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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE


SOCIEDADE DO LIVRO
“AS DISTOPIAS E A REALIDADE”
COM PROFESSOR GUILHERME FREIRE

SUMÁRIO

Sinopse ........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................ 3

Introdução ........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................ 4

Aula 1 — 1º Livro - Uma Breve História do Anticristo ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ 8

Aula 2 — 2º Livro - Admirável Mundo Novo Revisitado ............................................................................................................................................................................................................................................ 28

Aula 3 — 3º Livro - Admirável Mundo Novo .......................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 47

Aula 4 — 4º Livro - O Senhor do Mundo ................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................ 61

Aula 5 — 5º Livro - 1984 .............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................. 76

Aula 6 — Conclusão .............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................. 93


SINOPSE

Distopias são representações imaginativas da nossa

sociedade que são criadas como avisos ou sátiras. Cenários

descritos nas distopias 1984, Admirável Mundo Novo, O Senhor

do Mundo e Breve História do Anticristo serão comparados à

realidade neste curso.

Qual é o papel das distopias na literatura? O que podemos

aprender com essas leituras? De que forma elas impactam o

nosso imaginário e o cenário cultural que nos cerca?

BONS ESTUDOS!
INTRODUÇÃO
Olá, pessoal, sejam todos muito bem-vindos.

Meu nome é Guilherme Freire, eu sou professor de Filosofia — sou

formado e mestre em Filosofia. Ministro cursos livres há alguns anos: já dei

curso de Filosofia da Ciência para o ITA, curso de ética para empresários

(cursos dos mais variados tipos). Tive uma presença na administração

pública e deixei o Estado para poder me dedicar à tarefa como professor e

realmente poder ajudar as pessoas com conteúdo.

Nesse meio tempo, ajudei colégios com educação clássica, tutorias

individuais de alunos, dei curso de leitura e memória e desenvolvi esse

trabalho, tanto no YouTube quanto no Instagram, como professor.

Recebi esse convite fantástico do pessoal da plataforma da Brasil

Paralelo, um trabalho que admiro imensamente, para falar sobre as

distopias.

Nesse curso falarei sobre os seguintes livros: O Anticristo, de Soloviev;

o Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e o Admirável mundo novo

revisitado — e aí quando eu falei do Admirável mundo novo revisitado,

contei um pouco sobre a biografia do Huxley, sobre o contexto em que foi

escrita a obra dele; vou falar um pouco também sobre O senhor do mundo,

de Robert Hugh Benson, que talvez seja um pouco menos conhecido, mas é
um belíssimo livro; e sobre 1984, de George Orwell, talvez o mais conhecido

destas distopias todas: passam-se décadas e você vai vendo George Orwell
entre os mais vendidos; é uma coisa muito impressionante o efeito, o

impacto dessa obra.

As distopias, no geral, me parecem ter um impacto tremendo para

ajudar a entender o mundo contemporâneo, para ajudar a compreender

alguns processos históricos que aconteceram no século XX e para ajudar a

entender as suas transformações.

Estou aqui com O senhor do mundo e uma edição de 1984 (vamos

abordar ambos). 1984, dos de ficção, é o mais novo sobre os quais bordaremos;

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o primeiro, o mais antigo, é o Anticristo de Soloviev, e nesses 60 anos no

qual os livros foram escritos, muita coisa mudou.

Falaremos um pouco sobre cada autor e sobre como eles foram

preditivos com suas obras — é um elemento importante a ser falado. Que

elemento do futuro eles previram? Que elementos do futuro dos que ainda

irão acontecer talvez já tenham sido previstos por eles?

Vou fazer uma certa síntese das obras — uma análise —, contar a

história delas e, a partir desses elementos, interpretá-las. Não apenas o

poder preditivo dos autores será abordado, mas também os insights sobre

a natureza humana, ou seja, os insights que eles trouxeram e que ilustram

o modo como entendemos a experiência humana e a passagem histórica


dos tempos.

É claro que as distopias, evidentemente, são uma antiutopia — o

inverso de uma utopia —, uma versão de mundo no qual tudo está terrível

e no qual o mundo está em crise; é uma versão de mundo ideal que deu

errado. Isso já torna o trabalho fascinante.

É importante entender que a distopia é uma literatura que surge

mais em contraposição às utopias tardias, como a de H. G. Wells, e àquelas

utopias socialistas posteriores, e não tanto à utopia renascentista, como a


do Thomas More, A utopia, que é o mais famoso, embora você veja numa

Nova Atlântida, de Bacon, uma prefiguração dos tipos de utopias que virão
no futuro.

Quando você tem essa utopia, pensa que agora terá o regime global,

o globalismo socialista secular novo e pensa que tudo será melhor. No

entanto, esses autores de distopias nos mostram que a coisa não é muito por

esse lado. De uma maneira impressionante, as utopias científicas socialistas,

como a de H. G. Wells, erram muita coisa, e o resultado real é muito mais

semelhante a essas maravilhosas obras distópicas do que o resultado que

você teria se fosse seguido aquele outro rumo.

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Aqui vamos apresentar um pouco essas obras. Vou discutir, por

exemplo, nesse curso, a própria obra de Huxley, por exemplo, discutirei a

questão se ele era descritivo ou prescritivo em Admirável mundo novo, ou

seja, até que ponto ele aderia àquilo — levantarei um pouco os elementos

para ajudar as pessoas a formularem uma opinião sobre isso —; além

de discutir um pouco a experiência de Orwell, mas também comentar

algumas experiências pessoais, pois falei um pouquinho da minha trajetória

intelectual da minha experiência com essas obras.

Apesar disso, a minha principal preocupação foi salientar o conteúdo

dessas obras, de uma maneira que vocês consigam interpretá-los melhor e

refletir de maneira mais profunda a partir do conteúdo aqui oferecido.

Não deixem de estudar no curso, sejam bem-vindos a esse novo

estudo.

É uma alegria poder falar sobre o tema das distopias com vocês.

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AU L A 1

1º LIVRO - UMA BREVE

HISTÓRIA DO ANTICRISTO
Hoje falarei sobre o Anticristo de Soloviev. O Anticristo de Soloviev,

é, talvez, um dos livros menos conhecidos dos quais falaremos neste curso,

mas é um livro absolutamente fantástico. Foi escrito em 1900, portanto a

mais antiga das distopias das quais abordaremos.

Soloviev foi um importante intelectual russo que teve muita influência

sobre Dostoiévski. No livro Os irmãos Karamazov, a figura de Alyosha e até

mesmo do Padre Zózima, em certa medida, têm influência de Soloviev, que

era próximo de Dostoiévski, embora tivessem certa divergência sobre o

papel da Igreja Católica. Dostoiévski era mais crítico à Igreja Católica do que

Soloviev, que acreditava mais na reunião das igrejas do que Dostoiévski.

Soloviev, claro, teve fases em sua vida. O Anticristo já é uma obra


da maturidade de Soloviev. Ele começou a carreira com uma linha, ele

se envolveu muito com estudos de temas gnósticos e depois deixa esses

estudos de lado para focar em uma visão mais cristã, mais tradicional, russa

— embora com um forte pé no catolicismo também.

Soloviev, no final da vida, inclusive, abandona várias coisas que fazia

e começa a viver uma vida meio mística, estilo russo: ele se retira muitas

vezes dos cenários mais conturbados, fica afastado, focado em trabalhos

manuais, em oração, em uma vida mais contemplativa.

O Anticristo marca essa fase de maturidade do pensamento de

Soloviev, não é uma obra de sua fase mais gnóstica nem da fase de juventude.
O ano em que foi escrita — 1900 — é uma data importante. Às vezes é difícil

nos situarmos no que foi o começo do século XX. Tão falada, pensamos o

começo do século XX como uma época meio eufórica. Há aquele final de

século com um forte elemento de decadência cultural, mas por outro lado

há uma tremenda empolgação com a tecnologia, quando as pessoas estão

eufóricas com o impacto dela.

Antes disso, no século XIX houve a Revolução Industrial, e você

tem aquelas culturas de massa decorrentes dela. 1900 é, na verdade,

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uma época da Belle Époque. Os Estados Unidos começaram uma parte

de desenvolvimento mais intenso, ou, na verdade, já tinha começado,

mas agora começa uma etapa que nos anos 20 entrará mais indústria de

publicidade e outras coisas — é o período de transição.

Esse período é bastante eufórico para as pessoas que o estão vivendo,

e as pessoas se sentiam no século novo mais até do que se sentirão no século

XX, que seria um século que agitaria boa parte das bases da civilização tal

como nós a conhecíamos.

Isso de fato aconteceu. O século XX mudou muita coisa na forma

como as pessoas se vestiam, na forma como as pessoas se portavam, na

forma como as pessoas agiam. Foi um período de transição tremendo.

A Rússia daquele momento — pré-Primeira Guerra Mundial — tem

uma política bem particular: você tem de um lado o pessoal que é mais

simpático à França e à Inglaterra e de outro lado o pessoal que é mais

eslavófilo.

A Inglaterra era vista como esse caminho mais liberal: a própria

cidade de São Petersburgo foi construída para ser uma cidade aberta para

o Ocidente, porque ela tem um caminho para o mar Báltico, além do fato

de a Rússia conseguir estabelecer relações com o norte da Europa, porque


Moscou é mais no meio da Rússia, enquanto São Petersburgo já tinha esse

aspecto de abertura para o lado mais ocidental. A intellighenzia (palavra


que foi cunhada pelos russos) era, no geral, anglófila, pró-Inglaterra, e queria

se abrir para esse lado mais liberal, tomando São Petersburgo como um

caminho.

A França passou pela Revolução Francesa e a Rússia era totalmente

ligada à França. Ao momento da Guerra da Crimeia, na qual a Rússia foi

inimiga, basicamente, da França e da Inglaterra, e se imaginava que a Rússia,

depois de ter sido inimiga da Inglaterra e da França, ficaria mais distante,

mais inimiga da Inglaterra e da França, mas, ao contrário, na verdade a

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intellighenzia achou que a França teria de se aliar com a Inglaterra e a

França. Na Primeira Guerra a França se alia com a Inglaterra, quando a

França era puxada pelos elementos da intellighenzia.

Do outro lado, há esse movimento mais eslavófilo. O cristianismo

chegou na Rússia por meio do Império Bizantino, que é sucessor do Império

Romano; eles se diziam o próprio Império Romano, a continuação, a parte

oriental do Império Romano e é dele que veio a fé que se espalhou pela

Rússia, por isso ela se via como uma terceira Roma.

A primeira Roma seria a Roma clássica; a segunda Roma foi Bizâncio,

o Império Bizantino; e a terceira Roma seria a Rússia.

Moscou seria a capital da terceira Roma. Havia esse movimento

eslavófilo de unir os eslavos; os povos eslavos sob o cristianismo tinham

uma luta contra os turcos, o que se torna algo do imaginário russo.

É interessante que na Primeira Guerra se aliaram as tendências,

porque a Rússia invade a Áustria mirando apaziguar tanto os eslavófilos

quanto os anglófilos e se alia com a França e com a Inglaterra na Primeira

Guerra, mas age em defesa dos eslavos no começo. Isso é uma mistura

como se fosse a “direita” e a “esquerda”, entre aspas, russas, que se unem ali

naquele momento da Primeira Guerra.

Isso é para situar vocês nas disputas políticas na Rússia da época,

embora se tivesse uma certa empolgação pelo movimento eslavófilo dos

setores mais tradicionais (e certamente Soloviev estudou isso e discutiu

ideias eslavófilas nos escritos dele), com todo esse contexto, também havia

um sentido geral, um espírito de que no mundo moderno certas elites

seculares preponderariam, algo que veio também com a unificação da

Itália, em 1870, trinta anos atrás, que tinha gerado um impacto.

A história do Anticristo começa nesse clima de incerteza, antes da


Primeira Guerra Mundial, dezessete anos antes, e a coisa que acontece

nessa narrativa do começo do Anticristo é o crescimento da China, porque

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há uma disputa entre China e Japão na história, tal como acontecerá na

Primeira Guerra Mundial até a Segunda Guerra Mundial.

Na disputa entre China e Japão, a China invade a Rússia, e a China

começa a dominar a Europa. Isso quer dizer que na história do Anticristo,

começa o domínio chinês sobre a Europa (lembrando que os russos fazem

fronteira com a China), e Soloviev imagina esse domínio chinês, porque

ele entendia a civilização dos chineses com valores distintos dos valores

europeus ou do cristianismo europeu, da cristandade europeia, e entendia

que a China poderia, com a população que ela tem, exercer influência e ter

vitória militar sobre a Europa.

A esse domínio chinês se segue uma unificação europeia, tem uma


unificação do espírito europeu; começa a se dissolver as unidades nacionais

e os europeus começam a se ver como parte de um Estados Unidos da

Europa. Os Estados Unidos viram uma espécie de modelo, e você tem essa

figura de uma Europa unificada.

Essa sua descrição foi feita muito tempo antes da União Europeia, e

é muito tempo antes do crescimento da China. Aliás, a China, para todos os

efeitos, perdia todas as guerras na ocasião desse livro de Soloviev. No século

XIX, a China apanhou tremendamente nos países europeus.

Nesse período Soloviev tentava vislumbrar o futuro: a Liga das

Nações ainda não estava em voga, ainda não tinha acontecido os principais
movimentos globalistas, mas esse “Estados Unidos da Europa” passa a

ser um governo global, e esse governo global é um governo bastante

secularizado, com a influência do positivismo.

Positivismo que surge como uma ideologia na esteira da Revolução

Francesa, colocando um cientificismo aliado a um nominalismo terrível, ou

seja, há uma rejeição dos universais, além de ter também esse cientificismo

sufocante e uma elite tecnocrática.

O governo global que começa a se formar a partir desse Estados

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Unidos da Europa é uma tecnocracia mais secularizada, dominada pelos

maçons. Ele fala à certa altura que os maçons dominam essa tecnocracia. É

muito interessante.

Por isso eu citei também a Independência da Itália em 1870. Falei que

houve as guerras, as chamadas guerras de independência da Itália contra

Áustria. Esses maçons estiveram à frente de boa parte desse movimento de

secularização da Europa do final do século XIX, então, quando chegamos

em 1900, já há países que se viam mais como membros da cristandade e

dão lugar para essas elites mais tecnocráticas e maçônicas. Isso aconteceu

na França, visivelmente; acontecia com a intellighenzia russa; aconteceu na

Itália (era um movimento global), e aconteceu no Brasil.

O final do século XIX é exatamente o momento em que no Brasil

aconteceu a Proclamação da República, e a elite positivista do Brasil

toma conta. Em geral eram maçons positivistas. Existem o movimento de

transição do final do século XIX — que Soloviev enxerga nesse mundo do

Anticristo — e essa elite tecnocrática global que começa a gerir as coisas —

no que vai surgindo o líder dela.

Esse líder será o Anticristo, e ele é interessante porque ele é o líder

da elite global (eles não têm um nome definido para ele), e ele começa

a crescer nessa burocracia até se tornar o presidente, o líder do Estados

Unidos da Europa.

O líder — o Anticristo — escreve livros sobre a paz, um deles é intitulado

O caminho aberto para a paz universal e o bem-estar em todo o mundo.

Também é interessante notar as contraposições que aparecem no texto

de Soloviev: “Cristo trouxe a espada e eu trarei a paz”, diz o Anticristo em

alguma oportunidade onde ele faz um discurso sobre a paz mundial que

atrai as pessoas, porque ele fala sobre acabar com a fome, e, segundo ele, a

fome acabará, as pessoas terão o que comer.

Se utilizarmos essa elite administrativa nós vamos acabar com esses

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problemas e resolver o problema da paz mundial. Quer dizer, se houver um

governo global em que de fato ele manda e domina tudo, então, de fato, as

brigas seriam só brigas internas, não seriam brigas entre países.

Começa a se manifestar esse cenário. Esse líder tem um discurso

que atrai as pessoas, ele começa a fortalecer a figura de um bispo do

tipo herético e esotérico chamado Apolônio — uma espécie de bruxo. Ele

é quem faz shows religiosos e mostra prodígios para as pessoas, porque

como as pessoas perderam muito o sentido da doutrina na fé, as pessoas

perderam muito o senso de qual é a doutrina do cristianismo e de qual é o

ensinamento cristão definido.

Elas procuram na religião fenômenos sentimentais, fenômenos


visíveis. Apolônio é um especialista em misturar ciência com esoterismo

para produzir fenômenos visíveis (shows pirotécnicos etc.) para atrair as

massas no sentimento religioso com a figura do Anticristo. O Anticristo

começa a crescer; escreve, inclusive, um livro. Mostrarei um trecho para

vocês do romance de Soloviev, do qual estamos falando, onde há um

momento na trama que é muito interessante, porque o Anticristo não tem,

a primeiro momento, nenhum ressentimento visível contra o Cristo, mas

chega um momento em que ele reconhece que se houver o Cristo, se o

Cristo for realmente uma figura real, ele teria de se curvar perante Ele, teria

de ser fiel a Ele e teria de se subordinar a Ele, entregar a sua vida perante Ele

e colocá-la de joelhos perante Ele. Mas, se subordinasse a sua vida perante

Cristo, ele perderia seu status.

No trecho, diz o Anticristo: “Cristo veio antes de mim; eu vim em

segundo, mas aquilo que na ordem do tempo aparece depois é, em

essência, de maior importância. Eu vim pelo fim, o fim da história, e por

essa mesma razão eu sou o mais perfeito”.

O Anticristo é um progressista: ele entende que a passagem do tempo

torna as coisas melhores, torna as coisas superiores; conforme o tempo vai

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passando, a sociedade evolui, e ele é mais perfeito que Cristo, porque Cristo

veio antes, e tendo vindo antes ele já lida com coisas defasadas, coisas

antigas.

Agora estamos numa nova época, nós estamos numa época de paz.

Cristo trouxe a espada, mas ele trará a paz. Por que Cristo trouxe a espada?

Porque Ele traz valores definidos, mas o Anticristo abolirá esses valores

e os diluirá numa massa, e as pessoas obedecem então a ele, porque

têm também um tremendo relativismo. E, sendo relativistas, elas não se

dividem. O problema é que não se dividem, mas todas elas são dominadas

e controladas por ele.

A toda hora Soloviev o chama de super-homem, obviamente fazendo


referência ao übermensch nietzscheano, aquele que está acima do bem e

do mal, aquele que venceu esses valores, aquele que passou pelo bem e o

mal, aquele que passou por tudo isso.

O Anticristo começa a perceber que Cristo de fato é o inimigo dele,

porque se ele quer ter a sua autoridade como a maior e quer levar adiante

esse “progresso” (que no fundo é o domínio dele), ele precisa rejeitar esse

Cristo, esse Cristo, que, com a sua misericórdia, com a sua justiça, com as

suas definições e sua divindade ameaçará o seu Reino.

No livro há uma parte em que ele fala (eu, particularmente, adorei

essa referência): “Mas teria eu de me prostrar perante Ele como uma velha
senhora polonesa, como um camponês russo, e dizer: ‘Tenha misericórdia

de mim!’?”.

Isso é humilhante para o Anticristo — ele entende como humilhante.

No entanto, não é só o Anticristo que pensa assim, mas também os seus

fiéis. O homem moderno, na ânsia pelo progresso e na ânsia pelos novos

valores entende que é humilhante se prostrar perante o Cristo e falar “Tenha

piedade de mim”, porque se você está no topo da história, se você realmente

considera que o seu período é o cume da história, todos os desenvolvimentos

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da cristandade que vieram anteriormente são simplesmente etapas falhas

da realização que você é.

Desse modo, a atitude do Anticristo não é apenas dele, mas é

também o zeitgeist do período histórico inteiro; o Anticristo é simplesmente

o cume do zeitgeist geral, ele não é o único propagador dessas ideias. Por

exemplo, Apolônio também tem essas ideias, e ele e o Anticristo as estão

promovendo.

Quando ele começa a fazer isso, tem para si quase a unanimidade

das pessoas. Há um trecho no qual ele começa a entregar pão, cena na qual

Soloviev tem em vista a tentação do deserto de Cristo, (Dostoievski cita isso

em sua obra) na qual o demônio fala para Cristo transformar a pedra em


pão, o que significaria acabar com a fome do mundo inteiro.

Trataremos desse tema várias vezes, mas é interessante pensar nele

um pouco: o que acontece se você acabar com as dores do mundo? Porque

à medida em que os homens são livres, eles têm a possibilidade de fazer

o mal, e com isso vem o sofrimento — porque faz parte do livre arbítrio —;

mas se os homens não tivessem nenhum tipo de livre arbítrio, seriam como

personagem de videogame, eles seriam como marionetes, e marionetes

não são pessoas com valor.

Faz parte do homem — faz parte de ser homem — sofrer. O

sofrimento faz parte da condição humana, é uma condição indissociável do


homem. Cristo é aquele que carrega os sofrimentos por nós, Ele é aquele

que carregou os nossos pecados, é aquele da vitória, é aquele que é o cume

de todo o sofrimento humano, porque o peso da existência nós não vamos

carregar todo nas nossas costas, nós temos alguém que pagou esse preço

por nós.

Isso será a toada de todas as distopias que analisaremos neste curso,

e aqui é onde começa essa ideia estabelecida, seja diretamente via Soloviev,

seja por influência de Dostoievski, essa ideia estará em todos os autores de

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distopias: o novo mundo distópico — esse novo mundo grotesco — rejeita o

sofrimento humano; ele traz o conforto e rejeita o sofrimento humano.

Por isso ele não vê problema em acabar com a liberdade humana,

porque ele diz que rejeita o sofrimento humano, mas com isso ele empobrece

a experiência humana de uma maneira terrível.

O livro que o Anticristo escreve chama-se O caminho aberto para

a paz e a prosperidade universais. Esse título é ótimo porque primeiro é

“o caminho aberto”. Por que “o caminho aberto”? Porque é um caminho

sem definições de valores, é o caminho geral, o caminho livre; mas caminho

aberto é uma contradição de termos. Se é um caminho é porque literalmente

tem que ter alguma definição, e na verdade tem uma definição; na verdade,
o Anticristo estará no controle desse caminho.

O título também diz “a prosperidade e a paz universais”, e aqui não

é a vida eterna, mas é simplesmente ausência de sofrimento. É o caminho

aberto para ausência de sofrimento. Aqui a questão é: as pessoas aceitariam

vender a própria alma para trazer essa ausência de sofrimento? É isso que

está em jogo aqui.

Contra isso quem será a oposição? Quem será o contraste com esse

modelo? Basicamente, os cristãos e o cristianismo.

O anticristo percebe que os cristãos não estão colaborando de uma

maneira perfeita com o regime dele, apesar haver sempre muitos cristãos

que querem colaborar, sem dúvida nenhuma, mas há vários outros que

têm uma certa oposição. Com isso o Anticristo começa a reunir os três

principais grupos cristãos e faz uma assembleia com eles para tratar com

eles e verificar se eles irão aderir às ideias dele.

Os grupos cristãos são reunidos em três tradições, mas anteriormente

Soloviev conta que grande parte das pessoas da Igreja já a haviam deixado;
com essa prosperidade material, uma grande parte a deixou, com essa

falta de valores, já pularam fora. No entanto, aderiram “ao caminho aberto”,

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entre outras coisas, e já estão afastadas. Dos que sobraram, cada vez mais

os que vão sobrando são mais fiéis, porque quanto menos proveitoso é o

cristianismo do ponto de vista material — quanto mais perseguido ele é —,

mais os cristãos vão ficando mais fiéis e melhores.

Desse modo a Igreja passou por uma reforma. A reforma se refere à

qualidade, que aumentou muito nesse período, e a quantidade diminuiu —

mais ou menos como Bento XVI fala disso; Bento XVI é um leitor voraz de O

Senhor do mundo (que é outro livro que nós vamos tratar aqui, que é muito

semelhante em estrutura ao O Anticristo).

