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CULTURA VISUAL: RUMO À COMPREENSÃO DE OUTROS

UNIVERSOS NO ENSINO DE ARTES, SEGUNDO A VISÃO DE


ANA MAE BARBOSA E FERNANDO HERNANDEZ.

Introdução
A tendência educativa no ensino de Arte atual (pós-modernista)
no Brasil, grande parte difundida por Barbosa (2003), tem sofrido
mudanças e enfatizado a “interrelação entre o fazer, a leitura da obra
de Arte (apreciação interpretativa) e a contextualização histórica, so-
cial, antropológica e/ou estética da obra” (Barbosa, 2003, p.17). Esta
é uma das orientações principais, que tem levado uma boa parte dos
arte-educadores a direcionar o ensino de Artes sobre os principais
artistas e movimentos artísticos de diferentes partes do mundo, eu-
ropeus, norte-americanos e brasileiros.

Quatro conceitos chaves da modernidade cultural que se


entrelaçaram como a modernidade estética que chegaram a
converter-se em destacados mecanismos educativos: epistemologia,
identidade social, localização e saúde psicológica, conceitos que
tem configurado o currículo e determinado o sentido de
informação que constitui seu conteúdo (Efland, 2003, p.44,
tradução nossa).
A educação moderna muito arraigada entre nós, segundo Bar-
bosa (2003) e Efland (2003), comprometia-se anteriormente, até os
inícios dos anos 80, com o desenvolvimento da expressão pessoal do
aluno e com as leituras de obras de Arte baseadas no pensamento for-
malista e a-social de análise. Podemos entender que:

A elaboração de uma filosofia caracterizada por uma análise a-social, for-


mal, e quase-científica da arte adquiriu grande importância para a comu-
nidade da arte. As representações científicas das preocupações formais
e expressivas da comunidade da arte tomaram ao menos duas formas
con- trovertidas no pensamento moderno. Em arte se concebeu como
objetivo (em termos de uma ciência formalista) e subjetivo (de acordo com
a carac- terização da psicologia de um artista infantil, mitológico, genérico
e livre- mente expressivo) (Efland, 2003, p.41, tradução nossa).

O enfoque acentuado no fazer (experimentar) em Arte acarre-


tou em um ensino superficial, baseado no ensino de técnicas, que não
permitia construir os sentidos necessários para que os alunos pudes-
sem perceber e compreender os significados da Arte, relacionamentos
entre Arte e cultura, diversidade das culturas e a própria identidade.
O conceito moderno de identidade baseou-se na absoluta particulari-
dade do sujeito, centrando-se na idéia de individualismo. Neste con-
texto, a história se apercebia como uma acumulação de atos individu-
ais de expressão encarnados em objetos feitos por pessoas de “gênio”,
supostamente inatos, pertencentes a determinadas classes sócio-eco-
nômicas, e vistos como alheios a interesses sociais, econômicos ou
políticos. E, segundo Efland (2003), enquanto promovem a expressão
autônoma na produção artística das escolas, os currículos ainda man-
têm a noção de individualismo.
No final da Segunda Guerra Mundial, a escola perpetuou o
medo causado pelas características autoritárias da guerra. Em con-
seqüência disso, passou-se a considerar como patológico se professor
e/ou aluno fossem portadores dessas caracte-rísticas, e os psicólogos
profissionais trabalharam para ajudar o público em geral e aos edu-
cadores para prevenir estes traços nas crianças. “A tensão entre a ve-
neração por uma epistemologia de certezas e os temores que suscitava
o autoritarismo forta-leceu a vertente terapêutica da escola de arte”
(Efland, 2003, p.43, tradução nossa).
O pensamento moderno também contribuiu para a crença da
universalidade da Arte, de uma Arte de nível “superior”, levando os
museus, e o ensino de Arte, a considerarem apenas as estéticas erudi-
tas de código alto. A crença surgida da supremacia do Ocidente, se-
gundo Efland (2003), surge das formas territoriais estáveis que abri-
gavam culturas estanques em seus limites naturais. Decorrente ainda
da concepção modernista, uma visão evolucionista da história social,
a sociedade sempre progrediu para formas melhores, e em paralelo
com o avanço da ciência, perfeccionismo tecnológico e aumento das
liberdades. Culminando com o pensamento ainda vigente que situa
os Estados Unidos como centro da Arte mundial.

Desde as ciências sociais norte-americanas apresenta-se


freqüentemente os Estados Unidos como o ator paradigmático deste
avanço histórico. Em muitos âmbitos (econômico, político, cultural,
etc.) as disciplinas profissionais norte-americanas encerram uma
visão complacente do progresso e a fé no papel salvífico desta nação,
destinada a trazer prosperidade e civilização ao resto do mundo”
(Efland, 2003, p.42, tradução nossa).

Entretanto a comunidade artística norte-americana, mais en-


tregue ao mercantilismo, “não parece em absoluto estar interessa-
da na livre competição internacional” (Efland, 2003, p.42). Há um
crescente aumento do poder empresarial americano atual que se ex-
pande em todos os aspectos do cotidiano em muitos países, incluin-
do o nosso, contribuindo para uma grande proliferação de produção
de imagens que, em sua maioria, visam a que os jovens se tornem
consumidores. Este seria um dos motivos pelo qual testemunhamos
hoje uma forte tendência de associar o ensino de Artes com a Cultura
Visual (Barbosa, 2003). O universo visual hoje é extremamente per-
suasivo, e vivemos em uma época onde as corporações multinacio-
nais atuam como forças na cultura das mídias. A natureza da cultura
infantil está sendo transformada pela cultura empresarial, e este fato
“torna-se claro à medida que as fronteiras que eram mantidas entre as
esferas da educação formal e do entretenimento entram em choque”
(Giroux, 2000, p.127).

