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Yves de La Taille
Universidade de São Paulo – Brasil
Resumo
O presente artigo visa avaliar as contribuições da Psicologia Moral para o estudo da violência.
Começamos por estabelecer as relações entre a moral, a ética e a violência. Em seguida, apresentamos
o modelo teórico que nós adotamos, e que leva o nome de “construção da personalidade ética”.
Prosseguimos fazendo uma revisão das teorias psicológicas que visam explicar o fenômeno da
violência. Finalmente, defendemos a hipótese segundo a qual a violência pode ser consequência da
ausência de limites morais que a coibiriam ou decorrência da construção da identidade do sujeito,
sendo, nesse caso, a violência valor social.
Palavras-chave: Moral, Ética, Violência, Psicologia moral.
Abstract
This article aims at evaluating the contributions of moral psychology to the study of violence. We first
establish the relationship between morality, ethics and violence. Next, we present the theoretical model
adopted, which bears the name of 'construction of ethic personality'. We continue by carrying out a
review of psychological theories devoted to explain the phenomenon of violence. Finally, we support
the hypothesis that violence may result from lack of moral boundaries to inhibit it, or from the identity
construction of the subject for which violence is a social value.
Keywords: Morality, Ethics, Violence, Moral psychology.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo evaluar las contribuciones de la psicología moral para el estudio de la
violencia. En primer lugar, establecer la relación entre la mora, la ética y la violencia. A continuación,
presentamos el modelo teórico que hemos adoptado, y que lleva el nombre de ‘la construcción de la
personalidad ética’. Seguimos haciendo una revisión de las teorías psicológicas que tratan de explicar
el fenómeno de la violencia. Por último, apoyamos la hipótesis de que la violencia puede ser debido a
la falta de límites morales que inhiben, o debido a la construcción de la identidad del sujeto, en cuyo
caso, la violencia és valor social.
Palabras clave: La moral, La ética, La violencia, La psicología moral.
______________________________________
Endereço para correspondência: Yves de La Taille. Avenida Professor Mello Moraes, 1721. Cep 05508-900. São
Paulo, S.P. E-mail: ytaille@uol.com.br
330 La Taille, Y. de
com inúmeras pessoas, sejam elas cientistas ou certeza de que os conhecimentos de Psicologia
não. Com efeito, o fenômeno da violência e, Moral possam ser úteis para entender a
consequentemente, da segurança, tem sido alvo violência leva-nos a querer dar nossa
de debates na mídia, na política, na educação, contribuição para compreender este fenômeno
na sociologia etc., e isso não somente no Brasil, de consequências nefastas para o cotidiano.
como no mundo ocidental como um todo. Como escreve Michaud (2002):
Vivemos numa época mais violenta do que
A característica comum é que todas
outras? Somente estatísticas podem responder a
as incivilidades colocam em xeque o
essa pergunta, e há polêmicas a respeito.
direito do indivíduo de viver
Ficamos com o diagnóstico de Sérgio Adorno
tranquilamente e em segurança, e a
(2000): “Não obstante os avanços democráticos
possibilidade que ele tem de confiar em
e as profundas modificações pelas quais a
outrem nas suas relações sociais. A
sociedade brasileira tem passado nos últimos
consequência é um sentimento de
quinze anos, o regime democrático coincide
insegurança que destrói
com a ocorrência de uma verdadeira explosão
progressivamente (e cada vez mais
da violência no seio da sociedade” ( p. 98 – ver
rapidamente à medida que as agressões
também Touraine, 2000). Logo, não nos parece
se sucedem) o vínculo social, não no
errado dizer que a violência é tema atual, um
sentido abstrato dos teóricos da política,
fenômeno que tem sido pouco influenciado
mas no sentido muito concreto das
pelas ações políticas até hoje implementadas
relações com as outras pessoas. ( p.78)
(pelo menos no sentido da sua diminuição),
talvez porque ele ainda seja mal conhecido, Ora, como o afirma Mucchielli (1986) em
sobretudo no que tange a suas dimensões seu importante livro Comment ils deviennent
psicológicas (Karli, 1987). délinquants, “é preciso situá-la (a delinquência)
Em segundo lugar, na verdade, no seu verdadeiro plano: o plano moral” (p.
complementar ao primeiro, a escolha por este 117).