Aumenta então a qualidade da Igreja com pessoas que estudam

mais, pessoas com maior piedade, pessoas com maior aderência à fé.

Assim, a Igreja se une com esses três líderes. No mundo o católico,

tem o papa Pedro II, nome que Soloviev pegou de propósito da profecia

de Malaquias, que fala que o último papa será Pedro II; o primeiro papa foi

Pedro, o último será papa Pedro II para fechar um ciclo dos Pedros; com

isso, tem esse papa Pedro II.

Ele é muito semelhante, no jeito dele, com São Pio X ou Pio IX. Ele é

apresentado por Soloviev como alguém que veio de uma família camponesa,

ele é bem tradicional, fala em latim a todo tempo, então é um papa “raiz”.

Na Rússia há o Ancião João. É muito interessante sua história, porque

há vários mitos sobre ele, bem aos moldes do cristianismo oriental; algumas

pessoas dizem que esse Ancião João é o próprio São João, que nunca morreu

e ficou pairando pela Rússia desde a época do Cristo até agora, outros falam

que é o retorno do imperador perdido, então existem esses mitos dos russos

sobre esse Ancião João. Independente dessas lendas, esse Patriarca João é

o líder do Cristianismo Ortodoxo.

Entre os protestantes tem um teólogo chamado Ernest Pauli,


referência a São Paulo, que é o principal teólogo e que une os protestantes

remanescentes — como ressalta Soloviev — eles são mais unidos, mais

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ortodoxos e em um número muito menor. São pessoas que realmente

aderiram aos preceitos de maneira bem tradicional; eles estão obcecados

por encontrar uma doutrina bem tradicional do cristianismo.

Lembrando que os que já eram menos fiéis à essa altura já foram

embora há muito tempo. Ernest Pauli, o Ancião João (que se chama Elder

John na tradução que eu li, não sei como que seria o termo russo original) e

o papa Pedro II se reúnem, acontece essa grande reunião com o Anticristo,

onde ele leva o Apolônio (que faz os shows dele) para ele negociar com os

cristãos. Ele os interroga e pergunta o que eles querem, no que o Anticristo

oferece algumas coisas.

Ele fala que a Igreja Católica teria de volta aos privilégios de Estado
que já aconteceu outrora, então ela teria novamente nomes apontados

para posições de destaque, gestão pública de várias coisas, ter controles

estatais e iriam engrenar na massa do Estado; a figura do Estado Católico

voltaria em vários elementos. Tudo isso de uma maneira subordinada a ele,

mas teriam uma série de privilégios sociais.

Para a Igreja Ortodoxa ele oferece todas as relíquias do cristianismo,

que eles coletem as relíquias, que eles tenham e o que eles quiserem no

sentido de tradição cristã para ser colocado como exposição, ele arcará com

tudo.

Aos protestantes ele oferece os estudos de teologia e o livre exame da


Bíblia. É muito engraçada a proposta: “Em nome do livre exame da Bíblia,

eu pagarei todos os estudos de teologia de quem quiser e todo mundo

poderá estudar teologia bíblica, porque eu pagarei”.

Quando ele oferece essas coisas, a grande maioria dos fiéis passa

entrar para o lado do Anticristo. Lembrando que a grande maioria dos fiéis

já remanescestes, ou seja, dos que sobravam, que já são a minoria, passam

para o lado do Anticristo, ele já atraiu agora uma grande parcela dos que

sobraram, porque a maioria adere.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Com isso ficam pequenos grupos que se unem em torno dos três

líderes. Os três líderes não se mexem, eles não se movem; o Anticristo percebe

isso, ele percebe que eles não se moverão. Ele diz que está oferecendo a

eles um negócio maravilhoso e eles não se moveram, e pergunta então

o que eles querem. Eles respondem assim: “Nós queremos uma coisa

muito simples: nós queremos o Cristo; o que nós queremos para a igreja,

para o cristianismo é Cristo. Se você se subordinar ao Cristo, se você for

subordinado a Ele, se nós estivermos buscando a salvação da alma,

subordinada ao Cristo, nós te seguiremos, se não, nada feito”.

Com isso vem aquela comoção, porque isso revolta. O imperador

fica revoltado com isso, e eles elegerão Apolônio como papa em nome da

igualdade universal, esse Apolônio será eleito papa, misturando um bispo

católico herético com misticismo oriental em uma combinação e fazendo

descer fogo do céu.

Com isso o que eles farão? Na medida em que eles estão ali no

Congresso, a proposta é a unificação dos cultos, eles querem ir à igreja cristã

sobre o Anticristo.

O imperador pede uma Marcha da Humanidade Unificada (muito

interessante esse ponto). Quando o imperador coloca essa proposta em

latim, os bispos dizem que “as portas do inferno não prevalecerão”, o que é

uma referência à infalibilidade papal. Interessante que infalibilidade papal é

colocada como dogma nesse contexto da unificação da Itália, em que havia

esses liberais modernos contra o papa Pio IX. Eles falam: “Não prevalecerão

as portas”, quando finca o pé o papa, e ele não cede.

Aqui tem a situação que eu tinha falado, em que o Ancião João diz:

“Grande soberano, o que nós valorizamos mais no cristianismo é Cristo

em pessoa, participar do seu corpo divino. Nós recebemos tal, conquanto

que você confesse Cristo, filho de Deus. Confesse seu nome, e então nós

entenderemos como nós estamos prontos para a sua segunda vinda”.

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Nesse contexto, eles matarão o papa Pedro II, como rebeldes, e

matam o Ancião João. É muito interessante porque o professor Pauli, que,

muito sereno, reúne os cristãos que sobraram vai ao deserto; o Anticristo se

enfurece com isso, e eles percebem que ele é realmente o Anticristo. Quando

ele se proclama o Anticristo, o Anticristo os mata. É anticristo porque ele é

contra o Cristo.

Eles vão para o deserto, mas é interessante porque eles seguirão o

caminho mais tradicional e mais profundo do Cristo: eles vão para o deserto

migrar, andar em oração e expiar os pecados do mundo e aguardar. Aguardar

— porque os cristãos têm certeza, os cristãos remanescentes, mesmo com

a morte do papa Pedro II e a eleição do Apolônio como papa fake de uma

religião universal global, subordinada ao anticristo —, eles têm certeza de

que Cristo voltará e restaurará as coisas.

Eles vão para o deserto esperando que Cristo volte. Aqui há também

aquela imagem do Egito, daqueles que seguem, que marcham no deserto

no meio do Egito saindo do reino, na ocasião do êxodo — aquela imagem

do êxodo é restaurada.

Eles seguiam pelo deserto, e no deserto acontecerá a ressurreição

tanto do Ancião João quanto a ressurreição do papa Pedro II. Quando o

papa Pedro II ressuscita, os cristãos se unem e o proclamam Pedro, com

isso acontece a reunificação da Igreja. Nesse sentido há duas reunificações

da Igreja no conto O Anticristo de Soloviev: a unificação falsa e a unificação

verdadeira — a Igreja se une duas vezes.

No livro também é falado algo sobre os judeus, que se revoltam contra

o regime do Anticristo em determinado momento (é bem interessante esse

pedaço), mas o ponto mais marcante disso é a unificação do cristianismo.

A Igreja se reuniu, e a Igreja inteira abraçou o papa como líder universal da

igreja, se preparando para o juízo final (o papa ressuscitado, nesse caso),

então a Igreja morreu para ressuscitar.

21
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Do mesmo modo, agora tem também um papa da Igreja falsa, da

igreja do anticristo, reinando e iludindo as pessoas com magia, unificando

as várias religiões com mística oriental etc., e o povo batendo palma para

essa religião universal, essa religião do Anticristo. As duas vagarão por um

tempo.

Aqui farei uma pausa no livro de Soloviev para ler um poema de

William Butler Yeats, para que tenham um outro olhar sobre esse poema

dele. Esse poema é um clássico de Yeats, que se chama A segunda vinda, o

poema é sobre a vinda do Anticristo.

O poema é bem interessante e casa perfeitamente nesse contexto. É

maravilhoso porque não podia ser melhor a relação; o contexto é que William
Butler Yeats está preocupadíssimo com a mentalidade revolucionária que

vem da Revolução Francesa e o clima secular: revolucionário, relativista ou

o que mais que queria se falar, em contraposição à visão mais tradicional.

Yeats não era exatamente um cristão, a história dele não é tão

dissemelhante da de Soloviev, porque ele teve uma fase esotérica. Yeats,

diferente dele, não teve essa mudança igualzinha a Soloviev no final de sua

vida, mas a trajetória é parecida, porque ele foi ficando mais tradicional com

o tempo, ele teve essa virada mais conservadora.

Yeats fala, no primeiro draft desse poema, de Pitt e Burke, porque

explicitamente ele queria falar sobre as pessoas que se opuseram à


Revolução Francesa. Diz ele, no poema:

“Girando e girando” na minha tradução está traduzido como “voltas

crescentes” mas a ideia no texto original é a de um redemoinho crescendo,

é como se fosse: “girando e girando em um redemoinho que cresce”,

porque se você ver um redemoinho na água, ele gira e puxa as coisas

em volta; quando ele está crescendo, você tem um sentido de desespero

vendo isso, é como se a desordem estivesse se ampliando, é como se você

pudesse ser sugado para esse centro de caos, girando sem parar, porque

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
em um redemoinho você gira, você vai girando, você não vai para o centro

de maneira direta, mas girando. Quando o giro vai crescendo, você sente

aquele a impressão de que você vai ser engolido por esse giro.

Continua ele: “O falcão não escuta o falcoeiro”. O falcoeiro é o que

põe ordem no falcão, aquele que chama o falcão de volta, se o falcão não

escuta o falcoeiro, ele levanta voo sem ter para onde ir.

Com isso ele não terá para onde voltar, ele não poderá ouvir o falcoeiro

de longe, não tem mais como retornar — ele foi embora e não voltará.

“Tudo se parte, o centro não sustenta

Mera anarquia avança sobre o mundo,

Marés sujas de sangue em toda parte

Os ritos da inocência sufocados.”

Neste último verso o termo original que ele usa na verdade é

“afogados”. A tradução não pegou tão bem o simbolismo, porque o que

ele está falando é que a onda de sangue se espalhou, e por toda a parte

a cerimônia da inocência se afogou, então continua o mesmo símbolo

aquático do começo da história. O primeiro redemoinho é crescente e a

onda soltou; vivemos em mundo muito urbano e não temos noção dessas

coisas, mas se você reparar em uma praia uma onda solta, uma onda grande

que fecha as barreiras pode explodir até Fukushima, onde um acidente

nuclear aconteceu por uma onda que chegou, passou e se tornou uma

coisa incontrolável, uma coisa que chega.

Essa onda de sangue é decorrente dessa anarquia, e ela sufoca, ela

afoga a cerimônia da inocência, porque é uma consequência desse mundo

de anárquicos e sem ordem, onde a inocência das pessoas morrem, porque

as pessoas do mundo são maliciosas, são ariscas, são malandras, elas são

filhas de um mundo caótico, elas vivem nesse mundo Cyber Punk, esse

mundo de malandragem, então a cerimônia foi afogada, a inocência das

pessoas morreu.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
A consequência desse mundo é essa: a inocência é debochada, ela é

tratada como uma coisa ridícula. No poema em inglês, ele fala:

“The best lack all conviction, while the worst

Are full of passionate intensity”.

Quer dizer: “Aos bons falta toda convicção, enquanto os piores /

Estão cheios de intensidade apaixonada”. E não é esse o nosso mundo?

Os bons parecem ser sempre passivos, sempre mais fracos, sempre

sem confiança, sem convicção, sempre mais letárgicos; já os maus são

embebedados, completamente eufóricos com essa maré de sangue.

Com a expressão “o centro que não se sustenta”, temos uma metáfora

poderosa do centro, porque encontrar o divino, encontrar a verdade é ir em

direção ao centro, mas se afastar dela é ir para a periferia. O que é ir para a

periferia? É você ir para pontos específicos, o que acontece no conhecimento

atual: ele é especializado, mas ele não tem um centro unificador, ele não

tem uma ordem unificadora.

Yeats fala assim: “Certamente alguma revelação está em mãos [ou

uma segunda vinda está em mãos], mal essas palavras são ditas / Quando

uma vasta imagem do Spiritus Mundi / Perturba minha visão: / Em algum

lugar nas areias do deserto / Uma forma com corpo de leão e a cabeça de
um homem, / Um olhar sem alma e sem piedade como o sol, / Movem suas

coxas lentas, enquanto passam / As sombras dos pássaros indignados”.

O anticristo é essa criatura grotesca que afasta as suas coxas, enquanto os

pássaros indignados sobrevoam — é uma metáfora incrível.

“A escuridão desce de novo, mas agora eu sei / Que vinte e séculos de

sono de pedra / Minaram ao pesadelo esse berço balançante, / E que rude

besta, sua hora está chegando, / Se arrasta para Belém para nascer?”.

Essa metáfora do poema é poderosa. É o centro que nos sustenta,

a cerimônia da inocência afogada, as marés de sangue soltas, e vem essa

criatura grotesca, esse filho do espírito do mundo. Enquanto Cristo e a

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
história da salvação estiver acontecendo, o mal pairará sobre a história

também. O que é o mal que paira sobre a história? Não é como um príncipe

igual ao Cristo, certamente, mas essas ideias malignas, dessa anarquia, essa

desordem, essa entropia social, ou seja, esse caos vai sendo minado, ele vai

sendo colocado, ele vai alimentando essa besta do espírito do mundo até o

ponto em que ela se manifesta, essa criatura grotesca, mistura de animal e

homem.

Isso quer dizer que mais ou menos quando vemos a decadência das

coisas, essa anarquia vai na verdade gestando lentamente o espírito do

mundo, que é grotesco e bizarro, embora ele apareça aqui nesse poema

como aparece no conto de Soloviev, como uma figura reluzente, como uma

figura que trará comida, paz e prosperidade — o caminho da prosperidade.

O que tem de tão interessante nisso? Por trás disso, por trás dessa

segunda vinda tem a segunda vinda do Cristo: Cristo voltará. Cristo retornará

a nós, Ele estará entre nós. A vinda do anticristo é o prenúncio do retorno de

Cristo, da vitória de Cristo; Ele já venceu. Simplesmente o retorno de Cristo

é o retorno do Rei, que é um tema simbólico da literatura: o retorno do Rei.

Outro dia ouvi alguém falando: “Meu Deus do céu, que horror! O

Brasil é atrasado por causa do sebastianismo! Meu Deus!”. Esse tema do

retorno do Rei não tem nada a ver com isso; não é deste modo, mas é um

símbolo profundo antigo.

O tema do retorno do Rei é o retorno do Cristo metafórico, isso está na

Bela Adormecida, onde tem um príncipe prometido que voltará para salvar

as pessoas; também tem obviamente no O Senhor dos anéis: o retorno do

Rei, que é aquele que é o legítimo herdeiro do trono.

Nós estamos cheios líderes, basta você olhar para eles. Nós estamos

cheios de regentes — nós vamos discutir isso um dia quando falarmos

sobre O Senhor dos anéis —, mas o fato é que nós estamos cheios de

regentes e temos poucos reis. O retorno do Rei, o retorno do Cristo que trará

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
a Redenção, que trará a salvação, que restaurará essa ordem perdida e que

se contraporá a toda essa decadência e a essa criatura bizarra, que assusta

os pássaros se arrastando para Belém.

Aliás, é em Jerusalém o Congresso em que foram mortos os líderes

religiosos no Anticristo de Soloviev, mas com a ressurreição do papa —

voltando para o Anticristo de Soloviev — com a ressurreição do papa e com

a Igreja unificada e se contrapondo à falsa Igreja, o cenário finalmente está

pronto para a vinda do Cristo, porque o Cristo não voltará! Esse que é o ponto.

Deus não deixará as pessoas confusas, essa é a visão que Soloviev

tem em mente. Deus não abandonará as pessoas, não as deixará de lado.

Agora que ficou claro — como aqui no poema de Willian Butler Yeats
ficou claro, e agora aqui no mundo de Soloviev — qual é a Igreja e qual

é o reino do Anticristo, e foi claramente definido, e os portões do inferno

não prevaleceram, e todas as profecias ortodoxas se realizaram, houve a

unificação da igreja etc., quando agora, tendo ficado claro, e a tradição da

Igreja se reencontrou e ficou claro também o que é o Anticristo, agora a

vinda do Cristo está pronta.

Porque as pessoas sabem, as pessoas têm um caminho para poder

encontrar Cristo, para poder segui-LO. Tendo esse caminho para poder

segui-LO, elas têm uma chance de salvação e uma chance de esperança; e

nessa chance de esperança e nessa salvação que elas colocarão a sua fé; é

nessa salvação que está o verdadeiro Cristo.

Para a história do Anticristo de Soloviev, isso é tudo. Esse é um livro

que eu recomendo muito que vocês leiam, existem edições recentes dele

agora em português (não era tão fácil de achar, agora está mais fácil de se

encontrar) e é brilhante, é simplesmente brilhante. Foi a primeira distopia das

quais nós analisaremos, é uma das mais profundas, das mais impactantes

e eu realmente acho-a uma reflexão incrível, e acho que está se tornando

mais atual do que nunca.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Nunca foi tão atual O Anticristo de Soloviev, depois de 121 anos, esse

livro tem 121 anos, e ele está me parecendo mais atual do que ele era na

primeira vez que o li.

Isso faz 10 anos, mas está me parecendo mais atual do que era

naquele tempo. Veremos o que pode acontecer, é muito impressionante

mesmo essa história.

Daremos continuidade nas próximas aulas às outras distopias.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
AU L A 2

2º LIVRO - ADMIRÁVEL

MUNDO NOVO REVISITADO


Hoje eu vou falar sobre o Admirável Mundo Novo Revisitado.

Esta minha edição tem tanto o Admirável Mundo Novo quanto

o Admirável Mundo Novo Revisitado. Há um prefácio de Christopher

Hitchens, que eu não recomendo (achei muito ruim o prefácio dele). Mas,

de qualquer maneira, eu adquiri na ocasião porque tinha essa parte do

Admirável Mundo Novo Revisitado. Admirável Mundo Novo foi escrito nos

anos 30 e o Revisitado nos anos 50.

O que eu queria fazer hoje, na verdade, seria pegar um pouco da

vida de Aldous Huxley, porque sempre chega estes questionamentos:

primeiro, como que Aldous Huxley tinha tantas informações para escrever

o Admirável Mundo Novo e outras distopias que ele escreveu? E, segundo,


até que ponto ele concorda com o que está acontecendo no Admirável

Mundo Novo? Porque ele é uma figura muito misteriosa. Às vezes parece

que inclusive ele está fazendo uma coisa meio prescritiva, em vez de

descritiva no Admirável Mundo Novo. Esse é sempre um drama. É como ler

Maquiavel: até que ponto o que ele está fazendo é descritivo ou prescritivo?

E você sempre fica aquela dúvida. E existe uma dúvida sobre Huxley. Mas

eu queria pintar um pouco o personagem, dar umas pinceladas sobre a

vida de Huxley, para nós começarmos a tentar entender quem ele era e,

entendendo quem ele era, tentar entender quais eram as motivações dele.

Eu acho que esse é o método mais eficaz.

Começamos com o avô dele. Uma vez eu estava fazendo um estudo

histórico sobre a Europa e, olhando as épocas, tentei entender como que

mudaram tantos países. E certamente um ponto de ruptura foi a segunda

metade do século XIX, porque, embora antes da primeira metade do século

XIX tenha tido a Revolução Francesa no fim do século XVIII, você não tinha

o ateísmo como uma coisa forte no Ocidente, realmente não era forte. No

geral, o Ocidente era cristão, protestante católico ou ortodoxo — se é que

dá pra usar o termo Ocidente para tratar do cristianismo ortodoxo. Mas,

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
na segunda metade do século XIX, surgem figuras como Marx, Auguste

Comte e Nietzsche. Aliás, os três escolhidos por Eric Voegelin para fazer

aquele ensaio belíssimo, “Ciência Política e Gnosticismo”, em que ele pega

como símbolos, Comte, Nietzsche e Marx: o fundador do positivismo, o

niilista — embora Nietzsche seja muito difícil categorizar, mas certamente

é um dos pais da mentalidade moderna contemporânea — e Karl Marx, que

foi extremamente influente. Quando pegamos esses três, vemos que é o

momento em que o ateísmo já se tornou mais prevalente.

Mas, sem dúvida nenhuma, não seria possível um certo tipo de

ateísmo sem uma certa interpretação, uma certa leitura, da doutrina

darwinista. E o grande responsável por essa leitura materialista de Darwin,

por essa propaganda materialista em cima de Darwin, por uma leitura

mais agnóstica, mais secularizada de Darwin, foi Thomas Huxley. Porque

Darwin mesmo, na Origem das Espécies, faz alusões à criação divina, fala

do design inteligente inclusive na própria obra dele. Ele abre caminhos para

outras possibilidades mais sobrenaturais que explicassem a seleção natural.

Porque ali você tem tanto um ancestral comum quanto a noção de seleção

natural, mas, para ele, isso não contradiz um plano divino, e ele faz algumas

considerações nessa linha.

Thomas Huxley era avô de Aldous Huxley e um membro da elite

britânica. Ele tinha contatos na altíssima classe britânica, e foi ele quem

propagou essa mentalidade para essa alta classe. Mesmo ideias como a

mudança genética da população ficam em moda nessa segunda metade

do século XIX e começo do século XX. Aliás, essas coisas mais genéticas,

como carga genética da população etc., foi a II Guerra Mundial que fez

cair em desuso. A eugenia deixou só de ser chique com Hitler, porque

aconteceu o Holocausto, e isso foi uma coisa chocante para as pessoas. A

eugenia ficou associada ao Holocausto e aí caiu em desuso, pelo menos

no sentido explícito. A carga genética às vezes é chamada de darwinismo

social, mas este termo é muito ambíguo, muito amplo. É complexo chamar

30
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Thomas Huxley de darwinista social, mas certamente ele aplicou Darwin

socialmente e certamente isso tinha uma certa visão genética na forma de

se pensar as populações. Quanto a isso não há dúvidas.

E Thomas Huxley se autoproclamava o bulldog de Darwin. Então

ele pegou Darwin realmente e quis fazer uma ideologia a partir dele, ou

seja, a pesquisa científica não comporta por si, pelo método científico,

considerações de toda natureza social, ética etc. Isso são derivações que a

pessoa tira fora. Normalmente quem quis dar essas derivações foi o próprio

Thomas Huxley. Thomas Huxley foi realmente um homem em muitos

aspectos mais influente que Charles Darwin, porque, na verdade, Charles

Darwin fez uma pesquisa científica e às vezes tirava considerações políticas

disso, sem dúvida nenhuma, mas nem perto da revolução que foi Thomas

Huxley. Ele entrava em polêmicas com pessoas religiosas, debatia com

essas pessoas, ele era um extremo adepto do progressismo.