Transformações no Ensino de Artes


evendo os conceitos modernistas, arte-educadores passaram a

R questioná-los e a incluir mudanças significativas no ensino de


Artes. O método da livre expressão foi muito utilizado em arte-edu-
cação como meio para liberar a emoção e desenvolver a criatividade
individual. Este conceito modernista que via na expressão pessoal,
uma possibilidade de todo ser humano ser um artista em potencial,
sacralizado pelas teorias psicanalíticas da Arte, “foi substituído pela
idéia de que todos podemos compreender e usufruir da Arte” (Bar-
bosa, 2003, p.17).
A intenção de se desenvolver a sensibilidade e criatividade
do aluno ampliou-se objetivando atingir um maior desenvolvimen-
to cultural do aluno. A Arte na educação como expressão pessoal e
como cultura para Barbosa é:

Um importante instrumento para a identificação cultural e o


desenvolvimento individual. Por meio da Arte é possível desenvolver
a percepção e imaginação, apreender a realidade do meio ambiente,
desenvolver a capacidade crítica, permitindo ao indivíduo analisar a
realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar
a realidade que foi analisada (Barbosa, 2003, p.18).

Acreditava-se, de acordo com o pensamento modernista, que


bastava fornecer ao aluno as técnicas para que este as devolvesse em
forma de trabalhos artísticos de maneira criativa. Assim, valorizava-
-se ao máximo a originalidade e a expressão individual. Já no pen-

2
Para David Perkins (1999) o desempenho flexível está relacionado com a compreensão. Com-
preender um tópico quer dizer “ser capaz de desempenhar-se flexivelmente em relação ao tópi-
co: explicar, justificar, extrapolar, vincular e aplicar de maneira que vá mais além do conhe-
cimento e a habilidade rotineira [...] é questão de ser capaz e atuar com flexibilidade a partir do
que se sabe. A capacidade de desenvolvimento flexível é a compreensão” (p.73, tradução nossa).
samento pós-moderno passou-se a valorizar mais a elaboração e a
flexibilidade2.
Considerando a leitura de obras de Arte na escola, tem havido
algumas implicações para se refletir neste contexto. A implicação cau-
sada pelo pensamento formal na leitura, e a escolha centrada em ima-
gens de obras tradicionais, ou como diz Barbosa (2003), as de código
alto, ou eruditas de conteúdo universal (determinadas pelo pensamento
moderno), fazem parte das considerações a serem pensadas no contexto.
A leitura do discurso visual, na educação que vem tentando se
fortalecer na contemporaneidade “não se resume apenas à análise de
forma, cor, linha, volume, equilíbrio, movimento, ritmo, mas princi-
palmente é centrada na significação que esses atributos, em diferen-
tes contextos, conferem à imagem” (Barbosa, 2003, p.18). Não mais
apenas se preocupando, ou perguntando o que o artista quis dizer,
mas sim o que a obra nos diz, em nosso contexto e em outros contex-
tos históricos. Ao caráter formalista da leitura da obra acrescentou-se
um meio de acesso à significação dos conteúdos através da interpre-
tação contextualizada.
A crítica da obra de Arte, no pensamento moderno, baseava-
-se nos seguintes aspectos: “disposição de linhas, cores, formas e tex-
turas; realismo e proporção; uso de materiais; e expressividade (de
acordo com as idéias preconcebidas de <<correção ou exatitude>>
definidas pelos experts)” (Chalmers, 2003, p.48, tradução nossa), o
que pressupunha a escolha de obras determinadas pela cultura as-
sociadas aos cânones pré-estabelecidos da Arte ocidental dominan-
te. Algumas idéias concretizadas pelo pensamento moderno acerca
de Arte ligadas à cultura, determinavam certas obras como sendo a
melhor arte:

A melhor arte do mundo tem sido realizada pelos europeus; As pinturas


a óleo, a escultura (em mármore ou bronze e a arquitetura
monumental são as formas artísticas por excelência; Existe uma
distinção hierárquica significativa entre arte e artesanato; A melhor
obra tem sido a obra feita por homens; A melhor arte tem sido criada
por gênios individuais; [...] A arte por excelência exige uma resposta
estética individual; o significado sociocultural é secundário (Chalmers,
2003, p.48, tradução nossa).
Perceberam os arte-educadores nessas colocações, que o que
foi estabelecido pelos cânones ocidentais fazia com que fosse excluída
a Arte realizada por outros grupos. Esses fatores, intimamente ligados
à noção de cultura que herdamos ao longo dos últimos séculos levan-
taram em diversas áreas, discussões a respeito da noção do conceito
moderno de cultura. Passou-se a questionar o conceito, o que acarre-
tou nas últimas décadas em ressignificações, em muito causadas pelos
embates relacionados à diferença e entre os diferentes, e opressão de
grupos dominantes sobre os demais. Por essas razões assistimos “um
crescente interesse pelas questões culturais, seja nas esferas acadêmi-
cas, seja nas esferas políticas ou da vida cotidiana [...] parece crescer
a centralidade da cultura para pensar o mundo” (Veiga-Neto, 2003,
p.5). Entre os arte-educadores da atualidade, relações entre Arte e
cultura, também têm adquirido mais importância desde que:

A Pós-Modernidade abriu portas à importância de entender a arte como


representação de significados cuja interpretação depende mais da compreensão
de códigos simbólicos e convenções culturais que circulam nos contextos de
origem da obra (do que aproximações formalistas) (Hernández apud Franz,
2004, p.3).

