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Direito de Proteção às

Vítimas de Crimes

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Vitimização, violências e
danos à vítima

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Conteudista:
Rosana Cathya Ragazzoni Mangin, (Conteudista, 2021);

Talita Arantes Cazassus Dall’Agnol (Coordenadora, 2021);

Katia Silene Macedo Medeiros (Coordenadora, 2021);


Diretoria de Desenvolvimento Profissional.

Enap, 2021

Enap Escola Nacional de Administração Pública


SAIS - Área 2-A -70610-900 - Brasília, DF

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Sumário

Unidade 1 – Vitimização e Violências......................................................................................5


1.1 Conceitos de violências.................................................................................................................................. 5

Referências................................................................................................................................................................ 8

Unidade 2 – A vítima em sua relação com o contexto criminal..........................................9


2.1 Relação vítima, ofensor e sociedade.......................................................................................................... 9

Referências..............................................................................................................................................................13

Unidade 3. Danos à vítima....................................................................................................... 14


3.1 A multidimensionalidade dos danos: físicos, psíquicos e sociais....................................................14

Referências..............................................................................................................................................................18

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MÓDULO

2 Vitimização, violências e danos à vítima

Neste módulo, você vai avançar no estudo sobre a vítima de crime e os danos sofridos por ela.

Para aproveitar bem o seu estudo, é importante que você conheça, também, o conceito de violências, aqui
tratado no plural.

O conteúdo lhe possibilitará refletir sobre as relações estabeleci-


das no encontro entre vítima e ofensor, inseridos no contexto da
sociedade em que vivem.

Reflita, a vítima pode sofrer mais de um tipo de violência e que esta pode, inclusive, ser pouco perceptível
aos olhos das demais pessoas. Os danos, ou o sofrimento, originados da violência, são diversos e variam
conforme as características da pessoa ofendida e do ambiente em que ocorre, podendo ser agravados ou
atenuados a depender de fatores sociais e institucionais de proteção e cuidado à disposição da vítima.

Compreendendo estes pontos iniciais do tema, você poderá verificar os possíveis danos provocados
na vítima em consequência do crime (ou de uma violência). Você verá que estes danos podem ter uma
dimensão múltipla, abrangendo fatores físicos, psíquicos e sociais, ou mesmo políticos, casos de imigrantes
recém-chegados e que sofrem discriminação no novo território.

Fonte: autor desconhecido, licenciada em CC BY-NC

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Unidade 1 – Vitimização e Violências

Você já viveu alguma situação de violência? Em casa, no trabalho, na escola, na igreja, num parque, na rua?
É quase incontestável que não passaremos por esta vida sem que tenhamos tido essa experiência dura,
amarga, triste e, em alguns casos, com marcas profundas deixadas no corpo e na alma.

Na qualidade de vítima, a pessoa agredida e, também familiares, amigos, colegas, e a própria sociedade,
sente-se ofendida, humilhada, maltratada, estigmatizada, “para baixo”.

Os prejuízos são muitos e incluem danos físicos, psicológicos, patrimoniais, morais, dentre outros. Neste
momento, você vai aprender a conceituar a violência e a relação, nem sempre facilmente entendida, porque
multicausal, entre a vítima e o ofensor, que se inscreve no conjunto das relações sociais mais amplas,
entendendo-a na interconexão com a história, com a cultura e com as instituições.

1.1 Conceitos de violências

Violências, no plural, e não violência, no singular, é No passado, não se conhecia o ato psíquico com
a forma como se pode perceber a variedade desse o valor que lhe é atribuído atualmente. Ao longo
fenômeno, assim como as suas múltiplas causas. da história, surgiram novos conhecimentos,
originados de novos olhares para a realidade social,
Mas, quais seriam as situações denominadas como indicadores da existência de atividades mentais e
violências? seus efeitos.

