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Impactos da violência estrutural e a relação com a interseccionalidade:


visibilizando violências raciais e (re)dialogando a pluriversalidade.

Thábata Jeandra da Silva ​Ferreira​1

Resumo:

A expectativa deste trabalho é olhar para as faces da violência estrutural, dando


visibilidade ao impacto que isso tem quando recorta-se raça, classe, gênero e
analisar as formas com que o tema é abordado e observado nos ambientes
profissionais, viabilizando a desconstrução e desnaturalização das violências. ​É
possível observar os impactos da violência estrutural quando desmembrada a
história. A partir disso é possível captar os fatores estruturais e econômicos que nos
trazem à desigualdade social. A interseccionalidade será o fator centralizador para o
diálogo, uma vez que traz em seu conceito os eixos considerados potencializadores
de violências cotidianas. Serão evidenciadas as formas com que alguns sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas e o quão banalizada é a
problematização acerca dessas violências. Para tanto contaremos com estratégias
de enfrentamento a partir do conceito de pluriversalidade e outros diálogos.

Palavras chave
Racismo. Estrutura Social. I​nterseccionalidade. Pluriversalidade.

Structural impacts of violence and its relationship with intersectionality:


making racial violence visible and (re) dialoguing pluriversality.

Abstract
The prospect of this work is to look at the different sides of structural violence, giving
visibility to the impact it has when cutting out race, class, gender and analyzing the
ways in which the theme is approached and observed in professional environments,
enabling deconstruction and denaturalization of violence. It is possible to observe the
impacts of structural violence when history is broken up. From that, it is possible to
recognize structural and economic factors that bring us to social inequality.
Intersectionality will be the centralizing factor for dialogue, since it brings in its
concept the axes considered to be the potentializers of everyday violence. It will be
highlighted the ways in which some discriminatory systems create basic inequalities
and how trivialized the problematization around these violences are. To this end, we
will be coping with strategies based on the pluriversality concept and other dialogues.

Keywords
Racism. Social Structure. Intersectionality. Pluriversality.

1​
Assistente Social. Universidade Luterana do Brasil – ULBRA.
Pós graduanda em Trabalho Social com Famílias e Comunidades. DOMUS/FAMAQUI
2

Introdução

Entender a estrutura social não é tarefa tão fácil quanto parece. Considerar
fatores históricos e entender os impactos que isso tem no mundo é mais difícil na teoria
do que na prática. Ainda mais quando estamos falando de uma estrutura racista,
sexista e patriarcal, que assola a humanidade desde muito antes de você, que está
lendo este artigo, nascer. É possível afirmar que o que é histórico é processual, uma
vez que todo fato estrutural advém de uma organização e construção histórica.
Pensando nas práticas profissionais, quando naturalizados e desconsiderados esses
fatores, os mesmos reverberam como forma de violência principalmente nos espaços
institucionais onde por exemplo, ao desconsiderar o racismo, o profissional reproduz,
naturaliza e perpetua violências históricas.
Esta escrita propõe refletir a estrutura por trás dos rótulos. O objetivo é
analisarmos juntos os impactos dessa estrutura que nos leva ao caminho das diversas
formas de violar direitos. Falar sobre isto é uma forma de resistir à naturalização
destes fatores e participar ativamente da luta contra o desatentamento a tais
expressões.
Uma conceituação acerca do problema que busca capturar as consequências
estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação, é a
interseccionalidade. A teoria trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas.
Como metodologia de coleta das informações, serão considerados fatores
históricos e apresentação de dados no formato qualitativo, numa perspectiva de
elucidar as reflexões baseando-nos em números e vivências cotidianas. Ser mulher,
negra e moradora da periferia me coloca diretamente neste estudo, que traz a
interseccionalidade como sendo uma condição à parte do que somente vivenciar essas
categorias e as violências atreladas a elas de formas isoladas.
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A violência estrutural e o diálogo com a história

