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Temas Contemporâneos

Unidade 4:
Cidadania para os
novos tempos

Objetivos
• Analisar os diferentes temas e práticas constituintes das diversas
formas de relações sociais;

• Reconhecer a multiplicidade de dinâmicas relacionais e a


importância de um posicionamento crítico e reflexivo em relação
aos fenômenos sociais contemporâneos.
Unidade 4

Nesta quarta e última unidade deste componente, discutiremos alguns


tópicos relevantes para os dias atuais: a sociodiversidade, a questão da violên-
cia, tolerância/intolerância e a cidadania. Por serem assuntos de grande im-
portância e bastante em voga nas discussões nos tempos atuais, entende-se que
é necessário o aprofundamento da aprendizagem e a discussão sobre eles. O
desafio é a apresentação de elementos que possam nos auxiliar a compreender
e fazer novas leituras da realidade que nos cerca e possibilitar um posiciona-
mento crítico diante dos fatos, sendo um fator de mudança na sociedade.

Sociodiversidade democrática
A ideia de sociodiversidade tem relação direta com o tema da multicultu-
ralidade abordado na unidade anterior. A origem do conceito se deu a partir de
etnias e povos indígenas que buscavam fortalecer suas culturas e manifestações,
lutando contra a hegemonia e dominação por parte das culturas ocidentais. Con-
tudo, o significado do conceito de sociodiversidade tem uma abrangência maior,
buscando expressar a compreensão de uma sociedade multicultural que englobe a
relação pacífica entre os povos que a compõem e que seja de acolhida entre todos
os migrantes – do passado ou da contemporaneidade –, buscando promover a in-
tegração social de todas as pessoas e o desenvolvimento justo e equitativo.

A concepção de sociodiversidade visa romper com estruturas, modelos e


relações opressoras do passado, criando novas políticas que visem não mais a se-
gregação ou manutenção de privilégios, mas a integração dos povos. Junto aos as-
pectos culturais, é inevitável também pensar a integração dos elementos naturais e
a forma como os seres humanos vivem e se relacionam com os ambientes naturais
nos quais estão inseridos. É preciso refletir que vida e condições de existência se
pretende deixar de herança para as gerações futuras.

É notório o fato de que a sociedade brasileira é composta por múltiplas


culturas, formando uma heterogeneidade de visões de mundo e de modos de ma-
nifestações artísticas. A diversidade é um elemento histórico e social que constitui
o nosso país e engrandece nosso modo de ser. Nos últimos tempos, observa-se um
esforço para a garantia de manifestação e conservação dessas diferenças, seja na
Constituição ou em políticas públicas que visam ao fomento da sociodiversidade.
O Brasil e os brasileiros vêm buscando concretizar o desafio de respeito à diferen-
ça; diferença essa que se manifesta nos modos de pensar, na relação com os demais
e com o meio ambiente etc.

As diferentes faces da violência


Embora o Estado brasileiro esteja calcado sobre a ideia da igualdade formal
entre todos os cidadãos e do reconhecimento da diversidade cultural e étnica, as

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relações cotidianas não estão isentas de conflitos. O acirramento de ânimos e a


manipulação das diferenças têm impulsionado a manifestação e o desvelamento
de preconceitos, discriminações, ofensas e manipulações que não se imaginavam
mais presentes em nossos contextos. A divulgação de mentiras, a exploração da
fragilidade humana através do medo e a sensação de insegurança diante do outro
têm levado a manifestações de ódio e a uma divisão social poucas vezes vista ante-
riormente.

Da mesma forma que vivemos numa sociedade e mundo multicultural e


diverso, a situação e as relações são complexas. Em todas as áreas, em todos os
âmbitos impera a complexidade; ou seja, em todos os pontos que podem ser obser-
vados ou assuntos que precisam ser analisados, há muitas faces e lados que mere-
cem atenção e cuidado. Nessa realidade multifacetada, um fenômeno que merece
estudo e aprofundamento é a violência. Problemas complexos exigem análises sis-
temáticas e não comportam soluções fáceis. Compreender e interpretar as causas
e possíveis consequências das violências que assolam a contemporaneidade não
significa posicionar-se ao lado de malfeitores, mas sim manifestar preocupação
com o futuro da sociedade e da vida de cada sujeito.