Aliás, boa parte dos ateístas modernos muitas vezes não são como

Voegelin coloca, eles não são seculares no sentido pleno. Na verdade, eles são

ateus, mas muitas vezes ateus calvinistas, ou ateus progressistas gnósticos

imanentistas, porque eles acreditam num progresso da sociedade, num

futuro ideal que está por vir, em tipos de advento de um mundo melhor que

está vindo espiritualmente. Mais ou menos semelhante, às vezes, àquela

estrutura de Hegel de que Deus está se conhecendo — Hegel fala essa

ideia de Deus se conhecer na Fenomenologia do Espírito —, então está

acontecendo um advento de uma nova era, uma era brilhante. E Thomas

Huxley tem esta visão em mente muitas vezes: o advento de uma nova

era que está por vir. De certo modo, os puritanos já tinham isso, mas eles

certamente colocavam esse progresso às vezes de forma mais imanentista,

às vezes menos, mas certamente a visão deles era menos imanentista e mais

escatológica, ou seja, pensavam para depois desta vida o advento de um

certo paraíso. E essa visão do progressismo já é muito clara no pensamento

de Thomas Huxley.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Bento XVI, nas suas investigações, pensa em Bacon como a origem

dessa mentalidade progressista. Ele não é o único que pensa desse

modo, tem uma tradição intelectual de pensar Francis Bacon como um

originador da ideologia progressista, ou seja, de que as épocas vão a toda

hora melhorando, que o progresso científico é o motor dessa evolução, que

cada era é superior à anterior. Bacon já tinha esse elemento meio esotérico

misturado nessa visão do progresso, sem dúvida meio alquímica, da

evolução do progresso e, portanto, esse otimismo em relação às coisas, esse

cristianismo imanentizado. Bacon foi também uma figura da elite britânica,

uma figura extremamente influente, e um político. E Thomas Huxley se

insere nessa tradição de Bacon, sem dúvida nenhuma.

Outra tradição britânica, fora o progressismo, é o nominalismo.

Guilherme de Ockham foi tremendamente influente na Inglaterra. E o

nominalismo exclui os universais. Se eu fiz referência a Voegelin para falar

dessa imanentização da escatologia, ou seja, de um paraíso aqui na terra,

na ideia de um progresso terreno, aqui eu faço referência a Richard Weaver,

àquele clássico e belíssimo livro, Ideias têm Consequências, no qual ele

fala do nominalismo como um grande ponto de ruptura do Ocidente. E o

nominalismo exclui a beleza, a bondade, a verdade — os universais em geral.

A essência humana são abstrações, são palavras que não se referem a uma

correspondência real, ou seja, elas só são gerais na medida em que as falo,

mas elas não são reais na essência das coisas. Essa visão nominalista passou
demais para Inglaterra. Claro que Bacon é tremendamente nominalista, e o

empirismo britânico bebeu demais desse nominalismo.

David Hume é um prefigurador dessa visão de Thomas Huxley,

porque ele era tremendamente cético. Interessante que David Hume,

por conta de seu ceticismo, preferia menos mudanças políticas. Samuel

Johnson, um crítico literário britânico fantástico — por favor, leiam A vida de

Samuel Johnson, de Boswell, é um grande clássico —, sobre esse assunto

de que estamos falando havia duas frases notórias. Primeiro, ele dizia que

32
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
o demônio foi o primeiro progressista, o primeiro whig (whig é o partido

liberal britânico, que era associado ao progressismo). O primeiro whig foi

o capeta, foi o primeiro que quis romper com as barreiras e levar adiante

o progresso. E quando ele foi comentar David Hume, disse que Hume era

conservador por acaso, que calhou de ser conservador por um motivo falso

que levará ao progressismo em última instância. Era como ele via David

Hume. Por isso que eu sou muito cético dessa coisa toda, às vezes querem

fundar o conservadorismo no ceticismo.

Na verdade, isso vem muito de Hume, e de Oakeshott também,

que quer fazer isso a partir de Hume. Mas eu vejo nisso um tremendo

problema, porque essa mentalidade de Hume, que passou fortemente

para o iluminismo, aliada com essa outra ideia de progresso tecnológico,

em vistas de um futuro que vai evoluindo, formam pilares que passaram

para essa mentalidade extremamente secularizada e progressista do

século XIX. Thomas Huxley bebe essa tradição, pega a teoria de Darwin

tal como já tinham feito com a teoria do Newton em outros momentos.

Newton tinha um plano religioso à parte de sua teoria, mas já tinham

feito uma parte política em cima da teoria de Newton — Voltaire de certo

modo faz isso, inclusive, ele usa um pouco da teoria do Newton para fins

políticos. Assim fazem também com a teoria de Darwin, e Thomas Huxley

é quem faz isso. E a partir daí, o modo de pensar o mundo começa a mudar

porque estamos pensando na seleção natural, na sociedade com esses


elementos de controle, e a ciência como a gestora da sociedade, como a

administradora.

Outra tradição britânica, o utilitarismo: mais prazer, menos dor. Este é

o código ético. Em vez da ética do bem transcendente, agora é o utilitarismo:

prazer, menos dor, controle social. A ciência vai nos direcionar para uma

sociedade mais controlada e gerida, uma sociedade melhor administrada,

sem Beleza, sem Verdade, sem Bondade — porque esses são conceitos que

têm de ser excluídos porque os pensadores são nominalistas —, em direção

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
ao progresso de uma era melhor que está por vir, cada vez mais rejeitando

a dor, tudo regido de maneira científica e geneticamente direcionada para

uma melhora; cada vez há uma evolução genética porque o homem está

nesse processo de seleção natural, e aqui se entende também a evolução

das espécies como esse fluxo.

Por isso que o progressismo e a evolução das espécies andam na

mesma linha: elas vão andando para a melhora da humanidade, uma

humanidade mais adaptada. Mais adaptada para quê? Mais prazer, menos

dor, mais eficiência. Então a eficiência é chave para essa mentalidade que

temos.

E, aliás, a obsessão do século XIX tardio também é eficiência: relógios,


torres de relógio, estradas de ferro, barcos que navegam mais rápido etc. É

a sátira de A Volta ao Mundo em 80 Dias, é quase uma piada. A Volta ao

Mundo em 80 Dias é um livro um pouco satírico. O personagem é obcecado

por relógios, a barba dele tem de ser a tantos graus, no horário tal. É uma

piada com os próprios ingleses do período.

Essa ideia de progresso nominalista gerido cientificamente, tudo está

confluindo para esse século XIX. É muito engraçado, porque isso foi pego

por muitos autores progressistas para falar mal do imperialismo, mas isso

tinha outra conotação também. Há um poema de Kipling em que ele fala do

“fardo do homem branco”, um negócio terrível o fardo do homem branco.

Eu adoro Kipling como poeta, mas essa história do fardo homem branco

é bem bizarra. Ele está falando como a Inglaterra falando para os Estados

Unidos assumirem o fardo do homem branco de civilizar os povos inferiores.

Essa noção bem bizarra no Kipling é muitas vezes atacada. Aqui eu não

estou falando que Thomas Huxley especificamente fala do fardo do homem

branco de Kipling, embora ele tenha já essa visão da genética e o papel da

genética na sociedade. Mas existe um pouco essa conotação de que agora

a elite anglo-saxônica tem de assumir seu papel de gestão da sociedade,

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
de gestão do mundo, de organização, de eficiência, de utilitarismo (mais

prazer, menos dor); excluir os universais, ser pragmático e gerir esse mundo

de uma maneira que traga o advento desse mundo do progresso científico

e humano, que as duas coisas teoricamente caminhariam juntas. O que

já é uma coisa que eu nego de imediato, porque acredito que o progresso

científico não necessariamente traz o progresso humano. Aliás, eu diria que

várias tecnologias trazem bens maravilhosos para humanidade e também

podem degenerar capacidades humanas tremendamente.

Eu estou de propósito já descrevendo o mundo britânico de Thomas

Huxley para vocês entenderem um pouco melhor o mundo do neto dele,

para vocês começarem a entrar na cabeça do que é o mundo de Aldous

Huxley. Esse é o mundo do avô de Aldous Huxley, ou seja, é o mundo daquela

Inglaterra de 1860 e 1870, que abraçou Darwin, que agora vai propagar o

evangelho de Darwin pelos quatro cantos, o evangelho do utilitarismo.

Aliás, a ideia do utilitarismo é de Bentham, o Pan-óptico, da qual a esquerda

francesa tanto falou, mas não deixa de ser uma reflexão interessante. O pan-

óptico é essa prisão, pensada por esses utilitaristas, onde você pode olhar

de todas as partes, você é visto de todas as partes.

Quando somamos utilitarismo, nominalismo e tudo isso, já fica mais

claro como pensa essa elite liberal britânica do fim de XIX e como eles vêem

seu papel em relação ao mundo. Eles têm um papel civilizatório, um papel

de trazer esse progresso científico e de trazer organização, de colocar as

pessoas dessa maneira bem positivista mesmo de raciocinar as coisas. E

eles serão os que trarão o progresso.

Porém, uma coisa que atrapalha o progresso é que os homens ainda

são muito tribais. Isto seria, na cabeça dessa elite, um remanescente de uma

estrutura antiga, porque agora temos de ter uma visão global do mundo.

Porque a ciência é global, ela não é restrita. A Nova Atlântida, para usar o

termo de Bacon, é uma coisa global, não é um negócio de um pedacinho,

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
de um algo aqui. Ela é uma coisa universal, E essas tribos primitivas que

resistem ao avanço da ciência têm que ser suprimidas.

Esse é o avô de Huxley, esse é o modo como ele está pensando. E

quando ele fala de suprimir as tribos, eu não estou falando que é só uma

justificativa do colonialismo. Certamente não é por esse lado. Aliás, às

vezes ele, assim como essa elite, vê o colonialismo como uma coisa muito

retrógrada. Eles são anticolonialistas muitas vezes. Eles já começam a aludir

a questão mais global do que à colonial, sem dúvida nenhuma. Mas há uma

transposição de colonialismo para globalismo na Inglaterra, realmente. E

já na época do Império Britânico, muitas pessoas viam que, a partir dele,

ele poderia ser uma unificação global. Aliás, Karl Marx via assim de certa

forma. Karl Marx morou na Inglaterra, admirava o Império Britânico em

muitos aspectos, apesar de ser crítico de outros. Ele achava que quem

puxaria a revolução comunista seria o Império Britânico, e que este tinha

esse potencial globalizante. Essa é uma visão da época. Thomas Huxley

ajuda a trazer essa função mais secular, essa ideologia mais cientificista,

mais progressista, para a Inglaterra, e começa a espalhar essas ideias.

E o irmão de Huxley, Julian Huxley, é um continuador dessa tradição.

Ele é um homem mais do século XX do que seu avô, certamente, é um

sujeito bem mais imerso nisso. Julian Huxley foi da sociedade eugenista

britânica, então ele era extremamente preocupado com eugenia, com

mudança genética da população, embora não gostasse do nazismo. Ele não

apoiava esse tipo de mudança genética. mas era obcecado por outra ideia

que pipocou no fim do XIX: as ideias de Malthus. E aí a questão. A população

está acabando: esta é a obsessão da época. Haverá superpopulação e será o

apocalipse. E isso está no imaginário tremendamente, e Julian Huxley está

extremamente preocupado com controle populacional. Aliás, a elite britânica

fica obcecada por controle populacional. Eles entendem que a missão deles

é promover o controle populacional para impedir a superpopulação. Então

Julian Huxley é preocupadíssimo com isso, extremamente globalista na

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
visão dele. Inclusive Julian Huxley virá a ser o primeiro diretor da UNESCO.

Aí as pessoas, às vezes, pensarão: “Eugenia, controle populacional

e globalismo?”. À época isso era muito associado. Margaret Sanger, uma

das figuras-chave para a maior organização de aborto dos Estados Unidos,

era ligada ao movimento eugenista. Isso era muito comum, aliás. Controle

populacional e eugenismo andavam muito relacionados no começo do

século. XX. Novamente, eles foram dissociados no fim da II Guerra Mundial,

porque, a partir daí, era feio falar que controle populacional, pois tinha a ver

com o nazismo. Então continuou a propaganda do controle populacional,

mas com outro viés, que foi o da Revolução Sexual. De fato, a pauta

continuou idêntica, contudo, mudou a propaganda. E com a mudança da

propaganda, as pessoas aderiram muito mais do que na época em que,


por motivos simplesmente mais eugenistas, se propagava isso. De qualquer

modo, mesmo a liberação sexual antes dos anos 60 já era associada a esses

mesmos movimentos de controle populacional.

O que acontece é que Julian Huxley pensa que é preciso promover

essa mudança global e, para tanto, precisamos é necessário dissolver as

unidades nacionais, trazer uma formação educacional global. No começo

do século XX, houve, obviamente, movimentos da Liga das Nações e a

obsessão de Woodrow Wilson, o presidente americano, pela Liga das

Nações. Aliás, Woodrow Wilson é outro personagem. Ele era citado por

aquele filme racista, O Nascimento da Nação. Várias citações do filme são

dele, e ele era obcecado por esse movimento globalista da Liga das Nações.

Outro exemplo (as pessoas não conhecem mais isso) é o filme Cimarron,

vencedor do 3º Oscar. É um filme racista, que tem apologia progressista.

É bizarro. Procurem sobre a história desse filme. É extremamente racista e

extremamente progressista. Termina com a mulher progressista trazendo

a mudança política. E o partido democrata tinha esse grupo forte, típica

coisa do votante apoiador de Woodrow Wilson: era globalista, progressista,

associado a isso. Essa mentalidade é muito comum na época. E, em meio

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
a tudo isso, Julian Huxley foi o sujeito bem dessa transição, do começo

do século XX para segunda metade do século XX. É o sujeito que estava

lá envolvido para trazer esse movimento globalista à tona. Se antes havia

uma descentralização da ordem, agora há uma centralização da desordem,

desordem moral: menos valores morais, mais controle científico, mais

centralização. E é nesse contexto que nasceu Aldous Huxley.

Ele nasce na família Huxley com toda essa carga, uma família sem

dúvida nenhuma da elite progressista. Ele vai estudar em Oxford, vai ser

professor do Wheaton College, que é a elite da elite britânica, vai passar pela

Ivy League Americana, vai ter acesso aos círculos da altíssima sociedade

anglo-saxônica. Ele cresce nesse contexto social. Ele é um filho da elite

globalista, relativista, cientificista, ocidental: nasceu nesse meio, foi criado

nesse meio, é da fina flor desse meio. Aliás, a família dele é um dos maiores

criadores desse negócio: o irmão dele é líder da sociedade eugenista, foi um

dos criadores da UNESCO e primeiro diretor da UNESCO. Aliás, o irmão dele

só não foi mais para frente na UNESCO porque na época os americanos

boicotaram a UNESCO. Julian havia ido para a União Soviética, adorou, achou

o máximo a visita e falou: “Eu vi o futuro”. Ele saiu com a impressão de que

lá as coisas são geridas, havia o progresso científico. Ele ficou deslumbrado.

Aliás, os soviéticos faziam muito isto: pegavam membros da elite

ocidental para visitar a União Soviética e fazer aquele tour científico,

mostrando aqueles mecanismos de controle populacional, eles viam aquilo

e pensavam que as coisas lá eram muito bem geridas. Isso foi prática

soviética até os anos 80. Quando chegaram os anos 80, a coisa estava

tão velha — fico imaginando que até os prédios já estavam velhos — que

repensaram se continuariam fazendo aquilo. É engraçado a decadência da

União Soviética, porque não foi um incêndio. A entropia soviética foi mais

ferrugem do que incêndio. Chegou um momento em que a própria elite

soviética não aguentava mais a própria União Soviética. Mas eles sempre

fizeram essa prática de levar os líderes da elite ocidental para visitar e fazer

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
aquele cortejo deles. E Julian Huxley foi parte disso, adorou, achou muito

legal.

E o Aldous Huxley? Ele era um cara das Letras, tinha uma busca

espiritual ao longo da vida, normalmente mais perenialista. Ele defendia uma

coisa tipo união das religiões, uma mistura das religiões, e era mais budista

do que cristão em muitos aspectos. E ele tinha muita sensibilidade literária

e amava a ideia de inspiração literária. Para Huxley, isto era fundamental.

Huxley também amava profundamente a tradição da liberdade, e ele

gostava demais da ideia da democracia jeffersoniana, achava isso lindo.

Não quer dizer que ele achasse que era praticável. Ele achava complexa a

prática, mas achava o ideal da democracia jeffersoniana bonito. Tanto que

Huxley tentou se tornar cidadão americano, e não conseguiu. E não por “n”
motivo, alguma discussão da época. Mas Aldous Huxley amava a literatura,

amava estudar os clássicos. Sem dúvida, Oxford deu-lhe esse espírito de

querer estudar línguas. Ele entendia muito bem francês, por exemplo. É

muito engraçado o que se segue então.

Huxley está perturbado. E quando escreve Admirável Mundo

Novo Revisitado, ele está perturbado com a superpopulação. Ele acha

que está tendo um problema de superpopulação imenso, e que se nós

não controlarmos isso urgentemente, vai ser o caos. E ele acha que a

superpopulação levará a uma centralização política, o que para ele é

inevitável. Ele realmente é meio malthusiano. Essa falácia malthusiana

refutada já foi mil vezes. Hoje é tão ridícula essa tese de Huxley, que chega

a ser surpreendente. Você vê que a imigração que está segurando as taxas

de natalidade na Europa, no Japão, na Coréia e mesmo nos Estados Unidos.

Nesses países está todo mundo envelhecendo. As populações são velhas.

Depois que aplicaram o contraceptivo, está todo mundo envelhecendo. A

própria China está desesperada com a população envelhecendo.

E, na verdade, você vê que a queda da população pode ser tão

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
brusca quanto a subida foi em determinados momentos históricos. Com

a Revolução Industrial, as taxas de população cresceram muito, mas eles

não equacionaram porque isso era devido ao efeito da Revolução Industrial.

Eles não esperaram para ver a curva, passar os efeitos iniciais da Revolução

Industrial, ou seja, da população conseguir ter melhores mecanismos e ver

como que estabilizaria a população. Eles (a elite global) já pressupuseram que

a população estouraria sem parar, porque estava melhorando a qualidade

de vida, como se a expectativa de vida pudesse crescer indefinidamente e

a mortalidade cair indefinidamente. Eles tinham uma confiança excessiva

no crescimento da população porque viram mudanças na Revolução

Industrial. Como eles viram mudanças, eles estavam obcecados por isso, e

não olharam a estatística no longo prazo. E hoje, 2021, ano de Nosso Senhor,

depois da introdução contraceptiva e todas essas propagandas globalistas

para controle de população, aborto etc., as populações são velhas na Europa,

no Japão e na Coréia, nos Estados Unidos, em grande medida, as populações

estão morrendo. Na verdade, isso está muito mais próximo de um caos

demográfico nesses países do que o oposto. E não houve um crescimento

exponencial da população global como se imaginava no fim do século XIX.

Essa proporção não é verdadeira. A taxa de fome não aumentou também,

porque você produz mais comida com menos recursos, então também não

é real.

Há uma série de problemas com essa tese da superpopulação.


Aliás, a população global caberia em um pedacinho dos Estados Unidos,

com a densidade demográfica de Singapura, porque o tipo de vida

hoje é completamente diferente do que já foi no passado. O pânico da

superpopulação tinha muito mais a ver com pessoas que ainda tinham um

raciocínio meio agrícola e imediatamente pós-agrícola. É como o problema

do capitalismo, a crítica de Karl Marx. Ela fazia muito mais sentido para as

pessoas da época, porque elas estavam deslumbradas com o surgimento

da fábrica, da indústria e da jornada de trabalho. Hoje, quem é o dono dos

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
meios de produção? Se eu aqui, agora, programar um negócio, começar a

programar do zero, eu sou o dono dos meios de produção? A própria ideia

de dono dos meios de produção já é relativa hoje em comparação ao que

imaginava Karl Marx, por causa da mudança tecnológica.

Mas Huxley, surpreendentemente, é bem defasado nesse ponto. E ele

está obcecado por essa ideia de controle populacional. Ele acha que é muito

difícil controlar, e que o único modo seria um mecanismo de controle geral.

É o que ele fala no Admirável Mundo Novo Revisitado. Depois de Admirável

Mundo Novo, o processo está muito mais acelerado do que ele imaginava,

acontecerá muito mais rápido, já está chegando. Ele vê Admirável Mundo

Novo como uma coisa inevitável, que está chegando, avassaladora, que está

vindo com tudo e demolindo todas as coisas. Ele acha que inevitavelmente
essa elite, que ele chama no Revisitado de Elite do Poder, é quem está fazendo

essa mudança. E essa Elite do Poder une big business e big government, ou

seja, governo grande e grandes empresas unidas para dominar a vida das

pessoas e controlá-las. Diferente da superpopulação.

Com esse ponto eu concordo 120% com Huxley. Aliás, eu acho que

esse é o diagnóstico mais perfeito que se pode fazer do mundo moderno.

Economistas falaram isso na época, e ele se refere notoriamente pessoas

que queiram resgatar tradições mais locais. Ele cita Belloc, do distributismo,

e Mortimer Adler como exemplos de sujeitos mais conservadores que

queriam resgatar a vida local em contraposição a esse controle, a esse big

government, esse big business, essa elite gestora mandando em tudo.

E ele fala isso como uma coisa positiva, porque lhe lembra o conceito da

democracia jeffersoniana que eles mataram, não soubemos aproveitar. É

mais ou menos assim: o ser humano não soube aproveitar a sua liberdade,

ele não quer responsabilidade, e como ele não soube, agora ele acha que

devia se lutar por isso, mas é tarde demais porque essa Elite do Poder usará

o prazer e a mídia de massa, a manipulação em massa.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Ele reinterpreta Hitler. Ele fala que Hitler era muito mais um

fenômeno de marketing, no Revisitado. A maior ênfase na análise de Hitler

é o marketing. Ele fala que Hitler é um sujeito da mídia de massa: marketing,

propaganda. Ele era um propagandista tremendo, o que é um fato histórico.

Aliás, dos nacionalistas germânicos II Guerra Mundial, Hitler é um dos

menos inteligentes. Eu falo isto com tranquilidade: Hitler era um dos mais

ignorantes dos nacionalistas germânicos da época. Se você comparar Hitler

com um sujeito extremamente denso, por exemplo, como Ernst Jünger,

que é um autor do período, Jünger era intelectualmente quatrocentas

vezes superior ao Hitler. Hitler era intelectualmente limitado. Mas o que

Hitler de tinha habilidade? Ele era um publicitário, ele era um marqueteiro,

ele sabia vender o negócio. Tanto que o Ministério de Propaganda dele era

imenso. Huxley cita isso, e ele está correto. E, claro, os soviéticos também

eram extremamente marqueteiros. E o mundo ocidental é gerido pela

manipulação de massas.

Existe um livro de Walter Lippmann chamado Opinião Pública. Este

livro é surpreendentemente honesto. É o sujeito da elite global jornalística

falando como funciona o negócio. É muito louco, porque ele diz que o

jornalismo, num lado, lida com a verdade, mas, na verdade, eles são uma

elite e direcionam o gado. O livro é quase isso, é quase ele admitindo: “Somos

parte dessa elite”. Opinião Pública, de Walter Lippmann, é um clássico do

jornalismo americano, é um dos inauguradores do jornalismo moderno Ele


declara que a população não sabe formular as suas opiniões, esse negócio

de verdade dos fatos, não é bem assim que funciona, que jornalista deturpa

mesmo os fatos muitas vezes. Só que tem uma elite que sabe mais o que é

melhor para a população, e eles têm de passar a opinião dessa elite para o

povo. É isso que eles fazem. E ele assume que é manipulado mesmo, que

é sensacionalista mesmo, e que é para essa finalidade. Huxley obviamente

sabe disso, ele conhece esse tipo de estudo, esse tipo de meio, ele vivia

nesses meios.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Então o que é que ele vê? Ele vê essa Elite do Poder implantando o

mundo novo por meio dessas técnicas de indução do prazer, de técnicas

de marketing, de conformação psicológica, de gestão. Ele fala da hiper

organização: tudo virará essa gigantesca burocracia de controle, um grupo

dominando tudo e a vida humana controlada ao extremo por meio dessa

mídia de quem tem o poder metralhando essas ideias para induzir as

pessoas.

