nada! Porque preparará, por sua vez, a vida de uma época melhor, colectará as for-
ças de que esta terá um dia necessidade. Esta: a que introduzirá o heroísmo no co-
nhecimento, que fará a guerra pelo pensamento, pelas consequências da ideia. São
precisos agora muitos valentes que abram caminho, e que não podem surgir do
nada, do mesmo modo que não podem aparecer da areia da civilização presente e
da vasa das grandes cidades […] Porque, acreditai-me, o grande segredo para colher
a existência mais fecunda e o maior prazer é viver perigosamente. Construí as vossas
cidades sobre o Vesúvio. Enviai os vossos barcos para mares inexplorados. Vivei
em guerra com os vossos semelhantes e convosco mesmos. Pilhai e conquistai, pro-
curadores de conhecimento, enquanto não puderdes ser reis ou proprietários!”
(Nietzsche, 1987, pp. 184-185).

Por este excerto se compreende que, para Nietzsche, se deve estar prepa-
rado para enfrentar os desafios do futuro, superando-os e vencendo-os com sa-
geza, valentia e audácia, porque a época que então se avizinha é hostil.
Sociologia da Comunicação
253

12.2. Heidegger: a questão da tecnologia na modernidade


Martin Heidegger (1887-1976) aborda o papel da ciência e da tecnologia
enquanto actividades desenvolvidas pelo ser humano e que são importantes para
a compreensão da modernidade. Para Heidegger, a modernidade permite a con-
ceptualização do mundo como um todo, uma imagem do mundo criada pelo ser
humano. No ensaio “O tempo da imagem no mundo”,184 Heidegger caracteriza a
época moderna sustentando uma crise de representação e afirmando que a mo-
dernidade, que permite a conceptualização do mundo como um mundo imagético
criado pelo homem, é como a era da “desdivinização”:
“Aos fenómenos essenciais da modernidade pertence a sua ciência. Um fenómeno
de um nível igualmente importante é a técnica de máquinas. No entanto, não se
pode confundi-la com a simples aplicação prática da moderna ciência natural ma-
temática. A técnica de máquinas é ela mesma uma transformação autónoma da
prática, de tal modo que é esta que exige o emprego da ciência natural matemática.
A técnica de máquinas permanece o rebento até agora mais visível da essência da
técnica moderna, a qual é idêntica à essência da metafisica moderna.
Um terceiro fenómeno igualmente essencial da modernidade está no processo de
a arte se deslocar para o âmbito da estética. Isso significa que a obra de arte se
torna objecto de vivência e, consequentemente, a arte vale como expressão da vida
do homem.
Um quarto fenómeno moderno manifesta-se em o fazer humano ser concebido e
cumprido como cultura. Cultura é, então, o cumprimento dos valores supremos
através do cultivo dos mais elevados bens do homem. Na essência da cultura como
tal cultivo está, por seu lado, cuidar de si e, assim, tornar-se política cultural.
Um quinto fenómeno da modernidade é a desdivinização. Esta expressão não visa
a simples eliminação dos deuses, o ateísmo grosseiro. A desdivinização é o dúplice
processo de, por um lado, a imagem do mundo se cristianizar, na medida em que
o fundamento do mundo é estabelecido como o infinito, o incondicionado, o abso-
luto, e, por outro lado, o cristianismo transformar a sua cristianidade numa mun-
dividência (a mundividência cristã) e, deste modo, se modernizar. A desdivinização
é o estado de ausência de decisão sobre o deus e os deuses. Ao cristianismo cabe a
maior parte no seu despontar. Mas a desdivinização não só não exclui a religiosi-
dade, como é até só através dela que a relação aos deuses se transforma na vivência
religiosa. Ao chegar-se aqui, é porque os deuses fugiram. O vazio que surgiu é subs-
tituído pela investigação historiográfica e psicológica do mito.” (Heidegger, 2002b,
pp. 97-98).

O papel da ciência é importante na compreensão da modernidade. A ciên-


cia desenvolve a técnica e esta liberta o humano, mas torna-o subjectum. Segundo
Heidegger:
“Pode-se ver a essência da modernidade em o homem se libertar dos vínculos me-
dievais, na medida em que se liberta para si mesmo. […] É certo que a moderni-
dade, no seguimento da libertação do homem, despertou subjectivismo e
individualismo. […]

184
Ensaio inserido na colectânea de textos originalmente publicada em alemão, em 1938, sob o tí-
tulo Holzwege.
Paulo M. Barroso
254

O decisivo não é que o homem se liberta para si mesmo dos vínculos que tinha até
agora, mas que a essência do homem em geral se transforma, na medida em que
o homem se torna sujeito. […]
Mas se o homem se torna no primeiro e autêntico subjectum, então isto quer dizer
que o homem se torna naquele ente no qual todo o ente, no modo do seu ser e da
sua verdade, se funda. O homem torna-se centro de referência do ente enquanto
tal. Mas isso só é possível quando se transforma a concepção do ente na totalidade.
Em que se mostra esta transformação? Qual é, de acordo com ela, a essência da
modernidade?
Quando meditamos sobre a modernidade, perguntamos pela imagem do mundo
moderna.” (Heidegger, 2002b, pp. 110-111).

Será a mudança de uma concepção da imagem do mundo, que significa


que o mundo é concebido e compreendido como imagem (cf. Heidegger, 2002b,
p. 111), que define uma era moderna. Meditar sobre a modernidade é já perguntar
pela imagem do mundo moderna. Uma imagem que é caracterizada através de
uma demarcação contra a imagem do mundo medieval e antiga. Ou será que per-
guntar pela imagem do mundo é já o modo moderno de representar?
“As expressões ‘imagem do mundo da modernidade’ e ‘imagem do mundo mo-
derna’ dizem duas vezes o mesmo e insinuam algo que nunca antes podia haver,
isto é, uma imagem do mundo medieval e antiga. O que distingue a essência da
modernidade não é que se transite de uma precedente imagem do mundo medieval
para uma imagem do mundo moderna, mas sim que o mundo se torne, em geral,
imagem.” (Heidegger, 2002b, pp. 113).

De acordo com Heidegger (cf. 2002b, p. 117), o processo fundamental da


modernidade é a conquista do mundo como imagem. A palavra “imagem” signi-
fica o “delineamento do elaborar que representa”, a imagem estruturada que é
criada pelo homem. Segundo Heidegger, vivemos na época do “mundo-como-
imagem”. É a época moderna, em que o mundo se tornou uma imagem, i.e. um
objecto sistematizado e representável da racionalidade tecno-científica. Para Hei-
degger, este fenómeno (tendência ou viragem pictórica) é uma transformação
histórica equivalente à Idade Moderna. O “mundo-como-imagem” não se modi-
fica de uma anterior Idade Medieval para uma Idade Moderna, mas o mundo
torna-se imagem e esse facto é o que distingue a essência da Idade Moderna.
Efectivamente, o ser humano não vive apenas do instinto (a sua natureza);
também vive da faculdade racional (o seu pensamento) e operativa (a sua acção
técnica voluntária) que modificam as circunstâncias naturais em que se encontra.
A técnica é a modificação que o ser humano impõe às suas circunstâncias naturais
tendo em vista a produção (mais do que a satisfação) das suas necessidades, que
ainda por cima são supérfluas, segundo Ortega y Gasset (cf. 2009, p. 37). A acção
técnica voluntária é um esforço para poupar esforço (cf. Ortega y Gasset, 2009,
p. 43). Se a técnica é um esforço que poupa muitos e maiores esforços (i.e. traz
descanso e suposto bem-estar), coloca-se um problema: o que se faz com o esforço
poupado? O que é que o ser humano fará para ocupar a sua vida?
Sociologia da Comunicação
255

Para Ortega y Gasset (2009, p. 33), “a técnica é o contrário da adaptação


do sujeito ao meio, dado que é a adaptação do meio ao sujeito”. Para a sua exis-
tência, o ser humano precisa de bem-estar. O ser humano, a técnica e o bem-estar
são sinónimos (cf. Ortega y Gasset, 2009, p. 37). Todos os seres humanos são seres
técnicos. A técnica é criação, produção, poiesis; a técnica é algo poético, conforme
afirma Heidegger (cf. 2002a, p. 17) em Die frage nach der technik.185

12.3. Baudrillard: o fim do social


Uma das obras mais conhecidas e importantes de Jean Baudrillard (1929-
2007) será, certamente, A sociedade de consumo. Só pelo título se deduz uma crí-
tica veemente de Baudrillard ao materialismo e consumismo que, segundo o
autor, caracterizam as sociedades contemporâneas, ao ponto de se poder de-
signá-las, precisamente, por sociedades de consumo. São sociedades eivadas de
objectos e, consequentemente, estes incentivam o seu consumo, pois produção
em massa de objectos e mercadorias pressupõe consumo em massa desses ob-
jectos e mercadorias. Segundo A sociedade de consumo:
“À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consumo e da
abundância, criada pela multiplicação dos objectos, dos serviços, dos bens mate-
riais, originando como que uma categoria de mutação fundamental na ecologia da
espécie humana. Para falar com propriedade, os homens da opulência não se en-
contram rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais por ob-
jectos. O conjunto das suas relações sociais já não é tanto o laço com os semelhantes
quanto, no plano estatístico segundo uma curva ascendente, a recepção e a mani-
pulação de bens e de mensagens, desde a organização doméstica muito complexa
e com suas dezenas de escravos técnicos até ao ‘mobiliário urbano’ e toda a ma-
quinaria material das comunicações e das actividades profissionais, até ao espec-
táculo permanente da celebração do objecto na publicidade e as centenas de
mensagens diárias emitidas pelos ‘mass media’; desde o formigueiro mais reduzido
de quinquilharias vagamente obsessivas até aos psicodramas simbólicos alimen-
tados pelos objectos nocturnos que vêm invadir-nos nos próprios sonhos. Os con-
ceitos de ‘ambiente’ e de ‘ambiência’ só se divulgaram a partir do momento em
que, no fundo, começámos a viver menos na proximidade dos outros homens, na
sua presença e no seu discurso, e mais sob o olhar mudo de objectos obedientes e
alucinantes que nos repetem sempre o mesmo discurso – isto é, o do nosso poder
medusado, da nossa abundância virtual, da ausência mútua de uns aos outros.
Como a criança-lobo se torna lobo à força de com eles viver, também nós, pouco a
pouco, nos tornamos funcionais. Vivemos o tempo dos objectos: quero dizer que
existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com a sua sucessão permanente.
Actualmente, somos nós que os vemos nascer, produzir-se e morrer, ao passo que
em todas as civilizações anteriores eram os objectos, instrumentos ou monumentos
perenes, que sobreviviam às gerações humanas.” (Baudrillard, 1975, pp. 15-16).

185
Título da obra no original em alemão, publicado em 1962, cuja tradução para português é “A
questão da técnica”. A edição utilizada é a versão em português do Brasil, inserida em Ensaios e
conferências (cf. Heidegger, 2002a, pp. 11-38).
Paulo M. Barroso
256

O consumo está directamente associado à abundância, da qual depende.


A abundância, resultado da industrialização e massificação das sociedades, con-
duz ao consumo e ambos transformam o ser humano e o que este faz e como
vive em sociedade.
Na obra À sombra das maiorias silenciosas: O fim do social e o surgimento
das massas, Baudrillard adverte para o que apelida de “abismo do sentido” nas
sociedades contemporâneas caracterizadas pela influência dos media:
“Seja qual for seu conteúdo, político, pedagógico, cultural, seu propósito sempre é
filtrar um sentido, manter as massas sob o sentido. Imperativo de produção de sen-
tido que se traduz pelo imperativo incessantemente renovado de moralização da
informação: melhor informar, melhor socializar, elevar o nível cultural das massas,
etc. Bobagens: as massas resistem escandalosamente a este imperativo da comu-
nicação racional. O que se lhes dá é sentido e elas querem espetáculo. Nenhuma
força pôde convertê-las à seriedade dos conteúdos, nem mesmo à seriedade do có-
digo. O que se lhes dá são mensagens, elas querem apenas signos, elas idolatram
o jogo de signos e de estereótipos, idolatram todos os conteúdos desde que eles se
transformem numa sequência espetacular.” (Baudrillard, 1985, pp. 8-9).

Baudrillard menciona o que designa como “o fim do social”. O autor iden-


tifica esta exigência colectiva de novas formas de expressão, culminando no fim
ou morte do social (o vazio social) e, por contraposição, no apogeu das massas.
Esta é uma das hipóteses apresentadas por Baudrillard:
“Na realidade o social nunca existiu. Nunca houve ‘ligação’ social. Nunca nada fun-
cionou socialmente. Nessa base inelutável de desafio, de sedução e de morte, sem-
pre houve somente simulação do social e de ligação social. De nada adianta, neste
caso, sonhar com uma sociedade ‘real’, com uma socialidade escondida, com uma
socialidade ideal. Seria hipostasiar o simulacro. Se o social é uma simulação, o único
incidente provável é o de uma dissimulação brutal – o próprio social deixando de
se afirmar como espaço de referência e de jogar o jogo, pondo imediatamente fim
ao poder, ao efeito de poder e ao espelho do social que o eterniza.” (Baudrillard,
1985, p. 35).

A sociedade da informação não traz apenas vantagens, como o volume e


o mais fácil e imediato acesso à informação; traz também uma implosão do sen-
tido e, consequentemente, da compreensão humana. A circulação de conteúdos
informativos é tão intensa que esgota a própria capacidade e o tempo de os com-
preender. Os media recebem tanto crédito por parte dos públicos que a cultura é
mediática, pois todos são influenciados de um modo massivo e uniforme pelas
mensagens transmitidas através de fluxos intensos e constantes de informações.
Por isso, num pequeno ensaio intitulado “Implosão do sentido nos media”, inse-
rido no livro Simulacros e simulação, Baudrillard (cf. 1991, p. 103) critica o excesso
de informação e a escassez de sentido nos media.
“Em toda a parte a socialização mede-se pela exposição às mensagens mediáticas.
Está dessocializado, ou é virtualmente associal, aquele que está subexposto aos
media. Em toda a parte é suposto que a informação produz uma circulação acele-
Sociologia da Comunicação
257

rada do sentido, uma mais-valia de sentido homólogo à mais-valia económica que


provém da rotação acelerada do capital. A informação é dada como criadora de co-
municação, e apesar do desperdício ser enorme, um consenso geral pretende que
existe, contudo, no total, um excesso de sentido, que se redistribui em todos os in-
terstícios do social – assim como um consenso pretende que a produção material,
apesar dos seus disfuncionamentos e das suas irracionalidades, resulta ainda assim
num aumento de riqueza e de finalidade social. Somos todos cúmplices deste mito.”
(Baudrillard, 1991, p. 104).

Segundo Baudrillard (1991, p. 105), “a informação devora os seus próprios


conteúdos”, ou seja, “devora a comunicação e o social”, pois “em vez de fazer
comunicar, esgota-se na encenação da comunicação” e “em vez de produzir sentido,
esgota-se na encenação do sentido”.
Segundo Baudrillard, a importância da comunicação é excessiva, ao ponto
de, paradoxalmente, a comunicação ser mais social do que o próprio social:
“A comunicação é o mais social que o social: é o hiper-relacional, a socialidade su-
perativada pelas técnicas do social. Ora, o social em essência não é isso. Foi um
sonho, um mito, uma utopia, uma forma conflituosa e contraditória, forma violenta,
em todo o caso um acontecimento intermitente e excepcional. A comunicação, ao
banalizar a interface, leva a forma social à indiferença. É por isso que não há utopia
da comunicação. A utopia de uma sociedade comunicacional não tem sentido, já
que a comunicação resulta precisamente da incapacidade de uma sociedade supe-
rar-se para outros fins. O mesmo acontece com a informação: o excesso de conhe-
cimento dispersa-se indiferentemente na superfície em todas as direções, mas ele
só comuta. Na interface, os interlocutores estão ligados entre si como o plugue na
tomada elétrica. ‘Isso’ comunica, como se diz, por uma espécie de circuito único,
instantâneo; e, para que comunique bem, é preciso que ande depressa, não há
tempo para o silêncio. O silêncio é banido das telas, banido da comunicação.” (Bau-
drillard, 1990b, p. 18).

Segundo este excerto, Baudrillard sustenta que a morte do social se deve,


paradoxalmente, à comunicação. Paradoxalmente, porque a comunicação é, na
sua essência, um campo do social, desde a etimologia do conceito à sua prática
efectiva.

12.3.1. Imagens, simulacros e hiper-realidade


Num mundo cada vez mais iconólatra e eivado de imagens, o ser humano
vive numa realidade construída por signos (imagens, representações) e pelos seus
consequentes efeitos de representação, ou seja, o ser humano vive nas represen-
tações artificiais que produz sobre a realidade. As imagens são signos, são repre-
sentações da realidade; adquirem mais importância e realismo, i.e. impressionam
mais e parecem mais reais (enquanto representações) do que a realidade. Com
mais dispositivos de produção e reprodução de imagens e com o culto das mes-
mas, predomina o verosímil e a aparência em detrimento da própria realidade.
A imagem é sempre uma representação de alguma coisa, tal como todos os sig-
nos. O problema é que a imagem passa a valer por si mesma, contrariando o
Paulo M. Barroso
258

princípio clássico da semiótica, segundo o qual aliquo stat pro aliquid.186 Em vez
de valer por aquilo que remete, refere ou representa, a imagem é objecto de culto
e de prática generalizada. A cópia é preferível ao original, tal como o simulacro
(reprodução técnica) é preferível ao real, chegando a parecer até mais real do que
o próprio real. Este contexto em que a imagem surge a desempenhar um papel
fundamental na percepção e na vivência do real apresenta-se nefasto, pois simu-
lar a realidade por meio de imagens significa eliminar as diferenças importantes
entre o real e o imaginário (cf. Polistchuk & Trinta, 2003, p. 144).
Hoje, num mundo com excesso de imagens, onde o uso e dependência da
visualidade transforma a cultura, que já é visual, numa iconolatria, a epígrafe de
Baudrillard no intróito deste capítulo 12 tem cada vez mais cabimento, pois a fo-
tografia (a imagem em geral) é o nosso exorcismo, na medida em que a sociedade
primitiva tinha as suas máscaras, a sociedade burguesa os seus espelhos, e nós
temos as nossas imagens (Baudrillard, 1990b, p. 160). As imagens fascinam pela
instantaneidade da sua percepção. Todavia, a percepção imediata da imagem ani-
quila a compreensão do seu conteúdo.
Em Simulacros e simulação, Baudrillard radicaliza as consequências das
imagens e afirma que a realidade deixou de existir; agora vivemos a representa-
ção da realidade. Esta diferença é abismal e traz repercussões. Ao vivermos nas
representações, não vivemos autenticamente. Os media contribuem para essa
passagem do vivido ao não vivido, ou seja, da realidade à representação, na me-
dida em que a difundem cada vez mais. Ao fazê-lo, cimentam as sociedades pós-
modernas. Estas sociedades definem-se pelas transformações sociais profundas,
como esta de que adverte Baudrillard.
Nas sociedades pós-modernas ou visuais, como as actuais, vivemos nas
representações e atribuímos mais importância e força de sedução e atracção aos
signos (às imagens) do que à própria realidade. Surgem os simulacros e as simu-
lações.187 Estes dois termos estão semanticamente próximos, mas são diferencia-
dos da seguinte maneira:

 Simulacro Simulação

Sentido Cópia, imagem, semelhança, aparência Fingimento, disfarce, engano.


comum sem realidade, acção simulada.
Sentido Signo ou imagem sem referente ou sem Género de cópia que não é apenas
para objecto real; signo que não pode ser indistinguível do que copia, mas em que a
Baudrillard trocado pela realidade. distinção entre cópia e original
desaparece.

186
Esta expressão clássica, traduzida como “uma coisa está em vez de outra”, enfatiza a ideia de
representação ou de substituição: x ou aliquid está para y ou aliquo (cf. Eco, 2001, p. 213).
187
Os termos simulacrum, no singular, e simulacra, no plural, derivam do latim, de onde também
 surge o termo simulare, que significa “simular”, “fazer parecer como”, “tornar parecido, imitar,
copiar, representar”, isto é, “dar uma aparência de”.
Sociologia da Comunicação
259

p
O simulacro não é uma situação de ilusão Na simulação perde-se a noção do real,
tão avançada como é a simulação. No pois adopta-se uma ideia ou situação
simulacro pode perceber-se que se está no como suposta verdade da qual já não se
engano ou a viver algo que não é real. tem mais o discernimento de ser uma
distorção da realidade.

 Tabela 19: Distinção entre simulacro e simulação.

Os simulacros são usualmente compreendidos como um problema para o


pensamento, porque colocam a questão da falsidade e da não verdade, i.e. são
aquilo que esconde a inexistência da verdade; nesta perspectiva, o simulacro é
“verdade” (cf. Smith, 2010, p. 196). A percepção da realidade e a ideia que se
forma sobre a realidade é desencadeada por signos, significantes que, pela forma
(mais do que pelo conteúdo) produzem impressões, efeitos de realidade. Os refe-
rentes desses significantes não existem; são miragens, ilusões, simulações. O real
é, assim, apenas o simulacro do simbólico, cuja forma é reduzida e interceptada
pelo signo.
Em Simulacros e simulação, Baudrillard descreve a “precessão dos simula-
cros”, o crescente distanciamento da imagem relativamente à realidade:
1. A imagem começa como um reflexo da realidade.
2. A imagem cobre a realidade.
3. A imagem mascara a ausência de realidade.
4. A imagem não tem nenhuma relação com a realidade (é uma mera cópia
de uma cópia ad infinitum, sem “original”).

Neste processo gradual e intensificador do apagamento da realidade pela


imagem, a realidade desaparece e o real é substituído pelo hiper-real, a “cópia
sem original” que é mais real do que a própria realidade. O exemplo, para Bau-
drillard, é a Disneylândia: a simulação hiper-real da América (cf. Bell, Loader,
Pleace & Schuler, 2005, p. 134).
Em Viagem na irrealidade quotidiana, por seu turno, Umberto Eco (cf. 1993,
p. 40) apresenta a Disneylândia na Califórnia e o Disney World na Flórida en-
quanto espaços absolutamente falsos. A Disneylândia é um exemplo adequado
para se compreender a dimensão exagerada do fenómeno cultural de produção
de signos que impressionam, causam aparato, provocam sensações e seduzem
mesmo na artificialidade, na fantasia.
A Disneylândia é um microcosmo social, um mundo imaginário e é por
isso que tem êxito. Segundo Simulacros e simulação, “a Disneylândia é um modelo
perfeito de todos os tipos de simulacros confundidos”; “é antes de mais um jogo
de ilusões e de fantasmas” que “existe para esconder que é o país ‘real’, toda a
América ‘real’ que é a Disneylândia” (Baudrillard, 1991, p. 21). A Disneylândia é
o produto e a fabricação do imaginário para fazer crer que o resto é real sem o
ser já, pois é hiper-real, simulação.
Paulo M. Barroso
260

“Já não se trata de uma representação falsa da realidade (a ideologia), trata-se de


esconder que o real já não é o real e, portanto, de salvaguardar o princípio de rea-
lidade. O imaginário da Disneylândia não é verdadeiro nem falso, é uma máquina
de dissuasão encenada para regenerar no plano oposto a ficção do real. Daí a de-
bilidade deste imaginário, a sua degenerescência infantil. O mundo quer-se infantil
para fazer crer que os adultos estão noutra parte, no mundo ‘real’, e para esconder
que a verdadeira infantilidade está em toda a parte, é a dos próprios adultos que
vêm aqui fingir que são crianças para iludir a sua infantilidade real.” (Baudrillard,
1991, p. 22).

A Disneylândia é um bom exemplo de hiper-realidade, porque: a) é um


lugar onde o falso é produzido pelo desenvolvimento tecnológico e é admirado;
b) apresenta-nos “mais realidade” do que a Natureza, ou seja, o hiper-real é o que
é mais real do que o real, a cópia que é mais perfeita que a original (cf. Perry,
1988, p. 42). A Disneylândia é um espaço de regeneração e reciclagem mental
dos sonhos, do imaginário ou da sociabilidade já perdidos. Por isso, Baudrillard
(1991, p. 1) argumenta que hoje “a simulação já não é a simulação de território,
de um ser referencial, de uma substância”; pelo contrário, “é a geração pelos mo-
delos de um real sem origem nem realidade: um hiper-real”. Inspirado na história
do mapa de Jorge Luís Borges, Baudrillard aponta o mapa como uma analogia
dos simulacros. Isso significa que “o território já não precede o mapa, nem lhe
sobrevive”:
“Hoje a abstracção já não é a do mapa, do duplo, do espelho ou do conceito. A simu-
lação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância.
É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O terri-
tório já não precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede o terri-
tório - precessão dos simulacros – é ele que engendra o território cujos fragmentos
apodrecem lentamente sobre a extensão do mapa.” (Baudrillard, 1991, p. 8).

Baudrillard (1991, p. 12) denuncia o que denomina de “poder assassino


das imagens”. Porquê? Porque as imagens assassinam o real, o seu próprio mo-
delo. As imagens representam o real e nós contentamo-nos com as representações
em detrimento da própria realidade. Hoje, preferimos a representação (onde é
mais confortável viver, por se constituir numa mediação visível e inteligível do
real) do que o representado, ou seja, a própria realidade. O mundo tornou-se re-
presentação; tudo são signos e estes valem mais do que aquilo que representam:
a realidade.
“Assim, a questão terá sempre sido o poder assassino das imagens, assassinas do
real, assassinas do seu próprio modelo, como os ícones de Bizâncio o podiam ser
da entidade divina. A este poder assassino opõe-se o das representações como
poder dialéctico, mediação visível e inteligível do Real. Toda a fé e a boa fé ocidental
se empenharam nesta aposta da representação: que um signo possa remeter para
a profundidade do sentido, que um signo possa trocar-se por sentido e que alguma
coisa sirva de caução a esta troca – Deus, certamente. Mas e se o próprio Deus pode
ser simulado, isto é, reduzir-se aos signos que o provam? Então todo o sistema
perde a força da gravidade, ele próprio não é mais que um gigantesco simulacro –
Sociologia da Comunicação
261

não irreal, mas simulacro, isto é, nunca mais passível de ser trocado por real, mas
trocando-se em si mesmo, num circuito ininterrupto cujas referência e circunfe-
rência se encontram em lado nenhum. Assim é a simulação, naquilo em que se
opõe à representação. Esta parte do princípio de equivalência do signo e do real
(mesmo se esta equivalência é utópica, é um axioma fundamental). A simulação
parte, ao contrário da utopia, do princípio de equivalência, parte da negação radical
do signo como valor, parte do signo como reversão e aniquilamento de toda a refe-
rência. Enquanto que a representação tenta absorver a simulação interpretando-a
como falsa representação, a simulação envolve todo o próprio edifício da represen-
tação como simulacro. Seriam estas as fases sucessivas da imagem: - ela é o reflexo
de uma realidade profunda, - ela mascara e deforma uma realidade profunda, - ela
mascara a ausência de realidade profunda, - ela não tem relação com qualquer rea-
lidade: ela é o seu próprio simulacro puro.” (Baudrillard, 1991, pp. 12-13).

Esta ideia de dominação da representação no mundo assemelha-se à linha


de pensamento de Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, pois
nesta obra se distingue duas possibilidades de concepção do mundo, a vontade
e a representação:
– O mundo como vontade: das coisas em si e da vontade que se esconde
atrás do fenómeno que é a representação.
– O mundo como representação: ilusão, aparência.

De acordo com Schopenhauer, o mundo é representação, ou melhor, o


(meu) mundo é a minha representação. Em O mundo como vontade e representação,
Schopenhauer realça que, seguindo a perspectiva céptica do imaterialismo de
Berkley:
“[…] tudo o que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo inteiro apenas
é objecto em relação a um sujeito, percepção apenas, em relação a um espírito que
percebe, numa palavra, é pura representação. […] Tudo o que o mundo encerra ou
pode encerrar está nesta dependência necessária frente ao sujeito, e apenas existe
para o sujeito.” (Schopenhauer, 2005, p. 7).

O que é a representação? Qual é o problema que a representação suscita?


O real refere-se a uma representação (está dentro do signo) ou é apenas o que
está fora do signo?
Para Baudrillard, a actual era dos media é dominada pelo puro simulacro.
A frequência com que os media difundem imagens de espectáculo ou escândalo,
provocando sensacionalismo e criando distância face à factualidade, demonstra
como estão desconexas as representações, i.e. criam simulacros (tipos de repre-
sentações produzidas por simulações). O real e o hiper-real são duas ordens de
simulacros gerados por imagens (signos) através da representação e, depois, da
simulação.
“É que estamos numa lógica de simulação, que já nada tem a ver com uma lógica
dos factos e uma ordem das razões. A simulação caracteriza-se por uma precessão
do modelo, de todos os modelos sobre o mínimo facto — os modelos já existem
Paulo M. Barroso
262

antes, a sua circulação, orbital como a da bomba, constitui o verdadeiro campo


magnético do acontecimento. Os factos já não têm trajectória própria, nascem na
intersecção dos modelos, um único facto pode ser engendrado por todos os mode-
los ao mesmo tempo.” (Baudrillard, 1991, p. 26).

Para Baudrillard (1991, pp. 29-30), é impossível voltar a encontrar um nível


absoluto de real, mas também é impossível encenar a ilusão, pois “a ilusão já
não é possível porque o real já não é possível”. Segundo Baudrillard (1991, p. 34),
“o que toda uma sociedade procura, ao continuar a produzir e a reproduzir, é res-
suscitar o real que lhe escapa. É por isso que esta produção ‘material’ é hoje, ela
própria, hiper-real”. Por isso, “o hiper-realismo da simulação traduz-se pela aluci-
nante semelhança do real consigo próprio” (Baudrillard, 1991, p. 34).
Para compreender o conceito de “simulacro”, devemos relacioná-lo com o
conceito de realidade, porque o simulacro é a representação ou imagem do real
sem origem nem realidade, ou seja, é o resultado do hiper-real (cf. Baudrillard,
1991, p. 8). A realidade é a qualidade do que existe efectivamente. A realidade
constitui tudo o que é real. O real “é aquilo de que é possível fornecer uma re-
produção equivalente” (Baudrillard, 1996, p. 127). O real é reproduzível, portanto,
em determinadas condições. “No termo deste processo de reprodutibilidade, o
real é não apenas o que pode ser reproduzido, mas também o que está sempre já
reproduzido. Hiper-real.” (Baudrillard, 1996, p. 127). Para Baudrillard, “o real
nunca foi mais do que uma forma de simulação” e a realidade nem sempre exis-
tiu, pois apenas se fala dela depois de haver uma racionalidade para a afirmar
(cf. Baudrillard, 2001, p. 36). Existem efeitos de real, efeitos de verdade, efeitos
de objectividade que tendem a desaparecer ou a se tornarem mais escassos, “mas
em si mesmo o real não existe” (Baudrillard, 2001, p. 35). Se o real não existe, é
o virtual que agora se afirma como real. Pela mediação tecnológica, é o virtual
que nos pensa.
Mas até onde vai a realidade e começa a hiper-realidade? Até onde vai a
hiper-realidade? Como medir a percepção da realidade e ter a certeza sobre a rea-
lidade de que essa percepção dá conta?
O problema é que o simulacro actua como elemento intensificador do pró-
prio real em que se baseia, criando artificialmente uma hiper-realidade caracte-
rizada pela espectacularidade, ou seja, uma contrafacção do real mais vívida e
sedutora do que a factualidade (cf. Polistchuk & Trinta, 2003, p. 144). Ao contrário
de uma percepção do real, o simulacro não fornece novos conhecimentos sobre
o mundo e sobre a factualidade, apenas os reproduz. O simulacro é desejável,
conveniente e cómodo ao permitir um mundo possível e tecnologicamente pro-
duzido, mas não o mundo efectivo, pois não se baseia na verdade nem no real.
Por isso, conforme inicia Simulacros e simulação, “hoje, o território já não
precede o mapa, nem lhe sobrevive”, pois “é agora o mapa que precede o terri-
tório” (Baudrillard, 1991, p. 8). Para a pós-modernidade, o simulacro afigura-se
Sociologia da Comunicação
263

como o verdadeiro, cria a ilusão de real e de verdade, seduz e convence, não per-
mitindo mais conhecimento nem experiência do mundo real e levando à incapa-
cidade de distinção entre o real e o não-real. Falaciosamente acredita-se que
apenas o que é reproduzido pela imagem é que existe, quando na verdade, para
Baudrillard, é precisamente o papel da imagem que cria a ilusão (o simulacro)
sobre o real. Na criação do simulacro, a imagem descola-se do seu referente e ad-
quire vida própria e desterritorializada, com o objectivo de esteticizar a sensação
e a percepção do indivíduo.
Para Baudrillard, o simulacro é como um tipo de representação produzida
por simulação, é uma cópia sem original. Num mundo em que existem apenas
simulações ou em que a forma do simulacro predomina, o próprio mundo é uma
cópia de uma cópia e as próprias noções de autenticidade e verdade perdem o
seu ponto de referência (cf. Smith, 2010, p. 199). O conceito de simulacro constitui
um problema para Baudrillard, mas não no sentido de Platão, i.e. como imitação
enganosa.188 Tal como Nietzsche, Baudrillard entende que os simulacros não são
como imagens falsas nem obscurecem a verdade por intermédio de um artifício,
uma fachada, mas é um efeito de verdade que esconde a inexistência da verdade
(cf. Baudrillard, 1990a, p. 35).
A interacção entre os media e as novas tecnologias torna a comunicação
(as imagens e os textos) mais apelativa, sedutora e influente. A questão da sedu-
ção da comunicação, com os seus efeitos e consequências na formação da opinião
pública e na massificação da sociedade, não está ausente do campo dos media
ou do processo de produção de notícias, que obedece à lógica de influência.
Por conseguinte, Baudrillard caracteriza a sedução como tendo signos para
a relação social baseados em aparências, artifícios, significados conectados, i.e.
uma ordem ritual com regras peculiares e formas de pensamento (cf. Baudrillard,
1990a, p. 21). As massas são seduzidas pelos discursos dos media. É como se tudo
fosse movido pela sedução, ideologia, desejo e ilusão difundidos pelas mensa-
gens. Como afirma Baudrillard em Seduction:
“Sedução/simulacro: a comunicação como funcionamento do social num circuito
fechado, onde os signos duplicam uma realidade indetectável. O contrato social
tornou-se um ‘pacto de simulação’ selado pelos media e pelas notícias. E ninguém,

188
O problema das imagens para Platão cinge-se à questão de as imagens serem meras imagens da
verdade. Conforme Platão salienta em A república: “Chamo imagens, em primeiro lugar às
sombras; em seguida aos reflexos nas águas ou à superfície dos corpos opacos, polidos e
brilhantes e todas as representações deste género” (Platão, 2001, 509e-510a). Para Platão,
qualquer imitação é sempre negativa porque: 1) afasta-se da verdade; 2) apela a emoções e as
emoções fazem-nos ver as coisas de forma emocional, conduzindo-nos à imoralidade,
instabilidade e irracionalidade. As imagens afastam-nos do bom senso e podem ser perigosas.
Em Platão, interessa a questão sobre a relação entre o eidos (real, verdade), îkon (imagem) e eidôlon
(simulacro). Segundo o The Baudrillard dictionary (cf. Smith, 2010, p. 102), a questão é sobre a
relação entre o verdadeiro modelo (e o modelo como verdade) e a tentativa de capturar esse
modelo numa representação (îkon).
Paulo M. Barroso
264

pode-se acrescentar, se deixa levar por completo: a notícia é vivida como um am-
biente, um serviço ou um holograma do social. As massas respondem à simulação
do sentido com uma espécie de simulação reversa; respondem à dissuasão com de-
safecto e às ilusões com uma crença enigmática. Tudo se move e pode dar a im-
pressão de uma sedução operativa. Mas tal sedução não tem mais sentido do que
qualquer outra coisa, a sedução aqui conota apenas uma espécie de adesão lúdica
a informações simuladas, uma espécie de atracção táctil mantida pelos modelos.”
(Baudrillard, 1990a, p. 163).189

A força do mercado está ligada à importância dos hábitos de consumo,


que são desencadeados por técnicas de comunicação e sedução (publicidade, mar-
keting, etc.) e discursos públicos estruturados nos media.
Qual é o problema das imagens? O problema das imagens é que estas não
são representativas, não “re-apresentam” a realidade ou o real. O problema das
imagens é o problema de se conceber e entender o mundo como imagem. Con-
ceber e entender o mundo como imagem quer dizer impor um modo de ver o
mundo, um modo ideológico, orientado para certos sentidos que as imagens pro-
duzem e indicam como convenientes. Por isso, Baudrillard refere que “a ideologia
não corresponde senão a uma malversação da realidade pelos signos, a simulação
corresponde a um curto-circuito da realidade e à sua reduplicação pelos signos”
(Baudrillard, 1991, p. 39). Para Baudrillard, “é sempre um falso problema querer
reinserir a verdade sob o simulacro” (Baudrillard, 1991, p. 39).
Em The evil demon of images, Baudrillard salienta, a propósito das imagens
em geral (incluindo as imagens dos media e as imagens tecnológicas), a perver-
sidade da relação entre a imagem e o seu referente (a suposta realidade), ou seja,
a confusão virtual e irreversível da esfera das imagens e da esfera da realidade,
cuja natureza é cada vez menos entendível. Baudrillard refere-se a uma “diabólica
sedução das imagens”, porque as imagens seguem uma estratégia pela qual elas
sempre parecem referir-se a um mundo real e a objectos reais, reproduzindo algo
que é, de um modo lógico e cronológico, anterior às próprias imagens.
“Enquanto simulacros, as imagens precedem o real, na medida em que invertem a
ordem causal e lógica do real e a sua reprodução. Benjamin, no seu ensaio ‘A obra
de arte na era da sua reprodutibilidade técnica’, já tinha apontado veementemente
esta revolução moderna na ordem da produção (da realidade, do sentido) pela pre-

189
Tradução do autor a partir da edição em inglês de Seduction, de Baudrillard: “Seduction/simulacrum:
communication as the functioning of the social within a closed circuit, where signs duplicate an
undiscoverable reality. The social contract has become a ‘simulation pact’ sealed by the media and
the news. And nobody, one might add, is completely taken in: the news is experienced as an
ambience, a service, or hologram of the social. The masses respond to the simulation of meaning
with a kind of reverse simulation; they respond to dissuasion with disaffection, and to illusions
with an enigmatic belief. It all moves around and can give the impression of an operative
seduction. But such seduction has no more meaning than anything else, seduction here connotes
only a kind of ludic adhesion to simulated pieces of information, a kind of tactile attraction
maintained by the models.”
Sociologia da Comunicação
265

cessão, a antecipação da sua reprodução. É precisamente quando parece mais sin-


cera, mais fidedigna e mais em conformidade com a realidade que a imagem é mais
diabólica – e as nossas imagens tecnológicas, sejam de fotografia, cinema ou tele-
visão, estão no grau mais elevado de “figurativas’, ‘realistas’, do que todas as ima-
gens das culturas passadas.” (Baudrillard, 1984, p. 13).190

Para Baudrillard, as imagens são diabólicas porque elas parecem estar con-
forme a realidade. Acreditamos ingenuamente nessa conformidade, no realismo
das imagens. É o que acontece com certos filmes, que impressionam pelas ima-
gens que são capazes de nos desligar da noção de que são encenações, represen-
tações, ficções. Baudrillard (1991, p. 77) apresenta o exemplo de Apocalypse Now,
de Francis Ford Coppola. Em filmes com exageros, efeitos especiais e tecnológicos
gerados por computador, a realidade (se existir) é a produção e apresentação do
próprio filme, que é uma simulação. Trata-se de um paradoxo: o representado
(realidade) advém do representante (imagem).
“Coppola faz a mesma coisa: testa o poder de intervenção do cinema, testa o im-
pacto do cinema em se tornar uma vasta máquina de efeitos especiais. Neste sen-
tido, o seu filme é muito mais do que o prolongamento da guerra por outros meios,
a completude daquela guerra incompleta, a sua apoteose. A guerra torna-se filme,
o filme torna-se guerra, os dois unidos pelos seus excessos de tecnologia.” (Bau-
drillard, 1984, p. 16).191

A imagem contamina a realidade; molda-a (cf. Baudrillard, 1984, p. 16). É


como se a realidade de alguma coisa ou situação fosse antecipada pelas imagens
dessa coisa ou situação. Baudrillard invoca o problema da imagem para advertir
sobre a primazia da imagem por si só, enquanto simulacro, sobre qualquer rea-
lidade putativa. A imagem não constitui a realidade em si. A imagem é a repre-
sentação da realidade, é o simulacro. O simulacro é como um segundo baptismo
dos objectos, das coisas, da realidade; o primeiro baptismo é a representação. Si-
mular é fingir uma presença ausente; é criar uma imagem sem correspondente
nem representação com a realidade.