Entender as noções do conceito e significações da cultura au-


xilia também a compreender algumas mudanças ocorridas no ensino
de Artes, assim como multiculturalismo, que, por exemplo, foi uma
das respostas do pensamento pós-moderno ao monoculturalismo da
modernidade, além das leituras contextualizadas que se diferenciam
das leituras de caráter formalista, e recentemente uma maior predis-
posição a se incluir estudos da Cultura Visual em Arte.
É importante salientar que a modernidade centrou-se em uma
base comum de onde se partia para pensar a cultura e a educação.
Cultura significava:

Tudo aquilo que a humanidade havia produzido de melhor [...] Nesse sentido,
a Cultura foi durante muito tempo pensada como única e universal. Única
porque se referia àquilo que de melhor havia sido produzido; universal porque se
referia à humanidade, um conceito totalizante [...] Assim, a Modernidade esteve
por longo tempo mergulhada numa epistemologia monocultural (Veiga-Neto,
2003, p.7).
No século XVIII originou-se uma diferenciação entre alta e
baixa cultura, a partir do momento que “alguns intelectuais alemães
passaram a chamar de Kultur a sua própria contribuição para a hu-
manidade” todo um conjunto de coisas em que eles se consideravam
superiores (Veiga-Neto, 2003, p.7). Desde essa época, a cultura pas-
sou a ser entendida como algo elevado e único, e a alta cultura toma-
da como modelo para as demais. Na educação isso se refletia numa
busca em atingir um ideal de formas mais elevadas da cultura base-
ado em modelo já configurado ou convencionado por determinados
grupos.
Somente após haver sérios questionamentos no conceito mo-
derno de cultura em diversas esferas, acadêmicas artísticas e políti-
cas, que passou a existir maior possibilidade de se falar em culturas
em lugar de cultura com sentido único, ou singular. Do monocul-
turalismo que colocava “a ênfase no Humanismo e, em boa parte,
na estética”, passa-se a pensar em multiculturalismo, o que “muda a
ênfase para a política” (Veiga-Neto, 2003, p.11). Pensar em educação
multiculturalista, significa a possibilidade de uma direção mais de-
mocrática para a educação.
O caráter diferenciador, elitista e monocultural do pensamen-
to moderno levou os países do Terceiro Mundo, dos colonizados cul-
turalmente, e das minorias dos Estados Unidos e Europa, nos anos
60 e 70, a pensarem a diversidade e identidade cultural como conte-
údos de grande interesse. Quando os movimentos de liberação dos
países colonizados, imigrantes e negros americanos passaram a exigir
participação, grupos do sistema dominante “passaram a demonstrar
a necessidade de respeito e consideração pelas culturas que haviam
subjugado e subjulgado” (Barbosa, 1998, p.79). O multiculturalismo
passou então a ser considerado pelos movimentos educativos atuais,
como necessário para a democratização da educação. Reivindicando
uma educação que fortaleça a diversidade cultural e que considere as
diferenças.
Neste campo se concentram muitos conflitos na atualidade.
Ao que, em arte-educação Barbosa (1998) defende um ensino multi-
cultural que considere a diversidade cultural, mas levando em conta
as diferenças. Pois, “procurar uma igualdade sem considerar as dife-
renças é obter uma pasteurização homogeneizante” (Barbosa, 1998,
p.80). Levar para a sala de aula um ensino que leva em conta as dife-
renças, significa promover a interrelação e o entendimento entre indi-
víduos de diferentes grupos que interagem com outras culturas. É ne-
cessário considerar que também fazemos parte na vida cotidiana, de
mais de um grupo cultural. Como exemplificado por Barbosa (1998),
ela mesma se define como pertencente a diferentes grupos culturais,
como por exemplo ser nordestina do ponto de vista da localidade cul-
tural, arte-educadora segundo a ocupação e branca com relação à et-
nia. Assim podendo pertencer a um determinado grupo dominante,
já em outro ser pertencente a um grupo discriminado.
Há um prenúncio de que os problemas da diversidade cultu-
ral comecem a ser tratados nas Escolas do Brasil. De uma certa for-
ma, foram incluídos nos Parâme-tros Curriculares Nacionais, edi-
tados pelo MEC em 97/98, sendo a multiculturalidade colocada
como tema transversal e designada de “pluralidade cultural” (Barbo-
sa 1998, p.89). 3 Segundo Franz (2004) “o III Fórum Social Mundial
em 2003, realizado em Porto Alegre, por exemplo, foi uma destas
iniciativas. Um espaço cultural diversificado, aberto ao pluralismo, à
diversidade de gênero, etnias, culturas e capacidades diversas” (p.2).
Os defensores da educação multiculturalista também vem se
fundamentando na antropologia. Uma ligação que se deve ao fato
de que, em Arte, há muito para se ver no universo estético do ou-
tro (Barbosa, 1998). Particularmente, em detectar papéis e funções
da Arte dentro e entre grupos culturais. Para contemplar um ensino
multicultural que se efetive de maneira eficiente, é importante po-
tencializar o orgu-lho pela herança cultural em cada indivíduo valo-
rizando as qualidades das diferenças e ao mesmo tempo promover a
interação e a reciprocidade (interculturalidade), como estratégia para
o crescimento cultural e enriquecimento mútuo.