Aliás, ele cita no Revisitado algo assustador. Ele fala que o mundo

industrial é o mundo do consumo, que, na verdade, o industrialismo já não

é o capitalismo, já é o consumismo. Quando você é entupido do consumo,

você o é a um ponto de não conseguir raciocinar e pensar sobre as coisas

que você está fazendo. É tipo aquele começo do Matrix: Neo com um fone
e várias telas abertas, e você não sabe se ele está acordado ou dormindo.

É uma representação da hiperestimulação. E de fato esse é um fenômeno

atual. A Elite do Poder joga essa hiperestimulação. E Huxley fala que nunca

foi tanto poder concentrado na mão de tão poucos, tão poucos definindo

a vida de tantas pessoas por meio desse establishment midiático e desses

mecanismos do governo. O governo e as empresas vão se misturar. Aliás,

Belloc e Chesterton falaram isso antes de Huxley. E ele sabia disso, Huxley

leu Chesterton, e ele tem coisas de Chesterton na cabeça. Aqui, por exemplo,

ele fala de persuasão subconsciente — é uma das partes do “Manipulações

por Subconsciente” —, persuasão química, as pessoas inserirem substâncias


para lavagem cerebral; arte da venda. É muito louco Admirável Mundo Novo

Revisitado porque ele pega bem esses pontos.

E o que que vai morrer com isso? O espírito religioso e o espírito de

liberdade certamente vão morrer. Aqui nós entramos num insight para,

de uma vez por todas, tentarmos dar uma resposta para esse problema de

qual é a visão de Huxley.

O que eu acho que é a visão do Huxley? Ele é obviamente do meio

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
globalista. Até assustadoramente no Revisitado ele fala que o Admirável

Mundo Novo dá prescrições para resolver o problema da superpopulação

em alguns aspectos. Em alguns aspectos, Huxley parece às vezes indicar o

Admirável Mundo Novo como algo que resolverá alguns problemas. Mas aqui

temos de tomar cuidado, simplesmente pular e então rápido demais falar:

“Huxley é filho da família globalista, o irmão dele é globalista, ele escreveu o

livro de má-fé mesmo, ele está querendo passar para os amigos dele como

que vai dominar o mundo. Quando você lê o prefácio posterior que ele fez

para o Revisitado, não é isso que ele está falando. Ele tem elementos disso,

sem dúvida nenhuma; ele tem elementos de mentalidade do Admirável

Mundo Novo, sem dúvida nenhuma; ele tem elementos de mentalidade

de globalista, sem dúvida nenhuma. Mas Huxley é um sujeito muito doido.

Ele fez experiências com todas as drogas, escreveu um livro sobre isso. O

movimento dos anos 60 e das drogas passou por Huxley. Ele escreveu o livro

As Portas da Percepção, ele experimentou com todas as drogas, mas ele

entende que as drogas serão usadas como um instrumento de dominação

da população. Ele era uma figura muito peculiar. Aliás, ele foi professor

de Orwell — muito interessante isto — e ele tem vários comentários sobre

Orwell (ainda vamos falar sobre isso no 1984).

Huxley então está vendo esse movimento globalista avassalador,

fordismo, Mussolini, Hitler, Marx, Pavlov, todo tipo de controle populacional.

Ele está vendo tudo isso para todo lado e está representando isso
simbolicamente no texto. Esse ponto é relativamente descritivo. Ele cresceu

nesse meio, ele sabe tudo desse meio. Ele lamenta genuinamente — isso

eu tiro do que ele escreveu — a perda dos valores espirituais. O paradigma

do Admirável Mundo Novo é cristão, embora ele se identificasse mais

com o budismo do que com o cristianismo, mas ele acha que a perda do

elemento espiritual é muito nociva para a alma humana, que isso mata o

ser humano. Ele acha que a liberdade é fundamental para os homens, para

também trazer responsabilidade. E ele acha que esse admirável mundo

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
novo suprimirá essa liberdade de uma maneira bizarra: as pessoas serão

controladas, não conseguirão se expressar. Então aquela sensibilidade

artística que ele valoriza morrerá, e ele acha isso terrível. Ele acha que a

ciência mais profunda, a arte e a religião, morre com esse admirável mundo

novo, e. para ele, isso é lamentável. Até que ponto ele acha que isso pode

ser evitado? Ele é extremamente pessimista, ele acha que não conseguirá

parar isso. Mas ele acha que você teria de educar as pessoas para liberdade,

para responsabilidade, para elas pararem de ser totalmente determinadas

por isso.

É bem ambígua a cabeça dele, e ele se coloca como uma pessoa

dividida, uma pessoa confusa com os acontecimentos. Ele sente que

essa perda dos valores espirituais da arte é a morte da alma humana.


Visivelmente ele tem esse feeling, visivelmente admira essas soluções tipo

distributismo, qualquer tipo de comunitarismo. Ele acha fascinante, tribo

indígena, tribo hindu com seus costumes. Ele acha tudo isso extremamente

bom. Tipo Veda, ele pensa que é uma vida mais plena o sujeito da tribo

lendo hinduísmo do que o cidadão do admirável mundo novo ingerindo as

drogas e ficando dominado por essas forças propagandísticas. Ele vê essa

experiência humana do Admirável Mundo Novo inferior àquela outra. Por

isso que ele mesmo viaja, vai aos países orientais.

Então Huxley, em última instância, acha que a superpopulação — e

eu acredito que isso seja extremamente falso — é um problema que levará

ao admirável mundo novo, que a mudança da mídia e da tecnologia levará

ao admirável mundo novo, que essa Elite do Poder dominarão as coisas

e que, com isso, coisas que ele ama serão perdidas. Essa é basicamente a

visão dele. Ele não acha que tudo do admirável mundo novo é ruim, é aí que

está a questão. Não é isso que ele pensa. Ele certamente não acha que tudo

é bom. Ele acha que algumas coisas do admirável mundo novo matarão

o espírito e a vida dele. Não dá para tomar Huxley como o irmão dele, não

dá tomá-lo como Thomas Huxley também, nem como Soloviev, o cristão

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
preocupado com o anticristo do qual falamos na aula do Anticristo. Dá para

tomar Aldous Huxley apenas como Aldous Huxley: como filho de uma elite

globalista que está genuinamente preocupado com coisas que se perderão,

e que, por ter inside information, por estar dentro do meio, conseguiu nos

legar muitas informações sobre o meio, como qualquer sujeito que está

dentro do meio nos legará informações.

Eu não tenho aqui a pretensão de dizer aqui, em última instância, o

que Huxley pensa sobre tudo. Eu não acho que isso seja tão fácil, porque ele

também tem fases da vida. Mas eu só quis fazer com vocês um mergulho

no Admirável Mundo Novo Revisitado e na cabeça de Aldous Huxley, para

que vocês possam formular e ter outra visão no momento de interpretar

também o Admirável Mundo Novo, que é essa obra clássica, ou A Ilha


ou outras obras literárias escritas por ele. Recomendo que quem for ler o

Admirável Mundo Novo, não deixe de ler também e de pesquisar sobre o

Admirável Mundo Novo Revisitado, com as ressalvas que fizemos durante

a aula para interpretá-lo.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
AU L A 3

3º LIVRO - ADMIRÁVEL

MUNDO NOVO
Hoje falaremos do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. A

primeira vez que gravei um vídeo sobre Admirável Mundo Novo foi em

2012, então fazem alguns bons anos e, cada vez mais, parece-me mais atual

— embora ele seja um livro dos anos 30.

Uma curiosidade: Huxley faleceu no mesmo dia de C. S. Lewis — o

escritor de As Crônicas de Nárnia — e ambos não viraram notícia porque

faleceram no dia do assassinato de Kennedy. Peter Kreeft até escreveu um

livro fazendo um diálogo imaginário entre Huxley, Lewis e Kennedy no

purgatório.

Tal acontecimento marca o fim de uma era, porque, quando falece

Huxley e Lewis, uma geração de escritores se foi. Evidentemente, Huxley

vem de um background mais globalista, enquanto Lewis era um apologista

cristão, mas ambos eram de Oxford e estudiosos de Shakespeare.

E como que é essa distopia do Admirável Mundo Novo? A primeira

das bases que estruturam o regime descrito no livro é a dissociação entre

a reprodução e a geração da vida do ato sexual — essa quebra da família

é uma das bases do regime. As crianças têm de ser feitas em laboratório

porque são geneticamente programadas para se encaixar em castas a fim

de aumentar a produtividade delas, pois assim elas estão geneticamente

estruturadas de acordo com o seu papel social — há toda uma classificação.

Para Aristóteles família é a base da sociedade política, nas no

admirável mundo novo em que há um estado tecnocrático global, a família

contrasta e conflita com esse estado, portanto, a dissolução da família é

parte fundamental e indispensável para implantação desse regime, tanto

que palavras como mãe e pai se tornaram palavras ofensivas.

Aliás a frase que nomeia originalmente o título da obra, Brave New

World, o admirável mundo novo, é de Shakespeare. Este é uma das principais

inspirações desse livro, e Huxley cria esse mundo no qual pai e mãe são

xingamentos.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Junto disso, as pessoas têm uma vida sexual completamente ativa

e promíscua — lembremo-nos de que o livro foi escrito antes da revolução

sexual. Para que isso possa acontecer, uma das coisas mais importantes é a

administração de contraceptivos. O anticoncepcional é uma das bases do

admirável mundo novo, porque ele controla a população e as pessoas obtêm

prazer sem ter vínculos reais de afetividade. O admirável mundo novo se

sustenta nessa dissolução da família e nas pessoas estarem constantemente

procurando atos sexuais sem ter ligação.

Logo no começo já nos é apresentado o dado de que 70% das

mulheres no admirável mundo novo recebem hormônios masculinos para

serem estéreis, elas são perfeitamente iguais a outras mulheres só que

possuem uma certa tendência a crescer barba. As demais mulheres, 30%,


todas têm uma espécie de cinturão de contracepção — as mulheres andam

com a contracepção fixada nelas.

É, inclusive, desejável que a mulher tenha vários parceiros sexuais,

porque se a mulher tiver só um parceiro sexual ou uma relação de longo

prazo, a tendência é que ela desenvolva um vínculo mais profundo com

aquela pessoa. Como o regime deseja impedir a estruturação de famílias,

esse vínculo tem de ser rechaçado.

Outra base muito importante do admirável mundo novo é o consumo

de uma droga chamada Soma para que as pessoas entrem num estado

de euforia e docilidade. Uma das vantagens desta droga desenvolvida é

que ela não produz efeitos nocivos imediatos. A expectativa de vida deles

não é tão alta, mas, como é uma sociedade extremamente hedonista, as

pessoas querem ser jovens, aproveitar os prazeres e depois falecer sem ter

um período de velhice — o que limita o sofrimento.

A droga não pode ser nociva imediatamente, afinal, como a função

dela é controle e prazer, se a droga matar a pessoa rápido demais não haverá

quem controlar, ela tem de ser alienante sem ser mortífera. Certa vez ouvi

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
uma história de que os traficantes têm drogas que dão a alguns viciados

pra se livrar deles, pois elas matam os viciados rapidamente. Curiosamente,

muitas das drogas que existem hoje, não havia na época de Huxley, mas ele

era um estudioso do assunto e soube definir com precisão o tipo de droga

que seria útil no admirável mundo novo.

O mesmo ocorre com o consumismo; as pessoas têm de estar

constantemente atoladas em consumo e estímulo emocional. A própria

igreja instituída no livro é puro estímulo emocional, a igreja da Inglaterra foi

substituída por uma sátira dela mesma em que basicamente se incentivam

sentimentos, decadência e estímulos externos, sem nenhum tipo de

doutrina mais profunda. A instituição religiosa consiste numa espécie de

transe coletivo e emotivo sem nenhuma conexão com a realidade, com


sacrifício ou com Deus, serve apenas de válvula de escape emocional que

não tem nenhum tipo de conexão real, como encontrar com Deus ou

sacrificar sua vida pelo próximo.

A vida industrial descrita no livro vem como uma vida de consumo

basicamente, ela não é uma vida de responsabilidade individual, de sacrifício,

de abnegação, mas, tão somente, uma vida de prazer especialmente obtida

pelas drogas, pelo sexo e pelo modo como eles se portam no dia a dia.

Podemos ver na leitura que as aspirações deles no cotidiano são baixas, e é

pra ser assim, porque as pessoas têm de ser inundadas de informação a tal

ponto que elas não procurem algo mais profundo. Assim eles podem sumir

com pessoas, livros e até filmes antigos.

Atualmente, qualquer um pode notar que todos têm acesso a filmes por

streaming e ninguém mais guarda os filmes antigos em casa, tanto que eles

sumiram. Não houve uma proibição de determinado filme, nem nada parecido,

mas mesmo sem nenhuma censura explícita eles estão desaparecendo.

Os nomes de todos também são condicionados, então Ford virou

uma espécie de deus; Freud também, mas mais voltado para a psicologia;

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Mond, um industrialista britânico, torna-se nome de administrador; Mustafá

Atatürk, outro administrador; Helmholtz, cientista, torna-se nome de

cientistas; Marx; Bernard Shaw; em relação a este último, ele tinha relação

com o movimento eugenista e era um socialista fabiano.

O socialismo fabiano tinha dois símbolos: a tartaruga, que significava

uma mudança lenta e o lobo em pele de cordeiro, utilizado para significar o

fingimento daqueles que não se diziam socialistas, mas, na verdade, eram.

Recebeu esse nome por causa de Fábio Máximo, imperador romano que

projetou uma nova estratégia contra Átila nas guerras púnicas; em vez de

bater de frente preferiu cercar o inimigo e deixá-lo sem suprimentos.

É fundamental nesse admirável mundo que as pessoas não tenham

conexão com qualquer tradição, então usar sobrenomes genéricos é uma

forma de as pessoas romperem o vínculo com a tradição. Nomes têm

história e significados, as pessoas podem até não saber a história dos seus

nomes, mas eles significam algo, eles têm o significado simbólico tanto nos

nomes como nos sobrenomes que as pessoas herdam. Tudo isso tem de ser

removido pra poder funcionar o controle.

Um dos primeiros personagens que é introduzido é a figura do

Bernard Marx — Bernard vem de Bernard Shaw e Marx de Karl Marx —, um

psicólogo complexado porque possui uma estatura mais baixa que a casta

dele e tem raiva disso. Ele tem uma queda por Lenina — o nome Lenina vem

de Lênin, outro dos pais do admirável mundo novo — esta é uma mulher

que trabalha como engenheira de fetos, sexualmente muito ativa, recorre

muito ao Soma e desprovida de qualquer profundidade. Eles começam a

se relacionar e planejam umas férias para uma reserva de selvagens. Os

selvagens são o primeiro contato deles com o mundo fora do admirável

mundo novo.

Um detalhe importante: os transportes são fantásticos, todos têm

de funcionar bem para as pessoas chegarem rapidamente nos lugares.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Para poder haver uma sociedade de consumo, o desconforto tem de ser

removido.

Os selvagens vivem como as tribos dos índios norte-americanos, e

a vida deles é muito diferente: a sociedade é extremamente hierárquica,

há ritos sociais de iniciação, há tradições contadas de pai para filho, em

suma, é uma estrutura tradicional de sociedade. Curiosamente, apesar de o

admirável mundo novo ser descrito em castas, são castas artificiais e todos

aqueles valores tradicionais chocam os visitantes.

Nesse passeio eles encontram John, às vezes chamado de “O

Selvagem”. Ele é filho de uma mulher chamada Linda, que teve o bebê de

um diretor da engenharia de fetos por vias naturais, apesar de ter vindo do

admirável mundo novo. Ela decidiu ficar na reserva por causa desse bebê,

então torna-se uma espécie de isolada. Linda traz consigo dois livros: um

manual científico e as obras completas de William Shakespeare.

John passa por dois tipos de formação: pelos ritos tribais de iniciação,

e, ao mesmo, tempo lê as obras completas de Shakespeare; então ele tem

contato com a tradição ocidental via Shakespeare. Historicamente isso

era comum, por exemplo, Tocqueville conta que quando foi aos Estados

Unidos os colonos tinham a Bíblia e Shakespeare em casa e isso formava

todo o imaginário deles. Isso, de fato, funciona, porque, pelo menos

linguisticamente, já é uma boa formação.

Então o Selvagem leu o Shakespeare, leu esse manual científico e

conhece os ritos de iniciação — é o conhecimento que ele tem do mundo.

Acontece que esse conhecimento que ele tem do mundo é bastante

profundo em muitos aspectos comparado com esses cidadãos do admirável

mundo novo, inclusive, o modo como ele se expressa é mais rico, mesmo

tendo origem tribal, digamos assim, e ele sendo mais bruto.

Evidentemente, palavras foram abolidas no admirável mundo novo,

as quais ele consegue falar, mas as pessoas não o entendem, pois não têm

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
o vocabulário pra entender o que ele está falando.

No decorrer da história, o Selvagem é levado para a civilização que

não o agrada — na verdade, choca-o. Uma das minhas cenas favoritas é

quando ele vai ao cinema sensível — em que há inclusive estímulos físicos

—, e está sendo exibido um filme de ação com homem negro. Quando ele

vê aquilo, fala que o protagonista negro que conheceu era o Otelo, e aquele

filme era muito baixo. Por mais que Otelo seja um personagem trágico

consumido pela inveja, o contexto é elevado, o personagem é apresentado

com dignidade.

Outro episódio muito interessante: Lenina não compreende os

próprios sentimentos, então toda vez que ela sente alguma afeição, tenta

manifestar isso de forma sexual, porque é o único modo que ela sabe como

manifestar. Em certo momento ela tenta seduzir o Selvagem, e ele sente

amor por ela. Só que aquilo, a profanidade e a vulgaridade daquele ato,

desconcerta John, que até faz uma citação do The Tempest, de Shakespeare

nesse momento. Aliás, eu gosto de ler o livro e ir vendo as citações de

Shakespeare pra ver se acerto as peças de onde saiu as passagens do

Admirável Mundo Novo.

Adiante, eles discutirão a questão da castidade — num mundo que

só vive em função do sexo, do prazer, a castidade não é vista como valor —

porque a castidade é um sacrifício, mas é um sacrifício que a pessoa ganha

de volta autodomínio. Só que todo o princípio do admirável mundo novo

não se baseia em ter autodomínio, mas em ser escravo dos desejos.

Quem é escravo dos desejos, é escravo do sistema. Quem tem

castidade, tem autodomínio, e é livre, de algum modo, portanto está menos

determinado pelo sistema. Por isso que a castidade tem de ser violada no

admirável mundo novo, porque a castidade ameaça o sistema.

Nos anos 60 havia esse discurso da liberação sexual, alguém é mais

livre porque é mais sexualmente ativo. Só que na verdade a liberação sexual

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
que a pessoa tem é determinada em boa parte pelos seus desejos sexuais.

Então agora as pessoas estão subordinadas àqueles que detêm esses

desejos.

Então a ideia de liberação sexual é, de certo modo, contraditória,

porque o que as pessoas chamam de liberação sexual, na verdade, em

muitos aspectos, é uma escravização sexual, elas ficam escravas do desejo

sexual — por isso que é tão ambíguo. A permissividade sexual não condiz

com maior liberdade individual, isso é um erro tremendo e é visível na

experiência cotidiana, não é questão de argumento moral, mas de observar

a experiência: os desejos desgovernados escravizam o ser humano. Isso é

sabido desde a Ilíada e foi claramente sistematizado por Aristóteles. A Ilíada

começa com uma advertência sobre o perigo da transgressão sexual, a


destemperança sexual amaldiçoa os gregos porque o Agamenon, o líder

grego, é desequilibrado.

Isso se choca com o Selvagem, porque o este vê a atração sexual

como algo que, de algum modo, tem um elemento divino. Quando ela

tenta seduzi-lo fora do matrimônio, ele vê aquilo como uma vulgaridade,

como se ela tivesse pegando uma joia e jogando no lixo. Isso faz com que

ele mantenha uma relação ambígua com a Lenina, despreza-a e a ama ao

mesmo tempo, uma sensação horrível.

Outra cena forte do livro é quando a mãe de John falece e ele não pode

chamá-la de mãe; o pai dele também é humilhado porque o Selvagem fala

a palavra pai — a questão é que as palavras humilham as pessoas. Enquanto

John acompanha o falecimento da sua mãe, surgem crianças que mais

parecem o capeta chegando, é uma cena infernal, pois essas crianças foram

doutrinadas com estímulos sensíveis para desprezar a morte, para não dar

importância à experiência da morte. É uma das cenas mais lamentáveis.

Há outros personagens como o Helmholtz, que é um intelectual

da classe Alfa Plus. Ele é professor em engenharia psicológica, e escreve

54
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
as propagandas do regime. Visivelmente, Helmholtz é mais inteligente

do que a média e, sendo gênio, tem uma relação dupla com o Selvagem.

Interessante notar que Helmholtz tem um pouco do próprio Huxley, pois

ele é um artista e intelectual, mas como ele escreve propaganda, ele sabe

que tudo é uma balela porque a vida dele é escrever propaganda.

Ele vê isso como uma coisa filistina, aquele espírito burguês grosseiro

de consumo e em contraposição a um espírito mais elevado, uma dimensão

superior do homem — ele sabe que é uma piada e sabe porque ajuda a

escrevê-la.

O nome do Selvagem, John, também tem outras relações, por

exemplo, São João Evangelista e São João Batista. Dentre os discípulos, João

é mais puro, pois ele é mais novo que os demais, tanto no sentido de que

tem menos experiência de vida quanto que João é aquele que tem força

e permanece ao pé da cruz. Do mesmo modo, São João Batista é o que

prepara a vinda do Cristo, ele come gafanhoto e mel, algo que podemos

chamar de raiz. João, o Selvagem, pega um pouco disso, é como se fosse o

símbolo cristão cruzando com esse símbolo mais indígena.

Em determinado momento da história, eles, Bernard, Helmholtz e

John, são colocados diante do gestor do mundo, Mustafá Mond — Mustafá

vem de Mustafá Atatürk, o reformador turco, e Mond vem do industrialista

britânico — porque eles não se encaixam, causam um caos social.

Evidentemente, eles estão com medo, mas Mustafá está muito tranquilo

— em partes isso vem da ideia de Huxley que a manipulação se dá mais

pelo prazer do que pela dor. O gestor do mundo simplesmente lhes diz

que os enviará para ilhas — que são o destino de quem não se encaixa no

mundo.

Alguns poderiam pensar isso como algo negativo, mas, na verdade,

o gestor vê essa ação como recompensa, porque os personagens poderão

estar com pessoas mais inteligentes. Quem não se adapta no mundo é mais

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
inteligente, essa é uma realidade no geral. Pessoas muito letárgicas, fracas

da cabeça, simplesmente seguem a maré.

Helmholtz simplesmente acha ótimo, ele será enviado às Falklands

porque nelas há um clima mais chuvoso, que o inspirará a escrever poesia

— mais ou menos como Huxley quando viajava pro Oriente; já Bernard fica

receoso; e o Selvagem discute com o Mustafá.

John percebe que Mustafá tem a Bíblia, A Imitação de Cristo, conhece

o cardeal Newman, o espírito cristão e a tradição ocidental — ele conhece os

inimigos do admirável mundo novo. Então o Selvagem questiona o gestor

sobre o porquê de ele privar as pessoas disso, e tão somente as limita a

buscar mais e mais prazer, sem nenhum sofrimento. Em suma: é um sonho

utilitarista realizado.

John continua o seu monólogo falando sobre uma existência digna

que inclua a liberdade, a responsabilidade, Deus, a Bíblia. Claro que junto

de Deus vem o sofrimento, porque, se você é livre, se você não é uma

engrenagem de um sistema, você pode fazer escolhas ruins e com estas

vêm as consequências, mas com o sofrimento vem a possibilidade de

redenção. Você tem de restringir a sua vida em vias da verdade, mas vem

a verdade, é como uma ovelha num rebanho e você passa a ser como que

pastorado de uma maneira mais profunda, como acontece no Evangelho.