190
Tradução do autor a partir da edição em inglês do livro The evil demon of images, de Baudrillard:
“As simulacra, images precede the real to the extent that they invert the causal and logical order
of the real and its reproduction. Benjamin, in his essay ‘The Work of Art in the Age of Mechanical
Reproduction’, already pointed out strongly this modern revolution in the order of production
(of reality, of meaning) by the precession, the anticipation of its reproduction. It is precisely when
it appears most truthful, most faithful and most in conformity to reality that the image is most
diabolical – and our technical images, whether they be from photography, cinema or television,
are in the overwhelming majority much more ‘figurative’, ‘realist’, than all the images from past
cultures.”
191
Tradução do autor a partir da edição em inglês do livro The evil demon of images, de Baudrillard:
“Coppola does the same thing: he tests the power of intervention of cinema, tests the impact of
cinema become a vast machine of special effects. In this sense his film is very much the
prolongation of war by other means, the completion of that incomplete war, its apotheosis. War
becomes film, film becomes war, the two united by their mutual overflow of technology.”
Paulo M. Barroso
266

Vivemos rodeados de imagens. Estas imagens, por um lado, representam


a realidade de um modo independente da própria realidade, por outro lado, pro-
curam causar impressões espectaculares sobre aquilo que representam. É a his-
teria da produção e da reprodução do real (Baudrillard, 1991, p. 33). Estas imagens
são simulações e muitas delas são disformes face à realidade. Mesmo assim são
mais atraentes ao espectador do que a própria realidade reproduzida.
A partir dos pressupostos de uma teoria crítica da cultura de massas e do
espectáculo, Umberto Eco analisa os efeitos de uma iconolatria (ou semiolatria,
no geral)192 sobre os processos de linguagem e de cognição, que desvirtua o real
com o artificial, o aparente e o virtual, i.e. com a produção estratégica de imagens
e produtos de uma indústria cultural do entretenimento. Umberto Eco apresenta
Viagem na irrealidade quotidiana como um ensaio de crítica à cultura contempo-
rânea. Uma cultura visual, tautológica e hiperbólica, imprescindível para a criação
de percepções da aparência, fomentando a produção de signos como suporte de
virtualização da realidade ou de hiper-realidade. Se as culturas modernas apos-
tam na construção de modelos que se pareçam no máximo com aquilo que re-
presentam e existe na realidade, usando os mesmos materiais, cores e formas,
significa que se pretende um elevado grau de semelhança e identificação entre
esse modelo (cópia) e a realidade (original), como se fosse uma reencarnação (cf.
Eco, 1993, p. 10).
“Para falar de coisas que se querem conotar como verdadeiras, essas coisas devem
parecer verdadeiras. O ‘totalmente verdadeiro’ identifica-se com o ‘totalmente
falso’. A irrealidade absoluta oferece-se como presença real. No gabinete recons-
truído, a ambição é a de fornecer um ‘signo’ que se faça esquecer como tal: o signo
aspira a ser a coisa e a abolir a diferençada alusão, a mecânica da substituição. Não
a imagem da coisa, mas o seu decalque, ou melhor, o seu duplo.” (Eco, 1993, p. 10).

Certas práticas culturais produzem e reconstroem artefactos para que


estes parecem reais e signifiquem ou pareçam coisas ou situações autênticas,
verdadeiras. O falso confunde-se com o verdadeiro e vice-versa. Produz-se irrea-
lidade e esta irrealidade é apresentada ou oferecida como presença real. A irrea-
lidade é um artefacto, um signo que aspira a ser ou a parecer a realidade, abolindo
as diferenças físicas e perceptíveis entre o que é real (verdadeiro) e o que é irreal
(falso). Esse artefacto, enquanto signo, é uma reapresentação que substitui e sig-
nifica o que é real através de uma mensagem intencionalmente produzida e
transmitida que é composta de signos. É o exemplo exponencial do que acontece
e funciona em Las Vegas:
“Quando na Europa alguém se quer divertir vai a uma ‘casa’ de divertimentos (seja
ela cinematógrafo, teatro ou casino); por vezes é montado provisoriamente um

192
Um reino dos signos e das significações, campo da semiosfera, segundo o termo de Yuri Lotman
(cf. 2005, p. 208). A semiosfera é a esfera dos signos, o espaço ou sistema da Semiótica, sem o
qual a comunicação não pode acontecer (cf. Hartley, 2004, p. 240).
Sociologia da Comunicação
267

‘parque’, que pode parecer uma ‘cidade’, mas apenas a título metafórico. Nos Esta-
dos Unidos, pelo contrário, é bem sabido, existem as cidades dos divertimentos:
Las Vegas é disso exemplo, está centrada no jogo e no espectáculo, a sua arquitec-
tura é de todo artificial e foi estudada por Robert Venturi como um facto urbanístico
completamente novo, uma cidade ‘mensagem’, toda feita de signos, não uma ci-
dade como as outras, que comunicam para poder funcionar, mas sim uma cidade
que funciona para comunicar.” (Eco, 1993, p. 40).
A irrealidade, mas também a hiper-realidade, é o falso expoente em que as
imitações não apenas reproduzem a realidade, mas também tentam melhorá-la.
Por exemplo, existem museus que funcionam como modos de proporcionar
a vivência de uma outra realidade onírica, a ficção, que a própria realidade não
satisfaz. Esta realidade é ficção? O sonho é desejo, é o que se gostaria de ter, mas
não se tem; a realidade é o que suscita o sonho como forma de evasão da própria
realidade.
De facto, o conceito de hiper-realidade está conotado com os efeitos da
cultura de massas, em particular os da reprodução virtual de objectos, eventos
ou experiências que substituem ou são preferidos em detrimento da autentici-
dade do real (a ideia de que a cópia é mais real do que o real originário).
Para Umberto Eco e, na mesma linha de perspectiva, para Baudrillard (cf.
1989, p. 36; 1996, p. 128), a hiper-realidade é indistinta da realidade, da imagem
(signos representativos da realidade) e da sensação de aparência nas formas de
simulação. Se Baudrillard demonstra que o real é suplantado ou escamoteado
pela imitação que se propõe sempre nova e mais completa e, por isso, mais inte-
ressante para a cultura de massas, Umberto Eco permanece na crítica à cultura
de massas e do espectáculo, à semelhança do que antes fez Guy Debord em A so-
ciedade do espetáculo.
Em Viagem na irrealidade quotidiana e em América,193 Umberto Eco e Bau-
drillard, respectivamente, usam os conceitos de “irrealidade” e de “hiper-reali-
dade” para descrever como a nossa percepção do mundo depende cada vez mais
de simulacros da realidade, à medida que nos tornamos numa sociedade comu-
nicacional, tecnológica e hiper-real. Umberto Eco e Baudrillard reconhecem a
construção de uma espécie de semiocracia.194 Os signos da hiper-realidade servem
para a fuga ou distanciamento da referencialidade. Ambos reconhecem uma ten-
dência para os signos escaparem às amarras referenciais, voarem livres de signi-
ficados cognitivos e assumirem uma hiper-vida própria que é mais real do que a
realidade e do que o hiper-real (cf. Tiffin, 2005, p. 41).

193
Obra originalmente publicada por Baudrillard em 1986 com o título Amérique (Bernard Grasset,
Paris).
194
O conceito de “semiocracia” deriva dos termos gregos semeion, “signo”, e krátos, “poder”,
querendo referir um império poderoso e prepotente de signos massificados e influentes, que
impõem uma certa maneira de ver, pensar, sentir, agir ou apenas significar e interpretar o mundo.
Paulo M. Barroso
268

Para Baudrillard, a América é o simulacro perfeito da imanência e da trans-


crição material de todos os valores (cf. Barroso, 2018, p. 104). A América não é
um sonho nem uma realidade; é uma hiper-realidade, segundo Baudrillard. É uma
utopia que desde o princípio se viveu como realizada, justifica Baudrillard, pois
tudo é real, pragmático, e tudo nos torna sonhadores (cf. Baudrillard, 1989, p.
36). Na América, tudo é paradoxalmente real e utópico. Nesta perspectiva, a hiper-
realidade é indistinta da realidade, da imagem (como um signo que representa a
realidade) e da sensação de aparência nas formas de simulação. Conforme refere
Baudrillard em A troca simbólica e a morte:
“Hoje, todo o sistema oscila na indeterminação, toda a realidade é absorvida pela
hiper-realidade da realidade do código e da simulação. É um princípio de simulação
que doravante nos rege, em vez do antigo princípio de realidade. As finalidades
desaparecem, são os modelos que nos geram. Já não há ideologia, há apenas simu-
lacros.” (Baudrillard, 1996, p. 11).

Essa indeterminação é remodelada por profundas transformações sociais,


cujas modalidades são a hiper-realidade e a simulação. Para Baudrillard, o que
regula a vida social hoje é um princípio de simulação, não de realidade. Por con-
seguinte, o âmago da teoria da comunicação de Baudrillard é a noção de troca
simbólica (cf. Smith, 2010, pp. 36-37). A troca simbólica é a forma autêntica (quer
para a simulação quer para a realidade) da comunicação exercer interacção e re-
ciprocidade num dado contexto cultural.
A hiper-realidade está relacionada com a simulação e, para usar o conceito
de Baudrillard, com o simulacrum, quer em termos conceptuais (os conceitos im-
plicam-se) quer em termos concretos do que são e do que representam, i.e. uma
reprodução, cópia ou imagem sem referente, sem correspondência objectiva com
algo na realidade que lhe dá origem. A hiper-realidade refere-se sempre a uma
simulação da realidade que é, paradoxalmente, considerada mais real do que a
própria realidade.
Numa perspectiva crítica pós-moderna, a hiper-realidade é o resultado da
mediação tecnológica das experiências. Com a hiper-realidade, o que trespassa
para a realidade é uma rede de imagens, signos sem referentes. Assim, o que é
representado é a própria representação. Em A troca simbólica e a morte, Baudrillard
fala em “hiper-realismo da simulação” e na “própria realidade que, actualmente,
é hiper-realista”, tem já incorporada a dimensão simuladora do hiper-realismo,
pois “vivemos em toda a parte já na alucinação ‘estética’ da realidade” (Baudril-
lard, 1996, p. 128). Toda a realidade se tornou simulação porque o real e o imagi-
nário foram absorvidos no simbólico.
A realidade torna-se representação ou simulação de si mesma: “a culpabi-
lidade, a angústia e a morte podem assim ser substituídas pela fruição total dos
signos da culpabilidade, do desespero, da violência e da morte” (Baudrillard, 1996,
p. 128).
Sociologia da Comunicação
269

“É também a derrocada da realidade no hiper-realismo, na reduplicação minuciosa


do real, de preferência a partir de um outro medium reprodutivo – publicidade, foto-
grafia, etc. – de medium em medium o real volatiliza-se, torna-se alegoria da morte,
mas reforça-se também através da sua própria destruição, torna-se o real pelo real,
feiticismo do objecto perdido – não já objecto de representação, mas êxtase de dene-
gação e da sua própria exterminação ritual: hiper-real.” (Baudrillard, 1996, p. 125).

Na perspectiva de Baudrillard, a contradição entre a realidade e o imagi-


nário desaparece. A irrealidade corresponde à semelhança da realidade consigo
mesma, i.e à identificação absurda da realidade que é a sua própria representação.
Trata-se da crise da representação. O real é, para Baudrillard, “aquilo de que é
possível fornecer uma reprodução equivalente” (Baudrillard, 1996, p. 127). O real
situa-se num processo de reprodutividade; é o que pode ser reproduzido e o que
está sempre já reproduzido.
A hiper-realidade é, para Baudrillard, a última etapa da simulação, onde o
signo não possui relação com a realidade, mas é o puro simulacrum da realidade.
Esta tornou-se num efeito operacional de processos simbólicos. Por um lado, os
signos servem para produzir outros signos, criando um sistema de troca simbó-
lica generalizada, por outro lado, os signos são trocados uns pelos outros em vez
de trocados por aquilo que representam (a realidade).
Um problema da actualidade das imagens tem a ver com o que Georges
Balandier (1920-2016) designa, em O poder em cena, por “violência do espectá-
culo”. Segundo este autor, “na idade da comunicação generalizada, a violência
torna-se ‘espectáculo’; pela imagem mediática, invade as consciências e o ima-
ginário individual” (Balandier, 1999, p. 94). Para Balandier (1999, p. 113), “a rea-
lidade parece menos vigorosa que a imagem”, como também reconhece
Baudrillard. Por isso, Baudrillard propõe um novo olhar sobre as imagens (signos)
que são modificadas em si, pela virtualidade, não pela mudança daquilo que re-
presentam, a própria realidade. A realidade social também muda, principalmente
por impulso dos media (em especial, os media digitais, os novos media tecnoló-
gicos) e por uma época de pós-modernidade. Basta um olhar sobre as imagens
que se propagam nas redes sociais, com filtros, com edição, com montagem, para
simularem uma dada realidade e impressionarem pelo nível espectacular, rece-
bendo muitos “gostos”, suscitando reacções (comentários) e levando a partilhas.
Um critério de relevância (inclusive relevância noticiosa) é um número elevado
de visualizações, gostos e partilhas de um vídeo no YouTube que, só por isso, é
elevado ao estatuto de notícia nos telejornais.
A propósito do efeito de irrealidade e de invisibilidade provocado pela ima-
gem, Régis Debray (1994, p. 278) afirma que “o paradoxo é que imagem e realidade
tornam-se indiscerníveis: um tal espaço é explorável e impalpável, ao mesmo
tempo, não ilusório e irreal”. Ao visível não corresponde o real nem o verdadeiro.
Em Vida e morte da imagem: Uma história do olhar no ocidente, Debray assegura:
Paulo M. Barroso
270

“Somos a primeira civilização que pode julgar-se autorizada por seus aparelhos a
acreditar em seus olhos. A primeira a ter colocado um sinal de igualdade entre visi-
bilidade, realidade e verdade. Todas as outras, e a nossa até ontem, estimavam que
a imagem impede de ver. Agora, vale como prova. O representável apresenta-se
como irrecusável. Ora, como o mercado fixa cada vez mais a natureza e os limites
das representações sensíveis, na medida em que são mediatizadas por indústrias,
o sinal de igualdade se transforma e torna-se: ‘Invendável = irreal, falso, não vá-
lido’. Somente o solvável é válido; só tem valor aquilo que tem clientela. O nivela-
mento dos valores da verdade aos valores da informação indexa a primeira à oferta
e procura: será considerado verdadeiro o que tem um mercado. Tradução: ‘o público
é o nosso único juiz’.” (Debray, 1994, pp. 358-359).

Então, se vivemos nas simulações proporcionadas pelas imagens dos


media, como sabemos e podemos saber/perceber o que é, de facto, real? Se as si-
mulações da realidade são cada vez mais perfeitas e indistintas da própria reali-
dade, já não teremos percepção ocular capaz de perceber as diferenças ou,
simplesmente, desistimos ou nem nos preocupamos em percebê-las? Se a reali-
dade percepcionada está conforme a realidade em si, vemos da mesma maneira
e essa maneira é manipulada para ser o que é? Ou nada daquilo que vemos é real
e, pelo contrário, é tudo encaixado na mesma configuração de simulacro que im-
pressiona de uma determinada maneira?
12.3.2. Comunicação instantânea
Nas sociedades actuais, a produção, transmissão e recepção de conteúdos
caracteriza-se pela rapidez, imediatismo e efemeridade. Os conteúdos circulam a
uma velocidade que os torna produtos instantâneos, flashes superficiais e descartá-
veis. É a chamada “comunicação instantânea”. Esta expressão pressupõe o uso de
plataformas digitais, um meio rápido de se espalharem como se fossem vírus, i.e.
uma comunicação viral. É a actual disponibilidade de recursos para enviar mensa-
gens instantaneamente, a distâncias imensas, suscitando significados semelhantes
em milhões de pessoas ao mesmo tempo (cf. DeFleur & Ball-Rokeach, 1993, p. 17).
Nas sociedades contemporâneas assiste-se a uma transição da recepção
tradicional de informações (notícias ou entretenimentos) da comunicação social
para esta nova dimensão moderna da comunicação digital e instantânea. As so-
ciedades mudaram, tal como mudaram as formas, os meios técnicos e os canais
de comunicação e informação. Antes, separava-se claramente o emissor e o re-
ceptor no processo de comunicação; hoje, é fácil, imediato e aberto o acesso às
modernas redes sociais, onde se transmitem informações livres, sem os habituais
intermediários e gatekeepers.195 Este aspecto não é um problema; é uma mudança
de paradigma comunicacional.

195
O conceito de “gatekeeper” (“seleccionador”, “porteiro”, “bloqueio”) foi elaborado por Kurt Lewin,
em 1947, para demonstrar as dinâmicas de filtragem de informações que actuam no interior dos
grupos sociais e que os influenciam (cf. Wolf, 1992, pp. 159-160). Um gatekeeper é uma pessoa
ou um grupo que possui o poder de decidir se deixa passar a informação ou se a bloqueia.
Sociologia da Comunicação
271

Dos tradicionais sistemas e modelos de comunicação e de mediação às


modernas formas digitais de comunicação e de mediação, verifica-se o surgi-
mento de:
– Artefactos narrativos e novos modelos de comunicação e de mediação.
– Ambientes virtuais narrativos e interactivos, com a consequente am-
pliação do ciberespaço e mais interactividade, partilha e imersividade.
– Novos níveis de representação e de narração virtuais e interactivos.

É neste sentido que, em The intelligence of evil or the lucidity pact,196 Bau-
drillard (cf. 2005, p. 31) considera a imersão, a imanência e o imediatismo como
as características do virtual. O mundo interactivo abole a linha de demarcação
entre o sujeito e o objecto (cf. Baudrillard, 2005, p. 78). Viveremos, como afirma
Baudrillard, na hiper-realidade das simulações, onde tudo se torna imagem/signo,
espectáculo e objecto “trans-estético” e onde também as imagens e o espectáculo
tendem a substituir quer o significado da vivência e da experiência humana quer
a própria autenticidade dessa experiência e vivência?
A referida mudança de paradigma comunicacional deve-se a aspectos ma-
teriais, que se desenvolveram com o capitalismo e o liberalismo económico. Vi-
vemos num mercado-mundo onde existe tudo e em quantidades excessivas.
Inclusivamente no campo dos media, onde já não actuam apenas os media tradi-
cionais, mas que se desdobraram e se inovaram em novos media, através dos
quais as formas de comunicação e de informação são diversificadas. Enzensberger
(1978, p. 75) já admoestava há 50 anos, em Elementos para uma teoria dos meios
de comunicação, para a tese de que “os novos media estão orientados para a acção,
não para a contemplação” e “para o presente, não para a tradição”.
Ao permitir o self media e o social media, definindo o modo como nos in-
formamos e nos relacionamos, a comunicação instantânea contribui paradoxal-
mente para a democraticidade e megafonia das comunicações (opiniões,
comentários, postagens, reacções a postagens, etc.) e para uma relativa autocra-
cia e intolerância da sociedade em rede. As modernas formas de comunicação
em rede aproximam e afastam, incluem e excluem, aceitam e recusam, toleram
e não toleram, diluindo as barreiras entre o privado e o público, pois a comuni-
cação instantânea pauta-se por:
– Interconexão na rede.
– Dimensão digital.
– Origem e veracidade difíceis de avaliar.
– Gratuitidade, imediatismo, informalidade e personalização.

196
Obra primeiramente publicada em francês com o título Le pacte de lucidité au l’intelligence du mal
(Éditions Galilée, Paris) em 2004. A edição utilizada neste livro é a tradução desta obra para inglês
com o título The intelligence of evil or the lucidity pact.
Paulo M. Barroso
272

Por contraposição à comunicação tradicional, aos meios de comunicação


social que demarcavam o emissor do receptor, a comunicação instantânea é a
forma própria de comunicação e de sociedade em rede:

Comunicação Social Comunicação instantânea (viral)


Meios tradicionais e formais de transmissão de Meios modernos e digitais de transmissão de
informações. informações.
Tradicionais sistemas e modelos de comunicação e Modernas formas digitais de comunicação e de
de mediação. mediação.
Credível, porque é difundida por um canal emissor Duvidável (por vezes) na origem e veracidade,
conhecido e legitimado. porque pode ser difundida por qualquer pessoa
anonimamente como fake news.
Profunda na informação e no esclarecimento dos Superficial na informação e promotora de opiniões
factos (a verdade). (o verosímil = aparência de verdade, plausível,
provável).
Mais capacidade de prender a atenção dos Menos capacidade de prender a atenção dos
públicos. públicos.
Completude informativa. Simplificação informativa.
Notícias mais extensas. Notícias mais curtas.
Produzida por profissionais qualificados (mass Auto-iniciativa (self media).
media).
Séria: noticiário formal. Espectacular/sensacionalista: noticiário tornou-se
entretenimento que passa notícias.
Circuito de informação indirecto (o intermediário Circuito de informação directo (do produtor ao
transmite a notícia). consumidor, que pode ser o mesmo).
Ex: Primeiro é notícia, depois se torna “viral” Ex: Primeiro é viral na rede, depois é notícia na TV.
(falado) na sociedade.

Tabela 20: Diferenças entre a comunicação social tradicional e a comunicação instantânea moderna.

A comunicação instantânea (viral) é uma forma digital e instantânea de


interacção. Surge na sequência de desenvolvimentos tecnológicos que modifica-
ram os processos de comunicação e de interacção social. Entre estes desenvolvi-
mentos, desatacam-se:
a) O aparecimento da internet em 1969, numa troca de mensagens por li-
nhas telefónicas entre duas universidades americanas (a UCLA e a Uni-
versidade de Stanford).
b) O surgimento do primeiro telemóvel, em 1973, desenvolvido pela Mo-
torola.
c) O lançamento do primeiro computador pessoal da IBM em 1981 (con-
siderando o Apple I em 1976 e o Apple II em 1977).
d) O surgimento da primeira rede social, a Classmates, em 1995.
e) A transição da Web 1.0 (criada em 1989 por Tim Berners-Lee) para a
Web 2.0 (desenvolvida por Tim O’Reilly em 2004).

Estes cinco desenvolvimentos foram tão importantes na mudança das inte-


racções, dos comportamentos e da organização sociais que constituem marcos his-
tóricos e tecnológicos da comunicação. Os media tradicionais são substituídos pelos
media sociais a partir do surgimento da internet. Os telemóveis e os computadores
pessoais facilitaram e incentivam (pois, estão adaptados) o uso das redes sociais.
Sociologia da Comunicação
273

A comunicação instantânea (viral) é o resultado da mudança de para-


digma comunicacional: de um receptor passivo a um receptor activo, simulta-
neamente produtor e consumidor da informação que circula rapidamente, mas
também de um modo efémero e superficial, na nova organização da sociedade
em rede. A comunicação instantânea (viral) reflecte a qualidade das vivências,
experiências e relações sociais assentes no imediato, no efémero, no superficial
e na imanência da conectividade. A ideia de “crise da experiência” é hoje subs-
tituída pela ideia de excesso de vivência e de massificação de visualizações, co-
mentários, reacções e partilhas na internet. As transformações não são apenas
da experiência, mas também das formas de expressão da experiência. Por isso,
em Infância e história: Destruição da experiência e origem da história, Agamben
refere-se à impossibilidade em que nos encontramos de nos apropriarmos da
nossa condição humana, i.e. histórica, o que torna “insuportável o nosso quo-
tidiano”:
“É esta incapacidade de traduzir-se em experiência que torna hoje insuportável –
como em momento algum no passado – a experiência cotidiana, e não uma pre-
tensa má qualidade ou insignificância da vida contemporânea confrontada com a
do passado (aliás, talvez jamais como hoje a existência cotidiana tenha sido tão
rica de eventos significativos) […] Porque a experiência tem o seu necessário cor-
relato não no conhecimento, mas na autoridade, ou seja, na palavra e no conto, e
hoje ninguém mais parece dispor de autoridade suficiente para garantir uma ex-
periência, e se dela dispõe, nem ao menos o aflora a ideia de fundamentar em uma
experiência a própria autoridade. Ao contrário, o que caracteriza o tempo presente
é que toda autoridade tem o seu fundamento no ‘inexperienciável’, e ninguém ad-
mitiria aceitar como válida uma autoridade cujo único título de legitimação fosse
uma experiência. (A recusa das razões da experiência da parte dos movimentos ju-
venis é prova eloquente disso).” (Agamben, 2008, pp. 22-23).

Nesta perspectiva, o que antigamente se reconhecia como valências e mé-


ritos da narrativa tradicional dilui-se hoje, nas sociedades tecnológicas da infor-
mação e comunicação, em narrativas digitais, cujas diferenças são evidentes:

Narrativas tradicionais Narrativas digitais


Dimensão transcendente. Dimensão imanente.

Necessidade (plenitude) e referencialidade. Contingência e mundanidade.

Substancial e verbal (traduzem vivências e Acidental e visual.


experiências).
Autoridade e reconhecimento do narrador. Coexistência de diversidades e heterogeneidades.

Suportam sistemas de integração. Funcionam como crítica e comentário.

Perenidade: revisitação “sagrada” do passado Perecimento: novo género de amnésia colectiva.


para orientar o futuro. Com efemeridade, sucedem-se meteoricamente.
Exemplo: macro-narrativas míticas. Exemplo: micro-narrativas da blogosfera.
 Tabela 21: Narrativas tradicionais vs. narrativas digitais.
Paulo M. Barroso
274

Atente-se ao blogging (acto de autopublicação da escrita na internet, em


sites de divulgação de informações). Em duas décadas, os blogs (“diários em rede”)
e outros novos media (podcasts, redes sociais, etc.) divulgam informações quer
pessoais quer de interesse público e tornam-se formas populares e influentes de
produção de conteúdos na internet. Também permitem o surgimento de comuni-
dades online e fóruns de discussão sobre inúmeros assuntos e interesses, graças
à sua capacidade ilimitada e custo reduzido.
Segundo dados da Netcraft,197 existem mais de 1,5 bilhão de websites na
internet. Apesar do crescimento acentuado, existem inúmeros problemas e des-
vantagens desta prática e acto comunicacional:
– Falta de objectividade e neutralidade.
– Sobrecarga de informação.
– Conteúdos não escrutinados.
– Irresponsabilidade ética.
– Anonimato no ambiente digital.
– O campo dos media noticiosos passa a incluir o cidadão-jornalista, agre-
gador de notícias, tweeter, facebooker, youtuber, blogger.

As redes sociais são os novos lugares para as relações sociais e para a in-
formação ou formação. São espaços ilimitados para várias possibilidades. Os dis-
positivos móveis permitem uma conectividade permanente, rápida, imediata e
em todo o lado, sendo os meios privilegiados de uso das redes sociais. Um simples
telemóvel não serve apenas para o essencial (realizar chamadas telefónicas), mas
também para criar e manter as relações sociais em rede ou para partilhar mo-
mentos, experiências e opiniões, mesmo que sejam imanentes, efémeras e banais.
Com poucos caracteres ou com uma simples fotografia, partilha-se tudo, aspectos
da vida privada ou pública, porque o que mais se valoriza é a partilha, não inte-
ressa o que se partilha.
Em 2015, a palavra do ano para os dicionários de Oxford não foi uma pa-
lavra, pela primeira vez; foi um emoji. Esta escolha é paradoxal, porque a palavra
do ano é uma imagem. O emoji em questão é o que representa “lágrimas de ale-
gria”. Um emoji é um ícone, um ideograma, pictograma normalizado que ex-
pressa emoção, atitude ou estado de espírito. A parafernália de emojis disponíveis
é cada vez maior, principalmente nas culturas visuais.198 Pressupostamente um

197
A Netcraft é uma empresa de serviços de internet com sede em Bath, Inglaterra, que faz análises
e estudos desde 1995.
198
Os emojis são cada vez mais, cobrindo cada vez mais o campo semântico da diversidade de
estados de espírito, sentimentos, sensações, situações ou experiências. Até já existe o emoji do
período, na forma significante de uma gota de sangue, para se partilhar a informação de que se
está com a menstruação.
Sociologia da Comunicação
275

emoji expressa melhor do que as palavras, transmite o que se pretende com mais
facilidade, em especial o que é do foro intangível e inefável. É como se a imagem
destronasse a palavra, o ver substituísse o ler. Numa época iconófila e iconólatra
como a actual, em que a imagem e a visualidade são cada vez mais privilegiadas
e assumem o domínio da expressão e entendimento, é com a imagem que se faz
a construção visual do saber e da própria cultura. Como refere Isabel Capeloa Gil
(cf. 2011, p. 11), o desejo da imagem e pela imagem é apanágio da “idade da vo-
ragem pictórica”.
Quando surgiram em 1999, os emojis popularizaram-se, porque foram ao
encontro das necessidades de comunicação instantânea das pessoas. Os emojis
transpõem as fronteiras linguísticas; não falam nenhuma língua, como as pala-
vras; “falam” uma linguagem universal que dispensa código. Por conseguinte,
os emojis reflectem, como fazem as linguagens, as inclinações humanas pró-so-
ciais para a comunicação intersubjectiva, segundo Vyvyan Evans (cf. 2014, p. 3).
As linguagens são multiformes e heteróclitas, são integrantes da vida e do rela-
cionamento social. Por isso, a capacidade humana para se adaptar a novas lin-
guagens é inata e a apetência é maior para formas de comunicação instantâneas.

12.4. Debord: a sociedade do espectáculo e o culto


da imagem
Quando Jim Fitzpatrick criou, a partir de uma fotografia de Alberto Korda,
a imagem artística de Che Guevara, em 1968, ele estava longe de imaginar que
a dita obra se tornaria numa das imagens mais icónicas, conhecidas e espalhadas
no mundo. A imagem tornou-se tão famosa que ninguém acredita quando Fitz-
patrick diz que é o criador dessa imagem. A criação (a imagem artística de Che
Guevara) superou o próprio criador (Fitzpatrick), tornando-se objecto de icono-
latria e mais famosa do que o próprio artista.
A imagem até supera o próprio Che Guevara. Paradoxalmente, a represen-
tação da realidade (a imagem) é mais do que a realidade (Che Guevara). A imagem,
que Fitzpatrick baptizou de “Viva Che”, representa muito mais do que aquilo que
efectivamente representa. Graças à imagem, Che Guevara passou de revolucio-
nário a ícone da pop culture. A imagem chegou a ser transportada como bandeira
nos recentes protestos sociais anti-governamentais no Egipto, Iémen (Figura 7)
ou Baharem, em 2011. A imagem também terá sido reproduzida ao estilo de Andy
Warhol, pelo seu assistente Gerard Marlange (Figura 8).
Até o capitalismo, ao qual Che Guevara se opôs, acabou por se apropriar
da sua imagem. Depois da morte de Che Guevara, a imagem foi e continua a ser
explorada pela indústria cultural. O capitalismo fabrica milhares de mercadorias
com a imagem de Che Guevara: posters, t-shirts, bonés, porta-chaves, pratos, ca-
necas, tatuagens, etc. Toda a parafernália de objectos reproduz massivamente
Paulo M. Barroso
276

essa imagem. A imagem de Che Guevara acabou por enriquecer empresários ca-
pitalistas, o que se revela paradoxal. Che Guevara tornou-se um anti-capitalista
celebrado pelo capitalismo.
No documentário intitulado Propaganda: The art of selling lies, realizado
por Larry Weinstein em 2019, Fitzpatrick revela a motivação que o levou a criar
esta imagem:
“Che fora assassinado, executado como prisioneiro de guerra. E cometeram um
acto obsceno: colocaram-no numa plataforma para escoar o sangue do gado. Parecia
o Cristo morto. Fiquei tão ultrajado com a forma como fora assassinado e com o
facto de tentarem fazê-lo desaparecer […] Pensei: ‘Vão-se lixar. Isso não vai acon-
tecer.’ Quando criei a imagem, foi propaganda deliberada. Queria-a o mais simples
possível, para que todos pudessem copiá-la. Fiz panfletos, impressões… distribuí
por toda a gente, registei-a como sendo de uso livre, e declarei-a livre de direitos
para utilização de revolucionários e esquerdistas. A imagem começou a multipli-
car-se. Já a vi nos sítios mais absurdos. Em casas de banho em Tóquio. Em incon-
táveis t-shirts. Descolou e tornou-se tão famosa que chegava a intimidar-me.
Cheguei ao ponto de nem dizer que fora o autor, porque ninguém acreditava. Tive
muita sorte. Meio que por acidente, criei uma das imagens mais icónicas de todos
os tempos. […] Celebrei um grande homem e ressuscitei-o.” (Weinstein, 2019).199

A imagem criada por Fitzpatrick é um bom exemplo das actuais sociedades


visuais e populares, onde predomina o culto da imagem. O que torna tão apela-
tiva a imagem é a sua capacidade para sintetizar o que revela, mostrando de um
modo imediato e sem esforço através de uma linguagem universal. Fitzpatrick
só queria que Che Guevara não fosse esquecido e acabou por criar uma das ima-
gens mais conhecidas e reproduzidas no mundo. Este caso de estudo é demons-
trativo daquilo que já há mais de 50 anos se adverte.
Em 1967, Guy Debord (1931-1994) publica A sociedade do espetáculo, uma
obra crítica à sociedade da abundância, nomeadamente ao próprio espectáculo.
Debord designa as sociedades de então por sociedades do espectáculo. Este livro
é o desenvolvimento de uma teoria crítica sobre aquilo que, para o autor, mais
grassa nas sociedades e as caracteriza: o espectáculo. Nesta obra, a teoria crítica
coincide com a teoria de crítica social do espectáculo. Porquê? Porque o espectá-
culo é a negação da vida e essa negação é visível pela perda de qualidade e con-
dições de vida associada à mercadoria, pois o espectáculo é mercadoria e, por
isso, proletariza o mundo. Segundo Debord (2006, p. 10), “hoje convém dizer que
a prática unificada do espetacular integrado ‘transformou economicamente o
mundo’ ao mesmo tempo que ‘transformou policialmente a percepção’”.200 É assim
que Debord adverte para os efeitos do espectáculo no Prefácio da obra em apreço.

199
Tradução e legendagem do documentário de Helena Figueiredo a partir do áudio original em
inglês.
200
Os itálicos são da edição consultada do livro de Debord.
Sociologia da Comunicação
277

Figura 7: Protestos no Iémen, em 2011 Figura 8: Reprodução pop Figura 9: Capa da


(Fonte: The Guardian, 15 de Fevereiro art da imagem (Fonte: tradução em língua
de 2011). Observador, 9 de Outubro inglesa de A sociedade
de 2017). do espetáculo.

Conforme se mostra em cima (Figura 9), a capa da edição em língua inglesa


do livro de Debord apresenta uma imagem explícita sobre o objecto de crítica da
dita obra: o problema da massificação da sociedade pela imagem. Trata-se de
uma fotografia de J. R. Eyerman, que se tornou ela própria emblemática e histó-
rica, porque reproduz um momento da estreia do filme Bwana Devil (1952), con-
siderado o primeiro em 3D e a cores. Na fotografia original de Eyerman, vemos
o público do referido filme alinhado, uniformizado, padronizado nos comporta-
mentos e a olhar fixamente para a frente, onde supostamente está a tela,201
usando óculos apropriados para ver o efeito das imagens em 3D.202 Os especta-
dores na plateia alinham-se em filas uniformes, representando a indústria da cul-
tura e o consumo em massa que, neste caso, é de imagens que produzem
espectáculo. Esta é uma crítica de Debord ao mimetismo e conformismo propor-
cionados pelo espectáculo dos media na sociedade de massas.
Identifica-se um estilo de linguagem crítico das ideologias e do mercado,
ambas em desenvolvimento, e da participação, cada vez menos activa, das pes-
soas no espaço público. Assim, não se estranha a citação à A essência do cristia-
nismo, de Feuerbach, realizada por Debord no início do capítulo 1 de A sociedade
do espetáculo, quando se refere à preferência das pessoas pelas imagens, pelas
representações e pelas aparências em detrimento das próprias coisas, da reali-
dade e do ser. O problema que resulta desta preferência é evidente: em vez de
sacralizar o que é importante (e.g. uma determinada verdade, revelada ou não),
hoje sacraliza-se a ilusão.

201
A tela, neste contexto, é mais do que um simples ecrã que reproduz imagens; é um dispositivo
de produção de espectáculo e de absorção da atenção e do olhar do espectador, capaz de
determinar a sua percepção e de o alienar colectivamente.
202
Estes óculos provocam um efeito estereoscópico de 3D, tendo lentes de cores diferentes
(usualmente de contraste cromático, como o vermelho e o azul).
Paulo M. Barroso
278

Nesta perspectiva crítica sobre a sociedade do espectáculo, Debord inicia


logo o capítulo 1 com uma proposição contundente: “Toda a vida das sociedades
nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma
imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se
uma representação” (Debord, 2006, p. 13).
Esta primeira tese demonstra as influências marxistas de Debord, não ape-
nas na forma (escrito em aforismos numerados) como no conteúdo (uma admoes-
tação inaugural semelhante à que Marx apresenta cem anos antes, em 1867, em
O capital).
A última parte desta citação salienta a dimensão imagética, aparente e es-
pectacular da representação em que se vive hoje e para a qual contribui a imagem
autonomizada produtora de representações e de espectáculo. Segundo Debord
(2006, p. 13), o espectáculo é como a “inversão concreta da vida”; é o movimento
autónomo do “não-vivo”.
Paradoxalmente, a sociedade torna-se naquilo que não é. O espectáculo
transforma a sociedade e torna-se a própria sociedade.
“O espectáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como
uma parte da sociedade e como instrumento de unificação. Como parte da socie-
dade, ele é expressamente o sector que concentra todo olhar e toda consciência.
Pelo fato de esse sector estar separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa
consciência; a unificação que realiza é tão-somente a linguagem oficial da se-
paração generalizada.” (Debord, 2006, p. 14).

Então, o que é afinal o espectáculo para Debord? “O espectáculo não é um


conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por ima-
gens” (Debord, 2006, p. 14). O espectáculo é uma visão do mundo que se objec-
tivou:
“O espectáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da
visão, o produto das técnicas de difusão maciça das imagens. Ele é uma Wel-
tanschuung [visão do mundo] que se tornou efetiva, materialmente traduzida.
É uma visão de mundo que se objetivou.” (Debord, 2006, p. 14).

A iconolatria é o culto da imagem, uma espécie de esplendor das imagens


que é devidamente enfatizado pela sociedade do espectáculo de Debord. O mundo
torna-se num palco de imagens autonomizadas. Não existe espectáculo sem ima-
gens, sem ideologia nem aparato sensacionalista provocado pelo conteúdo das
imagens. Para Debord, “o espectáculo constitui o modelo atual da vida dominante
na sociedade”; o espectáculo “é a afirmação onipresente da escolha já feita na
produção, e o consumo que decorre dessa escolha” (Debord, 2006, p. 14). De uma
maneira ainda mais radical, Debord admite que o espectáculo é a principal pro-
dução da sociedade actual (cf. Debord, 2006, p. 17). O espectáculo é, assim, uma
tendência para fazer ver o mundo de um modo mediatizado e este mundo já não
é directamente apreensível.
Sociologia da Comunicação
279

O reconhecimento da primazia da imagem, que para Debord resulta na


profusão do espectáculo, é referido por Deleuze em A imagem-tempo. Cinema II,
que reconhece uma civilização do clichê onde se encobrem as imagens, i.e. onde
se esconde algo na imagem:
“[…] a imagem está sempre caindo na condição de cliché: porque se insere em en-
cadeamentos sensório-motores, porque ela própria organiza ou induz seus enca-
deamentos, porque nunca percebemos tudo o que há na imagem, porque ela é feita
para isto (para que não percebamos tudo, para que o cliché nos encubra a ima-
gem…). Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do clichê na qual todos
os poderes têm interesse em nos encobrir as imagens, não forçosamente em nos
encobrir a mesma coisa, mas em encobrir alguma coisa na imagem.” (Deleuze,
2005, p. 32).