Por ser um tema complexo e digno de uma ampla discussão, aqui se preten-
de apontar alguns elementos que nem sempre são observados pelo senso comum
ou pelas mídias sociais. Embora o fenômeno da violência seja algo muito mais em
voga e perceptível nos anos recentes, é necessário observar que ela é um estigma
que acompanha a humanidade desde os seus primórdios, mas em cada época se
manifesta de forma distinta e apresenta características próprias. Cada período his-
tórico tem sua concepção de violência: atos que em determinada fase da história
eram considerados “normais”, em outros momentos podem ser considerados como
violentos. Por exemplo: por longos anos, agressões e castigos físicos perpetrados
contra escravos ou crianças não eram considerados atos violentos.

Para a Organização Mundial da Saúde, a violência consiste em “uma noção


referente aos processos e às relações sociais interpessoais, de grupos, de classes,
de gênero, ou objetivadas em instituições, quando empregam diferentes formas,
métodos e meios de aniquilamento de outrem, ou de sua coação direta ou indireta,
causando-lhes danos físicos, mentais e morais” (WHO, 2002, p. 5, tradução nossa).
A violência, portanto, pode ser de ordem física, moral, sexual, psicológica, patri-
monial, manifestando-se através de atos de agressões físicas diretas, assassinatos,
torturas, roubos ou furtos, negligências, terrorismo, guerras, violência policial, en-
tre tantas outras formas.

Para a pensadora alemã Hannah Arendt (1994), a violência está sempre em


relação com o poder. Por poder, ela entende a capacidade humana legítima de agir
em concerto, ou seja, em harmonia e concordância para fazer as coisas. Isso signifi-

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ca que o poder nunca está em mãos ou detido em apenas uma pessoa, mas perten-
ce a um grupo enquanto ele permanece unido para constituir-se em comunidade
humana. Por sua vez, a violência é uma forma não legítima, um instrumento que
representa oposição ao poder. É um instrumento para se alcançar determinado
propósito. Representa uma injustiça que nega a condição humana dos outros, que
atenta contra a cidadania.

Outra distinção interessante a apontar é destacada pelo professor Marcos


Sassatelli (2018), que entende que a violência existe de duas formas: uma violên-
cia social ou estrutural e uma violência pessoal ou individual. A violência social é
uma forma que faz parte do cotidiano das sociedades e nem sempre é consciente.
É uma forma de as instituições praticarem violências de diferentes espécies contra
as pessoas, que se manifesta, por exemplo, na negligência do Estado ao fornecer
condições de saúde e atendimento médico para a população, ao não proporcio-
nar saneamento básico, nas agressões e humilhações que diferentes pessoas são
submetidas no seu trabalho e por instituições diversas. Já a violência pessoal (que
muitas vezes pode ser reflexo ou consequência da violência social), é mais visível
por se tratar de atos de agressões diretas, entre as pessoas, grupos, famílias etc.

Violência social ou estrutural Violência pessoal ou individual


• ocorre entre instituições e pessoas;
• faz parte do cotidiano das sociedades; • ocorre entre pessoas, famílias e grupos;
• é silenciosa e independe da consciência • é direta e tem visibilidade imediata.
das pessoas.

Fonte: Adaptado pela Univates com base em Sassatelli (2018).

Há um modelo de violência estrutural que afeta a vida de milhões de pessoas


sem que elas percebam, e acaba por torná-las vítimas de um sistema que oprime,
exclui e, muitas vezes, também mata. Tal modelo é mantido por um histórico de
exclusão e de desigualdades sociais. Conforme o estudioso do assunto André Lan-
ger (apud SILVA, 2018), tal violência estrutural se apresenta de formas diferentes:
violência política; violência do modelo de desenvolvimento; violência do sistema
financeiro e violência da desigualdade social.

a) Violência política
A violência política é poucas vezes percebida e muitas vezes muito bem
mascarada. Porém, se manifesta e impacta diretamente a vida das pessoas quando
decisões políticas e judiciárias desestabilizam a vida social, mantendo sistemas e
modelos de exclusão dos mais pobres e privilégios aos mais abastados.