Podemos iniciar nosso diálogo situando o colonialismo histórico como sendo um


processo de apropriação e exploração de terras e povos (ASSIS, 2014). É possível
afirmar o colonialismo como sendo “o conjunto de trocas extremamente desiguais que
assentam na privação da humanidade da parte mais fraca como condição para a
explorar ou para a excluir como descartável” (SOUSA, 2010, p. 37). Decorrido do
colonialismo, iremos refletir o conceito de colonialidade, ideia que explica o fenômeno
em sua continuidade, como sendo a extensão resultante do colonialismo até os dias
atuais, perpetuando mesmo que subjetivamente as hierarquias impostas na sociedade
e o sofrimento ético-político advindo deste sistema. Sobre colonialidade, Aníbal
Quijano (2005) afirma que: “A permanência conflitiva da relação de domínio colonial,
evidencia uma estrutura ou matriz de poder colonial que parte dos interesses do
capitalismo, no marco da modernidade e que perpassa todos os âmbitos da vida”.
Atrelado a esse conceito existem três tipos de colonialidade a serem
considerados: colonialidade do ser, que se configura na inferiorização, subalternização
e desumanização do indivíduo; colonialidade do poder, que vai configurar o modelo de
poder global hegemônico que parte e reforça as classificações sociais baseadas em
raça e sexo, distribuindo tais identidades sociais entre superior ou inferior; e
colonialidade do saber, que impõe um único saber válido, sendo este baseado no
eurocentrismo.
Quando a violência estrutural é mencionada neste contexto, a intenção é
responsabilizar os reais motivadores de todo sofrimento ético-político causado àqueles
que foram desapropriados de suas culturas, removidos de suas terras, separados de
suas famílias e jogados às margens de uma história que os desconsidera como os
principais prejudicados diante desta estrutura. A violência estrutural baseia-se na
exploração. Exploração esta que, mesmo na sociedade atual, não é considerada um
problema.
Quando entendemos a violência como uma delinquência, propaga-se a ideia
imersa no senso comum de direcionar determinados atores na história rumo à
marginalização, desconsiderando a visão de que a delinquência é uma das
manifestações da violência. Deste modo, toda violência social tem caráter revelador de
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estruturas de dominação e surge como expressão de contradições entre os que


querem manter privilégios e os que se rebelam contra a opressão. Esse tipo de
violência aparece na sociedade de forma naturalizada, como se não houvesse sobre
ela a responsabilidade do sujeito político (Minayo, 2001). ​Como características
relacionadas ao surgimento e manutenção da violência, devem ser considerados
fatores psicológicos, sociais, econômicos e culturais.
Segundo Minayo (1994), a violência estrutural pode ser entendida como
“violência gerada por estruturas organizadas e institucionalizadas, naturalizada e oculta
em estruturas sociais, que se expressa na injustiça e na exploração e que conduz à
opressão dos indivíduos’’. A partir dessa perspectiva podemos refletir sobre a estrutura
do encarceramento em massa, por exemplo.
A taxa de negros comparada à taxa de brancos aprisionados tem crescido
constantemente nas últimas décadas, o que se contrapõe ao número de negros dentro
das universidades. Esta disparidade pode ser entendida como consequências do
racismo que segue perpetuado em nossa sociedade. No Brasil, diversos fatores podem
ter influenciado diretamente neste processo, dentre eles, a ampliação das políticas
neoliberais, o aumento do controle punitivo, a ênfase na guerra às drogas, e a
criminalização da pobreza.
Mencionar os impactos das violências estruturais sofridas ao longo dos anos
infere a apresentação dos dados relacionados aos períodos aos quais nos referimos,
para que assim seja viável mensurar as repercussões atuais desta estrutura.
Será possível sulear​2 abaixo, de forma resumida, a estrutura do racismo no
Brasil a partir da linha do tempo materializada por AD Junior (2019), pesquisador e
consultor da diversidade, em um reflexivo estímulo de entendermos o quanto é atual o
racismo estrutural.

2 ​
“Sulear” aparece aqui numa direta contraposição ao termo “nortear”. Na esteira das leituras de
Boaventura Santos, concordamos que as conotações ideológicas articulam as ideias de Sul e Norte
como em desenvolvimento versus desenvolvido, bárbaro versus civilizado, periferia versus centro.
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Figura 1 Linha do tempo elucidando racismo estrutural no Brasil


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Na teoria marxista, o materialismo dialético diz respeito à luta de classes, sendo


este o movimento chave para a transformação da sociedade. Para Marx, a relação
capital x trabalho explica a sociedade capitalista, trazendo em seu conceito
concepções sobre os processos individuais dos seres humanos. Isto implica entender
três categorias centrais do materialismo dialético: totalidade, que diz respeito a mais do
que a reunião de todas as partes, significa um todo articulado, conectado, onde a
relação entre as partes altera o sentido de cada parte e do todo; historicidade, sendo
esta categoria baseada na concepção de que os fenômenos não são estáticos, estão
em curso de desenvolvimento e, portanto, só podem ser apreendidos a partir do
desvendamento deste movimento, ou seja, por sua historicidade; e a contradição, que
remete à ideia de movimento, tensionamento, algo que é capaz de criar e destruir, é a
luta dos contrários na tentativa de superar conflitos (PRATES, 2012)​​. Sendo assim,
toda violência tem caráter revelador de estruturas de dominação e surge como
expressão de contradições entre os que querem manter privilégios e os que se
rebelam contra a opressão.
Cabe aqui, uma breve retomada sobre violência estrutural, que traz em seu
conceito a reflexão acerca da exclusão e desvantagem de determinadas categorias: “a
violência estrutural se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da
família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão
determinadas pessoas’’ (ALMEIDA e COELHO, 2008 apud MINAYO e SOUZA, 1998).
Para Iamamoto:

