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Bonaldo, Frederico

As 5 grandes correntes éticas ocidentais: Aula 3

ISBN:

1. Filosofia

CDD 100
__________________________________________

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SINOPSE
Nesta terceira aula do curso “As cinco grandes correntes da ética ocidental”, o
professor Frederico Bonaldo explica por que São Tomás de Aquino é considerado um
continuador da Ética das Virtudes desenvolvida por Aristóteles e como podemos
cultivar, em nossa vida, o hábito das boas escolhas, tornando-nos pessoas virtuosas.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final dessa aula, espera-se que você saiba por que São Tomás de Aquino
é considerado um continuador de Aristóteles; qual o papel desempenhado pelas
virtudes na ética tomista; como se tornar uma pessoa virtuosa, ou seja, fazer boas
escolhas, de acordo com São Tomás de Aquino.

INTRODUÇÃO
A ética desenvolvida pelo Santo Tomás de Aquino está dentro da Ética das
Virtudes. Tomás de Aquino, que viveu no século XIII d.C., foi um discípulo de
Aristóteles e um continuador dele, desenvolvendo bastante a ética aristotélica e não
apenas esta, como também a Teoria do Conhecimento e a metafísica aristotélica. Do
ponto de vista da filosofia moral, da ética filosófica, Tomás de Aquino empreendeu
alguns passos muito importantes.

CONTEXTUALIZAÇÃO
Tomás de Aquino, de origem italiana, é um religioso dominicano da Ordem de
São Domingos de Gusmão, a qual havia sido fundada na Espanha pouco tempo antes
de seu nascimento, no século XII. A Ordem Dominicana, também chamada Ordem
dos pregadores, pois o carisma próprio dos dominicanos é pregar, já estava presente
na Itália quando Tomás de Aquino nasceu.
Tomás de Aquino era um cristão cuja vocação específica era ser religioso. Para
compreendê-lo, precisamos entender algo essencial do cristianismo: desde seu
surgimento, o cristianismo identificou a verdade e a felicidade do ser humano com ver
Deus. Entretanto, enquanto estamos na Terra, não vamos vê-lo, mas apenas
conhecê-lo, tal como foi apresentado por Jesus Cristo. Isso ocorre porque o próprio
Jesus Cristo, de acordo com o cristianismo, é Deus feito homem, é Deus encarnado.
Jesus Cristo é uma só pessoa e duas naturezas. A pessoa se chama Jesus Cristo e
tem dois princípios de operação: um, humano - ele é perfeitamente homem -; outro,
divino, ele é perfeitamente Deus. Há, por exemplo, na teologia católica, uma disciplina
chamada cristologia, que estuda exclusivamente isto, a união hipostática das duas
naturezas, a humana e divina, em uma só pessoa, que é Jesus Cristo.
Assim, para que o homem conhecesse Deus, seria preciso que penetrasse em
três mistérios que foram revelados por Jesus Cristo e que estão consignados na
Bíblia, concretamente no Novo Testamento.
O primeiro é a unidade e a trindade de Deus. O mistério da Santíssima
Trindade. Quer dizer, Deus é uma só substância necessariamente consistente em
três pessoas. Deus tem um conhecimento tão perfeito de si mesmo que esse
conhecimento é igual a ele próprio. O conhecimento que Deus tem de si mesmo é o
Filho e quem se conhece é o Pai. E o Pai vê o Filho, o Filho vê o pai, e o amor
recíproco dos dois é tão intenso, tão perfeito, tão acabado, que é igual aos dois. É
uma terceira pessoa idêntica aos dois, mas uma terceira pessoa que é o Espírito
Santo. Uma só natureza, que se conhece, e se conhece a tal ponto que gera uma
pessoa igual, mas não outro ser, e essas duas pessoas se veem e se amam, por
causa da sua perfeição igual, e esse amor se concretiza em uma terceira pessoa.
Temos, aí, a figura do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Depois, o segundo mistério revelado por Jesus Cristo é justamente a
encarnação dessa segunda pessoa da Trindade, o Filho. Portanto, a encarnação do
Filho. O Filho encarnado se chama Jesus Cristo.
O terceiro mistério revelado pela Bíblia é que Deus encarnado, Deus feito
homem, sofreu uma paixão, um padecimento, seguido de uma morte ignominiosa na
cruz, e que depois de três dias ressuscitou. Então, a paixão, a morte e a ressurreição
de Jesus Cristo.