3
Ana Mae Barbosa, contesta o fato de a multiculturalidade ser designada de pluralidade cultural e colocada
como tema transversal nos PCNs, pois segundo sua visão trata-se de tema básico.
Cultura Visual no Ensino de Artes
problemática da imposição das culturas dominantes também

A levantou questionamentos acerca da concentração na atualidade,


por parte das grandes empresas multinacionais que transformam a
cultura. “Seria preciso lembrar, por exemplo, que estamos assistindo
a uma onda mundial de imposição do American way of life em nível
planetário?” (Veiga-Neto, 2003, p.6).
Para Efland (2005) enquanto o mundo está sendo unido por
um único mercado cultural internacional as pessoas podem perder
aspectos de sua identidade tradicional. “A concentração do contro-
le sobre os meios de produção, circulação e troca de informação, foi
acompanhada pelo surgimento de novas tecnologias” (Giroux, 2000,
p.127) áreas onde os jovens aprendem sobre si mesmos e sobre o
mundo.
Nosso universo visual hoje é um mediador de valores cultu-
rais. Nossas refe-rências estéticas são construídas socialmente, e as
relações do sujeito, especialmente crianças e adolescentes, não conhe-
cem barreiras disciplinares frente a esse universo (Hernández, 2000).
Os meios de comunicação hoje são educadores privilegiados do pú-
blico, produzindo o que Steinberg e Kincheloe (2004) chamam de
pedagogia cultural. Não é possível ignorar que:

O cinema medeia representações da realidade que joga com as


fantasias, os medos ou os fantasmas. Que a publicidade vende
representações ideais do eu e amplifica identidades inexistentes. Que a
Internet permite substituir o ‘real’ pelo ‘virtual’, possibilitando a
construção de identidades inventadas e ocasionais [...] e aproximando-se
de ‘lugares’ que expandem e dispersam a própria idéia de informação e
de conhecimento (Simpson, apud Hernández, 2000, p.xi).

Parente (2004) observa o fato de que Foucault, Deleuze e


Guattari foram acusados de anti-humanismo porque sustentavam
que a subjetividade depende “cada vez mais de uma infinidade de
sistemas maquínicos, entre eles as tecnologias de informação e co-
municação” (p.96). Mas é unânime entre os filósofos que as técnicas
de comunicação e informação engendram profundas transformações
nas subjetividades e “todos concordam que vivemos um tempo de
mudanças” (Ibid, p.93). As diferentes formas da mídia e tecnologia se
transformaram em forças fundamentais na configuração das subjeti-
vidades, modelização de comportamentos, e práticas sociais da cará-
ter homogeneizante. “Imagens massificadas preenchem nossas vidas
cotidianas e condicionam nossos mais íntimos desejos e percepções”
(Giroux, 2000, p.128). Calvino comenta sobre o fato da nossa civi-
lização estar cada vez mais fortemente impregnada de imagens, fa-
zendo com que assimilemos essas imagens de maneira ininterrupta.

Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a


ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que
vimos há poucos segundos na televisão. Em nossa memória se
depositam, por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens,
semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável
que uma delas adquira relevo... Estamos perdendo a capacidade de
pensar por imagens (Calvino,1990, p.107).

Estas transformações têm profunda repercussão na educação.


Para compreendê-las é preciso estudar o “universo visual com que se
relacionam os meninos as meninas e os adolescentes e as formas de
apropriação [...] que fazem deste universo visual” (Hernández, 2001,
p.2).
A noção de Cultura Visual, no ensino de Artes, conforme Her-
nández (2000) pode proporcionar a compreensão deste universo, se
estiver relacionada com os “significados culturais dos artefatos, fatos
e sujeitos” (p.134). O autor ainda enfatiza que, é importante o estudo
da cultura das mídias, além de outros objetos estéticos e artísticos,
visto ser ela capaz de produzir, regular significados, valores e gostos.
Significa explorar o papel mediacional que os meios possuem nas re-
presentações, valores e identidades.
Reconhecer que elites dominantes possuem e controlam cada
aspecto da produção cultural “desde a produção de identidades, de
representação e de textos, até o controle da produção, circulação e
distribuição de bens culturais – não é uma visão nova para os teóri-
cos dos estudos culturais” (Giroux, 2000, p.132). Mas, igualmente
se concorda que há falta e necessidade de análise sobre o papel edu-
cacional das mega corporações que, com freqüência colocam o con-
sumo como a única opção de cidadania do sujeito. Isto colocado per-
cebe-se que há uma diferença entre como educam as mídias e como a
escola educa, o que gera preocupações constantes em pais e educado-
res em geral, levando alguns educadores em direção a incluir estudos
da Cultura Visual em arte-educação, com o objetivo de proporcionar
a reflexão e análise crítica como meio não só para a resistência, mas
principalmente para a compreensão deste universo.

Considerações Finais
arte-educação voltada para o desenvolvimento da expressão pes-

A soal, foi mais valorizada na modernidade. Orientações psicoló-


gicas, que fundamentaram o ensino de Artes, visavam o ajuste do
indivíduo com a sociedade (Read, 1982). 4 A livre expressão como
fator de liberação dos sentimentos e emoções tornou-se um método
bastante generalizado, pois acreditava-se menos na Arte como trans-
missora de significados e mais na Arte como meio para o desenvolvi-
mento da criatividade e equilíbrio psicológico. Este fundamento não
se desfez de maneira integral. Ainda se considera importante a Arte
na educação como meio para o desenvolvimento da expressão pesso-
al e da imaginação, conforme Barbosa (2003). Mas seu uso também
acarretou em um “laissez-faire” mais generalizado ainda, livre e des-
compromissado com o desenvolvimento cultural que tem sido bas-
tante criticado na atualidade.