“[...] reconhecer as possibilidades e limitações históricas, dados pela própria


realidade social, é fundamental para que o serviço não adote, por um lado,
uma postura fatalista, ou seja acreditar que a realidade já está dada, ou por
outro lado, uma postura messiânica, achar que o serviço social é o messias,
que é a profissão que vai transformar as relações sociais. É importante ter
essa compreensão para localizarmos o lugar ocupado pelos instrumentos de
trabalho utilizados pelo assistente social em sua prática”. (IAMAMOTO. 2001,
p. 22)

É importante considerar que a violência exercida contra a população mais


pobre, é produto de uma configuração capitalista, segundo a teoria de Marx. Estes
processos em que ocorrem violações de direitos como, exclusão social do indivíduo,
contexto de pobreza, rompimento, privação ou fragilização dos vínculos sociais e
familiares, discriminação e materialização de elementos que causem restrição às
questões de pertencimento individual, são dadas como configurações de
vulnerabilidade (BRASIL, 2011). Vulnerabilidade diz respeito à falta de algo, material
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ou imaterial, e à exposição individual por conta disso. De acordo com Silva (2007), a
vulnerabilidade social pode se manifestar em dois planos: estrutural e subjetivo. No
plano estrutural, pode ser dada por uma mobilidade descendente e, no plano subjetivo,
pelo desenvolvimento de sentimentos de incerteza, insegurança, de não-pertencimento
a determinado grupo, de fragilidade destes.

A interseccionalidade como forma de visibilização das violências

A teoria interseccional consiste no estudo da interação das identidades sociais


sobrepostas ou interceptadas, particularmente as minoritárias, e da forma como se
relacionam com sistemas e estruturas de opressão, dominação ou discriminação
(MOUGEOLLE, 2015).
A associação de sistemas múltiplos de subordinação tem sido descrita de vários
modos: discriminação composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou tripla
discriminação. A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca
capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais
eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e
políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo
aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento. (CRENSHAW 2002, p.117)
Interseccionalidade é um conceito sociológico que estuda as interações nas
vidas das minorias, entre diversas estruturas de poder. Podemos pensar nisso como
sendo a ''justificativa'' das diferentes formas de dominação ou de discriminação
humana. A raça é um fator determinante para que haja violência na sociedade, e este
fato perdura há muito tempo (MOUGEOLLE, 2015).
As relações de poder, permeadas por particularidades de gênero, raça/etnia e
geração, demonstram a complexidade das construções que se materializam em
relação com as raízes históricas, culturais e sociais (GROSSI, 2017). A perspectiva
interseccional nos permite construir uma compreensão mais ampla e complexa da
realidade.
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Sobre isso Hidrata (2014, p. 2-3) afirma:

Remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das


identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque
integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos
das diferenciações sociais que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça,
etnicidade, idade, deficiência e orientação social. O enfoque interseccional vai
além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão
que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na
reprodução das desigualdades sociais. (HIDRATA. 2014, p. 2-3).