Conforme Langer (apud SILVA, 2018), esta situação pode ser visualizada
no Brasil à medida que o Estado e governos legislam em favor dos poderosos, tor-
nando a vida dos humildes e trabalhadores cada vez mais precarizada, como no

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caso do “congelamento dos gastos públicos na área social por 20 anos, a reforma
trabalhista e a terceirização, a anistia aos desmatadores, isenções tributárias para
as parcelas mais ricas da população e arrocho tributário para os mais pobres, etc.”.
Ou também, ao se perceber que “no Brasil quem ganha até dois salários mínimos
paga 53,9% de impostos, ao passo que aqueles que ganham mais de trinta salários
mínimos pagam apenas 29%” (LANGER apud SILVA, 2018, texto digital). Isso vai
impactar diretamente nos índices de violência pessoal, pois serão as pessoas mar-
ginalizadas e moradores em locais precários e de risco que serão mais fortemente
afetados por tais políticas.

b) Violência do modelo de desenvolvimento


Basicamente regulada pelos grandes detentores dos capitais financeiros,
esta violência vê as pessoas muito mais como recursos e possibilidades financeiras
do que humanos em si. Preocupado com os lucros e estabilidade econômica, o
modelo de desenvolvimento pouco investe ou valoriza os pequenos produtores ou
os que buscam produzir de forma saudável e sustentável. O modelo de mineração,
por exemplo, que busca a extração de riquezas, enxerga os povos indígenas, qui-
lombolas e populações tradicionais como um obstáculo ao crescimento, deixando
de lado sua riqueza cultural e o valor incomensurável de sua humanidade.

Também nas grandes cidades, o sistema atém seu olhar aos modelos de in-
vestimento e lucro, diminuindo a preocupação em relação à vida das pessoas que
não possuem moradia digna, que vivem em condições sub-humanas e de miséria.
Como é de conhecimento geral, tais pessoas excluídas pelo modelo são também as
camadas sociais que serão diretamente impactadas e serão destaque nos meios de
comunicação quando se trata da violência urbana e entre sujeitos.

c) Violência do sistema financeiro


Num modelo muito próximo ao anterior, pode-se entender a violência fi-
nanceira: as grandes corporações e grandes instituições bancárias hoje detém a
maior parte dos capitais financeiros que circulam pelo mundo e fazem a economia
girar. Há corporações que possuem mais dinheiro e capacidade econômica do que
determinados países. Tal situação impacta diretamente nos modelos de democra-
cia e decisão, uma vez que tais empresas podem influenciar nas decisões sobre o
câmbio de moedas, juros e investimentos, fatores que interferem diretamente na
capacidade de consumo e qualidade de vida dos cidadãos.

Conforme Langer (apud SILVA, 2018, texto digital), tal situação impacta
nos índices de violência, pois em nosso país “a maioria pobre tem sua vida admi-
nistrada pelo sistema da dívida, que oprime as possibilidades de emancipação das
pessoas, reféns de instituições espúrias, que lucram com as vicissitudes daqueles
que lutam para sobreviver”.

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d) Violência da desigualdade social


Talvez a violência estrutural mais visível aos olhos e presente nos debates que
nos ajudam a entender os fenômenos da violência urbana e pessoal diz respeito à
violência da desigualdade social. O modelo social e de produção privilegia os mais
abastados, incentivando a produção e, principalmente, a acumulação de riquezas.
Boa parte da população que vive em condições de mera sobrevivência é diariamen-
te levada a acreditar que a conquista de riqueza é uma questão apenas de mérito e
esforço pessoal, incutindo fortes sentimento de culpa naqueles milhões (a grande
maioria da população) que não alcança níveis cômodos de vida e acumulação.