O Selvagem quer Deus, quer a possibilidade de praticar o mal, mas

não o mal pelo mal, mas enquanto a possibilidade de poder encontrar

Deus. Quem encontra a verdade, quer valores espirituais, uma existência

mais digna e uma existência livre.

Huxley, no Admirável Mundo Novo Revisitado, fala da educação

para a liberdade, mas com a liberdade vem a responsabilidade, e as pessoas

não querem assumir responsabilidades. Assim, a justificativa do Mustafá

é um utilitarismo hedonista. Simples assim. Tudo será melhor gerido,

cientificamente gerido, através do utilitarismo hedonista.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
E a justificativa do Selvagem é a mais clássica possível, uma existência

que possa encontrar sentido e o bem da alma. No livro não há uma

conciliação possível entre essas duas visões, o que culmina no Selvagem

indo se isolar num farol. Nesse farol ele se autoflagelará como uma forma de

purgar os pecados do mundo, mas ele não vai conseguir carregar os pesos

dos pecados do mundo.

As pessoas começam a vir para tirar fotos, aparecem helicópteros —

toda aquela barbárie moderna. Em certo momento, a Lenina o visita, mas

é expulsa com um chicote — algo muito drástico — até que o Selvagem se

suicida na história. Esse suicídio mostra como Huxley acreditava que não

havia saída — não havia a questão da esperança cristã na cabeça dele. Por

outro lado, a discussão do Selvagem com o Mustafá mostra, na verdade,


uma esperança muito grande, digamos assim, mais cristã, embora Huxley

não tivesse o cristianismo como o norte civilizatório — como falei, ele era

mais perenialista —, mas, pelo menos, no admirável mundo novo a visão

transcendente de Deus, do bem da alma, é apresentada pelo Selvagem

como a grande contraposição ao utilitarismo.

A questão da autoflagelação é interessante porque é o tipo de coisa

que as pessoas ficam muito aflitas no mundo atual, qualquer tipo de sacrifício

próprio não é compreendido no mundo atual porque vivemos no mundo

do consumo. A mera ideia de ler Shakespeare já é fora do imaginário, as

pessoas perguntam “você está lendo Shakespeare pra quê?” — já aconteceu

comigo.

O utilitarismo do admirável mundo novo está no imaginário das

pessoas. Então a experiência de a alma encontrar a verdade — qual vida

vale a pena se a alma não encontra a verdade?

Há um filme chamado Arrependimento sem Perdão (1984) que se

passa na Geórgia sobre o regime soviético. Os líderes do governo entram

numa igreja, tiram tudo de dentro e constroem um laboratório — uma

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
espécie de profanação. Assim como seria um ato sexual entre a Lenina

e o Selvagem, uma coisa baixa. No filme uma senhora está caminhando

e pergunta: “essa rua leva pra qual igreja?”, porque antigamente as ruas

levavam às igrejas; quando alguém responde: “não, essa rua não leva à igreja

alguma”, aqui, no caso, fazendo referência àquela igreja que foi demolida e

transformada em laboratório. Quando então a senhora fala assim: “Então

isso não é uma rua”, como se perguntasse: Se você tem um caminho e esse

caminho não leva à salvação da alma, pra que serve?

Esse mesmo filme é muito interessante, porque uma mulher

insistentemente desenterra o falecido ditador local a fim de impedir o

regime de se esquecer do que ele fez no passado — o regime quer apagar o

seu próprio passado e ela quer desenterrar o passado, isso é simbólico.

Mas, se a rua não leva à igreja alguma, se ela não leva à nenhuma

experiência redentora, para que ela serve? Para que serve esse admirável

mundo novo? A pessoa vive, obtém prazer e morre, igual a um animal, quer

dizer, parece que as dimensões humanas foram mortas nesse admirável

mundo novo. A elevação da alma que Platão e Aristóteles falavam, o

encontrar da beleza transcendente, do bem transcendente, do agathon de

Platão, se contrapõem tremendamente ao admirável mundo novo.

Às vezes vejo Huxley como o Helmholtz, como alguém que objeta

o admirável mundo novo por alguns motivos, mas não vai até o final. Ir

até o final seria entender essa contraposição essencial que há no coração

do Anticristo de Soloviev — a dualidade entre o anticristo e o Cristo, entre

aqueles que perderão sua vida pra ganhá-la e aqueles que vão ganhar sua

vida pra perdê-la. Isso é realmente o, a grande dualidade, não há como fugir

dela.

Particularmente, acho engraçado que algumas pessoas representam

essa dualidade de modo maniqueísta, porque o maniqueísmo justamente

foi a tendência pra suprimir essa dualidade anteriormente citada com um

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
deus mau equivalente a um deus bom. A dualidade entre você perder sua

alma ou ganhá-la pressupõe um Deus único.

Então, considero que Huxley esteja tratando dessa dualidade

e o drama do livre arbítrio, tanto que ele encerra o Admirável Mundo

Novo Revisitado com a educação para a liberdade. Porque é um drama

de liberdade. E liberdade vem com virtude, vem com Deus, vem com

responsabilidade. A condição humana incita essa liberdade.

O drama está diante de nós, seja o controle sexual, sejam as

substâncias de prazer, seja a manipulação de massa, seja a mistura de Estado

e empresas — porque no admirável mundo já não sabemos mais o que é o

Estado e o que são as empresas —, seja o modo como o sexo é trabalhado,

seja o desaparecimento da cultura tradicional, seja o globalismo, sejam os

meios rápidos de transporte.

Dos anos 30 pra cá aconteceu tudo, em certa medida, e o que não

aconteceu ainda está começando a acontecer, então esse livro é realmente

uma leitura indispensável para entendermos o que está acontecendo —

chega a ser surreal o quanto o livro é atual. Eu diria que nos últimos 10 anos

o admirável mundo novo se tornou muito mais atual do que eu imaginava

que ia se tornar. Não é a questão da velocidade, mas creio que Huxley

imaginava isso aqui para 200 anos, talvez, ele não imaginava que em 20

anos o que ele escreveu já estaria começando a acontecer.

Façam um exercício de memória: lembrem-se da infância de vocês

e do tipo das ideias que eram socialmente aceitáveis e das ideias que não

eram, voltem agora pra 2021 e façam o comparativo. Se não resgatarmos a

tradição religiosa, cultural, espiritual e comunitária, que são as soluções para

esse problema, cairemos no admirável mundo novo. Não existe nenhum

outro caminho que a humanidade possa cair a não ser nesse.

Não acho que seja um caminho inevitável, mas parece-me que

o admirável mundo novo está acontecendo. Não só considero o controle

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
populacional desnecessário, como acredito que logo será necessário um

incentivo à natalidade, então essa previsão está muito errada, mas creio que

aqui nós temos um manual pra entender o que aconteceu nos últimos 70,

80 anos, e como nós podemos prosseguir. Se Deus quiser, viveremos parara

ver os 100 anos do Admirável Mundo Novo.

Façam este exercício: quando fizer 100 anos do Admirável Mundo

Novo o quanto vocês acham que estará acelerado esse processo? Eu não falo

como um exercício de desespero, mas como um exercício de entendimento,

de como trabalhar pra ter uma existência humana mais profunda e mais

digna. É isso.

Não deixem de ler O Admirável Mundo Novo e, na sequência, vamos

continuar com as outras distopias.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
AU L A 4

4º LIVRO - O SENHOR DO

MUNDO
Olá, pessoal, hoje falarei sobre O Senhor do Mundo de Robert Hugh

Benson. Primeiro, estou com a edição da Cultor de Livros. Robert Hugh

Benson era filho do arcebispo de Canterbury, o líder da Igreja Anglicana,

e então ele se converte ao Catolicismo e se torna padre católico. Assim, ele

divergiu do país; isso ficou muito famoso na época, a história do filho do

arcebispo de Canterbury se tornar católico foi chocante para as pessoas

de 1904. Ele foi uma figura literária muito importante, bebeu muito desse

legado, aquela esteira de mudança que houve na Inglaterra do Cardeal

Newman, Chesterton e outros conversos literários ali no final do século XIX.

Escreveu livros muito interessantes, escreveu sobre a Igreja Anglicana

e as heresias antigas, e se aventurou na Literatura, ele tinha amigos da

Literatura, inclusive, o Padre Rolfe, que escrevia livros de literatura meio-


apocalíptica, quando então ele se inspirou para escrever O Senhor do Mundo.

Benson conta que estava obcecado pela ideia do anticristo, do fim

dos tempos, ele começou a ter um feeling por volta de 1900, interessando-se

pelo Apocalipse e assuntos relacionados, ele se inspirou nisso para fazer essa

distopia O Senhor do Mundo.

Há um motivo para que a maioria desses autores de distopias que

nós estamos falando — Orwell, Huxley, Benson — sejam todos britânicos.

H. G. Wells é um socialista fabiano escreveu várias utopias cientificistas de

governo mundial e global defendendo este modelo: um governo secular,

global, cientificista e assim por diante. Então quando H.G. Wells lançou seu

livro, na verdade, a resposta de muitas pessoas foi se assustar com esse

projeto, em vez de abraçá-lo, viram nisso uma decadência, um potencial

para o caos, um potencial para se perder a liberdade e aí começou essa

tradição na Inglaterra de distopia. E Benson certamente se insere dentro

desse contexto.

É fascinante porque Benson viveu aquela época em que o Papa Pio

X estava atuando, igual ao Anticristo de Soloviev, e Pio X tem aquele forte

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
discurso contra o Modernismo, e assim por diante. Então o contraste entre

a figura do papa e o establishment global é muito forte, porque Pio X vem

do meio camponês, o meio mais pobre entre boa parte dos escolhidos a

Papa, embora este fosse italiano. As pessoas às vezes olham aquele vários

papas italianos e colocam-nos na mesma categoria, muitas vezes os papas

vinham de famílias nobres nas Renascença ou de famílias importantes

vinham cardeais de destaque. Pio X realmente veio do meio camponês, uma

região pobre da Itália e extremamente fiel à Igreja, extremamente tomista,

extremamente tradicionalista no geral.

Então há esse contraste muito forte entre esse papa camponês,

que era um tomista e estava preocupado com o Modernismo, e H.G. Wells,

que personificava a elite britânica socialista Fabiana e globalista; tudo


isso está na cabeça de Robert Hugh Benson. Claro que aqui há algumas

outras circunstâncias: é século XX, o comunismo começa a ganhar força na

Rússia e na Inglaterra, pela primeira vez, o Partido Trabalhista se organiza,

declara-se à esquerda e consegue ganhar eleições na Inglaterra. Isso choca

Robert Hugh Benson.

É engraçado que para nós, hoje, já tomamos como algo natural

partidos de esquerda na Inglaterra, mas várias pessoas chocaram-se,

Benson não é o único, todos eles entenderam essa primeira vitória do Partido

Trabalhista como o começo do fim do Ocidente, eles viram isso como um

indicativo de que as coisas poderiam desandar tremendamente.

A história começa com o protagonista, Pe. Franklin, com outro padre

mais novo, Pe. Francis; ambos são ingleses e eles fazem uma visita a um

deputado chamado Mr. Templeton e este vai contar o que aconteceu. Essa

é uma forma de Benson introduzir qual foi a mudança, porque Templeton é

um personagem velho, ele se lembra de como o mundo era antes.

A distopia do Senhor do Mundo começa de uma maneira muito

simples: a vitória do partido socialista da Inglaterra. O começo do fim

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
do mundo começou assim. Quando o Partido Trabalhista ganha, ele

progressivamente vai trabalhando para abolir os outros partidos e para

instaurar o socialismo na Inglaterra e a Europa inteira vai na mesma esteira,

esta tira os seus monarcas, os seus reis, que ainda existiam na época que

Benson escreveu esse livro: A Alemanha ainda era uma monarquia, a

Inglaterra ainda é uma monarquia, havia a Áustria — que ainda não houvera

sido dissolvida — e a Rússia também era uma monarquia quando foi escrito

esse livro.

O Partido Socialista vai banir todos esses monarcas — os Romanov,

os Hohenzollern, os Habsburgo e os Windsor, para citar alguns, na verdade,

tiraram todas as casas reais do cenário. E a Europa vai se consolidando como

uma federação de países socialistas que, através de seu partido socialista


local, vai dominando cada país europeu específico. Isso tudo é muito

estranho, porque ainda não havia União Europeia como nós entendemos,

nem algo próximo, mas ali a Europa forma uma espécie de União Europeia.

Interessante também é que não há a descolonização, então a África, tal como

acontece em outras distopias, tem uma conexão com a Europa, raramente

acontece nas distopias esse processo de descolonização.

E a violência não é explícita na Europa, eles não perseguem

acentuadamente, mas vão banindo lentamente cada coisa, até o ponto em

que as pessoas se esquecem, concomitantemente, essa elite positivista vai

tomando cada vez mais conta da Europa. Junto dessa elite positivista, vêm

toda uma ideia tecnocrática de sociedade e espírito cientificista. O Senhor

do Mundo é o primeiro livro que trata sobre isso e esse espírito cientificista

baseado em um humanismo secular propagando a paz e valores de

irmandade universal.

Todos os eventos culminam na formação de dois blocos: a Federação

Europeia e uma espécie de Império Chinês; o imperador oriental é

descendente do imperador chinês e japonês, as famílias juntam-se e têm

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
um sucessor comum, mas o principal país daquela região é a China onde

sobrevivem as religiões orientais. Já os Estados Unidos formam com as

américas uma república unificada, que também vai migrando para uma

linha mais tecnocrática de governo.

Na parte oriental sobrevivem algumas religiões orientais, mas o

secularismo é a religião dominante. O protestantismo desaparece do mundo

e fica só um pequeno e minúsculo grupo de católicos, no geral, perseguidos,

mas os poucos que restam são muito fiéis, muito sólidos, muito bons. Fora o

catolicismo, que é a religião mais perseguida do mundo, as outras tradições

religiosas desaparecem e o secularismo humanista toma conta.

As pessoas vão desenvolvendo ritos sociais humanistas e,

basicamente, a Maçonaria serve como base para essa estrutura nova de

regime, os princípios da Maçonaria são aplicados como os princípios oficiais

globais em O Senhor do Mundo. É uma situação muito parecida com aquela

que Orwell descreverá no livro 1984, certamente houve alguma influência

de Benson sobre Orwell e é neste aspecto que é possível notar um pouco

dessa semelhança.

Um dos personagens principais desse regime europeu será Oliver

Brand, um deputado socialista britânico. Já nos Estados Unidos começa a

surgir a figura de um senador carismático chamado Felsenburgh que será o

grande antagonista da história, mas, por outro lado, podemos considerá-lo

como o protagonista no sentido de que ele é O Senhor do Mundo. Ele é

um personagem extremamente carismático, que fala todas as principais

línguas do mundo, e que começa a crescer em influência.

Quando Templeton está explicando isso ao Pe. Franklin e ao Pe.

Francis, eles terão reações diferentes. O Pe. Francis, que é um padre mais

novo, pensa que o cristianismo acabará, entra em desespero — o Pe. Francis

não tem aquela força interior tremenda — e começa a perder a esperança.

O Pe. Franklin lhe diz que é extremamente contraditório, vendo as coisas

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
corrompidas, cair no desespero e culpar o cristianismo, culpar a religião, e

inverter a ordem das coisas, mesmo que o cristianismo fosse falso. Há um

momento muito interessante que o Pe. Franklin diz “você não entende os

movimentos que estão em jogo, ou seja, mesmo o cristianismo sendo falso,

porque ele é tão oposto a esse cenário de coisas que está acontecendo

agora?”. De qualquer maneira, o Pe. Francis deixa a Igreja.

Oliver Brand está muito empolgado com Felsenburgh, porque

começa a se preparar uma luta entre a parte mais oriental do mundo e

a Europa e Felsenburgh sana esse conflito, ele vai fazendo uma série de

palestras, escreve livros, monta uma doutrina secular, e consegue conciliar

a parte oriental com a Europa marxista. Quando então ele é aclamado

como um grande herói e Oliver Brand fica eufórico com isso, ele fala assim
“Caramba! Esse é aquele que nos trouxe a paz! Aquele que nos trouxe uma

nova esperança! Ele é O Cara!”. Então o Felsenburgh aparece como O Cara

Maravilhoso.

Ao mesmo tempo, a mãe de Brand está falecendo e se converte ao

catolicismo para o desespero total do Oliver Brand, embora essa aproximação

não seja explicitamente proibida. A mãe dele faz questão de ir atrás do Pe.

Franklin para que ele pudesse dar os ritos a ela, para ela falecer com os ritos

católicos, e tal atitude choca Oliver e sua esposa, Mabel Brand. Num primeiro

momento, a mãe dele consegue encontrar o padre, mas no momento

derradeiro, é impedida de encontrar o padre e morre rezando o terço.

Oliver Brand faz um longo discurso sobre o porquê a religião tem de

ser deixada, lista os vários motivos, fala de atraso e medievalismo, faz todo

aquele discurso para a sua esposa, a fim de que ela não tenha a tentação de

ir para esse caminho.

Eu gosto bastante da perspectiva do protagonista mais velho,

normalmente o protagonista da história é um personagem mais jovem,

alguém que está ascendente, raramente vemos na história um protagonista

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
mais velho; isso é simbólico, obviamente, na história de Benson, porque

todos os personagens ascendentes são jovens; o Pe. Francis é o padre mais

jovem, mas ele larga a Fé; Oliver Brand está crescendo na carreira política e

ele é também uma figura antagônica na história; Felsenburgh é o grande

antagonista da história, é aquele que está crescendo e se destacando

por trazer a paz mundial; e o Pe. Franklin é o personagem mais velho e

atônito com toda a situação, mas que tem uma sabedoria antiga, então ele

representa a tradição perdida, embora não seja exageradamente velho, ele

tem uma certa experiência.

E aí o Pe. Franklin fala que encontrará o papa para tentar resolver essa

questão. A conclusão dele é a seguinte: “Olha, eu acho a melhor solução

para essa questão da religião seria, para contrapor essa perseguição, uma
ordem religiosa que abraçasse o sofrimento, não gosto e não me interessa a

ideia da resistência armada, eu não sei se é isso que vai resolver a questão”.

O livro conta uma espécie de Vaticano, que o Papa cria um enclave,

meio que transforma Roma numa espécie de cidade medieval, há um revival

medieval em Roma, prefigurando aqui na história a criação do Vaticano.

O autor também aposta e acerta que as monarquias vão ser destituídas.

Engraçado que quem recebe as monarquias destituídas é o Papa, então, no

Vaticano, estão todas as casas reais da Europa vão servir no altar do Papa.

O Papa recebe o Pe. Fraklin, escuta a sugestão de criar a Ordem do

Cristo Crucificado — de trazer uma ordem religiosa que viva a pobreza, que

viva a espiritualidade missionária, porque as ordens religiosas estão meio

mortas no contexto da época (isso 1900), hoje certamente elas passam por

grandes crises — e escuta as ideias de que temos de abraçar o sofrimento

porque no mundo as pessoas só buscam o prazer, as perseguições virão e o

modo de abraçar essas perseguições é ter a Fé e ter um testemunho da Fé

face a essas perseguições, face a tudo isso de morrer segurando o Rosário.

Nesse contexto, o papa ouve o Pe. Franklin e aí faz uma reunião com as

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
casas reais e se imagina que o Papa vai fazer apenas mais uma condenação

à Maçonaria ou ao materialismo. É engraçado porque Pe. Franklin fala

“Mais uma condenação desses princípios”, porque em 1908 era comum a

Igreja constantemente condenar a Maçonaria, ou condenar o socialismo,

condenar os princípios da época. Se você pegar a sequência de papas da

época — Pio IX, Leão XIII e Pio XI — todos eles faziam isso.

O Pe. Franklin já não está tão empolgado com isso, ele considera boas

essas condenações, sem dúvidas, mas acha que não é bem essa a solução

que vai precisar, precisaria ter alguma coisa mais prepositiva e, para a

surpresa dele, o papa realmente considera a criação dessa Ordem do Cristo

Crucificado. Disso começa-se a converter várias pessoas ao cristianismo, a

fé católica começa a se espalhar pelo mundo.

O que acontece em seguida? Um grupo de católicos da Alemanha e

da Inglaterra resolve fazer um atentado contra o novo regime. Nessa época,

Felsenburgh é aclamado depois desses trabalhos de paz pelas repúblicas

socialistas europeias unificadas, aclamam Felsenburgh, que é o líder dos

Estados Unidos, como o Presidente da Europa, então ele meio que começa

a virar o unificador do Ocidente, Felsenburgh é o líder global.

Os discursos do Felsenburgh são muito bons, ele faz apologia dos

valores seculares e começamos a ver a conexão entre as coisas, e aí temos

um trecho, inclusive, que ele agradece de modo bastante claro “que bom

que o Spiritus Mundi é o demônio, louvemos o Spiritus Mundi”, o Espírito

do Mundo é essa gestação de ideias que estão se consolidando, que estão

se unindo.

Felsenburgh, como líder global, começa progressivamente a

perseguir cada vez mais a Igreja, a arrancar os seus vestígios, e colocar ritos

iniciáticos humanistas e cerimônias inspirados na Maçonaria. Há, inclusive,

a cerimônia da vida, uma espécie de Burning Man. Eu não sei se vocês já

viram o que é o Burning Man, mas trata-se basicamente de uma reunião

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
contracultural no deserto, perto do Vale do Silício, no qual eles queimam

uns bonecos e há toda uma estética e uma experiência creepy muito louca.

Cada tanto a população tem de ir nesses ritos e participar dessas

iniciações e Oliver Brand recebe isso como uma inovação maravilhosa,

como uma coisa que está indo no caminho certo. Até que então os católicos

da Alemanha e da Inglaterra promovem um atentado contra Felsenburgh

para tentar promover uma insurreição.

Há outras duas previsões incríveis que Robert Hugh Benson fez: (1)

o avião de bombardeio que não existia na época, ele chama de voler na

história, e voler é tipo um avião meio helicóptero, mas, basicamente, ele

está prevendo o avião como ferramenta de guerra, isso em 1908 é bem

fora da realidade, porque, na época haviam apenas pequenos aviões que

carregavam uma pessoa, grandes aviões de bombardeiro eram algo bastante

inimaginável; e (2) armas de destruição em massa, ele praticamente prevê

a bomba atômica.

Engraçado que, enquanto estava o H. G. Wells otimista com as

inovações científicas e das coisas que estavam sendo vencidas pela ciência,

Benson estava preocupado com a bomba atômica. Ele previu muito bem,

uns 50 anos depois dele, aquilo que iria surgir.

Quando Felsenburgh sofre o atentado provocado pelos os católicos

meio fanáticos — falo fanáticos no sentido de que eles se utilizaram de meios

extremos, mas claramente você entende o contexto porque as pessoas

estão sendo perseguidas — ele começa a retaliação e usa isso como um

pretexto para uma grande retaliação, para um grande contra-ataque.

A doutrinação é obviamente uma parte importante do Senhor do

Mundo, e todos começam a odiar o catolicismo a tal ponto que as pessoas

voltam a crucificar os cristãos. Esse retorno da crucifixão extemporânea

é forte, por exemplo, na Literatura japonesa há essa figura das pessoas

crucificadas fora da Palestina, os japoneses crucificavam os cristãos, eles

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
subiam cruzes e os crucificavam. Isso é chocante, e, quando vimos na

história, poderia parecer meio clichê falar que crucificam os cristãos, que

é algo exagerado, mas da forma como é apresentada soa bem orgânico,

porque você vê a pressão anticristã crescendo no Senhor do Mundo, ela

vai ganhando força e, na medida que ela vai ganhando força, isso vai se

manifestando cada vez mais violência para os cristãos, violência da própria

população, não é que só o governo fazendo, a população está manifestando a

mediocridade espiritual interior nessas crucifixões. Então, é bem fascinante

esse fenômeno.