Aqueles que defendem a Arte na escola meramente para liberar a emoção


devem lembrar que podemos aprender muito pouco sobre nossas
emoções se não formos capazes de refletir sobre elas. Na educação o
subjetivo, a vida interior e a vida emocional devem progredir, mas não ao
acaso. Se a Arte não é

4
Para Head (1982), a educação estética propicia o desenvolvimento dos sentidos, da inteligência e do
raciocínio, e somente na medida em que os sentidos se relacionam harmoniosamente com o mundo exterior
é que se constrói uma personalidade integrada.
tratada como um conhecimento, mas somente como um “grito da
alma”, não estaremos oferecendo uma educação nem no sentido
cognitivo, nem no sentido emocional. Por ambas a escola deve se
responsabilizar (Barbosa, 2003, p.21).

Isto é, o ensino de Artes não deve apenas visar o desenvolvi-


mento de uma vaga “sensibilidade nos alunos por meio da Arte”, mas
sim desenvolver a capacidade de compreender, conceber e usufruir
Arte, além de “influir positivamente no desenvolvimento cultural
dos estudantes” (Barbosa, 2003, p.17). Decorrente disso, o conceito
de criatividade tenta se ampliar, não se efetivando apenas através da
prática artística (o fazer), mas se desenvolvendo também através das
leituras de obras de Arte, por processo criador. Processo que consiste
em “desconstruir para reconstruir, selecionar, reelaborar, partir do
conhecido e modificá-lo de acordo com o contexto e a necessidade”
(Barbosa, 2003, p.18).
As leituras de obras de Arte fundamentadas no pensamento
formalista de caráter técnico científico, também passaram a ser
questionadas. Essas leituras, além de permanecerem no plano físico
da obra, também se limitaram ao estudo de obras de Arte apenas
àquelas consideradas como universais, estáveis e únicas, eruditas
ou de código alto, tomadas por modelos, assim determinadas pelas
culturas dominantes. O pensamento moderno em arte-educação,
limitou-se em muito ao estudo dessas obras, desconsiderando outras
culturas, ou culturas minoritárias e o amplo meio visual imagético
que convivemos diariamente.
Entretanto hoje, não somente as Artes, mas também o uni-
verso visual cotidiano, devido as suas produções de significado, in-
fluência na transformação das subjetividades, identidades, compor-
tamentos e práticas sociais, também levantaram questionamentos e
produziram alterações no ensino de Artes.

O aumento da consciência da importância dos fatores sócio-culturais na


produção de qualquer significado tem conseqüências importantes para
o ensino em Arte hoje. A arte-educação baseada em uma concepção
pós- modernista é potencialmente conectada ao resto da vida, sem limites
entre a arte e seu contexto social e cultural de origem (Franz, 2004,
p.2).
Para Hernández (2001), a imensa proliferação de imagens
promovidas pelas indústrias do entretenimento e novas tecnologias,
além de gerarem preocupação a respeito de seus conteúdos, também
criaram inquietações sobre o aumento do número de pessoas inca-
pazes de interpretar imagens. Para este autor, ainda há pouca com-
preensão sobre o que são, o que querem dizer as imagens e os efeitos
que operam nos observadores, apesar do grande aumento de número
de debates que já houve, desde a década de noventa, em torno das
questões visuais.
Além dos fatores de influência na vida e sobre os indivídu-
os, existem outras razões, que não mencionamos (a fim de delimitar
nosso estudo neste texto) para aumentar a tendência de se incluir
estudos da Cultura Visual no ensino de Artes. Uma destas razões,
lembra Hernández (2000), está no fato de que o campo das Artes é
o que mais contribui “para configurar as representações simbólicas
portadoras dos valores que os detentores do poder utilizam para fi-
xar sua visão de realidade” (p.43). O que faz com que os estudos da
Cultura Visual sejam direcionados para que os alunos aprendam a
selecionar informações e desenvolver estratégias para a compreensão e
interpretação crítica do mundo das imagens.
Assim, consideram os defensores desses estudos que, não ape-
nas obras de Arte consideradas canônicas façam parte dos estudos da
Cultura Visual, mas também os objetos artísticos, produtos culturais
que se produzem no presente, os produzidos pelas mídias, e pelas di-
ferentes culturas.
Salientamos brevemente neste estudo, algumas das principais
transformações e preocupações que vêm modificando o ensino de
Artes, demonstrando a necessidade da atualidade de se incluir
estudos para a educação da Cultura Visual. Mudanças ocorridas
pelo pensamento pós-moderno, assim como as ressignificações do
conceito de cultura e cultura das mídias, que de alguma forma
influenciaram tais transformações, embora haja outros fatores não
aqui mencionados, pois esses necessitariam longas exposições à parte.
Referências
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BARBOSA, Ana Mae. Tópicos Utópicos. Belo Horizonte: C/ Arte, 1998.

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FRANZ, Teresinha Sueli. Os desafios para uma educação Pós-Moderna.


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GIROUX, Henry A. Atos Impuros: A prática política dos estudos culturais.

