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Poéticas brincantes: Intermidialidade e cultura popular na obra de Manuel Messias

Luiz Carlos Machado (Doutorando/UNIOESTE)


luicarmlcm@gmail.com

Resumo: A intermidialidade, emergida dos estudos comparados da literatura a partir dos anos 1990,
destaca-se como uma concepção produtiva no âmbito das relações entre diferentes formas de arte.
Esse conceito preenche lacunas deixadas por termos anteriores, permitindo a exploração investigativa
de interseções midiáticas. Ao focar em elementos cotidianos, certos artistas brasileiros recriam e
combinam elementos comunicativos e culturais reconhecíveis popularmente. Estas expressões, aqui
chamadas de "poéticas brincantes", englobam a intermidialidade que dialoga com ícones da cultura
popular e correntes artísticas contemporâneas. A obra de Manuel Messias se alinha com este conceito,
ao realizar uma abordagem intermidiática quase instintiva, partindo de uma raiz primitiva das mídias.
Suas criações gráficas incorporam elementos folclóricos, religiosos e da cultura pop, organizando
linhas, formas, figuras e letras de forma concisa e original. Para embasar essa abordagem teórica,
serão utilizados os escritos sobre intermidialidade de autores como Irina Rajewsky (2012), Claus
Clüver (2011), Dick Higgins (2012), e sobre arte e cultura brasileira, Andrade (1990), Gullar (1978),
Câmara Cascudo (2004), Suassuna (2008), Candido (2006), assim como as contribuições de Bakhtin
(1981) sobre cultura popular e carnavalização.

Palavras-chave: Intermidialidade, Interartes, Cultura Popular, Arte contemporânea brasileira.

1 Introdução

Derivado dos estudos comparados da literatura a partir dos anos 1990, a


intermidialidade se apresenta como uma ideia de robusta fecundidade no campo das relações
interartes, em especial, quando articulada nas lacunas deixadas por termos equivalentes que a
precederam. Rajewsky (2012) compreende intermidialidade como um “termo guarda-chuva"
(p.16), capaz de abarcar inúmeras abordagens críticas em pesquisas que tange linguagem
artística, mídia e comunicação. Essa abrangência se dá, acima de tudo, por conta do termo ser
composto pelo prefixo inter, que incorpora todas as combinações, transposições e referências,
e mídia que pode designar linguagens, suportes, técnicas e dispositivos.
Assim, por meio da intermidialidade, é possível lançar um olhar investigativo para
várias formas de cruzamentos de fronteiras midiáticas, por exemplo, em produções artísticas
que emergem entre os elementos da cultura popular. Artes populares como a literatura de
cordel, bem como outras práticas de artistas que apropriam e remediam manifestações do
povo e das ruas, carregam em sua base uma natureza híbrida conectada ao primitivo das
mídias. Moser (2006) defende uma longa tradição de relações entre as artes, na qual uma
visão transversal das mídias artísticas se fundamenta no fato de que as linguagens se
desenvolveram ladeadas à própria evolução humana. Nesse sentido, quanto mais anexado ao
cotidiano popular, mais possibilidades intermidiáticas parecem apresentar uma materialidade.
Na arte brasileira, sobretudo contemporânea, o jogo com a cultura popular é um fator
preponderante na busca de "elaborar os meios capazes de exprimir, em termos atuais, a
problemática do homem brasileiro” (GULLAR, 1978, p. 54). Pois, ao se aproximar do que é
próprio do cotidiano do homem comum, o artista brasileiro reelabora e combina elementos
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comunicativos e representações culturais que são naturalmente identificáveis. Estas