Como boa parte da população (principalmente a juventude) se sente qua-


se que na “obrigação” de alcançar determinados níveis de consumo para ser re-
conhecida pelos demais, e isso se torna impossível por meios lícitos e honestos,
encontram e se refugiam em modelos violentos e à margem da lei para buscar re-
conhecimento, ascensão social, níveis de consumo etc. Tais fenômenos impactam
diretamente nas relações, principalmente dos grandes centros comerciais e po-
pulacionais, inflacionando os números da violência, roubos, furtos, assassinatos,
tráfico de entorpecentes e assim por diante.

Fonte: Beck (2015).

Uma vez observados esses elementos que poucas vezes são destacados, mas
possuem grande impacto, é também importante observar que a violência, com a
complexidade que lhe é inerente, possui muitas faces. É inegável que há também
fatores que dizem respeito aos indivíduos, como biológicos, educacionais, morais
e culturais; tais elementos devem estar presentes na análise dos casos de violência
pessoal. Ainda, não há como deixar de considerar os fatores familiares e comuni-
tários, ou seja, as instituições e, inclusive, as questões ambientais que influenciam
na formação e desenvolvimento dos sujeitos que acabam por se envolver nas rela-
ções violentas.

Outro elemento que é necessário destacar é o fato de que a violência é uma


forma de coisificação dos sujeitos. O modelo capitalista de produção e de valo-
rização da acumulação de bens e riquezas acaba por considerar grande parte da
população muito mais como mão de obra e potencial de consumo do que como
valor humano. Os humanos são valorizados como capitais de uso e troca, perden-

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do o sentido da humanidade que deveria reger as relações. O exemplo disso pode


ser percebido quando alguns crimes de ordem financeira e contra o patrimônio
recebem mais atenção e punição do que crimes contra a vida humana; paradoxo
esse que revela o pouco sentido que a vida representa para determinados setores
sociais hoje.
Muitas vezes, as relações humanas são reduzidas à mera condição de anima-
lidade, destacando-se demasiadamente a violência física que recai sobre os corpos
dos sujeitos, não se atendo à violência que afeta a alma, os fatores psicossociais,
emocionais e até espirituais dos sujeitos. Esses fatores também são ofuscados pelo
alto nível de espetacularização e sensacionalismo que a violência assumiu nos dias
atuais: tornou-se um negócio de mídia, que funciona também para incutir medo e
aumentar ainda mais a sensação de insegurança nas pessoas.

Com a polarização vivenciada atualmente (que separa as pessoas por cores


partidárias, níveis sociais, ideologias etc.), a sociedade está cada vez mais dividida
em setores ou “guetos”. Tal fenômeno tende a ver “o(s) outro(s)” sempre como
inimigos e elementos de risco. O outro é tachado como perigoso, fonte do mal,
origem do tráfico de drogas e da violência, predisposto à agressão e roubos violen-
tos, ou seja, o outro é sempre visto como risco e, portanto, alguém que precisa ser
aniquilado, controlado, eliminado, violentado, desprestigiado... A violência pode,
assim, ser vista tanto como causa quanto como consequência dos processos de
desumanização que nossa sociedade vive hoje.
Para saber mais
Para entender de que maneira a violência reforça as desigualdades da sociedade
brasileira, assista à entrevista A violência no Brasil explicada por Sergio Adorno, do
canal Nexo Jornal, disponível no Youtube.

Tolerar a intolerância?
As dinâmicas e todos os aspectos que estão involucrados no fenômeno da
violência nos remetem a outra questão fundamental para a convivência em socie-
dade: a (in)tolerância. O modelo de sociedade atual está atravessando uma crise
de identidade e organização em que a polarização e os fundamentalismos vem
se acentuando e dividindo ou afastando as pessoas ou os grupos entre si. A im-
pressão que fica, muitas vezes, é a de que o diálogo e a convivência pacífica com a
pluralidade foram tomados pela intolerância, pelas agressões e manifestações de
animosidade em relação ao diferente.