tema de reflexão foi desencadeada e inspirada Isto posto, o presente texto será divido em
pelas demandas que várias instituições duas partes. Na primeira, trataremos de definir
educacionais têm nos feito nos últimos anos, o que entenderemos por violência, e
qual seja, a de tratar de limites, de indisciplina, analisaremos a relação desta com a moral e a
de incivilidades. Com efeito, se instituições de ética. Na segunda, falaremos das dimensões
ensino chamam especialistas para falar de psicológicas da violência, notadamente no que
Psicologia Moral, não é tanto para obter tange os aspectos relacionados a juízo e
subsídios para a confecção de programas de sentimentos morais e éticos.
educação moral, mas principalmente para
procurar equacionar e compreender um
fenômeno cada vez mais presente na sala de Parte 1: violência, moral e ética
aula, e que se traduz por conflitos incessantes Vamos começar por definir violência para,
entre professores e alunos, entre os alunos eles em seguida, relacioná-la à moral e a ética.
próprios. Expressões como ausência de limites, Consultados os dicionários Nouveau
indisciplina e incivilidade remetem, direta ou Larousse Universel (1988) e Aurélio (1999),
indiretamente, ao tema da violência. Note-se verificamos que um elemento presente nas
que reflexões sobre violência e o cotidiano definições de violência é a coação, ou seja, o
escolar correspondem atualmente a uma área de uso da força para constranger, física ou
estudo específica (Sposito, 2001; Debardieux, psicologicamente, uma pessoa ou um grupo de
2001; Laterman, 2000). pessoas. A violência, portanto, implica a
Em terceiro lugar, se pretendemos dimensão do poder (entendido como correlação
socializar reflexões sobre as dimensões de forças) e a privação, momentânea ou perene,
psicológicas da violência, é que este fenômeno do exercício da liberdade por parte da pessoa
humano não é apenas, e nem essencialmente, violentada. Dessa forma, cabem bem na
objeto de preocupação contemporânea, mas categoria violência atos como o estupro, o
fenômeno universal, objeto, há longo tempo, de roubo, o assassinato, o ferir fisicamente, a
reflexões filosóficas, sociológicas, e humilhação, entre outras ações. Nestes
psicológicas. exemplos, há correlação de força favorável a
Finalmente, o fato de termos a absoluta quem pratica a violência, e um constrangimento
Moralidade e violência 331
que priva a vítima da liberdade de agir como exemplo, não cumprimentar alguém não
pretenderia (não manter relação sexual, guardar implica coagi-lo. Consequentemente, tampouco
o patrimônio, viver, gozar de integridade física se acha, no fenômeno da incivilidade, a
e psicológica 1 ). Mas tudo não está ainda dito, dimensão da liberdade. Com efeito, não
notadamente se quisermos relacionar violência cumprimentar alguém, ou falar-lhe de modo
com moral. Falta pensar numa dimensão grosseiro, não implica obrigá-lo a agir contra a
essencial: o benefício ou o prejuízo que pode vontade. Logo, tudo leva a crer que violência e
ter a pessoa constrangida pela força. Nos incivilidade são dois fenômenos totalmente
exemplos que acabamos de dar, fica claro o distintos. Mas aceitar esta dissociação levaria a
prejuízo sofrido pela vítima. Mas imaginemos não perceber um elemento moral importante em
outro: o de uma mãe que obriga seu filho, comum: o desrespeito para com outrem. Ora, é
renitente, a comer frutas. Trata-se de uma justamente no plano da avaliação moral que se
correlação de força e da privação de liberdade. pode afirmar que a incivilidade é uma forma de
Logo, trata-se de um ato de violência, no violência. Vamos ver por que razão.
sentido primeiro da palavra. Todavia, fica claro Antes de mais nada, vamos esclarecer o
que a vítima será a primeira a beneficiar-se, do que entendemos por moral e por ética, que não
ponto de vista de sua saúde, da coação a que é serão, para nós, sinônimos, embora
submetida. Vê-se de imediato a importância complementares (Comte-Sponville, 1998;
deste ponto para o juízo moral: é ato Ricoeur, 1990; Tugendhat, 1993a; La Taille,
moralmente condenável a humilhação, mas não 2006a). Por moral, entendemos, do ponto de
o é o ato coercitivo com clara finalidade vista formal, um conjunto de condutas
educacional 2 . Logo, da perspectiva moral, consideradas como obrigatórias, portanto, como
haveremos de discutir a legitimidade, ou não, deveres (negativos e positivos). Reconhece-se
da ação violência. nesta definição o imperativo categórico
Posto que não raras vezes, sobretudo no kantiano (Kant,1785/1994). Do ponto de vista
campo educacional, ao lado da violência, fala- do conteúdo, a obrigatoriedade das condutas
se em incivilidade, vale a pena verificar se tal deriva do reconhecimento dos direitos alheios e
incivilidade é uma subcategoria da violência, da dignidade inerente a todo ser humano. A
ou se corresponde a um outro fenômeno. pergunta da moral é, portanto, como devo
Consultando os dicionários já citados, notamos agir?. A pergunta referente ao que chamaremos
que a civilidade tem como sinônimo a polidez. de ética é outra: que vida eu quero viver?.