produções, que por esta pesquisa serão denominadas poéticas brincantes, são
intermidialidades que "brincam" tanto com objetos, ícones e símbolos da cultura popular,
quanto com as tendências artísticas contemporâneas.
Suassuna (2008) defende que "o caminho da Arte e da Literatura brasileira deve ser o
da integração, e não o das discriminações" (p. 159), por isso, deve estabelecer práticas de
superação de hierarquias de mídias, valendo-se de referências colhidas da tradição oral e do
acadêmico. Nas poéticas brincantes, "entram nos contatos e combinações carnavalescas, todos
os elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos outros pela cosmovisão
hierárquica extracarnavalesca” (BAKHTIN, 1981, p. 106). Nesse pensamento, ao inter
relacionar mídias literárias e visuais apropriadas do cotidiano, popular e primitivo, as poéticas
brincantes ˜profanam˜ o artístico sacralizado.
A fim de ilustrar as relações intermidiáticas das poéticas brincantes, a presente
pesquisa selecionou um artista brasileiro que parecem se enquadrar de uma maneira mais
completa no que se pretende definir: Manuel Messias. Preto, migrante nordestino no sudeste
do país, segregado e excluído pela sociedade e pela academia, que se valeu do seu mundo e
imaginário pessoal, fruto de simbologias e objetos cotidianos, populares, folclóricos e míticos,
para expressar e ampliar suas existências e identidades.
No entanto, a ideia também não é uma distinção do que é puramente arte popular e
em qual, o proponente se apropria do popular para criar uma arte supostamente acadêmica.
Mas sim, uma tentativa de elencar em quais momentos essas barreiras hierárquicas são
superadas. Para tanto, esta pesquisa tem como objetivo, propor o conceito de Poéticas
Brincantes como uma como uma tentativa de definição de materialidades intermidiáticas que
se apropriam da cultura popular brasileira e geram uma desierarquização de mídias.
O aporte teórico será oferecido pelos escritos acerca da intermidialidade de Irina
Rajewsky (2012), Claus Clüver (2011), Dick Higgins (2012), sobre arte e cultura brasileira,
Andrade (1990), Gullar (1978), Câmara Cascudo (2004), Suassuna (2008), Candido (2006) e
as contribuições sobre cultura popular e carnavalização de Bakhtin (1981).

2 A intermidialidade

No cerne dos estudos comparados de literatura, sobretudo nas pesquisas interartes,


reside um dos mais produtivos temas das humanidades, como afirma Rajewsky (2012): a
intermidialidade. Trata-se de um conceito que engloba as inter relações de linguagens,
mecanismos e materialidades da arte e comunicação. Por ter como base a ideia de
midialidade, seu raio de atuação contempla tanto os fundamentos das práticas artísticas e
comunicativas convencionais e tradicionais, quanto a análise de seus cruzamentos e
combinações ao longo da história e, principalmente, na contemporaneidade. Rajewsky (2020)
aponta a intermidialidade como uma forma mais diligente de lidar com assuntos já tratados, a
longa data, pelos estudos interartes, pois ampliou o leque de articulações teóricas, técnicas e
materiais.
As primeiras pesquisas são desenvolvidas na tentativa de sanar as dúvidas que
emergem dos debates da literatura comparada, sobretudo nos pontos em que o literário não dá
conta. Apesar da interdisciplinaridade do comparatismo atestado por Carvalhal (1991),
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algumas questões que tangem, por exemplo, o pictórico ou o sonoro e que não podem ser
tratados pelo verbal de forma mais concisa.
Nesse sentido, a intermidialidade surge como solução eficaz, pois “serve para
designar configurações, procedimentos e processos implicando várias mídias, nos quais entra
em jogo, portanto, um atravessamento das fronteiras midiáticas” (RAJEWSKY, 2015, p. 64).
A amplitude da sua articulação foi além dos estudos interartes, atraindo pesquisadores que
não se limitavam à área literária, abarcando outros campos das artes, da comunicação e das
ciências humanas.
Essa amplitude de atuação se dá pela própria construção do termo, composto por
“Inter”, que configura tudo aquilo que está entre, todas as trocas e relações, e “Mídia”, tudo
aquilo que é passível de se tornar veículo de um texto ou narrativa. Bruhn (2020) entende
midialidade como o eixo do fenômeno fixado entre dois pontos no processo de comunicação,
“[...] ou seja, entre o produtor e a mensagem e entre a mensagem e o receptor [...]" (p.21).
Numa perspectiva semiótica, a mídia é aquilo que carrega o signo, ou o próprio signo, na
transmissão de uma mensagem.
Mídia, na maioria das vezes, é reduzida a apenas meios de comunicação como jornal,
rádio e televisão, no entanto, Clüver (2007) sugere que pode ser entendido também por meios
físicos como técnicas, suportes, dispositivos e materialidades. Sendo assim, a
intermidialidade, ao ancorar suas definições nos desdobramentos da mídia, opera tanto na
arqueologia das linguagens e mecanismos da arte e da comunicação, quanto nos “cruzamentos
das fronteiras” midiáticas. Além disso, realoca os recursos estéticos numa relação horizontal:
um poema ocupa o mesmo lugar narrativo que um cartaz de supermercado, no sentido que
tudo é mídia e pode ser apropriado na elaboração de um fenômeno estético, as hierarquias
parecem ter sido suplantadas.
Dick Higgins (2012) ao usar o termo “Intermídia”, revisitando uma expressão
utilizada por Samuel Taylor Coleridge em 1812, declara que a separação das mídias geradas
pelo pensamento renascentista foi superada na criação de obras que parece estar entre mídias.
O autor observa em práticas vanguardistas, como as de Duchamp e Rauschenberg, que se
apropriam de elementos do cotidiano na criação de suas obras, uma tentativa de abandonar
certa sacralização da arte que foi erigida no decorrer da história.