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Trabalho. São Paulo: Artes Médicas, 2000.

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visuales y su fundamentación en los estudios de Cultura Visual. Seminário
proferido no Congreso Ibérico de Arte-Educación, Porto, Portugal, nov.
2001.
Pedagogias culturais e proposições pedagógicas:
experimentações artísticas com crianças
Apontamentos iniciais

Por que os peixes dentro d’água são mais ágeis que os pássaros no céu quando deveria ser o
contrário, já que a água é mais pesada e densa do que o ar?
(ISAACSON, 2017, p. 23)

A pergunta que abre esta escrita teria sido feita há meio século pelo jovem
florentino Leonardo Da Vinci, conforme relata Walter Isaacson (2017). Mas poderia ser uma
pergunta atual, proferida por uma criança ao observar o mundo à sua volta durante seus
processos de descobrimento e apreensão simbólica dentro da cultura da qual participa.
Sabemos que é na infância que surgem os infinitos porquês, atravessados por instâncias

Jéssica Maria Freisleben, Lutiere Dalla Valle e Márcia Silveira Cassol


Olhar de professor, Ponta Grossa, v. 24, p. 1-32, e-117634.077, 2021.
Disponível em <https://revistas2.uepg.br/index.php/olhardeprofessor>

próprias dessa faixa etária: uma possível ingenuidade diante da complexidade do mundo, que
se apresenta baseada na simplicidade das coisas, sobretudo a partir da observação.
Em seu livro, Walter Isaacson (2017) nos convida a esmiuçar a vida e a obra de Da Vinci
a fim de subverter a perspectiva de uma genialidade quase divina concedida ao artista, a partir
de uma abordagem que prima pela curiosidade. Desde a mais tenra idade, Leonardo teria
desenvolvido seu próprio processo de descoberta com base na observação atenta e, ao mesmo
tempo, pela capacidade inventiva da fantasia, sobretudo pelo movimento contínuo de fazer
perguntas, querendo saber sobre a “cor do céu” ou “como funcionava a língua do pica-pau”
(ISAACSON, 2017, p. 556). Talvez, pelo fato de lhe ter sido negado o acesso à escola tradicional,
havia uma curiosidade incessante que lhe permitiu inventar teorias e métodos para explicar
aquilo que chamava sua atenção. Sobretudo, a partir de um olhar transdisciplinar (ou da não
disciplina), isto é, destituído de estruturas hierárquicas e conceitos já assentados, por enfoques
mais conectivos, plurais e diversificados. Para ele, o interessante estaria justamente na prática
de estabelecer relações, nas junções entre os distintos campos, assim como fazem as crianças
quando experimentam, juntam, sobrepõem e inventam mundos possíveis e pequenas
engenhocas animadas que atestam o potencial de sua criatividade.
Imbuída dessas reflexões iniciais, esta escrita também traz perguntas e suposições
inventadas por crianças do nosso tempo, a fim de ativar algumas pistas para seguirmos
pensando e propondo práticas educativas em artes visuais. Baseadas em suas percepções de
mundo, em seus modos de ver, compreender, simbolizar e representar por meio do fazer
artístico, essas infâncias complexas (e diversificadas) têm muito a contribuir com nossas
práticas pedagógicas, principalmente no que tange aos artefatos culturais/visuais que
consomem e habitam seus imaginários coletivos e individuais (CUNHA, 2017). Durante nossas
andanças por diferentes tempos e espaços educativos, como docentes e pesquisadores, temos
nos deparado com inúmeras potências ao tomar como dispositivos pedagógicos as referências
visuais que adornam mochilas, cadernos e demais objetos escolares de uso individual e
coletivo. Sabemos que há inúmeras maneiras de estimular processos cognitivos e criativos,
assim como inúmeras práticas e experimentações artísticas com crianças no ambiente escolar.

Pedagogias culturais e proposições pedagógicas: experimentações artísticas com crianças


Olhar de professor, Ponta Grossa, v. 24, p. 1-32, e-17634.077, 2021.
Disponível em <https://revistas2.uepg.br/index.php/olhardeprofessor>

Entretanto, neste contexto de escrita, nossa atenção está voltada às referências visuais que as
crianças trazem para a sala de aula como potência pedagógica para o ensino das artes visuais.
Como questão problema, nos propomos examinar como ocorreram algumas
experimentações artísticas em diferentes espaços escolares e sua relação com o protagonismo
infantil alimentado pelo exercício crítico a partir de referências visuais coletadas ao longo de
suas trajetórias cotidianas. Desse modo, serão articuladas imagens enquanto dispositivos
pedagógicos (VALLE, 2020) que favorecem o desenvolvimento de práticas educativas
entrelaçadas não apenas no campo das artes visuais, mas também imagens dos anúncios
publicitários, imagens retiradas da internet; sobretudo, imagens presentes nos materiais e
acessórios escolares.

Dentro da sala de aula, é possível encontrar repertórios visuais variados. Ao


observarmos as brincadeiras, podemos identificar referências e escolhas que participam
ativamente na construção das identidades e no modo como as crianças se relacionam entre si.
Capturadas pela lógica de consumo, as crianças também tendem a reproduzir situações de
atração e repulsa em relação aos objetos ou a referências visuais que “invadiram nossas vidas
criando outros modos e outras perspectivas para ver” e se relacionar (COSTA, 2012, p. 264).