Veja bem, essas situações compreendem desde Assim se evoluiu, gradativamente, até o início do
os “pequenos insultos de cada dia”, passando século XX, quando a compreensão das atividades
pelo riso nervoso ao ouvir ou contar uma piada mentais, proporcionada pelo cientista austríaco
discriminatória, e chegando mesmo, a atos em que Sigmund Freud (1856 – 1939), ganha um novo
a violência é de tal monta que uma grande parte olhar e uma nova dimensão. O cientista constata
das pessoas se sensibiliza em razão do acontecido. que a maior parte dos processos mentais é
absolutamente inconsciente, o que justificaria
Desde tempos remotos, a maioria das sociedades ações desprovidas do conhecimento e da vontade
existentes, conviveu com algum grau de violência entre deliberados do indivíduo.
as pessoas; entretanto, a forma como cada sociedade
lidou e ainda lida com a violência, é diferente. Com isso, surgiu o espaço para reconhecer e
valorizar o sofrimento mental, consequente à
O que se sabe é que, certa violência pode ser produzida existência de eventos desagradáveis ao indivíduo,
socialmente, em razão de algumas particularidades, entre eles, a violência.
mas, sobretudo, em razão de sua formação e
desenvolvimento como povo; em razão de suas Conforme ensinou Sigmund Freud, existe um
instituições, de sua moralidade, de seus costumes, instinto de agressividade, não necessariamente
da desigualdade entre as pessoas e da relação que se visível nos seres humanos, que pode coexistir
estabelece entre vítima, ofensor e sociedade. com a possibilidade de o homem desejar a paz ou
empregar a violência.
Um mesmo ato pode ser interpretado como
violento por uma pessoa e não violento por outra. Vásquez, por sua vez, alerta que a força em si não
Trata-se, pois, de uma caracterização estritamente é violência, e sim, apenas força usada pelo homem.
subjetiva, em quantidade e qualidade. Daí o caráter exclusivamente humano da violência.

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Há, pois, a necessidade de se denominar violência (violências!) de maneira ampla. A literatura é vasta sobre
o tema; para este estudo, aponta-se o conceito adotado pela OMS – Organização Mundial de Saúde:

“(...) Uso de força física ou poder, em ameaça ou na prática, con-


tra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade
que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicoló-
gico, desenvolvimento prejudicado ou privação”.

O conceito de violência implica, portanto, em fatores subjetivos, ou seja, a maneira de pensar, de agir, de
sonhar e de sentir para cada indivíduo, modelada por sua história de vida e o contexto sócio-histórico de
seu ambiente, permite a cada pessoa, interpretar, a seu modo, as situações e vivências que lhe são próprias.

A violência apresenta-se de muitas formas e as tentativas de categorizá-las esbarram nessa diversidade,


contudo, seguem algumas possibilidades de compreensão sobre o tema:

Violência banalizada Violência provocada

O indivíduo sai de um estabelecimento Os veículos colidem e os proprietários


bancário, anda calmamente pela rua e recebe discutem e brigam entre si.
a abordagem do ofensor, que o assalta.

Violência ritualizada Violência no trânsito

As torcidas organizadas, se não mantidas No interior do veículo (público ou privado)


distantes uma da outra, dão demonstrações pessoas passam boa parte de suas vidas. As
de conflitos que, invariavelmente, redundam condições de convivência no trânsito podem
em agressões mútuas quando se encontram. tornar-se fonte de violência.

Violência social Violência no Trabalho

Na História do Brasil evidenciaram-se as Violência que encontra reforço na


escravidões de índios e de negros e os vulnerabilidade do trabalhador que atua
horrores praticados em relação a esses dois numa relação desigual de poder e na sua
grupos. A violência social permanece, contudo, dependência em relação ao emprego. O
pelo artifício da exclusão de vários grupos trabalhador dependente alimenta o poder do
tornados vulneráveis. A consequência surge a empregador. Surge, aqui, a forma moderna
médio e a longo prazo: os menos favorecidos de escravidão, em que os direitos são
residirão em locais com condições de vida reduzidos a um mínimo legal – nem sempre
mais precárias e se encontrarão no cerne praticado pelo empregador. É o trabalho
da violência, muitas vezes na condição de precarizado ou o subemprego.
vítimas, ou, ainda algumas vezes, etiquetados
como algozes. Identificar a violência social,
requer um olhar atento, crítico, inquiridor
dos acontecimentos. Desenvolve-se pela
persistência, pela observação constante, pela
busca de informações especializadas. Não se
trata de uma tarefa simples e banal.

