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Direito de Proteção às

Vítimas de Crimes

1 Vitimização e Proteção

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Conteudista:
Rosana Cathya Ragazzoni Mangin, (Conteudista, 2021);

Talita Arantes Cazassus Dall’Agnol (Coordenadora, 2021);

Katia Silene Macedo Medeiros (Coordenadora, 2021);

Diretoria de Desenvolvimento Profissional.

Enap, 2021

Enap Escola Nacional de Administração Pública


SAIS - Área 2-A -70610-900 - Brasília, DF

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Sumário

Unidade 1 – A dimensão da vitimização no Estado brasileiro............................................5


1.1 Conceito de vitimização................................................................................................................................. 5

1.2 Percurso histórico............................................................................................................................................ 7

Referências..............................................................................................................................................................11

Unidade 2 – Direitos e garantias............................................................................................ 12


2.1 Direitos e garantias fundamentais relacionados à vítima.................................................................12

Referências..............................................................................................................................................................15

Unidade 3. Vitimização e suas espécies............................................................................... 16


3.1 Espécies de vitimização: primária, secundária e terciária.................................................................16

Referências..............................................................................................................................................................20

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MÓDULO

1 Vitimização e Proteção

Caro(a) leitor(a), este é o início de sua jornada!

“Direitos das Vítimas de Crime” é um curso destinado a todas as pessoas que tenham interesse no tema.
Pretende-se que, além de oferecer informações importantes sobre os direitos das vítimas de crime, você
possa refletir sobre todos os assuntos que serão abordados e, ao final, esteja apto(a) para identificar
estratégias de atenção, proteção e cuidado em relação a si e à coletividade.

O curso inicia cuidando do conceito de vitimização e, por conseguinte, das noções mais atualizadas sobre a
vítima de crime. Na sequência, serão apresentados alguns dos direitos e garantias fundamentais relacionados
à vítima, presentes em normas e regulamentos, e, ao final do módulo, serão oferecidas informações sobre
as espécies de vitimização

Vamos caminhar juntos(as) nessa jornada, porque, com apoio mútuo, ela se torna mais leve.

Fonte: https://www.nordicexperience.com/washigton-post-take-gustav-vigeland-sculpture-park-must-see-oslo

A imagem retrata uma das esculturas de autoria de Gustav Vigeland, que está exposta no Parque Vigeland,
em Oslo, na Noruega.

As esculturas do artista materializam aspectos da existência humana, como o trabalho, a ira, a maternidade,
o sexo e a fraternidade, e são fontes de inspiração para as reflexões propostas a seguir sobre o conceito de
vítima e de vitimização. O artista é o responsável pelo desenho da medalha oferecida ao(a) ganhador(a) do
Prêmio Nobel da Paz!

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Unidade 1 – A dimensão da vitimização no Estado
brasileiro
Nesta unidade programática será exposto e discutido o conceito de vitimização.

Você terá oportunidade, também, de conhecer o percurso histórico e legal da vítima em relação ao processo
penal, seus direitos e garantias fundamentais e as espécies de vitimização.

Espera-se que, ao final da leitura, você compreenda a dimensão da vitimização e localize os dispositivos que
conduzem aos direitos das vítimas e suas garantias.

Como você percebe a imagem ao lado?


Provavelmente, essa imagem lhe desperta algumas
percepções: angústia, restrição e violência podem
ser algumas delas; contudo, é importante destacar
que o processo de vitimização não se refere somente
à sujeição de uma pessoa a um crime qualquer (leve
ou grave); tal processo pode ocorrer, também, em
situações não descritas enquanto crime pela lei penal.

Fonte: Autor Desconhecido, licenciada em CC BY-NC

1.1 Conceito de vitimização

É importante estabelecer, inicialmente, a compreensão de que, no curso da história, a percepção sobre


a vítima de crime é variável no tempo e no espaço.

O mesmo acontece, portanto, com o conceito de vitimização. Não há um conceito unitário que explique
plena e perfeitamente o que é a vitimização e que seja adequado em qualquer tempo ou lugar.

Um parâmetro de estudo, que se apresenta a seguir, foi proposto pelo psicólogo e criminólogo brasileiro,
Alvino Augusto de Sá.

“Processo pelo qual alguém (que poderá ser uma pessoa, um grupo, um segmento de sociedade
ou país) torna-se, ou é eleito a tornar-se, um objeto-alvo da violência por parte de outrem (que
também poderá ser uma pessoa, grupo etc.). Como processo, implica uma rede de ações e/
ou omissões, interligadas entre si, dotadas de um caráter de historicidade e dinamizadas por
interesses, ideologias e motivações, conscientes ou inconscientes”.