Neste ínterim, a perspectiva educativa da cultura visual tem possibilitado abordagens


que levam em consideração referências imagéticas – na maioria das vezes criadas pelas
produções cinematográficas – que envolvem objetos destinados ao consumo infantil. Portanto,
ao nos posicionarmos a partir deste enfoque, estamos lidando com a percepção visual do
sujeito, assim como com as narrativas que ele produz ao estabelecer relações com suas
próprias visões de mundo. Além disso, tem nos permitido abandonar ideias prescritivas da
apreciação estética e contribuído para problematizar o entendimento não apenas do campo
artístico, mas também (e sobretudo) das relações com as múltiplas temporalidades das
imagens. (MARTINS; TOURINHO, 2011).
A Perspectiva Educativa da Cultura Visual como ponto de partida

Esta abordagem tem nos oferecido importantes contribuições para pensar e articular
proposições pedagógicas nos variados contextos de atuação docente. Sem a pretensão de
nos brindar com um método ou receituário – muito pelo contrário –, os estudos da cultura
visual nos têm possibilitado estabelecer relações com outros campos do conhecimento,
sobretudo com a filosofia, a sociologia, a psicologia, os estudos culturais, os estudos
sobre cinema, os estudos queer, as perspectivas feministas, entre outras, justamente por
se tratar de um campo híbrido que se nutre de outras disciplinas (HERNÁNDEZ, 2007).
Para Kevin Tavin (2009, p. 226), “enquanto área de estudo, a cultura visual busca
analisar e interpretar a riqueza de experiências visuais (multimediadas) em uma dada
cultura, bem como suas práticas visuais: as interações entre os observadores e aquilo que
é observado”.

Para o autor, a cultura visual busca romper com as hierarquias impostas pela
hegemonia branca, eurocêntrica e patriarcal destinada aos estudos das imagens, os quais,
historicamente, seguem exercendo forte influência sobre nossas formas de ver e de
sermos vistos. Além desses aspectos, esse enfoque para as Artes e para a Educação abre
múltiplas vias de acesso à produção do conhecimento: caminhos relacionais, conectivos e
experimentais, em que a interpretação e a singularidade do sujeito que olha e que é visto,
enredado pelas tramas sociais e culturais, tornam-se elementos centrais para a produção
de sentido. Se tomarmos, como referência, nossas experiências cotidianas com as
imagens produzidas por distintas “temporalidades” (MARTINS; TOURINHO, 2011) e
que se proliferam em velocidade exacerbada através das redes sociais, podemos
rapidamente concluir sobre a necessidade (e a urgência) de essas novas formas de
representação visual (especificamente as digitais) fazerem parte de nossos planos de aula,
assim como outros processos que envolvem práticas pedagógicas na contemporaneidade.
Estamos de acordo com Paul Duncum (2011) quando ele argumenta que:
Pedagogias culturais e proposições pedagógicas: experimentações artísticas com
crianças
Olhar de professor, Ponta Grossa, v. 24, p. 1-32, e-17634.077, 2021.
Disponível em <https://revistas2.uepg.br/index.php/olhardeprofessor>

A arte-educação precisa mudar para que possa abordar os efeitos sociais da


proliferação sem precedentes da imagética comercial que, atualmente, satura
a vida diária em várias partes do mundo. O modo como vivemos hoje – como
vivem, em especial, nossos alunos eletronicamente conectados – é muito
diferente do mundo retratado pela prática educacional artística convencional,
que continua a enfocar elementos e princípios modernistas, bem como meios
de comunicação tradicionais (DUNCUM, 2011, p. 15).

Assim sendo, partindo dos referenciais visuais midiáticos das crianças, podemos nos
situar sobre suas escolhas, seus modos de ser e agir nas brincadeiras, assim como suas
produções visuais, uma vez que tendem a reproduzir grande parte das experiências
estéticas (frente à TV ou a demais dispositivos móveis de reprodução de imagens)
quando solicitadas a criar narrativas (sejam elas visuais ou verbais). É recorrente a
citação de personagens oriundos de filmes populares nos desenhos feitos por crianças nos
espaços educativos em que temos transitado. Sem a pretensão de generalizar tal
percepção, observamos que, independentemente, do poder aquisitivo ou do acesso a bens
de consumo (sobretudo dispositivos eletrônicos), é significativa a presença de códigos
visuais produzidos pelo cinema. Giroux (2003) aponta que isso se dá tanto nas
referências às brincadeiras (como, por exemplo, super-heróis da Marvel e princesas da
Disney) quanto em nas narrativas das crianças, exercendo forte influência em seus
imaginários, muito além do “entretenimento”. Para o autor:

A força e o poder da indústria cinematográfica é evidente na intensa influência


que exerce sobre a imaginação popular e consciência pública. A diferença dos
bens de consumo e seu uso, os filmes produzem imagens, ideias, ideologias
que conformam tanto as identidades individuais como as nacionais. O poder
de seu alcance e a extensão de sua comercialização reflete como se utilizam
das referências cinematográficas para vender camisetas, copos, posters, adesivos e todo
um abanico de produtos kitsh (GIROUX, 2003, p. 19).

