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PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS 53

Compromisso
ético-político da
Psicologia e práxis
Adriana Eiko Matsumoto1

Para podermos qualificar uma breve reflexão, que não se pretende esgotar nesse ensaio,
sobre a práxis e possível contribuição da Psicologia frente aos fenômenos psicossociais
produzidos a partir do acirramento do modo de produção capitalista, é fundamental se ter em vista
as vicissitudes postas pelas relações de sexo/gênero e raça/etnia enquanto constitutivas do processo
de exploração a que está submetida a classe trabalhadora. Assim, partiremos da concepção de que
a categoria classe não é monolítica, na medida em que racismo, etnocídio, sexismo e patriarcado
constituem distintos eixos da realidade concreta e que operam por determinações que não
se encerram com a superação do modo de produção capitalista – embora se complexifiquem nele
e constituam características próprias da forma do antagonismo de classe se dar.

Nesse sentido, desde uma análise materialista histórico-dialética, sustentarei a tese de


que a consubstancialidade Classe, Raça/Etnia e Sexo/Gênero são fundamentais para compreensão
crítica e construção de um compromisso ético-político da Psicologia, principalmente no que diz
respeito à inserção nas políticas públicas. Ao final, buscarei trazer alguns apontamentos sobre
o desdobramento disso para a intervenção e pesquisa em Psicologia (práxis), a partir da construção
de compromisso ético-político da profissão relacionado às ações de cuidado e de enfrentamento às
violências e sofrimentos relativos à condição de classe, sexo/gênero e raça/etnia.

1. Professora Adjunta UNIFESP, Campus Baixada Santista. E-mail: adriana.eiko@unifesp.br

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1. A dialética exploração-opressão

Muito se fala na controvérsia das assim chamadas “pautas identitárias” no contexto das lutas
sociais da classe trabalhadora, apontando um suposto sentido de fragmentação e de perda de foco
na estratégia de luta contra o capital. Partindo-se dessa posição, que poderíamos chamar de mais
“ortodoxa”, não há que se perder tempo discutindo os “nós” raça/etnia e sexo/gênero no campo
marxista, pois a exploração do trabalho e a questão de classe tomada como universal e genérica é
que deveriam ser foco das análises e dos enfrentamentos.

Contudo, há que se superar o mecanicismo típico de uma leitura economicista do marxismo,


inclusive, sendo fidedignos ao próprio método materialista histórico-dialético, compreendendo
as opressões oriundas pelas questões de raça/etnia e de sexo/gênero em sua relação dialética
com a exploração do trabalho, ou seja, partir da noção de unidade de contrários na dialética
“opressão-exploração” nos contextos de territórios que foram alvos de processos de colonização,
marcadamente (mas não somente) o continente americano e africano.

Ademais, considera-se também a necessária crítica à nomeação de “pauta identitária”,


pois são formas ideológicas de se rotular as lutas da “classe que vive do trabalho”
(ANTUNES, 2002) em suas vicissitudes concretas de raça/etnia e sexo/gênero, já que não se
trata de questão meramente identitária, ao menos nas agendas políticas mais combativas, mas
sim de enfrentamentos para a manutenção da vida, luta por “re-existências”. O que está em
jogo e que deve compor nossa análise é a crítica à perspectiva liberal e neoliberal das apropriações
sobre tais expressões de lutas sociais. Pois, “se existir é uma conquista, afirmamos nossa
existência, há que re-existirmos”! (SANTOS, 2017).

De acordo com HIRSCH (2010), o conflito entre capital e trabalho assalariado não
é o único existente na sociedade capitalista, pois há outros que se articulam com as relações
de dominação e exploração que não se originam nas relações de classe e tampouco
“desapareceriam com ela”: são os conflitos raciais, étnicos, sexuais, religiosos, culturais e regionais
que acabam conformando uma configuração especificamente capitalista.