A definição dada pelo Lexis é a mais Logo, a ética remete à vida boa, à felicidade, ao
esclarecedora: “conjunto de formalidades sentido da vida. Enquanto a moral é
observadas entre si pelos cidadãos, em sinal de deontológica, a ética é teleológica. Falta dizer
respeito mútuo e consideração; polidez, que, para merecerem o nome de éticas, as
urbanidade, delicadeza, cortesia”. Assim respostas a respeito da vida boa devem
definida civilidade, é claro que toda violência é necessariamente incluir outrem, portanto serem
prova de incivilidade. Porém, a recíproca não é pensadas do ponto de vista da articulação do
verdadeira, porque, na incivilidade, o emprego individual e do coletivo. Se as decisões
da força não está necessariamente presente. Por referentes à realização de uma vida boa não
contemplarem a inclusão de outrem, diremos
1
Pode-se discutir se a possível aceitação ou que não são éticas, mas que são tomadas no
cumplicidade da vítima em relação às violências a plano ético (aprofundamos essa tese no livro
que é submetida ainda configura uma relação Moral e Ética: dimensões intelectuais e
violenta. Não vamos entrar neste debate. Limitando- afetivas, La Taille, 2006a).
nos aos casos em que a vítima não deseja, de forma Isto posto, pode-se discutir se moral e
alguma, o constrangimento por que passa.
2 ética, assim definidas, representam dois
De certa maneira, pode-se dizer que o ato
sistemas de valor independentes, se um engloba
educacional, aquele que civiliza, é violento porque
não raramente começa por contrariar desejos dos
o outro, ou se são complementares. Do ponto
educandos. Mas devemos acrescentar que, mesmo de vista filosófico, optamos pelas análises que
em benefício da pessoa que sofre violência, esta tem afirmam se não a complementaridade dos dois
limites claros, do contrário, perde legitimidade. No sistemas, pelo menos a indissociabilidade de
exemplo dado acima, uma mãe pode obrigar o filho ambos (Tugendhat, 1993b; MacIntyre, 1997;
a comer frutas, mas tal não a autoriza a espancá-lo Comte-Sponville, 1998; Ricoeur, 1990). E do
ou humilhá-lo para alcançar o referido fim. ponto de vista psicológico, que apresentaremos
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mais adiante, tal indissociabilidade também se à pergunta que vida eu quero viver?.
verifica se adotamos a perspectiva teórica da Comentamos que, para merecer o nome de
personalidade ética ( La Taille, 2002b, 2006). ética, as respostas devem levar em conta a
Comecemos então por pensar a violência e coletividade, logo, serem coerentes com a
a incivilidade no plano moral. Deixamos acima moral. A violência, por conseguinte, não pode
um ponto em suspenso, o da legitimidade da ser ética se não legitimada pela moral. É por
violência, entendida como emprego da força esta razão que falamos de plano ético, e não
para coagir alguém. Vimos que certos atos ética, para pensar a violência. Duas relações
educativos podem ser descritos como atos de entre o referido plano e a violência podem ser
violência, mas legítimos, enquanto uma destacadas.
humilhação, também forma de violência, não Numa primeira, a violência comparece
goza de tal legitimidade 3 . O critério é como meio para a realização de projetos de
naturalmente moral: no primeiro caso, há vida. Por exemplo, se para determinada pessoa,
respeito, intenção generosa, reconhecimento de ter sucesso e dinheiro representa o essencial da
um direito; no segundo, há desrespeito, felicidade, poderá acontecer de ela ter recurso à
intenção egoísta e negação de um direito. No violência para realizar seus planos. Logo, no
primeiro caso, há o reconhecimento da plano ético, que corresponde a um sistema de
dignidade de outrem, reconhecimento este que valores a respeito do que é a vida boa, a
não existe no segundo. Podemos, portanto, no violência pode ser pensada enquanto estratégia.