A civilização da imagem203 ou a civilização do clichê de Deleuze é a civili-


zação da inflação icónica que repousa na redundância, ocultação, distorção, ma-
nipulação. Na sociedade do espectáculo, o monopólio é o da aparência. Os meios
e os fins do espectáculo são idênticos. Por isso, para Debord (cf. 2006, p. 17), o
espectáculo é essencialmente tautológico.
A representação da sociabilidade é simulada através de imagens e também
é abençoada com o espectáculo transmitido pelas imagens, seja na forma ou no
conteúdo, tornando-se discurso ideológico. O empobrecimento da experiência é
identificado na excitação provocada pelo espectáculo. O espectáculo, por sua vez,
advém da tecnicização da experiência, da produção excessiva de imagens que re-
sultam na formação de simulações. Esses são os principais pontos discutidos por
Baudrillard em Simulacros e simulações, que correspondem à ideia da não expe-
riência de Debord em A sociedade do espetáculo, quando este menciona a “inversão
concreta da vida” e o “movimento autônomo do não-vivo”, porque não consiste
numa experiência autêntica; é apenas intermediação ou representação (cf. De-
bord, 2006, p. 13).
Debord demonstra um carácter crítico, incitando uma luta contra a per-
versão espectacular e consumista da vida moderna e do imperialismo cultural,
que prefere a imagem e a representação em detrimento do realismo concreto e
natural. Na sociedade do espectáculo, o mundo real assume-se como uma aglo-
meração de imagens simples que, por sua vez e paradoxalmente, se torna (pelo
menos em termos perceptivos) realidade. Na sociedade do espectáculo criticada
por Debord, a imagem é mais importante do que a realidade, do que os objectos
e do que a verdade. Esta tese confronta o que acontece nas sociedades contem-
porâneas e revela a sua actualidade e adequação. Hoje, as imagens descartam a

203
A expressão “civilização da imagem” foi usada pertinentemente por Enrico Fulchignoni, no livro
La civilisation de l’image (cf. 1969). Cf. também O poder em cena, de Georges Balandier (1999, p.
108), que também se refere a uma “civilização das imagens” quando afirma: “a civilização das
imagens torna-as presentes imediatamente e por toda a parte”.
Paulo M. Barroso
280

verdade e a realidade. Quanto mais espectaculares as imagens, mais elas alcan-


çam esse efeito perverso nas culturas visuais.
O que é o espectáculo? O espectáculo é o fetichismo produzido na socie-
dade contemporânea. No entanto, não é necessário para o desenvolvimento
técnico e científico, nem devemos aceitar a falácia fácil e tentadora, segundo a
qual algo é verdade porque é tecnológico (cf. Ramonet, 2003, p. 36). Para De-
bord, o espectáculo é o discurso ideológico de certos interesses e ordens sociais,
ou seja, é o discurso da sociedade. É um discurso tautológico, vazio, hiperbólico;
é um monólogo elogioso, um auto-retrato do poder actual ou estabelecido (o
status quo).
Nesse sentido, Debord (cf. 2006, p. 14) sublinha que as sociedades são uma
acumulação de espectáculo e o vivido e a experiência perdem autenticidade na
representação. Para Debord, o espectáculo é a inversão da vida, como o conceito
de ideologia de Marx e Engels (cf. 2007, p. 94), aparecendo de cabeça para baixo
como uma câmara escura que inverte a realidade.
Em A sociedade do espetáculo, Debord denuncia a omnipresença dos media
e das suas imagens. Ao superexpor a imagem, os media falsificam a real experi-
mentação do mundo por parte dos indivíduos (espectadores e consumidores pas-
sivos de imagens). É, segundo Debord, a alienação do espectador diante do
objecto contemplado (que é o resultado de sua própria actividade inconsciente).
Quanto mais o espectador contempla, menos ele vive; quanto mais o espectador
aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade consumista, menos
entende a sua própria vida e os seus próprios desejos.
“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua
própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla,
menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da neces-
sidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação
ao homem que age, a exterioridade do espectáculo aparece no fato de seus próprios
gestos já não serem seus, mas de um outro que os representa por ele. É por isso
que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espectáculo está
em toda parte.” (Debord, 2006, p. 24).

A representação da simulação social é realizada através de imagens-espec-


táculo, como as de outdoors publicitários ou políticos, relacionando ideologia e
aparência ou falsa consciência. De acordo com Debord (2006, p. 24), a função do
espectáculo na sociedade corresponde à fabricação concreta da alienação. Nesta
perspectiva de Debord, o espectáculo é como um discurso ideológico, fabrica alie-
nação e é um capital acumulado que se torna uma imagem e a sua própria lin-
guagem.
Sociologia da Comunicação
281

Figura 10: Fotografia de John Blanding (Fonte: Figura 11: Mona Lisa, Louvre, Paris (Fonte:
The Boston Globe, 15 de Setembro de 2015). The Guardian, 9 de Março de 2009).

Numa fotografia publicada pelo The Boston Globe, uma multidão assiste à
passagem do elenco (Johnny Depp, entre outros) do filme Black Mass numa visita
ao Coolidge Corner Theatre, em Brookline (Figura 10). A multidão não está a viver
autenticamente a realidade que acontece nem a desfrutar de um momento es-
pecial e único, porque se distrai em capturar e registar em fotografia para uma
vida não vivida numa hiper-realidade. É o espectáculo como o movimento autó-
nomo do não-vivo, segundo Debord (2006, p. 13). Este movimento autónomo do
não-vivo ou do não-vivido também é demonstrado na Figura 11, que representa
o quotidiano do Museu do Louvre, com os visitantes sôfregos na tentativa de fo-
tografarem a obra de arte, tal como acontece actualmente nos concertos de mú-
sica com cantores populares (Figura 12) e ao contrário do que sucedia até
recentemente, nos anos 1980, quando ainda não existiam os dispositivos tecno-
lógicos de captação e partilha de imagem e, por isso, os espectadores usufruíam
mais intensamente os momentos e os espectáculos musicais (Figura 13).

Figura 12: Concerto de Chris Brown, Estocolmo, Figura 13: Concerto Live Aid em Londres,
2016 (Fonte: The Guardian, 3 de Dezembro 13 Julho de 1985 (Fonte: Joe Schaber,
de 2018). The Associated Press/The Denver Post).

Inserido no espectáculo, o indivíduo é afectado, pois os seus gestos não


são mais seus e em nenhum lado o espectador se sente em casa, porque o espec-
táculo está em toda a parte. O problema do espectáculo é o de promover um re-
lacionamento social entre pessoas que é mediado por imagens. O espectáculo é,
Paulo M. Barroso
282

como afirma Debord (2006, p. 14), uma relação social entre pessoas mediada por
imagens. As relações humanas deixam de se basear na experiência pura e directa
e são mediadas pelas imagens do espectáculo. Além das relações sociais, a per-
cepção e a perspectiva sobre a realidade também mudam, devido à intermediação
e ao espectáculo das imagens.
O espectáculo apresenta-se na experiência humana como um modelo par-
ticular e dominante de vida e relação social. O espectáculo inverte o real, porque
é produzido para que a realidade vivida termine materialmente invadida pela
contemplação do espectáculo. “Num mundo realmente invertido, a verdade é um
momento do que é falso” (Debord, 2006, p. 16). A conclusão é o que Debord (2006,
p. 17) chama de “monopólio da aparência”.
A incubadora e o habitat do espectáculo são o capitalismo e a economia
de livre mercadoria onde também se insere o espectáculo. “O espectáculo é o ca-
pital em tal grau de acumulação que se torna imagem”, argumenta Debord (2006,
p. 25). Por isso, o espectáculo corresponde ao momento em que a mercadoria
ocupa totalmente a vida social, ou melhor, “o momento em que a mercadoria
ocupou totalmente a vida social” (Debord, 2006, p. 30). Essa colonização da vida
social também se deve aos meios de comunicação. Segundo Debord (2006, p. 44),
“ondas de entusiasmo por determinado produto, apoiado e lançado por todos os
meios de comunicação, propagam-se com grande rapidez”.
O parágrafo 24 de A sociedade do espectáculo é demonstrativo da partici-
pação e colaboração dos meios de comunicação na disseminação do espectáculo
e das suas consequências:
“O espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem atual faz a respeito de si
mesma, seu monólogo laudatório. É o auto-retrato do poder na época de sua gestão
totalitária das condições de existência. A aparência fetichista de pura objetividade
nas relações espetaculares esconde o seu carácter de relação entre homens e entre
classes: parece que uma segunda natureza domina, com leis fatais, o meio em que
vivemos. Mas o espetáculo não é o produto necessário do desenvolvimento técnico,
visto como desenvolvimento natural. Ao contrário, a sociedade do espetáculo é a
forma que escolhe seu próprio conteúdo técnico. Se o espetáculo, tomado sob o as-
pecto restrito dos ‘meios de comunicação de massa’, que são sua manifestação su-
perficial mais esmagadora, dá a impressão de invadir a sociedade como simples
instrumentação, tal instrumentação nada tem de neutra: ela convém ao automo-
vimento total da sociedade. Se as necessidades sociais da época na qual se desen-
volvem essas técnicas só podem encontrar satisfação com sua mediação, se a
administração dessa sociedade e qualquer contato entre os homens só se podem
exercer por intermédio dessa força de comunicação instantânea, é porque essa ‘co-
municação’ é essencialmente unilateral; sua concentração equivale a acumular nas
mãos da administração do sistema os meios que lhe permitem prosseguir nessa
precisa administração.” (Debord, 2006, pp. 20-21).

O termo media é usado para descrever a forma de que se reveste e se apre-


senta o espectáculo na sociedade. Os media não possuem, portanto, a desejável
Sociologia da Comunicação
283

e necessária neutralidade, porque são ou servem de instrumentos para a produ-


ção de espectáculo, como se se tratasse do cumprimento de uma espécie de ser-
viço público. Os media servem para distrair as massas através do espectáculo que
disseminam. O problema é que o espectáculo seduz, fascina, suscita interesse
nas massas por ser mais atractivo e distractivo; cativa e coloniza os espíritos por-
que é vazio, pois reduz a realidade a um fragmento mercantil e encoraja a focar
a atenção nas aparências. Para Debord, esse problema constituiu uma degradação
total da vida social.
O espectáculo tem raízes na economia. O triunfo do espectáculo é o triunfo
e a autocracia da economia de mercado capitalista. “A raiz do espectáculo está
no terreno da economia que se tornou abundante, e daí vêm os frutos que ten-
dem afinal a dominar o mercado espetacular” (Debord, 2006, p. 39). O espectáculo
é um polvo cujos tentáculos se estendem a todos os domínios da vida, alterando
a experiência humana na sociedade, que se torna alienada pela ideologia produ-
zida pelo espectáculo.
“[…] a ideologia já não é uma arma, mas um fim. A mentira que não é desmentida
torna-se loucura. A realidade tanto quanto o objetivo são dissolvidos na proclama-
ção ideológica totalitária: tudo o que ela diz é o que é. É um primitivismo local do
espetáculo, cujo papel é porém essencial ao desenvolvimento do espetáculo mun-
dial. A ideologia que aqui se materializa não transformou economicamente o
mundo, como o capitalismo chegado ao estágio da abundância; ela apenas trans-
formou politicamente a percepção.” (Debord, 2006, p. 72).

Desde 1967, ano em que foi publicado o livro A sociedade do espetáculo, até
à actualidade, as formas de vida social confirmam a tese de Debord. Não vivemos
realmente a não ser na aparência das imagens que produzem espectáculo e que,
por isso, mais nos fascinam. Resumem-se, desta forma, as linhas de força da pers-
pectiva crítica de Debord às denominadas sociedades do espectáculo:
– A acumulação de espectáculo é cada vez maior, porque cada vez mais
se produzem imagens e cada vez mais os espectadores percepcionam o
mundo através dessas imagens, contentando-se com apreensões frag-
mentadas, superficiais e inautênticas.
– Consequentemente à alínea anterior, a representação do mundo domina
sobre o próprio mundo, pois vive-se cada vez mais na representação (na
aparência) e menos na realidade (na verdade).
– O espectáculo triunfa, porque fascina, simplifica o entendimento da rea-
lidade e do mundo e unifica, pois a maioria das pessoas consome es-
pectáculo e, por isso, se identifica com o que vê: o espectáculo altera as
interacções humanas.204

204
Hoje, as redes sociais (e.g. o Facebook e o Instagram) monitorizam e controlam as relações sociais,
opiniões e emoções ou estados de espírito de uma forma ainda mais autocrática e colonizadora.
Paulo M. Barroso
284

– A principal consequência da sociedade do espectáculo é facultar a não-


vida, pois as pessoas estão na representação e satisfazem-se com esta.
– A alienação aumenta à medida que aumenta o espectáculo nas socie-
dades, porque a função do espectáculo é a produção de alienação.
– O espectáculo pode ser reconhecido em qualquer ecrã das sociedades
modernas, inclusivamente nos ecrãs de computadores pessoais que não
deixam de reproduzir imagens.
– Os media não têm neutralidade; são instrumentos da produção de es-
pectáculo como se este fosse serviço público.
– O espectáculo é a manifestação quotidiana de fenómenos sociais, pro-
dutos ou consumos sugeridos pelo capitalismo através da publicidade,
da televisão, do cinema, etc.; o espectáculo cria desejos, necessidades e
expectativas.

Para Debord, o capitalismo mercantilizou todas as relações sociais e pro-


pagou a alienação nas esferas pública e privada, na medida em que as pessoas
se encontram distraídas dessa perda pelo falso fascínio proporcionado pelo es-
pectáculo. Assim, novas necessidades e possibilidades são fabricadas e mantidas
pelo capitalismo e são distribuídas pelos meios de comunicação de massas (cf.
Bruce & Yearley, 2006, p. 61).
Debord aproxima-se bastante dos ideais marxistas e estabelece uma rela-
ção directa entre o espectáculo e a economia. Em A sociedade do espetáculo, De-
bord segue as teses de O capital, de Marx, recuperando conceitos importantes,
como os de “mercadoria”, “fetichismo” e “alienação”. Além disso, inicia A socie-
dade do espetáculo de uma maneira parecida ao início de O capital e termina a
obra, à semelhança de Marx, com uma solução do problema: a destruição da so-
ciedade do espectáculo através de uma espécie de praxis revolucionária, apelando
a que é necessário colocar em acção uma força prática (cf. Debord, 2006, pp. 131-
132).
Debord foi fundador e membro da Internacional Situacionista (1957-1972),
um grupo de intelectuais e pensadores políticos vanguardistas que se opunham
ao capitalismo. Entre os membros do grupo destaca-se também Raoul Vaneigem.
Este movimento intelectual era neomarxista e foi inspirado por determinados
estilos artísticos, como o dadaísmo e o surrealismo, tendo sido influente, através
dos seus ideais baseados em A sociedade do espetáculo e A arte de viver para as
novas gerações, este último de Vaneigem,205 nas manifestações estudantis de Maio
de 1968. Estes ideiais eram avançados para a época, conforme o rumo da história
veio a demonstrar e a confirmar actualmente.

205
Livro publicado em 1967, com o título original Traité de savoir-vivre à l’usage des jeunes générations.
Sociologia da Comunicação
285

12.5. Foucault: sociedades da vigilância e do controlo


No Prefácio do livro Liquid surveillance,206 Bauman e David Lyon começam
logo por contextualizar a pertinência da vigilância nas sociedades humanas, prin-
cipalmente nas mais contemporâneas, e nas discussões sociológicas:
“A vigilância é um traço crescente das notícias diárias, reflectindo a sua rápida as-
censão de destaque em muitas esferas da vida. Mas, de facto, a vigilância tem vindo
a expandir-se desapercebidamente há muitas décadas e é uma característica básica
do mundo moderno. Como esse mundo se transformou através de gerações suces-
sivas, também a vigilância assume um traço de mudança constante. Hoje, as socie-
dades modernas parecem tão fluidas que faz sentido pensar que elas estão numa
fase ‘líquida’. Sempre em movimento, mas muitas vezes carecendo de certeza e de
vínculos duradouros, os cidadãos, trabalhadores, consumidores e viajantes de hoje
também consideram que os seus movimentos são monitorados, rastreados e locali-
zados. A vigilância desliza para um estado líquido”. (Bauman & Lyon, 2013, p. 6).207

Efectivamente, a vigilância está muito (e cada vez mais) presente no


mundo moderno; é uma dimensão central da modernidade, da modernidade tar-
dia, da pós-modernidade ou, como designa Bauman, da modernidade líquida (cf.
Bauman & Lyon, 2013, p. 9). Por isso, constitui um relevante tema de discussão
sociológica, em particular de Sociologia da Comunicação, pois a vigilância implica
mecanismos e dispositivos implementados como sistemas de informação nas so-
ciedades (não apenas as contemporâneas) para regular e condicionar acções, ati-
tudes e comportamentos sociais através de formas de comunicação visual (e.g.
imagens de vídeo do espaço público).
A vigilância e o controlo das sociedades constituem um tema, paradoxal-
mente, antigo e moderno. É um tema antigo, porque já foi discutido por vários
autores há séculos, se considerarmos, por exemplo, A república, uma das obras
mais importantes de Platão e que constitui uma das primeiras abordagens polí-
ticas e sociais de procura de uma forma ideal e harmoniosa de administração da
polis (da cidade, mas também da sociedade) como garantia de ordem e instituição
de direitos, deveres e liberdades fundamentais (cf. Platão, 2001, 369b-371e). É um
tema moderno, porque os recentes avanços da ciência e desenvolvimentos tec-

206
Obra originalmente publicada por Bauman em 2013 com o mesmo título, Liquid surveillance
(Polity Press, Cambridge). Privilegia-se aqui, à semelhança dos outros livros de Bauman utilizados
nesta obra, a edição original em inglês, apesar de existir uma edição traduzida para português
do Brasil com o título Vigilância líquida (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro).
207
Tradução do autor a partir do original em inglês de Bauman & Lyon: “Surveillance is a growing
feature of daily news, reflecting its rapid rise to prominence in many life spheres. But in fact
surveillance has been expanding quietly for many decades and is a basic feature of the modern
world. As that world has transformed itself through successive generations, so surveillance takes
on an ever changing character. Today, modern societies seem so fluid that it makes sense to think
of them being in a ‘liquid’ phase. Always on the move, but often lacking certainty and lasting
bonds, today’s citizens, workers, consumers and travelers also find that their movements are
monitored, tracked and traced. Surveillance slips into a liquid state.”
Paulo M. Barroso
286

nológicos impõem a adopção de sistemas, mecanismos e dispositivos (e.g. câma-


ras de videovigilância nos centros históricos, nos recintos desportivos e de es-
pectáculos para multidões, nas auto-estradas, etc.) como recurso de
monitorização e controlo ou simples factor dissuasor de certos comportamentos
desviantes na sociedade.
Castells considera que a diluição das barreiras entre o privado e o público
reflecte-se no fim da privacidade:
“O entusiasmo com a liberdade trazida pela Internet foi tamanho que esquecemos
a persistência de práticas autoritárias de vigilância no ambiente que continua
sendo o mais importante de nossas vidas: o local de trabalho. À medida que os tra-
balhadores se tornam cada vez mais dependentes da interconexão por computador
em sua atividade, a maioria das companhias decidiu que têm o direito de monitorar
os usos de suas redes por seus empregados.” (Castells, 2003, p. 143).

Nas actuais sociedades globais e tecnológicas, a estruturação do compor-


tamento quotidiano através de normas dominantes na sociedade faz emergir
ameaças às liberdades, aos direitos e às garantias dos cidadãos. Hoje, uma pro-
porção significativa da vida quotidiana, incluindo trabalho, lazer, interacção pes-
soal, ocorre na internet e a maioria das actividades económicas, sociais e políticas
são híbridas (cf. Castells, 2003, p. 148), i.e. são interacções online (virtuais) e offline
(reais). Como não podemos viver sem os outros, a vida num panóptico electrónico
é equivalente a ter metade das nossas vidas permanentemente expostas à mo-
nitorização e esta exposição, segundo Castells (cf. 2003, p. 148), pode levar a uma
esquizofrenia: sermos nós mesmos offline e sermos uma imagem de nós mesmos
online, internalizando a censura.
“A questão não é o medo do Big Brother porque, na verdade, a maior parte da vigi-
lância não terá nenhuma consequência diretamente danosa para nós — ou, aliás,
nenhuma consequência em absoluto. O aspecto mais atemorizante é, de fato, a au-
sência de regras explícitas de comportamento, de previsibilidade das consequências
de nosso comportamento exposto, segundo os contextos de interpretação, e de
acordo com os critérios usados para julgar nosso comportamento por uma varie-
dade de atores atrás da tela de nossa casa de vidro.” (Castells, 2003, p. 148).

A vigilância e o controlo das sociedades funcionam, por conseguinte, para


se obter resultados positivos (e.g. a prevenção rodoviária ou a vigilância e con-
trolo da violência urbana), mas também se obtêm resultados censuráveis (e.g. a
perda de privacidade) como prática de um estado social de privação, opressão e
totalitarismo exercido sobre as pessoas.
As actuais sociedades conectadas evocam o modelo de sociedade apresen-
tado e descrito por George Orwell (1903-1950) na sua famigerada obra intitulada
1984. Esta obra, publicada em 1948, enunciava previsões difíceis de acreditar na-
quela época, mas que hoje se verificam e confirmam, graças ao desenvolvimento
da tecnologia. Os algoritmos e as plataformas numéricas, por exemplo, controlam
as nossas preferências, os nossos interesses e, no geral, o que pensamos, fazemos
Sociologia da Comunicação
287

ou dizemos quando utilizamos a internet. Postar um comentário no Twitter, com-


partilhar uma opinião no Facebook ou uma fotografia no Instagram, reservar um
voo de avião para as férias num site de uma agência de viagens ou, simples-
mente, procurar um hotel para uma certa data no Google são simples experiên-
cias quotidianas que todos têm, mas que passam a ser determinadas por
plataformas digitais. Essas plataformas não nos permitem apenas obter o que
pretendemos; elas são ferramentas aprimoradas de inteligência artificial que
aproveitam todos os vestígios que deixamos na internet para, depois, preverem
e orientarem o nosso comportamento.
Por isso é que, em 2016, a União Europeia deliberou e, dois anos depois,
implementou que estes dispositivos estejam sujeitos ao consentimento dos uti-
lizadores, a favor do respeito pela privacidade. São as imposições do novo regu-
lamento geral de protecção de dados (RGPD),208 que visa devolver o controlo dos
cidadãos sobre os seus dados pessoais. Esta situação é paradoxal, pois o cidadão
tem de recorrer a um mecanismo externo para poder ter privacidade e controlo
sobre a sua vida. Este paradoxo aproxima-se das dimensões e situações opressi-
vas, como a do Big Brother (“Grande Irmão”) de Orwell ou a do modelo mais an-
terior e original, a do panóptico de Jeremy Bentham, que será abordado a seguir.
No livro 1984, Orwell aborda precisamente essa temática, criticando a dis-
topia de uma sociedade imaginada e aparentemente organizada. Nesta versão
de Orwell, os desenvolvimentos tecnológicos e os dispositivos de comunicação
suportam esta situação de vigilância e de controlo. No início de 1984, Orwell
apresenta esta sociedade da vigilância e do controlo a partir de um enorme car-
taz colocado na parede da rua a representar um rosto de um homem com feições
de uma beleza austera que fitava de tal maneira os transeuntes como se os olhos
seguissem os movimentos, com a legenda por baixo: “O Grande Irmão está a
ver-te”.
O livro 1984 reporta, de um modo disfémico, uma polícia do pensamento
que actua sobre “pensarcrimes” (Orwell, 2015, p. 22) e “sintomas de heterodoxia”
(Orwell, 2015, p. 27), considerando que a ortodoxia é inconsciência. Conforme o
autor explica, “a ortodoxia significa ausência de pensamento: ausência da neces-
sidade de pensar. A ortodoxia é inconsciência” (Orwell, 2015, p. 57).
Em 1984, Orwell apresenta um modelo de sociedade do futuro, caracteri-
zado pelo predomínio da vigilância e do controlo. O futuro distópico apresentado
por Orwell, quando publicou 1984 em meados do século XX, é hoje uma realidade
concreta nas sociedades mais desenvolvidas e tecnológicas. A sociedade narrada
por Orwell é a do controlo, como demonstra o slogan do partido do Governo na

208
O RGPD (Regulamento Geral de Protecção de Dados) é um diploma europeu de 2016, que
estabelece regras referentes à protecção, tratamento e livre circulação de dados pessoais em
todos os países membros da União Europeia. O objectivo deste regulamento é reforçar a
protecção de dados e harmonizar a legislação nos Estados que compõem a União Europeia.
Paulo M. Barroso
288

narrativa de Orwell: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla


o presente, controla o passado”.
Em As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas,209 Foucault
(1926-1984) propõe uma “arqueologia das ciências humanas”, uma espécie de con-
dições de possibilidade do conhecimento ou dos sistemas de pensamento na for-
mação da cultura ocidental, da Idade Clássica até à Modernidade (cf. Mattelart &
Mattelart, 1997, p. 81). Na perspectiva de Foucault, os historiadores devem aban-
donar o estudo de superfície das ideias (o que o autor denomina por connaissance)
a favor de uma análise de estruturas mais profundas ou mais fundamentais do
pensamento (o savoir). Esta mudança do olhar historiográfico constitui a pedra
angular do método arqueológico. Na arqueologia das ciências humanas, o arqueó-
logo tenta descobrir a episteme, conjunto de regras que não são conscientemente
compreendidas, mas que moldam o que pode ser pensado e dito.
“Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso para uma
objectividade na qual a nossa ciência de hoje se poderia, enfim, reconhecer; o que
se pretende trazer à luz é o campo epistemológico, a episteme onde os conhecimen-
tos, encarados fora de todo o critério que se refira ao seu valor universal ou às suas
formas objectivas, enraízam a sua positividade e manifestam assim uma história
que não é a da sua perfeição crescente, mas antes a das suas condições de possibi-
lidade […]” (Foucault, 1991, p. 53).

Na apresentação da edição portuguesa desta obra, Eduardo Lourenço re-


fere que As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas “oferece
não só uma leitura original da História das Ideias na Europa, desde o século XVI
ao século XIX, como uma nova metodologia, designada pelo seu autor sob o con-
ceito de arqueologia”. Conforme explica Foucault (1991, p. 53) no Prefácio: “mais
do que de uma história no sentido tradicional, é de uma ‘arqueologia’ que se
trata”.
“Ora, esta perquirição arqueológica mostrou duas grandes descontinuidades na
episteme da cultura ocidental: a que inaugura a idade clássica (pelos meados do
século XVII) e a que, no início do século XIX, assinala o limiar da nossa moderni-
dade. A ordem a partir da qual nós pensamos não tem o mesmo modo de ser que
a dos clássicos. Por muito forte que seja a impressão que temos de um movimento
quase ininterrupto da ratio europeia desde a Renascença até aos nossos dias […]
a verdade é que toda esta quase continuidade ao nível das ideias e dos temas não
é, por certo, mais do que um efeito de superfície; ao nível arqueológico, vê-se que
o sistema das positividades mudou de uma maneira maciça na viragem do século
XVIII para o século XIX.” (Foucault, 1991, p. 54).

Segundo Foucault, não existe uma evolução da Idade Clássica à Idade Mo-
derna. Foucault contraria a existência de uma continuidade epistemológica, de-

209
Obra publicada em 1966 com o título original Les mots et les choses: Une archéologie des sciences
humaines.
Sociologia da Comunicação
289

fendendo que existe, em vez dessa continuidade ou evolução, uma ruptura epis-
temológica, uma descontinuidade.
O modelo do ecrã totalitário ou do Big Brother210 de Orwell tem raízes num
primeiro modelo de vigilância, desenvolvido por Jeremy Bentham (1748-1832),
filósofo inglês partidário da corrente de pensamento utilitarista.211 É a este que
se deve a primeira formulação de um ideal de vigilância racional que combina a
segurança colectiva e consentimento individual. Em 1787, Bentham propôs o pa-
nóptico como um projecto ideal de prisão que permite a vigilância constante dos
detidos sem que estes vejam, ou seja, os prisioneiros são vistos sem poderem
ver (cf. Bentham, 2008, pp. 21-22). O panóptico é um dispositivo de visibilidade,
um modelo de vigilância e controlo de pessoas. Por isso, em O olho do poder,212
Foucault (1998, p. 218) considera que Bentham é um dos inventores mais exem-
plares da tecnologia do poder, por ter desenvolvido um dispositivo arquitectónico
perfeito para resolver os problemas de vigilância na sociedade em geral e nas
várias instituições sociais (escolas, hospitais, prisões, etc.).
Em O olho do poder, Foucault revela como descobriu o modelo panóptico
de vigilância das sociedades e das várias instituições sociais onde o indivíduo se
insere:
“Estudando as origens da medicina clínica; eu havia pensado em fazer um estudo
sobre a arquitetura hospitalar na segunda metade do século XVIII, época do grande
movimento de reforma das instituições médicas. Eu queria saber como o olhar mé-
dico havia se institucionalizado; como ele se havia inscrito efetivamente no espaço
social; como a nova forma hospitalar era ao mesmo tempo o efeito e o suporte de
um novo tipo de olhar. E, examinando os diferentes projetos arquitetônicos elabo-
rados depois do segundo incêndio do HôteI-Dieu, em 1772, percebi até que ponto o
problema da visibilidade total dos corpos, dos indivíduos e das coisas para um
olhar centralizado havia sido um dos princípios diretores mais constantes. No caso
dos hospitais, este problema apresentava uma dificuldade suplementar: era preciso
evitar os contatos, os contágios, as proximidades e os amontoamentos, garantindo
a ventilação e a circulação do ar: ao mesmo tempo dividir o espaço e deixá-lo aberto,
assegurar uma vigilância que fosse ao mesmo tempo global e individualizante, se-
parando cuidadosamente os indivíduos que deviam ser vigiados. Durante muito
tempo acreditei que estes eram problemas específicos da medicina do século XVIII
e de suas crenças.
Em seguida, estudando os problemas da penalidade, me dei conta de que todos os
grandes projetos de reorganização das prisões (que, além disso, datam de um pouco

210
No livro 1984, Orwell dá forma a um modelo de vigilância, controlo e poder centralizado e
totalitário vinculado a um instrumento, o ecrã. Este instrumento é como um olho.
Metaforicamente, é o olho de Deus, que vê tudo, porque é omnipotente, omnipresente e
omnisciente.
211
Para o pensamento utilitarista de Bentham, a moral baseia-se na noção de utilidade. Assim, uma
acção é moralmente boa se for útil ao maior número possível de pessoas. Trata-se de um princípio
de utilidade, que deve ser útil ao conduzir à felicidade de todos ou do maior número.
212
O título de Foucault, no original em francês, é L’oeil du pouvoir, traduzido para português como
O olho do poder e inserido em Microfísica do poder (cf. Foucault, 1998, pp. 209-227).
Paulo M. Barroso
290

mais tarde, da primeira metade do século XIX) retomavam o mesmo tema, mas já
sob a influência, quase sempre explicitada, de Bentham. Eram poucos os textos, os
projetos referentes às prisões em que o ‘troço’ de Bentham não se encontrasse. Ou
seja, o ‘panopticon’.
O princípio é: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta pos-
sui grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A construção peri-
férica é dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção. Estas
celas têm duas janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo às janelas
da torre; outra, dando para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de um
lado a outro. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar
um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Devido ao
efeito de contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se na luminosidade, as
pequenas silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma, inverte-se o prin-
cípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que,
no fundo, protegia.” (Foucault, 1998, pp. 209-210).213

Esta passagem de O olho do poder é relevante por vários aspectos:


– O estudo da arquitectura hospitalar do século XVIII revela como o olhar
médico se institucionalizou e se inscreveu no espaço social e como a
nova forma hospitalar era o efeito e o suporte de um novo tipo de olhar;
– Os diferentes projectos arquitectónicos revelam o problema e a preocu-
pação da visibilidade total dos indivíduos, mediante um olhar centrali-
zado;
– O caso dos hospitais é revelador do que acontece com a pandemia por
Covid-19, i.e. a dificuldade, preocupação e necessidade em inverter a
ordem natural da sociedade e do indivíduo como ser gregário, pois é
preciso evitar os contactos, as proximidades e os amontoamentos, divi-
dir o espaço e deixá-lo aberto, assegurar uma vigilância global e indivi-
dualizante, separando cuidadosamente os indivíduos que deviam ser
vigiados, garantindo a ventilação e a circulação do ar para reduzir os
contágios.
– Este modelo de vigilância é extensível a outros domínios e sistemas so-
ciais institucionalizantes dos indivíduos (como o penal, o psiquiátrico,
o hospitalar, o fabril ou o escolar) sob a influência de Bentham e da sua
concepção sobre o panóptico.
– O modelo panóptico funciona na base do jogo de visibilidade propor-
cionado pelo efeito de contraluz, invertendo-se o princípio da masmorra:
a luz e o olhar de um vigia substituem o escuro e a ocultação. De um sis-
tema de comunicação-zero passa-se para um sistema de comunicação-
total.

213
Para se compreender o princípio e o funcionamento do panóptico a partir de outra descrição de
Foucault, veja-se o capítulo 3 de Vigiar e punir (cf. Foucault, 1997b, p. 165 e segs.). Leia-se também
a Conferência 4 de A verdade e as formas jurídicas (cf. Foucault, 2002, pp. 79-102).
Sociologia da Comunicação
291

Em 1975, Foucault publica Vigiar e punir,214 renovando a análise dos modos


de exercício do poder e referindo duas formas de controlo social: a disciplina-
bloco ou bloqueio e a disciplina-mecanismo. São duas imagens da disciplina (Fou-
cault, 1997b, p. 173). A primeira é feita de “interditos, proibições, barreiras,
hierarquias e compartimentações, quebras de comunicação”; a segunda é “feita
de técnicas de vigilância múltiplas e entrecruzadas, processos de controlo flexí-
veis e funcionais, de dispositivos que exercem a sua vigilância através da inte-
riorização pelo indivíduo da sua constante exposição ao olhar do controlo”
(Mattelart & Mattelart, 1997, p. 81).
“As teses de Foucault permitem identificar os dispositivos da comunicação-poder
na sua própria forma organizacional. O modelo de organização em ‘panóptico’, uto-
pia de uma sociedade, serve nesta perspectiva para caracterizar o modo de controlo
exercido pelo dispositivo televisivo: uma maneira de organizar o espaço, de con-
trolar o tempo, de vigiar em permanência o indivíduo e de assegurar a produção
positiva de comportamentos. Figura arquitectónica de um tipo de poder que Fou-
cault foi buscar ao filósofo utilitarista Jeremy Bentham (1748-1832), o panóptico é
essa máquina de vigilância em que, com visibilidade plena, se pode controlar de
uma torre central todo o círculo do edifício dividido em alvéolos e onde os vigiados,
alojados em células individuais e separadas umas das outras, são vistos sem verem.
Adaptado às características da televisão, que inverte o sentido da visão permitindo
aos vigiados verem sem serem vistos, e que deixa de funcionar exclusivamente por
controlo disciplinar, mas funciona também por fascínio e sedução, o panóptico
torna-se, para explicar a televisão enquanto ‘máquina de organização’, no ‘panóp-
tico inverso’, segundo a expressão do filósofo Étienne Allemand, em Pouvoir et Té-
lévision.” (Mattelart & Mattelart, 1997, p. 82).

A sociedade contemporânea merece o nome de “sociedade disciplinar”,


segundo Foucault. É caracterizada pelo aparecimento, no final do século XVIII e
início do século XIX, da “reforma, a reorganização do sistema judiciário e penal
nos diferentes países da Europa e do mundo” (Foucault, 2002, p. 79). Em que con-
sistem essas transformações? Por um lado, consistem numa reelaboração teórica
da lei penal assente em três princípios:
“O princípio fundamental do sistema teórico da lei penal definido por esses autores
[Beccaria, Bentham, Brissot e legisladores dos códigos penais] é que o crime, no
sentido penal do termo, ou, mais tecnicamente, a infracção não deve ter mais ne-
nhuma relação com a falta moral ou religiosa. A falta é uma infração à lei natural,
à lei religiosa, à lei moral. O crime ou a infração penal é a ruptura com a lei, lei
civil explicitamente estabelecida no interior de uma sociedade pelo lado legislativo
do poder político. Para que haja infração é preciso haver um poder político, uma
lei e que essa lei tenha sido efetivamente formulada. […]
Um segundo princípio é que essas leis positivas formuladas pelo poder político no
interior de uma sociedade, para serem boas leis, não devem retranscrever em ter-
mos positivos a lei natural, a lei religiosa ou a lei moral. Uma lei penal deve sim-
plesmente representar o que é útil para a sociedade. A lei define como repreensível
o que é nocivo à sociedade, definindo assim negativamente o que é útil.

214
No original, em francês, Surveiller et punir (Éditions Gallimard, 1975).
Paulo M. Barroso
292

O terceiro princípio se deduz naturalmente dos dois primeiros: uma definição clara
e simples do crime. O crime não é algo aparentado com o pecado e com a falta; é
algo que danifica a sociedade; é um dano social, uma perturbação, um incômodo
para toda a sociedade.” (Foucault, 2002, p. 81).

Conforme se deduz desta passagem de A verdade e as formas jurídicas, de


Foucault, também existe uma “nova definição do criminoso”: o criminoso é
aquele que danifica, perturba a sociedade; é o inimigo social. “Encontramos isso
muito claramente em todos esses teóricos como também em Rousseau, que
afirma que o criminoso é aquele que rompeu o pacto social” (Foucault, 2002, p.
81). Reconhece-se, por conseguinte, uma identidade entre o crime e a ruptura do
pacto social. É necessário assegurar o controlo dos indivíduos em sociedade, i.e.
controlar o comportamento dos indivíduos com base no que Foucault (cf. 2002,
p. 86) chama de “ortopedia social”.
“Entramos assim na idade do que eu chamaria de ortopedia social. Trata-se de uma
forma de poder, de um tipo de sociedade que classifico de sociedade disciplinar
por oposição às sociedades propriamente penais que conhecíamos anteriormente.
É a idade de controle social.” (Foucault, 2002, p. 86).

Surge então o modelo de sociedade disciplinar ou sociedade de vigilância,


i.e. o modelo de sociedade da ortopedia social, principalmente idealizado por
Bentham e assente no princípio do panoptismo, como reconhece Foucault.
“O panoptismo é um dos traços característicos da nossa sociedade. É uma forma
de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e con-
tínua, em forma de controle de punição e recompensa e em forma de correção, isto
é, de formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas. Este
tríplice aspecto do panoptismo – vigilância, controle e correção – parece ser uma
dimensão fundamental e característica das relações de poder que existem em nossa
sociedade.” (Foucault, 2002, p. 103).

O poder disciplinar das sociedades da vigilância e do controlo procura “cor-


pos dóceis”, corpos humanos organizados e disciplinados que proporcionem um
ambiente submisso, produtivo e fonte treinada de força de trabalho: “a disciplina
fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’” (Foucault, 1997b,
p. 119). As sociedades estão marcadas pelo panóptico, pelas ideias colocadas em
prática da vigilância e do controlo permanentes através da normalização. As ac-
tividades das pessoas são examinadas e regulamentadas de maneira a garantir
que as pessoas estão sujeitas a padrões e valores associados com uma determi-
nada ideia e prática de “normalidade”. “O poder de regulamentação obriga à ho-
mogeneidade” (Foucault, 1997b, p. 154). A regulamentação é, neste sentido, um
dos grandes instrumentos de poder.
As relações entre a comunicação e o poder são condição sine qua non para
a constituição de uma sociedade da vigilância e do controlo. Por isso, torna-se
sociologicamente pertinente analisar e compreender os meios de comunicação
Sociologia da Comunicação
293

de massas, considerados o quarto poder, e as suas influências nos indivíduos e


nas sociedades.
Segundo Foucault, o efeito mais importante do panóptico, tal como pre-
conizado por Bentham, é “introduzir no detento um estado consciente e perma-
nente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”
(Foucault, 1997b, p. 166). Consegue-se, assim, o objectivo primordial: fazer com
que a vigilância seja permanente nos seus efeitos, mesmo que seja descontínua
na sua acção. Para exercer efeitos, o poder deve ser visível, mas inverificável. O
panóptico é um dispositivo que dissocia o ver e o ser visto, por um lado, e coloca
o totalmente visto numa posição sem a possibilidade de ver (Foucault, 1997b, p.
167). O panóptico é um dispositivo importante, porque “autonomiza e desindi-
vidualiza o poder”.
“O panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus
mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no
comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em todas as
frentes do poder, descobrindo objectos que devem ser conhecidos em todas as su-
perfícies onde este se exerça.” (Foucault, 1997b, p. 169).

Em Vigiar e punir, Foucault reinventa uma concepção de poder. Segundo


Gilles Deleuze, se o poder era anteriormente um postulado de propriedade, seria
a propriedade de uma classe que o teria conquistado:
“Postulado de propriedade, o poder seria ‘propriedade’ de uma classe que o teria
conquistado. Foucault mostra que assim não é, nem é daí que o poder procede; ele
é menos uma propriedade do que uma estratégia e os seus efeitos não são impu-
táveis a uma apropriação, ‘mas a disposições, a manobras, a tácticas, a técnicas, a
funcionamentos’.” (Deleuze, 1998, p. 47).

Mas, o que é o poder? Para Foucault, o poder é um relacionamento de for-


ças; “todo o relacionamento de forças é um relacionamento de poder” (Deleuze,
1998, p. 99).
O panóptico é compreendido como um modelo extensível de funciona-
mento e de definição das inter-relações de poder no plano da vida humana, co-
lectiva e quotidiana. O panóptico é como uma instituição. É o diagrama de um
mecanismo de poder levado à sua forma ideal (Foucault, 1997b, p. 239).
“É polivalente em suas aplicações: serve para emendar os prisioneiros, mas tam-
bém para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalizar os
operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos. É um tipo de implantação dos
corpos no espaço, de distribuição dos indivíduos em relação mútua, de organização
hierárquica, de disposição dos centros e dos canais de poder, de definição de seus
instrumentos e de modos de intervenção, que se podem utilizar nos hospitais, nas
oficinas, nas escolas, nas prisões. Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de
indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema pa-
nóptico poderá ser utilizado.” (Foucault, 1997b, p. 170).
Paulo M. Barroso
294

O panóptico é, por conseguinte, um dispositivo de relacionamento e co-


municação com aplicações diversas, principalmente na actualidade, com socie-
dades mais tecnológicas, mais comunicacionais e mais complexas ao nível do
relacionamento social.
“Uma das ideias essenciais de Vigiar e punir é que as sociedades modernas podem
ser definidas como sociedades ‘disciplinares’; mas a disciplina não pode ser iden-
tificada com uma instituição nem com um aparelho, precisamente porque é um
tipo de poder, uma tecnologia que atravessa toda a espécie de aparelhos e de ins-
tituições para os ligar uns aos outros, os prolongar, os fazer convergir, os obrigar
a exercerem-se de um modo novo.” (Deleuze, 1998, p. 48).