A interseccionalidade é a forma de analisar os fatores que levam a violência de


mulheres negras de forma diferente das violências sofridas por mulheres não negras,
uma vez que aponta para uma perspectiva teórico-metodológica de pensar as diversas
formas de discriminação, opressão e subordinação dessas mulheres, ou seja, perceber
como as categorias de gênero, raça/etnia e classe social, se entrecruzam construindo
esse espaço de violência a qual elas estão imersas (MESQUITA, 2010).
O racismo é um fenômeno de abrangência ampla e complexa que perpassa pela
cultura, política e ética na sociedade. Racismo consiste no preconceito e
discriminação com base em percepções sociais baseadas em diferenças biológicas
entre os povos (WERNECK, 2016). Segundo estudo realizado pela ONU (Organização
das Nações Unidas), o racismo é visto como sendo estrutural, institucionalizado e
vinculado a todas as áreas da vida. A partir desta constatação, a entidade afirma: há
um mito na democracia racial brasileira sobre igualdade de raças que parte da própria
sociedade quando nega a existência de racismo (GELEDÉS, 2015).
O livro “Mulheres, raça e classe” foi escrito por Ângela Davis em 1981 e é
considerado um clássico sobre a interseccionalidade de gênero, raça e classe. Nele, o
intuito é traçar um panorama histórico e crítico sobre as relações entre os senhores e
os negros e negras escravizados nos Estados Unidos do século XIX, bem como, das
relações de trabalho vigentes no período pré-guerra civil, demonstrando que o
questionamento acerca da violência contra a mulher negra existe há muito tempo.
O interesse por gênero, classe e raça, enquanto categorias de análise,
demonstra o compromisso de pesquisadores com a inclusão da voz dos sujeitos
excluídos, assinalando que as desigualdades de poder estabelecem-se, no mínimo, a
partir desses três eixos principais: gênero, raça e classe (MIRANDA, SCHIMANSKI,
2014, p. 68).
A violência, em suas diversas expressões na sociedade, causa efeitos vitais
individuais e coletivos. Ao ponto que se banaliza a especificidade de uma atitude
violenta, viola-se a garantia de ter-se em plenitude direitos básicos, “uma vez que
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extirpa os seus direitos de desfrutar das liberdades fundamentais, afetando a sua


dignidade e autoestima” (PAULA, 2012, p.3).

A pluriversalidade como forma de enfrentamento às violências raciais

Partiremos de dois lugares nesta reflexão para retratar as formas como são
vistas as violências raciais no ambiente acadêmico/profissional. Primeiro falaremos
sobre a pluriversalidade como sendo o reconhecimento de que todas as perspectivas
devem ser válidas, tendo como sul o privilégio como equívoco de um ponto de vista
(NOGUEIRA, 2018). Após isso, discutiremos as formas de viabilização da educação
antirracista nos espaços acadêmicos e profissionais.
Plurificar o conhecimento é romper a ideia de que o saber ocidental deve ser
hegemônico. Quando idealizamos algo como universal, generalizamos a ideia de que
tudo parte de um padrão, que historicamente fará referência à branquitude. Podemos
utilizar como exemplo desta reflexão os métodos de ensino nas escolas, academias ou
qualquer instituição de aprendizagem, onde a metodologia, base e instrumentalidade
de ensin​o, serão suleados pelo saber branco, sendo utilizados autores brancos e
outras referências não-negras de forma predominante.
Quando somos parte dessa realidade, onde reproduzimos somente o que nos é
ensinado sob ponto de vista colonial numa perspectiva eurocêntrica, é natural que o
diálogo apresentado na vida social seja reflexo de atitudes excludentes e
discriminatórias que vão reafirmar, mesmo que de forma inconsciente, a perpetuação
das violências. Como exemplo disso podemos citar os termos: ‘‘a coisa vai encrespar’’,
‘’bolo nega maluca’’, ‘’denegrir’’, como forma de negativação do negro; ‘’pobrezinh@’’,
‘’marginais’’, reforçando a hierarquização de classes; ‘’coisa de mulher’’, ‘’postura de
menina’’, padronizando e limitando o ser humano pelo gênero; entre outras inúmeras
terminologias inseridas e reproduzidas cotidianamente.
Você já se perguntou por que não aprendeu na escola a real importância dos
lanceiros negros na revolução farroupilha (1935-1945), sendo eles as maiores
potências da guerra? Você sabia que eles só participaram da revolução sob promessa
de liberdade e como forma de negação a isso foram desarmados, traídos e
massacrados após acordo dos farrapos com o império? Provavelmente você, assim
como eu, aprendeu em primeira instância outra versão da história e não o massacre
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dos porongos​3 como fator central do acontecimento. Mais uma vez fomos induzidos
pelo olhar eurocêntrico dos registros históricos. A partir disso, enaltecemos em muitas
ocasiões a figura mítica do gaúcho tradicionalista como sendo este o verdadeiro herói
da revolução.
Este exemplo aparece neste argumento para sulear e contemplar o conceito de
pluralidade, onde desconsidera-se o saber africano para validar-se o saber ocidental. A
ciência é uma ferramenta importante na construção e perpetuação do racismo, sobre
isso Sueli Carneiro (2020) afirma: “Nós produzimos uma forma de ciência que não foi
capaz de coexistir harmonicamente.”
Relacionar a hierarquização das relações dentro e fora do ambiente acadêmico,
diz muito sobre epistemicídio, conceito que pode ser entendido como mecanismo de
manutenção do poder, uma vez que ‘’se realiza através de ações que se articulam e se
retroalimentam, relacionando-se tanto com o acesso e permanência no sistema
educacional, como com o rebaixamento da capacidade cognitiva do aluno negro’’
(Martins, Moita ​apud​ C
​ arneiro, 2005).
O racismo epistêmico ocorre dentro do campo da educação, onde além da não
apresentação de autores negros compondo os instrumentos teórico-metodológicos das
academias, invalida, coíbe e coage qualquer manifestação adversa ao ponto de vista
eurocêntrico, dando espaço para a reprodução dos dispositivos de dominação e
hierarquia racial.
A imagem a seguir elucida figurativamente a anulação da voz, a indução ao
silenciamento negro como processos ideológicos, simbólicos e históricos desde a
escravização de seres humanos até a atualidade.