Quando a linguagem, a abertura ao diálogo e a simpatia diante do outro fra-


cassam ou deixam de ser valores que pautam as relações, a violência predomina.
Nesse sentido, não se pretende entender a tolerância como a aceitação de tudo o
que acontece em sociedade ou uma imposição de modelos predeterminados, mas

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sim como a capacidade de respeitar os demais. Trata-se de buscar construir rela-


ções horizontais, de respeito recíproco entre os sujeitos e grupos, num pacto social
mínimo de não agressão aos direitos e à condição humana. A organização da con-
vivência entre povos deve pautar-se em argumentos e na aceitação da diferença, e
não no uso de forças ou ameaças.

A cooperação solidária entre os povos e a tolerância com o diferente são


marcas que auxiliaram as sociedades em seu desenvolvimento. A educação dos
sujeitos e das coletividades para a tolerância com os outros e com os diferentes
representa um grande marco civilizatório: a vitória da civilização contra a barbá-
rie. A tolerância requer dos sujeitos e comunidades um extraordinário exercício
de humanidade e de compreensão, “requer de nós aceitar as pessoas e consentir
suas práticas mesmo quando as desaprovamos fortemente. Tolerância então en-
volve uma atitude intermediária entre a absoluta aceitação e a oposição imodera-
da” (SCANLON, 2009, p. 31). Exige igualmente muita reflexão e sabedoria para
discernir e estabelecer o que não pode ser tolerado e merece uma punição social,
por exemplo, assassinatos e outros atos criminosos.

A tolerância exige hoje, e mais do que nunca, a aceitação da possibilidade


da diferença, das discordâncias de pensamento e ideologias, das diferenças de clas-
ses, de cores partidárias, orientações sexuais, visões religiosas e gostos individu-
ais. Consiste em permitir que aqueles que consideramos equivocados em decisões
pessoais tenham seus direitos fundamentais respeitados e possam levar sua vida
sem serem agredidos, ameaçados ou excluídos. Requer também dos Estados e po-
deres públicos uma ação firme que faça com que todos respeitem as condições dos
diferentes e das minorias. O Estado, na conjuntura atual, é o grande fomentador
da paz e do respeito e não o difusor de ódios, intolerâncias e discriminações contra
as minorias e diferenças.

Tolerância hoje também representa uma postura política (não necessaria-


mente partidária) de firme decisão em favor da democracia e contra os autoritaris-
mos e ditaduras. É a compreensão de que todos são igualmente dignos para parti-
cipar da política e decidir o futuro das sociedades de que fazem parte. Tolerância
é interpretar os processos sociais como uma construção conjunta em favor de um
futuro possível e melhor para todos, e não de discriminação e de construção de
privilégios em detrimento do sofrimento e da morte de outros. É ter a humildade
de reconhecer que ninguém é especial, superior ou melhor que os outros, mas que
todos são iguais e têm os mesmos direitos; que não existe apenas uma forma de
vida ou uma verdade que deve ser submetida e imposta a todos.

Dessa forma, a intolerância é uma alienação diante da sociedade e uma ne-


gação dos demais membros da comunidade. Igualmente, a intolerância também
pode conduzir a uma espécie de reciprocidade: o intolerante pode também não

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ser tolerado pelos outros e assim a vida social torna-se praticamente insustentável.
Conforme o pensador Thomas Scanlon (2009, p. 38), o valor da tolerância pode
melhor ser compreendido através do seguinte exemplo:

“Nossos filhos fornecem o exemplo mais claro. Na condição de meus


filhos, eles são membros plenos de nossa sociedade tanto quanto eu.
É a sociedade deles o tanto quanto é minha. O que se aprende como
um pai, entretanto, é que não há garantia de que a sociedade que eles
irão querer seja a mesma que eu quero. Intolerância implica que o
direito deles de viver como escolherem e de influenciar os outros a
fazer o mesmo seja condicionado a concordarem comigo quanto ao
modo correto de se viver. Se acredito que os outros, na medida em
que discordam de mim, não têm o mesmo direito que eu de moldar
os costumes de nossa sociedade comum, então devo pensar o mesmo
com relação a meus filhos, caso eles aderissem a essa oposição. É pos-
sível que eu sustente que o simples fato de serem meus filhos dê a eles
uma posição política privilegiada. Mas isso me parece questionável.
Menos questionável, acredito, é que esse exemplo revela o dado de
que a intolerância envolve uma negação da plena filiação aos ‘outros’.
O que há de particular em relação a nossos filhos, no caso, é apenas
que a filiação deles é impossível de se negar. Mas a intolerância nos
força a negá-la, por torná-la condicionada à concordância substanti-
va com nossos próprios valores.”
Antes de prosseguir com a leitura do material, acesse o Ambiente Virtual e as-
sista ao vídeo Raízes da Intolerância | Pedro de Santi.

O grande questionamento fica por conta do seguinte: deve-se tolerar o in-


tolerante? É o que se denomina como o paradoxo da liberdade ou da tolerância.
Permitir a liberdade ou manifestações intolerantes sem limites ou restrições pode
ferir mortalmente a liberdade de outros ou favorecer que intolerantes e violentos
escravizem os demais. Tolerar incondicionalmente os intolerantes levaria à aniqui-
lação da tolerância. A solução apresentada pelo filósofo inglês Karl Popper (1974,
p. 289-290) ensina que “deveremos então reclamar, em nome da tolerância, o di-
reito de não tolerar os intolerantes. Deveremos exigir que todo movimento que
pregue a intolerância fique à margem da lei e que se considere criminosa qualquer
incitação à intolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação
ao homicídio, ao sequestro de crianças ou à revivescência do tráfego de escravos”.

Dica de vídeo
Assista a uma entrevista com Mario Sergio Cortella, em que ele analisa a intolerân-
cia no cenário social atual: Intolerância - Parte 1.

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Unidade 4

O desafio da cidadania
Os temas anteriormente abordados nos conduzem à discussão de um ponto
de grande relevância para a contemporaneidade: a cidadania. O que representa
ser cidadão hoje? O que se pode entender por cidadania e qual sua importância
para a construção das sociedades contemporâneas e do futuro?

A cidadania moderna tem seu berço histórico e seu sentido ancorado na


ideia de igualdade de poder de participação dos sujeitos nas decisões sobre as cida-
des e na configuração dos direitos fundamentais das pessoas. A ideia da cidadania
como igualdade é a derrubada de privilégios de determinados grupos, instituin-
do-se o propósito de liberdade e igualdade entre todos os sujeitos, tornando-os
cidadãos, ou seja, membros efetivos e ativos das cidades.

Se primeiramente a cidadania estava vinculada à ideia de direitos políticos,


a partir do século XX ela se aproxima das concepções e conquistas dos direitos so-
ciais. Esses direitos representaram e representam a proposta de garantia de efetiva
integração de todos nas conquistas econômicas e sociais da sociedade global, in-
cluindo principalmente as categorias antes relegadas, como idosos, crianças, anal-
fabetos, mulheres etc.

Cidadania representa, assim, o envolvimento de todos na luta por melhores


condições de vida, na busca por garantir o efetivo direito e acesso à saúde, educa-
ção, saneamento, segurança pública. É a busca de um novo padrão social de di-
minuição de desigualdades que afrontam a vida digna de muitos. A cidadania re-
presentou a incorporação de classes (trabalhadores urbanos, camponeses, pobres
etc.) à condição de membros políticos e participantes da construção democrática
das comunidades.

Na sua vinculação aos direitos humanos, a cidadania não representa ape-


nas o sentido jurídico de pertencer a determinado país, mas, conforme afirma
o professor Darcísio Correa (2002, p. 217), “pode-se falar em cidadania como a
representação universal do homem emancipado, fazendo emergir a autonomia de
cada sujeito histórico, como a luta por espaços políticos na sociedade a partir da
identidade de cada sujeito”. Ou seja, é o efetivo direito e envolvimento concreto de
cada sujeito como membro efetivo da comunidade, com direito e exercício de par-
ticipação na esfera pública, onde todos são iguais. Não se trata apenas do exercício
da palavra, mas da cooperante construção de condições de vida digna para todos,
sem distinções de classes, ideias religiosas, orientações políticas, sexuais e assim
por diante.