Apesar de ainda pertinente nas sociedades modernas, o panóptico cede


lugar ao sinóptico. Em Globalization: The human consequences,215 Bauman distin-
gue o panótico e o sinóptico:
“O Panóptico, mesmo quando a sua aplicação era universal e quando as instituições
que seguiam os seus princípios abrangiam o grosso da população, era, por sua na-
tureza, um estabelecimento local: tanto a condição como os efeitos da instituição
panóptica consistiam na imobilização dos seus sujeitos – a vigilância estava lá para
barrar a fuga ou, pelo menos, para impedir movimentos autónomos, contingentes
e erráticos. O Sinóptico é, por sua natureza, global; o acto de vigiar desprende os
vigilantes da sua localidade – transporta-os, pelo menos espiritualmente, ao cibe-
respaço, onde já não importa a distância, ainda que fisicamente permaneçam no
lugar. Não importa mais se os alvos do Sinóptico, que agora deixaram de ser os vi-
giados e passaram a ser os vigilantes, se movam ou fiquem parados. Onde quer que
estejam e onde quer que vão, eles podem ligar-se – e ligam-se – na rede extrater-
ritorial que faz muitos vigiarem poucos. O Panóptico forçava as pessoas para a po-
sição em que podiam ser vigiadas. O Sinóptico não precisa de coerção – ele seduz
as pessoas a vigiarem. E os poucos que os vigilantes vigiam são estritamente se-
leccionados.” (Bauman, 1998, p. 52).216

Conforme menciona Bauman, com o sinóptico inverte-se a ordem do pa-


nóptico, pois agora muitos vigiam poucos e estes poucos são celebridades:

215
Obra originalmente publicada por Bauman em 1998 com o referido título (Polity Press,
Cambridge). Existe uma edição traduzida para português do Brasil com o título Globalização: As
consequências humanas (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro).
216
Tradução do autor a partir do texto original em inglês de Bauman: “The Panopticon, even when
it was universal in its application and when the institutions following its principles embraced
the bulk of the population, was by its nature a local establishment: both the condition and the
effects of panoptical institution was immobilization of its subjects–surveillance was there to
stave off escape or at least to prevent autonomous, contingent and erratic movements. The
Synopticon is in its nature global; the act of watching unties the watchers from their locality–
transports them at least spiritually into cyberspace, in which distance no longer matters, even
if bodily they remain in place. It does not matter any more if the targets of the Synopticon,
transformed now from the watched into the watchers, move around or stay in place. Wherever
they may be and wherever they may go, they may–and they do–link into the exterritorial web
which makes the many watch the few. The Panopticon forced people into the position where
they could be watched. The Synopticon needs no coercion–it seduces people into watching. And
the few whom the watchers watch are tightly selected.”
Sociologia da Comunicação
295

“Muitos vigiam poucos. Os poucos que são vigiados são as celebridades. Eles podem
vir do mundo da política, do desporto, da ciência ou do espectáculo, ou podem ape-
nas ser especialistas em informação sobre famosos. Todavia, de onde quer que ve-
nham, todas as celebridades exibidas colocam em exibição o mundo das
celebridades – um mundo cuja principal característica é precisamente a condição
de ser observado – por muitos e em todos os cantos do globo, de ser global na sua
qualidade de ser observado. O que quer que falem quando estão no ar, passam a
mensagem de um estilo de vida total. A vida delas, o estilo de vida delas.” (Bauman,
1998, pp. 52-53).217

Para Bauman (cf. 2006, p. 11), o que quer que seja o presente estádio da
história da modernidade, este é, talvez acima de tudo, pós-panóptico. Na transi-
ção ou, pelo menos, coexistência entre o panopticon e o synopticon, Baudrillard
assume uma posição mais radical e sustenta que estamos no fim do panóptico,
referindo-se à TV- verdade dos reality shows, cujo exemplo é o programa An ame-
rican family (1973) com a família Loud:
“[…] sete meses de rodagem ininterrupta, trezentas horas de filmagem directa,
sem guião nem cenário, a odisseia de uma família, os seus dramas, as suas alegrias,
as suas peripécias, non stop – resumindo, um documento histórico ‘bruto’, e a ‘mais
bela proeza da televisão, comparável, à escala da nossa quotidianidade, ao filme
de desembarque na Lua’”. (Baudrillard, 1991, p. 40).

Esta família desfez-se durante a rodagem, como refere Baudrillard, e os


Loud separaram-se. A televisão teve responsabilidade neste desfecho familiar?
A família Loud foi filmada na intimidade insignificante e de forma inin-
terrupta, tendo 20 milhões de telespectadores. Foi como se a TV lá não estivesse,
o que não deixa de ser paradoxal. Trata-se de “um arrepio do real” ou de “uma
estética do hiper-real”, segundo Baudrillard (1991, p. 40).
“Gozo de um excesso de sentido, quando a barra do signo desce abaixo da linha de
flutuação habitual do sentido: o insignificante é exaltado pela filmagem. Aí se vê
o que o real nunca foi (mas ‘como se você aí estivesse’), sem a distância que faz o
espaço perspectivo e a nossa visão em profundidade (mas ‘mais verdadeiro que ao
natural’). Gozo da simulação microscópica que faz o real passar para o hiper-real.
(É um pouco assim na pornografia também, cujo fascínio é mais metafísico que se-
xual).” (Baudrillard, 1991, p. 41).

A família Loud era já hiper-real. Era uma família americana ideal e típica
que, como nos sacrifícios antigos, foi “escolhida para ser exaltada e morrer sob

217
Tradução do autor a partir do texto original em inglês de Bauman: “The many watch the few.
The few who are watched are the celebrities. They may come from the world of politics, of sport,
of science or showbusiness, or just be celebrated information specialists. Wherever they come
from, though, all displayed celebrities put on display the world of celebrities–a world whose
main distinctive feature is precisely the quality of being watched–by many, and in all corners of
the globe: of being global in their capacity of being watched. Whatever they speak about when
on air, they convey the message of a total way of life. Their life, their way of life.”
Paulo M. Barroso
296

o fogo do medium” (Baudrillard, 1991, p. 41).218 O canal de comunicação, a TV,


serviu de palco para este processo sacrificial, este “espectáculo sacrificial ofere-
cido a vinte milhões de americanos” como “o drama litúrgico de uma sociedade
de massas” (Baudrillard, 1991, p. 41). É o fim do sistema panóptico, pois “o olho
da TV já não é a fonte de um olhar absoluto e o ideal do controle já não é o da
transparência” (Baudrillard, 1991, p. 42). O sistema de jogo entre o ver e o ser
visto muda:
“Você já não está a ver TV, é a televisão que o vê a si […] viragem do dispositivo
panóptico de vigilância (vigiar e punir) para um sistema de dissuasão onde é abo-
lida a distinção entre o passivo e o activo. Já não há imperativo de submissão ao
modelo ou ao olhar. ‘VOCÊS são o modelo!’, ‘VOCÊS são a maioria!’ Esta é a vertente
de uma socialidade hiper-realista, em que o real se confunde com o modelo, como
na operação estatística, ou com o medium, como na operação Loud.” (Baudrillard,
1991, p. 42).

Baudrillard refere-se a um estádio ulterior da relação social, em que nós é


que somos a informação, o social, e em que a televisão já não é um medium es-
pectacular. Por isso, “estamos num universo em que existe cada vez mais infor-
mação e cada vez menos sentido” (Baudrillard, 1991, p. 103). A informação
veiculada pelos media devora os seus próprios conteúdos, bem como a própria
possibilidade de comunicar e a própria possibilidade de se relacionar, ou seja,
devora a própria comunicação e o próprio social. Isto acontece por dois motivos:
a) O “fazer comunicar” é suplantado pela encenação da comunicação, tal
como o produzir sentido é suplantado pela encenação do sentido.
b) Por detrás desta encenação exacerbada da comunicação, os mass media,
a informação em forcing, prosseguem uma desestruturação do real
(Baudrillard, 1991, p. 106).
No motivo a), há uma perda da comunicação e uma sobrevalorização do
simulacro e do hiper-real. Neste primeiro motivo também há uma hiper-realidade
da comunicação e do sentido (cf. Baudrillard, 1991, p. 105), que parecem reais ou
mais reais do que o real (que assim é anulado). No motivo b), os media são, para
Baudrillard, “produtores não da socialização, mas do seu contrário, da implosão
do social nas massas”.

218
Paralelamente ao caso da família Loud, recomenda-se a compreensão da teoria panóptica e dos
seus efeitos ilusórios recorrendo-se à visualização do filme The truman show (1998), de Peter Weir.
Este filme narra a história de um cidadão (interpretado por Jim Carrey) com o nome Truman
(ironicamente a significar em inglês “homem verdadeiro”) que vive numa mentira, desde que
nasceu e até uma idade adulta, i.e. vive num programa de televisão. A realidade que Truman
julgava existir era um cenário de um reality show, em que o único participante, ele próprio,
desconhecia que tudo na sua vida, incluindo a sua mulher, fazia parte desse programa com uma
equipa de produção, muita audiência, estratégias de product placement durante a emissão e
transmitido ininterruptamente. Também se recomenda, num registo semelhante, o filme EDtv
(1999), de Ron Howard.
Sociologia da Comunicação
297

Os conteúdos e os seus sentidos são absorvidos na única forma dominante


do medium e apenas este medium constitui acontecimento. Nesta perspectiva,
Baudrillard concorda com McLuhan sobre o papel dos media nos conteúdos, con-
forme a célebre frase de McLuhan: o meio é a mensagem.
“[…] não há apenas implosão da mensagem no medium, há no próprio movimento
implosão do próprio medium no real, implosão do ‘medium’ e do real, numa espécie
de nebulosa hiper-real onde até a definição e a acção distinta do medium já não
são assinaláveis. O acto de pôr em causa o estatuto tradicional não se fica pelos
próprios media, características da modernidade. A fórmula de McLuhan Medium is
message, que é a fórmula-chave da era da simulação (o medium é a mensagem – o
emissor é o receptor – circularidade de todos os polos – fim do espaço panóptico e
perspectivo – esse é o alfa e o ómega da nossa modernidade) esta mesma fórmula
deve ser considerada no limite em que, depois de todos os conteúdos e as mensa-
gens se terem volatilizado no medium, ser o próprio medium que se volatiza en-
quanto tal.” (Baudrillard, 1991, p. 107).

O fim da mensagem significa o fim do medium, principalmente dos media


electrónicos de massas. Também significa o fim da instância mediadora da reali-
dade. É o fim do espaço perspectivo e panóptico, da abolição do espectacular. Tam-
bém porque, segundo Baudrillard (1991, p. 44), “já não existe medium no sentido
literal”, pois o medium “é doravante inapreensível, difuso e difractado no real”.
“Já não estamos na sociedade do espectáculo de que falavam os situacionistas, nem
no tipo de alienação e de repressão específicas que ela implicava. O próprio medium
já não é apreensível enquanto tal, e a confusão do medium e da mensagem (McLu-
han) é a primeira grande fórmula desta nova era.” (Baudrillard, 1991, pp. 43-44).

Para Baudrillard, a constatação da implosão (dos conteúdos, da absorção


do sentido, da evanescência do medium, da reabsorção da dialéctica da comuni-
cação, do social nas massas) implica que já não acontece mais nada que tenha
sentido. Um exemplo apresentado por Baudrillard (1991, p. 110) é quando os
media se assumem como veículos da condenação moral da guerra ou do terro-
rismo, sendo eles mesmos ambíguos ao difundirem o fascínio bruto do acto de
guerra ou de terrorismo, tornando-se terroristas.
Num pequeno texto, que assume um carácter profético219 intitulado “Post-
scriptum sobre as sociedades de controle”,220 Deleuze diagnostica uma transfor-
mação ou mudança de modelo de vigilância para o de controlo: o fim das

219
Profético porque o texto foi publicado em 1990, aquando do colapso do comunismo e do início
de uma só vertente e ordem mundial, a do capitalismo, fomentado pelo neo-liberalismo
económico. Em Maio desse ano, quando Deleuze publicou este texto na revista L’Autre Journal, a
world wide web tinha sido inventada um ano antes por Tim Berners-Lee e ainda não existiam
telemóveis nem proliferavam computadores pessoais.
220
Texto no original em francês com o título “Post-scriptum sur les sociétés de contrôle” e inserido
em Pourparlers 1972-1990 (Les Éditions de Minuit, Paris). A versão utilizada neste livro é a da
edição em português inserida na obra Conversações (cf. Deleuze, 2008).
Paulo M. Barroso
298

sociedades disciplinares de confinamento, no sentido de Bentham e Foucault, e


o início dos mesmos regimes de vigilância e de controlo, mas por parte das em-
presas.
Se Foucault aborda o sujeito institucionalizado, referindo-se aos grandes
ambientes de reclusão ou sistemas de confinamento, nos quais o sujeito não
cessa de transitar, Deleuze considera o fim de todos esses ambientes (cf. Parr,
2005, p. 54). Em “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”, Deleuze realça
que, para Foucault, o indivíduo é um sujeito institucionalizado, passa de institu-
cionalização para institucionalização ao longo da vida, isto é, de confinamento
para confinamento, cada um com as suas leis: primeiro, a família; depois, a escola;
depois, o quartel; depois, a fábrica; de tempos em tempos o hospital, eventual-
mente a prisão, que é o sistema de confinamento por excelência:
“Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seu
apogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de
confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada
um com suas leis: primeiro a família, depois a escola (‘você não está mais na sua
família’), depois a caserna (‘você não está mais na escola’), depois a fábrica, de vez
em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por
excelência.” (Deleuze, 2008, p. 219).

Todavia, Deleuze considera que estamos numa crise generalizada de todos


estes ambientes de confinamento, dando a sociedade disciplinar lugar à socie-
dade de controlo. Em “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”, Deleuze
sublinha:
“Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da
caserna à fábrica) enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a
empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de
uma mesma modelação, como que de um deformador universal.” (Deleuze, 2008,
p. 222).

De acordo com Deleuze, passamos da sociedade da disciplina, regrada


pelas palavras de ordem, para a sociedade do controlo, que nos define como um
número, uma palavra-passe. A linguagem numérica do controlo é composta de
algarismos, que marcam o acesso ou a rejeição à informação. Não nos encontra-
mos mais diante do par massa-indivíduo, segundo Deleuze (cf. 2008, p. 222), pois
os indivíduos se tornaram os “dividuels” (“dividuais”) e as massas se tornam as
amostras, dados, mercados ou “banques” (“bancos”). Muito mais avançadas do
que as sociedades antigas da soberania e as sociedades disciplinares, as socieda-
des do controlo operam com máquinas sofisticadas, máquinas informáticas e
computadores, cujo perigo passivo é a interferência e o perigo activo é a pirataria
e a introdução de vírus (cf. Deleuze, 2008, p. 223). São sociedades do controlo,
que é contínuo e cada vez mais hegemónico sobre a informação e a comunicação,
que são, por seu turno, cada vez mais instantâneas. Para Deleuze, é graças ao
advento de uma nova tecnologia, a da computação e a da cibernética, que essa
Sociologia da Comunicação
299

prepotência de vigilância e de controlo é exercida, particularmente através do


controlo contínuo e da comunicação instantânea.
Embora Deleuze não sugira, de maneira alguma, que devemos retornar às
instituições e às sociedades da disciplina, conclui que é alarmante a perspectiva
de uma nova sociedade do controlo (cf. Parr, 2005, p. 54). A tendência para esta
perspectiva de uma nova sociedade do controlo coloca-se devido ao surgimento
de novas técnicas de controlo e porque somos constantemente coagidos pelas
formas de comunicação.
Gottfried Leibniz (1646-1716) já tinha imaginado o mundo como uma rede,
admitido que o mundo numérico nos influencia sem nos restringir. Segundo Leib-
niz, o real é composto por indivíduos (átomos básicos que este autor designa por
mónadas). Os indivíduos são independentes uns dos outros. Cada substância in-
dividual é autónoma, como um mundo à parte, mas as substâncias estão em
constante conexão com as outras. Esta condição individual e autónoma, por um
lado, e em constante conexão, por outro lado, é o que hoje nos caracteriza nas
redes sociais. Esta perspectiva leibniziana não deixa de ser paradoxal, pois o que
é a essência de ser mónada é a individualidade e autonomia relativamente aos
outros mónadas, com os quais estabelece uma constante conexão comunicativa,
que não poderia deixar também de o ser.
Quando nos conectamos na internet, sabemos que podemos estar a ser vi-
giados ou controlados. Ao entrarmos num site, aparecem automaticamente os ter-
mos de uso. Durante a “navegação”, não podemos evitar os anúncios que
aparecem no ecrã de rompante, sem permissão e, estranhamente, à nossa medida,
pois propõem precisamente aquilo que procurávamos na nossa navegação ante-
rior. Importamo-nos em ser vigiados ou controlados na internet? Não nos impor-
tamos porque nos satisfazemos ou compensamos em retirar da internet o benefício
que pretendemos? Não nos importamos porque esta circunstância (de ser vigiado
e controlado) é, apesar de ser uma condição sine qua non, inevitável e tolerável?

12.6. Charles Taylor: a ética da autenticidade


A modernidade desencadeia uma revolução no nosso imaginário social.
Esta é uma das ideias centras de Charles Taylor, expressas no livro Imaginários
sociais modernos. A modernidade altera o imaginário social, tal como também
transforma os outros domínios da vida colectiva e individual, designadamente
“uma nova concepção da ordem moral da sociedade” (Taylor, 2010, p. 12). Se a
época muda e as sociedades sofrem profundas transformações, também o ima-
ginário social ou colectivo é modificado com este novo período moderno. Se-
gundo Taylor (cf. 2010, p. 156), essa revolução incide em relegar ou marginalizar
as formas de mediação e a difusão de imagens de acesso directo.
Efectivamente, o conceito de imaginário social é central para Taylor. Com
este conceito, Taylor significa algo mais alargado e profundo do que esquemas
Paulo M. Barroso
300

intelectuais que servem para pensar sobre a realidade social. Para Taylor, os ima-
ginários sociais são maneiras como as pessoas imaginam a sua existência, as
suas relações sociais e o que as circunda, como se relacionam com as outras pes-
soas, como as coisas acontecem e as implicam, as suas expectativas, etc. (cf. Tay-
lor, 2010, p. 31). Mas um imaginário social não é uma teoria social. O imaginário
social difere da teoria social por ser mais vasto e por não ser expresso em termos
teóricos; é transportado por imagens, histórias e lendas. O imaginário social é
um entendimento comum que torna possível práticas também comuns, ou seja,
interacções na esfera pública.
Se o imaginário social muda com a modernidade, a participação das pes-
soas na esfera pública também muda, porque agora as pessoas possuem concep-
ções diferentes da vida colectiva e isso se reflecte na estrutura social e na esfera
pública. Para Taylor, a esfera pública é um espaço comum de interesses colectivos,
onde os media desempenham um papel importante:
“A esfera pública é um espaço comum onde os membros da sociedade se encontram
através de uma variedade de meios – imprensa, electrónica e também encontros
face-a-face – para discutirem assuntos de interesse comum e, deste modo, forma-
rem a seu respeito uma opinião comum. Digo ‘um espaço comum’ porque, embora
os meios sejam múltiplos, como também as trocas que neles têm lugar, considera-
se que esses meios estão em intercomunicação. O que dizemos agora acerca da te-
levisão refere-se ao que se disse no jornal da manhã, que, por seu turno, se refere
ao debate radiofónico de ontem, e assim por diante. Eis porque, habitualmente,
falamos da esfera pública no singular. A esfera pública é uma característica central
da sociedade moderna, de tal modo que, mesmo onde é efectivamente suprimida
ou manipulada, tem de ser simulada.” (Taylor, 2010, p. 87).

No final do livro Imaginários sociais modernos, Taylor justifica a relação


entre o imaginário social moderno e a moderna sociedade secular. O percurso
moderno da sociedade é longo e secular, tendo contribuído para o êxodo da re-
ligião da esfera pública, ou seja, “ajudou a remover Deus do espaço público”
(Taylor, 2010, p. 177). Não terá eliminado totalmente, mas apenas e pelo menos
“um certo modo de Deus estar anteriormente presente, como parte de uma nar-
rativa da fundação (transcendente à acção) da sociedade num tempo superior”
(Taylor, 2010, p. 177). O imaginário social moderno encaixa numa moderna so-
ciedade secular, no fim da presença da religião ou do divino no espaço público;
é o fim da sociedade estruturada pela sua dependência relativamente a Deus ou
à religião:
“Este imaginário social é, pois, de forma bem patente, o fim de um certo tipo de
presença da religião ou do divino no espaço público. É o fim da época em que a au-
toridade política, bem como outros agentes comuns metatópicos, eram inconcebí-
veis sem referência a Deus ou a um tempo superior; em que eles estão de tal modo
inseridos nas estruturas da autoridade que esta se não pode entender separada-
mente do divino, do mais elevado ou do numinoso.” (Taylor, 2010, p. 178).
Sociologia da Comunicação
301

Deus e a religião não estão completamente ausentes do espaço público, mas


estão menos presentes e continuam a ser, de certa maneira, essenciais às identi-
dades sociais e culturais. Segundo Taylor, a modernidade é secular. A secularidade
da modernidade está na ausência da religião, que agora ocupa um lugar diferente.
A secularização é o declínio das crenças e das práticas religiosas nas so-
ciedades que se modernizaram, conforme as teses defendidas pelos sociólogos a
partir de finais do século XX. Para suporte destas teses, o desenvolvimento da
ciência e das técnicas faz refluir as crenças, faz enfraquecer a espiritualidade a
favor do materialismo e o poder religioso cede o lugar ao poder laico (cf. Dortier,
2006, p. 630). A secularização corresponde ao desencanto do mundo, segundo a
expressão de Weber.
É no livro A ética da autenticidade que Taylor aprofunda as críticas à mo-
dernidade e às suas consequências, ou seja, às transformações sociais que de-
correm desta nova forma de ser e de estar no mundo. Segundo Taylor (cf. 2009,
pp. 18-25), existem três doenças da modernidade:
1. Individualismo e perda do colectivismo.
2. Predomínio da razão instrumental sobre a razão crítica.
3. Diminuição da participação política ou abstencionismo e restrições à
liberdade individual.

As maleitas da modernidade são “alguns aspectos da cultura e sociedade


contemporâneas sentidos como perda ou declínio, apesar do ‘progresso’ da nossa
civilização” (Taylor, 2009, p. 17). São essencialmente estas patologias que enfer-
mam as actuais sociedades pós-modernas e, segundo Taylor, caracterizam-se da
seguinte maneira:
Maleita Características
1. Individualismo e  Concentração no Eu (é a “geração do Eu”) ou “prevalência do narcisismo”.
perda do  Perda de ideais e estreitamento de horizontes (perda de sentido sobre os
colectivismo horizontes morais).
 Sociedades permissivas, em que “as pessoas perderam uma visão mais
ampla, porque se concentraram nas suas vidas individuais”.
2. Predomínio da  Racionalidade a que se recorre quando se pondera a aplicação de meios mais
razão instrumental simples para chegar a um dado fim.
sobre a razão crítica  A medida do sucesso é a “máxima eficiência, a melhor ratio custo-produção”.
 Eclipse dos fins face à desenfreada razão instrumental.
3. Abstencionismo e  Os indivíduos ensimesmados e focados nos prazeres da vida privada não se
restrições à interessam em participar na vida política.
liberdade individual  Despotismo suave (as instituições e estruturas políticas restringem as
escolhas).
 Perda de identidade.
 Tabela 22: As três maleitas da modernidade e respectivas caracterizações, segundo Taylor.

Estas três maleitas da modernidade mencionadas por Taylor fomentam


uma cultura pós-moderna do narcisismo conformista e dependente, que estaria
particularmente encaixada na religião como questão privada, na medida em que
Paulo M. Barroso
302

se preconiza uma viragem subjectiva para uma nova forma de interioridade (cf.
Taylor, 2009, p. 40).
A fonte da moralidade está dentro do sujeito e permite-lhe distinguir in-
tuitivamente o bem do mal, à semelhança do que revelam as meditações de Santo
Agostinho que falam de um Mestre Interior.
“Tornamo-nos plenamente agentes humanos, capazes de nos compreendermos e,
por isso, de definirmos uma identidade, através da aquisição de uma grande ri-
queza de linguagens humanas, em que nos exprimimos. […] Somos iniciados na
linguagem pela interacção com os outros. Ninguém adquire sozinho as linguagens
de que necessita para se definir a si mesmo. Iniciamo-nos nelas pela interacção
com aqueles que contam para nós – a que George Herbert Mead chamou os ‘outros
significativos’. A formação da mente humana não é, neste sentido, ‘monológica’,
algo que cada um realize sozinho, mas dialógica. […] cada um tem o direito de de-
senvolver a sua própria forma de vida, fundada sobre a sua percepção daquilo que
é realmente importante ou tem valor. As pessoas são chamadas a serem fiéis a si
mesmas, a buscar a própria auto-realização.” (Taylor, 2009, p. 46).

Na modernidade, o papel ou a importância da ética é decisiva. Ou se sobre-


põe a questão da ética, na medida em que a modernidade é um período de trans-
formações para a secularidade dos valores, ou se apaga e dilui a questão ética, na
medida em que esta seguirá a tendência de desvalorização e de crise dos valores
e, por consequência, da própria identidade social, cultural e individual.
Neste sentido, Taylor distingue entre uma ética da modernidade e uma
ética da autenticidade. A ética não é entendida como dever, mas como modo de
realização do humano por meio de acções no espaço público que expressam va-
lores. É importante saber quais são as nossas fontes de valor, porque estas fontes
permitem construir a identidade ético-cultural. Saber quais são as fontes permite
posicionar, de uma forma mais crítica, no espaço público (na esfera pública) onde
ocorrem as interacções e os conflitos humanos.
A crise da modernidade verifica-se na construção do Ocidente moderno.
A intenção de Taylor é recuperar as fontes culturais e filosóficas vinculadas à ex-
pressão das identidades humanas. A ética do reconhecimento traduz-se quando
não há um centro gravitacional para definir o indivíduo por meio de um único
prisma, mas referenciais significativos culturais e valorativos, cujos núcleos estão
na vivência comunitária. A autonomia desenvolve-se no plano dialogal. Ser au-
tónomo é agir impulsionado por uma configuração moral e cultural proveniente
de um modo de ser comunitário. A modernidade desenvolve o conceito de auto-
nomia fundada numa racionalidade.
O individualismo nega qualquer forma de ética, porque a ética pressupõe
o outro. O individualismo é o resultado da fragmentação da vida comunitária
moderna. A crise da modernidade vincula-se ao desenvolvimento da subjectivi-
dade, em que o indivíduo constrói fins particulares, esquecendo assim comple-
tamente o outro.
Sociologia da Comunicação
303

Para Taylor, as doenças da modernidade são as causas do mal-estar da mo-


dernidade, por um lado, e colocam em crise a ética da autenticidade. Entre outras
consequências do mal-estar da modernidade, Taylor indica:
a) Perda de sentido/orientação (sociedade sem desígnio).
b) Desaparecimento dos horizontes morais/referentes éticos (nível ético).
c) Eclipse dos fins (nível teleológico).
d) Diminuição de direitos sociais e cívicos: a liberdade (nível político).

A estratégia argumentativa de Taylor incide na análise das fontes do indi-


vidualismo contemporâneo e no reconhecimento do individualismo que se apre-
senta de forma ambivalente: hoje vivemos num mundo onde a maioria das
pessoas possui o direito de escolher a maneira como deseja viver (práticas quo-
tidianas, preferências, religião, opção política).

12.7. Lyotard: a condição humana e o pós-moderno


Jean-François Lyotard (1924-1998) é reconhecido pelo estudo e compreen-
são da pós-modernidade na sua vasta obra, nomeadamente A condição pós-mo-
derna,221 seguindo uma perspectiva cruzada entre o existencialismo e o marxismo
na crítica às sociedades actuais, que transformam a condição humana e criam o
inumano.
A pós-modernidade é apanágio, nesta perspectiva, das sociedades ociden-
tais de cariz capitalista, nas quais se regista uma evidência nas mudanças de
comportamentos sociais, mais concretamente a partir da década de 1980.
O conceito de “pós-modernidade”, inaugurado por Lyotard em A condição
pós-moderna (cf. Giddens, 2005, p. 1), sustenta a descrença nas meta-narrativas
da modernidade, que culmina na deslegitimação dos ideais, preceitos e regras.
Segundo Lyotard:
“Este estudo tem por objecto a condição do saber nas sociedades mais desenvolvi-
das. Decidiu-se nomeá-la ‘pós-moderna’. A palavra está em uso no continente ame-
ricano, na escrita de sociólogos e de críticos. Ela designa o estado da cultura após
as transformações que afectaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das
artes a partir do fim do século XIX. Estas transformações serão situadas aqui rela-
tivamente à crise das narrativas.” (Lyotard, 1989, p. 11).

Lyotard representa a pós-modernidade, segundo Giddens (cf. 2005, p. 2),


referindo-se a “um abandono das tentativas de fundamentar a epistemologia,
bem como da fé no progresso projectado pela humanidade”.
“A condição da pós-modernidade distingue-se por uma evaporação da ‘grande nar-
rativa’ – a ‘linha condutora’ determinante através da qual somos colocados na his-
tória como seres dotados de um passado definido e de um futuro previsível. A
perspectiva pós-moderna reconhece uma pluralidade de pretensões heterogéneas

221
Publicada em 1979.
Paulo M. Barroso
304

ao conhecimento, nas quais a ciência não tem um lugar privilegiado.” (Giddens,


2005, p. 2).

Na perspectiva de Lyotard, as condições modernas de conhecimento são


distintas das condições pós-modernas. Enquanto a modernidade se caracteriza
pela percepção do mundo à luz de sistemas totalizantes (meta-narrativas ou
meta-relatos) com previsibilidade, objectividade e progresso científico (tornando
o conhecimento científico assente num discurso racional, lógico e com legitimi-
dade), a pós-modernidade caracteriza-se por discursos narrativos que questionam
os valores e os fins (cf. Lyotard, 1989, p. 58), sem se submeter à argumentação e
à prova (cf. Sebastião, 2012, p. 66).
“Dissemos que este último [o saber narrativo] não valoriza a questão da sua própria
legitimação, ele dá crédito a si mesmo pela pragmática da sua transmissão sem re-
correr à argumentação e à administração de provas. É por isso que ele junta à sua
incompreensão dos problemas do discurso científico uma tolerância segura em re-
lação a este: ele toma-o, antes do mais, como uma variedade na família das culturas
narrativas. O inverso não é verdadeiro. O cientista interroga-se sobre a validade dos
enunciados narrativos e verifica que eles nunca estão submetidos à argumentação
e à prova. Ele classifica-os numa outra mentalidade: selvagem, primitiva, subdesen-
volvida, atrasada, alienada, feita de opiniões, de costumes, de autoridade, de pre-
conceitos, de ignorâncias, de ideologias. As narrativas são fábulas, mitos, lendas,
bons para as mulheres e as crianças. Nos melhores casos tentar-se-á fazer penetrar
a luz neste obscurantismo, civilizar, educar, desenvolver.
Esta relação desigual é um efeito intrínseco das regras próprias de cada jogo. Co-
nhecem-se os sintomas. É toda a história do imperialismo cultural desde os primór-
dios do Ocidente. É importante reconhecer-lhe o conteúdo, que o distingue de todos
os outros: ele é comandado pela exigência de legitimação.” (Lyotard, 1989, p. 61).

O que está aqui em causa é um confronto entre o conhecimento ou saber


científico e o conhecimento ou saber narrativo. Sendo o conhecimento uma base
de elevação e avanço cultural, o conhecimento legitimado (o científico) dá mais
garantias do que o conhecimento que não se suporta em argumentos nem provas
(o narrativo). Com a pós-modernidade aparece um novo estatuto do conheci-
mento/saber e, com este, novas formas de acesso e de transmissão de conheci-
mentos/saberes, proporcionadas pelas novas tecnologias da informação (cf.
Sebastião, 2012, p. 66). O conhecimento/saber é o resultado de interpretações
sobre o mundo. Mas o conhecimento/saber narrativo da pós-modernidade é do-
minado pelos media e pelas tecnologias da informação que definem o que é real.
Assim, a pós-modernidade caracteriza-se por uma crise do conhecimento racio-
nal, da representatividade e da legitimação.
Como causas da pós-modernidade, indicam-se inter alia:
a) A internacionalização do comércio e dos negócios.
b) A abertura e proliferação de grandes superfícies comerciais.
c) Os sucessivos incentivos ao consumo generalizado.
Sociologia da Comunicação
305

d) O desenvolvimento dos meios de comunicação social, que difundem


valores materiais e incentivos ao consumo.
e) A banalização da utilização dos conteúdos com maior exposição às in-
fluências de massa.

Lyotard sustenta que as recentes transformações sociais, agora mais vo-


cacionadas para a materialidade e o consumo, significaram a transição de socie-
dades assentes em valores inspirados pela Revolução Francesa para ideais mais
individualistas, efémeros e consumistas. Num quadro teórico da sociologia com-
preensiva e interpretativa (perspectiva crítica da sociedade e do ser humano),
Lyotard considera que entrámos na designada sociedade pós-moderna ou na era
da pós-modernidade (ou “hipermodernidade”, para Lipovetsky), considerando as
seguintes características da sociedade pós-moderna:
– Presença omnipotente dos media e dos dispositivos de multimédia.
– Invasão da esfera social e pessoal.
– Programas e conteúdos fúteis, como os reality shows e outros flashes da
vida moderna transmitidos ao vivo para todo o mundo.
– Espetacularização do discurso dos media para atrair a atenção das au-
diências.
– Directos televisivos, por exemplo, como lógica de simulação da realidade.
– Fantasias e ficções difundidas pelos media essencialmente para quem
não encontra satisfação com a sua realidade.
– Saturação informativa a uma velocidade vertiginosa.
– Procura das massas por marcas distintivas em função do que se con-
some e exibe, conduzindo ao hedonismo.
– Overdose de debates e de informação exaustiva sobre os mesmos acon-
tecimentos, em todos os media, esvaziando as ideologias e banalizando
os acontecimentos, tornando as ideias repetidas nos discursos (a forma
sobrepõe-se ao conteúdo).
– A cultura pós-moderna cultiva o pastiche, misturando velhos e novos
tempos.

Neste cenário, o sistema capitalista contribui para as transformações so-


ciais, nomeadamente ao nível dos estilos de vida e de consumo. Mas, o que é o
capitalismo? É um conceito do início do século XIX, adquirindo uma acepção cada
vez mais negativa ao longo desse século. O capitalismo222 designa uma certa or-

222
O termo “capitalismo”, entendido para descrever um sistema económico, social e político, surgiu
em 1860, segundo Hobsbawm (cf. 1982, p. 17).
Paulo M. Barroso
306

ganização das actividades económicas. Sendo um conceito lato, abrange vários


sentidos:
– Sentido 1: apropriação privada dos meios de produção, acompanhada
por uma separação entre os detentores do capital e o trabalho indispen-
sável à sua activação.223
– Sentido 2: o capitalismo é compreendido como uma economia de mer-
cado, em que os produtores e os consumidores se encontram em mer-
cados regulados, para inúmeras trocas e partilhas de bens, serviços e
negociações.
– Sentido 3: sociedade estruturada com o objectivo prioritário de aumen-
tar indefinidamente a produção e o consumo de bens e de serviços, num
crescimento sem fim e tornado possível pelo desenvolvimento científico
e técnico, que permite aumentar a eficácia do aparelho de produção,
oferecer preços relativos cada vez mais baixos e alargar o círculo do con-
sumo a públicos cada vez mais numerosos e menos satisfeitos.

Por conseguinte, a ideia de pós-modernidade, popularizada por Lyotard


em A condição pós-moderna, remete para a representação de um mundo que já
não acredita no progresso, na ciência, na razão nem no futuro. O pós-moderno é
sinónimo de desilusão, do fim das meta-narrativas da modernidade sobre a vir-
tude do progresso.

12.8. Lipovetsky: da pós-modernidade à hiper-modernidade


As transformações sociais e culturais recentes e/ou em curso, assentes em
questões materialistas e consumistas subjacentes a uma lógica económica de
mercado liberal, suscitam interesse sociológico e envolvem vários aspectos e di-
mensões da vida humana. Uma das visões críticas sobre essas transformações é
proposta por Lipovetsky. Segundo este sociólogo, verifica-se actualmente uma
transição para a hiper-modernidade. A estrutura social modifica-se e as relações
entre as pessoas também. A normalização social já não tem o peso do passado
na indicação de cada um na ordem social, levando o indivíduo a perder a sua
noção de dever e a derivar “entre os constantes apelos ao consumo e ao prazer”
(Sebastião, 2012, p. 94). Por isso, para Lipovetsky são sociedades hiper-consumis-
tas, hiper-hedonistas e hiper-narcisistas, próprias de uma época que começou a
emergir a partir da década de 1980.

223
A este sentido 1 contrapõe-se o denominado anti-capitalismo, que visa eliminar a separação
entre os possidentes e o proletariado, permitindo a todos os trabalhadores de uma unidade de
produção tornarem-se os proprietários colectivos do seu capital e transferindo para o Estado a
propriedade de todo o capital de um país.
Sociologia da Comunicação
307

O pecúlio literário de Lipovetsky é poligráfico. Destacam-se, nomeada-


mente, as seguintes obras nos anos de publicação e nos títulos originais em
francês: L’ère du vide: Essais sur l’individualisme contemporain (1983); L’empire de
l’éphémère: La mode et son destin dans les sociétés modernes (1987); Le crépuscule du
devoir (1992); Les métamorphoses de la culture libérale: Éthique, médias, entreprise
(2002); Le luxe éternel: De l’âge du sacré au temps des marques (com Elyette Roux)
(2003); Les temps hypermodernes (2004); Le bonheur paradoxal: Essai sur la société
d’hyperconsommation (2006); La société de déception (2006); L’écran global: Cultures-
médias et cinéma à l’âge hypermoderne (com Jean Serroy) (2007); La culture-monde:
Réponse à une société désorientée (com Jean Serroy) (2008); L’occident mondialisé:
Controverse sur la culture planétaire (com Hervé Juvin) (2010); L’esthétisation du
monde: Vivre à l’âge du capitalisme mondialisé (2013).
De um modo geral, Lipovetsky dedica-se à análise crítica das sociedades
hiper-modernas, como o próprio designa, i.e. profundamente transformadas. Para
este autor, o diagnóstico que faz às sociedades actuais (do excesso) indica os se-
guintes aspectos:
– Consumismo exagerado (sociedades do hiper-consumo) e apelos cons-
tantes ao consumo de todos os géneros de produtos, bens, serviços e
marcas, independentemente das necessidades dos consumidores.
– Procura prioritária da satisfação dos prazeres (sociedades hedonistas).
– Foco nos interesses particulares e individualistas como forma de pro-
jecção social (sociedades narcisistas).
– Secundarização da normatividade social (sociedades do pós-dever).
– Perda de valores, ideais e referências (sociedades do vazio e desorienta-
das).
– Novas práticas de relacionamento social centradas nas necessidades
pessoais (sociedades em rede).
– Novos usos e costumes em torno da imagem e dos dispositivos que as
apresentam e partilham (sociedades e culturas do ecrã).
– Preocupação em estar numa moda global (sociedades fun e culturas-
mundo).

Para Lipovetsky, a característica mais marcante das sociedades actuais e a


que o autor mais critica é o consumismo exacerbado. Este consumismo, que para
Lipovetsky é já um hiper-consumismo, acarreta os outros aspectos definidores
das sociedades, que são problemas sociais, alguns aparentemente divorciados da
prática de consumo, como é o caso da felicidade. Em A felicidade paradoxal: Ensaio
sobre a sociedade do hiperconsumo, Lipovetsky reconhece que “nem os protestos
ecologistas, nem as novas versões de consumo mais sóbrio bastarão para des-
tronar a crescente hegemonia da esfera do mercado, para fazer descarrilar o TGV
Paulo M. Barroso
308

consumista” (Lipovetsky, 2010, p. 15). É o início de uma nova fase do capitalismo


de consumo, própria de uma sociedade do hiper-consumo que conduz, precisa-
mente, a uma felicidade que é paradoxal.
A felicidade paradoxal é peculiar do homo consumericus, espécie de turbo-
consumidor distante, móvel e flexível. Para esta felicidade paradoxal, viver me-
lhor corresponde a uma paixão colectiva (das massas). O objectivo supremo das
sociedades democráticas é a melhoria exaltada das condições materiais de vida,
o que define esta nova fase do capitalismo.
De uma economia centrada na oferta, transitamos para uma economia
centrada na procura. Impõe-se a política de marca: criação de valor para o cliente
e sistemas de fidelização. É neste âmbito transformacional que Lipovetsky refere
as três fases do consumo de massa:
1. Revolução fordiana de produção em série ou fabricação de produtos
não diferenciados em grande quantidade: peças padronizadas e traba-
lhador especializado (cf. Lipovetsky, 2010, p. 23).
2. Democratização do consumo, excesso de mercadorias e multiplicação
de marcas (cf. Lipovetsky, 2010, p. 26).
3. Individualização dos produtos e apelo ao consumo assente numa espé-
cie de marketing etéreo (cf. Lipovetsky, 2010, pp. 31-41), visível em de-
terminados slogans publicitários.