Tratamos aqui da categoria da totalidade (LUKÁCS, 2010), pois os fenômenos sociais


devem ser analisados inseridos na totalidade que compreende o modo de produção capitalista.
Contudo, é fundamental partir da perspectiva de que tais fenômenos sociais guardam entre si
uma relação de unidade, mas não de identidade, dentro de uma relação em que o momento
predominante é o da produção. Nesse sentido, há uma unidade classe, raça/etnia e sexo/gênero,
e tais questões não estão indiferenciadas, nem tampouco são idênticas: estão postas numa

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relação dialética de unidade na diferença. Elas cumprem um papel no capitalismo e são cruciais
para compreendermos os fenômenos psicossociais da precarização, da violência e do sofrimento
psíquico nesse contexto, bem como para analisarmos perspectivas para a práxis.

Partimos das reflexões das autoras feministas marxistas como Heleieth SAFIOTTI
(1992, 2001, 2015), Angela DAVIS (2016) e de autoras que partem das reflexões epistemológicas
críticas do materialismo, como como Danièle KERGOAT (2010), Helena HIRATA (2014),
entre outras, que nos ensinam que a unidade dialética entre opressão e exploração se dá na
medida em que a opressão é uma condição para a exploração, constituindo uma unidade de
substância entre as contradições postas entre classe, raça/etnia e sexo/gênero. Assim, não há
como hierarquizar, nem como negar qualquer uma dessas contradições, pois elas são
coextensivas e consubstanciais.

Desde os anos de 1970-1980 mobilizo os conceitos de consubstancialidade


e coextensividade para procurar compreender de maneira não mecânica
as práticas sociais de homens e mulheres frente à divisão social do
trabalho em sua tripla dimensão: de classe, de genero e origem (Norte/
Sul). Tais práticas não se deixam apreender por noções geométricas
como imbricação, adição, intersecção e multiposicionalidade — elas
são móveis, ambíguas e ambivalentes. (KERGOAT, 2010, p. 96)

Compreende-se, para efeitos de nossa discussão, a concepção de gênero enquanto um


sistema sexo-gênero (IZQUERDO, 2001), caracterizado como um complexo jogo de relações
de poder baseadas em pressupostos patriarcais, que é social e historicamente constituído, mas
que no atual contexto, deve ser analisado a partir do acirramento dessas relações sob a ordem
do capital. As expressões da desigualdade postas em movimento na divisão sexual do trabalho
pelo sistema sexo-gênero se encontram imbrincadas com o processo de constituição do ser
social, produzindo efeitos na organização social, na política, na vida pública e privada (inclusive
determinando as searas de circulação a partir do marcador de sexo/gênero) e, consequentemente,
no desenvolvimento de subjetividades (SOUZA, 2006, p. 128-129).

SAFIOTTI (2001, 2015) conceitua o regime do patriarcado, afirmando que os homens


não só exploram as mulheres na divisão sexual do trabalho, mas as dominam, sendo, portanto,
uma relação de dominação-exploração. Assim, a categoria sexo/gênero pode ser compreendida
como o conjunto de determinações sociais postas violenta e autoritariamente sobre os corpos
plásticos dos seres sociais.

O patriarcado e o sexismo servem ao capital na medida em que entram na dinâmica de


controle da reprodução social da força de trabalho, a partir da geração de novos seres pelas

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pessoas que têm útero, na atividade de mediação da socialização primária das crianças e
adolescentes da classe trabalhadora e pelo trabalho doméstico não remunerado – este último,
parte constitutiva da reposição da força de trabalho explorada. Tais atividades de reprodução
social da força de trabalho mormente são realizadas pela ação das pessoas que são identificadas
e constituídas, num padrão dominante e opressor de socialização de relações de sexo/gênero,
a partir da condição concreta da vida das mulheres.

Ora, o capital precisa da reprodução da força de trabalho para que ele continue a se efetivar
e, nesse sentido, a manutenção de estruturas patriarcais, machistas e sexistas servem para
a continuidade da própria dinâmica da exploração. Assim como a escravização dos povos
africanos, dizimação dos povos originários e a colonização foram meios para a constituição de uma
realidade em que a acumulação de excedentes pudesse gerar as bases para o surgimento
do modo de produção capitalista, a exploração do trabalho livre a partir dos nós raça/etnia e gênero
se configuram como características morfológicas da dominação da colonialidade contemporânea
e contribuem para a garantia da manutenção do capitalismo.