3 ​
Com a derrota dos rebelados em vista, o Império não aceitava a prometida libertação. Ao mesmo
tempo, os farrapos anistiados não sabiam o que fazer com aqueles homens que deveriam ser devolvidos
aos seus antigos patrões. A solução foi costurada no Massacre de Porongos, o último conflito da guerra,
uma emboscada aos Lanceiros e Infantes Negros combinada entre David Canabarro e Duque de
Caxias. No dia 14 de novembro de 1844, mais de 100 negros foram assassinados e os que
sobreviveram foram enviados à corte brasileira. FERREIRA, Marcelo. 2018.
<https://www.brasildefato.com.br/2018/09/20/porongos-a-traicao-aos-negros-farroupilhas>
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Figura 2 Registro de Jacques Arago. Escrava Anastácia, 1817-1818.​4

O epistemicídio se configura ​com a colonização, como forma de assassinato e


recusa da produção de conhecimento de determinados povos, no caso brasileiro, o
negro e indígena. “Falar em epistemicídio no Brasil remonta ao processo de
colonização, ou seja, é uma invisibilidade, uma recusa a produção africana de
conhecimento” (Nogueira, 2018).
Traçar o percurso que leva à visibilidade das violências, infere fazer aparecer
violações que por muitos serão vistas como meras reclamações. Para que isso possa
ser refletido será necessário o ponto de partida que como, neste caso, será a
provocação ao diálogo. Pensar no individual ou coletivo questões que dizem respeito à
cidadania de outrem que não somente nós, significa caminhar em prol do acesso a
informações importantes para todas as esferas.

4​
‘’​​Descrita como uma das mais importantes figuras femininas da história negra, ​Escrava Anastácia é
venerada como santa e heroína em várias regiões do Brasil.’’
<https://www.portalsaofrancisco.com.br/historia-do-brasil/escrava-anastacia>
Oficialmente, a máscara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanos/as escravizados/as
comessem cana-de-açúcar, cacau ou café, enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal
função era implementar um senso de mudez e de medo. (KILOMBA, 2010. p.1)
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Considerações Finais

Viu-se ao longo da escrita, que as violências implícitas e explícitas contam com


espaços de pertencimento para sua resolução e é papel do aluno/trabalhador, seja no
campo social ou não, propiciar este caminho. Esse é o terreno que atualiza a luta por
direitos, fundamental em uma época que descaracterizou a cidadania ao associá-la ao
consumo, ao mundo do dinheiro e à posse das mercadorias,
Não há lugar, política pública, tampouco legislação que garanta a erradicação
efetiva de toda e qualquer forma de violência. Porém, a identificação desta e a busca
por estratégias que visem avanços neste sentido, dependem individualmente de cada
um de nós seres humanos, pois não é um assunto que compete a um ou outro, e sim a
todos. Assim como o racism​o, não deva ser debatido somente por negros, mas por
toda a sociedade, uma vez que ele é uma expressão de violência estruturada pela
própria sociedade.
A visibilização do saber, produção e construção pluriversal, considera que em
ambientes diversos como os profissionais e acadêmicos se faz necessário diversificar
as fontes de conhecimentos a partir da criação de mecanismos para sua
perceptibilidade. Possibilitar o diálogo sobre as desigualdades de raça, classe e
gênero, refletir sobre os temas, criar espaço para inserção e visibilidade das temáticas,
propor atividades, criar conteúdo, pesquisar sobre os assuntos considerando que,
sendo uma responsabilidade social, são compromissos de todos e não somente de
alguns, podem ser estratégias de enfrentamento e representação destes sistemas que
estimulam e naturalizam as mais diversas violências.
Concluo com essa escrita reforçando que entender tais expressões implica em
refletirmos sobre no que se configuram. Para tal, precisa-se olhar sob a perspectiva
das formas em que tais se manifestam na sociedade. As expressões da apropriação
desigual do produto social são diversas e se fazem presentes, cabe a nós mudarmos
este cenário ou perpetuá-lo.
Você já refletiu sobre esses temas nos seus ambientes profissionais e
acadêmicos? Fica aqui o convite.
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