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Violência financeira Violência Sexual

Encontra-se comumente no lar e no mundo A violência sexual ocupa espaço nos


do trabalho. No trabalho revela-se na noticiários cotidianamente. Esse tipo
desigualdade salarial e de oportunidades. de violência humilha e reduz a pessoa à
No lar, evidencia-se pelo regime de condição de objeto. São inúmeras as ações
administração dos recursos. A Lei Maria e condutas que podem levar a ela, como o
da Penha (Lei 11.340/2006) a menciona assédio, em que o ofensor faz propostas
expressamente em seu art. 7º, inciso IV: consideradas indevidas ou indecorosas, até
em sua forma mais grave, o estupro – crime
“violência patrimonial, entendida como com gravíssimas consequências. Qualquer
qualquer conduta que configure retenção, pessoa pode figurar como vítima desse tipo
subtração, destruição parcial ou total de de violência; contudo, apontam as pesquisas
seus objetos, instrumentos de trabalho,
especializadas, as vítimas preferenciais são
documentos pessoais, bens, valores
e direitos ou recursos econômicos,
as crianças, adolescentes e outros grupos
incluindo os destinados a satisfazer suas vulneráveis, como as pessoas com algum
necessidades”. tipo de deficiência, em especial, a intelectual.

Violência contra a Criança e o Violência contra a mulher


Adolescente
A violência contra crianças e adolescentes A violência contra a mulher não se
demonstra a perversidade de caráter daqueles circunscreve ao lar, embora seja neste
que a praticam. Infelizmente, estatísticas a em que encontra a maior parte das
esse respeito mostram-se falhas, tornando manifestações. Por sua importância, sugere-
as crianças e adolescentes mais vulneráveis, se que você leia a conceituação dos tipos
especialmente porque, essa violência é de violências (física, psicológica, sexual,
praticada, geralmente, por quem deveria zelar patrimonial e moral), elencadas na no art. 7º
pela integridade e dignidade dessas pessoas. da mencionada Lei 11.340 de 2006.
Esse tipo de violência pode produzir marcas
e afetar profundamente o desenvolvimento
emocional, intelectual, cognitivo e social da
criança e do adolescente.

Conforme alertou-se acima, o rol de violências decorrentes de especificidades quanto à pessoa ou ambiente
é numeroso. O conceito é polissêmico, universal, multideterminado, necessita de contextualização e tem
dados geralmente subestimados.

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Referências

BRASIL. Lei Federal nº 11.340 de 07 de agosto de 2006. Disponível em: http://www.planalto.


gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 09 de maio de 2021.

ELUF, L. N. A paixão no banco dos réus: casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a
Lindemberg Alves. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. XXI das Obras Completas.

MINAYO, M. C. de S. Violência e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. Disponível


em: http://books.scielo.org/id/y9sxc. Acesso em: 23 de junho de 2021.

MODENA, M. R. (org.) Conceitos e formas de violência. Caxias do Sul: Educs, 2016.


Disponível em: https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-conceitos-formas_2.pdf.
Acesso em: 09 de maio de 2021.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório mundial sobre violência e saúde, 2002.


Disponível em: https://opas.org.br/relatorio-mundial-sobre-violencia-e-saude/. Acesso
em 23 de junho de 2021.

VÁSQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

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Unidade 2 – A vítima em sua relação com o contexto criminal
As atitudes e comportamentos da comunidade influenciam – substancial, mas não definitivamente – os
comportamentos de seus integrantes.

A comunidade espera de cada um de seus membros, modos específicos de agir, elegendo aqueles pelos
quais tem preferência e outros que repudia.

2.1 Relação vítima, ofensor e sociedade

Vítima

A noção de historicidade está presente no status vivenciado pela vítima. No entanto, é possível indicar três
fases principais, as quais, geralmente, identificam a posição da vítima perante o processo penal: Protagonismo
– Neutralização – Redescobrimento.