Diante disto, os pensadores cristãos passaram a estudar os filósofos pagãos,
sobretudo gregos, de uma maneira crítica, ou seja, procurando discernir os aspectos
da doutrina desses filósofos que se conciliava com a mensagem que Jesus Cristo
havia legado, de modo a que conseguissem explicá-la melhor. Entre a Antiguidade e
o início da Idade Média, Agostinho de Hipona foi o maior expoente desse
empreendimento intelectual.
Agostinho não chegou a desenvolver um tratado de ética único, científico, seja
do ponto de vista filosófico ou teológico, nos moldes de Platão e Aristóteles. Em vez
disso, Agostinho dissolveu o tema ético dentro do fenômeno da caridade. Ou seja, do
amor a Deus e do amor ao próximo por causa de Deus, a caritas. Aquelas quatro
principais virtudes cardeais que os filósofos pagãos tinham identificado como
necessárias para o alcance da felicidade - a prudência, a justiça, a fortaleza e a
temperança - passaram a ser entendidas, por Agostinho, como modos de amar Deus
e, consequentemente, amar as pessoas e amar o mundo. Os instrumentos para que
as pessoas conseguissem viver dessa maneira eram a lei divina, transmitida na Bíblia,
como os Dez Mandamentos, presentes no Antigo Testamento, e, depois, do resumo
que Jesus Cristo faz dele, que é amar Deus de todo coração, de todo entendimento,
com todas as forças, com toda alma, e ao próximo como a ti mesmo. Jesus afirma em
seguida que nisto consiste, que nisto se resume toda a lei e os profetas. Ou seja, todo
Antigo Testamento se resume nesta fórmula. Além da lei divina, para viver a caridade
dessa forma, um dos instrumentos era o auxílio constante ininterrupto que Deus,
segundo Agostinho, dá a cada um de nós, que é chamado de Graça Divina. Graça
pois é dado de Graça, gratis data, dada gratuitamente. A Graça Divina podia ser
obtida por nós através da oração, que é falar com Deus, e por meio dos sete
sacramentos, que Jesus Cristo instituiu e que legou aos apóstolos e,
consequentemente, a toda Igreja Cristã - o batismo; a crisma; a eucaristia; a
confissão; a unção dos enfermos; o matrimônio; a ordem -.
A influência cultural de Agostinho de Hipona foi predominante desde o século
IV d.C., quando vive, até o século XII d.C., ou seja, oito séculos. Oitocentos anos em
que o mundo intelectual foi agostiniano. Em meados do século XII, Padre Pedro
Lombardo estruturou a teologia cristã nas sentenças e o conteúdo dessas sentenças,
esse livro, era basicamente agostiniano. A seguir, vários autores fizeram também
tentativas de estruturar a doutrina cristã no formato de sentenças, no formato de
sumas de resumos.
No entanto, em dado momento, percebeu-se que a sistematização do Pedro
Lombardo era inigualável, era a melhor que havia, então, já no século XIII, no século
seguinte, começa-se a fazer comentários às sentenças deste. Tomás de Aquino foi
um dos indivíduos que fez comentários às tais sentenças de Pedro Lombardo, tendo,
inclusive, uma obra com esse título.
Entre 1246 e 1247, Guilherme de Moerbeke traduz a “Ética a Nicômaco” de
Aristóteles do grego para o latim. Este era a língua franca da época, a língua de
comunicação comum, tal como o inglês atualmente. A maioria dos teólogos cristãos
que tiveram acesso a essa tradução de Guilherme de Moerbeke considerou “Ética a
Nicômaco” incompatível com a teologia de Agostinho. A razão básica para isso é que
Aristóteles propunha e propugnava a aquisição de virtudes morais, aquelas quatro
virtudes cardeais, para que o homem atingisse a felicidade, somente em termos
estritamente humanos, estritamente temporais, e não em termos sobrenaturais, como
fazia Agostinho de Hipona.