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Nota-se, portanto, um conceito amplo, que envolve fatores como tempo, espaço, ações, omissões e,
ainda, aspectos psicológicos, ético-políticos e sociais, implicando em uma situação eminentemente
relacional e complexa.

Quanto ao conceito de vítima, é possível utilizar aquele proposto na Declaração dos Princípios Básicos
de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, adotada pela Assembleia Geral
da Organização das Nações Unidas - ONU em 1985:

“Entendem-se por “vítimas” as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido um


prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de
ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como
consequência de atos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro,
incluindo as que proíbem o abuso de poder”.

Você observou que a vítima pode ser identificada individual ou coletivamente e pode sofrer múltiplas
violações em seus direitos?

Em relação à identificação coletiva da vítima, pode-se exemplificar com os crimes ambientais ou contra
a natureza, os quais podem afetar, direta ou indiretamente, grande número de pessoas, comunidades
e povos. Quanto aos múltiplos tipos de violência, consideram-se várias ações ou omissões que podem
causar danos ou sofrimento a alguém.

A Declaração da ONU mencionada acima contém um anexo, que visa auxiliar os Governos dos Estados-
parte e a comunidade internacional, nos esforços desenvolvidos para fazer justiça às vítimas da
criminalidade e de abuso de poder e lhes proporcionar a necessária assistência pelos danos sofridos
em consequência de um crime, incluindo o abuso de poder por parte do próprio Estado.

Veja bem, é importante que todas as pessoas, profissionais e


sociedade sejam mais empáticas em relação ao sofrimento da ví-
tima. Este curso pretende ser um passo para essa empatia e você
pode ser um(a) importante agente multiplicador(a)!

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1.2 Percurso histórico

A noção de historicidade presente no conceito de vitimização encontra-se, também, no status vivenciado pela
vítima. É possível identificar três fases principais, as quais, geralmente, sinalizam o status da vítima perante o
processo penal: Protagonismo – Neutralização – Redescobrimento, conforme ensinaram García-Pablos de
Molina e Gomes na obra “Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos”.

Essas fases não são estanques, é possível observar alguma flutuação entre os marcos históricos e temporais de
cada uma delas, se considerarmos o contexto social das respectivas sociedades e países ao redor do planeta.

Período de Ouro da Vítima:

O percurso da vítima a colocou, inicialmente, como protagonista, ou seja, a figura mais importante nas
relações que se estabeleciam consequentemente a um crime ou a uma violência, podendo tomar decisões
a respeito das adversidades provocadas a si pelo ofensor.

Nos casos em que esta fosse uma vítima fatal, ou naquelas situações em que não houvesse condições
de exercer esse direito, sua família o assumia. Assim, conforme ensinaram Fernandes e Fernandes, na
obra Criminologia Integrada, convencionou-se chamar esse período de “Período da Vingança Privada” ou
“Período da Justiça Privada” ou, ainda, “Idade de Ouro da Vítima”.

Vamos, pois, compreender o porquê dessas denominações.

Na antiguidade (período que se estende por milhares de anos antes de Cristo) não existia a figura da Justiça Pública.
As regras de convivência social derivavam dos costumes de cada comunidade à sua época.

O próprio grupo social estabelecia os limites relacionais; qual conduta seria considerada criminosa ou
socialmente reprovável e quais bens deveriam ser protegidos. Veja, era o próprio grupo que cuidava,
também, das pessoas que transgrediam as regras sociais, sendo a punição a principal estratégia utilizada.
Em geral, não se buscava proteção e reparação para a vítima.

Historicamente, pessoas e grupos entram em conflito por dois motivos principais: domínio de
território e continuidade da espécie, o que implica em privilegiar os membros de um mesmo grupo.

Assim, as vendetas eram comuns nas sociedades mais antigas (e práticas vingativas também!).
Não se buscava reparação dos danos, mas, sim, o castigo. Em alguns casos, a punição utilizada era
a expulsão (desarmada e/ou sem alimentos) da pessoa transgressora da comunidade em que vivia,
mas, geralmente, as penas aplicadas eram corporais e visavam impor um sofrimento ao ofensor.