plano moral, nos inspirar no imperativo Do ponto de vista de pesquisas psicológicas
categórico kantiano e definir violência como sobre os comportamentos violentos, o plano
um ato que coloca outrem como meio e não ético é de fundamental importância. Com
como fim. A violência traduz um uso efeito, dependendo do que um indivíduo
instrumental de outrem, uma negação de seu escolhe ser o seu ideal de uma vida bem
estatuto de sujeito. sucedida (Ferry, 2002), ele poderá fazer mais
Assim definida a violência, verifica-se que ou menos uso da violência, ou nunca fazê-lo.
a incivilidade pode, apesar das diferenças já Uma segunda relação entre o plano ético e
assinaladas, ser considerada como forma de a violência pode ser feita se considerarmos que
violência psicológica. Com efeito, os atos a pergunta que vida eu quero viver? implica
intencionais de incivilidade (falamos em outra: quem eu quero ser? (La Taille, 2006a). O
intenção para excluir possíveis formas de plano ético está, portanto, intimamente
grosseria devidas apenas a uma ignorância dos relacionado à construção identitária, à procura
chamados bons costumes) traduzem a vontade da afirmação de si. Ora, a violência pode
de negar, em outrem, o estatuto de sujeito, de comparecer neste nível. Neste caso, a pessoa
ferir sua dignidade. É por esta razão, aliás, que terá orgulho de se ver como violenta e
a vítima de incivilidade quase sempre se sente vergonha de se pensar como pacífica. Um
agredida, como se fosse objeto de violência. As destaque talvez deva ser feito para a virtude
incivilidades podem ser mais leves do que as coragem. Como ela se define como superação
formas reconhecidas de violência: trata-se de do medo, e é frequentemente associada ao
uma questão de grau. Porém, leves ou não, enfrentamento de outrem, pessoas poderão ver
traduzem um ato de desrespeito, e nisto, são a si próprias e valorizar-se como corajosas,
comparáveis aos atos violentos. Eis o que se realizando atos de agressão.
pode falar da relação entre violência e moral. Antes de passarmos à análise psicológica
Vejamos agora o que se pode dizer no da violência, resumamos o que até agora foi
plano ético. apresentado:
Lembremos que o plano ético corresponde 1. No plano moral, está em jogo a
legitimação da violência. Esta levanta um
3
problema moral quando traduz uma forma de
Notemos que Greimas e Fontanille (Sémiotique desrespeito, logo quando traduz uma ação sobre
des passions, 1991) falam em “humilhação
outrem na qual este é visto apenas como meio,
pedagógica” para se referir à estratégia didática que
consiste em negar o que o aluno por ventura já saiba
e não como fim em si mesmo.
a respeito de determinada matéria. Aceita esta 2. No plano ético, a violência deve ser
qualificação, a humilhação nem sempre pode ser pensada, seja como meio para realização de
condenada moralmente, uma vez que o fim da ação projetos de vida, seja como expressão de um
didática é o próprio aluno. traço de caráter valorizado.
Moralidade e violência 333
Decorre do que escrevemos até agora que eventualmente ele visa preservar ou
o fenômeno da violência pode ser estudado, do modificar. (p.30)
ponto de vista psicológico, por intermédio do
Não deixa de ser interessante notar que é
que sabemos sobre as dimensões intelectuais e
justamente no campo de biologia que a tese do
afetivas das ações morais e das escolhas éticas.
instinto agressivo é abandonada, assim como
foram abandonadas referências a disposições
genéticas para a violência (a famosa hipótese
Parte 2: dimensões psicológicas da
do cromossomo XYY, o cromossomo
violência assassino). 4 Pelo lado da Psicanálise, Costa
A revisão bibliográfica que fizemos das (1984) também constata que falar em violência
análises psicológicas da violência nos mostra como instinto ou como condição de
um campo bastante disperso, no qual múltiplas possibilidade natural do existir humano não
variáveis são apontadas. Para não nos somente pouco ajuda para compreender o
limitarmos a um mero elenco de afirmações fenômeno, como o banaliza.
teóricas, resolvemos eleger alguns temas gerais Então, que fatores podem ser evocados?
em torno dos quais têm girado os debates. Quatro grandes conjuntos deles se destacam em
Comecemos por aquele que talvez seja o nossa revisão: o contexto, a inteligência, a
mais importante, e que pode ser apresentado afetividade e a moral.