Todavia, o apelo sistemático ao consumo cria frustrações, quer aos reais


consumidores (que querem sempre mais e experimentar produtos diferentes)
quer aos potenciais consumidores (que desejam sem poder de compra). Em A fe-
licidade paradoxal: Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo, Lipovetsky afirma:
“É claro que o snobismo, a vontade do indivíduo de brilhar, de se diferenciar, de
exibir determinada posição não desapareceu, mas o principal motivo a sustentar
o tropismo para marcas superiores deixou de ser o desejo de reconhecimento social:
hoje em dia, o objectivo é sobretudo o prazer narcisista de sentir uma distância re-
lativamente ao comum, usufruindo de uma imagem positiva de nós próprios e para
nós próprios. Os prazeres elitistas não se evaporaram, mas restruturaram-se atra-
vés da lógica subjectiva do neo-individualismo; o indivíduo cria satisfações para si
próprio, e não tanto para conquistar a admiração e a estima dos outros. Já não se
trata de ‘impor’ uma imagem aos outros, mas de confirmar o seu valor aos seus
próprios olhos, de estar, nas palavras de Veblen, ‘satisfeito consigo próprio’. […]
‘L’Oréal porque eu mereço’. Nos nossos dias, o entusiasmo pelas marcas alimenta-
se do desejo narcisista de gozar o sentimento íntimo de se ser uma ‘pessoa de qua-
lidade’, de nos compararmos aos outros achando-nos em vantagem, de sermos
melhores que as massas, sem nos importarmos com a aprovação dos outros ou
com o desejo de lhes provocar inveja. […] Em primeiro lugar, muitas campanhas
abandonam a estratégia do elogio repetitivo do produto, privilegiando o especta-
cular, o lúdico, o humor, a surpresa e a sedução dos consumidores. A publicidade
designada como ‘criativa’ é a expressão dessa mudança. O que se pretende já não
é vender um produto, mas sobretudo um modo de vida, um imaginário, valores ca-
Sociologia da Comunicação
309

pazes de desencadear uma emoção: o objectivo da comunicação é cada vez mais


criar uma relação afectiva com a marca. A finalidade da persuasão comercial
mudou: já não basta inspirar confiança, divulgar e fazer memorizar um produto –
é preciso mitificar a marca e fazer o consumidor apaixonar-se por ela. As estratégias
mecanicistas deram lugar a estratégias emocionalistas que vão ao encontro do in-
dividualismo experiencial. Por outro lado, tal como os mercados são cada vez mais
segmentados, também a publicidade desdobra as suas campanhas fragmentando-
se em execuções múltiplas e estilos diversificados. À publicidade repetitiva sucede
uma publicidade baseada na criatividade e na renovação frequente de campanhas,
de modo a captar a atenção do hiper-consumidor ‘céptico’, saturado de mensagens.
Hoje, os anúncios publicitários devem ser renovados todos os seis ou oito meses.
A Coca-Cola apresentou 17 anúncios em 1997, contra um único em 1986. Desde
1995, a Levi’s lança 2 a 3 anúncios por ano. Existem 500 anúncios Absolut Vodka
que combinam unidade e diferença. O que se verifica na comunicação aplica-se
igualmente aos produtos e serviços: rapidez e variedade impõem-se como os novos
princípios das hiper-marcas. Assistimos, não a um totalitarismo publicitário, mas
a uma hiper-publicidade espectacular e distanciada, onírica e cúmplice; hiper-pu-
blicidade irónica que olha para si própria, brinca consigo mesma e com o consu-
midor. Impõe-se uma nova era da publicidade que, baseando-se nos princípios da
moda (mudança, fantasia, sedução), está em sintonia com o comprador emocional
[…].” (Lipovetsky, 2010, pp. 41, 81-82).

Se, nos finais do século XIX, Thorstein Veblen entendia o consumismo e o


hedonismo como sinais de posição social para quem pode, na época contempo-
rânea esta prática de consumo e de lazer generalizou-se, porque os modelos so-
ciais são substituídos por condutas individuais, ao ponto de se transformar uma
preferência e uma possibilidade para todos na actual “era do vazio” que é própria
de Narciso (Lipovetsky, 2010, p. 41). O snobismo, o desejo de ser célebre e a so-
breposição social adaptam-se, agora, ao narcisismo diferenciador dos demais e
às satisfações neo-individualistas.
Lipovetsky refere-se a uma degradação da qualidade das relações sociais
com o predomínio dos interesses económicos, comerciais e consumistas. A so-
ciabilidade entra em crise, tal como as próprias formas e meios de comunicabi-
lidade:
“A ordem despótica do consumo é precisamente aquela que institui a unilaterali-
dade da comunicação, uma relação social abstracta que impede toda a forma de
reciprocidade entre os seres: a televisão é, assim, ‘a garantia de as pessoas já não
se falarem, de ficarem definitivamente isoladas face a uma palavra sem resposta’.
A problemática da dessocialização sistemática reforçou-se ainda mais com o de-
senvolvimento das redes e das novas tecnologias da informação que substituiriam
progressivamente a antiga vida em sociedade pelas interacções virtuais. Estudos
efectuados revelam que a utilização da Internet ‘diminui o círculo das relações so-
ciais próximas e distantes, aumenta a solidão, diminui ligeiramente o nível de apoio
social’: em 2001, dos 13 milhões de adolescentes americanos, 2 milhões preferiam
comunicar com os amigos através da rede do que presencialmente. O futuro seria
um mundo de comunidades virtuais, com a consequente destruição da comunidade
real, do contacto directo, da ligação colectiva.” (Lipovetsky, 2010, p. 123).
Paulo M. Barroso
310

Na linha de pensamento de Lyotard, também Lipovetsky apresenta uma


abordagem crítica sobre estas sociedades transformadas, mas principalmente
sobre os excessos do individualismo e do consumismo. Segundo a crítica de Li-
povetsky às sociedades dos excessos, hoje há demasiado de tudo. O excesso é
mais uma pletora, i.e. um mal-estar ou desconforto social causado pelos excessos
de tudo. Daí a utilização do prefixo “hiper” por parte de Lipovetsky para carac-
terizar as sociedades contemporâneas. O problema também se deve à transfor-
mação das sociedades pelo consumo, que adulterou a noção de cultura. A cultura
deixou de ser elitista e passou para uma cultura-mundo, que unifica/uniformiza
as sociedades, por um lado, e industrializa todas as actividades (desde a moda
ao turismo), pois tudo obedece às leis da economia, ou seja, tudo tem de ser ren-
tável. Já não se vendem produtos; vende-se um estilo de vida. São sociedades as-
sentes num sistema de paradoxos.

12.8.1. Era do vazio e hiper-modernidade


Desde 1983, ano da publicação da obra A era do vazio: Ensaios sobre o indi-
vidualismo contemporâneo, que Lipovetsky insiste na convicção de que um novo
tipo de individualismo se afirma gradualmente ao ponto de hoje se manifestar
como uma evidência. Lipovetsky diagnostica uma preocupação exclusiva do indi-
víduo apenas consigo mesmo, uma afirmação do Eu que se alarga a fenómeno so-
cial. Acompanha o individualismo crescente a ausência de sistemas de referência
capazes de enquadrarem e orientarem o indivíduo e as sociedades, ou seja, há um
vazio de valores, ideais e referências. É um vazio de referências estruturantes.
Segundo Lipovetsky, a actualidade caracteriza-se pelo “vazio”. Mas não
chega a haver um vazio absoluto ou um desinteresse absoluto, i.e. um niilismo
nietzscheano. O problema é que as pessoas se mobilizam em função dos seus in-
teresses em vez de, quotidianamente, se envolverem pelo simples dever de cida-
dania. O quadro teórico em que se insere Lipovetsky e as suas abordagens é o da
sociologia compreensiva e interpretativa, uma perspectiva crítica das sociedades
contemporâneas.
Além de ser um livro crítico (mas não apocalíptico), A era do vazio: Ensaios
sobre o individualismo contemporâneo é também admoestativo relativamente ao
rumo contraditório e desorientado em que as sociedades e as culturas do con-
sumo estavam (em 1983) e ainda estão. Esta obra, bem como outros livros publi-
cados posteriormente por Lipovetsky, não apenas segue a mesma linha crítica e
preocupante sobre os efeitos das transformações (a todos os níveis) da moderni-
dade, como também aprofunda essa linha, ao ponto de agora o autor se referir à
hiper-modernidade. Para Lipovetsky, as marcas da modernidade estão exacerba-
das, i.e. tudo é excessivo e ultrapassa o limite do razoável.
Em A era do vazio: Ensaios sobre o individualismo contemporâneo, Lipovetsky
admoesta para os contornos consumistas que marcam as sociedades actuais:
Sociologia da Comunicação
311

“Que erro anunciar precipitadamente o fim da sociedade de consumo quando está


claro que o processo de personalização não cessa de ampliar suas fronteiras. A re-
cessão atual, a crise energética, a consciência ecológica não fazem dobrar os sinos
de finados da era do consumismo; estamos destinados a consumir cada vez mais
objectos e informações, esportes e viagens, formação e relações, música e cuidados
médicos. Isso é a sociedade pós-moderna; não além do consumismo, mas, sim, na
sua apoteose, na sua extensão até à esfera particular, até a imagem e o devir do
ego conclamado a conhecer o destino da obsolescência acelerada, da mobilidade,
da desestabilização. Consumismo da própria existência por meio da mídia multi-
plicada, dos lazeres, das técnicas relacionais, o processo de personalização gera o
vazio colorido, a flutuação existencial na e pela abundância de modelos, sejam eles
enfeitados pela convivência, pela ecologia, pela psicologia. Mais exactamente, es-
tamos na segunda fase da sociedade de consumo, que deixou de ser hot e se tornou
cool, consumismo que digeriu a crítica da opulência. Terminou a idolatria do ame-
rican way of life, dos triunfantes carros cheios de cromados, dos grandes astros e
dos sonhos de Hollywood; terminou a revolta beatnik, o escândalo da vanguarda.
Tudo isso deu lugar, diríamos, a uma cultura pós-moderna identificável por vários
detalhes: busca da qualidade de vida, paixão pela personalidade, sensibilidade eco-
logista, enfraquecimento dos grandes sistemas de sentidos, culto à participação e
à expressão, moda retrógrada, reabilitação do local, do regional, de certas crenças
e práticas tradicionais. Eclipse da bulimia quantitativa anterior? Isso mesmo, desde
que não se perca de vista que tais fenômenos são também manifestações do pro-
cesso de personalização, estratégias que agem para destruir os efeitos do moder-
nismo monolítico, o gigantismo, o centralismo, as ideologias duras, a vanguarda.”
(Lipovetsky, 2006, pp. xix-xx).

O vazio que Lipovetsky refere é também um vazio de sentido e de comu-


nicação/informação, apesar de a era do vazio ser um tempo de comunicação (não
comunicação de conteúdo, mas comunicação como forma de contacto):
“Assim como a idade moderna foi obcecada pela produção e pela revolução, a idade
pós-moderna é obcecada pela informação e pela expressão. Dizem que nos expres-
samos por meio do trabalho, dos ‘contatos’, do esporte, dos lazeres, de tal maneira
que logo não haverá uma só atividade livre do rótulo ‘cultural’. Isso já deixou de
ser um tema ideológico, trata-se de uma aspiração de massa cujo último avatar é
o extraordinário aumento das rádios livres. Somos todos DJs, apresentadores e ani-
madores: ligue na FM e será envolvido por uma onda de músicas, de mensagens
rápidas, de entrevistas, de confidências, de ‘discursos’ culturais, regionais, locais,
de bairro, de escola, de grupos restritos.” (Lipovetsky, 2006, p. xxiii).

Verifica-se uma democratização sem precedentes da palavra: todos são in-


centivados a falar ou a dar opinião sobre qualquer assunto. Esta admoestação de
risco tornou-se uma realidade concreta e rotineira com a apoteose do consumo
privado. Também existem repercussões desta época sobre a comunicação, ou seja,
a natureza, os actos e os conteúdos da comunicação também são afectados pela
era pós-moderna:
“Democratização sem precedentes da palavra: todo mundo é incitado a ligar para
a central telefônica, quer contar algo a partir de sua experiência íntima, ou pode
se tornar um locutor e ser ouvido. Isso vale tanto nesse caso como no dos grafites
Paulo M. Barroso
312

nas paredes de escolas ou no dos inúmeros grupos artísticos: quanto mais a gente
se expressa, menos há o que dizer; quanto mais a subjetividade é solicitada, mais
o efeito é anônimo e vazio. Este paradoxo é reforçado também pelo fato de que
ninguém, no fundo, está interessado nessa profusão de expressões, com uma ex-
ceção que deve ser levada em conta: o próprio eminente ou criador. Isso é, exata-
mente, o narcisismo, a expressão sem retoques, a prioridade do ato de comunicação
sobre a natureza do comunicado, a indiferença em relação aos conteúdos, a assi-
milação lúdica do sentido, a comunicação sem finalidade e sem público, o remetente
transformado em seu principal destinatário. Daí essa pletora de espectáculos, de
exposições, de entrevistas, de proposições totalmente insignificantes para qualquer
pessoa e que não levam em conta nem mesmo a ambiência; outra coisa está em
jogo: a possibilidade e o desejo de se expressar qualquer que seja a natureza da
‘mensagem’, o direito e o prazer narcisista de se manifestar a respeito de nada, por
si mesmo, mas retransmitido e amplificado por um meio de comunicação. Comu-
nicar por comunicar, expressar-se sem qualquer outra finalidade a não ser expres-
sar-se e ser ouvido por um micropúblico, o narcisismo revela, tanto aqui quanto
em outros aspectos, a sua convivência com a ausência de substância pós-moderna,
com a lógica do vazio.” (Lipovetsky, 2006, pp. xxiii-xiv).

A época contemporânea é a de Narciso, que é o símbolo da individualiza-


ção e da realização emocional individual, contemplador de si mesmo, desejoso
de ser jovem, belo e com saúde, mas abandonando os ideais e os interesses da
colectividade a que pertence. Narciso está absorto, atónito, estupefacto, entor-
pecido, tal como estão os indivíduos nas sociedades actuais de massas.224 Segundo
pode ler-se em A era do vazio: Ensaios sobre o individualismo contemporâneo:
“O laxismo se impõe ao moralismo ou ao purismo e a indiferença, à intolerância.
Absorvido demais por si mesmo, Narciso renuncia às militâncias religiosas, destitui
as grandes ortodoxias, suas adesões seguem a moda, são flutuantes e sem grande
motivação. Tanto aqui como em outros lugares, a personalização conduz ao desin-
vestimento do conflito, ao repouso. Nos sistemas personalizados, os cismas, as he-
resias já não têm sentido: quando uma sociedade ‘valoriza o sentimento subjetivo
dos atores e desvaloriza o caráter objetivo da ação’, aciona um processo de des-
substanciação das ações e doutrinas cujo efeito imediato é uma ‘descrispação’ ideo-
lógica e política. Neutralizando os conteúdos em benefício da sedução psi, o
intimismo generaliza a indiferença, coordena uma estratégia de desarmamento
nos antípodas do dogmatismo das exclusões.” (Lipovetsky, 2006, pp. 47-48).

Paradoxalmente, acentua-se o “individualismo colectivo”. Os indivíduos


agrupam-se e associam-se, porque são iguais, são todos Narciso, possuem os mes-
mos interesses, seguem os mesmos estilos de vida (práticas sociais e consumos
estandardizados), como nos grupos das redes sociais. As actividades, práticas e
consumos impessoais e objectivos tornam-se agora individualizados e subjecti-
vados. Segundo Lipovetsky (cf. 2006, p. 29), existe uma “deserção da res publica”
que dá lugar ao “advento do indivíduo puro, do Narciso em busca de si mesmo,

224
O nome de Narciso tem origem na palavra grega narkê (“entorpecido”), de onde também surge
a palavra “narcótico”.
Sociologia da Comunicação
313

obcecado por si mesmo e, assim sendo, susceptível de enfraquecer ou de desmo-


ronar a qualquer momento diante da adversidade que enfrenta desarmado, sem
força exterior”. Narciso é, portanto, o símbolo do tempo actual, um modelo de
indivíduo à procura de si mesmo e obcecado por si mesmo.

12.8.2. A época do pós-dever


Em O crepúsculo do dever: A ética indolor dos novos tempos democráticos, Li-
povetsky faz o diagnóstico das sociedades contemporâneas ocidentais, uma aná-
lise sociológica a incidir na questão moral. Considera que vivemos numa época
de pós-modernidade, uma época que se caracteriza por ser pós-moralista, porque
a moral religiosa tradicional foi rejeitada a favor de uma moral laica. Tem uma
perspectiva crítica da sociedade e da condição humana, seguindo uma aborda-
gem da precariedade do sistema de valores pós-moderno que sustenta as socie-
dades contemporâneas.
Lipovetsky defende que os valores não desaparecem, mas transformam-
se, porque a época do dever (da moral austera e das virtudes colectivas) terminou.
Estamos agora na época do pós-dever, porque procuramos uma moral pela qual
a realização pessoal orienta a cultura. Lipovetsky apresenta a tese de uma “nova
ética” mais preocupada com a prática da vida e a organização do quotidiano. Esta
“nova ética” seria aceitável, porque configuraria um equilíbrio entre a teoria e a
prática da vida ou entre o ideal e o possível.
Segundo Lipovetsky, as grandes ideologias da História e os grandes esque-
mas explicativos que marcaram a modernidade (e.g. nacionalismo, socialismo,
revolução, progresso) perderam importância no mundo contemporâneo. É a des-
confiança nas grandes ideologias da modernidade e nos progressos dos sistemas
filosóficos de Kant, Hegel ou Marx.
A problemática de O crepúsculo do dever: A ética indolor dos novos tempos
democráticos gira em torno do questionamento da actualidade, i.e. dos seus va-
lores sociais, princípios morais e padrões culturais. Através deste questiona-
mento, Lipovetsky constata, designadamente:
– O aprofundamento da lógica individualista, a cultura do narcisismo.
– O consumismo da condição moderna típica de um homo consumericus.
– A ausência de valores rígidos.
– Os excessos das sociedades (existe excesso de tudo, nomeadamente ex-
cesso de informações e excesso de opções de consumo).
– A falta de interesse geral em participar na esfera pública, devido à perda
de laços comunitários e de cidadania.

Em O crepúsculo do dever: A ética indolor dos novos tempos democráticos, a


questão moral predomina: o ser humano é um ser moral e ético mesmo sendo
individualista? Lipovetsky refere três idades éticas:
Paulo M. Barroso
314

1. Fase da secularização ética (1700-1950).


2. Idade do pós-dever (desde 1950).
3. Actualidade, o crepúsculo do dever.

Segundo O crepúsculo do dever: A ética indolor dos novos tempos demo-


cráticos:
“Como designar uma cultura onde a promoção dos direitos subjectivos deixa sem
herdeiro o dever dilacerante, onde o que é rotulado de ético é assumido como in-
vasor, usurpador, e de onde a exigência de compromisso está ausente? Sociedade
pós-moralista: entenda-se uma sociedade que repudia a retórica do dever austero,
integral, maniqueísta, e que, paralelamente, exalta os direitos individuais à auto-
nomia, ao desejo, à felicidade. Sociedade deslastrada, no seu âmago, das exortações
minimalistas, dando crédito apenas às normas indolores da vida ética. […] O pós-
dever não é sinónimo de sociedades em comunhão numa tolerância permissiva,
que aspiram apenas ao alargamento dos direitos individualistas […] O pós-dever
contribui, ao seu nível, para fragmentar, para dualizar as democracias, produzindo
simultaneamente normalização e anomia, mais integração e mais exclusão, uma
maior preocupação higienista e mais auto-destruição, mais horror pela violência e
uma maior banalização da delinquência, mais cocooning e mais sem-abrigo. […] A
era pós-moralista não deve convidar, nem ao sonho de uma ressurreição do dever
maximalista, nem às aberrações de uma ‘recuperação’ da ética; deve reafirmar a
primazia do respeito pelo homem, denunciar as armadilhas do moralismo, promo-
ver éticas inteligentes nas empresas, bem como na relação com o ambiente, favo-
recer soluções de compromisso, assentes nos princípios humanistas de base, mas
em consonância com as circunstâncias, com os interesses e as exigências de eficá-
cia.” (Lipovetsky, 2004, pp. 17-25).

A idade actual, a do crepúsculo do dever, surge como um imperativo de-


corrente de leis superiores, em que deixamos de reconhecer a obrigação e o dever
de nos ligarmos a qualquer coisa para além de nós próprios.
“A era da felicidade das massas celebra a individualidade livre, privilegia a co-
municação e multiplica as escolhas e as opções. […] A cultura da felicidade ‘leve’
induz uma ansiedade crónica de massa, mas faz desaparecer a culpabilidade
moral.” (Lipovetsky, 2004, pp. 64-66).

A época do pós-dever é a época das liberdades ou das individualidades li-


vres, da felicidade das massas, das multi-comunicações nas redes sociais e da
procura do mediatismo. Em O crepúsculo do dever: A ética indolor dos novos tempos
democráticos, Lipovetsky problematiza com pertinência vários aspectos:
– Se a cultura de auto-absorção individualista e do self-interest é, neste
momento, predominante, como explicar a aspiração colectiva à moral?
– Como podem os indivíduos, estando virados para si próprios e indife-
rentes tanto ao próximo como ao bem público, indignar-se, dar mostras
de generosidade, reconhecer-se na reivindicação ética?
Sociologia da Comunicação
315

– Quais são os efeitos da ausência de valores morais e de cidadania na


educação das pessoas, i.e. na aquisição de conhecimentos e de padrões
culturais?
– Os desenvolvimentos dos processos e técnicas de comunicação, bem
como o excesso de informações, impõem novos métodos de educação e
novas exigências às escolas?

O conceito de “pós-modernidade”, primeiramente apresentado por Lyotard


em A condição pós-moderna, suscita muitas discussões, abordagens e conceptua-
lizações. Sinónimo de “sociedade pós-industrial”, para alguns autores, e caracte-
rística de uma época de triunfo do espectáculo, do neo-liberalismo económico e
global, do capitalismo ou do consumismo, para outros autores, o conceito de
“pós-modernidade” e o entendimento sobre a sociedade pós-moderna tornaram-
se ambíguos e equívocos.
12.8.3. Cultura-mundo: o triunfo do capitalismo e do individualismo
A época contemporânea trouxe uma nova, moderna e inédita forma de
configuração das diferentes culturas e, de um modo geral, do mundo, pois a era
hiper-moderna transformou profundamente o relevo, o sentido, a superfície social
e económica da cultura, conforme reconhecem Lipovetsky e Serroy (2011, p. 7)
em A cultura-mundo: Resposta a uma sociedade desorientada. Esta cultura tornou-
se uma cultura-mundo, i.e. uma cultura-mundo do tecnocapitalismo planetário,
das indústrias culturais, do consumismo total, dos media e das redes digitais,
acrescentam Lipovetsky e Serroy. Esta cultura-mundo manifesta-se pela excres-
cência dos produtos, das imagens e da informação. É uma “espécie de hipercul-
tura universal que, transcendendo as fronteiras e confundindo as antigas
dicotomias (economia/imaginário, real/virtual, produção/representação,
marca/arte, cultura comercial/alta cultura), reconfigura o mundo em que vivemos
e a civilização por vir” (Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 7).
“A cultura-mundo designa a era da formidável ampliação do universo da comuni-
cação, da informação, da midiatização. O desenvolvimento de novas tecnologias e
das indústrias culturais e de comunicação tornou possível um consumo abundante
de imagens e, ao mesmo tempo, a multiplicação dos canais, das informações e das
trocas ao infinito. Eis a era do mundo hipermidiático, do cibermundo, da comuni-
cação-mundo, estágio supremo, mercantilizado, da cultura.” (Lipovetsky & Serroy,
2011, p. 10).

A cultura-mundo é um marco da contemporaneidade e do cosmopolitismo.


É uma cultura unificadora e aglutinadora, constituída por quatro grandes lógicas:
1. Hiper-capitalismo.
2. Hiper-tecnicização.
3. Hiper-individualismo.
4. Hiper-consumo.
Paulo M. Barroso
316

“O mundo hipermoderno, tal como se apresenta hoje, organiza-se em torno de qua-


tro polos estruturantes que desenham a fisionomia dos novos tempos. Essas axio-
máticas são: o hipercapitalismo, força motriz da globalização financeira; a
hipertecnicização, grau superlativo da universalidade técnica moderna; o hiperindi-
vidualismo, concretizando a espiral do átomo individual daí em diante desprendido
das coerções comunitárias à antiga; o hiperconsumo, forma hipertrofiada e expo-
nencial do hedonismo mercantil.” (Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 32).

Estas lógicas estão em constante interacção e estão presentes em todo o


mundo. É uma cultura-mundo porque o planeta é igual em todas as suas regiões.
As diferenças acentuadas do passado entre o Ocidente e o Oriente são agora di-
luídas pela cultura-mundo ou hiper-cultura, cujas peças essenciais são as indús-
trias culturais e o universo do ciberespaço (cf. Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 68).
Na China existem cidades similares às europeias, por exemplo. É o fenómeno da
mundialização na sua versão cultural, de forma ou estilo de vida, de modo de pen-
sar e conceber o mundo e de estar nesse mundo que é, cada vez mais, igual. A ló-
gica da rentabilidade absorve tudo, incluindo a arte (cf. Lipovetsky & Serroy, 2011,
p. 69). Uma marca comercial já não vende apenas um produto ou serviço; vende
uma cultura, um estilo de vida. “Estamos na época em que criar produtos já não
basta: é preciso criar uma identidade ou uma cultura de marca” (Lipovetsky & Ser-
roy, 2011, p. 95). Por isso, investe-se mais nas marcas225 do que nos produtos.
O mais importante não é o produto de consumo, a sua utilidade em satis-
fazer necessidades, mas o que este representa em termos de valores para a cul-
tura-mundo. Hoje há um novo capitalismo, para o qual não existe alternativa. O
capitalismo é a única e grande força motriz; funciona injectando sedução nas
pessoas e provocando-lhes desejo. No entanto, o capitalismo cria necessidades e
apela aos prazeres. Assim, renova-se o quadro dos valores e as referências da
vida. O capitalismo mudou: de um capitalismo da construção (produção industrial
em massa de tudo) para um capitalismo das marcas. Lipovetsky fala de um estado
massificado de hiper-consumo, caracterizado pelos excessos, nomeadamente o
excesso da escolha entre o que é igual ou semelhante.
A cultura-mundo não significa o fim da identidade cultural, do localismo
peculiar, do tradicional e único. Paradoxalmente, a cultura-mundo, segundo Li-
povetsky e Serroy, aproxima as sociedades permitindo que todas tenham as mes-
mas marcas e os mesmos produtos, mas também contribui para a diversificação
dos indivíduos (cf. Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 125). A cultura-mundo não im-
plica o desaparecimento das diferenças culturais, mas as tradições de consumo

225
Mais do que marcas, Lipovetsky e Serroy falariam de “hiper-marcas”, pois a cultura é uma cultura-
mundo, uma hiper-cultura, um hiper-mercado com hiper-consumidores. Na sociedade do
hiper-consumo, as marcas criam uma nova forma de cultura: a cultura de marcas globais. Assim,
“quem quiser dizer o que foram o século XX e o princípio do XXI deverá necessariamente dizer
Coca, Levi’s, Vuitton, Apple, Sony, Nike, Dior, Rolex…” (Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 99).
Sociologia da Comunicação
317

mudaram. O excesso que caracteriza todas as dimensões da sociedade também


está presente nas liberdades de escolha das pessoas. Hoje, os indivíduos são mais
livres de escolher no excesso de tudo da cultura-mundo. A consequência da cul-
tura-mundo é o individualismo e a individualização crescentes.
Para Lipovetsky, a cultura-mundo faz aumentar a desorientação, torna as
sociedades desorientadas, sem pilares sólidos de sustentação. Na cultura-mundo,
que é uma cultura de excessos, também há o excesso de informação e o excesso
de informação errada ou falsa, incompleta ou contraditória. O mesmo acontece
com a comunicação: há excesso de meios e de técnicas de comunicação, mas fala-
se pouco. Paradoxalmente, estamos mais isolados. Antigamente, vivia-se em al-
deias onde todas as pessoas se conheciam. Hoje, as aldeias são globais, como
defende McLuhan. São aldeias mediáticas inseparáveis de uma nova forma de
cultura moderna, cujo modelo é dado pela televisão.
“Desde os anos 1960-70, a televisão se impõe como o modelo dominante das mídias
de massas, comunicando a um conjunto indiferenciado de indivíduos os mesmos
conteúdos recebidos no mesmo instante. Simultaneamente, a nova mídia trans-
forma o próprio mundo em informação: daí em diante, é pela imagem na tela que
o mundo existe e que os homens o conhecem como ele se dá a ver, com a visão, a
hierarquia, a forma, a força que a imagem lhe confere.” (Lipovetsky & Serroy, 2011,
pp. 75-76).

A televisão transforma o mundo, concluem Lipovetsky e Serroy. Com a te-


levisão, apenas existe o que é visto na televisão e pelas massas, pois a televisão
é o meio das massas. “É o triunfo da sociedade da imagem e de seus poderes”
(Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 76). A televisão é um meio que se abre para o
mundo enquanto o transforma.

12.8.4. Ecrã global


Com a passagem do tempo e as transformações nas sociedades, as tecno-
logias têm-se desenvolvido e permitido o surgimento de dispositivos mais efica-
zes, móveis (portáveis), digitais e globais de comunicação. É o caso do ecrã,
técnica de exibição de imagens presente em vários meios, como a televisão, o te-
lefone, a máquina fotográfica ou o computador. Em A cultura-mundo: Resposta a
uma sociedade desorientada, Lipovetsky e Serroy (cf. 2011, p. 76) admitem que,
com a proliferação de ecrãs a partir dos anos 1980-90, o mundo tornou-se hiper-
mundo. Os ecrãs substituem-se enquanto se aprimoram: do cinema à televisão
e, depois, ao computador, o ecrã torna-se individual, portátil, digital e omnipre-
sente. É o resultado da revolução digital alimentada pela internet. São ecrãs mul-
tiformes, que fazem um mundo de ecrãs e transformam o homo sapiens em homo
ecranis (cf. Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 77). É a passagem da era dos mass media
da comunicação unilateral e centralizada (modelo vertical da cultura dos media)
à era dos self media da comunicação interactiva e descentralizada (modelo hori-
Paulo M. Barroso
318

zontal da cultura dos media), baseados na utilização partilhada da rede, i.e. uma
cultura “de todos para todos”.
Em O ecrã global: Cultura mediática e cinema na era hipermoderna, Lipo-
vetsky e Serroy reconhecem que:
“Em meio século passámos do ecrã-espectáculo ao ecrã-comunicação, do ecrã-único
ao tudo-ecrã. Durante muito tempo, o ecrã-cinema foi único e incomparável; hoje
perde-se numa galáxia cujas dimensões são infinitas: eis a época do ecrã global. O
ecrã em qualquer lugar e em qualquer momento: nas lojas e nos aeroportos, nos
restaurantes e nos bares, no metro, nos carros e nos aviões; o ecrã de todas as di-
mensões, o ecrã liso, o grande ecrã e o mini-ecrã móvel; o ecrã sobre si, o ecrã con-
sigo; o ecrã onde se faz tudo e onde se vê tudo. Ecrã vídeo, ecrã miniatura, ecrã
gráfico, ecrã portátil, ecrã táctil: o século que se anuncia é o do ecrã omnipresente
e multiforme, planetário e multi-mediático.” (Lipovetsky & Serroy, 2010, p. 10).

O ecrã global representa várias implicações, nomeadamente a de se referir


a um novo domínio planetário do ecrã, que Lipovetsky e Serroy (cf. 2010, p. 22)
designam por estado-ecrã generalizado. Este estado é devido às novas tecnolo-
gias de informação e comunicação que produzem e cultivam imagens em excesso.
Segundo Lipovetsky e Serroy (cf. 2010, p. 73), passamos de uma era do vazio para
uma “era da saturação, da demasia, do superlativo de tudo”, à semelhança da
sociedade hiper-moderna que se distingue por uma “proliferação de fenómenos
hiperbólicos (portáveis e digitais, urbanos e artísticos, biotecnológicos e consu-
mistas)”.
Em O ecrã global: Cultura mediática e cinema na era hipermoderna, Lipo-
vetsky e Serroy reconhecem que ocorreu uma enorme explosão dos ecrãs. Nos
últimos anos, correspondendo ao apogeu da internet, testemunhámos uma au-
têntica revolução coperniciana que alterou a nossa maneira de estar no mundo.
Hoje existe uma espécie de alienação subjectiva, pois o ecrã é criado como uma
interface que comunica com o mundo, fornecendo incessantemente informações.
“A rede ecrãnica transformou os nossos modos de vida, a nossa relação com a in-
formação, o espaço-tempo, as viagens e o consumo: tornou-se um instrumento de
comunicação e de informação, um intermediário quase inevitável na nossa relação
com o mundo e com os outros. O ser é, cada vez mais, ser ligado ao ecrã e interco-
nectado nas redes.” (Lipovetsky & Serroy, 2010, p. 251).

Os ecrãs tornam as sociedades mais propensas às práticas visuais e aos


modos de vida mais espelhados nas imagens. Os ecrãs transformam as relações
humanas e, por constituírem mecanismos fáceis e simples de difusão de infor-
mações, são adoptados como dispositivo técnico privilegiado de comunicação.
Melhor do que uma tradicional ligação telefónica entre duas pessoas distantes e
que não se vêem há muito tempo, é uma videochamada telefónica, com o acrés-
cimo da imagem dos interlocutores.
Qual é a relação dos ecrãs com o individualismo que vários sociólogos cri-
ticam nas sociedades contemporâneas? Os ecrãs reproduzem imagens, mostram
Sociologia da Comunicação
319

ostensivamente e são mais eloquentes, objectivos e compreensíveis, de um modo


imediato e inequívoco, do que as palavras. Quando as informações partilhadas
são predominantemente pessoais e por meio dos ecrãs, preconiza-se um culto
da imagem do Eu, práticas de cuidado com a imagem pessoal e, nas redes sociais,
práticas de culto da própria imagem. O Eu torna-se uma estrela, um Eu mediato,
celebrado e contemplado na imagem.
“A era da celebridade para todos anunciada por Warhol chegou. Com seu quinhão
de vazio: ser conhecido por nada, a não ser por ser conhecido, como se descobriu
na França com os primeiros participantes do Loft, que se tornaram conhecidos sem
nenhum talento particular, a não ser o de se tornarem conhecidos” (Lipovetsky &
Serroy, 2011, p. 85).

Tal como o Loft Story (reality show da televisão francesa), o Big Brother (com
edições em muitos países), os talk shows populares desde os anos 1980 (como
aquele onde Vivienne falou da sua intimidade sexual para milhões de especta-
dores) ou An american family, reality show de 1973 com a família Loud, muitos
projectos de entretenimento tornaram-se moda neste formato de mera exibição
e curioso voyeurismo da vida privada de pessoas comuns. Este formato popula-
riza os participantes só por aparecerem na televisão, pois suscita muita audiência
devido ao espectáculo e sensacionalismo associado às imagens transmitidas em
directo sobre a intimidade alheia.
Em Fevereiro de 1968, quando Andy Warhol apresentou a sua primeira
exposição retrospectiva internacional na galeria Moderna Museet, em Estocolmo,
a sua obra já simbolizava uma emergente sociedade de massas. Warhol escreveu
no catálogo de apresentação da exposição o slogan/manifesto artístico “15
minutos de fama” a que, segundo o artista, todos teriam direito (cf. Harris, 2010,
p. 217). Nas actuais sociedades e culturas de massas, este slogan/manifesto apela
a um tempo sem imanência, sem presente nem duração. O slogan/manifesto ou
mera provocação de Warhol sobre a fama desbragada almejável por todos
compreende a instantaneidade mediática que hoje, mais do que nas décadas de
1960-70, caracteriza os discursos mediáticos de massas. O sentido da expressão
de Warhol parece residir na leitura crítica que o próprio fez de uma sociedade
massificada e emergente de há cerca de 50 anos, altura em que, precisamente,
começou a intensificar-se o fenómeno tecnológico, social e global da modernidade
quer das sociedades quer dos meios, técnicas, modos e processos de comunicação
digital.
“As celebridades são indivíduos que são notáveis pela sua identidade nos
media” (Hartley, 2004, p. 39). Apesar da celebridade se distinguir da “estrela”
(como as de Hollywood), o campo dos media está subjacente à ideia de “celebri-
dade instantânea”. Hoje, temos celebridades em todas as áreas e já não apenas
no cinema de Hollywood (cf. Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 81). Qualquer pessoa
pode viver como uma celebridade e estar sob a égide do espectáculo, i.e. viver
Paulo M. Barroso
320

como nos filmes e cumprir o sonho do cinema, que é o triunfo do espectáculo.


Hollywood representa a possibilidade de viver o sonho no ecrã como uma estrela.
Alarga-se o processo do star-system em todos os domínios e além do cinema. Deste
modo, não é o cinema que imita a vida; é a vida que imita o cinema, porque todos
querem ser estrelas, vedetas, famosos e reconhecidos.
Por exemplo, o turismo é uma representação do sonho do cinema. Viaja-
se para registar em imagens e partilhar nas redes sociais experiências massifica-
das de viagens que se configuram como especiais. Nas Páginas íntimas e de
auto-interpretação, Fernando Pessoa (s.d., p. 66) considera que “a celebridade é
um plebeísmo”, salientando o carácter popular da celebridade, i.e. a popularidade
que forma a celebridade.
Em Choque do futuro, Toffler prevê o surgimento da celebridade instantâ-
nea nas sociedades desenvolvidas e modernizadas:
“Numa sociedade em que a comida instantânea, a instrução instantânea e até as
cidades instantâneas são fenómenos quotidianos, não há produto que seja mais
rapidamente fabricado nem mais implacavelmente destruído do que a celebridade
instantânea. As sociedades em marcha para o superindustrialismo apresentam um
grande aumento de produção destas mercadorias ‘psico-económicas’. As celebri-
dades instantâneas explodem na consciência de milhões como uma bomba de ima-
gens – e na realidade são isso mesmo.” (Toffler, 1970, p. 153).

O mundo está em permanente transformação. Nas últimas duas décadas,


as transformações são mais aceleradas e, no campo cultural, essas transforma-
ções foram e ainda são em termos quantitativos e qualitativos, com a transição
das culturas locais, com identidades peculiares, história e tradição, em culturas
globais, populares, visuais. Lipovetsky designa-as por “culturas do ecrã”, preci-
samente devido a alguns aspectos:
– Proliferação e banalização de ecrãs, que passam a estar em todo o lado
(é o ecrã global), uma coexistência de ecrãs (cinema, publicidade, tele-
visão, internet, etc.).
– Banalização de imagens que alimentam os ecrãs.
– Banalização da vida privada que alimenta as imagens (o banal torna-se
público), do pessoal e privado passa-se para o impessoal e público.
– Necessidade de uma (re)educação do olhar para o ecrã global (nova ico-
nofilia).
– Com as redes sociais, passamos de cidadão-espectador a cidadão-actor,
protagonistas da própria vida e do que se vê e consome nos meios de
comunicação, vivendo o sonho do cinema no ecrã.
– Virtualidade da vida e das experiências sociais e interacções comunica-
cionais, mediante o culto da imagem virtual (ascensão das relações vir-
tuais sobre as relações pessoais).
Sociologia da Comunicação
321

– “Destradicionalização” de comportamentos (individualização).


Importa, por conseguinte, questionar e reflectir sobre os efeitos da proli-
feração e da banalização de ecrãs sobre a democracia e a nova configuração vir-
tual do espaço público, i.e. aferir se os ecrãs beneficiam ou prejudicam a
democraticidade e participação na esfera pública, bem como a elucidação e for-
mação integral da opinião pública.
Em O ecrã global: Cultura mediática e cinema na era hipermoderna, Lipo-
vetsky e Serroy demostram a importância do ecrã nas culturas actuais da hiper-
modernidade: ecrãs gigantes, luminosos, informativos, interactivos, tácteis, etc.
Se os ecrãs estão em todo o lado e se se apresentam como formas de um pensa-
mento colectivo, propõem ou impõem estilos de vida e modos de pensar e ver o
mundo, tendendo a transformar os indivíduos e os seus modos independentes e
críticos de pensar, sentir e agir. Os ecrãs são como telas de cinema pelas quais
vemos o mundo como se fosse cinema; funcionam como lente inconsciente.
As sociedades contemporâneas estão dominadas pelo imperativo da co-
municação. Segundo Juremir Machado da Silva, na apresentação da edição brasi-
leira do livro A sociedade da decepção, de Lipovetsky, estamos na era dos media e
da mediatização da vida, mesmo a privada. As novas tecnologias de comunicação
e informação invadem a esfera privada e geram uma obsessão pela interactivi-
dade, como se fosse imperioso estar sempre conectado. As esferas do privado e
do público confundem-se. Cada vez mais as pessoas querem ser protagonistas e
contar a sua vida privada na rede (e.g. através de blogues ou redes sociais), ex-
plorando os mecanismos de exposição sobre o que antes era reservado à família
e ao domínio privado.
Em A sociedade da decepção, Lipovetsky refere:
“Desde a década de 1960, os situacionistas fizeram coro, denunciando o isolamento
dos seres e a ‘comunicação sem interlocução’ suscitada pelos meios de comunicação
de massa. Hoje, o sociólogo norte-americano Jeremy Rifkin pergunta se o espírito
de comercialização que assola todos os modos de vida não leva à atrofia do instinto
de sociabilidade, do poder das afinidades naturais, enfim, de todos os sentimentos
que existem no homem. Há quem afirme que a hipertrofia do consumismo mer-
cantil, do influxo dos media e da cibernética arruinaram o trato directo entre as
pessoas, assim como o cultivo da sociabilidade.” (Lipovetsky, 2007, p. 54).