Apesar disso, Tomás de Aquino, que nasce em 1224 ou 1225 e morre em 1274,
elaborou, dentro da teologia cristã, uma parte especificamente ético-filosófica. Há
uma certa discussão sobre isso. Alguns autores afirmam que Tomás de Aquino não
chegou a fazer filosofia moral nem dentro da sua teologia moral e há autores que
afirmam o contrário. Eu tendo a concordar com estes últimos, os quais apontam que
Tomás de Aquino fez uma filosofia moral dentro dos seus livros teológicos. Para fazer
essa parte especificamente ética, Tomás de Aquino adotou o enfoque da “Ética a
Nicômaco”, que era muito controversa. Nisto, Tomás de Aquino não possuía nenhum
predecessor ou contemporâneo. Além disso, não houve sucessores imediatos para
esta abordagem. Nem os autores do chamado neotomismo, dos séculos XIX e XX,
compreenderam, tal como Tomás de Aquino compreendeu, a centralidade das
virtudes na ética, que é o enfoque aristotélico. Os neotomistas seguiram as pegadas
de Francisco Suárez, que viveu entre os séculos XVI e XVII e fez parte da Escolástica
Tardia da Escola de Salamanca, na Espanha, e continuaram a conceber que o
elemento central da ética era a lei, sendo que as virtudes seriam apenas uma
facilitador para o cumprimento da lei. É como se a lei fosse o motor da vida moral do
ser humano e as virtudes fossem uma espécie de lubrificante deste motor, para que
este último não tivesse tantos trancos e não se sentisse muita dor, muita
contrariedade, ao se cumprir o que a lei mandava.
A reabilitação da ética tomista como ética das virtudes, que é o que se vê na
Suma de Teologia, por exemplo, começou nos anos 1960, ou seja, há muito pouco
tempo. Há nomes importantes a serem mencionados em relação a isso: Servais
Pinckaers; Alasdair MacIntyre; Martin Rhonheimer; Giuseppe Abbà; Elizabeth
Anscombe. Esses são vários filósofos, a exceção de Pinckaers, que era teólogo, os
quais trataram da ética de Tomás de Aquino como ética das virtudes.
O pensamento ético de Tomás de Aquino começa em suas primeiras obras.
No entanto, o formato final, definitivo, de seu pensamento ético está contido na “Suma
de Teologia” ou “Suma Teológica” - o certo seria a primeira, pois em latim é summa
theologiae, suma resumo de teologia. A “Suma de Teologia” está dividida em três
partes, dentre as quais a segunda apresenta duas seções. Na primeira seção da
segunda parte, Tomás de Aquino faz um tratado das virtudes em geral. Na segunda
seção da segunda parte, Tomás de Aquino faz um tratado das virtudes em particular,
longuíssimo, em que analisa várias virtudes.
Em decorrência de uma exposição desacertada do pensamento moral do
Tomás de Aquino, que foi elaborada por filósofos e teólogos a partir do século XVI, já
mencionamos o caso de Francisco Suárez, costuma-se atrelar a ética tomista ao
seguinte esquema: a moral consiste em que as pessoas cumpram a lei, seja a lei
humana, feita pelos homens, seja a lei natural, que é aquela que Deus incute na
essência do ser humano, seja a lei eterna, que é a lógica com que Deus governa toda
sua criação. E as virtudes teriam a função de tornar o cumprimento da lei mais fácil,
menos duro, mais estável, e, até certo ponto, agradável. Segundo esse entendimento
desacertado, o motor da ética seria a lei, a ordem, o dever - justamente o que dá
margem ao surgimento da ética do dever de Kant, posteriormente -, enquanto às
virtudes caberia o papel de mero lubrificante ou anestesia para o duro cumprimento
do dever, da lei. Contudo, não é isso que observamos na segunda parte da “Suma de
Teologia” de Tomás de Aquino.
Tomás de Aquino conheceu a “Ética a Nicômaco” quando tinha 20 anos. Ele
redigiu a segunda parte da “Suma de Teologia” apenas 17 anos mais tarde, aos 37
anos portanto. Na primeira seção da segunda parte da “Suma de Teologia”, na
questão 58, artigo 5, Tomás explica que qualquer espécie de lei - seja a lei eterna de
Deus, seja a lei natural, que é a participação do homem nessa lei eterna, seja a lei
humana, que deve estar de acordo com a lei natural - e todo juízo de aplicação da
lei, por parte da consciência humana, da consciência de cada um, é geral e teórico.