por intermédio de uma pergunta: a Devemos a Milgram (1974) a tese segundo
agressividade (uma dimensão psicológica da a qual o homem é um animal obediente,
violência) corresponde a um instinto animal e portanto dependente de variadas formas de
humano, ou a uma estratégia para se alcançar autoridade. Tal tese tem antecedentes na
determinados fins, estratégia esta escolhida em clássica teoria de Gustave Le Bon (1895/1983),
razão de determinados traços de personalidade que afirma que o homem não se comporta da
construídos durante a vida do indivíduo? Como mesma forma quando sozinho e quando em
se sabe, Lorenz (1969) e Freud (1929/1971) grupo. Quando em grupo, costumaria
optaram pela primeira alternativa, enquanto as apresentar comportamentos mais grosseiros e
abordagens inspiradas do interacionismo (ou primitivos, entre os quais, os comportamentos
construtivismo) optam pela segunda (Karli, violentos. Esta ideia foi retomada por Freud
1987; Mucchhielli, 1986). Quanto a nós, (1921/1991) em seu Psychologie des Masses et
concordamos com Karli, um neurobiólogo, Analyse du Moi, e, depois, por Moscovici
quando afirma que a hipótese do instinto (1981) em seu L’Age des Foules. Milgram
agressivo não somente é reducionista como nos concorda com esta tese, dando ênfase à
impede de perceber que os atos violentos irremediável heteronomia do homem em
costumam ter variadas causas e não serem relação à autoridade. Seus clássicos
expressão de uma suposta natureza humana. experimentos demonstraram que por volta de
Escreve ele: 70% dos indivíduos pesquisados agridem seus
semelhantes (alguns de forma extremamente
Interrogar-se sobre os motivos que levam violenta, ministrando-lhes choques elétricos
um indivíduo, confrontado a uma letais) se assim comandados por uma pessoa
determinada situação, a empregar certo prestigiosa para eles. Algumas variantes de
comportamento, consiste – para o seus experimentos mostraram que, sem a
neurobiólogo - a fazer o inventário do presença da autoridade, seus comportamentos
conjunto dos fatores que contribuem a agressivos diminuem significativamente. Em
determinar a probabilidade do emprego resumo, segundo esta abordagem, o
de uma estratégia dada, e a analisar os comportamento violento não deve ser explicado
mecanismos cerebrais por intermédio dos por fatores individuais, mas sim por fatores de
quais esses fatores agem. Esses fatores contexto. Dito de outra forma, qualquer pessoa
são numerosos e diversos, pois remetem pode, se assim o contexto o favorecer (com
a uma personalidade formada por tudo destaque para as grandes concentrações de
que viveu, a uma situação que faz parte
de um contexto sócio-cultural, e à
relação individual que se estabeleceu 4
Tampouco parece haver relação entre
entre eles, relação esta que o características hormonais e tendência para a
comportamento exprime e que agressividade (Karli, 1987).
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Apareceu muito claramente que os dois plano que chamamos ético: é uma certa ideia do
principais determinantes (da conduta que seja a vida boa que pode nos levar a
agressiva posterior) eram constituídos legitimar a violência como meio de alcançá-la
por atitudes da mãe em relação a seu ou preservá-la. Outro fator de contexto
filho: de um lado, sua atitude ‘negativa’, sublinhado por Karli é pura e simplesmente a
feita de frieza e de indiferença, ou valorização da violência enquanto meio e da
traduzindo-se por uma clara hostilidade e pessoa enquanto violenta: “Nos lugares onde as
rejeição da criança; e por outro lado, sua condutas agressivas são toleradas, até
atitude permissiva que tolera na criança encorajadas, elas caminham junto a uma
todas as suas agressões, que não se desvalorização sistemática do adversário,
esforça em controlá-las e em ensinar à desvalorização esta que nega um limite e
criança controlar-se. (p.222) facilita a agressão” (p. 245). Referindo-se à
televisão, o autor nota que “a linguagem
Acrescenta ele que o fato de sofrer empregada (sobretudo pelas propagandas)
agressões durante a infância aumenta a transmite a idéia de que a agressividade, quem
probabilidade de ser, mais tarde, uma pessoa sabe até a maldade, são sinais de ‘virilidade’ e
violenta. Embora nem Mucchielli, e nem Karli de eficácia” (p. 334). Mucchielli caminha na
façam referência a Alfred Adler (1933/1991), mesma direção ao mostrar que os delinquentes
reconhecemos no diagnóstico que eles se desinvestiram socialmente, e assim
apresentam um fenômeno predito por ele. desprezam sentimentos de compaixão, negam a
Como, segundo ele, a pulsão natural do homem existência do outro ou, melhor, afirmam-se pela
é procurar a expansão de seu Eu, superar o negação do outro (ver também Araújo, 2001 e
inevitável complexo de inferioridade, Peralva, 2000).