Os primeiros registros sobre a vitimologia comportamento da vítima e outros atributos


(basicamente, o estudo da vítima), datam de meados desta, pode provocar mais danos e sofrimento à
do séc. XX e foram propostos por Von Hentig e vítima, fazendo com que algumas vítimas recebam
Mendelsohn (advogado israelense e psicólogo mais atenção do que outras.
criminal o primeiro e político alemão, o segundo).
Destaque-se que, qualquer categorização para
Tradicionalmente, foram atribuídas à vítima fenômenos complexos, como a vitimização,
características, ações e omissões que, de algum tende a reduzi-los e, eventualmente, banalizá-
modo, influenciariam a ocorrência criminal, los. Desse modo, apresenta-se a seguir, dois
indicando que, em tese, a vítima poderia contribuir tipos de situações que podem levar a conclusões
para a existência do delito. A principal referência equivocadas, se o olhar adotado é superficial,
sobre o assunto coube a Benjamin Mendelsohn, moral e valorativo.
que à época (por volta da década de 1950),
apontava parcelas de responsabilidade à vítima. Trata-se da Síndrome de Oslo e da Síndrome
de Estocolmo, que podem levar, os mais
Veja bem, julgamentos em relação à vítima podem imprudentes, a menosprezar o sofrimento da
afetar a responsabilização sobre a violência vítima, reconhecendo um aparente bem-estar,
ocorrida, ou seja, o modo como se percebe o proximidade e empatia em relação ao ofensor.

• Síndrome de Oslo, a pessoa vitimizada se acha merecedora do castigo. É comum em casos de violência
doméstica, quando se observa a vítima assumir a responsabilidade pela violência sofrida, com frases do tipo:
“ele bate porque eu mereço, sou muito nervosa e brigo quando ele chega tarde”.

• Síndrome de Estocolmo é resultado de um elevado estresse vivenciado pela vítima. Desencadeia-se, por
exemplo, em situações de sequestro e cárcere privado. O comportamento da vítima é medido pelo grau de
simpatia que ela mantém com o sequestrador.

Não se descarta a influência de modelos, como quando a vítima cresceu e conviveu em um ambiente onde, pessoas
semelhantes a ela, enfrentavam ofensores e ofensas também similares.

As “vítimas eternas”, ridicularizadas por uns, glorificadas por outros, encontram-se em inúmeras
situações: no cônjuge massacrado emocionalmente (pelo outro cônjuge); no empregado explorado
indefinidamente pelo supervisor, pelo patrão ou pelos colegas; no cliente enganado pelo vendedor
reiteradamente, sem experimentar novas opiniões, etc.

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O ofensor sabe, e a vítima também – talvez muito mais – que as suas reclamações não encontrarão o suporte
necessário. A ação da lei, ainda, pouco consegue alcançar em relação às necessidades da vítima.

Cuida-se, portanto, de incrementar os fatores de apoio e proteção em relação à vítima de crime para que
esta encontre espaço e condições para a garantia de seus direitos, o que, certamente, passa pelo conceito de
solidariedade e de políticas públicas eficientes, direcionadas a cuidar do fenômeno criminal.

Há outros casos em que não existe um encontro pessoal entre ofensor e vítima, embora os danos provocados
possam atingir inúmeras pessoas. São exemplos, os crimes de corrupção e fraude ao sistema público de saúde,
que subtraem do tesouro da nação consideráveis quantias e prejudicam incontáveis pessoas, ou ainda, situações
em que o bem diretamente atingido, parece distante do olhar das vítimas em potencial, como os crimes ambientais.

Sintetizando, aponta-se o estudo de García-Pablos de Molina e Gomes que propõem como possibilidade
de objetos de estudo da criminologia, o crime, a pessoa do delinquente, a vítima e o controle social do
comportamento delitivo, demonstrando, pois, a complexidade do tema e a importância de se conjugar
todos os fatores envolvidos no fenômeno criminal.