A cidadania está carregada de um sentido político. Obviamente não no


sentido que muito comumente se aplica, de membro de determinada agremiação

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ou partido, mas sim de partícipe e construtor da cidade (que em grego significa


polis ou em latim civitas). Naturalmente, todos os seres humanos são diferentes,
mas é a participação e a atuação como membros das cidades que torna a todos
iguais, onde o voto e a voz de cada um deve ter o mesmo peso, sem privilégios
financeiros ou outros.

Nesse sentido, é muito ilustrativa a afirmação de Celso Lafer (1988, p. 219):


“a cidadania é fundamentalmente o processo de construção de um espaço público
que propicie os espaços necessários de vivência e de realização de cada ser huma-
no, em efetiva igualdade de condições, mas respeitadas as diferenças próprias de
cada um”. Ser excluído ou não ser cidadão hoje representa também uma não con-
sideração da condição de ser humano, uma expulsão da condição de humanidade.

Se a democracia representa a ideia de efetiva participação da e na vida das


cidades onde vivemos, resta o desafio de se pensar a democracia para hoje e para
o futuro:

1. Em meio a um modelo social e econômico que privilegia e incentiva o iso-


lamento e o individualismo, como as pessoas hoje se envolvem nas decisões
que impactam a vida de todos?

2. Qual a efetiva participação dos cidadãos nas entidades comunitárias, que


representam um elo e são manifestação concreta da união de sujeitos na
luta por melhores condições de vida?

3. Que cidadania se requer para os dias atuais e no futuro, tendo presente to-
das as questões sociais, políticas, ambientais etc.?

4. Como ser cidadão num mundo da tecnologia e da comunicação?

5. Em tempos de intolerância, qual a importância de participação e da com-


preensão da vida das pessoas para a construção de uma cidade para todos?
Desafio
Esses e tantos outros questionamentos devem nos levar a (re)pensar a condição
de cada sujeito como cidadão responsável e atuante pela construção de uma
sociedade melhor. Escolha um desses questionamentos, reflita sobre ele e comente no
fórum da unidade, no Ambiente Virtual.

Antes de prosseguir com a leitura do material, acesse o Ambiente Virtual e as-


sista ao vídeo Da Cidadania ao Cidadaniar! | Sandra Molina | TEDxIguatemi.

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Unidade 4

Ao longo desta quarta unidade, foi possível estudar e discutir um pou-


co sobre a sociodiversidade como direito à diferença e manifestação livre da
cultura dos povos. Igualmente, foi abordada uma questão que muito preo-
cupa nos tempos atuais: a violência com suas causas e consequências. Como
um problema complexo, a violência requer uma análise profunda e ações
inteligentes e muitas vezes urgentes.

Refletimos também acerca do que representa a tolerância num mundo


dividido e facetado como o de hoje: representa o respeito à diferença, mesmo
sem concordar com ela. Isso não significa, porém, tolerar os intolerantes, o
que poderia representar a aniquilação e eliminação da própria tolerância.
E o grande desafio para a contemporaneidade diz respeito à cidadania: que
cidadãos somos e que modelo de cidadania se requer para o futuro? Mais do
que lançar receitas ou modelos de comportamentos, buscou-se lançar luz
sobre elementos filosóficos e políticos que possam embasar a atuação cidadã
de cada um na busca por um mundo melhor e possível para todos.

Atividade
Após a leitura da unidade, acesse o Ambiente Virtual e realize o questioná-
rio proposto.

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Referências

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BECK, Alexandre. [Tira de Armandinho sobre igualdade social], 30 jun.


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CORREA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico-políticas.


Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o


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POPPER, Karl. R. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia,


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SCANLON, Thomas M. A dificuldade da tolerância. Novos estud. - CEBRAP,


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www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/en/full_en.pdf .

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