experiências de vida que frustrem tal expansão Ambos os autores acabam por afirmar que
(a hostilidade dos pais, sua frieza, sua a agressividade e a violência devem ser
agressividade) ou que deem a ilusão de que ela pensadas em termos morais. Já vimos que
está ocorrendo (permissividade, ausência de Mucchielli afirma que devemos pensar a
frustração, de limites) levam a um estado delinquência no plano moral. Karli afirma que
psicológico de intenso mal-estar que, entre o freio mais potente contra a agressividade é o
outras decorrência, gera comportamentos “respeito pela dignidade de outrem” (p.246).
violentos. Eis como Adler resume sua tese: Vejamos, agora, o que se sabe das relações
A guerra, a pena de morte, o ódio racial, entre moralidade e violência. Notemos, para
e também a neurose, o suicídio, o crime, começar, que a revisão bibliográfica que
o alcoolismo, etc., nascem de uma falta encetamos nos leva a crer que existem poucos
de sentimento social e devem ser estudos a respeito desta relação.
compreendidos como complexos de Comecemos por estudos que enfocam o
inferioridade, como tentativas negativas juízo moral e sua relação com condutas
de resolver uma situação de uma forma violentas. Lembramos que as pesquisas de
inadmissível e inoportuna. (p.44) Milgram (1974) deixaram uma questão
relevante: o que explica a decisão dos 30% de
Vejamos rapidamente um último grupo de sujeitos que não obedeceram à autoridade e,
fatores afetivos que, segundo Karli (1987, ver logo, não apresentaram condutas violentas?
também Zaluar, 1985; Latermann, 2000), Kohlberg (1981), naturalmente intrigado com
comparecem para aumentar a probabilidade de este fato, e convencido de que o nível de juízo
condutas violentas, e que nos aproxima das moral poderia explicar tomadas de decisão de
dimensões morais e éticas. Com efeito, trata-se agir com violência, ou não, entrevistou sujeitos
de fatores presentes no contexto em que vive o que haviam participado da pesquisa de Milgram
indivíduo. Ele começa por associar e constatou que os rebeldes aos mandamentos
consumismo e agressividade: a sociedade, que da autoridade apresentavam um nível de
nos convence de que só existimos pelo que desenvolvimento superior (Milgram, 1974).
consumimos, leva-nos a uma necessidade Comenta Milgram que “se tratou de resultados
imperativa de obtermos dinheiro para comprar interessantes, mas não definitivos” (p.252). A
e comprar, e, por conseguinte, acabamos apreciação de Milgram apareceu como correta.
empregando a violência para chegarmos a Com efeito, Blasi (1989, 1993, 1995)
nossos fins consumistas. Estamos, aqui, no realizou uma ampla revisão daquelas pesquisas
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que procuraram verificar se havia correlação cometeram violência condenada pela Justiça
entre ações morais e nível de juízo moral, tenham necessariamente um nível primitivo (ou
medido pelo método e teoria de Kohlberg. No infantil) de desenvolvimento do juízo moral.
geral, os resultados não permitem afirmar que Logo, não nos parece promissor realizarmos
tal correlação exista. Uma parte do artigo é uma pesquisa que procuraria avaliar se pessoas
justamente dedicada aos chamados violentas são heterônomas ou autônomas, no
delinquentes, ou seja, pessoas que cometeram sentido piagetiano do termo.
delitos e foram condenadas pela justiça. Como Todavia, tudo não está dito ainda sobre a
o próprio Blasi sublinha, o conceito de relação entre juízo moral e ação violenta. Com
delinquência não é tão preciso quanto parece, efeito, falta-nos citar uma pesquisa realizada
podendo ser considerados delinquentes pessoas por Astor (1994) cujos resultados parecem-nos
que cometeram variados tipos de transgressão e dignos de nota. Este autor inovou no seguinte
por variados motivos. Todavia, não parece aspecto: ao invés de entrevistar seus sujeitos
haver dúvidas de que tal conceito implica, violentos e não violentos a partir de dilemas
quase sempre, o emprego de algum tipo de morais clássicos (como o de Heinz, elaborado
violência. Os dados são, portanto, relevantes. E por Kohlberg), ele submeteu-lhes histórias que
eles apontam para dois diagnósticos. O continham ações violentas (Oliveira também o
primeiro: na maioria dos estudos visitados fez nas suas entrevistas com traficantes de
(onze de quinze) avalia-se que os autores de drogas, empregando histórias que colocavam
algum tipo de delinquência apresentam nível dilemas possíveis deste tipo de atividade 5 ), e
menor de desenvolvimento do juízo moral que pediu-lhes que avaliassem sua legitimidade.