3 Poéticas brincantes

Foram essas mesmas vanguardas que impulsionaram os artistas brasileiros a uma


tentativa de renovação dos registros artísticos da nossa identidade nacional. Assim como na
Europa, que a origem do moderno se deu nas pesquisas do primitivismo, o Modernismo
brasileiro tem como pedra fundamental: o popular, o vernacular e a ancestralidade indígena e
africana. Gullar (1976) afirma que o Modernismo brasileiro “é uma negação de tudo o que se
fez antes, um começar de novo, mas num nível de amadurecimento e consciência jamais
alcançados antes” (p. 19). Esse amadurecimento, se dá, em parte, pelo conceito da
Antropofagia de Andrade (1990), que ambicionava, numa referência metafórica aos rituais de
antropofagia dos povos originários, deglutir as referências estrangeiras e torná-las latinas e
brasileiras.
O anseio de edificar uma arte que refletisse verdadeiramente a brasilidade, que
oferecesse uma imagem identitária, de pertencimento, encaminhou o artista brasileiro, em
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diversos momentos da história, a voltar-se para o que a academia considerava primitivismo.


Muitas vezes, esse olhar foi demasiadamente turvado pelas opulências das estéticas europeias,
traduzindo-se assim, em apenas uma verborrágica e ufanista representação de estruturas
institucionalizadas. Com as ideias antropofágicas de Andrade (1990), essa apropriação das
raízes primitivas e populares, deixam de se restringir a mera citação ou pano de fundo para
reproduções de poéticas clássicas, para se tornar na principal forma de se conceber
artisticamente.
Seguindo esses pressupostos, o termo Poética brincante é uma tentativa de definir
certas práticas de artistas que, conectados com os anseios da cultura popular, dos festejos
religiosos e folguedos folclórico, com as simbologias e grafismos das ruas e das periferias,
apresenta uma representação da realidade brasileira sincera, híbrida e genuína. Manuel
Messias apresenta uma imbricação de objetos ordinários, artes plásticas e poesia em seus
trabalhos. Como muitos poetas e artistas visuais conectados à estética popular, se apropriam
instintivamente dos elementos vernaculares.

O termo vernacular sugere a existência de linguagens visuais e


idiomas locais, que remetem a diferentes culturas. Na comunicação
gráfica, corresponde às soluções gráficas, publicações e sinalizações
ligadas aos costumes locais produzidos fora do discurso oficial”
(FINIZOLA, 2010, p. 30).