Por muitos anos a sociedade utilizou-se desses mecanismos para resolver seus conflitos, mas,
a reação da vítima, ou de quem atuava em seu lugar, nem sempre era proporcional; por vezes,
ultrapassava a pessoa do infrator, estendendo-se à sua família ou, ainda, tratava com penas
cruéis infrações de menor gravidade.

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Com o tempo e com a possibilidade de dizimação populacional, devido às “vinganças de sangue”, líderes locais
buscaram estabelecer regras que atribuíssem alguma proporcionalidade nas relações de conflito, ou seja, um
equilíbrio na aplicação dos castigos.

A principal referência relatada a esse respeito data de, aproximadamente, 1.700 a.C. e encontra-se no Código
de Hamurabi, documento que estabeleceu a pena de Talião.

Você já ouviu a expressão “olho por olho, dente por dente”? Pois bem, era o que o rei Hamurabi entendia como
Justiça, um meio proporcional de cuidar dos conflitos entre as pessoas da comunidade.

Fonte: www.dicasdelei.blogspot.com

Hamurabi foi um rei da Babilônia, reconhecido por sua interpretação de justiça, a qual tinha por objetivo contribuir
para organizar o povo. Embora visasse equilíbrio e justiça entre as pessoas em conflito, suas leis variavam de
acordo com a posição social que a pessoa ocupava, o que, certamente, mantinha pessoas em desigualdade. O
Código continha algumas curiosidades: veja a determinação a respeito da fabricação da cerveja: “afogamento do
cervejeiro em sua própria bebida se ela fosse ruim”.

Além do Código de Hamurabi, outros códigos e leis foram elaborados na antiguidade e serviram de base para
constituir o que temos hoje em termos de lei e de Justiça Pública.

Saiba mais

Fernandes, na obra Direitos Humanos e Vitimologia: uma nova postura


da vítima no Direito Penal, aponta o Código de Ur-Nammu (para alguns
arqueólogos este é o conjunto de normas mais antigas de que se tem
notícia, com data aproximada de 2.028 a.C.); o conjunto de Leis de Eshnunna
(encontrado em escavações realizadas no sul de Bagdá); o Alcorão (livro
sagrado do Islamismo); o Código de Manu (que sintetizou as leis sociais e
religiosas do Hinduísmo) e a Lei Mosaica (composta pelos livros bíblicos).

Em síntese, ainda não havia uma estrutura estatal e de direitos como a que há nos países democráticos
atualmente, com divisão de poderes, aos quais caberia a elaboração, a fiscalização e a execução das leis; mas,
aos poucos, os Estados foram se estruturando e constituindo a Justiça Pública.

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Período da Neutralização:

Assim, aponta-se o segundo período do status da por muitos séculos na antiguidade, mas, com o
vítima, denominado Neutralização. Estado à frente do processo, a vítima deixa aquela
posição de protagonista e o Estado (a justiça
O termo neutralização conduz à ideia de afastamento pública) passa a cuidar dos conflitos entre as
da vítima do processo de responsabilização do pessoas e entre estas e o próprio Estado.
ofensor e a mantém numa posição vulnerável diante
do processo penal. Esta nova posição da vítima A menção ao modo de funcionamento estatal
coincide com a criação do Estado e da Justiça Pública. é importante porque, a partir desse marco,
começam a ser questionados os direitos
A passagem da justiça privada para a justiça pública fundamentais da pessoa humana, fundamentados
é marcada historicamente pelo desenvolvimento em leis e normas, como forma de limitação do
do Direito Romano, longo período que se estendeu poder soberano do rei.

Diante da instituição do Estado como responsável pela resolução dos conflitos, é oportuno
mencionar que este, tal como conhecemos hoje, se forma a partir da evolução do Estado
Absolutista dos séculos XVI e XVII, no qual o rei concentrava os poderes e legislava (criava
leis) de acordo com seus próprios parâmetros e sentimentos. Não havia, àquela época, o Poder
Legislativo, representado atualmente pelos deputados e senadores que compõem o Congresso
Nacional na esfera federal no Brasil, os deputados estaduais em seus respectivos estados da
federação e, finalmente, os vereadores, em âmbito municipal; ou seja, não havia um controle em
relação às ações do monarca que liderava a sociedade.

Segundo Marmelstein, na obra: Curso de Direitos Fundamentais, Hobbes e Maquiavel, dois


grandes filósofos dos séculos XVI e XVII, são os responsáveis pelos fundamentos de que o poder
deve ser concentrado no soberano, contrariando a concepção de que deveria ser assegurado aos
indivíduos um nível máximo de fruição de sua autonomia e liberdade. Os direitos fundamentais
surgiram como uma barreira ou escudo de proteção dos cidadãos contra a intromissão indevida
do Estado em sua vida privada e contra o abuso de poder.