A respeito da vítima, os autores elencam alguns tópicos de importância para este estudo, quais sejam:

• Percepção e atitudes recíprocas do delinquente e da vítima;


• Vítima como partícipe na prevenção do delito;
• Vítima como fonte de informações (visão tradicional da vítima);
• Vítima que reclama atenção a seus direitos por todos os danos que sofre

Ações imediatas fazem-se necessárias para as questões críticas; contudo, há de se atuar para modificar as
visões de mundo de ofensores e vítimas (e da própria sociedade!).

Ofensor

É inegável a influência dos fatores sociais sobre grupos pode conceber o outro como um inimigo a ser
as pessoas, podendo levá-las, muitas vezes, a combatido e eleger pessoas a quem se deve combater,
assumir posturas que não condizem com o melhor criminalizando pessoas ou grupos e não condutas.
para elas e para a comunidade. Encontram-se entre
os ofensores, indivíduos que se desenvolveram em Por outro lado, há pessoas que, mesmo praticando
contextos de violência, o que pode significar que, condutas descritas como crime, são enaltecidas
também, tenham padecido dela. por sua posição social, como no caso dos crimes de
colarinho branco.
Além disso, você já observou como a sociedade
divide-se em grupos, estabelecendo pouca, ou Canções e filmes, entre outros estímulos, produzem
quase nenhuma comunicação entre eles? um efeito importante sobre a figura do ofensor:
algumas pessoas tendem a reproduzir modelos
Assim, colocadas essas questões, verifica-se que é e a criar expectativas em torno das personagens
importante refletir sobre a concepção de comunidade fictícias consideradas poderosas e bem sucedidas.
assumida pelo indivíduo, reconhecendo-se que um dos

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Ao focalizar o olhar na base da pirâmide social, nota-se que a luta pela sobrevivência constitui a motivação
diária; aplicando o olhar ao topo da mesma pirâmide observa-se que a plenitude e a disponibilidade de bens
e serviços, também não garante ausência de violências.

Considerando-se tais diferenças, a seguinte questão é pertinente:


o que impede, nas duas narrativas, de o indivíduo migrar para
comportamentos socialmente (in)aceitáveis?

A esse respeito, o neurocientista português, António Damásio, explicou que, de um lado, encontra-se a
acomodação mental, quando o indivíduo entra em um processo homeostático e o cérebro acomoda-se à energia
que isso demanda. Não há motivo para alterações, pois estas sempre requerem gastos adicionais de energia.

De outro lado, a mente desenvolve um processo adaptativo, que lhe propicia benefícios para lidar com as coisas
do cotidiano: os pensamentos automáticos.

Não há como evitar o pensamento automático, como o nome sugere. Contudo, tal tipo de pensamento, alertam
os psicólogos Fiorelli e Mangini, ganha distinção porque provoca as emoções correspondentes.

Portanto, na combinação do pensamento com a emoção, influenciado por inúmeros aspectos sociais, históricos
e culturais, frise-se: em processos de subjetivação, dependendo da forma e da intensidade, surge o crime e o
processo de vitimização.

Ana Bock, Odair Furtado e Maria de Lourdes Trassi Teixeira revelam na obra Psicologias que,
com orientação da Psicologia Sócio-Histórica, não há como compreender um indivíduo sem
conhecer seu mundo. Para compreender o que cada um de nós sente e pensa e como cada
um de nós age, é preciso conhecer o mundo social no qual estamos imersos e do qual somos
construtores; é preciso investigar os valores sociais, as formas de relação e de produção da
sobrevivência de nosso mundo, além das formas de ser do nosso tempo.

A respeito da subjetividade destaca-se, também, a concepção do filósofo espanhol, Adolfo Vásquez,


segundo a qual não é no indivíduo que podemos encontrar a essência humana, mas nas relações sociais das
quais ele mesmo é produto, porque o indivíduo isolado seria apenas uma abstração, validada sua existência
somente no conjunto das relações sociais.

É, portanto, nas relações sociais, que se deve investigar a violência e, não, em indivíduos isoladamente.