Assim, qualquer espécie de lei é geral e teórica e qualquer juízo de aplicação da lei é
geral e teórico também. De maneira que nenhuma lei e nenhum juízo de aplicação da
lei alcançam o caráter particular e prático de cada ação dos indivíduos. Tomás
continua explicitando que a lei e o juiz da nossa consciência podem ser pontos de
partida das nossas ações, mas entre a lei da nossa consciência, a lei natural, o juízo
da nossa consciência, e a nossa ação concreta, entre esses dois extremos, é preciso
que esteja de permeio a virtude da prudência, que é a sabedoria prática do indivíduo.
Essa virtude da prudência necessariamente tem de estar sustentada pelas virtudes
morais, que Aristóteles chamava de virtudes éticas, que são a justiça, a fortaleza e a
temperança. De maneira que nós, indivíduos, demos a ordem, para nós mesmos, e
imperemos, para nós mesmos, uma decisão, uma escolha, uma eleição, que
finalmente vai desembocar na nossa ação prática. Então, a ação prática conveniente
ao ser humano é aquela que escolhe a realização de um bem que conduz a pessoa
na direção do bem supremo que é Deus, de quem o ser humano deseja naturalmente,
segundo Tomás de Aquino, depois da sua morte, tomar contato, ver a sua intimidade.
Quem age habitualmente desse modo, vive aquilo que Tomás de Aquino denomina
“vida beata”, ou seja, a vida bem-aventurada, vida feliz. É o mesmo que vida boa, isto
é, a vida em que se procura praticar o bem. Contudo, a vida feliz nunca será completa
no curso temporal da existência de uma pessoa, mas tão somente, segundo a
doutrina cristã compartilhada por Tomás de Aquino, na eternidade. De maneira que
só nesse estágio é que o ser humano poderá tomar posse de Deus, poderá tomar
posse do bem supremo pelo qual ele tanto anseia.
Portanto, para Tomás, a posse de Deus, a visão de Deus, é a visão beatífica,
a beatitude, ou seja, a felicidade completa, a qual Aristóteles chamava Eudaimonia.
Para o Aristóteles, a estrutura da psique humana exigia que existisse um estágio em
que nós, seres humanos, nos tornássemos plenamente felizes. Aristóteles era
consciente de que esse estágio não se encontrava nessa vida temporal. No entanto,
como não teve contato com a revelação judaico-cristã, Aristóteles não pode dizer o
que Tomás de Aquino acabou afirmando: que a felicidade completa ocorre somente
na eternidade mediante a visão da intimidade divina.
Tomás afirma que o ser humano tem a capacidade natural de felicidade. Ele
está inclinado, por natureza, a ser feliz. Mas, ao mesmo tempo, está despreparado
naturalmente para alcançar essa felicidade. Esse é um grande paradoxo da existência
humana: desejamos naturalmente a felicidade, mas estamos despreparados
naturalmente para conquistá-la. O ser humano quer ser feliz, porque está dotado de
uma lei moral, natural, que aponta nesse sentido da felicidade. Essa lei natural é uma
participação na lei eterna, ou seja, na razão lógica com a qual Deus governa toda sua
criação. Porém, uma vez que afetividade do ser humano se dirige desordenadamente
a vários objetos, a várias realidades da vida, a razão do ser humano fica influenciada
por esse diversionismo, e não consegue discernir quais objetos são aparentemente
verdadeiros e quais são aqueles que são autenticamente verdadeiros, ou seja,
aqueles que condizem, de fato, com o desejo natural de felicidade. Deste modo, a
razão humana muitas vezes acaba por chamar bens falsos, que são verdadeiros
somente em aparência, de objetos autenticamente verdadeiros. Essa informação é
transmitida à vontade do indivíduo, que vai considerar como um bem algo que é mau,
por não se adequar ao desejo natural de felicidade. E com esse bem aparente em
vista, que, na verdade, é um mau, a vontade vai mobilizar os afetos e a razão e o ser
humano vai compor uma ação para possuir esse bem aparente que na verdade é um
mau. Assim, os indivíduos conseguem chamar de bom algo que é mau.