Desse modo, os questionamentos sobre o poder ilimitado do rei ou do soberano, que liderava determinado
grupo social foram ganhando espaço e, de acordo com Marmelstein, um dos primeiros filósofos a questionar o
absolutismo, foi o alemão Johannes Althusius (1557-1638), defensor da soberania popular.

Pois bem, ao assumir esse papel regulador, surge, no Estado, o ramo do Direito Público, sendo o Direito Penal e o
Processual Penal, espécies desse ramo legal, porque regulam as relações que têm interesse geral para a sociedade.

Esses dois campos do Direito ocupam-se, dentre outros aspectos, do processamento de crimes e contravenções
penais e do modo como o Estado irá resolver esses conflitos.

Desse modo, o Estado passa a ser o protagonista no processamento de crimes e/ou demais situações de
violências e, ao exercer esse papel, coloca-se no lugar da vítima, assumindo a responsabilidade de acusar,
processar, julgar e fazer cumprir a lei.

Buscou-se, portanto, garantir razoabilidade, legalidade e oficialidade para a composição dos conflitos, mas,
por outro lado, afastou-se a vítima do processo, no qual ela passou a figurar, principalmente, como uma mera
informante, uma vez que, originalmente, o sistema legal definiu, com precisão, o status do infrator, sem que a
mesma atenção tenha sido dada à vítima.

Em síntese, a partir da ideia de que o Estado assume a responsabilização no processo penal, de início, de modo
absolutista e, posteriormente, garantindo alguma participação social, percebe-se que o papel da vítima perante
o processo de responsabilização do ofensor foi, paulatinamente, sendo substituído pelo Estado.

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Por exemplo, o Código Penal Brasileiro, no artigo 121, dispõe:
“Matar alguém”. A lei determina que matar alguém é crime; con-
tudo, não identifica uma pessoa especificamente; expõe de modo
genérico a noção de pessoa e de ação delitiva, distanciando as
pessoas envolvidas neste conflito.

Período do Redescobrimento:

Após a Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945), a vítima passa a ganhar alguma atenção. A vitimização
provocada pelas atrocidades cometidas na guerra inspirou a fundação da ONU – Organização das Nações
Unidas, em 1945, e a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Inaugura-se,
portanto, a fase denominada como o redescobrimento da vítima.

Saiba mais
Hans Von Hentig, psicólogo criminal e político alemão (1887-1974), é considerado o
pioneiro nos estudos sobre a vítima. No ano de 1948, portanto, logo após o fim da
Segunda Guerra Mundial, o autor publicou importante obra, O criminoso e sua vítima,
contribuindo para o redescobrimento da vítima; não mais na perspectiva protagonista
original (a vingança privada), mas a compreendendo nos âmbitos da Justiça Pública.

Muitos outros pensadores, pesquisadores e criminólogos, destacando-se Benjamin


Mendelsohn, advogado israelense (1900-1998), dedicaram-se a estudar a temática
relacionada à vítima, seja por sua participação na situação fática referente ao crime,
seja pelo processo de responsabilização do ofensor, ou, ainda, pela necessidade de
reparação dos danos sofridos pela vítima.

Segundo Fernandes e Fernandes, na obra Criminologia Integrada, o 1º Congresso


Internacional de Vitimologia ocorreu em Israel no ano de 1973, onde foram apontados
os objetivos da vitimologia e discutidas as causas da vitimização.

Nas décadas que se seguiram, os estudos e ações de cuidados sobre a vítima avançaram, destacando-se a
Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, de 29
de novembro de 1985, também de iniciativa da ONU.

No Brasil, as ações relacionadas à vítima ganharam maior expressão a partir da redemocratização do país no ano
de 1985, sendo que, as primeiras pesquisas sobre o tema foram realizadas a partir do ano de 1988, embora,
naquela época, pouco difundidas, segundo o que ensina, a primeira Pesquisa Nacional de Vitimização realizada
no país, no ano de 2013, impulsionada, especialmente, pela constatação de que havia uma criminalidade oculta,
não exposta por meio das estatísticas oficiais de crimes cometidos e formalmente investigados.

Você pode acessar essa pesquisa, integralmente, clicando aqui.