Desse modo, mais uma vez, impõe-se alertar para a complexidade do assunto, envolvendo ofensor, vítima,
comunidade e o sistema de justiça.

Sociedade

Fiorelli e Mangini comentam o inegável efeito da geografia na constituição de condições favorecedoras do


crime e da violência. Com base nas teorias criminológicas da Escola Ecológica de Chicago, citam espaços
nos quais, geralmente, os laços sociais estão mais enfraquecidos, por exemplo, as imediações de terminais
rodoviários, geralmente com grande fluxo de pessoas.

Saiba mais

A Escola Ecológica de Chicago é uma teoria criminológica que apresenta uma proposta
a respeito da influência do ambiente no comportamento disfuncional dos membros de
uma comunidade, apontando, especialmente, a desorganização social e as altas taxas
de imigração que enfraqueceriam os laços sociais

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O efeito disto sobre as percepções é inegável. Não há estranheza em relação a uma ocorrência, sob a
perspectiva da sociedade, quando inserida nos costumes e nos padrões pré-estabelecidos.

Outro aspecto fundamental apontado em relação à comunidade refere-se à desigualdade social; o privilégio
de alguns em detrimento das necessidades de muitos, influenciando no acesso, mais ou menos adequado,
aos bens e serviços disponíveis e necessários à manutenção da dignidade e da saúde humanas.

A cultura, a moralidade e os fatores sociais constituem aspectos


de grande importância para a fixação e emissão de
comportamentos

Conclui-se, pois, que a compreensão formada sobre violência ou crime recebe determinante influência
no modo como a comunidade percebe esses fenômenos, podendo haver maior ou menor aderência do
entendimento da comunidade em relação às leis e normas.

Percebe-se, por exemplo, um determinado grupo social, privilegiado, que não acessa os demais grupos,
a não ser para que as pessoas deste segundo grupo satisfaçam as necessidades e desejos do primeiro.

Zygmunt Bauman, em “Globalização: as consequências humanas”, refere que, a lógica que se desenvolve
nos bairros de pessoas pouco instruídas será, provavelmente, de natureza diferente daquela que se
desenvolve entre os viajantes internacionais das indústrias culturais, com sua instrução superior. A
hibridização cultural dos habitantes globais pode ser uma experiência criativa e emancipadora, mas a
perda de poder social e cultural dos habitantes locais raramente o é.

Ofensores e vítimas, portanto, encontram-se dentro desse contexto. Isso afeta como uns e outros
percebem-se, a eles mesmos e ao conjunto maior da comunidade. Há, pois, importantíssima questão
contextual nesta percepção.

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Referências

BAUMAN, Z. Globalização: as Consequências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1999.

BOCK, A. M. B.; FURTADO, O. e TEIXEIRA, M. de L. T. Psicologias. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

DAMÁSIO, A. R. O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

FIORELLI, J. O. e MANGINI, R. C. R. Psicologia Jurídica. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2021.

GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, A.; GOMES, L. F. Criminologia: introdução a seus fundamentos


teóricos. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.

VÁSQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

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Unidade 3. Danos à vítima
A dimensão dos danos causados pela violência depende de diversos aspectos relacionados entre si, o que pode
provocar efeitos de ampliação, cronificação e multiplicação dos efeitos desta sobre as pessoas e sobre a sociedade.

Pode-se relacionar os danos a fatores como os descritos no esquema a seguir:

3.1 A multidimensionalidade dos danos: físicos, psíquicos e sociais

A multidimensionalidade dos danos pode ser verificada de acordo com o tipo de dano provocado, conforme se
observa no esquema abaixo:

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As categorias e os tipos de danos não são excludentes entre si e, destes podem derivar outros, como danos
econômicos, morais, políticos e, ainda, podem coexistir em um mesmo evento.