Por causa dessa defasagem ontológica entre esse desejo natural de felicidade
e esse despreparo também natural de alcançar essa felicidade, é que Tomás de
Aquino vê como solução a aquisição de hábitos que aperfeiçoem a nossa razão, a
nossa vontade e as nossas paixões, ou seja, Tomás de Aquino vê a necessidade da
aquisição das virtudes, virtudes que advém do latim vis, que significa força. Forças
morais, forças éticas, forças do caráter, isso compensaria essa defasagem ontológica,
existencial, do desejo natural de felicidade e o despreparo natural de alcançá-la. As
virtudes possibilitam que a razão humana discirna aos poucos, ao longo de toda a
sua vida, os objetos, as realidades, autenticamente verdadeiras. As virtudes permitem
que os nossos sentimentos, as nossas paixões, desejem esses objetos verdadeiros
e que a nossa vontade queira esses objetos verdadeiros, para que essa vontade
mobilize as paixões e a razão a comporem ações que se destinem à posse de bens
verdadeiros. Deste modo, em Tomás de Aquino, as virtudes não são lubrificantes de
um motor chamado lei. Na verdade, as virtudes é que são o motor da vida moral. A
lei é um recordatório, é uma lembrança, de como se deve agir. No entanto, o que faz
com que o indivíduo entenda qual é a regra, aqui e agora, para o que pretende fazer
é proporcionada pela virtude, não pela lei. A lei pode recordar em um momento de
confusão, de cansaço, o que se pode ou não fazer. O que fornece uma lei
particularizada para as circunstâncias individuais é a virtude. Voltemos àquele
exemplo que conjecturamos anteriormente, em que um indivíduo está assentado à
mesa, satisfeito, e se sente atraído a comer um doce que está à sua disposição, por
gula. Para deixar de comê-lo, o indivíduo sai da mesa. A lei “saia da mesa” é dada
pela virtude da temperança associada à virtude da prudência, esta que estabelece o
caminho, o meio para não comer o doce. A consciência individual afirmava para
fazermos o bem e evitarmos o mal. A lei de Deus afirma para usar bem das coisas do
mundo, sem cometer abusos de nenhum tipo, etc... No entanto, a regra do ato
concreto somente pode ser dada pela virtude. Então, se seguirmos o esquema
proposto por Tomás de Aquino, de nada adianta sermos conhecedores da lei eterna,
dos princípios da lei natural e da lei humana, se não temos virtudes. Quer dizer, ser
conhecedor de tais leis pode ser bom do ponto de vista da erudição, intelectualmente
falando, mas se queremos ser pessoas melhores, making men moral, como dizia o
título do livro Robert P. George, precisamos de virtudes, porque é a virtude que dá a
regra para o aqui e agora. As leis não são capazes disso. É, portanto, inviável que um
indivíduo escolha o bem de forma habitual sem as virtudes. Sem virtudes, os
indivíduos não conseguem escolher o bem de maneira continuada, somente de
maneira esporádica. Assim, percebemos que na explicação tomista, a posse das
virtudes é aquilo que permite que vivamos de acordo com essa lei natural que, de
acordo com Tomás de Aquino, portamos em nosso interior e, consequentemente,
permite que participemos de forma mais plena e perfeita na lei eterna de Deus.
As virtudes são adquiridas através da repetição reiterada de atos e da reflexão
continuada acerca da bondade desses atos. É preciso distinguir duas coisas: atos e
hábitos. Um ato é uma ação. Um hábito é uma tendência que essas ações geram na
estrutura psíquica do indivíduo. A repetição de atos moralmente desacertados gera
um hábito chamado vício. Por outro lado, a repetição reiterada de atos moralmente
acertados gera um hábito chamado virtude. Normalmente, as pessoas opõem o
pecado à virtude, mas o pecado é um ato moralmente desacertado. O que se opõe a
uma virtude é um vício sempre. O que se opõe à virtude da justiça não é um ato de
injustiça isolado, o problema é a reiteração dos atos de injustiça é possível perder o
hábito positivo da justiça, dessa virtude, e transformá-lo em um hábito negativo, de
injustiça. Por exemplo, digamos que uma pessoa sempre diz a verdade e começa a
mentir esporadicamente. Com o tempo, essa pessoa se acostuma com isso, pois sua
vida vai se tornando mais fácil, uma vez que se sente mais livre, aparentemente, e
consegue fazer mais coisas. Depois de um tempo, essa pessoa pode chegar a perder
o hábito da veracidade e adquirir o vício da mentira, da falsidade, através de atos de
mentira, de atos de falsidade.