E então, com essas perseguições extremamente intensas em

retaliação, Felsenburgh pega os aviões bombardeiros e destrói o Vaticano.

Nessa altura o Pe. Franklin é nomeado o supervisor da Inglaterra,

torna-se cardeal, e o Vaticano é destruído. Os cristãos correm se esconder

na Palestina e começam a tentar salvar o colégio cardinalício, cuja maioria

morreu, o papa é fisicamente atacado, e tentando proteger o colégio

cardinalício eles chamam os padres, os cardeais e os escondem em Nazaré,

vão à origem do cristianismo tentar encontrar um caminho para se livrarem

disso.

Durante esses acontecimentos, Mabel, que é esposa do Oliver Brand

e está horrorizada com as perseguições, teve inquietações católicas e que

acabou não indo para a conversão, até que por fim, ela desespera e se

suicida. Uma das ideias fascinantes do Senhor do Mundo são os ministros

da eutanásia, eles têm esse pessoal que ministra eutanásia, as pessoas

podem cometer eutanásia voluntária e a eutanásia é uma das partes mais

importantes do regime.

Há algo disso no Admirável Mundo Novo, mas a eutanásia tão

fortemente incentivada é mais próximo do Senhor do Mundo. E Mabel

pede uma dose para morrer — mais ou menos como a mãe do Selvagem no

Brave New World. É difícil medir até que ponto Benson influenciou Huxley e

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Orwell, mas certamente alguma influência teve; quando não foi de Benson,

foi de Soloviev, eles foram bastante influentes nesse sentido, e também

Rolfe que produziu Adriano VII, outro livro de 1907, no começo do século XX.

Esses ministros da eutanásia são vistos como uma coisa muito

humana, muito delicada, muito sensível, e a Mabel procura-os para o seu

suicídio. E, no final, quando ela está morrendo, ela parece, de algum modo,

encontrar Deus e ter uma conversão.

Diferentemente do Admirável Mundo Novo, que só os próprios

gestores têm acesso à cultura, no Senhor do Mundo a Igreja tem uma

tradição intelectual e cultural viva. Existem os monarcas e o papa, mas, a

partir desse momento que tudo é destruído, eles ficaram numa situação

complicada, mesmo assim, Pe. Franklin, se reúne com o colégio cardinalício

e termina que eles elegem o Pe. Franklin como o papa, então o Pe. Franklin

vira Silvestre III.

Aqui é interessante a história, porque quem foi Silvestre II? Foi um

reconstrutor da Igreja no meio da Idade Média. Silvestre II, para quem não

pesquisou, foi um dos que introduziram a Matemática árabe no mundo

Ocidental, ele viaja, veste-se de árabe para ir lá aprender Matemática e trazer

pro Ocidente — é uma loucura isso — ele foi um dos criadores das escolas

catedrais, e era um aventureiro, uma espécie de aventureiro intelectual, uma

das figuras mais notórias do século X, justo o século que é considerado um

dos séculos mais negro daquele período pós-queda do Império Carolíngio

na Idade Média.

Os fiéis se unem em torno dessa Ordem do Cristo Crucificado com o

Papa Silvestre III como líder com aquele espírito de reformador, e as pessoas

começam a se refugiar, a procurar o deserto, lugares mais sutis para a oração.

Acerca desse suicídio de Mabel, sobre o qual muitos autores

comentaram que “Robert Benson passou um pano para o suicídio na

história”, temos de notar que ele está falando que Mabel se suicida porque

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
não possui nenhum tipo de esperança sobrenatural, essa esperança só

aparece quando ela já está no meio do processo, e é importante isso na

história porque Felsenburgh é o anticristo da história. Eles não falam

explicitamente, diferentemente do Anticristo de Soloviev em que o Ancião

João grita “Anticristo!” e há aquela comoção.

Aliás, há uma cena que é uma sátira de Nossa Senhora, na qual

Felsenburgh faz uma antinossa senhora, ele pega aquela deusa da razão da

Revolução Francesa, misturam-na com uma criança e o povo bate palmas

para essa nova deusa.

Ao longo do século XX, a pomba da paz, a própria mulher da Revolução

Francesa, a república é cheia desses símbolos; no Brasil não tem um cara

meio romano com um negócio na nota do Brasil? Tem os símbolos ocidentais

desprovidos de significado nas simbologias das Repúblicas mais maçônicas

ali do final do XIX, por exemplo, você já tem esse fenômeno forte na Itália

e alguns outros lugares, então você tira os símbolos antigos para trocar. A

Terceira República Francesa, Nossa Senhora! Ela é totalmente assim. Uma

coisa importante engraçada até, a figura do gaulês, que fizeram até o Asterix,

a valorização do gaulês foi uma coisa que a Terceira República Francesa

inventou porque ela não queria mais que a França associasse, isso não é

culpa dos criadores de Asterix, eles vieram depois, mas a França não queria

mais que as pessoas valorizassem Joana D’arc, Carlos Magno, o batismo

de Clóvis, São Dênis e outros heróis franceses, então, aparecer a figura

dos gauleses como originais e depois vieram os romanos e corromperam,

era um símbolo que a Terceira República Francesa usava para criar essa

imagem da belle époque de França desconectada da tradição.

A mesma coisa acontece no Senhor do Mundo, pega muito esse

espírito de desconectar da tradição, de símbolos desprovidos do significado

usados para manipular as pessoas, e essa mulher nua com a criança é a

imagem da Madona, aliás, esse termo já evoca isso, eu falei madona muita

72
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
gente pensa na cantora, a cantora, obviamente está satirizando Nossa

Senhora, Madonna que dizer Nossa Senhora em italiano. A minha bisavó

chamava Madonna, é uma coisa que as pessoas falam, mas é obviamente

está fazendo sátira para chamar a atenção, chocar a burguesia, a arte

revolucionária velhíssima, chocar a burguesia com símbolos cristãos de

uma maneira desconexa, nada que Brecht não tenha feito, aliás, muita

gente ainda acha que o julgamento de Galileu foi tipo Brecht, uma peça

marxista de Brecht, e o povo acha que foi daquele jeito, é surreal como tem

coisa bem idiota que passou para as pessoas.

Então esses símbolos são parte da construção do imaginário, da

paz, da prosperidade e tal, é muito semelhante ao Anticristo de Soloviev

nesse ponto, dessa elite positivista, desse pessoal que se contrapõe a esse
remanescente da Igreja que, no fundo, está pegando a tradição toda. E o Pe.

Franklin vai direcionar as pessoas à oração final enquanto se prepara. E isso

é muito interessante porque é misterioso o final do livro, e muita gente não

entende o final, certo?

Eles começam a cantar o Pange língua. O Pange Lingua foi composto

por Santo Tomás de Aquino, é uma canção medieval, quem nunca ouvir,

por favor, ouçam, é uma obra absolutamente maravilhosa. E eles estão

cantando “Ele está vindo agora, mais rápido do que nunca, o herdeiro

das eras temporais, e o exílio da eternidade, o final e piedoso príncipe dos

rebeldes, a criatura contra Deus, que cegava mais que o Sol que cercava a

terra que tremia e, ao chegar, passando pelo último estágio material, para a

finura de um terceiro espiritual, o ciclo flutuava, girava atrás dele, lançando

como pássaros fantasmas na esteira de um navio, Ele estava vindo e a terra

lacerada, uma vez mal em sua obediência, encolhiam-se e se enrolavam na

agonia da deferência divina. Ele estava chegando e já a sombra varreu-se

da planície e sumiu, e as asas brancas enredadas estavam se elevando à

face, e batia o grande sino”, é propositalmente simbólico, é imaginário tipo

apocalipse. E o acorde longo e doce ecoava, não mais do que sussurros

73
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
ouvidos entre o requinte estrondoso de louvor eterno.

Então aqui tem as letras. E aí vem assim: “Então esse mundo passou

e a glória dele”.

O que significa isso? Eles estão cantando e está vindo o anticristo

para matá-los, acabar com eles e tal.

E aqui, veja, na medida que está sendo destruída e eles estão

cantando o Pange Lingua esse mundo acabou.

“Benson trabalhou sem pensar no futuro, como se o Juízo Final

estivesse às portas usando prodigamente seu talento para levar quantas

almas fossem possíveis dentre os que o cercavam ao verdadeiro fim que

é Deus”, citação de Evelyn Waugh, que escreveu Brideshead Revisited,


um grande clássico da Literatura Britânica, ele coloca que, ao final, se

leva as pessoas a Deus. Tem uma outra citação do Joseph Pierce falando

também do papel face a Huxley e a Orwell, mas essa citação do Waugh é

interessante porque nos ajuda a entender que não há uma referência, não

está escrito nesse trecho, se vocês olharem com cuidado, a segunda vinda

do Cristo. Lembrem-se de quando eu falei na aula do Anticristo da segunda

vinda, mas o poema de William Butler Yeats não fala da segunda vinda do

Cristo, ele fala do anticristo, porque a vinda o anticristo antecede à segunda


vinda do Cristo, mas aqui fica claro quando ele fala assim: “Esse mundo

passou, e a glória dele”, ou seja, o Spiritus Mundi, a expressão material de

toda a decadência desse mundo, que é esse globalismo do anticristo, que

é o demônio, em última instância é o demônio que culmina nessa sátira,

nesse absurdo todo, essa sátira da paz verdadeira, esse espírito consolidado

ele morre e esse mundo morre junto com esse Spiritus Mundi, ou seja, o

demônio vai morrer junto com este mundo.

O que vem depois da passagem do demônio, depois do anticristo? A

segunda vinda do Cristo, então, o retorno da glória eterna.

É isso que vem nessa crença cristã, mas Benson tem o cuidado de

74
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
deixar, ele coloca simplesmente o fim do mundo, ele não coloca a segunda

vinda, então ele não tem aquele tom, embora tenha um Pange Lingua

sendo cantado aqui e tal, ele não é um livro escatológico que fala “assim,

ó, agora vou descrever o livro do Apocalipse”, não é bem isso que ele está

fazendo. Aqui ele está colocando o fim do mundo, o fim do mundo é esse

Spiritus Mundi, que é um espírito diabólico, ele chegou na sua conclusão

lógica, chegando nessa conclusão lógica ele vai destruir o remanescente de

bondade que há no mundo, que é esse remanescente da Igreja, destruindo

o remanescente de bondade do mundo, estamos diante do fim do mundo.

A esperança cristã é a volta da glória eterna, é a segunda vinda do

Cristo, e aqui com isso ele quer ensinar para as pessoas o que é um pouco

do que é a segunda vinda do Cristo. Porque as pessoas podem olhar e falar


assim, “Cristo Voltará”, né? Aqui tem até a sátira de algumas coisas meio, um

pouco carismática demais da religião cristã, ele coloca isso, em determinado

momento vai aparecer pelo menos uma vez, às vezes isso é abusado essa

coisa de “Jesus está voltando, fica de olho porque ele está voltando e tal”.

Aqui o que ele está querendo falar é o seguinte: ele está querendo

fazer um raciocínio intelectual para se entender o limite da decadência do

mundo, entendendo esse limite lógico, ajudar o leitor a entender o final

do livro o que seria a segunda vinda do Cristo, sem falar da segunda vinda

do Cristo, essa é a leitura que eu faço desse trecho final, que eu já vi muita

polêmica, que há muita gente não conseguindo entender o que ele está

falando aqui, muita gente lê essa parte aqui e fala “meu Deus! Não entendi

o que esse cara está falando, não entendi nada, esse capítulo final não faz

o menor sentido”. Para mim, ele é um fim gótico, num certo sentido da

palavra, para colocar a conclusão lógica desse processo. Muito interessante,

recomendo demais que vocês leiam O Senhor do Mundo, esse livro é

fantástico, leiam outras coisas de Benson também, ele escreveu várias

outras coisas boas, mas o melhor livro dele talvez seja O Senhor do Mundo

mesmo, e é isso, fica a dica para vocês, muito obrigado a todos.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
AU L A 5

5º LIVRO - 1984
Hoje falarei sobre 1984. Livro conhecidíssimo de George Orwell. Aqui

tenho a versão da Signet Classics, mais uma que tem o prefácio que eu não

gosto. Esta é um prefácio do Erich Fromm, da Escola de Frankfurt. Tem toda

uma literatura de pessoas mais à esquerda, que fizeram a análise de 1984

para mitigar os efeitos do livro e Erich Fromm, para mim, entra dentro dessa

tradição. Eu não gosto do prefácio, mas a edição da Signet Classics, antiga,

em si, está boa. Tenho outra da Cia. das Letras. É uma das traduções, e sei

que há novas traduções também.

George Orwell foi um intelectual britânico, seu nome real era Eric

Blair. George Orwell foi um pen name que ele adotou. Orwell tinha o sonho

de lutar na Guerra Civil Espanhola. No caso, do lado da esquerda.

Essa guerra foi um fenômeno marcante da História europeia, porque

foi vista como uma guerra que prefigurava os acontecimentos do século

XX. Quem era pró-socialismo se aliou, no geral, ao lado que perseguiu

o clero. Era o lado mais à esquerda junto com a República Espanhola. E

todo mundo que se opunha ao socialismo de algum modo (católicos

tradicionalistas, liberais, simpatizantes do Fascismo, entre outros grupos),

aliou-se ao General Franco contra a Repúbica Espanhola. Franco ganhou

a guerra. Em meio a essa guerra, ele recebeu apoio de grupos fascistas e

antifascistas. A União Soviética mandou ajuda à República Espanhola. E

uma coisa pouco conhecida: no mundo anglo-saxônico era muito chique,

nos anos 1920 e 1930, ser de esquerda. Era um negócio de elite; para a elite da

elite americana, aliás, era muito chique ser de esquerda, tanto que muitas

das grandes figuras literárias eram ligadas ao comunismo, simpatizavam

com o comunismo. Nos Estados Unidos, Fitzgerald tinha certa simpatia

pelo comunismo. Hemingway, Steinback da Vinhas da Ira, John dos Passos.

Aliás, ele muda depois da Guerra Civil. Por quê? O que aconteceu com essa

geração americana?

A Guerra Civil Espanhola mudou muito dessa geração, muitos deles

77
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
largaram essa ideologia no andar da carruagem, durante a Guerra Civil

Espanhola. Por quê? Eles vão para apoiar o lado comunista, a esquerda e

veem as atrocidades cometidas por aquele lado, seja a matança dos padres

ou as atrocidades cometidas contra os próprios aliados. George Orwell, no

caso, vê as atrocidades cometidas pelos comunistas contra os anarquistas

que estavam lutando do mesmo lado, aquilo o choca tremendamente e ele

percebe o perigo dessas ideologias.

Obviamente ele é contra o Nazismo também, então, sim, 1984 é uma

denúncia do Totalitarismo em geral, mas George Orwell não só é contra o

Nazismo, mas a principal experiência que o impactou foi o conhecimento

que ele tinha do mundo soviético e dessa experiência da Guerra Civil

Espanhola. Então a principal experiência por trás de 1984, é a experiência


mais soviética, nada de muito estranho porque a Revolução dos Bichos

já trata disso, já trata do fenômeno mais soviético específico. Ali é mais

como era o mundo soviético, mas 1984 é um exercício de se pensar alguns

paradigmas, alguns padrões que têm nesse mundo soviético, pensados no

contexto do Ocidente da parte mais ocidental da Inglaterra.

Por isso que o mundo, na verdade a parte ocidental, a Oceania que

é o país ocidental do George Orwell, é gerida pelo IngSoc, pelo socialismo

inglês, que é uma ideologia dominante, mais socialista fabiana, mais

socialista tecnocrática e tal, como a toada de todas essas distopias. George

Orwell, portanto, aplica alguns paradigmas desses soviéticos no contexto

ocidental. É um pouco esse o exercício de 1984.

1984 que é um ano que já passou (o livro foi escrito antes disso), as

pessoas estavam no clima de fim da Guerra Fria. Havia um otimismo de

que a Guerra Fria poderia ter um fim favorável aos Estados Unidos e isso é

engraçado porque ironicamente, hoje, olhando desde 2021, as coisas não se

desenvolveram do modo como se imaginava em 1984. Na verdade, o mundo

descrito em 1984, às vezes, para muitas pessoas, parecia distante, parecia

78
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
que haveria uma reversão na Guerra Fria e que o Ocidente não cairia no

caminho desse paradigma do livro.

É irônico o modo como se desenvolveu a coisa. Estamos chegando

a 40 anos do ano desse livro. O livro em si tem um tempo razoavelmente

maior. Se não me engano, George Orwell terminou de escrevê-lo no final

dos anos 40, no pós-guerra. A experiência do Totalitarismo mostrou-se

muito forte a partir das formas de tortura psicológica. Mas no livro, acho

fascinante o modo como ele coloca a manipulação midiática, a manipulação

das informações. Não é só a questão da tortura física, da bota.

Por exemplo, Aldous Huxley fala que a previsão de George Orwell é

ruim. Em alguns aspectos ele elogia o livro, mas fala que a previsão tem

alguns problemas, porque as pessoas vão perceber que o prazer é melhor

que a dor na forma de controle das informações, mas isso é um pouco por

causa da poderosa influência do final do livro. O final do livro é tão forte que

às vezes esquecemos um pouco o desenvolvimento, de como as coisas se

deram ao longo do livro e isso é um problema que vamos tentar evitar na

exposição dele.

Basicamente ele conta a história de Winston Smith, que é um

funcionário público. O mundo tem o IngSoc, o partido dominante da Oceania

que é o mundo ocidental. Há outro país, a Lestasia. É a parte chinesa. Já é

nossa terceira distopia que a parte chinesa está em conflito com o Ocidente.

É bem peculiar isso, meio profético também em muitos aspectos. A Oceania

está em conflito com a Lestasia.

No partido, há o Partido Interno que são os líderes do partido, os

caras que estão no poder mesmo e que tem acesso a mais informações.

São os ideólogos principais, os que controlam as informações. Há também

o Partido Externo que são os gestores públicos, que cuidam da burocracia

que gera a máquina e o proletariado, os que ninguém dá bola. O partido,

obviamente, se vende como o maior defensor do proletariado, mas na

79
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
realidade o proletariado é completamente desprezado pelo partido e,

basicamente, eles são alienados, no caso, com gin. Eles dão gin para o

povo. Para o povo encher a cara e ficar quieto e não atrapalhar a gestão

das coisas.

Winston Smith faz parte do Partido Externo. Ele vai tocando o dia a dia

do partido. É uma máquina burocrática imensa que vai cuidando das coisas,

mas ele não tem acesso a todos os processos como estão acontecendo. E

progressivamente, Smith começa a ficar mais crítico do regime. Ele tem

um amigo, Symer. É muito interessante esse personagem. É um cara

inteligente demais e é meio explícito o que ele pensa e isso faz dele um alvo

preferencial para virar uma unperson, uma não pessoa. Porque o partido

deleta — cancela, para usar um termo mais atual — cancela quem viola
as ideias dele, quem comete o crime pensar, crime do pensamento, crime

thinking. É uma ofensa e o partido desfaz as pessoas que cometem crime

thinking, que violam o pensamento do partido, o pensamento correto, a

linha ideológica correta.

Virar uma não pessoa é apagar a pessoa dos registros. A pessoa some

da história. Eu citei em outra aula um filme de Andrzej Wajda Ele mostra os

soviéticos que colocavam as estátuas dos antigos heróis do partido que eles

sumiram com as pessoas. Eles elencavam os heróis do povo. Esses heróis,

às vezes, traíam os interesses da classe, isto é, manifestavam alguma crítica

ao regime e aí sumiam com as estátuas deles, com as fotos ou apagavam

a pessoa das fotos e sumiam com os registros. A pessoa desaparecia.

Virava uma não pessoa. No livro, as ideias erradas têm de ser jogadas num

buraco da memória, um depósito de destruição de ideias para sumirem

as ideias erradas e as pessoas que cometem os crimes do pensamento,

somem também. Elas têm de ser despersonalizadas. Quando falamos de

cancelamento, às vezes a gente pensa só no cancelamento financeiro, mas

aqui, apagar o legado da pessoa é parte fundamental disso. Aliás, o poder

dominante normalmente estabelece o que pode e o que não pode ser

80
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
falado, então a própria forma como são encaradas as ideias daquela pessoa,

são adulteradas. E o Syme claro, no final acaba sendo pego e condenado.

Há o Ministério da Verdade. A função desse Ministério é mentir.

Basicamente isso. Ele mente para poder defender a ideologia do partido. E

aí nesse Ministério da Verdade, nesse trabalho de sustentar o regime, eles

fazem isso por meio da estimulação contraditória que é uma técnica de

manipulação mental em que você fala ideias opostas. Essas ideias opostas

deixam como que um torpor nas pessoas e esse torpor deixa as pessoas

apáticas, inertes em relação à manipulação mental. É o caso dessa própria

noção. O Ministério da Verdade mente. O Ministério do Amor tortura. Dois

mais dois é igual a cinco (esse é um slogan do partido). O Grande Irmão te

ama (na verdade o Grande Irmão te odeia). O Grande Irmão é esse culto
da personalidade, essa figura mítica, meio imaginária que você ama e que

cuida de você. Uma bizarrice de culto de personalidade, mas que direciona

as pessoas para essa sátira de deuses, esse ídolo louco que você sente um

paternalismo olhando pra ele. Então, a estimulação contraditória é uma

técnica forte de lavagem cerebral e também para que as pessoas não

cometam o crime de pensamento.

As siglas são fundamentais também para esse negócio, porque

quando você enche tudo de siglas, de termos burocráticos, você não sabe o

que aquelas coisas fazem, você não entende qual a função. Isso protege os

donos do poder. As pessoas não conseguem adentrar as funções. Por isso

também que no mundo soviético tudo tem siglas. Não tem tradição, não

tem referência cultural. Você simplesmente tem as siglas e aquele monte

de nomes agrupados e assim por diante. Então você tem esse problema.

O Ministério da Verdade tem os caras que têm de tocar o trabalho

e chega um momento em que um deles, um infeliz, deixa a palavra Deus

porque não sabia como fazer uma rima e aí ele é um unperson. Esse é o

padrão do Admirável Mundo Novo.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
A estimulação de amor também tem de ser trabalhada. Então no

caso, você tem de associar nas pessoas que elas amam o Grande Irmão. O

Grande irmão é maravilhoso. Por outro lado, tem de colocar na cabeça delas

que elas odeiam algo, então cria-se a história de um vilão. O vilão é um nome

judaico: Emmanuel Goldstein. As pessoas odeiam ele e a TV tem os minutos

de ódio de Emmanuel. Elas odeiam Emmanuel Goldstein e inimigos do

regime, quem é contra o regime. E as pessoas alimentam esse ódio.

O interessante da TV é que ela é uma via de mão dupla. Você olha e é

observado. Aliás, isso é muito engraçado porque alguns autores de viés mais

reacionário, quando surgiram os aparelhos televisivos, falavam dessa coisa

de você ser vigiado por eles: “Ah que absurdo, olha que ignorância, olha que

imbecis” Todo mundo sabe que você não vai ser olhado pela TV. Só que hoje
nós, literalmente, andamos com aparelhos que nos gravam e que gravam o

que fazemos. As palavras que estou falando aqui, eles já estão processando.

Então literalmente a coisa evoluiu para isso. São fatos, as previsões dele.

Tolkien tem uma representação no Senhor dos Anéis do Palantir. O

demônio, Sauron, que é o mal na história e alguns caras gananciosos têm

o Palantir para olhar, bisbilhotar o que está acontecendo do outro lado. A

palavra Palantir, se você quebrar a etimologia da palavra, significa televisão.