Pense, por exemplo, no caso a seguir:

As senhoras Adelaide e Mariana são vizinhas e cultivavam salutar hábito de amizade desde
os tempos da juventude: todos os dias sentavam-se à porta de suas casas para compartilhar
a vida. Relembravam os tempos da adolescência, confidenciavam histórias pessoais e faziam
planos para o futuro; planejavam uma viagem de férias juntas. Certo dia, durante o costumeiro
bate-papo, dois homens as interpelaram e, violentamente, as agrediram, levando alguns de seus
bens pessoais. Os danos suportados por ambas se revelaram físicos (hematomas pelo corpo),
psíquicos (com profunda alteração no ritmo do sono e ansiedade); e sociais (prejudicando o
hábito de compartilharem aquelas tardes tão prazerosas, além de limitar suas atividades sociais).
Com o decorrer do tempo e com suporte multidisciplinar e apoio familiar, ambas puderam retomar
a rotina anterior, embora a sensação de insegurança estivesse, agora, presente.

Os danos referidos não são percebidos, do insuficientes, dificultando (ou mesmo impedindo) o
mesmo modo, para todas as pessoas, diferindo acesso de pessoas aos serviços mais básicos, como
conforme características pessoais da vítima e os referentes ao saneamento básico, moradia,
características ambientais. educação, transporte e saúde.

Ninguém se encontra imune a eles. O quadro, O lar, quando situado em ambiente de alto risco,
contudo, difere radicalmente entre a população sofre os efeitos desse contexto. O indivíduo é
que se encontra em ambiente de alto risco, mais afetado e a violência pode permanecer latente,
vulnerável, e a parcela da sociedade, relativamente prestes a se concretizar.
protegida em seus ambientes de vida.
A exposição à violência compreende a
O ambiente que sugere maior risco para a experiência direta com esta – ser vítima de
ocorrência de violência e, portanto, para provocar algum ato violento – e a experiência indireta
maior dano e sofrimento, pode ser identificado nas – testemunhar atos de violência. Cena comum
áreas em que as políticas públicas e sociais são nos casos de violência doméstica.

Saiba mais

A psicóloga Nanci Cardia denomina covitimização a situação de testemunhar


a violência. A profissional aponta que estudos comprovaram que os efeitos
de testemunhar a violência (assassinatos, espancamentos e outros) afetam
sensivelmente as pessoas, principalmente crianças, quando ofensor, vítima, ou
ambos, têm elevado valor afetivo para elas.

Estar mais ou menos exposto à violência não é um evento neutro na vida das pessoas; descreve não só
diferenças de padrão de qualidade de vida como, também, de novos riscos de vitimização, conforme descrevem
Chang e Hope, citados por Cardia; ou leva ao desenvolvimento de estratégias para lidar com a violência, como
é o caso dos mecanismos de defesa do ego.

Quanto mais presente a chance de ocorrência da violência, e quanto maior a expectativa de gravidade
desta, maior o medo, sentimento que afeta sensivelmente os comportamentos e altera o estilo e qualidade
de vida dos indivíduos.

Como efeitos diretos do medo, tem-se a busca de proteção e suas barreiras. As pessoas passam a viver
“enjauladas” em seus lares, quando estes têm estrutura para tanto.

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A comunidade fragmenta-se e abre-se espaço para a desconfiança. Os problemas comuns deixam de receber
adequado tratamento e reduz-se a chance de ações coletivas.

Outros sinais também podem ser percebidos, tais como, fobias diversas (principalmente as relacionadas
com a socialização), pânico (manifestado sob diversas formas), pensamentos obsessivos em torno de ideias
associadas ao medo, distúrbios do sono, ansiedade, depressão, falta de concentração e outros.

A esse conjunto, que prejudica a aprendizagem, dentre outros aspectos, Warner & Weist, citados por Nanci
Cardia, denominam “fadiga do sobrevivente”.

O estresse pós-traumático pode ser um dos sintomas relacionados a esse quadro de medo, com prejuízos
emocionais e comportamentais importantes.

De acordo com o DSM V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, livro da
Associação Americana de Psiquiatria) o estresse pós traumático constitui-se de lembranças
recorrentes intrusivas de um evento traumático opressivo; as lembranças duram mais de
um mês e começam em até 6 meses depois do evento. A fisiopatologia do transtorno não
é completamente compreendida. Os sinais e sintomas também incluem evitar estímulos
associados com eventos traumáticos, pesadelos e flashbacks. O diagnóstico baseia-se na
história. O tratamento consiste em terapia de exposição e tratamento medicamentoso.
Disponível no link .