Para que adquirir as virtudes, além da repetição reiterada, é preciso que haja
uma reflexão dos indivíduos acerca de como é bom viver dessa forma, porque, na
ausência dessa reflexão, não se trata de uma ética humana, não é uma ética de seres
racionais, de seres que vão procurar também fazer com que seus sentimentos adiram
a certos padrões de conduta, mas será simplesmente uma ética robótica, justamente
uma ética de servos, de escravos. A ética de servos não é a proposta de Tomás de
Aquino.
Inevitavelmente, o indivíduo que procura adquirir virtudes vai procurar saber
quais são as fontes motivadoras das ações das pessoas prudentes. Nessa busca,
esse indivíduo vai descobrir valores, princípios e regras de índole muito diversa, seja
religiosa, seja legislativa, seja histórica seja literária, etc.. É importante destacar que
as leis e regras que podem inspirar e que normalmente inspiram o processo de
aquisição das virtudes não são capazes de fazer com que realizemos atos bons de
maneira particularizada, mas apenas que tenhamos princípios gerais e universais de
boa conduta. Regras particularizadas para o aqui e agora, novamente, somente as
virtudes proporcionam.
A virtude da prudência sempre depende da justiça, da fortaleza e da
temperança. É interessante que a melhor análise feita acerca da virtude da prudência
até hoje é a que está presente na “Suma de Teologia”, elaborada por Tomás de
Aquino. Tomás de Aquino afirma que a prudência tem oito partes, as quais estão para
a prudência assim como os alicerces, as paredes e o teto estão para uma casa. Não
existe uma casa sem alicerce, sem paredes e sem teto. Tomás de Aquino diz que,
analogamente, não existe a prudência sem alguma dessas oito partes. Essas oito
partes são:
1) a memória;
2) a inteligência dos primeiros princípios da razão prática;
3) a docilidade, que é capacidade de aprender dos outros;
4) a sagacidade, que é a capacidade de pensar com rapidez acerca do
mais adequado a ser feito no momento;
5) o raciocínio lógico, que faz com que os indivíduos liguem os princípios
gerais da ação à situação na qual se encontra naquele momento em
que tenha que decidir;
6) a previsão, daquilo que possa resultar de nossas ações
7) a circunspecção, que é ter presentes todas as circunstâncias relevantes
no momento em que o indivíduo vai agir;
8) a precaução, que é o indivíduo perguntar-se algumas vezes se esta é
mesmo a maneira para evitar os erros.
Essas são as oito partes da prudência, sem as quais a prudência não existe.
A prudência também não existe sem não houver as outras três virtudes: a justiça, a
fortaleza e a temperança. Essas três virtudes, por sua vez, têm virtudes anexas que
as fortalecem e, muitas vezes, são também condições de sua existência.
As leis e regras são condições necessárias para a aquisição individual das
virtudes, porque elas ilustram a inteligência dos indivíduos com prescrições genéricas
de ações virtuosas e com proibições genéricas de ações viciosas. Por exemplo: salve
a vida das pessoas ou não tire a vida das pessoas. Isso é muito genérico. Digamos
que o indivíduo é um médico e tem uma paciente gestante que teve uma gravidez
ectópica, uma gravidez tubária, nas trompas de falópio. O médico está ciente de que
aquele embrião não irá prosperar, que ele está em crescimento e que, caso cresça
demasiadamente, provocará uma hemorragia fatal para a gestante. Então, em que
momento esse médico intervém sem deixar que a gestante morra e sem matar o
embrião diretamente? O protocolo médico afirma que, passadas tantas horas, se o
embrião não morrer espontaneamente, deve ser feita uma intervenção cirúrgica com
a intenção de salvar a vida da mulher. Não por considerar que a vida da gestante vale
mais do que a vida do filho, pois ambas valem da mesma forma, tem a mesma
dignidade, mas porque se a intervenção cirúrgica não for feita, a gestante irá falecer.
Consequentemente, morre o embrião, mas o embrião não é morto pelo médico. Há
um matiz de diferença. Ainda que se pudesse fazer isso em outro momento e isso
configura-se a intenção de matar o embrião para salvar a mulher, quando se faz no
momento adequado, de salvar a mulher, a consequência de morrer o embrião não
qualifica a ação como homicídio. É a intenção de salvar a vida da mãe que qualifica
a ação do médico. Muitas vezes, essa é uma situação complicada, uma situação
difícil, como saber fazer isso naquele momento. Só a virtude é que pode dar a regra
para isso. As situações são muito variadas. Então é a virtude que os indivíduos
adquirem que pode dar a regra para esses tipos de situação.