Mais recentemente, com o fomento dos princípios da Justiça Res-


taurativa, promulgação de leis específicas e ações de conscienti-
zação social e políticas públicas de atendimento às vítimas, estas
passaram a experimentar o redescobrimento de sua importância
e protagonismo.

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Referências

FERNANDES, D. A. Direitos Humanos e Vitimologia: uma nova postura da vítima no Direito


Penal. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 64, jan./jun. 2014. Disponível em:
https://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&as_sdt=0%2C5&q=DIREITOS%20
HUMANOS%20E%20VITIMOLOGIA:%20UMA%20NOVA%20POSTUR A%20DA%20
V%C3%8DTIMA%20NO%20DIREITO%20PENALI. Acesso em: 02 de maio de 2021.

FERNADES, N.; FERNANDES, V. Criminologia Integrada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, A.; GOMES, L. F. Criminologia: introdução a seus fundamentos


teóricos. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.

MARMELSTEIN, G. Curso de Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.

Pesquisa Nacional de Vitimização. Disponível em: https://helpertecnologia.com.br/assets/


vitimizacao_05_12_2013_senasp.pdf. Acesso em: 04 de maio de 2021.

SÁ, A. A. Vitimização no sistema penitenciário. Revista do Conselho Nacional de Política


Criminal e Penitenciária, Brasília, v. 1, n. 8, jul./dez. 1996, pp.15-32.

ONU. Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade


e de Abuso de Poder. 1985. Disponível em: https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/
files/decl-princjusticavitimas.pdf. Acesso em: 10 de junho de 2021.

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Unidade 2 – Direitos e garantias
“Os direitos do homem nascem como direitos naturais universais,
desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente
encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais” .
Norberto Bobbio (1909-2004)

O pensamento expresso por Bobbio refere-se ao Direito Natural, aquele que, inerente à pessoa humana, deve
ter valor em toda parte e não necessita ser incluído em lei para que seja reconhecido, tal como o direito à vida.

Os direitos positivos (ou positivados) são as normas e leis, ou seja, o sistema normativo de um Estado, que
a todos submete e que visa garantir, inclusive, os direitos naturais.

Quando Bobbio refere os direitos positivos universais, os coloca diante do reconhecimento dos direitos
naturais positivados em documentos supranacionais (que submetem os países que o assinam) e que
deveriam acompanhar o indivíduo por todos os espaços e em todo o tempo de sua vida.

Os direitos e garantias fundamentais relacionados à vítima, confundem-se com todos aqueles relacionados
à pessoa humana, como os direitos naturais; e podem ser positivados no próprio país ou serem fruto de
determinações supranacionais com valor nacional (é este o caso de algumas Declarações da ONU ou outras
agências internacionais que, eventualmente, são assinadas e ratificadas no Brasil).

No curso da história, a humanidade desenvolveu mecanismos de proteção a direitos, considerados


apropriados de acordo com o padrão sociocultural da época em que foram concebidos. Esses dispositivos,
nem sempre reconhecidos e positivados, objetivavam lidar com as violações de direitos, as invasões e
apropriações do que era alheio e a regulação das relações interpessoais.

2.1 Direitos e garantias fundamentais relacionados à vítima


Desde o Código de Hamurabi (1700 a.C., aproximadamente), passando pela Magna Carta de 1215, aos mecanismos
mais recentes de proteção aos direitos humanos, a humanidade busca afirmar, por meio de documentos escritos,
sua vocação para a proteção e o cuidado em relação às pessoas e aos grupos aos quais pertencem.

Saiba mais
Magna Carta - Espécie de Constituição inglesa, promulgada no ano de 1.215, que
visava limitar os poderes do rei e garantir condições para liberdades e direitos
civis. O documento foi imposto pela nobreza ao rei João Sem Terra. Dentre
outras determinações, impunha que o rei só poderia criar tributos ou majorar os
já existentes, com a aprovação do Grande Conselho da Nobreza e que ninguém
poderia ser processado ou julgado sem culpa formada a não ser por seus pares,
mostrando-se como um dos fundamentos do processo penal atual.

Entretanto, nem sempre as ações mostravam-se eficazes para toda a população, porque, dentre outros fatores,
muitos documentos foram construídos de modo desigual, privilegiando determinadas camadas sociais e mantendo
oportunidades mais acessíveis somente a determinados grupos.