Palantir é ver longe, tele visão é você ver longe. Literalmente a terminologia

é a mesma. Tolkien está querendo representar simbolicamente todo esse

fenômeno de você olhar e ser observado, o fenômeno da câmera. E é

até engraçado. Eu estou falando isso olhando pra uma câmera que dá a

sensação de feedback e vocês provavelmente estão assistindo isso online,

então entram dentro da meta-história da coisa. Mas aqui para vocês é um

conteúdo bom. Claro, quando você olha algo você é olhado também, de

certo modo. Você tem uma via de mão dupla com a tecnologia e as telas.

No 1984 é assim, você é visto e você vê. A informação chega, mas de

uma maneira que já é engendrada para você pensar de um determinado

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
modo. Então você acha que vive na era da informação, mas em grande parte

vive na era da desinformação, da informação plantada de maneira falsa para

gerar um determinado efeito. É muito louco isso porque pensamos que

evoluímos, que agora temos muito acesso às informações. Mas até que ponto

temos acesso à informação ou a cavalos de Tróia de informações? E até que

ponto quando estamos recebendo esse acesso, não estamos entregando a

nossa liberdade para receber esse acesso? Essa é a reflexão que ocasiona.

Então o mundo do 1984 é um mundo em que você é constantemente vigiado

e aqui é chave para um fenômeno que acontece hoje, o fenômeno do 1984,

você é vigiado por esses membros do partido interno, por esses aparelhos,

mas você é vigiado também pelos seus colegas que são treinados para te

perseguir, te denunciar. Até na União Soviética tem essa coisa bizarra que

está aparecendo de novo no Ocidente, dos filhos denunciarem os pais e o

filho que denuncia o pai é premiado.

Isso de fato volta a acontecer de certo modo por crime pensar, por

coisas que violam a ideologia dominante. E pode ir mudando o teor do

que é crime pensar. Trabalhadores do mundo uni-vos, já não é mais crime

pensar, você violar isso já não é mais crime pensar, mas tem outras coisas

que são. Outras coisas tomam lugar do preceito de ontem porque os ideais

do partido são mutáveis. O partido é progressista, então o próprio IngSoc é

mutável. Do mesmo modo acontece no nosso mundo.

E na medida em que você está sendo visto, você já naturalmente faz

um exercício para não pensar as ideias que o partido não quer que você

pense, é um exercício interno. É horrível isso. Você tem de parar e pensar

assim: “Eu não vou pensar do modo como o partido quer que eu não pense”

Isso vai mexendo com as afeições das pessoas e esse é um dos temas centrais

do 1984. Winston se apaixona por essa mulher, Julia que é tipo um símbolo.

Ele começa a ter um caso com ela, porque no partido eles só podem ter

relações sexuais para reproduzir e ele tem esse caso com ela que é uma

transgressão.

83
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
É interessante porque a Julia é rebelde com essa coisa de libertação

sexual. Nesse ponto, Huxley foi muito mais preditivo do que Orwell. Toda

linha distópica no mundo real, foi mais para linha da permissão sexual do

que para o controle. Isso é fato. Foi visto muito mais como uma forma melhor

de controlar as pessoas. Então, é uma das partes mais fracas em 1984. Ele

se baseou muito no modelo soviético que, de fato, era mais utilitarista, de

casamento arranjado. Tem de casar fulano com fulano. Isso é muito austero

e o sexo é colocado dentro desse regime austero. Para a ideia comunista

mais antiga, funciona esse modelo do Orwell, mas, quando falamos do

Ocidente, e o 1984 trata do Ocidente, é um equívoco. Diferente da Revolução

dos Bichos que trata da experiência russa (embora como advertência para

o Ocidente). Mas Julia tem essa representação na história. Por isso, eu acho

que a parte mais forte do livro é quando fala dos crimes de pensamento,

dois mais dois é igual a cinco, duplipensar (como foi traduzido aqui),

estimulação contraditória, Ministério da Verdade. Isso eu acho a parte mais

forte do livro, essa parte da Julia, do romance deles, eu acho relativamente

mais fraca (o próprio Winston é parte de um casamento arranjado). De fato,

é bem estranho quando você vê a história da União Soviética antiga e os

casamentos arranjados. Uma coisa bem esquisita.

Eu lembro de um filme antigo (não lembro agora o nome dele) que

mostrava o mundo soviético e as pessoas tinham rações. Um filme bem

antigo, acho que anos 1930. Mostrava como as pessoas tinham as rações e,
por exemplo, cinco pessoas, cada uma com direito a um ovo se juntavam

e faziam um omelete com cinco ovos e aquilo era um ato transgressor.

Uma coisa muito louca de se imaginar. Não deixa de ser um exercício

fascinante entrar um pouco na psicologia desse mundo soviético. Mas de

qualquer modo a austeridade não parece ser no Ocidente. Pelo menos

o caminho parece ser mais o inundar as pessoas de coisas. Mas em 1984

é um mundo mais austero. Nesse sentido, sim. Agora, embora seja um

mundo austero, sempre tem o café e tal e os membros do Partido Interno

84
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
obviamente tem uma vida mais luxuosa.

Winston começa a desejar, a procurar ter acesso a alguma coisa

que viole o regime. Ele quer ter um caminho de escape, alguma coisa mais

subversiva. Interessante que um dos fatores centrais da política às vezes

é a gana que a pessoa tem para ir contra o regime. Isso existe na política.

De todos os lados. A pessoa pensa e fala: “Preciso encontrar o regime,

preciso procurar uma coisa transgressora.” O ser humano tem isso, ainda

mais quando o regime é sufocante. Isso se manifesta como se você tivesse

precisando respirar um pouco. Então para respirar, você quer encontrar os

dissidentes do regime. É uma coisa natural porque você quer respirar de

algum modo. E Winston sabe do perigo disso, mas começa a ir por esse lado.

Ele Julia começam a rumar mais por esse caminho e aí tem esse superior
dele que é O’Brien.

Interessante que Orwell foi aluno de Huxley e tem muita influência

de Huxley. Tanto que tem referência a Shakespeare igualzinho: os símbolos

da redenção, o proletariado, o povo comum. Porque claro, você olha o povo

comum e fala: “Cara o povo comum tem esperança, mas nunca tomou o

poder de verdade.” Esse é o problema. Você tem o discurso do povo comum

tomar o poder, mas normalmente são as elites que fazem esse discurso

para tomarem o poder. O povo comum em si não tem noção. Mas o povo

comum tem alguma conexão com a tradição, alguma conexão com o amor

ao próximo e isso se mantém. Então, Winston repara isso no povo comum,

embora estejam lá os caras bebendo gin às vezes sem muito conhecimento.

Mas ele vê um caminho de redenção, tanto que fala: “Proletariado é um

caminho.” Shakespeare, catedral quebrada, cristianismo perdido são

símbolos que aparecem no Orwell. Shakespeare e a catedral quebrada, são

símbolos da tradição religiosa perdida; a tradição literária, cultural perdida.

É isso que estão querendo representar aqui nessas histórias. No fundo, é o

legado cultural civilizatório que esse novo mundo distópico odeia e quer

abolir nesse novo mundo.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
É interessante que distopia não é contra a utopia no sentido

renascentista. Essas utopias são visivelmente (como eu citei em outras

aulas) contra H. G. Wells, a utopia científica moderna. A utopia renascentista

é outro exercício. Isso aí dá uma aula só sobre isso. A utopia de Thomas

More, por exemplo. Mas falamos que a distopia é uma subversão de um

gênero moderno de utopia, não do gênero antigo. Isso é importante pois,

visivelmente elas têm um elemento meio ficção científica. Essas distopias

todas que estamos falando têm um elemento bem mais moderno, com

ideias da esquerda moderna, um viés muito específico e apelam para

autoridade. Elas veem como uma transgressão contra o regime, apelar para

essa tradição perdida. Nesse sentido é o oposto da utopia estilo Thomas

More, por que ali tem um apelo para a tradição perdida do lado da utopia, a

utopia é nostálgica do passado, no contexto renascentista.

A utopia clama pelo passado, um passado perdido. E aqui, essas

distopias modernas criticam regimes que abolem o passado, é outro viés.

É importante o pessoal entender isso porque às vezes só se coloca e fala

assim: “Ah não, o regime ideal é a utopia versus distopia, regime ideal que

deu errado.” Não é bem só isso que está em jogo. A coisa é um pouco mais

complexa, há dimensões, níveis de literatura utópica diferentes. Embora já

tenha colocado que Bacon foi uma utopia renascentista. Se tem alguém que

na Idade Renascentista ou Moderna inicial, prefigura essas utopias tipo H.G.

Wells, é Bacon. Ele é realmente é o mais próximo disso. Thomas More menos,
até um esotérico muito estranho como Tommaso Campanella, menos, por

incrível que pareça. Mesmo ele sendo em alguns aspectos um prefigurador

disso, mas menos do que essas mais científicas, mais modernas.

Feita essa analogia, como eu estava falando de O’Brien, ele é do

Partido Interno. O Partido Interno é a elite que governa o regime. Isso é

em 1984 e é no mundo real. É sempre assim. Sempre tem uma elite que

governa. Porque não existe a igualdade, todos são muito iguais, mas como

fala Orwell muito bem na Revolução dos Bichos, todos são iguais, mas

86
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
alguns são mais iguais do que outros.

Você pode até usar o termo igualdade, mas mesmo que se abolisse

o dinheiro, alguém sempre teria condição de dispor de bens maiores. Isso é

inevitável, sempre tem uma liderança, uma hierarquia. Alguém tem de ser

responsável pela fábrica, pela plantação, alguém tem de cuidar da gestão

pública no geral. Então, na verdade, o Socialismo concentra o poder ao

invés de espalhá-lo. Sempre vai ter uma elite. A ideia de não ter uma elite

é absurda e mesmo que se abolisse o dinheiro, a ideia de que isso aboliria

uma elite, é insana.

Então o partido interno é a elite da sociedade e defende a igualdade,

mas na verdade eles concentram o poder de uma maneira inédita. É uma

consequência natural. Quanto mais se fala de igualdade, maior é a tendência

em concentrar o poder. Isso é importantíssimo entender, porque como

Huxley coloca a ideia de desconsideração do poder, pressuporia a virtude

e autonomia comunitária. Coisa que viola esse negócio. Então, O’Brien é

membro dessa elite e se apresenta para Winston como um cara da oposição,

da irmandade que está querendo derrubar o regime e ele manda um livro

do Emmanuel Goldstein, do inimigo do partido, para Winston. Ele vê esse

negócio e fica desconfiado, de certo modo. É mérito do Orwell, ele é muito

bom em fazer eclipses, de fazer situações em que a pessoa fica confusa,

que você não sabe o que está acontecendo direito, de fazer meio que uma

penumbra do entendimento. Até que ponto você sente que O’Brien vai

trair Winston? Fica tudo muito confuso. Ele é muito bom nisso, em colocar

confusão. Tem um pouco do Joseph Conrad. Ele é bom em fazer um pouco

essas nuvens mentais. Que você fica confuso na situação.

Orwell também foi influenciado por Kipling que era um autor de

direita britânico, direita mais imperialista, embora também tenha sido

crítico dele. Uma vez eu li alguns ensaios de Orwell sobre Kipling. Muito

bons, muito bem feitos. Em umas coisas ele não pegou. T.S. Elliot escreveu

87
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
melhor sobre Kipling do que Orwell. Com certeza entendia melhor Kipling,

mas não deixa de ser interessante. Kipling fez o Livro da Selva e fez “Se”,

poema maravilhoso. Quem quiser ler Kipling, é um dos melhores poemas

que tem e o Livro da Selva (famoso Mogli, de Kipling). Ele teve influência

de Kipling e Shakespeare que gostava muito. Ele lia bastante e estudou

francês com Huxley, como foi dito. Então, Orwell tem essa coisa de erudição

muito forte, ele vê que Admirável Mundo Novo, está trazendo uma pobreza

imaginativa, literária, cultural tremenda.

E O’Brien dá esse livro. Só que na verdade, ele não é membro de

irmandade, a irmandade não existe, foi criada por eles para pegar os caras.

Eles inventaram esse livro para pegar os caras, então inventaram a oposição

deles mesmos, isso é fundamental para a mentalidade revolucionária, no


geral. A mentalidade revolucionária, um dos pontos chave dela é que ela

não se opõe, não coloca como oposição a real oposição dela, ela coloca uma

oposição que ela inventa. Isso é muito importante porque se você tem uma

narrativa inconsistente onde dois mais dois é igual cinco, para você poder

preservar sua autoimagem, você precisa controlar sua oposição. A ideia de

que você vai conseguir preservar sua autoimagem não serve se você não

pautar o que sua oposição pensa.

É por isso que os jornais, por exemplo, são obcecados por cobrir a

oposição à ideia deles. Pode reparar na mídia atual. Eles cobrem muito

mais quem pensa contra o que eles colocam, líderes políticos que pensam

contra o que eles colocam, do que os do lado deles. Não tenho nenhuma

dúvida disso que estou falando. Pode pegar ali qualquer um e ver. Fazem

isso porque pautar a oposição é um modo de não expor as contradições da

sua própria ideia. Se você expuser demais sua própria ideia, você abre para

as contradições dela, contradições internas. Se você tiver que interpretar

problemas complexos, pior ainda.

Paz mundial. É ótimo defender a paz mundial como propaganda.

88
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Mas justificar como você vai obter a paz mundial é uma péssima ideia,

porque você não vai conseguir fazer isso. É que nem o Comunismo. Páginas

e páginas foram escritas defendendo o Comunismo, mas descrições

precisas você não vai encontrar quase em lugar nenhum. Pode abrir a obra

do Karl Marx, dá a entender como funciona o regime, você vai achar várias

páginas sobre a transição para o Comunismo, sobre o caminho para chegar

ao Comunismo, muitas páginas sobre o capital. Aliás, o livro é O Capital. N’O

Capital, a descrição do processo capitalista é muito grande e a descrição do

que é o Comunismo é muito pequena. Ou seja, se você tiver de descrever o

regime ou como obter a paz mundial ou como sanar a fome com detalhes

exatos, você estará expondo a sua própria ignorância. Por isso você tem de

expor as platitudes, as generalidades e não o conteúdo específico da coisa.

O partido tem de jogar slogans, não descrições detalhadas.

É mais importante para o partido, fazer a oposição (no caso os livros

de Emmanuel Goldstein) e explorar o ódio a Emmanuel Goldstein. Isso é

fundamental, porque uma das tragédias do século XX é que muitas pessoas

se pautaram pela oposição a esses regimes e caíram no framing deles. É

muito louco isso, muitas pessoas realmente pensaram a sua visão ideológica

a partir do framing colocado pelo lado que manipula as informações e esse

é um elemento que tem de ser refletido a partir do 1984 e dessa traição do

O’Brien.

E aí vem a descrição muito famosa, o Ministério do Amor que é

tortura mental psicológica, privação dos sentidos, uma sequência de coisas

para deixar a pessoa dócil, manipulada e dominada. Essa foi a que gerou

a imagem do 1984 como a repressão totalitária, a bota, tal. Um pouco daí

que vem isso, porque esse capítulo é muito vívido. É muito chocante você

ver um cara que engana outro e depois o tortura, o manipula de uma

maneira intensa. Uma coisa interessante, por exemplo, na Guerra Fria

você tinha muita literatura da Guerra Fria, antissoviética, tipo Tom Clancy

e normalmente eram os opositores que representavam a União Soviética

89
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
na Guerra Fria. Eles narravam a União Soviética. Os defensores da União

Soviética tendiam a simpatizar, a querer expor a corrupção interna dos

Estados Unidos, mas não levar a discussão para a Guerra Fria porque isso

abriria os olhos para contradições internas das ideias deles. Isso é bem

interessante. É um fenômeno que acontece.

O’Brien tortura Winston que fica muito mal até o ponto em que trai

Julia e ela também o trai e ele perde afeição por ela. Ele começa a odiar a

si próprio e a ela e cai numa apatia tremenda e caindo nessa apatia, ela o

entrega, eles perdem a afeição mútua, então tem essa coisa meio que o

amor será dissolvido pelo regime totalitário, o amor real vai ficar apático,

morto. Ele fica meio zumbi, anda como um zumbi por aí e meio como

zumbi, apático, morto por dentro, tem ele num café e a notícia da vitória
militar da Oceania contra Lestasia.

Se você pegar as guerras no Ocidente, elas têm um efeito muito

interessante. A guerra mais clássica, entendida de maneira mais clássica

é uma guerra que tem muito a ver com honra, com meritocracia, com a

vitória do soldado, do soldado provar o seu valor. É muita questão de

honraria. No mundo cristão permanece esse elemento e é introduzido

o elemento do cruzado, do guerreiro que tem uma luta por uma missão

religiosa. As guerras de religião, já na Renascença, são a mistura de certo

remanescente desse ideal cruzado com as lutas por honrarias manifestadas

de uma maneira mais nacionalista em contraposição ao que era na Idade

Média. Na Idade Média, às vezes tinha problema dos nobres se matarem,

simplesmente porque eles eram treinados para a guerra a vida toda e aí

começavam a atacar uns aos outros. Isso acontecia bastante. Inclusive

preocupava as pessoas. As Cruzadas ajudaram, na verdade, a domesticar

esse fenômeno, reduzir a violência na Europa. Porque os caras tinham uma

causa mais elevada, então eles paravam de se matar para pensar numa

outra causa. Essa era a ideia da época das Cruzadas.

90
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Houve uma exaustão de guerras com finalidade religiosa na

Europa e então, começaram muitas guerras por interesses nacionais.

Quando a guerra perde esse caráter de honraria, de mérito, ela vai sendo

dissociada, literalmente, da aristocracia; vai ficando uma coisa industrial,

comercialmente organizada, mais burguesa. Por volta do século XVIII há a

dissociação do ideal no sentido clássico da palavra ou medieval, da guerra;

ela vai ficando um business e o final disso, desse aburguesamento, é o

elemento circense da guerra que deixa de ser uma ferramenta de honra, de

guerra religiosa de eficiência e vitória militar para colonização, para virar um

elemento circense.

A justificativa ideológica e a cobertura da guerra são mais importantes,

às vezes, do que o resultado dela. Visivelmente as guerras do século XX


têm muito desse caráter. Você vê péssimas decisões militares para fins de

autojustificativa. É um fenômeno comum no século XX, comuníssimo. A

União Soviética fez isso. Os Estados Unidos já fizeram. A Alemanha nazista

fazia isso, decisões militares ruins para fins de mostrar, provar algo, provar

alguma coisa. Muito comum. Hitler, por exemplo, de vez em quando baixava

um ser megalomaníaco e ele fazia uma adesão militar ruim para provar o

prestígio do partido nazista. Soviéticos no Afeganistão quebraram a cabeça

várias vezes para o orgulho soviético e assim vai. Tem o elemento circense

na guerra. Esse elemento circense tem muito a ver com esse nominalismo

da guerra, diferente daquele soldado que cultivava uma espada a vida toda
e que o mundo medieval via quase como sagrada, como uma ferramenta

de uma missão divina. O mundo moderno vai transformar isso numa arma e

depois, num espetáculo. É gravado. Você grava a guerra e cria uma narrativa

política e midiática em cima disso

Então essa cena final do 1984, é o bizarro do bizarro. A guerra com

motivos ideológicos para sustentar o regime, contrapondo com a pessoa

apática, morta por dentro. Aqui no caso, a pessoa tá morta por dentro por

causa da tortura física e psicológica, mas poderíamos fazer a mesma analogia,

91
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
considerando a pessoa estar morta por dentro por causa da enchente de

prazeres e informações tal como no Admirável Mundo Novo. Talvez fosse

mais preciso. Não obstante, existe tortura psicológica e física ainda hoje no

mundo, embora com outras técnicas, ainda existe de certo modo e continua

sendo um problema. Sem dúvida nenhuma o Totalitarismo continua sendo

um problema.

Mas acho que não poderíamos entender 1984 só sobre o viés do

Ministério do Amor. Acho que isso é uma redução do livro. Por mais que o

final do livro seja impactante, essa mesma cena da guerra que eu citei agora,

do aspecto circense da guerra da modernidade é horrível, atrocidades,

genocídios. Genocídio é uma coisa bem típica do século XX. Existiram

genocídios anteriores. Existiram, mas a ideia do genocídio se aperfeiçoa,


fica mais clara no século XX.

Então, eu acho que 1984 teria de ser interpretado à luz de tudo isso

que falamos, dessa visão mais ampla das coisas, à luz de uma leitura mais

profunda, que considerasse esses outros elementos culturais.

É isso gente. Esse é um belo livro. Recomendo que leiam, não é

meu favorito de todas as utopias (embora ele goze de uma popularidade

tremenda), mas talvez seja o mais popular dentre os que nós apresentamos.

Eu acho, por exemplo, O Senhor do Mundo muito impopular, mas de grande

qualidade. E o 1984 é muito popular, é um belo livro, sem dúvida, um livro

que eu recomendo, mas não é necessariamente o melhor livro da nossa

lista, embora ele traga insights únicos, bem especiais, então eu acho que é

um livro que deveria ser lido por todos. Sem dúvida nenhuma é um livro que

talvez seja o que mais teve impacto para acordar as pessoas para perigos de

regimes autoritários. Ele teve mais impacto do que os livros de história, de

não ficção. É um livro que pautou gerações.

É isso, muito obrigado a todos. Não deixem de procurar ler esse livro.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
AU L A 6

CONCLUSÃO
Encaminhando então para a conclusão do nosso curso, nós falamos

sobre o Anticristo, de Soloviev, O Senhor do Mundo, de Robert Hugh Benson,

o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell. Por

fim, se seguirmos a linha do tempo, o Admirável Mundo Novo Revisitado

seria o livro mais novo dos que nós citamos, embora na parte de ficção o

mais novo seria o 1984.

Muita gente fala sobre esses temas de distopias mas não conhece

o Anticristo que deu origem a eles. Então é interessante termos essa base.

O Admirável Mundo Novo e o 1984 são sem dúvida mais conhecidos do

que o Anticristo de Soloviev e o de Robert Hugh Benson. No entanto,

quando se estuda estes dois –– tanto o do Soloviev quanto o do Robert

Hugh Benson –– fica claro que não teriam sido escritos os livros posteriores

se não houvesse já a tradição literária que foi construída previamente. É

importante, para quem queira conhecer mais essa linha de estudos, ter

essa noção.

Ao mesmo tempo, quando vemos o Admirável Mundo Novo

Revisitado, notamos como essas coisas entraram na realidade do século

XX e passaram para a história, e assim entendemos um pouco melhor essa

figura mais enigmática de Aldous Huxley. Uma linha comum é esta: há

primeiro, na história europeia, seja por meio do progressismo –– a figura

de Bacon ali, que citamos um pouco ao longo do curso ––, do nominalismo

–– abolindo-se os valores, abolindo justiça, verdade, o bem transcendente,

a noção de Deus, ou seja, excluindo isso. Somando isso a essa crença no

progresso perene, a essas ideias mais positivistas, tecnocráticas, socialistas,

de gestão da população e de controle, nós temos essa elite do poder

que começa a ser a elite managerial, a elite total do mundo, e controlar

as estruturas; e aí nós estamos num mundo em que as utopias de H. G.

Wells se refletem melhor em paródias bizarras, em expressões do grotesco,

expressões de controle e um pânico que essas estruturas podem ocasionar,

do que propriamente naquele otimismo socialista fabiano de H. G. Wells.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Então, na verdade, temos aí uma outra dimensão disso, e as distopias nos

abrem para ela.