Dessa forma, considerando a potência pedagógica desses artefatos visuais, à luz das
pedagogias culturais, podemos estabelecer pontos de conexão entre Arte, Cultura Visual
e Educação, uma vez que estão atreladas experiências estéticas que seguem contribuindo
para a configuração dos imaginários infantis (CUNHA, 2010).
Ao tomar o campo das pedagogias culturais como perspectiva de trabalho dentro da
sala de aula, estamos de acordo com Fernando Miranda (2014, p. 311) quando ele afirma
que, “para reflexionarmos sobre a pedagogia das imagens, devemos tomar muito
seriamente os repertórios visuais, tanto no que mostram e no que ocultam, como nas
maneiras em que são expostos ou distribuídos material ou discursivamente”. Ou seja,
centramos nossa atenção justamente nas conexões que as crianças estabelecem ao narrar
a vida cotidiana através de suas produções simbólicas quando desafiadas à experiência
artística.
Fernando Miranda também adverte sobre a necessidade de entendermos, a partir do
cotidiano espetacular, a “função pedagógica das imagens”, a qual é potencialmente
enredada pelos meios massivos e pelos “espaços transitáveis” em que nos situamos
enquanto sociedade (MIRANDA, 2014, p. 312). Sobretudo no que diz respeito aos
contextos educativos formais de ensino, nos quais convivem variadas narrativas trazidas
pelos sujeitos, que, fora dos muros da escola, vivenciam outras experiências pedagógicas
ao serem interpelados pelas imagens midiáticas (MOMO, 2014).

Consideramos essas produções que invadem – ou que são convidadas pelas crianças a
compor os espaços escolares – como pontos de partida para discussões, reflexões,
ampliação de repertórios, experimentações artísticas e desconstrução de possíveis
versões estereotipadas, contribuindo para outras formas de ler e ver, conscientes e
reflexivas, diante de tantas imagens que são, na maioria das vezes, consumidas
passivamente (CUNHA, 2014b). Kevin Tavin e David Anderson (2010, p. 59) afirmam
que “a Disney fornece locais poderosos para a pedagogia cultural, nos quais aprendemos
sobre o mundo e sobre nossas relações”, o que nos exige, enquanto docentes, abertura às
suas potências enquanto disparadores às aprendizagens. Nesse sentido, entendemos que
o conhecimento sobre si e sobre o mundo não se limita ao que está dentro do espaço
escolar, haja vista que “a forma envolvente pela qual a pedagogia cultural está presente
na vida de crianças e jovens não pode ser simplesmente ignorada por
qualquer teoria contemporânea do currículo” (SILVA, 1999, p. 140). Assim, a
perspectiva educativa da cultura visual enfatiza a importância da compreensão crítica das
imagens, considerando as interpretações subjetivas mobilizadas pela experiência estética
(MARTINS; TOURINHO, 2011). Isso significa compreender que obras de arte, assim
como imagens midiáticas, cinematográficas, da internet, entre outras, não correspondem
a produções simbólicas neutras, ou seja: estão atreladas a comunidades discursivas de
quem as produziu intencionalmente (ideológica, cultural, histórica e socialmente
articuladas). Como argumentam Raimundo Martins e Irene Tourinho:

O propósito da educação da cultura visual não é substituir conceitos,


abordagens curriculares ou práticas de ensino da arte, mas introduzir e
incorporar no fazer artístico a discussão do lugar/espaços das imagens –
qualquer imagem ou artefato artístico – e seu potencial educativo na
experiência humana (MARTINS; TOURINHO, 2011, p. 57).

Ao estabelecer espaços de escuta atenta às relações afetivas que as crianças


estabelecem com personagens e narrativas visuais que adornam seus objetos cotidianos,
podemos lançar perguntas para problematizar de que modo determinadas representações
visuais materializam modos de ser menino ou menina, como são seus gestos e atitudes,
ampliando seus repertórios ao apresentar-lhes, talvez, outras narrativas que rompem com
estas mesmas lógicas apresentadas. Meninos que usam rosa, meninas valentes,
brincadeiras destituídas de relações hierárquicas de gênero poderão ser potencializadas
quando forem movimentadas perguntas em relação às estórias apresentadas.

Ao compreender o território infantil a partir de suas falas, pensamentos, ações e


representações simbólicas, talvez possamos propor experimentações artísticas que
possam abarcar não apenas o campo artístico institucionalizado (aquela perspectiva
histórica linear das artes visuais), mas também abordagens mais amplas, na medida em
que tencionamos conceitos de representação. Isto é, ao aproximarmos a experiência
estética dos objetos à vida cotidiana, estaremos propondo que as manifestações artísticas
(enquanto expressões humanas) ultrapassam versões institucionalizadas e hierárquicas
das Artes: nos interpelam e surgem dos variados contextos e materialidades.
HERNÁNDEZ, F. Catadores da cultura visual: proposta para uma nova narrativa educacional.
Porto Alegre: Mediação, 2007.

HERNÁNDEZ, F. Para Erina ninguém dia nada... e nós não podemos fazer o que queremos: a
educação da cultura visual na educação infantil. In: MARTINS, R.; TOURINHO, I. (Orgs.).
Cultura visual e infância: quando as imagens invadem a escola. Santa Maria: UFSM, 2010.
HERNÁNDEZ, F. Pedagogias culturais: o processo de (se) constituir em um campo que vincula
conhecimento, indagação e ativismo. In: MARTINS, R.; TOURINHO, I. (Orgs.) Pedagogias
culturais. Santa Maria: UFSM, 2014.

MARTINS, R.; TOURINHO, I. Circunstâncias e ingerências da cultura visual. In: MARTINS, R.;
TOURINHO, I. (Orgs.). Educação da cultura visual: conceitos e contextos. Santa Maria: UFSM,
2011.
MARTINS, R.; TOURINHO, I. Pedagogias culturais (Orgs.). Santa Maria: UFSM, 2014.

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