Esses prejuízos podem incluir a paralisação das atividades profissionais, sociais e conjugais, medo de sair
desacompanhado(a), dificuldade para retomar as tarefas habituais e incapacidade para realizar outras tarefas.

As consequências da fragmentação social vão muito além da simples separação física. Evidenciam-se no
desenvolvimento de costumes e linguagem específicos, que refletem a diferença de estilos de vida entre
comunidades diferentes.

Há ainda, uma possível negação dos riscos, que se constitui em um potente mecanismo psicológico de defesa.
É possível observá-lo na negação ante a doença, ante uma ofensa ou uma violência. Não encontrando (pessoal
ou socialmente), suporte suficiente, o indivíduo necessita valer-se dos recursos de que dispõe para preservar
o psiquismo, o que, pode torná-lo mais vulnerável.

O estudo sobre exposição à violência, conduzido pela psicóloga Nanci Cardia, menciona a afetação das crenças,
dos valores e das expectativas de crianças e jovens em relação ao comportamento dos outros.

A exposição de pessoas num ambiente no qual os conflitos são


“resolvidos” com baseado na comunicação violenta, pode levá-las
a desenvolver um estilo cognitivo que também privilegia a violên-
cia como ação e reação, especialmente em se tratando de pesso-
as em desenvolvimento e de relações íntimas, como é o caso de
crianças e suas relações parentais e de cuidado.

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No ambiente de risco controlado a situação é diferente, A percepção e a expectativa de violência
embora a violência possa ocorrer por outras vias e ser provocam um importante mecanismo de defesa
praticada pelas pessoas que o habitam. nessa população: o distanciamento da população
entendida como inimiga, contribuindo para
Pelo fato do grupo que habita esse espaço dispor relevantes distorções sociais.
de mecanismos de proteção relativamente mais
eficientes em comparação com os espaços de alto No ano de 1999, Bauman já alertava para os efeitos
risco, identifica-se substancial distância entre ambos da globalização, o apelo ao consumo e a busca
quanto à probabilidade de vivenciarem situações de por satisfações imediatas, levando à coisificação
determinados tipos de violência e de obter suporte e do sujeito, ou seja, à redução da pessoa a um
apoio. Para este grupo, os fatores de risco minimizam objeto, desconsiderando aspectos emocionais, por
e os de proteção são incrementados. exemplo, e à exclusão social.

Portanto, atente para o modo de relacionamento social, os fatores


que correspondem à inclusão ou exclusão de pessoas e a conse-
quente manutenção da violência e de seus efeitos deletérios.

Sintetizando, pela relevância do tema e pelos desdobramentos a longo prazo, destaca-se a diferenciação de
valores e princípios críticos, o que, na base das teorias criminológicas corresponderia à Teoria do Conflito,
com seus grupos e subgrupos sociais distintos.

Os conflitos não são causados exclusivamente por aspectos internos dos indivíduos, pois, mesmo cultivando
valores distintos, a realidade e a cultura social se impõem de maneira intensa nas relações interpessoais.

O enfraquecimento da visão sistêmica conduz à busca de soluções imediatistas e improvisadas para a


violência e elege seus alvos preferidos; geralmente, os já dantes vulnerabilizados social e economicamente.

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Referências

AZEVEDO, M. A.; GUERRA, V. N. A. (Orgs.). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno


poder. São Paulo: Iglu, 1989.

BAIERL, L.F. Medo Social- Da Violência Visível ao Invisível da Violência. São Paulo: Cortez Editora, 2004

BAUMAN, Z. Globalização: as Consequências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1999.

CARDIA, N. Exposição à violência: seus efeitos sobre valores e crenças em relação a violência, polícia e
direitos humanos. Revista Lusotopie: São Paulo, 2003, pp. 299-328. Disponível em: https://nev.prp.
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