Não dá para entender o século XX –– e o XXI, no qual estamos agora

––, sem entender o conteúdo dessas distopias. É impossível, pois aqui você

está imaginativamente entendendo uma sequência de fatos que iluminam

uma mudança que não era comum no mundo, uma mudança de estrutura

de controle dessa elite do poder, dessas estruturas mais tecnocráticas

[elite do poder, usando o termo de Aldous Huxley]; você joga luz sobre um

cenário que é frequentemente caótico, que é muitas vezes a concentração

da desordem. Então, você tem um relativismo crescente, formas de controle

crescentes; a mudança tecnológica favorece essa concentração desses

mecanismos de controle.

A passagem do século XX às vezes é tratada de uma maneira muito

superficial; dizem “Ah, não, teve a segunda guerra mundial, teve a guerra

fria, e teve umas democracias liberais, a descolonização, fim dos impérios

europeus; e esse é o século XX!”. Bem, isso é muito pouco para entender

o processo; se você não olhar os mecanismos de controle, a forma como

cresceram, a história contemporânea será completamente entendida de

maneira errada; e aqui, sem dúvida, é literatura, é experiência imaginativa.

Quando se vê o quanto foi profético O Senhor do Mundo, o quanto é

profético o Admirável Mundo Novo, e vemos princípios como o duplipensar

de George Orwell aplicados no mundo de hoje, nós entendemos que

quando é profético demais começamos a ver que não só tem informações

privilegiadas na visão que eles tiveram das coisas como existe uma descrição

de processos que realmente estão acontecendo historicamente. Então, a

nossa visão histórica –– evidentemente que a gente vai separar ficção de

não-ficção, no nosso entendimento das coisas ––, mostra que a ficção nesse

caso ilustra de uma maneira fantástica os acontecimentos, o que se passou.

Sim, foi previsto, Robert Hugh Benson previu o avião bombardeiro e

95
E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
a bomba atômica, o advento da União Europeia foi previsto por vários deles,

o crescimento da China foi previsto por vários deles (por Soloviev e Benson);

o contraceptivo foi muito previsto por Huxley e o uso das drogas como

ferramenta de manipulação social foi também muito bem visto por ele,

bem como esse inundar de informações e estímulos foi bem o seu legado;

e essa visão de uma elite, de uma religião universal humanista e secular foi

muito colocada por Benson.

O Anticristo do Soloviev é o mais interessante em alguns aspectos

porque ele é bem simbólico e espiritual da coisa, porque ele tem ainda essa

outra dimensão, que inspirou Dostoiévski e, de certo modo, todos os autores

da literatura: a visão do spiritus mundi. Eu acho que um tema central é

esse, a figura desse espírito do mundo se concretizando. Nós lemos o

poema de William Butler Yeats, The Second Coming (A Segunda Vinda), e

eu acho que Yeats traz bem essa coisa; é como se a ascensão da distopia

fosse o mal se concretizando em estruturas políticas. Acho que essa é uma

forma de conseguirmos olhar a coisa. E isso, por alguns autores, foi visto

simbolicamente, ou literalmente, como uma figura do anticristo, o spiritus

mundi tomando concretude.

E aí, aqueles que amam: quais são as forças, qual é o eixo comum

nessas obras? Cultura, religião, amor ao próximo, vínculos familiares, em

todas elas são opostas ao Admirável Mundo Novo, à distopia, todas elas.

Em todas essas obras a religião e a alta cultura são suprimidas pelo regime;

em todas essas obras a linguagem é alterada pelo regime (claro, cada uma

delas tem variações disso, mas em todas elas é linguagem); em todas elas

o vínculo com o passado é rompido, tendo em vista esse novo mundo;

em todas elas o socialismo fabiano, o positivismo são vistos como parte

integrante disso; e em todas elas fica claro que a ideia de igualdade virou

um pretexto para na verdade concentrar poder na mão de poucos, isso é

eixo comum delas.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Então, quando se vê que Huxley, Orwell, Benson, Soloviev, todos eles

tinham essas mesmas ideias na cabeça, e começa a ver o eixo comum. Eles

são muito diferentes, porque –– de propósito, escolhi uma variedade de

autores (aliás, três são ingleses e um russo) –– Orwell era um anarquista

britânico mas erudito; Aldous Huxley é um filho da elite global, total, ele é do

meio da elite global, absoluto, o que em certa medida Orwell foi também,

mas era um jornalista anarquista, desiludido com a guerra civil espanhola,

um perfil bem próprio. Huxley, que se experimentava com drogas, filho

da elite global, irmão de um dos fundadores da UNESCO, envolvido com

sociedade eugenista etc., escreve Admirável Mundo Novo, depois escreve As

Portas da Percepção, era um cara que estava num contexto muito próprio,

ao mesmo tempo também um amante da cultura e das letras. Benson,

filho do arcebispo de Canterbury, padre católico tradicional, era outro perfil

diferente. Soloviev, um místico, escritor, em determinado momento da

vida esotérico e em outro mais cristão, mais tradicional, passou por fases

diferentes, era russo tradicional e está lidando ali com ideais dos eslavófilos

–– eles falam dos old believers, que são aquele grupo dos cristãos ortodoxos

mais reacionários de antes das reformas da Igreja Ortodoxa.

Nosso eixo de tempo é entre 1900 e 1960, com o lançamento do

Revisitado. Temos, portanto, num período de sessenta anos, como vimos a

passagem desses homens, eles viram a transição daquele mundo do século

XIX para esse novo mundo do século XX, como que isso foi passado; e isso foi
passado em grande parte por meio dessa literatura distópica.

Há um interesse crescente nessa literatura distópica; os jovens de

hoje estão cada vez mais interessados na literatura distópica. Isso é visível,

pois as pessoas veem que tem um respaldo. Eu acho que a era da tecnologia

trouxe uma nova janela para reinterpretar essas obras, para elas serem lidas

de outra maneira.

Até que ponto a nossa linguagem mesmo perdeu categorias para

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
expressar o mundo antigo, para expressar a cultura tradicional? Até que

ponto a visão dos símbolos, a visão da realidade foi perdida por nós mesmos?

A gente quer ver a literatura distópica como uma previsão do futuro, e

certamente vai ter uma coisa assim: do mais antigo, que é o Anticristo,

até o mais novo, que é o 1984, os livros de literatura certamente têm várias

previsões do futuro, coisas que vão acontecer, que você está vendo tomar

forma.

Outra literatura que eu queria propor a vocês, partindo do que vimos

neste curso, é reconstituir nas nossas vidas e na nossa história recente o que

já aconteceu disso que tratamos aqui. Que já foi feito? Ou seja: quanto nós

já perdemos do passado, quanto nós já perdemos da linguagem, quanto

nós já somos funcionários do partido externo, como Orwell colocou no

1984? Quanto nós já somos inundados por estímulos visuais e controlados

de certo modo? Quanto nós já somos vigiados com os mecanismos que

já temos? Que já aconteceu do Admirável Mundo Novo? Quanto nós já

perdemos da cultura clássica?

Parece-me que recentemente algumas universidades extremamente

tradicionais excluíram Virgílio e Homero da grade curricular porque estes

eram conservadores demais para a universidade. Ou seja, se acabou Virgílio

e Homero, qual é a linha? Bem, a linha parece ser a de que tudo que não

for de acordo com a ideologia do regime será excluído progressivamente.

Sendo assim, a cultura tradicional e os valores espirituais serão perdidos.

Todas essas obras distópicas são unânimes nisso. A Igreja vai

sendo reduzida a uma experiência sentimental em contraposição a uma

experiência profunda de ascética, mística, tradicional e visão da doutrina

tradicional mais filosófica etc. Isso é unânime em todas elas; todas têm

igrejas sentimentais em substituição à Igreja original, falsas igrejas, igrejas

ecumenistas, relativistas, falsas, que se contrastam com a igreja tradicional.

Os quatro autores colocam isso. Orwell aborda menos essa questão, mas

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
também tem um certo elemento disso. Em Huxley, Benson e Soloviev é

claríssimo esse problema.

Quando você entende Soloviev, ganha uma outra luz para entender

Dostoiévski. Há uma série de outras obras sobre as quais você começa a ter

um outro olhar quando entende isso aqui. Certamente, você lerá diferente

o marxismo e outras coisas a partir dessas obras; parará de ter só aquele

negócio de “capitalismo x socialismo”. O legal das distopias todas é que

elas rompem um pouco com essa dicotomia tão simples, elas mostram

muitas vezes como –– para usar os termos de Huxley –– o big government

e o big business trabalham em conjunto, como as grandes empresas e o

governo burocrático se fundem e o fazem para controlar melhor as pessoas.

Essa é uma toada comum aqui. Eu acho que aquilo que Huxley falou da

educação para a liberdade seria fundamental, mas não exatamente ao

modo –– a minha opinião pessoal é que não é exatamente ao modo Huxley.

A solução, sim, envolve restauração de valores espirituais, de novos meios

de vida comunitária, sem dúvida nenhuma, mas isso evoca uma visão

mais tradicional do que a de Huxley. Não é simplesmente falar “Ah, vamos

resgatar a democracia jeffersoniana”; não, não é assim.

Se o problema começa, em grande parte, com o nominalismo e

outras coisas, como aliás Richard M. Weaver brilhantemente colocou em

As Ideias Tem Consequência, o qual eu acho um livro muito legal para

fazer um diagnóstico geral. Se o problema começa com o nominalismo,

nós teremos que reaprender o realismo; se o problema do mundo moderno

é que os vínculos familiares foram dissolvidos, nós temos que voltar para

uma visão de família, resgatar e restaurar a educação e as famílias. Se o

problema das distopias que nos aparece é que o governo se tornou

totalmente desconectado da vida social e real, nós tínhamos de voltar a

discutir mecanismos de descentralização do poder, voltar para olhar isso.

É uma mudança de regime, não é uma mudança simplesmente eleitoral,

de quem vai ser eleito na eleição; é uma mudança de sistema, de regime.

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Se a mídia é uma ferramenta de manipulação, nós temos de repensar o

modo como consumimos notícias, informação, como nós nos relacionamos;

temos de rever o modo, porque as pessoas dão uma credibilidade para a

mídia, às vezes, que é dissociada dos interesses que estão por trás daquilo

(quem são os donos, quem são os caras que estão manipulando aquilo?).

Nós temos de recontextualizar o modo como consumimos mídia no geral,

porque evidentemente a mídia pode ser um instrumento, uma ferramenta

de controle social, e a gente precisa mudar isso e o modo como pensamos a

economia também. Não adianta simplesmente falar assim: “Ah, a questão é

livre iniciativa.”. Mas a livre iniciativa é utilizada para o controle das pessoas.

Aí não adianta; essa visão é ingênua. Do mesmo modo, falar “Ah, então, é

o governo”. Aí você está querendo que o grande irmão cuidando de você?

Também é uma péssima associação.

O problema do mundo atual é que às vezes o framing que foi

colocado (mais governo, menos governo) é um framing errado. A questão é

qualitativa: qual é, que tipo de estrutura, de política, está em jogo aqui; que

tipo de visão espiritual e educativa está por trás desse regime? Então, teria

de se pensar a educação como um todo, repensar o sistema educacional,

repensar a forma de governo para fugir desse contexto. A questão de

simplesmente achar que “Ah, eu vou votar em fulano e vou cumprir minhas

contas, pagar meus negócios e as coisas continuam iguais.”. Não é isso

que o mundo nos apresenta; o mundo nos apresenta um outro cenário.


Eu acho que o Admirável Mundo Novo, o modo como os personagens se

opõem, ele tem problemas, todos eles. Então, por exemplo, se você pegar

o Winston Smith do 1984, ele se opõe de uma maneira ingênua, ele confia

num cara em quem não era para confiar, ele não se organiza, ele é o cara

mais, talvez o mais irônico, parece que ele estava em O Processo, do Kafka.

O selvagem é um pouco mais eficaz –– pelo menos ele consegue

passar uma mensagem mais clara, porque também teve acesso a uma

cultura mais tradicional, seja a cultura tribal, seja a cultura de Shakespeare,

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
e, portanto, uma certa noção do cristianismo ––, e ele tenta se purgar. O

selvagem não se relaciona com outras pessoas; como diz Huxley, ele não

entra no modo comunitário, ele é só ele, uma figura isolada e, como tal,

tenta ir para um exagero de autopurificação, que embora a ascética seja

fundamental para combater esse admirável mundo novo, sem dúvida

nenhuma, a defesa que ele faz da castidade é maravilhosa como combate

ao admirável mundo novo, sem dúvida nenhuma. Várias coisas que ele

propõe são ótimas, mas ele é isolado; e, francamente, a resposta dele é

simplesmente o isolamento, ele entra no desespero selvagem, então é uma

resposta ruim.

A resposta do Anticristo do Soloviev é mais miraculosa, simplesmente

as pessoas perseveram na fé e o milagre aparece. Eu acho, porém, que tem

muita sabedoria a ser obtida também para o exemplo, e aí talvez a resposta

mais madura de todas as distopias que a gente apresentou seja a do Padre

Franklin, de O Senhor do Mundo; essa é a resposta mais madura, até porque

o padre Franklin é o personagem mais maduro apresentado.

É engraçado que Benson teve o cuidado de colocar as respostas

imaturas também: tanto o Oliver Brand, que só adere ao regime e justifica-o,

destruindo a própria família, a própria família dele se desestrutura nisso,

como a figura do Padre Francis, que larga a fé e se desespera –– padre jovem

que não aguenta o tranco. O padre Franklin é mais prudente.

Mesmo o Papa tradicionalista, como aparece no Admirável Mundo

Novo, as declarações de anátema aparecem pouco, senão quando ele dá um

passo positivo de restauração espiritual, cultural, real; ele não simplesmente

joga uma condenação, mas trabalha ativamente para a restauração. Isso

é um exemplo que mostra como Benson, que aprendeu com Newman,

que aprendeu com Chesterton, que aprendeu com outro, que viu um

movimento intelectual da Inglaterra, sabe que a construção de uma cultura

é indispensável. Então, quando se vai contrapor o Admirável Mundo Novo...

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
Se você pensar nos quatro, fora o elemento miraculoso que aparece no

Anticristo –– o milagre, o fim do mundo ––, a única proposta é a do Padre

Franklin, que de fato é o único que propõe algo. Esse algo não reverte... É

interessante, porque é pessimista o tom. O proposto pelo Padre Franklin

não reverte o Admirável Mundo Novo, mas cria pessoas preparadas para o

martírio. Essa é a proposta que nos aparece dos quatro.

Se pararmos para olhar essa literatura, veremos que a coisa é insana.

Das quatro obras, um personagem, Winston Smith, do 1984, é torturado

até largar os seus valores; o selvagem se suicida; o Helmholtz e o Bernard

Marx –– pelo menos o Helmholtz inicialmente –– são colocados numa ilha;

o Padre Franklin se torna o Papa e vai em direção ao martírio. Não há um

protagonista muito claro no conto do Anticristo, mas os líderes religiosos

ali, ortodoxos, protestantes e católicos terminam perseverando, e a sua

perseverança faz eles passarem por essas perseguições, é mais uma história

de perseverança do que outra coisa.

Então, quando a gente soma os quatro, é interessante que só um

oferece um caminho. Huxley, em determinado momento, — acho que foi

no prefácio de uma edição tardia do Admirável Mundo Novo —, lamenta

não ter sido mais propositivo em sua obra. Acho que Orwell nem lamentou,

pois era mais cínico. Propor o quê? Orwell era um pouco assim: se você

perguntasse para ele propor, ele ia dizer “Propor o quê?”. Ele tem aquela

coisa mais irônica, é de uma personalidade meio irônica.

Huxley lamenta não ter sido mais propositivo e pensado caminhos

para uma vida comunitária, mas, considerando sua ideologia, é questionável

até que ponto ele conseguiria oferecer também um caminho tão melhor

assim. Se lermos, por exemplo, A Ilha –– outra distopia dele que nós não

avaliamos neste curso específico ––, veremos que a visão ali também é

problemática. Há ali os dois lados do mundo hippie dos anos 60: de um

lado o pessoal da vida comunitária, hippie, indo para o campo, e de outro

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E-BOOK BP AS DISTOPIAS E A REALIDADE
as botas e o exército. Essas duas faces, porém, também não nos oferecem

uma solução existencial muito clara. Mesmo quando Huxley tentou ser um

pouco mais “propositivo” cria mais problemas do que soluções no modo

como ele apresentou.

Benson é de fato um pouco mais propositivo, ele coloca ali mais uma

visão de restauração espiritual cultural; e o Anticristo muito claramente

se situou no fim dos tempos –– Benson também, mas o Anticristo muito

claramente. Então a esperança é mais o eschaton. É interessante do Soloviev

que ele fala de uma reunificação da Igreja sob uma nova ótica, ou seja, o mal

é ocasião de união. Conseguimos tirar do Soloviev, então, mesmo sem essa

proposta, conseguimos entender alguns valores que ele estava defendendo.

A unificação da Igreja é visivelmente um valor que ele está defendendo ali;


a restauração do espírito cristão visivelmente é; a ideia de que com menos

cristãos vamos ter cristãos de maior qualidade visivelmente é uma ideia que

está ali. Tem uma série de valores ali colocados. De fato, se você pegar por

exemplo o amigo dele, Dostoiévski: quantas pessoas não encontraram uma

certa dimensão espiritual lendo Dostoiévski? Muitas pessoas. Eu mesmo:

participou do meu processo de encontrar, meu processo para encontrar

uma dimensão espiritual na minha vida. Eu até gravei uma vez um vídeo no

YouTube em que conto a minha conversão. O meu processo pessoal para

encontrar uma vida, uma dimensão transcendente na minha vida passou

pela leitura de Dostoiévski, sob influência de Soloviev. Então, algo pelo menos
eu já tenho de agradecimento ao Soloviev, só por esse ponto. Portanto, não

dá para dizer que ele é zero propositivo se eu mesmo, pessoalmente, fui

influenciado positivamente por Soloviev, embora de maneira bem indireta.

Isso é uma coisa a ser considerada.

Eu lembro, logo depois desse –– claro, logo no começo da minha

trajetória intelectual eu li os dois, o 1984 e o Admirável Mundo Novo ––,

minha vida escolar tinha uma cara muito 1984. Em minha escola, nos anos

de 1990, havia muito marxismo tradicional; então ainda tinha aquela coisa

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de nos unirmos numa confederação socialista da América Latina contra

o FMI, contra o imperialismo americano etc. Agora é mais Admirável

Mundo Novo mesmo, agora voltamos para paradigmas mais diferentes,

não é tão “soviética” a proposta. Acho engraçado, o pessoal brinca: União

das Repúblicas Socialistas da América Latina. Isso virou meme. Mas eu me

lembro efetivamente de em minha infância o pessoal defendendo uma união

de repúblicas socialistas da América Latina, não como uma conspiração,

mas como uma proposta mesmo de se unir, fazer um socialismo latino

americano. Isso é uma memória de infância.

Eu me lembro de que quando li Orwell, falei: “Caramba!”. Foi uma das

primeiras vezes que eu li um livro. Eu falei: “Bem, pelo menos minimamente

eu entendo um pouco essas ideias que me passaram na infância, a ideia de


que eu não precisei muito ser convencido de que há um regime distópico

de certo modo”. Isso porque a minha trajetória intelectual, passando pela

escola, pela universidade, visivelmente tinham pautas ideológicas muito

claramente colocadas, e essas pautas casavam com a mídia. A partir do

momento que eu tenho um sistema em que vejo a mídia internacional

falando a mesma coisa que me ensinavam na escola, e casa certinho, e eu

vejo que as ideias casam com essas distopias, então alguma coisa tem, não

é possível que alguma coisa não tenha.

Esse é um insight que se vocês tirarem da leitura desses livros e desse

curso já será uma bela revelação, será uma grande coisa vocês conseguirem

perceber isso, que há algum fio que une essas coisas. Há uma união no

diagnóstico, há uma união nas possibilidades. Todos eles têm vislumbres

da solução –– vida comunitária, cidadão comum, valores espirituais, cultura

tradicional, resgate da linguagem ––, e nós temos de tentar na nossa vida

resgatar essa solução, pensar nessa solução. Como que eu posso resgatar

a linguagem, ganhar novamente o controle da linguagem? Como eu

posso novamente ganhar controle da história? Controle da história não é

um termo; controlar a história, a maioria das distopias controlam. Mas eu

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posso novamente aprender a história, não ser manipulado historicamente.

Como que eu posso novamente me educar para realmente ter mais

responsabilidade, ser menos determinado pela manipulação midiática

propagandística de massa? Como que eu posso ser mais independente?

Aprenda a plantar. A gente anda muito descolado da natureza, a

gente não sabe montar uma horta, plantar alguma coisa e viver uma vida

mais tradicional em certos aspectos. Se isso não significa fugir para o mundo

rural –– não estou querendo definir aqui o romantismo bucólico ––, mas no

mínimo pode nos fazer repensar o modo como nós lidamos com a nossa

vida prática. Eu acho que isso é uma experiência valiosa de se ter: a nossa

vida cultural, prática e espiritual. Acho que essa seria a mensagem central

a tirar disso.

Não tomem as distopias como desespero, não façam isso, porque se

for para ser desesperado –– eu sou muito contra desespero, sou a favor de

esperança boa, uma esperança correta ––, se for para se desesperar vamos

cair no problema que é denunciado de certo modo no suicídio da Mabel,

em O Senhor do Mundo, e no suicídio do selvagem. É uma coisa terrível, o

desespero é uma coisa terrível, é uma experiência humana má. O mal quer

o desespero e o suicídio; a mensagem tem de ser de esperança. Quando

você tem um bom diagnóstico, tem de buscar esperança, não o mal. Que

é buscar a esperança? Mirar nessa experiência humana mais elevada para

restaurar uma experiência superior nas nossas vidas e na nossa sociedade.

Essa tem de ser a mensagem, o diagnóstico bom tem de servir para

começar um tratamento, não simplesmente para que nós caiamos no

desespero, numa euforia desmedida. O ponto é começar a curar a doença;

você tem de ter o diagnóstico. Por exemplo, no caso de uma doença

terrível, como o câncer –– um diagnóstico assim, absurdo ––, vamos então

imaginativamente preparar o nosso imaginário para caber o tamanho

da crise. A partir do momento em que você entende o tamanho da crise,

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começa a quimioterapia. Ou seja, se você falar assim: “Ah, então, acabou

tudo!” Não, não acabou tudo, agora tem um tratamento de quimioterapia; e

se ele é muito difícil, duro, caro e penoso, então é melhor começar o quanto

antes. Essa é a toada principal. Quando o diagnóstico é muito pesado o que

tem de vir não é o desespero, o que tem de vir é a esperança, e o trabalho

duro que se seguir à percepção de uma realidade muito dura.

Se a civilização vai cair em crise, alguém terá de reconstruí-la. Então,

é aquele espírito de um Boécio, de um São Gildas, de fim do Império

Romano, em que eles olharam, viram a cultura toda destruída e falaram: “É

preciso reconstruí-la”. Esse é o espírito de que nós precisamos hoje. Então,

talvez as distopias se complementem. Muito improvável citar isso, mas A

Consolação da Filosofia, de Boécio (na prisão Boécio tem aquele sonho da


verdade consoladora), talvez seja isso o de que nós estejamos precisando,

mais da verdade consoladora de Deus –– como fala o selvagem –– do que

de qualquer outra coisa.

É isso. Agradeço demais a vocês pela audiência neste curso. É um

prazer estar podendo falar sobre esse tema das distopias. Agradeço demais

a toda a equipe da Brasil Paralelo, o pessoal que trabalhou neste curso, eu

acho um trabalho maravilhoso. Tenho certeza que vocês vão também se

beneficiar de outros cursos da plataforma. É uma alegria muito grande

estar podendo contribuir, na medida do que eu posso, para esse trabalho

educacional.

Fico com este último convite: que vocês mergulhem na vida de

estudos, e ajudem, trabalhem para essa restauração cultural na medida da

vida de cada um. E agradeço demais a vocês pela audiência no curso.

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