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Os princípios de igualdade, fraternidade e liberdade serviram de base para a contenção do poder
absolutista da época, marcadamente exercido na Europa e, também, para a proteção dos indivíduos, dando
início a uma concepção democrática de relacionamento dos cidadãos entre si e destes com as lideranças
políticas e administrativas, o que, paulatinamente, culminou com a promulgação de documentos nacionais
consolidados nas Constituições de cada país do planeta.

Saiba mais

O Brasil teve sete Constituições ao longo de sua história, sendo a primeira,


promulgada ainda na fase do Império (1824), e a mais recente e atualmente em
vigor, a denominada Constituição Cidadã, promulgada em 1988 (CF/88).

Os documentos que embasam as garantias e direitos fundamentais de todos os cidadãos e incluem as vítimas de
crime são fruto de intenso debate e, geralmente, seguem-se a eventos de transformações sociais, provocadas pela
luta de cada povo em seu tempo; portanto, são marcados, histórica, cultural e geograficamente.

Conforme ensina o professor José Afonso da Silva em sua obra “Curso de Direito Constitucional Positivo”, a
Constituição do Estado seria a organização dos seus elementos essenciais que regulam a forma do Estado, a
forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos e os limites
de sua ação. Em síntese, a Constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado.

O título II da CF/88 trata dos direitos e garantias constitucionais, positivando direitos naturais e outros mais.
Conforme se lê no caput do art. 5º, o princípio central cuida dos direitos inerentes à pessoa humana.

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade...”.

Portanto, os direitos e garantias colocados à disposição de todas as pessoas por meio da Constituição Federal e
de outros documentos nacionais e internacionais, têm inegável valor para as vítimas de crime; entretanto, a estas
devem ser garantidos direitos específicos, para que deixem a condição de invisibilidade e passem a ser consideradas
em todas as suas necessidades, como, proteção, informação, apoio, assistência e atenção.

Saiba mais

Um exemplo atual é o de mulheres que se veem, de uma hora para outra,


violadas pela exposição de seu corpo ou de partes dele na internet. Geralmente,
o ofensor é conhecido delas; um namorado ou ex-namorado, marido, ex-marido
ou colega que, sentindo-se, enquanto homem, ultrajado em razão da dispensa
ou separação, deseja vingar-se, publicando fotos, imagens ou nudes nas redes
sociais. Atualmente, esta ação pode ser entendida, civil e criminalmente, como
estupro virtual e o ofensor, caso seja comprovada sua culpa, punido conforme a
lei. Esta modalidade de punição apenas foi possível porque as mulheres que se
sentiam vitimizadas em razão do fato lesivo, provocaram os poderes para que sua
proteção integral fosse assegurada.

Leia mais aqui.

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Em síntese, às vítimas devem ser garantidos os direitos:

• à informação, a respeito do processo penal e as decisões judiciais adotadas, com direito à assistência judiciária;

• à proteção integral, vislumbrando-se aqui, a prevenção a novas violências;

• à participação, com acessibilidade suficiente, no processo penal, a fim de que tenha direito a voz e possa
apresentar seus argumentos e necessidades; direito de ser ouvida e de oferecer provas contra o ofensor ou
contra a ofensa recebida;

• à reparação aos danos sofridos;

• ao apoio necessário, com serviços especializados de cuidado multidisciplinar.

A reparação aos danos sofridos pela vítima deve se constituir em um interesse social, adotando-se uma concepção
inclusiva e um olhar sistêmico, com uma política de Estado consolidada e dotação orçamentária suficiente para a
execução de políticas públicas em sua atenção e cuidados.

O Brasil vem avançando na elaboração e na efetivação de políticas públicas de suporte para as vítimas. A propositura
deste curso representa um desses avanços.

Se você quiser conhecer mais sobre o que está sendo implementado em outros países, especialmente naqueles da
União Europeia, clique aqui.

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Referências

BRASIL. Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei 2.848 de 07 de dezembro de 1940.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm.
Acesso em: 11 de maio de 2021.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.


planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 de maio de 2021.

SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1991.

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Unidade 3. Vitimização e suas espécies
Você já parou para pensar sobre esse termo, Você tem observado como a tecnologia tem
vitimização? avançado nas relações entre as pessoas?