A autora compreende como discurso oficial, justamente esses elementos estéticos


consagrados pela academia que por muitas vezes é tido como o único caminho possível. O
Vernacular postula um olhar particular para a comunidade, as representações gráficas, visuais,
artísticas e decorativas que um determinado grupo social elege como seu, de maneira natural.
Suassuna (2008) cita como exemplo, os cantadores e poetas populares do Nordeste
que mantêm uma atitude mais aberta em relação às inspirações de suas criações. E nesse
processo, acolhem desde elementos folclóricos e contos populares até filmes e personagens de
História em quadrinhos, recriam e remediam dentro de suas narrativas potentes da verdade da
rua e do povo. Manuel Messias, artista gravurista, empreendeu em sua obra, uma poética
visual e gráfica colhida de folhetos nordestinos, lendas folclóricas, ícones religiosos, cartazes
publicitários e Histórias em quadrinhos. Desta mistura, Messias produziu gravuras e pinturas
que propõe um diálogo intermidiático entre o mitológico, o popular e o gráfico.
Por isso, o uso do termo "brincante" parece se encaixar na compreensão dessas
poéticas e narrativas. Segundo Câmara Cascudo (1998), brincante é tanto o artista popular que
confecciona adereços, canta e dança, quanto aquele que participa apenas seguindo o cortejo de
festejos e folguedos folclóricos como o Carnaval, bumba-meu-boi ou boi bumbá, folia de Reis
e congadas. Todos esses rituais movidos pela fé e ancestralidade, carregam experiências que
mesclam teatralidade, música, dança, arte visual, artesanato e arquitetura (as ruas decoradas,
as casas, as igrejas) de forma natural, criativa e humana. O artista das poéticas brincantes tal
qual esses foliões e artistas de ruas transitam com suas produções entres os elementos desses
fenômenos populares e intermidiáticos, desierarquizando as mídias e as representações.
Essa profanação do sacralizado/erudito que brota tanto da igualdade na atuação dos
brincantes nos folguedos, quanto da atitude do artista popular em acolher recursos e mídias de
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diversas fontes para suas práticas, dialoga com a definição da cosmovisão carnavalesca
postulada por Bakhtin (1982):

As leis, as proibições e restrições, que determinavam o sistema e a


ordem da vida comum, isto é, extracarnavalesca, revoga-se durante o
carnaval: revoga-se antes de tudo, o sistema hierárquico e todas a
formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc., ou seja,
tudo que determinado pela desigualdade social hierárquica e por
qualquer outra espécie de desigualdade (inclusive a etária) entre os
homens. (p. 107)

A visão carnavalesca propõe uma superação das divisões e segregações impostas


pela vida cotidiana dentro de uma sociedade separada em classes e castas. Nessa mesma
dinâmica, saberes e práticas foram hierarquizadas, determinado, por exemplo, o conhecimento
acadêmico e erudito como um saber superior em relação ao popular. O artista das poéticas
brincantes, que emerge dessas camadas mais marginalizadas e segregadas propõe, com sua
atitude intermidiática, instintiva e carnavalesca, profanar essas separações como forma de se
expressar e afirmar sua existência.
E assim, fruto dessas ideias e pelos anseios de gerir representações identitárias que se
comunique com a realidade das camadas mais populares, as poéticas brincantes se
materializam como produtos de mídias que hibridizam poesia, comunicação visual, tipografia
urbana, projetos gráficos, História em quadrinhos, design vernacular, arte urbana, objetos
cotidianos e livros de artistas. Criando transmídias potentes, capazes de exprimir narrativas
múltiplas e enriquecedoras. “Ora, no Brasil as culturas primitivas se misturam à vida
quotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado recente” (CANDIDO, 2006, p.
127). Logo, as construções vanguardistas europeias que só puderam ser edificadas, graças a
uma incursão fora da cultura clássica e acadêmica, por aqui, se consolidam como um
construto instintivo, resultado de heranças culturais.

3 Poéticas brincantes de Manuel Messias

Manuel Messias, gravurista e pintor brasileiro imprime em sua obra, uma narrativa
que agrupa elementos semióticos que transitam entre a arte, religião e cultura popular
brasileira. Suas gravuras são potentes de "[...] referências populares, originárias da literatura
de cordel, o fazer artístico da xilogravura e carnal, sensual (PEIXOTO, p. 30, 2021). As
características brincantes principais da obra desse artista se inserem em dois fatores: Por
empreender em suas práticas, um jogo livre com mídias e elementos cotidianos e por ser
subversor do papel de exclusão que a sociedade vigente os impunha. Criar, nesse caso, não
tem a ver apenas com volúpia artísticas, mas também como uma forma de afirmar-se ante as
forças que os oprimiam.

Trouxe a fome, a miséria e a seca como memória dessa primeira


infância. Na cidade grande cresceu entre dois mundos: as casas de
classe alta, onde sua mãe trabalhava como empregada doméstica e
a vida em comunidades pobres e violentas da periferia carioca.
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Nesses paradoxos tão comuns num Brasil de desigualdades, forjou-se


Manuel Messias"( PEIXOTO,p. 29, 2021).