as pessoas que não cometeram este tipo de Dois tipos de ação foram por ele escolhidas:
violência. Logo, parece haver, de fato, uma uma violência cometida gratuitamente (por
correlação entre emprego da violência e exemplo, alguém fica nervoso e bate em um
sofisticação do juízo moral. Porém, é preciso terceiro totalmente estranho às razões do
lembrar que dos seis estágios identificados por destempero emocional) e outra cometida como
Kohlberg (1981), apenas os dois primeiros retribuição (por exemplo, alguém bate numa
seriam coerentes com condutas violentas, pois, pessoa que o insultou). Seus sujeitos, crianças
como lembra Blasi (1989): “a delinqüência de seis, oito e doze anos, foram classificados
deveria vir acompanhada de uma forma de em violentos e não violentos em razão de suas
juízo sobre temas morais caracterizada pela atitudes observadas no convívio escolar. Seus
primazia do interesse próprio, pelo dados mostram que, em se tratando de uma
pragmatismo, pelo relativismo e pelo violência gratuita, a totalidade dos sujeitos das
oportunismo, ou seja, pelo que Kohlberg duas amostras condena a agressão, e isto
denomina a moral pré-convencional” (p. 345). empregando argumentos morais. Em
Ora, os estudos não confirmam esta hipótese, compensação, enquanto a maioria dos sujeitos
pois, em vários deles as pessoas que cometeram não violentos também condena a violência
alguma forma de delinquência encontram-se no decorrente de um revide, a maioria daqueles
nível convencional, nível este no qual se violentos legitima este revide. Conclui o autor
encontra a maioria das pessoas. Pela recíproca, que os sujeitos violentos não diferem dos
Colby e Damon (1993), ao aplicar a entrevista demais por serem privados de juízo moral, mas
de Kohlberg para avaliar o nível de sim na avaliação da legitimidade do emprego
desenvolvimento do juízo moral em pessoas de da violência.
vida moral exemplar, logo em pessoas que não O fato de as pesquisas não atestarem uma
somente não agem com violência, como correlação clara entre nível de juízo moral e
também procuram promover a paz social, ação moral deve nos levar a refletir sobre a
Colby e Damon, dizíamos, não encontraram dimensão motivacional. Com efeito, a um saber
sistematicamente níveis superiores nestas fazer não corresponde necessariamente um
pessoas, sendo muitas delas convencionais. querer fazer’ (La Taille, 2006a), e ficaram
Entre nós, Oliveira (2002) procurou medir o famosas as observações de Damasio sobre
nível de desenvolvimento moral de presos por indivíduos com lesões cerebrais que, embora
tráfico de drogas, e também não verificou que a
maioria estaria em nível pré-convencional. Em 5
Por exemplo: o fato de um traficante ver seu filho
suma, nada pode nos levar a afirmar, sem doente em razão do consumo de drogas o levaria, ou
maiores cuidados, que as pessoas que não, a rever a legitimidade de sua atividade?
Moralidade e violência 337
capazes de juízos morais sofisticados, agem no apoio para que cada um possa dar satisfação a
dia a dia de maneira totalmente contraditória seus desejos egoístas (Mucchielli, 1986). Em
com o que dizem ser o correto, fazem uso de uma palavra, Mucchielli explica a violência dos
violência quando, verbalmente, defendem a paz delinquentes por uma sociabilização mal
e o diálogo (Damasio, 1996). Acima colocamos sucedida que leva a uma não conexão do
referências à dimensão afetiva relacionada à indivíduo com o grupo, com a cultura, seus
violência. Agora nos interessa pensar esta valores e normas.