A vitimização é um processo que ocorre em vários Pois bem, quanto à cybercriminalidade, destaca-
contextos e graus; não se dirige apenas à vítima se que os novos meios de comunicação e de
direta e determinada. tecnologias, impulsionados pela expansão da
internet, têm forte impacto na vida das pessoas. O
Saiba que a vitimização decorre de várias mundo globalizado incrementa o crime organizado
situações, como crimes contra a humanidade, transnacional, por outro lado, a internet estimula
criminalidade organizada, crimes contra a a participação das pessoas em redes sociais e
dignidade sexual, pessoas em processo de oferece novas oportunidades para que as vítimas
vitimização como, vítimas pela condição de seu se informem sobre seus direitos, estabeleçam
sexo, vítimas pela origem étnica, condição da contatos para auxiliá-las ou, ainda, participem de
idade, orientação sexual, cybercriminalidade, grupos compartilhando experiências, formando
entre outros; o rol é extenso. uma rede de apoio

3.1 Espécies de vitimização: primária, secundária e terciária


A vitimização compreende alguns subtipos e pode ser classificada em três grupos: primária, secundária e terciária.

Vitimização Primária:

Decorre diretamente do crime – quando for o caso – ou da violência, ainda que esta não se configure em crime
propriamente dito, e do sofrimento causado diretamente à vítima.

Há crimes mais graves, como aqueles que violam direitos fundamentais, como a integridade física de uma pessoa,
colocando sua vida em risco, ou menos graves, como um furto sem violência.

Veja nos exemplos a seguir:

• a pessoa sofre uma agressão; tem-se a violação de um direito e, provavelmente, o delito, mais, ou
menos grave, dependendo de diversas circunstâncias;

• o indivíduo vê-se tolhido por outro, para realizar algo que contava como certo ou necessário; como nas
situações em que uma pessoa disputa com outra a vaga de estacionamento, contando como se fosse dela.

No ambiente em que se considera lícito e, até mesmo, motivo de orgulho o comportamento “levar vantagem”
sobre terceiros, a ocupação de vaga citada não mereceria o status de violência.

O exemplo, aparentemente banal, representa, o que Kepp, jornalista norte americano radicado no Brasil, alertou
sobre os “miniabusos que provocam minidanos”.

Saiba mais

O interessante pensamento de Kepp está sintetizado na frase a seguir: pequenos


delitos são transgressões leves que passam impunes e, no Brasil, estão tão
institucionalizados que os transgressores nem têm ideia de que estão fazendo
algo errado. Ou então acham esses “miniabusos” irresistíveis, apesar de causarem
“minidanos” e/ ou levarem a delitos maiores. Veja na íntegra clicando aqui.

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Desse modo, não é a sofisticação da persecução penal que irá beneficiar a vítima e pacificar a sociedade; estimular
solidariedade e programas de prevenção primária é absolutamente necessário, bem como a realização de ações
inclusivas que diminuam a vulnerabilidade de uma pessoa, de uma comunidade ou de um povo.

Vitimização secundária:

A vitimização secundária ocorre quando o Estado, no Esse tipo de vitimização pode ser um fator que
exercício do controle formal, impõe um sofrimento dificulta a busca pelo sistema de justiça por
adicional à vítima; justamente, a instituição (ou parte da vítima, favorecendo as chamadas cifras
instituições) que deveria(m) se encarregar de cuidar ocultas da criminalidade, levantamento de dados
para que se fizesse justiça e se minimizassem os que não correspondem à realidade e à incidência
danos suportados pela vítima. criminal de fato.

Esse processo de vitimização, também denominado Atualmente, uma das maiores preocupações em
revitimização, pode ocorrer desde o instante em que a relação à revitimização ocorre nos processos
vítima toma a decisão de formalizar uma denúncia, ou de crimes contra a dignidade sexual, sendo as
seja, no momento em que a vítima está na recepção crianças e adolescentes, os principais grupos
de uma delegacia policial e, no local, não encontra a expostos à revitimização.
atenção devida às suas necessidades e apelos.

A série americana, “Inacreditável”, baseada em fatos


da realidade e lançada pela plataforma Netflix no ano
de 2019, expõe o sofrimento de uma jovem, vítima
de violência sexual, diante do Estado revitimizador,
caracterizando a vitimização secundária.

Fonte: Divulgação Netflix.

Acompanhe, leitor(a), um possível passo-a-passo da desgastante sequência de procedimentos que acompanham


as vítimas de crime.

1 Inicia-se com a vítima sofrendo a violência e suas consequências.

2 Ofendida, lesionada, agredida, violentada, essa pessoa dirige-se à Delegacia de Polícia.

3 Adentra um ambiente, em geral, estranho a ela e, por que não, relativamente atemorizador; por
exemplo, uma mulher vítima de estupro sendo atendida por um homem que a intimida.