Em cada situação específica em que os indivíduos devem decidir que ação
realizar, é que estes são empurrados pela virtude a optar por uma ação boa
justamente por causa da presença dessas virtudes. São as virtudes que vão estipular
a finalidade boa para a ação individual e irão detalhar, irão particularizar, irão compor,
com eficácia, o passo a passo dessa ação boa, graças à virtude da prudência. Uma
vez adquiridas essas virtudes, consolidadas, e até mesmo quando se encontram em
processo de crescimento dentro de nós, essas virtudes têm como efeito tornar o ser
humano apaixonado pelo bem, de modo que a prática do mal se torna dificultosa para
ele. Na verdade, a ética de Tomás de Aquino, quando observada detalhadamente, é
a ética do amor pelo bem, mas não pelo bem genérico e impessoal. Pelo contexto
cristão em que Tomás de Aquino está inserido, é amor pelo sumo bem, é amor por
Deus. E amor pelo bem dos outros seres humanos, porque a sua existência é querida
por Deus. É dar-se conta disso que faz com que os indivíduos adquiram as virtudes.
Então, é uma ética movida pelo amor.
Há um detalhe. A vontade humana, a liberdade dos indivíduos, que é sua
capacidade de se autodeterminar, nunca deixa de ser livre para escolher o mal.
Segundo Tomás de Aquino, ainda que o indivíduo seja altamente virtuoso, continua
sendo livre para escolher o mal. Quer dizer, exceto a pessoa que já chegou à vida
eterna, ao céu. Essa não tem mais como escolher o mal porque não consegue.
Simplesmente vê o sumo bem na sua frente e não consegue optar por outra coisa a
não ser aquilo. De modo que os seres humanos, segundo Tomás de Aquino, podem
perder nesta vida todas as virtudes que tenham conquistado. Esse é um grande
drama da vida humana. Neste ponto é que Tomás de Aquino afirma que além das
fontes naturais que motivam a perseverança na vida virtuosa, também é necessário
que o indivíduo recorra a outra fonte motivadora só que não de natureza natural, mas
sim de natureza sobrenatural, que é o próprio Deus. Ou seja, que a pessoa recorra a
Deus para que ele preserve suas virtudes e, mais do que isso, faça-as aumentar.
Neste sentido, para permanecer na escolha do bem, o ser humano tem necessidade
de se empenhar em seguir a lei divina revelada, os dez mandamentos, o decálogo,
os conselhos de Jesus Cristo, basicamente, e de pedir a Deus sempre que infunda
nas suas potências anímicas, na sua razão, na sua vontade e na sua afetividade, um
estímulo suplementar, normalmente denominado Graça Divina. Tomás de Aquino faz
referência, quando fala desse ponto da Graça Divina, à última obra escrita por
Agostinho de Hipona, a qual se chama “O Dom da Perseverança”. Agostinho, em
resposta a algumas pessoas que lhe fizeram uma consulta, afirmou que o dom da fé,
começar a acreditar em Deus, pode ser dado a uma pessoa por Deus, ainda que essa
pessoa não a peça a Deus. Só que o dom da perseverança no bem, esse dom Deus
só dá quando a pessoa o pede a ele. Agostinho fala da necessidade da oração de
petição ou da oração de súplica a Deus, para que ele faça com que as virtudes
permaneçam e cresçam nas potências anímicas, nas faculdades da psique, daquela
pessoa. Isso é corroborado e reafirmado por Tomás de Aquino. Muitas pessoas que
tem fé dizem que nunca oram por si, mas oram pelos outros. Se seguíssemos a lógica
de Tomás de Aquino, precisaríamos afirmar a essa pessoa que podemos
perfeitamente orar ou rezar pelos outros, mas, em primeiro lugar, por nós mesmos.
Do ponto de vista da estrutura ética proposta por Tomás de Aquino, em primeiro lugar,
é preciso pedir a Deus por si mesmo, pedir para que consiga ser melhor cada vez
mais, porque se não for com a graça divina, segundo a estrutura tomista, os indivíduos
não conseguem dar continuidade a essa vida boa, a essa vida virtuosa.
Com isso, finalizamos a primeira corrente da ética, a ética das virtudes, falando
de São Tomás de Aquino.

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