dimensão afetiva relacionada ao agir moral e Mas nem todos concordam com esta visão
ético. radical. Touraine (2000) lembra que se observa
Dos textos revisados, apenas o de um grande conformismo quanto aos fins das
Mucchielli, cuja tese é a de que os delinquentes ações de variados jovens delinquentes (por
carecem de senso moral, faz referência à exemplo, possuir um automóvel), sendo os
dimensão afetiva. Para ele, não é o juízo moral meios empregados para chegar a esses fins
que faz falta aos criminosos, mas sim tradução de uma recusa das normas (roubar o
sentimentos que orientem condutas morais: “O automóvel). Vale dizer que tais jovens parecem
Eu desenvolve-se sem se descentrar, e aí está o aderir, de fato, a certos valores culturais
segredo do que será, mais tarde, o Eu (notadamente relacionados ao status que
exorbitante e egocentrado que caracteriza o confere certos objetos de consumo), que
delinquente” (p. 141). Trata-se, evidentemente, podemos chamar de valores fins, mas não a
empregando os termos de Piaget (1954), de outros, os valores meio, que dizem respeito à
uma ausência de descentração afetiva, e não moral. Logo, não se trataria tanto de uma
cognitiva. Por que tal descentração não ocorre? sociabilização mal sucedida (de onde viriam os
Vimos acima que Mucchielli atribui grande valores fins?), mas sim de um tipo especial de
importância ao fato de os pais serem por sociabilização. Ou seja, não se trataria tanto de
demais permissivos. Mas, aceita ou não esta ausência de valores, mas sim da presença de
explicação, o fato é que o futuro delinquente valores contraditórios com aqueles que
vai, sempre segundo Mucchielli, inspiram a moral. Assim equacionada a questão
desenvolvendo um Eu sem a contrapartida de da violência, ela deve ser antes pensada como
valores, ou seja, sem aderir a valores culturais produção cultural do que como ausência de
que limitam e situam as suas aspirações. cultura. Tal será a perspectiva na qual
Mucchielli (1986) escreve: “Eis porque, trabalharemos, embora, como vamos ver, não
escreve o autor, a frustração que será depois descartemos elementos da tese de Mucchielli.
sentida, após o período sensível da formação Para explicar tal opção, e para finalizar a
dos valores vividos e do Eu descentrado, será presente Parte, vamos rapidamente apresentar o
um frustração sem valor, sem contrapartida, que tem sido a abordagem que temos seguido
gratuita, por nada, e, portanto, uma injustiça para compreender a dimensão afetiva da moral
vivida” (p. 143). Dito de outra forma, qualquer (La Taille, 2002b, 2006a).
frustração pessoal será vivida como injustiça, No início da vida moral, ou seja, quando
como agressão. Mais tarde, acontecerá o do despertar do senso moral (por volta dos
fenômeno decisivo para explicar a opção pela quatro, cinco anos de idade), entendido como
delinquência e os atos violentos que a compreensão de que existe um universo do
caracterizam, a saber o desengajamento social dever e vontade dele participar (Tugendhat,
(withdrawal), que se traduzirá por um grande 1993a), seis sentimentos comparecem para
desprezo pelo valores culturais, pelos explicar esta nova adesão. Dois são bem
sentimentos de apego e compaixão, pelas conhecidos e estudados pela Psicologia Moral:
normas de conduta. O outro será visto, antes amor e medo. A fusão destes dois sentimentos
como um inimigo, uma ameaça, do que como explica o respeito pelas ordens de figuras de
companheiro, uma ajuda. E, se é verdade que autoridade, configurando uma moral da
os delinquentes às vezes unem-se em bandos, heteronomia. Reconhece-se aqui a tese de
ou seja, se aparentemente formam um espécie Piaget (1932/1992). A partir da década de
de sociedade, tal fato não desmente, apesar das 1980, levantou-se a hipótese de que nem tudo é
aparências, o diagnóstico de que houve um obediência na primeira fase do
fracasso da sociabilização: longe de desenvolvimento moral (Turiel, 1993;
configurarem uma mini-sociedade, os bandos Tugendhat, 1993a). Outros sentimentos
têm pouca estrutura interna e mais servem de estariam presentes. Um deles é a simpatia,
338 La Taille, Y. de
maior que as outras causas deste sentimento e Comte-Sponville, A, & Fery, L. (1998). La
que faz de tudo para sobressair-se, mesmo que sagesse des modernes. Paris: Lafont.
precise, para tanto, empregar outrem como Costa, J. F. (1984). Violência e psicanálise. Rio
meio. Outro cenário é o seguinte: no conjunto de Janeiro: Edições Graal.
das representações de si, o ser violento é
altamente valorizado e, logo, o ser pacífico Damasio, A. (1996). O erro de Descartes. São
causa vergonha. Como apontado por Karli Paulo: Companhia das Letras.
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contemporânea correspondem a estes dois francesa. Educação e Pesquisa, 27(1), 163-
cenários. Assim, a violência não seria apenas 193.
falta de limites, mas uma produção social, seja
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Moralidade e violência 341
Sobre o autor:
Yves de La Taille. Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.