4 Aguarda o atendimento, em ambiente público, vendo e convivendo com pessoas submetidas a


diversos tipos de situações, todas desagradáveis, estressantes.

5 Começa a perceber que o que lhe aconteceu (para ela, de imensa relevância) corre o risco de
desaparecer no comum dos acontecimentos, relatados por outras vítimas.

6 Atendida pelo escrevente, a vítima, eventualmente, desenvolve a desagradável percepção de


insignificância, ao perceber que seu caso, muitas vezes, não passa de “mais um” no rol protocolar.

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7 Obriga-se, então, a descrever o acontecimento: atividade, no mínimo, estressante; em algumas
situações, causadora de profunda vergonha e desgaste emocional. Em não raras situações,
autêntico desafio emocional, desestabilizador, porque faz reviver acontecimentos que preferiria
esquecer definitivamente.

8 Conforme o caso, deverá enfrentar um exame de corpo de delito, com toda a (nova) invasão de
privacidade que isso significa.

9 Constituir advogado ou buscar a Defensoria Pública, com novos relatos e respostas a


questionamentos. O estresse, mais uma vez, renova-se.

10 Enfrentar, mais tarde, os trâmites processuais, quando ocorre a ida à Justiça e aos tribunais.

11 Prestar depoimento em juízo. Constatar que, de fato, sua participação no processo não passará
de depoente. Percebe-se à disposição do Estado, mas não identifica, nos procedimentos, relevância
no que lhe aconteceu, subjetivamente. Constata que o Estado se encontra mais voltado para a lei
do que para o acontecimento; mais voltado para a punição do que para a reparação.

12 Aguardar o resultado dos julgamentos. Nesse desgastante período adicional, coberto de


incertezas alimentadas pela perspectiva de avaliações indevidas do juiz ou também dos jurados,
conforme o caso, o tempo arrasta-se, colado na ansiedade pela solução do caso.

13 Surge o resultado e, com ele (mas, também sem ele e, até, bem antes dele!), ocorre a vitimização terciária

Embora esse processo de vitimização seja sustentado pelos mecanismos de controle formal, o mesmo pode ocorrer
em relação às respostas das pessoas próximas e da comunidade, como se observará a seguir.

Vitimização terciária:

A vitimização terciária depende de como a comunidade encara o tipo de violência sofrida pela vítima. Alguns
crimes e outras formas de violências provocam indiscutível estigmatização da vítima, particularmente, aqueles que
envolvem a dignidade sexual.

Nesses casos, além de suportar as consequências da violência (que podem incluir assédios, mutilações, gravidez,
desequilíbrios psicológicos severos), a vítima defronta-se com o preconceito de outras pessoas.

A situação da vítima torna-se mais difícil quando se percebe excluída do círculo familiar ou social mais próximo, ou
como alvo de olhares preconceituosos, transmissores de inúmeras mensagens carregadas de recriminação.

Situação comum encontra-se nos casos de violência sexual


intrafamiliar, nos quais, geralmente, a vítima é acusada por seu
comportamento e não recebe a atenção (e, invariavelmente, a
credibilidade) necessária a seu sofrimento.

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Sintetizando, deve-se ressaltar a escassez de pesquisas a respeito do tema no Brasil e a importância de
se adotar ações e programas de apoio e cuidado à vítima, com um foco interdisciplinar, proporcionando a
efetiva e integral atenção em relação aos seus direitos violados.

Nesta unidade programática, você pôde observar que a vítima percorreu um longo caminho para obter
reconhecimento, superando regimes de governo absolutistas e a constituição de um sistema de justiça que
a colocou em uma posição de invisibilidade e, desta, para uma visibilidade que ainda precisa ser aprimorada
e melhor compreendida.

Ser reconhecida em sua dignidade perante os prejuízos sofridos é um primeiro passo para a garantia dos
direitos das vítimas de crime.

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Referências

CALHAU, L. B. Vítima e Direito Penal. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003

CERQUEIRA, D. e BUENO, S. (Coords.). Atlas da Violência 2020. IPEA – Instituto de


Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/
download/24/atlas-da-violencia-2020. Acesso em: 08 de maio de 2021.

KEPP, M. A mania nacional da transgressão leve. Artigo publicado no jornal Folha de S.


Paulo, 2004. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq2608200412.
htm. Acesso em: 15 de maio de 2021.

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