No âmbito de uma sociologia da mediação (ou sociologia dos ecrãs, de


Roger Silverston), interroga-se o papel dos ecrãs e da mediação nas sociedades
contemporâneas. Propõe-se a necessidade de uma sociologia dos ecrãs decorrente
do papel central da televisão nos processos de comunicação nas sociedades ac-
tuais. A institucionalização dos ecrãs como suporte de todas as formas mediadas
de comunicação suscita indagações sociológicas, porque o ecrã é o elemento pri-
vilegiado da mediação comunicativa.
Pensa-se o ecrã como objecto material e produto tecnológico, mas também
e essencialmente como objecto social e simbólico, “como o foco não apenas de
Paulo M. Barroso
322

uma série de práticas de comunicação, mas também como parte da cultura da


habitação, privada e doméstica” (Cardoso, 2013, p. 16). O ecrã em rede (através
da internet) é o foco de uma série de práticas interactivas de comunicação, i.e. de
produção e de consumo de informações partilhadas, em que o centro comunica-
cional se desloca da audiência passiva dos media para o participante e utilizador
dos media.
A internet é um cilindro-compressor: nivela (uniformiza) todos os conteú-
dos e todas as pessoas face às modas e práticas sociais. Uma vantagem da internet
é a democratização das sociedades (cf. Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 182), pois a
internet está acessível a todos (como canal de comunicação e divulgação) e todos
podem fazer uso da internet. O Facebook, por exemplo, funciona como meio aces-
sível aos cidadãos para os governos de todo o mundo, presidências da república
e instituições político-sociais divulgarem conteúdos. É como uma participação
“obrigatória”.
Para Lipovetsky, o Facebook é um auto-retrato de identidade erotizada do
seu utilizador, que passa de mero espectador a actor; aumenta o narcisismo, onde
se expõem gostos e preferências pessoais, actividades corriqueiras. As pessoas
permitem-se definir e redefinir os seus conceitos sobre si mesmas; é um processo
fácil de “auto-definição” que consiste também numa forma de auto-motivação.
Nas redes sociais, cada utilizador possui um retrato público que é cons-
truído, reconstruído e mantido todos os dias. Nota-se uma certa avidez pela no-
toriedade por parte dos cidadãos comuns. Todos falam de si e para todos em
permanência e sobre todos os assuntos banais. É como a construção de um “Eu
social”, a criação de uma identidade a partir de perfis estereotipados; a formação
de identidades erotizadas pelo hedonismo.

12.8.5. Sociedade paradoxal


Para Lipovetsky, as sociedades contemporâneas assentam num sistema de
paradoxos, são contraditórias, estão desorientadas e marcadas pela globalização.
Os comportamentos sociais são de procura de satisfações imediatas e prazeres
efémeros e superficiais, através de práticas sociais de consumo exacerbado e de-
sumanizado. Segundo Lipovetsky em A felicidade paradoxal: Ensaio sobre a socie-
dade do hiperconsumo:
“Enquanto a confiança no futuro fraqueja, intensificam-se os receios de carácter
ecológico, os apelos no sentido de um outro tipo de desenvolvimento económico,
mas surgem também novos movimentos religiosos, novas aspirações espirituais.
Todos estes fenómenos parecem sintomáticos de uma crise da cultura materialista
da felicidade. As maravilhas tecnológicas multiplicam-se, o planeta está em perigo.
O mercado oferece cada vez mais meios de comunicação e distracções, mas a an-
siedade, a solidão, a insegurança interior são também cada vez mais comuns. Pro-
duzimos e consumimos cada vez mais, mas isso não nos torna mais felizes. Será
possível que o caminho seguido pela civilização tecnocomercial seja um impasse
Sociologia da Comunicação
323

fatal? Será possível que o culto moderno do Homo felix seja o instrumento da nossa
maior infelicidade?” (Lipovetsky, 2010, p. 287).
Para Lipovetsky, a sociedade actual é hiper-moderna, é como um “sistema
de paradoxos”; é uma sociedade paradoxal do desencanto. Por exemplo:
a) Sociedade fun (alegre, com estilo, que está na moda), mas também so-
ciedade preocupada e ansiosa, deprimida e angustiada, com o conse-
quente aumento do consumo de ansiolíticos.
b) Pratica-se o culto do presente (cultura neo-dionisíaca do carpe diem,
sem preocupação com o futuro), mas também se cuida do futuro em
questões sobre ambiente (saúde do planeta), longevidade, terrorismo,
reforma (existem sentimentos de inquietude e insegurança face ao fu-
turo).
c) Sociedade tecnológica que cultiva a eficiência, onde tudo é feito para o
momento e com ganhos de tempo e poupança de esforços, mas também
sociedade onde se diz que não se tem tempo, pois todos vivem num
ritmo acelerado.
d) Espiritualidade e espiritualismo vs. materialidade e materialismo, i.e.
tanto se valorizam filosofias de vida e forças e energias espirituais como
consumos desmedidos de produtos materiais.
e) Cuidados na alimentação vs. obesidade e consumos excessivos de fast
food.
f) Liberdade democrática das acções e comportamentos sociais vs. poli-
ciamento (e.g. câmaras de vídeo) das modernas formas de vida.
g) Tradição vs. moda: respeito pelos valores tradicionais, celebrando e sa-
cralizando tudo (inclusive objectos mundanos) e seguindo, ao mesmo
tempo, modas e tendências repentinas e efémeras de consumo e estilo
de vida moderno.226
h) Institucionalização de hábitos e práticas culturais e religiosas (dos
modos de vida colectivos) vs. desinstitucionalização (individualização
de hábitos e práticas).
A hiper-modernidade é abordada, segundo Lipovetsky, pelo ângulo do pa-
radoxo. A contemporaneidade é paradoxal, efémera e geradora de mais modas,
consumos e direitos humanos que sinalizam excessos de escolhas. Até o tempo
é vivido e concebido de um modo paradoxal, em conformidade com os modelos
de sociedades:

226
Segundo Lipovetsky, o luxo é sacralizado, é objecto de desejo e de fascínio; está nos produtos de
marca, nos excessos de tudo o que se oferece para consumo nas sociedades e nas sensações que
os consumidores nutrem pela materialidade. Para Lipovetsky, o luxo cria e define um estilo de
vida e uma sensação ilusória de felicidade.
Paulo M. Barroso
324

Tempo passado Tempo presente Tempo futuro

Sociedades tradicionais Sociedades pós-modernas ou Sociedades modernas


hiper-modernas
 Tabela 23: Os três modos de tempo e as respectivas sociedades que os integram.

De acordo com Lipovetsky, as sociedades do tempo presente apresentam-


se mais angustiadas com o peso do passado (são sociedades nostálgicas, repletas
de museus) e com as preocupações com o futuro (é o tempo contra o tempo).
O consumo conduz ao império de prazeres, à felicidade paradoxal carac-
terizadora da “civilização do desejo”, que se satisfaz com o consumo emocional
(Lipovetsky, 2010, p. 31). Novos comportamentos de ostentação, consumo, vora-
cidade, hedonismo definem a hiper-modernidade. Para Lipovetsky, a sociedade
do consumo está subjacente à sociedade hedonista e narcisista do carpe diem, de
Dionísio em detrimento de Apolo.
“Em finais dos anos 60, a figura de Dionísio irrompia na cena intelectual com o
propósito de conceptualizar a paisagem cultural das democracias reconfiguradas
pela expansão dos valores hedonísticos, dissidentes e utópicos. Generaliza-se a
ideia de que estão a emergir aspirações e modos de vida inéditos que preparam
um futuro em ruptura com a sociedade tecnocrática e autoritária. No lugar da dis-
ciplina, da família e do trabalho, uma nova cultura celebra os prazeres do consumo
e da vida no presente.” (Lipovetsky, 2010, p. 177).

Esta oposição entre Dionísio e Apolo foi primeiramente explorada por


Nietzsche, mas num sentido estético. Nietzsche aborda a questão da importância
da obra de arte relacionando-a com a sua origem helénica e com o seu âmbito
pessimista. O resultado está na consideração da tragédia grega227 enquanto sín-
tese aglutinadora da arte pela arte.
A civilização grega resume-se na coexistência de duas forças contrárias
que Nietzsche classifica de “apolíneo” e “dionisíaco”. A tragédia é a síntese das
tendências apolíneas e dionisíacas. O “apolíneo” (sonho) e “dionisíaco” (embria-
guez) são as duas tendências artísticas que, segundo Nietzsche, originaram a
arte. Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche (cf. 2002, pp. 84-87) contrapõe Apolo e
Dionísio:

227
Para Nietzsche, o povo grego teve a necessidade de sentir sofrimento e afligir-se com a tragédia
e, só assim, pôde edificar a arte e o esplendor estético. A tragédia é um fenómeno estético e o
trágico “designa a forma estética da alegria” (cf. Deleuze, 2001, p. 29). O pessimismo não é signo
de declínio; pelo contrário, é signo de elevação pela arte. Nietzsche reconhece uma relação
profícua entre os gregos e a dor, da qual se desenvolve a sua sensibilidade e nasce a obra de
arte. Segundo Nietzsche, o povo grego era caracterizado por uma sensibilidade simultânea ao
sofrimento e à arte. A origem da arte está na tragédia, no sofrimento humano. Nietzsche entende
a Antiguidade Clássica Grega como a afirmação e a aceitação da vida como tensão de forças
opostas.
Sociologia da Comunicação
325

Apolo Dionísio
Ordem, medida, proporção, luz, imaginação, Caos, sombra, excesso, embriaguez, alegria,
sabedoria. vitalidade.
Apolo é o deus do sonho e da aparência. Dionísio é o deus da afirmação e da força criadora,
do irracional e da integração cósmica.
Princípio artístico: Sonho (e.g. artes plásticas). O Princípio artístico: Embriaguez = superação do
artista como intérprete. individual (e.g. música). O artista como criador).
Princípio psicológico: força humana inconsciente Princípio psicológico: estado de êxtase destruidor
e criadora de formas e de um mundo de das barreiras que nos fazem sair de nós próprios.
aparências. Princípio da individuação. Princípio da “des-individualização”, a ruptura dos
limites do Eu.
Culto da personalidade vigorosa e equilibrada. Vivência intensa pelo seguimento de impulsos
naturais. Negação da moral imperativa (do
ascetismo e do dever).
 Tabela 24: Diferenças entre Apolo e Dionísio e o que cada um representa.

Em A origem da tragédia, Nietzsche (cf. 2004, pp. 42) desenvolve a questão


paradoxal relativa ao povo que valorizava tanto a razão, a ordem e o controlo
das paixões e que teve a necessidade de criar uma arte, a tragédia, onde se ex-
pressa o irracional e o misterioso; uma arte que torna a vida “possível e digna
de ser vivida”. Nietzsche serve-se da tragédia grega para compreender como o
sofrimento tornou o povo grego tão belo. “Como poderia este povo, de emoções
tão delicadas mas de desejos tão impetuosos, esse povo tão excepcionalmente
idóneo para a dor, suportar a existência se não tivesse contemplado nos seus
deuses a imagem mais pura e radiosa?” (Nietzsche, 2004, p. 52). A dimensão es-
tética adquire uma perspectiva ontológica. Há um trânsito do estético para o me-
tafísico, pois é sobre as categorias do belo que Nietzsche apresenta as suas
considerações metafísicas.
Para Nietzsche, a arte assume-se como metafísica, um modo de revelação
do que é. Apenas a arte revela a verdadeira natureza da realidade. A origem da
tragédia é uma metafísica do artista (Nietzsche, 2004, pp. 26 e 30), uma interpre-
tação do todo universal que segue o fio condutor da arte. A obra de arte é quali-
ficada como repetição ou reprodução do mundo e reflecte esse sofrimento
primordial. O mundo só tem existência metafísica, i.e. só existe enquanto fenó-
meno estético. O homem que realiza a sua condição de homem é o artista. O
homem enquanto artista é aquele que se liberta da vontade individual e que é
porta-voz da realidade. Assim, o objectivo da arte não é educar nem aperfeiçoar,
mas revelar o Ser. Trata-se da arte como ontologia; não como pedagogia.
Apesar da ênfase atribuída por Nietzsche à confrontação radical entre Dio-
nísio e Apolo e do lado positivo da produção estética em permitir revelar o Ser,
Lipovetsky enfatiza apenas um dos lados desta oposição, ou seja, Dionísio, para
criticar as sociedades por tenderem para o hedonismo. Enquanto Apolo repre-
senta a ordem, a lógica, a harmonia e a razão, Dionísio representa o caos, a lou-
cura, a confusão e a embriaguez. Nietzsche defende que precisamos dos dois
Paulo M. Barroso
326

deuses gregos. Lipovetsky critica as sociedades por valorizarem, aproveitarem e


viverem apenas Dionísio.

12.9. Vattimo: a sociedade transparente e o fim


da modernidade
Gianni Vattimo, em A sociedade transparente, começa por fazer um ponto
de situação terminológico para se compreender o que constitui uma sociedade
transparente:
“Fala-se hoje muito de pós-modernidade; ou melhor, fala-se tanto dela que já se
tornou quase obrigatório manter as distâncias em relação a este conceito, consi-
derá-lo uma moda passageira, declará-lo mais uma vez um conceito ‘ultrapas-
sado’… Pois bem, eu considero, pelo contrário, que o termo pós-moderno tem um
sentido; e que este sentido está ligado ao facto da sociedade em que vivemos ser
uma sociedade de comunicação generalizada, a sociedade dos mass media. Antes
de mais: falamos de pós-moderno porque consideramos que, em alguns dos seus
aspectos essenciais, a modernidade acabou. O sentido em que se pode dizer que a
modernidade acabou está ligado àquilo que se entende por modernidade. Entre as
muitas definições, creio que há uma sobre a qual se pode concordar: a modernidade
é a época em que se torna valor determinante o facto de ser moderno.” (Vattimo,
1992, p. 7).

Vattimo esclarece o uso da designação “sociedade transparente” para ca-


racterizar as sociedades contemporâneas onde predomina uma comunicação in-
tensificada. Para Vattimo, assistimos ao desenvolvimento dos meios de
comunicação de massas, o que representa o advento de uma nova sociedade: a
sociedade da comunicação. Esta nova sociedade (da comunicação intensificada e
generalizada) tem implicações para o sentido do termo “transparente” que a ca-
racteriza. Ao contrário do que se poderia pensar, se seguíssemos o senso comum
e o sentido generalizado da palavra “transparente”, Vattimo considera que na
sociedade transparente se verifica um acentuado desenvolvimento dos meios de
comunicação, mas esta circunstância não torna a sociedade mais transparente e
consciente de si; pelo contrário:
“O que pretendo afirmar é: a) que no nascimento de uma sociedade pós-moderna
um papel determinante é desempenhado pelos mass media; b) que estes caracteri-
zam esta sociedade não como uma sociedade mais ‘transparente’, mais consciente
de si, mais ‘iluminada’, mas como uma sociedade mais complexa, até caótica; e por
fim, c) que é precisamente neste relativo ‘caos’ que residem as nossas esperanças
de emancipação.” (Vattimo, 1992, p. 10).

Vattimo considera que o fim da modernidade é o resultado do nascimento


dos meios de comunicação de massa.
“O que de facto aconteceu, porém, não obstante todos os esforços dos monopólios
e das grandes centrais capitalistas, é que a rádio, a televisão, os jornais se tornaram
elementos de uma grande explosão e multiplicação de Weltanschauugen, de visões
Sociologia da Comunicação
327

do mundo. Nos Estados Unidos das últimas décadas tornaram a palavra minorias
de todo o género, apresentaram-se na ribalta da opinião pública culturas e sub-
culturas de toda a espécie. Podem certamente objectar-se que a esta tomada de
posição não correspondeu uma verdadeira emancipação política – o poder econó-
mico está ainda nas mãos do grande capital. Será – não quero aqui alargar dema-
siado a discussão neste campo; porém, o facto é que a própria lógica do mercado
da informação exige uma contínua dilatação deste mercado, e exige consequente-
mente que ‘tudo’, de qualquer maneira, se torne objecto de comunicação. Esta
multiplicação vertiginosa da comunicação, este ‘tomar a palavra’ por parte de um
número crescente de subculturas, é o efeito mais evidente dos mass media, e é tam-
bém o facto que – relacionado com o fim, ou pelo menos com a transformação ra-
dical, do imperialismo europeu – determina a passagem da nossa sociedade à
pós-modernidade. Não só relativamente aos outros universos culturais (o ‘terceiro-
mundo’, por exemplo), mas também ao próprio interior, o Ocidente vive uma si-
tuação explosiva, uma pluralização que parece irresistível, e que torna impossível
conceber o mundo e a história segundo pontos de vista unitários.” (Vattimo, 1992,
pp. 11-12).

Por esta razão, a sociedade dos mass media é o contrário de uma sociedade
mais iluminada. Segundo Vattimo, uma das caracterizações mais amplamente
aceites sobre a pós-modernidade talvez seja aquela que a apresenta como o fim
da história (cf. Vattimo, 1991, p. 15). Trata-se de uma caracterização com um cariz
apocalíptico, devido à perda ou ausência de meganarrativas que legitimavam e
explicavam o progresso histórico da humanidade na emancipação (tese mais pró-
xima dos ideais defendidos pela ideologia de esquerda).
Em A sociedade transparente, Vattimo esclarece que a tese que propõe é:
“[…] na sociedade dos media, em vez de um ideal de emancipação modelado pela
autoconsciência completamente definida […] abre caminho a um ideal de emanci-
pação que tem antes na sua base a oscilação, a pluralidade, e por fim o desgaste
do próprio ‘princípio de realidade’.” (Vattimo, 1992, p. 13).

Esta nova sociedade da comunicação intensificada e generalizada suscita


a hipótese viável, segundo a qual:
“[…] a intensificação dos fenómenos comunicativos, o aumento da circulação das
informações até à simultaneidade da reportagem televisiva em directo (e à ‘aldeia
global’ de McLuhan) não seja apenas um aspecto entre outros da modernização,
mas seja de algum modo o centro e o próprio sentido desse processo. Esta hipótese
refere-se obviamente às teses de McLuhan, segundo o qual uma sociedade é defi-
nida e caracterizada pelas tecnologias de que dispõe, não em sentido genérico, mas
no sentido específico de tecnologias da comunicação; eis porque falar de uma ‘ga-
láxia de Gutenberg’ ou de um mundo tecnotrónico não equivale a sublinhar apenas
um aspecto, embora essencial, da sociedade moderna e da contemporânea, mas
indica, pelo contrário, o carácter essencial destes dois tipos de sociedade.” (Vattimo,
1992, p. 22).

Para Vattimo, a sociedade da comunicação ilimitada é aquela em que se


realiza a comunidade do socialismo lógico, é uma sociedade transparente; aquela
Paulo M. Barroso
328

que, com a liquidação dos obstáculos e opacidades, também reduz radicalmente


os motivos de conflito (Vattimo, 1992, p. 27). Será a comunicação intensificada e
generalizada a realização e completude do mundo? Será este ideal de autotrans-
parência a direcção para onde aponta a relação entre a sociedade da comunicação
e as ciências sociais?
Para Vattimo, as imagens do mundo que nos são fornecidas pelos media
constituem a própria objectividade do mundo. Segundo Vattimo:
“Em vez de avançar para a autotransparência, a sociedade das ciências humanas e
da comunicação generalizada avançou para aquela que, pelo menos em geral, se
pode chamar a ‘fabulação do mundo’. As imagens do mundo que nos são fornecidas
pelos media e pelas ciências humanas, embora em planos diferentes, constituem a
própria objectividade do mundo, e não apenas interpretações diferentes de uma
‘realidade’ de algum modo ‘dada’. ‘Não nos fizeram apenas interpretações’, se-
gundo o dito de Nietzsche, que escreveu também que ‘o mundo verdadeiro afinal
tornou-se fábula’.” (Vattimo, 1992, p. 32).

Sobre o fim das grandes ideologias que marca a época actual do vazio pós-
moderno e secular, Robert Musil, em O homem sem qualidades, apresenta uma re-
flexão pertinente assente no papel dos intelectuais no mundo. Segundo este autor:
“Os filósofos são seres violentos que, como não dispõem de um exército ao seu
serviço, dominam o mundo encerrando-o num sistema. Provavelmente está aí
a explicação para o facto de, nas épocas de tirania, ter havido grandes filósofos,
enquanto as fases de civilização e democracia avançadas não conseguem pro-
duzir uma filosofia convincente.” (Musil, 2008, p. 346).

De acordo com Musil, pratica-se hoje, por conseguinte, a “filosofia em pe-


quenas doses, de tal modo que as lojas são o único lugar onde se pode comprar
alguma coisa que não vem acompanhada de uma visão do mundo” (Musil, 2008,
p. 346). Enquanto assim acontecer, reina a desconfiança na “grande filosofia” ou
nas grandes narrativas sobre o mundo ou sistemas ideológicos.
No livro O fim da modernidade, Vattimo relaciona Nietzsche e Heidegger
com a compreensão do fim da época moderna e a pós-modernidade. A relação
entre Nietzsche, Heidegger e o pós-moderno é, precisamente, a “descoberta” e a
ênfase do prefixo “pós”, que significa a atitude em relação à herança do pensa-
mento europeu que ambos os autores colocaram em discussão e que recusaram a
sua “superação” crítica. Segundo Vattimo (2002, p. vii), “superação” quer dizer a
concepção de um curso do pensamento como um desenvolvimento progressivo.
“Do ponto de vista de Nietzsche e Heidegger, que podemos considerar comum, não
obstante as diferenças nada ligeiras, a modernidade pode caracterizar-se, de fato,
por ser dominada pela ideia da história do pensamento como uma ‘iluminação’
progressiva, que se desenvolve com base na apropriação e na reapropriação cada
vez mais plena dos ‘fundamentos’, que frequentemente são pensados também
como as ‘origens’, de modo que as revoluções teóricas e práticas da história oci-
dental se apresentam e se legitimam na maioria das vezes como ‘recuperações’,
renascimentos, retornos. […]
Sociologia da Comunicação
329

O pós de pós-moderno indica, com efeito, uma despedida da modernidade, que, na


medida em que quer fugir das suas lógicas de desenvolvimento, ou seja, sobretudo
da ideia da ‘superação’ crítica em direcção a uma nova fundação, busca precisa-
mente o que Nietzsche e Heidegger procuraram em sua peculiar relação ‘crítica’
com o pensamento ocidental.” (Vattimo, 2002, pp. vi-vii).

Deduz-se a pós-modernidade como superação da modernidade. Se é pos-


sível algum conhecimento sistemático sobre a acção humana ou sobre as ten-
dências do desenvolvimento social, Giddens sugere que olhemos para o niilismo
de Nietzsche e de Heidegger:
“Apesar das diferenças entre estes dois filósofos, há um ponto de vista sobre o qual
convergem. Ambos ligam à modernidade a ideia de que a ‘história’ pode ser iden-
tificada como uma apropriação progressiva dos fundamentos racionais do conhe-
cimento. Segundo eles, isto está expresso na noção de ‘superação’: a formação de
novos entendimentos serve para identificar o que tem e o que não tem valor, no
capital acumulativo do conhecimento.” (Giddens, 2005, pp. 32-33).

De acordo com Vattimo, o pós-moderno caracteriza-se não apenas como


novidade em relação ao moderno, mas também como “dissolução da categoria
do novo, como experiência de ‘fim da história’, mais do que como apresentação
de uma etapa diferente, mais evoluída ou mais retrógrada” da história (cf. Vat-
timo, 2002, p. ix).
“A história contemporânea, desse ponto de vista,, não é apenas a que diz respeito
aos anos cronologicamente mais próximos de nós; ela é, em termos mais rigorosos,
a história da época em que tudo, mediante o uso dos novos meios de comunicação,
principalmente a televisão, tende a nivelar-se no plano da contemporaneidade e
da simultaneidade, produzindo também, assim, uma des-historicização da expe-
riência.” (Vattimo, 2002, p. xvi).

Os meios de comunicação de massas também contribuem para a afirmação


de uma época pós-moderna, em que tudo é dado de um modo exagerado como
narrativa ou relato entrelaçado com a tradição das mensagens que a linguagem
nos traz do passado e das outras culturas (cf. Vattimo, 2002, p. 13), num mundo
de trocas generalizadas, numa sociedade transformada cada vez mais num or-
ganismo sensível de comunicação (cf. Vattimo, 2002, p. 36). Por conseguinte, os
media não são “apenas perversão ideológica, mas antes uma declinação vertigi-
nosa dessa mesma tradição” (Vattimo, 2002, p. 13). A força dos media é essen-
cialmente estética e retórica (cf. Vattimo, 2002, p. 92). É estética, porque visa a
sedução e a sua aceitação mais fácil pela aparência agradável aos sentidos;228 é

228
A propósito da estética do discurso, atente-se ao termo pharmakon usado por Platão, que
estabelece três sentidos dos discursos: remédio, veneno e cosmético. O discurso serve como: a)
medicamento ou remédio para o conhecimento; b) veneno quando, através da sedução das
palavras, nos fascina e faz aceitar o que é dito sem indagarmos a veracidade; c) cosmético,
maquilhagem, charme, máscara para encantar e seduzir, dissimulando ou ocultando a verdade
Paulo M. Barroso
330

retórica, porque visa a persuasão e o mesmo fim de aceitação, mas pelo lado da
estratégia (a forma) discursiva.229 Essa força dos media contribui, segundo Vat-
timo, para a massificação e secularização das sociedades, de um modo indiferente
face à verdade e aos valores, por um lado, em benefício do espectáculo e do sen-
sacionalismo, por outro lado.
Vattimo salienta um aspecto que caracteriza a mudança de paradigma
epocal ou separa o moderno do pós-moderno: a crise do humanismo. Se no
mundo contemporâneo e ateísta “Deus morreu, mas o homem não vai muito
bem”, existe uma diferença assinalável e profunda que passa por uma certa ne-
gação de Deus ou o registo da sua “morte” com relações inevitáveis à destruição
irrevogável do que é um determinado essencialismo, ou seja, do que é humano.
Esta ideia sobre a morte de Deus, expressa por Vattimo, e a tese sobre a
mudança de paradigma (i.e. a entrada numa época de crise do humanismo) estão
subjacentes ao anúncio da morte de Deus preconizado por Nietzsche. Efectiva-
mente, Nietzsche compreende precocemente a mudança de paradigma, a transi-
ção de uma modernidade para uma fase mais secular, mas também adverte para
a crise existencial relacionada com o apagamento ou a morte de Deus. O que
Nietzsche quis dizer com “Deus está morto”?
Em A gaia ciência, Nietzsche escreve:
“O insensato. – Nunca ouviram falar do louco que acendia uma lanterna em pleno
dia e desatava a correr pela praça pública gritando sem cessar: ‘Procuro Deus! Pro-
curo Deus!’. Mas como havia ali muitos daqueles que não acreditam em Deus, o
seu grito provocou grande riso. ‘Ter-se-á perdido como uma criança?’, dizia um.
‘Estará escondido? Terá medo de nós? Terá embarcado? Terá emigrado?’. Assim
gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco saltou no meio deles e trespas-
sou-os com o olhar. ‘Para onde foi Deus?’, exclamou, ‘é o que lhes vou dizer. Ma-
támo-lo… vocês e eu! Somos nós, nós todos, que somos os seus assassinos!’.”
(Nietzsche, 1987, p. 145).

Segundo este excerto de Nietzsche, Deus e a religião perderam espaço e


importância na cultura contemporânea ocidental. Em contrapartida, a seculari-

sob as palavras (cf. Platão, 2000, 230d, 237a, 257e, 274e). O termo pharmakon é polissémico, mas
indica uma substância que tanto pode curar como pode matar, pois “não há remédio inofensivo”,
segundo Derrida (2005, p. 46), considerando que “o phármakon não pode jamais ser simplesmente
benéfico”.
229
Atinente à retórica, Roland Barthes (cf. 1987, p. 20) considera-a uma metalinguagem, cuja
linguagem-objecto é o discurso (discurso sobre o discurso). A retórica é uma técnica, uma arte
(arte da persuasão, conjunto de regras, de receitas que, colocadas em prática, permitem
convencer o auditório do discurso, mesmo quando é falso aquilo sobre o qual é necessário
persuadi-lo). Por isso é que o mundo contemporâneo está cheio de retórica antiga, segundo
Barthes (cf. 1987, p. 19), e há um ponto comum para o qual remetem todos os sistemas
conotativos: a ideologia. Todos os significados das conotações desembocam na ideologia. A
ideologia é a forma dos significados de conotação. Por conseguinte, a retórica é a forma dos
conotadores.
Sociologia da Comunicação
331

zação e o laicismo têm ganho um papel mais preponderante. Aceitam-se mais


facilmente as explicações científicas sobre a ocorrência de fenómenos no mundo
do que as explicações místicas, metafísicas ou religiosas. Do mesmo modo, os co-
nhecimentos objectivos revelam maior capacidade para compreender a verdade
e reflectir criticamente sobre os valores sociais e padrões culturais do que o qua-
dro de conhecimentos proposto pela religião.
Conforme reconhecem Lipovetsky e Serroy, em A cultura-mundo: Resposta
a uma sociedade desorientada, Nietzsche compreende, de uma maneira excepcio-
nal e como ninguém, a angústia do ser humano provocada pela morte de Deus,
da qual é culpado (cf. Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 31). Para Vattimo, “é inegável
que subsiste uma conexão entre crise do humanismo e morte de Deus” (Vattimo,
2002, pp. 17-18). Essa “morte” de Deus, anunciada por Nietzsche, rompe com o
humanismo que aceita o ser humano como detentor de um essencialismo e como
centro da realidade, por força de uma referência a uma entidade ou razão supe-
rior que lhe garante esse papel. É precisamente esta a tese fundamental de Jean-
Paul Sartre em O existencialismo é um humanismo, i.e. não existe uma natureza
nem uma essência humana, porque não existe Deus para a conceber, segundo
Sartre (cf. 1978, p. 216). Não existe nenhuma essência humana natural, nenhum
traço inato no ser humano, porque uma tal essência revelaria uma generalidade,
uma estrutura lógica divina. O humanismo faz-se com a existência livre e alea-
tória de cada indivíduo no mundo. Por isso, o existencialismo (e não o essencia-
lismo) é que é um humanismo.

12.10. Bauman: a modernidade líquida


No livro Liquid modernity,230 Bauman (1925-2017) explora o conceito de li-
quidez para caracterizar tudo o que existe e acontece nas actuais sociedades.
Bauman toma a liquidez como uma metáfora da modernidade, pois as caracte-
rísticas mais proeminentes e óbvias de um estado líquido são transpostas para
caracterizar as sociedades modernas, que o autor denomina por “sociedades lí-
quidas”. Ao contrário do estado sólido, o líquido não consegue manter facilmente
a sua forma e está sempre pronto para a mudança, porque o líquido é perma-
nentemente moldável às circunstâncias. O líquido é inconstante, fluído e sem
substância. Estas são razões para considerar a ‘fluidez’ ou ‘liquidez’ como metá-
foras adequadas quando queremos entender a natureza da presente fase na his-
tória da modernidade, que é novidade em muitas maneiras (cf. Bauman, 2006, p.
2). Como pergunta a seguir Bauman: não foi a modernidade um processo de “li-
quefacção” desde o início?

230
Obra originalmente publicada por Bauman em 2000 com este título (Polity Press, Cambridge).
Existe uma tradução para português do Brasil com o título Modernidade líquida (Jorge Zahar
Editor, Rio de Janeiro).
Paulo M. Barroso
332

“São os padrões de dependência e interacção que se tornam agora líquidos. Eles


agora são maleáveis a um ponto inédito e inimaginável para as gerações passadas;
mas, como todos os fluidos, eles não mantêm a sua forma por muito tempo. Moldá-
los é mais fácil do que mantê-los numa forma. Os sólidos são fundidos de uma vez
e para sempre. Manter os fluidos na forma requer muita atenção, vigilância cons-
tante e esforço perpétuo - e mesmo assim o sucesso do esforço nunca é garantido.”
(Bauman, 2006, p. 8).231

A sociedade da modernidade fluída, como designa Bauman, implica uma


relação mútua entre os novos media e as relações fluidas. Para Bauman, não são
os novos media os responsáveis pela fragmentação social, pois as implicações
são mútuas, funcionam nos dois sentidos: os media sociais são um dos produtos
da fragmentação social e vice-versa (cf. Bauman & Lyon, 2013, p. 12). Os media
sociais dependem da gestão e do controlo de dados dos seus utilizadores para o
seu funcionamento.
Num mundo de relações sociais electronicamente mediadas, em que es-
peramos sempre mais da tecnologia do que de nós próprios e das nossas relações
sociais, o anonimato já está a ser auto-erodido no Facebook e em outros media
sociais, segundo Bauman e Lyon, pois o privado é público, para poder ser cele-
brado e consumido por inúmeros “amigos”, além dos utilizadores casuais (cf.
Bauman & Lyon, 2013, p. 19). É neste sentido que Bauman considera os disposi-
tivos móveis e electrónicos de comunicação como os novos confessionários elec-
trónicos portáteis, pois as pessoas preferem usar estes instrumentos, na
contemporaneidade e nas sociedades líquidas, para a exposição da sua indivi-
dualidade e privacidade. É uma espécie de “fetichismo da subjectividade”, em
alusão ao fetichismo da mercadoria de Marx.
“Os adolescentes equipados com confessionários electrónicos portáteis são apenas
aprendizes treinando e treinados na arte de viver numa sociedade confessional -
uma sociedade notória por apagar a fronteira que antes separava o privado do pú-
blico, por tornar a pública exposição do privado numa virtude e obrigação públicas,
e por eliminar da comunicação pública qualquer coisa que resista a ser reduzida a
confidências privadas, juntamente com aqueles que se recusam a confiar nela.”
(Bauman & Lyon, 2013, p. 31).232

231
Tradução do autor a partir do livro original em inglês de Bauman: “It is the patterns of
dependency and interaction whose turn to be liquefied has now come. They are now malleable
to an extent unexperienced by, and unimaginable for, past generations; but like all fluids they
do not keep their shape for long. Shaping them is easier than keeping them in shape. Solids are
cast once and for all. Keeping fluids in shape requires a lot of attention, constant vigilance and
perpetual effort–and even then the success of the effort is anything but a foregone conclusion.”
232
Tradução do autor a partir da obra original em inglês de Bauman & Lyon: “The teenagers
equipped with portable electronic confessionals are but apprentices training and trained in the
art of living in a confessional society–a society notorious for effacing the boundary that once
separated the private from the public, for making public exposure of the private a public virtue
and obligation, and for wiping out from public communication anything that resists being
reduced to private confidences, together with those who refuse to confide them.”
Sociologia da Comunicação
333

A vida das pessoas está presentemente dividida entre dois universos, o


online e o offline, que são atravessados sem se notar na mudança do campo se-
mântico em cada travessia de limite (cf. Bauman & Lyon, 2013, p. 37). Um utili-
zador activo e dedicado do Facebook gaba-se de conseguir fazer 500 novos
amigos num dia e isso é mais do que Bauman confessa ter conseguido em todos
os seus 86 anos de vida (cf. Bauman & Lyon, 2013, p. 39). As relações humanas
estão electronicamente mediadas pelos dispositivos tecnológicos nas conexões
das redes digitais. Como estes dispositivos são usados na rede e esta é global, os
ditos dispositivos permitem relações humanas e sociais igualmente e irreversi-
velmente globais. Mas a globalização tanto divide como une, conforme refere
Bauman (cf. 1998, p. 2) em Globalization: The human consequences. Por exemplo,
atente-se às diferenças entre a comunidade e a rede social. As redes sociais são o
resultado do fenómeno da globalização e modificaram as maneiras tradicionais
pelas quais as pessoas se relacionam em comunidade.
As redes sociais fazem as pessoas sentirem-se mais próximas ou mais afas-
tadas umas das outras? Qual é o efeito do online sobre as pessoas e sobre as re-
lações sociais? Segundo Bauman, em Liquid surveillance:
“Pertencer a uma comunidade é uma condição muito mais segura e confiável do
que ter uma rede - embora reconhecidamente com mais restrições e obrigações. A
comunidade observa-nos de perto e deixa-nos pouco espaço de manobra (pode
proibir-nos e exilar-nos, mas não permite que optemos por sair por nossa própria
vontade). Mas uma rede pode se importar pouco ou nada sobre a nossa obediência
às suas normas (se a rede tiver normas a obedecer, ou seja, o que muitas vezes não
tem) e, portanto, dá-nos muito mais corda e, acima de tudo, não nos penalizará
por desistir. Podemos contar com uma comunidade para ser um ‘amigo que nos
ajuda quando realmente precisamos e um amigo verdadeiro’. Mas as redes existem
principalmente para compartilhar a diversão, e a sua prontidão para vir em nosso
socorro no caso de problemas não relacionados a esse ‘foco de interesse’ compar-
tilhado dificilmente é posta à prova e, se fosse, passaria ainda menos frequente-
mente. Portanto, a escolha é entre segurança e liberdade: precisamos de ambas,
mas não podemos ter uma sem sacrificar uma parte, pelo menos, da outra; e quanto
mais tivermos de uma, menos teremos da outra. Em termos de segurança, as co-
munidades à moda antiga batem as redes. Em termos de liberdade, é o contrário
(afinal, basta apenas um toque na tecla ‘delete’ ou a decisão de parar de responder
a mensagens para se livrar da interferência).” (Bauman & Lyon, 2013, pp. 38-39).233

233
Tradução do autor a partir do livro original em inglês de Bauman & Lyon: “Belonging to a
community is a much more secure and reliable condition than having a network–though
admittedly with more constraints and obligations. Community watches you closely and leaves
you little room for maneuver (it may ban you and exile you, but it won’t allow you to opt out of
your own will). But a network may care little, or not at all, about your obedience to its norms (if
a network has norms to obey, that is, which all too often it doesn’t) and so it gives you much
more rope, and above all will not penalize you for quitting. You can count on a community to be
a ‘friend in need, and so a friend indeed’. But networks are there mostly to share the fun, and
their readiness to come to your rescue in the event of trouble unrelated to that shared ‘focus of
Paulo M. Barroso
334

Compreende-se nesta perspectiva de Bauman um paradoxo, pois nem a


segurança nem a liberdade são perfeitas: a segurança, apanágio da comunidade,
transforma-nos em escravos; a liberdade, apanágio da rede, cria um caos. As so-
ciedades modernas, pautadas por relações sociais mediadas electronicamente,
apresentam-se fragmentadas num limbo entre os dois universos semânticos: o
online e o offline.
Na comunidade, principalmente de molde tradicional, um amigo é para a
vida e é autêntico; na rede, o que mais importa é o que é divertido e o divertido
é num momento. Na comunidade, as pessoas vivem e relacionam-se offline e
criam e mantêm laços humanos; na rede social, as pessoas têm de estar online,
conectadas na rede, sendo tão fácil conectar como desconectar. Se as relações so-
ciais na rede são descartáveis, as pessoas também o são, pois existe a facilidade
de eliminar, não gostar ou ignorar o outro.

12.11. Byung-Chul Han: a mediatização digital


No livro No enxame: Reflexões sobre o digital, Byung-Chul Han questiona os
benefícios e os malefícios da mediatização digital em que nos encontramos pre-
sentemente. Esta mediatização (ou pseudo-mediatização ou ausência de media-
ção) domina o nosso quotidiano existencial e pauta as nossas relações sociais. A
partilha de informação entre os utilizadores do digital, sejam nativos digitais ou
imigrantes digitais,234 processa-se através de dispositivos tecnológicos, origi-
nando mudanças no comportamento e no relacionamento. O espaço público é
virtual; agora, o espaço público são as redes sociais. Contribui também para esta
situação a dependência excessiva que temos dos ecrãs (nomeadamente dos tele-
móveis, computadores e televisores).
Uma tese inicial de Han é a de que a revolução digital, a internet e as redes
sociais estão a transformar a sociedade actual devido à perda de respeito nas re-
lações sociais. Mas, de que modo a mediatização digital afecta o respeito nas so-
ciedades actuais? Segundo Han, em No enxame: Reflexões sobre o digital:

interest’ is hardly ever put to the test, and if it were it would pass it even less frequently. All in
all, the choice is between security and freedom: you need both, but you cannot have one without
sacrificing a part at least of the other; and the more you have of one, the less you’ll have of the
other. For security, the old-style communities beat networks hands down. For freedom, it is the
other way round (after all, it takes only one press of the ‘delete’ key or a decision to stop
answering messages to get free of its interference).”
234
“Imigrante digital” (“digital immigrant”) por oposição a “nativo digital” (“digital native”),
conforme as designações no original em inglês utilizadas por David Lyon em Liquid surveillance,
i.e. alguém que teve de aprender o seu caminho numa nova cultura, não sendo um nativo digital,
para quem o Facebook é uma maneira garantida e indispensável de se conectar com os outros
(cf. Bauman & Lyon, 2013, p. 42).
Sociologia da Comunicação
335

“O respeito pressupõe um olhar distanciado, um pathos da distância. Trata-se de


uma atitude que hoje é substituída por um olhar sem distância, o olhar típico do
espectáculo. O verbo latino spectare, que está na origem da palavra espectáculo, sig-
nifica uma extensão voyeurista do olhar, uma atitude desprovida de consideração
distanciada, de respeito (respectare). É a distância que distingue o respectare do spec-
tare. Uma sociedade sem respeito, sem o pathos da distância, desemboca numa so-
ciedade do escândalo.
O respeito é uma condição fundamental da esfera pública. Onde o respeito desa-
parece, o que é público decai. A decadência da esfera pública e a crescente falta de
respeito são simultaneamente causa e efeito uma da outra. A dimensão pública
pressupõe, entre outras coisas, que, movido pelo respeito, o olhar se afaste da esfera
privada. Trata-se de um distanciamento constitutivo do espaço público. Hoje, pelo
contrário, prevalece a falta absoluta de distância, juntamente com a exibição do
privado, fazendo que este último se torne público. Sem distância, também o decoro
é impossível. E o juízo pressupõe igualmente um olhar distanciado. A comunicação
digital desfaz as distâncias em geral. A destruição das distâncias espaciais avança
a par da erosão das distâncias mentais. A mediatização digital lesa o respeito.”
(Han, 2016, pp. 13-14).