Seus primeiros contatos com a arte se dão pelos livros de Arte e Histórias em
quadrinhos nessas casas, onde sua mãe trabalhava. Seus primeiros desenhos são personagens
de gibis, essa referência midiática lhe acompanhará durante toda a sua produção. O requadro,
o Lay-out de página e a imbricação de imagem e palavra, recursos próprios das histórias em
quadrinhos configura uma das bases das suas composições. No entanto, foi em contato com os
gravurista Ivan Serpa e Maria Inês que Messias encontrou sua técnica mais explorada: A
xilogravura.
Xilogravura é um processo de gravação muito difundida no Medievalismo, no qual
se usa uma madeira esculpida como matriz, era muito utilizada na produção de cartazes e
folhetos. No Brasil, sobretudo na região Nordeste, é fartamente utilizada para ilustrar os
folhetos de poesia popular conhecidas por literatura de cordel.

Figura 1: "O que tem na fala do cão da Lua?" de Manuel Messias.

Fonte: COSTA, PEIXOTO, 2020, p.146.

Nessa forma de arte hibridizada e intermidiática aglutina-se elementos da cultura


popular colhidos de diversas fontes como a novela de cavalaria medieval, a religiosidade
ibérica, africana e nativa e produtos da contemporaneidade. Na obra de Messias é possível
perceber nitidamente as referências das xilogravuras da literatura de cordel, tanto na sua
composição formal quanto na atitude de apropriação de elementos da cultura popular
tradicional do nordestino e de elementos da publicidade e do Pop.
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"Os folhetos ao mesmo tempo que mantém a raiz brasileira, não se


fecham ao que vem de fora: pelo contrário, acolhem tudo, desde os
contos da tradição oral até peças representadas nos circos ou filmes
exibidos no cinema, fitas a que os Poetas assistem por acaso e que
aparece recriadas em folhetos de sua autoria, com a mesma força e a
mesma peculiaridade das histórias mais tradicionais" (SUASSUNA,
p.159,2008).

Messias, em sua casa na comunidade da Cidade de Deus no Rio de Janeiro, imprimiu


em suas gravuras todos os signos que um homem preto, migrante e de periferia podia colher.
Somado ao fato que fez parte de uma geração de artistas que produziram em meio às
dificuldades da ditadura militar, suas composições são sempre impregnadas de dor e
denúncia. "A censura, a repressão violenta, o medo e a revolta fazem parte, de uma maneira
ou de outra, da base estrutural da produção intelectual e artística desse período" (PEIXOTO,
p.31, 2020). Sendo assim, suas criações, em sua maioria, são signos da miséria humana
promovida por um regime opressor unidos a elementos da cultura popular como a poesia e o
folclore nordestino, as cores e as formas de revistas em quadrinhos, almanaques e revistas
populares.
Tanto os processos de criação, quanto a atitude criadora desse artista são dinâmicas
que conversam com uma das características principais da cosmovisão carnavalesca de Bakhtin
(1982), a profanação do sacralizado e das hierarquias. Suas composições gráficas reúnem o
vernacular, a religião e a cultura pop, estruturam linhas, formas, figuras e letras de uma
maneira concisa e original. Messias reelabora componentes gráficos reconhecíveis e
consagrados, como a palavra e a escrita, em um outro processo de decodificação e leitura.

A verdade é que Messias gravou as suas novas letras e palavras com


igual intensidade e desejo com que gravou, desenhos e pintou
imagens. A diferença é a de que o registro de produção imaginária
não se dá na mesma frequência dos garfos que caracterizam a sua
produção escrita-gravada. (GUTMAN, 2021, p. 85.)

Messias propõe um exercício intermidiático quase instintivo porque parte da


aproximação ao primitivo das mídias. Trata as letras como recurso pictórico desconectado das
funções simbólicas construídas ao longo da história das sociedades, buscando assim outras
conexões sígnicas:

Figura 3: "Ecce homo - série Via-sacra" de Manuel Messias.


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Fonte: COSTA, PEIXOTO, 2020, p.148.