Se “respeito” significa “olhar para trás”,235 hoje já não olhamos para trás,
porque perdeu-se o contacto respeitoso de evitar o próprio olhar curioso. O uni-
verso de utilizadores da rede fica com livre acesso a dispositivos digitais e a me-
diatização permite a qualquer utilizador acabar com o anonimato e com o
distanciamento. Por outro lado, as relações humanas estão a ser modificadas de-
vido às novas formas de socialização; a intimidade fica descoberta e susceptível
de ser apropriada por uma falsa ideia de proximidade e convívio. Deste modo, o
respeito fica comprometido face à imprevisibilidade das reacções. Por isso, Han
refere-se a “tempestades de indignação”, um conjunto de comportamentos inju-
riosos e acções nefastas como refluxo associado aos seus efeitos sociais destru-
tivos (cf. Han, 2016, p. 15).
Segundo Han, o meio digital despoja a comunicação do seu carácter cor-
poral e táctil e está a afastar-nos cada vez mais do outro. Além disso, o meio di-
gital realiza uma inversão icónica: faz com que as imagens pareçam mais vivas,
belas e melhores do que a própria realidade, que até é percebida como deficiente
e nem é interessante nem estimulante (cf. Han, 2016, p. 39). O meio digital cria
mais distância face ao real do que os meios analógicos. Andamos a produzir enor-
mes quantidades de imagens através desses meios digitais (cf. Han, 2016, p. 41).
“As imagens já não provocam choque. Até mesmo as imagens repulsivas se inscre-
vem no âmbito da diversão (pensemos, por exemplo, num programa como Dschun-
gelcamp). Tornam-se consumíveis. A totalização do consumo suprime qualquer
forma de resposta imunitária.” (Han, 2016, p. 73).

235
O termo “respeito” deriva do latim respectus, “acção de olhar para trás”, consideração, atenção,
“ter em conta”, ou seja, olhar para trás para ver o percurso que se seguiu, as acções,
comportamento e atitudes que se tiveram, o rasto que se deixa e que afecta ou implica os outros.
Paulo M. Barroso
336

O programa Dschungelcamp236 é um bom exemplo do uso e abuso da ima-


gem para entretenimento das massas, através do meio de comunicação popular
por excelência, a televisão. Agora, com o digital, os conteúdos e programas são
mais diversificados, criativos e cativantes, mas também inautênticos.
“Por mor da eficácia e da comodidade da comunicação digital, evitamos cada vez
mais o contacto directo com as pessoas reais e, além disso, com o real em geral. O
meio digital faz que o encontro real desapareça. Regista-o como resistência. Deste
modo, portanto, a comunicação digital é desprovida de corpo e de rosto. O digital
submete a uma reconstrução radical a tríade lacaniana do real, do imaginário e do
simbólico. Desmonta o real e totaliza o imaginário. O smartphone faz as vezes de
um espelho digital na nova edição pós-infantil do estádio do espelho. Abre um es-
tádio narcísico, uma esfera do imaginário, na qual me incluo. Através do smartp-
hone, não é o outro que fala.” (Han, 2016, p. 34).

Para Han (2016, p. 22), “a nova massa é o enxame digital”. A nova massa
está no digital. A nova massa torna-se uma massa digital e globalizada. Actual-
mente formamos uma nova massa, uma nova forma de viver em sociedade: um
enxame digital. Contraditoriamente, o enxame digital:
– É formado por indivíduos isolados.
– Não tem alma nem reflexão.
– Não possui um sentimento colectivo (não tem autenticidade nem res-
peito e responsabilidade sociais).
– Não funciona para acções comuns nem segue uma direcção (não tem
rumo).
– É moldado pela hiper-comunicação digital (excesso do digital sem sen-
tido nem coerência sobre o social).

Um exemplo de enxame digital é a participação inconsciente ou irreflec-


tida, isolada, individual e egocêntrica das pessoas nas redes sociais, de uma ma-
neira moldada pelo encarreiramento, o mimetismo e o conformismo sociais.
O ser humano está a sofrer alterações profundas nos estilos de vida e nos
comportamentos e acções sociais, devido ao desenvolvimento das novas tecno-
logias digitais que afectam, no geral, todas as sociedades. Assim, o ser humano
fica condicionado, não consegue agir sozinho como fazia no passado recente,
tendo a tendência para simplesmente teclar no mundo digital. O ser humano é,
desta maneira, explorado pela utilização que ele próprio realiza das novas tec-

236
Programa da televisão alemã RTL, inaugurado em 2004, no qual figuras mediáticas e celebridades
são colocadas em condições de selva. Trata-se da versão alemã de Fear factor ou I’m a celebrity…
Get me out of here.
Sociologia da Comunicação
337

nologias. Segundo Han (2016, p. 46), “os aparelhos digitais trazem com eles uma
nova coação, uma nova escravatura”.
A revolução digital trouxe o imediatismo, a superficialidade, o irrealismo,
a simultaneidade, a distância virtual (“telepresença”), mas interactiva (a acção à
distância e em rede ou “tele-acção”) (cf. Ribeiro, 2005, p. 617). Transformam-se
as relações e dimensões do humano e surgem novas concepções e representações
das relações quer com o espaço quer com o tempo.
O actual paradigma digital pelo qual as sociedades se regem engloba, de
forma inata, um controlo e uma utilização desmedida. Em vez do Big Brother,
temos agora o Big data (cf. Han, 2016, p. 86). Sem respeito, sobrepõe-se o “Eu”
sobre o “Nós”, o privado e banal sobre o público e importante. Com o digital, o
ser humano desvia o olhar sobre o outro e dirige-o para os ecrãs (cf. Han, 2016,
p. 37). Perde-se a interacção social de proximidade e adquire-se uma nova confi-
guração virtual, difícil de definir, mas que é impactante, para não a designar de
avassaladora, sobre a noção de realidade e de sociabilidade.

12.12. Questões para revisão e reflexão


1. Vivemos hoje na modernidade ou na pós-modernidade? A época em
que vivemos reflecte-se no género dos conteúdos e dos programas que
os meios de comunicação social transmitem?
2. Quais são os limites da realidade? Até que ponto a nossa percepção do
mundo é moldada ou distorcida pela hiper-realidade?
3. O que é viver na simulação? Se vivemos simulacros sucessivos propor-
cionados pelas imagens dos media, como podemos saber/perceber o
que é, de facto, real? E como podemos saber e ter consciência que vi-
vemos na simulação, se esta é alienante?
4. Qual é a relação entre os ecrãs e o individualismo nas sociedades con-
temporâneas?
5. O ecrã é amigo da democracia?
6. Se a cultura de auto-absorção individualista e do self-interest é, neste
momento, predominante, é possível aspirar colectivamente pela moral
e o regramento social, não estar indiferente ao próximo e ao bem pú-
blico, indignar-se e reconhecer-se na reivindicação ética?
7. O que provoca uma secularização, laicização ou ausência de valores mo-
rais e de cidadania?
8. O desenvolvimento dos processos, técnicas e meios de comunicação,
bem como o excesso de informações e modos virtuais de comunicação,
impõem novos modos e estilos de vida e novas exigências ao ser hu-
mano?
Paulo M. Barroso
338

9. Será a comunicação intensificada e generalizada a realização e comple-


tude do mundo?
10. As redes sociais fazem as pessoas sentirem-se mais próximas ou mais
afastadas umas das outras? Qual é o efeito do online sobre as pessoas
e sobre as relações sociais?
11. De que modo a mediatização digital afecta o respeito nas sociedades
contemporâneas?
12. Segundo Lipovetsky, quais são as características típicas das sociedades
hiper-modernas?
13. Por que razão é que Lipovetsky entende que as sociedades pós-moder-
nas estão estruturadas por um sistema de paradoxos, centram-se no
presente e possuem uma cultura neo-dionisíaca?
14. Com mais individualismo nas relações humanas ou menos respeito nos
media sociais, seremos livres para escapar ao enxame digital e ser quem
desejamos, teremos uma crise de identidade ou ficaremos sem saber
que caminho seguir?
Sociologia da Comunicação
339

13. Hiper-realidade: quando o virtual é real


“O virtual não se opõe ao real, mas somente ao atual. O virtual possui uma
plena realidade enquanto virtual. [...] o virtual deve ser mesmo definido como
uma estrita parte do objeto real - como se o objeto tivesse uma de suas partes
no virtual e aí mergulhasse como numa dimensão objetiva.”
(Deleuze, 2006, p. 199).237

Nas últimas décadas, as mudanças sociais são mais rápidas e profundas.


Desde o surgimento da internet, os avanços científicos e os desenvolvimentos
tecnológicos têm permitido mudanças globais nos modos de vida, ao ponto de
nem se conseguir reparar nessas mudanças nem reflectir sobre os seus efeitos.
As sociedades estão a caminho de se fundirem numa só e de se tornarem numa
e-sphere, segundo Joseph N. Pelton (cf. 2000, p. 1), um espaço público virtual238 e
contemporâneo caracterizado pelos seguintes aspectos:
– Rede, teia de relações electrónicas.
– Comunicação electrónica (através de dispositivos tecnológicos e elec-
trónicos).
– Conectividade e interactividade, transição para um estado de online.
– Globalidade dos modos de pensar, sentir, agir, ver e compreender.
– Colectividade ou comunidade online, sentido de integração, pertença e
interacção numa cultura electrónica (partilha de um espaço virtual).
– Virtualidade, dimensão digital fora do tempo e do espaço (hiper-reali-
dade e mundos possíveis onde se deseja estar e participar).
– Simulação, conjunto de simulacros (percepções de aparências), que dá
a percepção de autenticidade ou nem sequer permite essa percepção
(por ser distractiva) nem a distinção entre realidade e irrealidade (por
ser analogon).
– Imagens virtuais que suscitam imaginação, fantasia, espectáculo, com-
ponente distractiva e apelativa das imagens que povoam o espaço pú-

237
O termo “virtual” em francês, conforme é usado por Deleuze (“virtuel”) significa “potencial”, “o
que é possível”, “o que não acontece”. Deleuze é o filósofo do virtual, segundo Žižek. O que
interessa a Deleuze não é a realidade virtual, mas a realidade do virtual. A realidade virtual
pressupõe a ideia de imitação da realidade e reprodução das experiências através de um medium
artificial. A realidade do virtual representa a realidade do virtual como tal, através dos seus efeitos
e consequências reais (cf. Žižek, 2004, p. 3).
238
Na sequência da nota anterior, o termo “virtual” é ambíguo, mas a etimologia desta palavra é
também polissémica e equívoca. A origem da palavra revela que esta deriva do termo latino
medieval virtualis, significando energia, força, poder (em produzir um efeito), mas também deriva
do latim virtus, virtutis, que significa a qualidade humana da coragem, valor, mérito, como no
caso de se possuir certas virtudes, i.e. excelência moral (cf. Barroso, 2019b, p. 135).
Paulo M. Barroso
340

blico virtual e contemporâneo e que absorvem a atenção e o interesse


(synopticon).
– Contemporaneidade, tempo de imanência, imediatismo, efemeridade,
superficialidade (epifenómeno).239

Se a hiper-realidade é entendida como uma manifestação moderna, visual


e atractiva da necessidade de simulacros num mundo virtual, esse mundo não é
nem pode ser referencial. Então, como é que a hiper-realidade e o espectáculo, a
simulação e a aparência subjacentes ao espectáculo emergem da realidade e se
apresentam nas sociedades e na contemporaneidade?
A questão sobre a hiper-realidade coloca o problema, entre outros240 da
autenticidade. O que é autêntico ou real são questões levantadas usando imagens
e dispositivos tecnológicos. As imagens são populares e ampliam os efeitos da
distracção e da alienação social. A imagem é imediatamente absorvida, especta-
cular, atraente, um efémero e instantâneo “pronto-a-pensar” que elimina ou dilui
os conceitos e produz uma cultura líquida e igualmente instantânea e efémera.
A experiência da hiper-realidade é apelativa, porque é um “novo mundo” de pos-
sibilidades que se abre, um mundo de todos os possíveis, da fantasia e o impos-
sível que está a remodelar e a reestruturar não apenas os padrões culturais, de
vida social e de interdependência social, mas também as maneiras como vemos,
pensamos, sentimos, agimos ou apenas queremos comunicar e interagir com os
outros e interpretar a realidade.

13.1. Contemporaneidade e desrealização


“De quem e do que somos contemporâneos?”, pergunta Agamben (2009,
p. 57) num ensaio intitulado “O que é o contemporâneo?” Para responder a esta
pergunta ou para apenas entender o seu significado, deve reconhecer-se que as
sociedades, as culturas, os seres humanos e as suas produções técnicas e tecno-
lógicas são dinâmicas e permeáveis, estão em constante mudança (cf. Barroso,
2019a, p. 38). Os dispositivos tecnológicos de comunicação tornam-se omnipre-
sentes e familiares nos estilos de vida modernos e nas acções e comportamentos
sociais, contribuindo para cimentar o presente paradigma da hiper-realidade. Pe-
rante as mudanças globais, tecnológicas e comunicacionais impostas por um
tempo emergente, Heidegger (cf. 2003, p. 72) adverte, em A caminho da lingua-

239
O conceito de “epifenómeno” (“epi” significa “no topo”, “na superfície”, “além de” ou “em adição
a”), opõe-se, pelo menos na teoria marxista, ao próprio fenómeno, i.e. refere-se à aparência
superficial de alguma coisa ou situação e à sua realidade subjacente. Descrever algo como
epifenomenal não quer dizer que esse algo é irreal; pelo contrário, é afirmar que disfarça uma
realidade determinante mais profunda (cf. Bruce & Yearley, 2006, p. 89).
240
Outros problemas igualmente importantes são: os efeitos de desrealização; a não adição de novos
conhecimentos sobre o mundo real; a indistinção entre o real e o fictício.
Sociologia da Comunicação
341

gem, que “diante da tecnicização e industrialização modernas de todos os recan-


tos da terra, parece que não há outra saída”.
Segundo Agamben (2009, p. 59), “a contemporaneidade, portanto, é uma
singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele
toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este
adere através de uma dissociação e um anacronismo”. Para Agamben (2009, p.
66), um bom exemplo dessa “especial experiência do tempo que chamamos a
contemporaneidade é a moda”, na medida em que “aquilo que define a moda é
que ela introduz no tempo uma peculiar descontinuidade, que o divide segundo
a sua atualidade ou inatualidade, o seu estar ou o seu não-estar-mais-na-moda”.
Tal como a moda, as imagens que servem de modelo e mostram tendências ou
sugerem estilos de vida também são um exemplo singular. A moda e as imagens
estabelecem uma relação peculiar e paradoxal com o tempo, porque se concen-
tram numa desconexão e falta de articulação:
“Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo,
aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pre-
tensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente
através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os ou-
tros, de perceber e apreender o seu tempo.” (Agamben, 2009, p. 58).

Por conseguinte, existe uma associação semântica entre os conceitos de


contemporaneidade, modernidade e secularização. Conforme esclarece Giddens
(cf. 2005, p. 1), o conceito de modernidade refere-se a modos de vida e de orga-
nização social recentes e que adquiriram uma influência universal.
A modernidade das sociedades resulta do desaparecimento de elementos
culturais diferenciadores e da perda de sentido em relação ao passado. Tecnologia,
economia e política (ou seja, o neoliberalismo do mercado global) criam homoge-
neidade social em relação aos mesmos interesses (ou interesses globais), necessi-
dades, desejos, consumos, estilos de vida, hábitos etc. (cf. Barroso, 2019a, p. 39).
No entanto, a contemporaneidade não é um tempo comum. É um tempo
de experiências instantâneas, superficiais e efémeras, e essas experiências são
globais, massificadas, virtuais; é uma homogeneização digital de estilos de vida.
Há um deslocamento no tempo, uma desconexão ou um anacronismo: apenas o
não-real é contemporâneo. Somente assim o não-real pode perceber e apreender
o tempo (Agamben, 2009, p. 58). A desconexão ou anacronismo entre o sujeito e
seu tempo não significa que o sujeito vive noutro tempo. No máximo, significa
que ele vive um tempo e um espaço de maneira alienada, de acordo com uma in-
versão da realidade que provoca uma alienação. Essa inversão está no sentido
do marxismo.241

241
O conceito alienação vem do latim alius, que significa “outro” ou “estranho”, derivando alienus,
“de outro lugar ou pessoa”. Etimologicamente, o significado de alienação tem uma
correspondência espacial e existencial. Na teoria de Marx, o trabalhador experimenta o objecto
Paulo M. Barroso
342

A consciência e a compreensão da contemporaneidade incidem no reco-


nhecimento do hiper-realismo abundante nos estilos de vida contemporâneos,
globais, triviais e comuns. Questionar a hiper-realidade como dimensão tecnoló-
gica e os seus efeitos, nomeadamente sobre a desrealização, pressupõe compreen-
der as mudanças efectivas nas sociedades e culturas e nas percepções ou
experiências do mundo que, paradoxalmente, não parecem reais.
Um mundo virtual é um ambiente virtual interactivo, um hiper-mundo,
uma plataforma 3D baseada em computador que permite que os utilizadores in-
terajam em tempo real (cf. Hodge, Collins & Giordano, 2013, p. 6). Um mundo
virtual é um ambiente tridimensional no qual alguém (um avatar, uma represen-
tação virtual de alguém, como um ego virtual, que pode ter qualquer forma como
um desejo) pode interagir com outros e criar objectos como parte dessa interac-
ção. Um mundo virtual requer a virtualização, que é o movimento inverso da ac-
tualização, segundo Pierre Lévy (cf. 2007, p. 17) em O que é o virtual?, o
movimento que consiste na passagem do que é corrente para o virtual, numa
elevação de poder.
No livro Virtual worlds: A journey in hyper and hyperreality, Benjamin Wool-
ley (cf. 1993, p. 53) diz que o virtual era e continua a ser uma palavra muito mais
grandiosa, mas subutilizada, i.e. uma enorme embarcação de vacuidade semân-
tica à espera de ter sentido. O computador contribui para esse significado, acres-
centa Woolley. Há uma grande variedade de mundos virtuais, já que qualquer
tipo de mundo pode ser criado virtualmente, ou seja, construído sob medida para
entretenimento, relações sociais, fins educacionais ou treino profissional, mas
todos incluem conexão, interactividade, comunidade online, comunicação, simu-
lação, dimensão digital, dispositivo tecnológico ou medium, imagens virtuais,
fantasia. Os mundos virtuais podem ser baseados no mundo real ou estar com-
pletamente desconectados do mundo real.
Com todos esses recursos, um mundo virtual também pode ser chamado
de mundo digital, simulado ou hiper-mundo, onde a desrealização afecta o sujeito
e o objecto dessa experiência. Isso altera o sentido de identidade. Kierkegaard,
Marx e Nietzsche argumentam essa ideia de desrealização, mas Nietzsche refere-
a como o último suspiro de uma realidade vaporizante e a dissolução da distinção
entre o mundo real e o mundo aparente. Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche apre-
senta a história dessa distinção, desde Platão até ao seu tempo. Para Nietzsche
(cf. 2002, p. 42), o mundo verdadeiro tornou-se uma ideia inútil e supérflua.
A hiper-realidade é uma forma de “hemorragia da realidade” e a conquista
de espaço provoca uma desrealização, uma perda do real ou uma conversão de

do seu trabalho como alienado: mesmo que o objecto tenha sido produzido através do trabalho
do trabalhador, ele não é acessível ao trabalhador. Conforme Marx e Engels afirmam em A
ideologia alemã: “o dinheiro, o trabalho assalariado etc. são alienações da essência humana” (cf.
Marx & Engels, 2007, p. 469).
Sociologia da Comunicação
343

um hiper-real de simulação (cf. Baudrillard, 1991, p. 154). Os modernos media fa-


cilitam as nossas vidas transformando-as num simulacro. No entanto, parece
mais importante entender essa tendência ou movimento em direcção à hiper-
realidade, porque o meio do nosso tempo de tecnologia eléctrica, segundo McLu-
han, está a remodelar e a reestruturar os padrões de interdependência social e
todos os aspectos das nossas vidas, está a forçar a reconsiderar e reavaliar todos
os pensamentos, acções e instituições anteriormente consideradas como garan-
tidas. Tudo está a mudar profundamente. As sociedades sempre foram moldadas
mais pela natureza dos media que os indivíduos usam para comunicar do que
pelo conteúdo da comunicação (cf. McLuhan & Fiore, 1973, p. 36). Portanto, os
dispositivos tecnológicos predispõem-nos a pensar e agir automaticamente de
certas maneiras.
A contemporaneidade é cada vez mais visual, tecnológica, hiper-real e pa-
rece indistinta e cada vez mais real do que a própria realidade (cf. Barroso, 2019a,
p. 55). O desenvolvimento tecnológico é acentuado e a tecnologia traz novos dis-
positivos de comunicação e novas maneiras de os usar em qualquer lugar e a
qualquer momento. Portanto, é cada vez mais difícil ver, pensar, sentir, agir, sig-
nificar e interpretar o real, por um lado, e entender de quem e do que somos con-
temporâneos, por outro lado. Por esse motivo, Baudrillard argumenta que os
simulacros estão à nossa frente em todos os lugares. Os simulacros não ocultam
a verdade, é a verdade (que se encontra oculta) que é indiscernível, uma crença
sobre o que não existe. O mundo contemporâneo é cada vez mais hiper-real, cheio
de simulacros e sentidos. Por esse motivo, o mundo é ilusório. Se o mundo é ilu-
sório, as pessoas entendem mal o mundo, i.e. não compreendem o que o mundo
e as coisas realmente são ou o que existe efectivamente.
A hiper-realidade prevalece na contemporaneidade e é composta de signos
(especialmente imagens virtuais criadas por computador). A hiper-realidade ob-
riga-nos a escapar ou, paradoxalmente, a desconectar do tempo, do espaço, da
realidade e da referencialidade. Apenas mudam a nossa relação com o tempo e
os nossos sentidos sobre o mundo, transformando a realidade ou, pelo menos, a
nossa maneira colectiva de ver, pensar, sentir, agir, significar e interpretar a rea-
lidade (cf. Barroso, 2019a, pp. 55-56).
Como refere Žižek (2017, p. 44) em Interrogando o real, as imagens são re-
presentações através das quais “a coisa está mais presente em seu símbolo do
que em sua realidade imediata”. É como uma construção social (simbólica) da
realidade (Balandier, 1999, p. 129), considerando que “a realidade em si nunca
está plenamente constituída”, i.e. não é uma realidade positiva, mas trata-se de
uma “construção social da realidade” que sempre fracassa (Žižek, 2017, p. 101).
“Se quisermos simular a realidade dentro de um meio artificial (virtual, digital),
não precisamos ir até o fim: precisamos apenas reproduzir as características que
tornarão a imagem realista desde o ponto de vista do espectador” (Žižek, 2017,
Paulo M. Barroso
344

p. 403). Mas as questões principais são: Como é que a aparência surge da reali-
dade? Qual é o papel da linguagem na construção social simbólica da realidade,
i.e. na construção do contemporâneo, da hiper-realidade e da desrealização? Qual
é o contributo da linguagem no surgimento da aparência (ou da percepção da
aparência) a partir da realidade?
A linguagem é um recurso e, neste caso, traz benefícios:
– Amplia a realidade, cria mundos possíveis e substitui o que é real pelo
ficcional, o que é representado (a linguagem é representação).
– É a praxis do logos, é poiesis, uma acção transformadora da realidade
através de uma unidade dialéctica chamada logopoiesis, uma forma
de produção do possível usando signos, elementos de representa-
ção.242
– Faz a transição de planos entre o vivido e o pensado, que só é possível
através do simbólico, que é próprio da linguagem e está inerente às ex-
periências e inter-relações humanas.

Conforme refere Umberto Eco, em Semiótica e filosofia da linguagem:


“[…] é simbólica a actividade pela qual o homem dá conta da complexidade da ex-
periência organizando-a em estruturas de conteúdo a que correspondem sistemas
de expressão. O simbólico não apenas permite ‘nomear’ a experiência como tam-
bém organizá-la e, portanto, construí-la como tal, tornando-a pensável e comuni-
cável.” (Eco, 2001, p. 220).

Se o simbólico organiza e constrói a experiência, tornando-a pensável e


comunicável, a experiência humana (que é uma experiência de adaptação ao
contemporâneo hiper-ambiente, hiper-acção e hiper-interacção) é necessaria-
mente simbólica. Se fazer243 uma experiência com algo ou passar por uma ex-
periência de alguma coisa significa que, de acordo com Heidegger (cf. 2003, p.
121), esse algo ou essa alguma coisa “nos atropela, nos vem ao encontro, chega
até nós, nos avassala e transforma”, passar por uma experiência virtual e digi-
tal na hiper-realidade é muito mais do que ser atingido pelo que acontece ou
surge em nós; é muito mais transformante. Nesta transformação, a pessoa é
passiva, é objecto da experiência, porque recebe da experiência o que a atinge
e a submete.

242
O conceito de logopoiesis indica um processo de produção de sentido e de pensamento através
de um dispositivo de comunicação ou significação como a linguagem, i.e. uma forma poética de
produção de pensamento e uma poesia que gera pensamento.
243
No sentido de Heidegger, “fazer” significa “atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro,
harmonizando-nos e sintonizando-nos com ele”, como o próprio autor explica (cf. Heidegger,
2003, p. 121).
Sociologia da Comunicação
345

13.2. O que é a hiper-realidade?


No conceito de hiper-realidade, o prefixo “hiper” enfatiza a ideia principal
de uma realidade e um imaginário combinados, uma mistura de realidade e de
signos da realidade, em que os signos representam a realidade. Não há indicação
clara sobre até onde vai a realidade e começam os signos que representam a rea-
lidade. A hiper-realidade refere-se a algo que realmente não existe. No entanto,
experimentar a hiper-realidade pode ser tão intenso e realista que se pode con-
fundir, mesmo por breves momentos, o que é real e o que não é real.
“Hiper” significa “muito, em excesso”, algo excessivo, extra, que vai além
do razoável ou é “excessivo em extensão ou qualidade”, algo que está “localizado
acima”. Por seu turno, o termo “realidade” significa uma ideia do senso comum:
“a qualidade ou o estado de ser real”, “a natureza ou constituição real de algo”,
“o que tem existência objectiva, o que não é uma mera ideia, o que não é imagi-
nário, fictício ou fingido”, “o que existe necessariamente”.
Qual é o estado do hiper-real? Se a realidade é a qualidade de ser real ou
ter uma existência real e objectiva, a hiper-realidade é uma realidade simulada
acima da própria realidade. Para Deleuze (1975, p. 264), o simulacro é uma ima-
gem sem semelhança.244 Um simulacrum significa uma aparência sem substância,
é vaga, é uma semelhança, imagem, representação. Não há simulacro sem signos.
Nesta perspectiva, um simulacro é um signo e a proliferação de simulacros ori-
gina duas coisas:
1. Ascensão da hiper-realidade e a possibilidade de mundos virtuais, si-
mulados.
2. Crise da representação, ou seja, o que Paul Virilio (cf. 1991, p. 112)
chama uma crise causada pela moderna tecnologia dos media, diluindo
as diferenças ou não permitindo distinguir o que é real e verdadeiro do
que é fictício.

Por conseguinte, o conceito de hiper-realidade define a incapacidade per-


ceptiva de distinguir entre realidade e simulação tecnológica. É um artificialismo
em que a realidade e a ficção parecem indistintas. O conceito também é usado
para significar a infra-estrutura tecnológica de comunicação que suporta a inte-
racção contínua e unificada entre:
a) Pessoas e objectos virtuais.
b) Pessoas e objectos reais.
c) Inteligência humana e inteligência artificial.

244
Sobre a etimologia do conceito “simulacro”, que vem do latim simulare, reveja-se a nota 187 e o
subcapítulo 12.3.1.
Paulo M. Barroso
346

Esquematicamente, a hiper-realidade é uma estrutura composta e definida


pela seguinte conjugação entre o real e o não real:

Hiper-realidade
Infra-estruturas tecnológicas de comunicação que misturam/unificam e tornam interactivos:
Real (o factual): realidade física. Não-real (o fictício ou virtual): realidade virtual.
Pessoas reais e objectos reais. Pessoas virtuais e objectos virtuais (ambos
gerados por computador).
Inteligência humana. Inteligência artificial.
Tabela 25: Síntese sobre a hiper-realidade como estrutura composta.

A hiper-realidade é hipotética; a sua realização como infra-estrutura tec-


nológica está no futuro. O desafio técnico da hiper-realidade é fazer com que a
realidade física e virtual pareçam misturadas perfeitamente ao aparelho sensorial
humano (cf. Terashima, 2005, p. 7). A hiper-realidade fornece um ponto ou lugar
para a interacção unificada entre inteligência humana e inteligência artificial. É
o enquadramento de pessoas, objectos e situações numa realidade física e virtual,
com inteligência humana e inteligência artificial entre factos e ficções, que resulta
em processos de interacção e comunicação, como se tudo fizesse parte do mesmo
plano ou mundo.
No entanto, é importante distinguir entre o que é real e o que existe como
eficaz, mas não existe de facto. Essa distinção não é garantida, porque se vive
num plano híbrido, onde não se pode distinguir facilmente se o que se vê, ouve,
cheira e toca resulta de um mundo físico ou de um mundo mediado pela tecno-
logia da informação.
A hiper-realidade pode tornar-se o meio dominante através do qual conhe-
cemos a realidade? Para Terashima, o termo “hiper” do conceito de hiper-realidade
enfatiza que a hiper-realidade é mais do que a soma da realidade física e da reali-
dade virtual; a hiper-realidade é baseada na interacção sistemática entre as duas
realidades que a compõem, resultando numa nova forma de realidade que tem
atributos acima e além das realidades componentes (cf. Terashima, 2005, p. 12).
A hiper-realidade só é possível devido ao desenvolvimento da realidade
virtual. A hiper-realidade, definida como um meta-conceito tecnológico (e com a
ênfase no prefixo “hiper” para sublinhar uma dimensão extra, além do normal)
distingue-se do uso pós-moderno do termo hiper-realidade e possui um escopo
comunicacional, i.e. tem o objectivo de resolver o problema fundamental da co-
municação entre o real e o virtual (cf. Tiffin, 2005, p. 41). A hiper-realidade signi-
fica uma realidade na qual existe uma dimensão extra da realidade virtual dentro
de uma realidade física normal.
O hiper-mundo é uma mistura consistente e coerente de um mundo real
(físico) e um mundo virtual. Enquanto um mundo real consiste em coisas e ob-
jectos reais e naturais, i.e. o que está presente atomicamente num conjunto,
Sociologia da Comunicação
347

sendo descritível como tal, como está, um mundo virtual é o que está presente
num conjunto como bits de informação gerados por um computador. Um mundo
virtual consiste em imagens da realidade capturadas por uma câmara fotográfica,
que são reconhecidas visualmente pelo computador e, posteriormente, reprodu-
zidas pelo computador e transmitidas por dispositivos tecnológicos na realidade
virtual (cf. Terashima, 2005, p. 8), sendo reconhecidas como tal, i.e. como algo
distinto da própria realidade.
Um campo de co-acção ou acção conjunta fornece um local comum para
objectos e habitantes derivados da realidade física e da realidade virtual e serve
como local de trabalho ou área de actividade na qual eles interagem (cf. Terashima,
2005, p. 9). O campo de acção fornece os meios de comunicação (incluindo pala-
vras, gestos, orientação e movimento do corpo, sons e toques) para que os seus
habitantes interajam em actividades conjuntas (e.g. jogos). O comportamento das
pessoas e os aspectos dos objectos envolvidos no campo estão em conformidade
com as leis naturais (da física, da química, da biologia) e humanas compartilhadas,
que governam os mesmos elementos da realidade. Isso produz e revela realismo.
Nesta perspectiva, um campo de co-acção ou acção conjunta é definido pelo con-
junto de um campo ou local de interacção, habitantes reais ou virtuais (mais de
um), meios de comunicação, conhecimento (um sistema com finalidades onde os
elementos funcionam de acordo com a consecução dos objectivos), leis e controlos
(cf. Terashima, 2005, p. 9). Um campo é o local de interacção e serve como um ob-
jectivo de cooperação; é um sistema com limites definidos e regras conhecidas.
A hiper-realidade é distinta da realidade virtual. Embora a hiper-realidade
inclua realidade virtual, ambas são cada vez mais difíceis de distinguir. É até di-
fícil distinguir o virtual do real. Por exemplo, imagens reais sem filtros versus
imagens manipuladas nas capas das revistas, como o caso da Vanity Fair (Figura
14), onde Oprah Winfrey e Reese Witherspoon têm membros a mais que foram
justificados por “aparentes erros de edição”.

Figura 14: Primeira página da revista Vanity Fair (Fonte: fotografia de Annie Leibovitz/Vanity Fair;
The Guardian, 26 de Janeiro de 2018).

Outro caso é a propaganda recorrente da Coreia do Norte na produção de


simulacros por meio da manipulação estratégica de imagens. Em Maio de 2015,
tornou-se paradigmática a transmissão de imagens falsas concebidas pelas au-
Paulo M. Barroso
348

toridades deste país, mostrando o lançamento de um míssil submarino para ma-


nifestar o progresso tecnológico alcançado (Figura 17). Em 2017, a televisão oficial
da Coreia do Norte transmitiu um vídeo que simula um ataque com mísseis aos
EUA durante um evento estatal comemorativo do aniversário de Kim Il-Sung. As
imagens falsas (concebidas de propósito) foram exibidas com pompa e circuns-
tância na cerimónia e foram comemoradas com apoteose, mesmo sabendo-se
que eram falsas, como se fossem imagens reais.
Numa outra situação, uma imagem (Figura 15) publicada na edição online
do diário iraniano Jamejam, em 10 de Julho de 2008, mostrava três mísseis a
serem lançados durante um teste no deserto iraniano. A mesma imagem foi di-
vulgada pela Guarda Revolucionária Iraniana, mas modificada digitalmente,
acrescentando um quarto míssil lançado com sucesso (Figura 16).

Figura 15: Fotografia publicada na edição Figura 16: Fotografia divulgada pela Guarda
online do diário iraniano Jamejam (Fonte: Revolucionária Iraniana (Fonte: The Denver
The Denver Post, 10 de Julho de 2008). Post, 10 de Julho de 2008).

O desenvolvimento da fotografia digital trouxe inúmeros casos de mani-


pulação de imagens divulgadas como verdadeiras, inclusive nos mass media,
como reproduções de eventos que não ocorreram. É o caso de uma imagem do
Canadarm 2, braço mecânico de controlo remoto da Estação Espacial Internacio-
nal (Figura 18). A imagem, divulgada em 2014, foi retocada digitalmente para
mostrar o símbolo do governo canadiano.

Figura 17: Imagem obtida pela Agência de Figura 18: Fotografia real, em cima, e depois
Notícias Yonhap (Fotografia: KCNA/EPA; com o símbolo do Canadá, em baixo (Fonte:
Fonte: The Guardian, 20 de Maio de 2015). Ottawa Citizen, 4 de Novembro de 2014).
Sociologia da Comunicação
349

Já vivemos uma mistura do real e do virtual, argumenta Tiffin (cf. 2005, p.


32), mas as realidades virtuais geradas fora de nós são normalmente separadas
do ambiente físico por algum tipo de enquadramento. Portanto, o objectivo de
longo prazo da pesquisa sobre hiper-realidade, no entanto, é que os quadros de-
sapareçam e nós deixemos de estar conscientes de quaisquer costuras entre o
virtual e o real (cf. Tiffin, 2005, p. 32).
A hiper-realidade é um paradigma tecnológico. De facto, a hiper-realidade
está associada ao desenvolvimento da tecnologia e implica transformações pro-
fundas, i.e. convida-nos a reflectir sobre o que é (qual é a sua natureza e quais
são as suas características) e como será o futuro. A técnica sempre traz uma nova
maneira de pensar sobre ela própria. A technê pertence à criação, à poiesis; é algo
poético, argumenta Heidegger (cf. 2002a, p. 17). A technê faz parte da “produção”,
a poiesis. Cada novo meio é uma técnica de comunicação poética ou “produtiva”
que traz novos procedimentos e novas formas de estar no mundo; convida à re-
flexão.
A hiper-realidade também é a era das novas relações sociais num mundo
virtual. A sociedade industrial foi profundamente moldada pelos meios de comu-
nicação de massa, onde um dos muitos modos de comunicação incentiva a visão
das pessoas como um público de massa (cf. Tiffin & Terashima, 2005, p. 146). A
hiper-realidade parece dar primazia à comunicação do Eu, contribuindo para for-
mar uma sociedade egoísta.
Considerando que o mundo real e o mundo virtual se apresentam sem cos-
tura, i.e. diluídos um no outro, unificados, as dúvidas cartesianas sobre o Eu, o
cogito e a percepção da realidade são novamente relevantes nas sociedades con-
temporâneas, porque o conhecimento da existência individual é a única realidade
em que se pode ter confiança (cf. Tiffin & Terashima, 2005, p. 146). As pessoas
tendem a mudar a sua aparência para impressionar as outras. Todavia, se o
mundo físico impõe limitações a essas mudanças de aparência (pois não é possí-
vel alterar a idade, o peso, as medidas corporais ou o género), o mundo virtual
permite todas as mudanças (cf. Tiffin & Terashima, 2005, p. 146). A hiper-realidade
surge, assim, como uma tecnologia suprema de auto-realização.
Em Abril de 2017, a imagem da top model Gisele Bündchen foi projectada
no Empire State Building (Figura 19). Tratou-se de uma acção promocional para
comemorar o 150º aniversário da revista americana Harper’s Bazaar. O Empire
State Building simboliza a proeza tecnológica e a força económica dos EUA (cf.
Barroso, 2018, p. 101). No entanto, nessa estratégia promocional, o edifício perdeu
a sua identidade e simbolismo da cultura e poder financeiro norte-americanos
para se tornar um meio de projecção de valores estéticos, hedonistas, efémeros
e imediatos, i.e. o conteúdo da revista Harper’s Bazaar: moda, beleza, celebrida-
des, estilos de vida moderno (imagem, aparência, vaidade, glamour, ostentação
etc.).
Paulo M. Barroso
350

Este é um caso paradigmático da modernidade, um processo de seculari-


zação de valores, ideais e princípios. É indicativo de uma mudança no estilo de
vida social e cultural. Este caso lembra outro ocorrido em 1999: a projecção de
uma imagem de Gail Porter em pose nua e sensual na fachada do Parlamento de
Londres, durante uma campanha publicitária de guerrilha da revista masculina
FHM (Figura 20).

Figura 19: Imagem de Gisele Bündchen Figura 20: Imagem de Gail Porter projectada
projectada no Empire State Building na fachada do Parlamento de Londres
(Fonte: Daily Mail, 20 de Abril de 2017). (Fonte: The Telegraph, 7 de Janeiro de 2016).

Nestes dois casos, verificam-se alguns aspectos semelhantes e interessantes:


– O uso de imagens em tamanho grande para representar a moda, a be-
leza feminina, o estilo de vida moderno, como se fosse uma celebração
ou culto.
– A implementação de uma estratégia impositiva de apelo ao consumidor.
– Espaços públicos modernos e improváveis para fazer apelos comerciais
e consumistas.

Tal como Han (2016, p. 39) refere, “hoje, as imagens não são apenas cópias,
mas também modelos”; “procuramos refúgio nas imagens para nos tornarmos
melhores, mais belos, mais vivos”, o que significa que:
– Estamos a produzir mais espectáculo.
– Estamos cada vez mais familiarizados com a profusão de imagens (in-
cluindo imagens de choque).
– Estamos a viver conforme essas imagens, ou seja, imitando-as.

Como são duas grandes imagens projectadas (a da Harper’s Bazaar e a da


FHM), temos a opção de não as ver? Podemos recusar vê-las? O uso dessas ima-
gens é estratégico e, como tal, visa determinar as nossas percepções. Baudrillard
(cf. 2005, p. 93) reconhece essa situação como uma violência da imagem, assente
na hegemonia e na omnipresença da imagem (i.e. está no excesso da própria ima-
gem, na pletora), bem como no conteúdo das imagens (i.e. no que é feito na ima-
gem, no que é mostrado através da imagem).
Sociologia da Comunicação
351

Para Baudrillard (cf. 2005, p. 93), em The intelligence of evil or the lucidity
pact, a imagem é um operador ou o meio de visibilidade, ou seja, de uma visibi-
lidade/realidade integral: o “tornando-se real” caminhando de mãos dadas com
o “tornando-se visível” e tudo deve ser visto, tudo deve ser visível, e a imagem
é eminentemente o espaço dessa visibilidade.
Os efeitos visuais das imagens são violentos, porque criam ilusões e “dis-
torcem” o real. As imagens fazem desaparecer o real. O imperativo da massifica-
ção moderna é que tudo deve ser visível; tudo deve ser visto, e a imagem é o
meio por excelência para essa visibilidade absoluta. É uma ditadura da imagem.
Paradoxalmente, a imagem torna tudo visível e é o meio responsável pelo desa-
parecimento da realidade.
É nessa perspectiva que Baudrillard identifica a procura ávida e colectiva
por novas formas de expressão, como são hoje as imagens, com o culminar, o
fim ou a morte do social (o vazio social) e, em contraste, o apogeu das massas,
que só querem espectáculo e este é facultado pelas imagens. Baudrillard refere-
se a um apocalipse da imagem. Nas sociedades modernas, onde a simulação é o
elemento central para Baudrillard, os media são responsáveis pela produção de-
senfreada de signos que não têm mais relação com a realidade; os media criam
outra coisa, outra realidade ou, pelo menos, uma realidade de outra natureza. O
que é entendido como hiper-real é produzido com a pretensão de ser mais real
do que a própria realidade, que já não o é. Baudrillard demonstra que a realidade
é suplantada ou oculta pela imitação da imagem, que é sempre nova e mais com-
pleta e, portanto, mais interessante e cativante para a cultura popular e visual.
É a hiper-realidade, que está em toda a parte. Segundo Baudrillard, o
mundo torna-se hiper-real, eivado de simulacros, nos quais as imagens (e os
espectáculos das imagens, para Debord) substituem os conceitos de produção
e conflito de classes como constituintes-chave das sociedades contemporâ-
neas.
Um holograma245 é um exemplo perfeito da hiper-realidade. Para Baudril-
lard, não há necessidade de mediação imaginária para se reproduzir e representar
o que representa. Uma reprodução holográfica “já não é real, é já hiper-real”; “não
tem, pois, nunca valor de reprodução (de verdade), mas sempre já de simulação”
(Baudrillard, 1991, p. 136). Nesta perspectiva, Baudrillard inverte a perspectiva
de Leibniz ao propor que a pergunta deste último (por que existe algo em vez de
nada?) se tornou: por que não há nada em vez de algo? (cf. Stolze, 2016, p. 91).
O hiper-real substitui o real, ou seja, o imanente e o contingente, o substancial
e o necessário. É nisso que se traduz a força do virtual, em que tudo (eventos,

245
Termo derivado do grego holos, “todo” (no sentido das três dimensões), e grama “sinal”,
“mensagem”. Uma fotografia intermediária que contém informações para reproduzir uma
imagem tridimensional por holografia.
Paulo M. Barroso
352

acontecimentos ou actividades) apenas pode vir da imanência do mundo, como


se o virtual fosse apenas a actualização do real (cf. Barroso, 2019b, p. 142). O vir-
tual é o que é capaz de transcender a sua própria imanência.

13.3. O virtual e o problema do que não é verdade


Os conceitos de virtual e de verdade implicam a distinção entre o que é o
caso (o que é verdade, real, factual ou actual) e o que não é o caso (o que é apa-
rência, ficção, falso, irreal ou ilusão). Se o virtual é uma ilusão, é provocado pelo
meio e pelos seus signos, residindo na capacidade de virtualização produzida
pelo meio. A capacidade de o meio criar uma ilusão é um processo de virtualiza-
ção. Mas o virtual não é, como Baudrillard (cf. 2005, p. 83) explica, a última pala-
vra; é apenas a ilusão virtual, a ilusão do virtual.
Em O teatro e seu duplo, Antonin Artaud (1999, p. 49) compara o teatro e a
alquimia na base do que designa ser uma “misteriosa identidade de essência”
de ambos. Artaud refere-se ao poder de ambos em serem artes virtuais que não
carregam a realidade dentro de si, mas uma realidade virtual:
“Entre o princípio do teatro e o da alquimia há uma misteriosa identidade de essên-
cia. É que o teatro, assim como a alquimia, quando considerado em seu princípio e
subterraneamente, está vinculado a um certo número de bases, que são as mesmas
para todas as artes e que visam, no domínio espiritual e imaginário, uma eficácia
análoga àquela que, no mundo físico, permite realmente a produção de ouro. Mas
entre o teatro e a alquimia há ainda uma semelhança maior e que metafisicamente
leva muito mais longe. É que tanto a alquimia quanto o teatro são artes por assim
dizer virtuais e que carregam em si tanto sua finalidade quanto sua realidade. […]
Todos os verdadeiros alquimistas sabem que o símbolo alquímico é uma miragem
assim como o teatro é uma miragem. E esta perpétua alusão às coisas e ao princípio
do teatro que se encontra em quase todos os livros alquímicos deve ser entendida
como o sentimento […] da identidade que existe entre o plano no qual evoluem as
personagens, os objetos, as imagens, e de um modo geral tudo o que constitui a
realidade virtual do teatro, e o plano puramente suposto e ilusório no qual evoluem
os símbolos da alquimia.” (Artaud, 1999, pp. 49-51).

Com esta analogia, Artaud foi um dos primeiros a usar o termo “realidade
virtual” muito antes de este conceito se referir ao que hoje tomamos como pró-
prio de uma cultura digital e tecnológica.246 Os elementos peculiares das actuais
culturas digitais e tecnológicas surgem quer dos sistemas e modelos tradicionais
de comunicação e mediação quer das formas digitais modernas de comunicação
e mediação. Esses elementos são:

246
Terá sido Jaron Lanier o primeiro a usar, na década de 1980, o termo “realidade virtual” no sentido
que hoje tomamos e empregamos nas culturas digitais e tecnológicas, i.e. como “o
desenvolvimento de ambientes gerados por computador nos quais as pessoas reais podem
interagir”, conforme a entrevista que o próprio concedeu ao jornal The Guardian, em 17 de Março
de 2013.
Sociologia da Comunicação
353

– Artefactos narrativos e modelos de comunicação e mediação.


– Ambientes virtuais narrativos e interactivos.
– Memórias artificiais expandidas no ciberespaço.
– Mais interactividades, compartilhamentos e imersões.
– Novos níveis de representação e narração virtual e interactiva.
– Experiências virtuais tão superficiais e descartáveis quanto imanentes
e imediatas.
Lembremo-nos do caso de Zilla van der Born, designer gráfica que, preo-
cupada com o perigo das imagens manipuladas, se recolheu no seu apartamento
durante cinco semanas em 2014, enquanto colocava informações na internet, di-
zendo a todos os seus conhecidos (incluindo os seus pais) que estava em viagem
pelo sudeste da Ásia.247 A artista usou os media sociais e o Photoshop para desen-
volver um projecto sobre a maleabilidade da verdade online, tentando responder
à pergunta “o que é a realidade?”. Zilla van der Born argumentou que vivemos
numa cultura visual onde as informações e a realidade mediadas estão entrela-
çadas. O que a intrigou foi o facto de uma fotografia ter uma relação insidiosa e
ambígua com a realidade, porque existe uma batalha constante entre duas con-
siderações fotográficas: a) tornar o objecto fotografado o mais belo possível e b)
dizer a verdade. O resultado é que uma imagem nunca mostra a situação exacta
como realmente é; pelo contrário, é uma versão com aparência de verdade.

Figura 21: Fotografia original em casa (Fonte: Figura 22: Fotografia manipulada (Fonte:
The Washington Post, 12 de Setembro de 2014). The Washington Post, 12 de Setembro de 2014).

As pessoas sempre procuram fotografias perfeitas, bonitas e espectacula-


res (particularmente selfies),248 usando uma panóplia de filtros para torná-las mais
perfeitas, bonitas e espectaculares antes de exibi-las e partilhá-las nos media so-

247
Conforme reporta o jornal The Washington Post, de 12 de Setembro de 2014.
248
Esta prática é tão moderna e popular que até se usa o neologismo “instagramável” para qualificar
e descrever uma imagem considerada perfeita e susceptível de impressionar se for registada em
fotografia e publicada na rede social Instagram. Com a recente revolução digital da fotografia,
“hoje em dia, tudo o que existe, existe para acabar numa fotografia”, como refere Susan Sontag
(2012, p. 32).
Paulo M. Barroso
354

ciais. Ao fazerem isso, as pessoas criam hiper-realidade e vivem nela como num
mundo ideal online, que é falso, distorcido e não tem nada a ver com a realidade.
Considerando que qualquer representação é realizada por meio de signos
e, portanto, pressupõe referentes (referentes existentes ou referentes inexistentes,
ficcionais), como é que ocorre o efeito psicológico da desrealização? Como é que
as imagens criam estruturas ou formas de significação que excedem ou invertem
a proporcionalidade representativa e distintiva entre o real e o irreal? Ou, como
Baudrillard (cf. 2005, p. 78) pergunta: o que estamos a fazer com um mundo in-
teractivo no qual é virtualmente abolida a linha de demarcação entre o sujeito e
o objecto?
Baudrillard entende que a hiper-realidade é indistinguível da realidade,
das imagens (i.e. dos sinais representativos da realidade) e da sensação de apa-
rência nas formas de simulação. No entanto, se Baudrillard mostra que a realidade
é suplantada ou retraída pela imitação sempre nova e mais completa e, conse-
quentemente, mais interessante para a cultura de massa, Umberto Eco, que tam-
bém entende a indistinção entre realidade e hiper-realidade, insiste nas críticas
à cultura de massas e de espectáculo, como Debord originalmente fez em 1967,
na sua obra A sociedade do espectáculo.
As sociedades modernas são sistemas de espectáculo e resultam de uma
cultura da imagem, na qual a visualidade é predominante. Se existe visualidade,
existem imagens; se existem imagens, devem existir percepções e interpretações
do que é dado a percepcionar pelas imagens. A modernidade é uma época de he-
gemonia e prepotência de imagens que sempre e necessariamente representam
algo. É o esplendor da imagem. Paradoxalmente, as imagens do mundo forneci-
das pelos media, de acordo com A sociedade transparente, de Vattimo (cf. 1992,
pp. 12-13), constituem a objectividade adequada do mundo, e não apenas inter-
pretações diferentes de uma dada realidade de alguma forma.

13.4. Cibercultura: realidade virtual e realidade aumentada


Num anúncio publicitário de 30 segundos da marca Calvin Klein, o beijo
entre Bella Hadid e Miquela Sousa poderá ter parecido irrealista para muitos te-
lespectadores, mas este conceito publicitário causou impacto. Primeiro, porque
Hadid é uma supermodelo e identifica-se como heterossexual; segundo, porque
Sousa, mais conhecida como Lil Miquela, é virtualmente fabricada. É desta forma
que, no Verão de 2019, o jornal The New York Times começa uma notícia com o tí-
tulo “These influencers aren’t flesh and blood, yet millions follow them”.249 A
peça jornalística realça as influenciadoras virtuais criadas para esse fim: influen-

249
Tradução do autor: “Estas influenciadoras não existem, mas milhões de pessoas as seguem”,
segundo a notícia publicada pelo The New York Times, edição de 17 de Junho de 2019 (cf. Hsu,
2019).
Sociologia da Comunicação
355

ciar milhões de pessoas que as seguem nas redes sociais. Lil Miquela, por exem-
plo, não existe, mas é uma influencer e cantora criada digitalmente em inteligên-
cia artificial, tendo mais de 2,6 milhões de seguidores no Instagram e cerca de
um milhão de ouvintes mensais das suas canções no Spotify,250 tendo já realizado
campanhas para grandes marcas (e.g. Calvin Klein, Prada).
Esta é a estratégia mais recente e inovadora para as empresas atraírem os
consumidores. A mesma notícia revela que a rede de fast-food KFC lançou recen-
temente uma versão moderna e digital do seu fundador, o Coronel Sanders. O
modelo foi criado a partir de fotografias de celebridades e influenciadores do Ins-
tagram, para criar um visual que atraísse “likes” e seguidores online.
Os casos acima mencionados demonstram as transformações que se veri-
ficam nas actuais relações sociais, que agora são relações virtuais. As comunida-
des deixam de ser tradicionais (assentes em identidades, pertenças e
participações institucionais e formais) e passam a ser comunidades online com
interactividade em rede.251 A compreensão sociológica das culturas e sociedades
exige o estudo das suas transformações e dos fenómenos e factores que as origi-
nam, nomeadamente o desenvolvimento das tecnologias de informação e comu-
nicação, bem como as consequências que provocam na estrutura de relações
sociais. As tecnologias de informação e comunicação são agora mais versáteis e
eficazes, impondo uma nova reorganização da sociedade, que adquire, com pro-
priedade, a designação de “sociedade da informação”.
A informação e os seus fluxos sempre caracterizaram as sociedades, mas
nunca como na contemporaneidade, com a rápida ascensão e predomínio da in-
ternet, das redes sociais e das comunicações móveis. “As permutações oferecidas
pelas novas tecnologias de comunicações são intermináveis e extraordinárias”,
como há décadas já reconhecia Toffler (1984, p. 423). A propósito do desenvolvi-
mento tecnológico das redes, da comunicação e das sociedades, Castells caracte-
riza esta recente sociedade em rede ou um novo tipo de estado, o “estado-rede”:
“Assim, surge um novo tipo de Estado, que não é o Estado-nação, mas que não o
elimina e sim o redefine. O Estado que denomino Estado-rede se caracteriza por
compartilhar a autoridade (ou seja, a capacidade institucional de impor uma deci-
são) através de uma série de instituições. Uma rede, por definição, não tem centro
e sim nós, de diferentes dimensões e com relações internodais que são frequente-
mente assimétricas. Mas, enfim, todos os nós são necessários para a existência da
rede.” (Castells, 2001, p. 164).

250
Dados de Agosto de 2020.
251
Corroborando esta perspectiva, “a expansão da Internet e a sua incorporação nos procedimentos
do quotidiano trouxe a enfatização da comunicação em rede”, segundo Lídia Silva (2008, p. 358),
pelo que se deve compreender um “processo dialéctico entre comunicação e comunidade
estruturado pelas redes que se estabelecem entre os sujeitos”. Com o desenvolvimento da
tecnologia e da telecomunicação, gera-se a renovação dos laços sociais a uma escala global, num
novo ecossistema cultural: um espaço invisível (desterritorializado), sem fronteiras, propício ao
nomadismo.
Paulo M. Barroso
356

Num ensaio em inglês intitulado “Informationalism, networks, and the


network society: a theoretical blueprint”, Castells (2004, p. 3) considera que uma
sociedade em rede é uma sociedade cuja estrutura social é feita de redes alimen-
tadas por tecnologias de informação e comunicação baseadas em microelectró-
nica. Numa tal sociedade, a estrutura social assenta em arranjos organizacionais
nas relações de produção, consumo, reprodução, experiência, e poder expressos
através da comunicação.
Ao analisar as sociedades contemporâneas organizadas numa rede global
de informações, Castells entende que a era actual é a da informação, marcada
pela “informacionalização”, globalização, actividades e relações em rede, cons-
trução de identidades, crise do patriarcalismo e do Estado-Nação (cf. Castells,
2012, p. 20). É um novo tipo de sociedade, uma nova estrutura social dominante
chamada de “sociedade em rede”, que emerge na segunda metade do século XX
com a revolução das tecnologias de informação e de comunicação, com o capita-
lismo informacional e global e com a “virtualidade real” imersa num ambiente
de imagens virtuais. No volume três, intitulado Fim de milênio, da sua trilogia A
era da informação: Economia, sociedade e cultura,252 Castells dedica-se à compreen-
são dos processos de mudança social e global introduzidos por esta nova inte-
racção em rede:
“[…] chamo de virtualidade real um sistema em que a realidade em si (ou seja, a
existência material/simbólica das pessoas) está imersa por completo em um am-
biente de imagens virtuais, no mundo do faz-de-conta, em que os símbolos não
são apenas metáforas, mas abarcam a experiência real. Esse sistema não é a con-
sequência dos meios de comunicação electrônicos, embora estes sejam instrumen-
tos indispensáveis de expressão da nova cultura. A base material que explica por
que a virtualidade real é capaz de dominar a imaginação e os sistemas de repre-
sentação das pessoas é o modo de vida delas no espaço de fluxos e no tempo in-
temporal.” (Castells, 2012, p. 427).

Com o gradual predomínio da visualidade nas culturas e sociedades con-


temporâneas, o campo disciplinar da Antropologia (em especial da Antropologia
Cultural e da Antropologia Visual) surge, precisamente, num período fértil em
que a própria imagem e a visualidade se desenvolvem e se massificam com téc-
nicas inovadoras de reprodução da imagem (e.g. a fotografia e o cinema), a partir
de meados do século XIX. Em 1936, com a publicação do ensaio “A obra de arte
na era da sua reprodutividade técnica”, Walter Benjamin (cf. 1992a, p. 79) designa
este período como a era da reprodutibilidade técnica. A reprodução técnica, ao
industrializar o artifício da reprodução e ao colocar em causa o valor estético e
o valor de autenticidade, é uma parte visível da pós-modernidade. Este período

252
Na trilogia de Castells, denominada por A era da informação: Economia, sociedade e cultura, o
volume um intitula-se A sociedade em rede e o volume dois tem o título O poder da identidade.
Sociologia da Comunicação
357

estende-se aos dias de hoje com o fenómeno da globalização, que intensifica não
apenas a inovação e a reprodução visual, mas também a industrialização digital
e tecnológica e a profusão de imagens virtuais no quotidiano das culturas e so-
ciedades que, deste modo, são cada vez mais visuais.
A globalização trouxe transformações, entre as quais a passagem do ana-
lógico ao digital. Com a invenção e o uso da fotografia e da câmara cinemato-
gráfica, as sociedades e as culturas tornaram-se visuais e visíveis, objectos de
registo, interpretação e significação. As sociedades e as culturas permaneceram
como se estivessem divididas em duas categorias: as predominantemente obser-
vadas (fotografadas, estudadas, cinematografadas) e as predominantemente ob-
servadoras (que fotografam, estudam, produzem filmes), ou seja, “orientais e
ocidentais, sul e norte, pobres e ricas, rurais e urbanas, femininas e masculinas”
(cf. Ribeiro, 2005, p. 616).
Em Cibercultura, Pierre Lévy (cf. 2000, p. 17) define a cibercultura como o
“conjunto das técnicas (materiais e intelectuais), as práticas, as atitudes, as ma-
neiras de pensar e os valores que se desenvolvem conjuntamente com o cresci-
mento do ciberespaço”. O ciberespaço é um constructo, um espaço vasto e virtual
de actuação. Conforme o sentido atribuído por William Gibson, autor que cunhou
este termo em 1984 no livro Neuromancer, o ciberespaço é a “representação em
realidade virtual de uma vasta cidade, que talvez seja melhor descrita como uma
versão totalmente imersiva da Internet”, onde os indivíduos podem existir ape-
nas nesse espaço e até continuar a existir após a sua morte física (cf. Bell, Loader,
Pleace & Schuler, 2005, p. 39).
“O ciberespaço é um termo usado para descrever o espaço criado através da con-
fluência de redes de comunicações electrónicas, como a Internet, que permite a co-
municação mediada por computador (CMC) entre qualquer número de pessoas que
podem estar geograficamente dispersas pelo mundo. É um espaço público (veja-se
esfera pública) onde os indivíduos podem encontrar-se, trocar ideias, partilhar in-
formações, fornecer suporte social, conduzir negócios, criar media artísticos, jogar
jogos de simulação ou envolverem-se em discussões políticas. Essa interacção hu-
mana não requer uma co-presença física ou corporal partilhada, mas é caracteri-
zada pela interconexão de milhões de pessoas em todo o mundo, comunicando por
e-mail, grupos de notícias da Usenet, sistemas de boletins e salas de conversação.”
(Bell, Loader, Pleace & Schuler, 2005, p. 41).253

253
Tradução do autor a partir do original em inglês: “Cyberspace is a term used to describe the
space created through the confluence of electronic communications networks such as the
Internet which enables computer mediated communication (CMC) between any number of
people who may be geographically dispersed around the globe. It is a public space (see public
sphere) where individuals can meet, exchange ideas, share information, provide social support,
conduct business, create artistic media, play simulation games or engage in political discussion.
Such human interaction does not require a shared physical or bodily co-presence, but is rather
characterized by the interconnection of millions of people throughout the world communicating
by email, usenet newsgroups, bulletin board systems, and chat rooms.”
Paulo M. Barroso
358

Efectivamente, Gibson (2003, p. 5) refere-se, em Neuromancer, a um cibe-


respaço personalizado que projectava a sua consciência desincorporada na alu-
cinação consensual que era a matriz. Mais importante e compreensiva é a
seguinte passagem:
“Ciberespaço. Uma alucinação consensual experimentada diariamente por bilhões
de operadores legítimos, em cada nação, por crianças a quem são ensinados con-
ceitos matemáticos… Uma representação gráfica de dados compilados a partir de
bancos de todos os computadores do sistema humano. Complexidade impensável.
Linhas de luz percorrendo o não-espaço da mente, clusters e constelações de dados.
Como luzes da cidade, retrocedendo…” (Gibson, 2003, p. 51).254

O ciberespaço é a sociedade em rede, um espaço electrónico, virtual e ili-


mitado de comunicação interactiva, onde converge a tecnologia e a informação
e onde as pessoas (internautas ou netizens)255 entram em interacção ao partilha-
rem ou procurarem os mesmos interesses (e não os mesmos ideais, crenças, va-
lores e princípios, como no passado). O ciberespaço e a cibercultura resultam da
recente revolução tecnológica. O ciberespaço é o “espaço de comunicação aberta
pela interligação mundial dos computadores e das memórias informáticas” (Lévy,
2000, p. 95). É um vasto e aberto sistema de comunicação de todos para todos,
ou seja, de todos aqueles que estão interconectados. Segundo Lévy, a comunica-
ção realiza-se através de mundos virtuais compartilhados.
“Ora as realidades virtuais servem cada vez mais frequentemente de media de co-
municação. […] As realidades virtuais partilhadas, que podem pôr em comunicação
milhares, mesmo milhões de pessoas, devem ser consideradas como dispositivos
de comunicação ‘todos-todos’, típicos da cibercultura.” (Lévy, 2000, p. 107).

No mesmo sentido, Joseph N. Pelton afirma:


“O padrão explosivo da mudança global atravessa o nosso planeta. Está a chegar
aos cidadãos e empresários de todas as direcções. Está a chegar até nós através
dos telemóveis, cabos de fibra óptica, alto desempenho e computadores pessoais,
satélites e toda a Internet omnipresente. Todas estas complexas redes electróni-
cas e de comunicações e o software avançado e o poder de processamento que
suporta a sua operação é o que se entende pela palavra ‘ciberespaço’.” (Pelton,
2000, p. 3).256

254
Tradução do autor a partir do texto original em inglês de Gibson: “Cyberspace. A consensual
hallucination experienced daily by billions of legitimate operators, in every nation, by children
being taught mathematical concepts… A graphic representation of data abstracted from the
banks of every computer in the human system. Unthinkable complexity. Lines of light ranged in
the nonspace of the mind, clusters and constellations of data. Like city lights, receding…”
255
Um “netizen” é um cidadão internauta que usa a internet para o seu activismo. É uma espécie de
cidadão do ciberespaço, uma pessoa que participa na comunicação no ciberespaço, incluindo os
fóruns de discussões (cf. Bell, Loader, Pleace & Schuler, 2005, p. 114).
256
Tradução do autor a partir do original em inglês: “The exploding pattern of global change
pervades our planet. It is coming to citizens and businesspeople from every direction. It is coming
to us via cell phones, fiber-optic cables, high performance and personal computers, satellites,
and the all-pervasive Internet. All these complex electronic and communications networks and
Sociologia da Comunicação
359

As tecnologias do ciberespaço transformam o humano. Os sistemas de in-


formação assumem, em simultâneo, um papel omnipresente, omnisciente e om-
nipotente. Seremos agora uma world-wide mind que, para Joseph N. Pelton (2000,
p. 208), é uma consciência global.
“O poder, o alcance e o imediatismo dos sistemas de informação irão criar uma
presença abrangente que transcende o paradigma da aldeia global que Marshall
McLuhan definiu há uns trinta anos. McLuhan reparou no poder da transmissão
televisiva por satélite que permitia a qualquer pessoa na Terra receber a mesma
mensagem. Agora, a Internet e as telecomunicações modernas e as redes de com-
putadores podem levar-nos a pensar de uma maneira interactiva. Agora não somos
uma aldeia que vê a mesma imagem, nós somos uma World-Wide Mind que pode
pensar e interagir colectivamente.” (Pelton, 2000, p. 4).257

A cibercultura está tanto associada ao ciberespaço como ao virtual. A imer-


são caracteriza a cibercultura e a participação ou presença virtual que nela se
tem. A cibercultura, o ciberespaço e o virtual caracterizam a cultura contempo-
rânea e os modos tecnológicos actuais de comunicação instantânea, de mediação
digital e de acesso fácil ao mundo da informação em rede.
No livro O que é o virtual?, Lévy começa por assumir que a virtualização se
estende por todos os domínios da vida humana. Segundo este autor:
“Um movimento geral de virtualização afeta hoje não apenas a informação e a co-
municação mas também os corpos, o funcionamento econômico, os quadros cole-
tivos da sensibilidade ou o exercício da inteligência. A virtualização atinge mesmo
as modalidades do estar junto, a constituição do ‘nós’: comunidades virtuais, em-
presas virtuais, democracia virtual… Embora a digitalização das mensagens e a
extensão do ciberespaço desempenhem um papel capital na mutação em curso,
trata-se de uma onda de fundo que ultrapassa amplamente a informatização.”
(Lévy, 2007, p. 11).

As comunidades são agora virtuais, apesar de se continuar a ter presença


e interacção física. Mas as comunidades virtuais organizam-se em sistemas tele-
máticos de comunicação258 que parecem não apenas satisfazer as necessidades
de interacção e de pertença/presença na esfera pública (que agora já não é ne-
cessariamente física) como são preferidas por serem mais cómodas, móveis, ime-
diatas e aparentam um estilo de vida moderno. Como sublinha Lévy (2007, p. 19),

the advanced software and processing power that support their operation is what is meant by
the word ‘cyberspace’.”
257
Tradução do autor a partir do original em inglês: “Their power, reach, and immediacy will create
an overarching presence that transcends the Global Village paradigm that Marshall McLuhan
defined for us some thirty years ago. McLuhan looked to the power of satellite broadcast
television, which could let everyone on Earth receive the same message. Now the Internet and
modern telecommunications and computer networks can let us think interactively. Now we are
not a village that sees the same image, we are a World-Wide Mind that can think and interact
together.”
258
Sistemas que combinam a telecomunicação e a informática.
Paulo M. Barroso
360

“estamos ao mesmo tempo aqui e lá graças às técnicas de comunicação e de te-


lepresença”.
“As tecnologias intelectuais e os dispositivos de comunicação conhecem nesse fim
do século XX mutações massivas e radicais. Em consequência, as ecologias cogni-
tivas estão em via de reorganização rápida e irreversível. A brutalidade da deses-
tabilização cultural não deve nos desencorajar de discernir as formas emergentes
mais positivas socialmente e de favorecer seu desenvolvimento. Como um dos prin-
cipais efeitos da transformação em curso aparece um novo dispositivo de comuni-
cação no seio de coletividades desterritorializadas muito vastas que chamaremos
‘comunicação todos-todos’.” (Lévy, 2007, p. 112-13).

Segundo Lévy, esta nova realidade pode ser experimentada na internet ou


nos fóruns electrónicos, em sistemas de trabalho ou nos groupware,259 nos mundos
virtuais e em árvores de conhecimentos. Efectivamente, o ciberespaço em pleno
desenvolvimento facilita a comunicação não-mediática em larga escala. Para Lévy,
esta circunstância constitui um progresso assinalável para novas formas mais evo-
luídas de inteligência colectiva. Conforme Lévy reconhece na introdução de As tec-
nologias da inteligência: O futuro do pensamento na era da informática:
“Novas maneiras de pensar e de conviver estão sendo elaboradas no mundo das te-
lecomunicações e da informática. As relações entre os homens, o trabalho, a própria
inteligência, dependem, na verdade, da metamorfose incessante de dispositivos in-
formacionais de todos os tipos. Escrita, leitura, visão, audição, criação, aprendizagem
são capturados por uma informática cada vez mais avançada.” (Lévy, 1990, p. 7).

Ao abordar o papel das tecnologias da informação na constituição das cul-


turas e da inteligência dos grupos, Lévy refere-se a uma história mais fundamen-
tal que a das idéias: a história da própria inteligência.
“Os coletivos cosmopolitas compostos de indivíduos, instituições e técnicas não
são somente meios ou ambientes para o pensamento, mas sim seus verdadeiros
sujeitos. Dado isto, a história das tecnologias intelectuais condiciona (sem no en-
tanto determiná-la) a do pensamento.” (Lévy, 1990, p. 19).

Numa época de rápido e profundo desenvolvimento tecnológico, em que


as pessoas estão presentes grande parte do tempo num ambiente digital e com
experiências e interacções virtuais, a percepção da realidade (para não falar da
própria “irrealidade” ou “desrealidade”) é influenciada (modificada) e fragmen-
tada (parcelada) pelos dispositivos e meios de comunicação. Por isso, participa-
se numa realidade virtual ou numa realidade aumentada ou realidade alternativa.
Nenhuma destas “realidades” é propriamente a realidade, a física e concreta, ou
seja, a tradicionalmente percebida como aquela que é exterior ao próprio sujeito

259
Um groupware é um tipo de sistema colaborativo focado no trabalho em grupo. Os sistemas de
groupware surgiram dos estudos sobre comunicação mediada por computador. Trata-se de uma
plataforma de colaboração, uma ferramenta que faculta novas maneiras de interactividade
profissional, favorecendo a coordenação, comunicação e controlo.
Sociologia da Comunicação
361

que a percepciona; são ambientes virtuais produzidos pelos dispositivos tecno-


lógicos e nos quais imergimos.
A realidade aumentada define-se pelo acrescento (por isso é aumentada)
de elementos virtuais, dados ou informações no ambiente (chamado de “reali-
dade”) onde imergimos e com os quais interagimos (e.g. o Pokemon Go). Em Vir-
tual reality and augmented reality: Myths and realities, Bruno Arnaldi, Pascal Guitton
e Guillaume Moreau caracterizam assim a realidade aumentada:
“O objectivo da realidade aumentada é enriquecer a percepção e o conhecimento
de um ambiente real, adicionando informação digital relacionada com esse am-
biente. Esta informação é frequentemente visual, às vezes auditiva e raramente é
háptica. Na maioria das aplicações da realidade aumentada, o utilizador visualiza
imagens sintéticas através de óculos, auscultadores, projectores de vídeo ou até
mesmo através de telemóveis/tablets. A distinção entre estes dispositivos é baseada
na sobreposição de informações sobre a visão natural que os três primeiros tipos
de dispositivos oferecem, enquanto o quarto oferece apenas visualização remota,
o que leva certos autores a excluí-lo do campo da realidade aumentada.” (Arnaldi,
Guitton & Moreau, 2018, p. xxvi).260

Quanto à realidade virtual, esta define-se pelo que não é nem pode ser tan-
gível, pelo que, em sentido comum, é o ilusório, o irreal ou o que não tem exis-
tência material concreta, pois o virtual é o que está “desterritorializado”. A
realidade virtual é caracterizada pela imersão, que nos permite interagir com um
ambiente composto por imagens produzidas por computador. Através da imersão,
entramos (tomando a iniciativa) ou somos transportados (apenas mentalmente,
quando somos guiados pelas imagens) para uma dimensão ou “mundo” virtuais,
conforme acontece quando jogamos um jogo de computador ou vemos um filme
em três dimensões com óculos apropriados (e.g. os Google Glass). De acordo com
Jason Jerald, em The VR book: Human-centered design for virtual reality:
“A realidade virtual (RV) pode fornecer às nossas mentes acesso directo aos media
digitais de uma maneira que aparentemente não tem limites. No entanto, criar ex-
periências atraentes de RV é um desafio incrivelmente complexo. Quando a RV é
bem executada, os resultados são experiências brilhantes e agradáveis que vão
além do que podemos fazer no mundo real.” (Jerald, 2016, p. 1).261

260
Tradução do autor a partir do original em inglês: “The goal of AR [augmented reality] is to enrich
the perception and knowledge of a real environment by adding digital information relating to
this environment. This information is most often visual, sometimes auditory and is rarely haptic.
In most AR applications, the user visualizes synthetic images through glasses, headsets, video
projectors or even through mobile phones/tablets. The distinction between these devices is based
on the superimposition of information onto natural vision that the first three types of devices
offer, while the fourth only offers remote viewing, which leads certain authors to exclude it from
the field of AR.”
261
Tradução do autor a partir do original em inglês: “Virtual reality (VR) can provide our minds with
direct access to digital media in a way that seemingly has no limits. However, creating
compelling VR experiences is an incredibly complex challenge. When VR is done well, the results
are brilliant and pleasurable experiences that go beyond what we can do in the real world.”
Paulo M. Barroso
362

A realidade virtual permite ao seu utilizador a execução virtual de uma


tarefa. O utilizador acredita que está a agir no mundo real, pois a realidade virtual
gera e suscita essa sensação. A tecnologia “engana” o cérebro, fornecendo infor-
mações idênticas às informações que o cérebro perceberia no ambiente real (cf.
Arnaldi, Guitton & Moreau, 2018, p. xxii).
O conceito de “realidade virtual” é paradoxal, contradiz-se, pois o que é
realidade (i.e. o estado ou qualidade de ser real) não pode ser virtual. A realidade
virtual corresponde a um ambiente artificial que é experienciado através de es-
tímulos sensoriais, tal como acontece com a própria realidade, nomeadamente
visões e sons, mas provocados por computador e que desencadeiam respostas
(cf. Jerald, 2016, p. 9).
“A comunicação também pode ser entre humanos e tecnologia - um componente
essencial e base de RV [realidade virtual]. O design de RV está relacionado com a
comunicação de como o mundo virtual funciona, como esse mundo e os seus ob-
jectos são controlados e a relação entre o utilizador e o conteúdo: idealmente onde
os utilizadores estão focados na experiência ao invés da tecnologia.” (Jerald, 2016,
p. 10).262

A realidade virtual é comunicação. Tradicionalmente, a comunicação é a


interacção entre duas ou mais pessoas, mas agora, com as novas tecnologias, a
comunicação torna-se mais abstracta e é também a transferência de energia entre
duas entidades, até mesmo a causa e o efeito de um objecto colidindo com outro
objecto (cf. Jerald, 2016, p. 10).

262
Tradução do autor a partir do original em inglês: “Communication can also be between human
and technology–an essential component and basis of VR [virtual reality]. VR design is concerned
with the communication of how the virtual world works, how that world and its objects are
controlled, and the relationship between user and content: ideally where users are focused on
the experience rather than the technology.”
Sociologia da Comunicação
363

13.5. Questões para revisão e reflexão


1. Quais são as características do tempo contemporâneo e das sociedades
contemporâneas? O que é ser contemporâneo?
2. Existe suficiente literacia dos media para o comum dos públicos conse-
guir discernir o que é verdade do que é falso nos conteúdos veiculados
pelos meios de comunicação social?
3. A comunicação electrónica é irreversível? A comunicação electrónica
será a forma de comunicação dominante na sociedade num futuro pró-
ximo? Será o auge ou quinta-essência da comunicação?
4. A interacção permanente através de ecrãs e à distância demarca ou as-
simila o sujeito e o objecto?
5. O poder da comunicação diminui, permanece idêntico ou aumenta com
o uso das novas tecnologias e meios de informação e comunicação?
Sociologia da Comunicação
365

Conclusões
“Estamos num universo em que existe cada vez
mais informação e cada vez menos sentido.”
(Baudrillard, 1991, p. 103).

As sociedades iniciaram um longo e complexo processo de desenvolvi-


mento a partir do século XVIII, altura em que um conjunto de transformações
(sociais, económicas, políticas e tecnológicas) exigiu adaptações nas estruturas
sociais e nas condições de vida. Os modos de funcionamento e regulação das so-
ciedades foram, por conseguinte, profundamente transformados. Juntamente
com este processo de desenvolvimento e este conjunto de transformações nas
sociedades, abriu-se um campo de estudo inédito e propício a uma ciência do so-
cial, i.e. à Sociologia enquanto campo de estudos específico de inteligibilidade
do social. Por mais abstracto e abrangente que seja ou que se apresente o social,
enquanto objecto de estudo, a Sociologia surge com este desígnio racional, sis-
temático, ambicioso e necessário: conhecer e compreender os diversos aspectos
da vida social e da organização colectiva.
A Sociologia surge no início do século XIX com a modernidade. Surge pre-
cisamente como resposta ao desenvolvimento das sociedades e às transforma-
ções sociais anteriores, como é o caso da industrialização, da urbanização e das
revoluções políticas e introdução de novas ideias e ideais (direitos, liberdades e
garantias democráticos). Os pensadores de então dirigiram a atenção para a na-
tureza das sociedades e para as ditas transformações sociais, nomeadamente
para os novos problemas que advinham do processo complexo de modernização
e desenvolvimento das sociedades. Assim, a institucionalização da Sociologia
como ciência do social verifica-se, efectivamente, depois da Segunda Guerra Mun-
dial, com base no princípio fundamental de conhecer para ser possível prever e
controlar os fenómenos e processos sociais.
Apesar do surgimento tardio da Sociologia como ciência, os temas e pro-
blemas relativos ao social (aos modos de vida em sociedade; à integração, ordem
e interacção sociais; às práticas sociais; aos fenómenos e processos sociais; às re-
lações quer entre os indivíduos num espaço comum quer entre estes e as insti-
tuições sociais; etc.) foram precocemente estudados por muitos autores, desde o
século V a.C. (com os pensadores da Antiguidade Clássica Grega) até ao século
XVIII (com os pensadores do Iluminismo). Os autores considerados os fundadores
efectivos da Sociologia (Comte, Marx, Durkheim e Weber) surgem depois destes,
mas num contexto favorável ao surgimento de uma nova ciência inédita que
compreendesse os problemas e os fenómenos novos que ocorriam.
Depois destas duas fases (a dos antecedentes e a dos fundadores da Socio-
logia) e considerando o campo e o objecto de estudo demasiado vastos da ciência
do social, verifica-se a necessidade epistemológica em ramificar esta ciência con-
Paulo M. Barroso
366

soante certas áreas mais peculiares. Em meados do século XX, mais uma vez com
o surgimento e o desenvolvimento de um fenómeno/processo social (os meios
de comunicação social), reconhece-se nas sociedades, sob a influência desses
meios de comunicação, a pertinência científica para um novo ramo da Sociologia:
a Sociologia da Comunicação (ou Sociologia dos Media). Principalmente a partir
do exponencial protagonismo da televisão nos hábitos de consumo e nas atitudes
e comportamentos sociais, a Sociologia da Comunicação surge como resposta a
uma necessidade de compreensão das interacções e influências entre os meios
de comunicação e as pessoas. Os meios de comunicação social são meios de mas-
sas e, por conseguinte, a extensão dos meios nas estruturas sociais alarga as in-
fluências dos ditos meios sobre as pessoas e, de um modo mais alargado, sobre
as sociedades. Estas tornam-se sociedades de massas por via dos efeitos dos
meios de comunicação social. Aqui temos outros dois fenómenos interligados (os
meios de comunicação social, por um lado, e a massificação das sociedades ou
as sociedades de massas, por outro lado) que são específicos do campo de estudo
da Sociologia da Comunicação.
Depois do surgimento e desenvolvimento dos meios de comunicação social
e depois, também, de se notarem os consumos, influências e efeitos imediatos e
maciços destes meios de comunicação sobre as pessoas, o século XX regista ainda
um outro fenómeno social importante para o estudo e compreensão da Sociolo-
gia: a globalização.
O fenómeno social da globalização está relacionado ainda com outro fenó-
meno social, que é igualmente específico do campo de estudos da Sociologia da
Comunicação: as sociedades virtuais. As sociedades nunca deixaram de ser siste-
mas e estruturas sociais. Agora, passam a ser sistemas e estruturas sociais não
sujeitos a padrões convencionais de dimensão e de interacção. Os processos tec-
nológicos alargam as ofertas de dispositivos de informação, promovendo o uso ex-
ponencial e mais opcional dos mesmos através de ligações a redes informáticas.
A Sociologia da Comunicação interessa-se, igualmente, por esta nova ver-
tente virtual ou digital das sociedades, demonstrando que este ramo científico
continua pertinente e actual. Tomando como exemplo o recente campo de actua-
ção dos novos media e do espaço de interacção social das comunidades virtuais,
a Sociologia da Comunicação presta um contributo válido e original na compreen-
são das sociedades, dos meios de comunicação e das suas respectivas e perma-
nentes transformações. A Sociologia da Comunicação abarca um quadro
epistemológico e compreensivo em desenvolvimento, porque as próprias socie-
dades tecnológicas estão ainda a evoluir rumo a um futuro incerto, dinâmico e
moderno da comunicação mediada por computação no ciberespaço.
Por conseguinte, tem tão completa pertinência e relevância como parado-
xismo a epígrafe de Baudrillard no início destas conclusões: vivemos numa época
e num universo onde cada vez há mais informação e menos sentido.
Sociologia da Comunicação
367

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