Ao jogar com o design das letras, articulando recursos de tipografia com traços e
formas de construções figurativas, Messias desloca, em parte, a letra da sua função tradicional
que é de invocar sons e fonemas. A letra se torna um construto pictórico, tornando-se mais um
ícone dentro da composição. Essa é uma prática própria das Histórias em quadrinhos, dos
folhetos da literatura de cordel e da publicidade, nas quais, títulos, falas, onomatopeias, avisos
e marcas se transformam em ilustrações. No entanto, a iconografia tipografada de Messias nos
remete a algo anterior, nos conecta com a reminiscência dos primórdios das mídias, aos
códices medievais, às escritas pictográficas em pergaminhos antigos.
Essa conexão que tange, quase, a um primitivismo, é alcançada por Manuel Messias
que, imersos nos inúmeros fenômenos da linguagem que o cercava, elabora um inventário
imagético próximo ao ritualístico. Messias “[…] se coloca no papel de observador atento do
seu entorno e busca registrar, em sua obra, peculiaridades do ambiente em que está inserido,
assim como fragmentos fotográficos da produção efêmera e espontânea de designer anônimos
provenientes do povo […].(FINIZOLA, 2010, p. 32). Na articulação desses signos, memórias
e representações culturais primárias são resgatadas e reelaboradas nessas poéticas brincantes.
Sendo assim, levando em consideração os pressupostos que fundamentam a definição
de poéticas brincantes, proposta para este trabalho, Manuel Messias parece ser um importante
representante dessa compressão de Arte que nasce desse olhar tão verdadeiro sobre o Brasil.
"[...] E se não foi reconhecido ainda como tal, é porque representa essencialmente um
apagamento histórico que cai sobre os indivíduos menos estruturados, negros e pobres nesse
país" (PEIXOTO, p. 32, 2020).
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4 Conclusão

A intermidialidade, no seu papel de campo de investigação artística e literária, lança


luz para os debates em torno das materialidades, sobretudo contemporâneas, que são
elaboraras no limite das fronteiras midiáticas. Na volúpia de classificar e determinar
midialidades, a academia e a comunidade artística elencaram e hierarquizaram linguagens e
mídias, gerando um inventário canônico. Quando uma obra, no cerne de sua composição,
hibridiza e remedia recursos advindo de diversas mídias, sua compreensão, muitas vezes,
tange o indefinido e o questionável. Nesse caso, uma análise intermidiática, parece ser um
caminho paupável de entendimento.
E ao tomar a intermidialidade como um estudo de base das mídias, é possível perceber
que verticalidade das fronteiras midiática é algo interligado à origem das linguagens e à
comunicação humana. Ou sejam, quanto mais conectado ao primitivismo das mídias, tanto
mais intermidiática são as estruturas de uma materialidade. Por isso, muitas das produções
relacionadas a cultura popular tende a ser intermidiáticas por estarem próximas a esse
primitivismo midiáticos.
Na arte brasileira contemporânea, encontramos artistas que por estarem imersos na
cultura vernacular de comunidades, vilarejos e grupos sociais populares, elaboram obras que
habitam as fronteiras midiáticas das linguagens e se apropriam de elementos e signos desses
lugares. Esta pesquisa propõe o conceito de Poéticas brincantes como uma forma de entender
essas obras e dar visibilidade a artistas que são poucos ou quase nada pesquisados pela
academia.
Poéticas brincantes são práticas artísticas que carregam nas suas composições a
essência das tradições e das representações populares, pois nasce no seio da cultura do povo e
das ruas. Consistem em materialidades que transitam entre os limites das midialidades e
“brincam” com recursos das linguagens artísticas. Encarnam em seus construtos, os
fundamentos básicos da cosmovisão carnavalesca proposta por Bakhtin: a superação das
hierarquias e profanação dos cânones. Por isso, se consolidam como emblemas carnavalizado
da realidade brasileira que hibricam tradição oral, religiosidade e arte popular.
A obra do gravurista e pintor brasileiro Manuel Messias, parece ser a representação
precisa de Poéticas brincantes, pois reúnem elementos da Literatura de cordel, história em
quadrinhos e ícones religiosas. Recriam tipografias vernacular em simbologias que
rememoram ancestralidades e a primitivo das mídias. Por serem produzidas pela apropriação
da cultura popular resultam em materialidades que ultrapassam as fronteiras midiática.
Em suas gravuras, imprime todos os signos que apenas uma vida inserida em todas as
periferias possíveis poderia colher. São obras populares e proximais, pois articula-se em
diversos níveis semiótico e carrega a força e o encantamento das veredas do sertão e as ruas
da periferia brasileira. Que cada dia mais, as escolas, academias e espaços de cultura possa
celebrar esse grande artista e que o faça ocupar seu lugar de direito na história da Arte.

REFERÊNCIAS

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