A respeito das relações sociais de raça/etnia, temos que pontuar algumas questões
preliminares. Conforme Kabenguele MUNANGA(2004) nos ensina, a etimologia da palavra
“raça” remete ao latim ratio, que significa, dentre outros verbetes, categoria e espécie. Do ponto
de vista científico, a partir do século XX não há como sustentar atributos biológicos que
justifiquem a categoria raça, contudo, esta se constitui como importante ferramenta ideológica
de dominação na contemporaneidade.

A ideia de raça é, pois, uma categoria da modernidade, sendo que seu sentido atual foi
formulado no desenvolvimento da colonização da América pela Europa e constitui poderosa
ideologia no controle social da classe trabalhadora. As nações dominadas pelo colonialismo
europeu no século XVI, quando da conformação e objetivação do capitalismo em seus
territórios, tiveram na ideologia do racismo um importante dispositivo que regulou as relações
sociais assimétricas. De acordo com Aníbal QUIJANO (2005):

A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da
América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas
entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito
cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais
entre esses grupos. A formação de relações sociais fundadas nessa ideia,
produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e
mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais
tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país
de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades,

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uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam


configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas
às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas
delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em
outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos
de classificação social básica da população. (p. 117)

O racismo é, portanto, um dinamizador da luta de classes e se mundializa conforme suas


crises e reorganizações do modo de produção capitalista ao longo dos séculos. Nesse sentido, o
medo branco da revolta dos escravizados de outrora, hoje é atualizado no medo da insurgência
contra a superexploração do trabalho que se impõem também a partir da raça como legitimação
para o estabelecimento de um tipo específico de capitalismo nos contornos latino-americanos.

De acordo com Ruy Mauro MARINI (2000) em sua Teoria Marxista da Dependência,
temos que nos contornos do capitalismo periférico encontramos outra forma da exploração se
dar, pela via da superexploração do trabalho. A superexploração se caracteriza por três
mecanismos: a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação
de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho, não havendo
nenhum investimento no desenvolvimento de sua capacidade produtiva.

É necessário observar além disso que, nos três mecanismos considerados, a


característica essencial está dada pelo fato de que se nega ao trabalhador as
condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho: nos dois
primeiros casos, porque ele é obrigado a um dispêndio de força de trabalho
superior ao que deveria proporcionar normalmente, provocando-se assim seu
esgotamento prematuro; no último, porque se retira dele inclusive a
possibilidade de consumir o estritamente indispensável para conservar sua
força de trabalho em estado normal. Em termos capitalistas, estes mecanismos
(que além disso se podem dar e normalmmente se dão, de forma combinada)
significam que o trabalho se remunera por baixo de seu valor e correspondem,
então, a uma superexploração do trabalho. (MARINI, 2000, p. 126)

Nesse sentido, encontramos na expressão da superexploração do trabalho e contextos


de precarização um eixo importante para analisarmos os nós Classe, Raça e Sexo/Gênero
na atualidade. Outra dimensão para essa análise é também encontrada na forma atual de retirada
de direitos e aviltamento dos direitos humanos no contexto brasileiro, tema que discutiremos
melhor no próximo item, ao abordar a dialética emancipação política-emancipação humana.

Isso significa dizer que, além da intensificação do trabalho e sua expressão na superexploração,
os retrocessos nos direitos sociais e a falta de acesso às políticas públicas, as estatísticas
de criminalização e de encarceramento em massa, de psiquiatrização e de internação

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involuntária, de letalidade policial, de taxas de homicídios, de morte por causas externas,


de aumento de suicídio, de feminicídio, de balas perdidas encontradas geralmente em corpos
humanos negros, todas essas notícias que estão nos bombardeados cotidianamente, estão nos
gritando, a cada momento, que o alvo é o povo negro, que o alvo são as mulheres, e principalmente
as mulheres negras. Em resumo, existe pele alva e pele alvo (EMICIDA, Amar-elo, 2019).

Em outras palavras, as bases concretas nas quais se constituem as relações sociais e a dimensão
subjetiva da realidade, a partir da dialética exploração-opressão devem ser consideradas nas
análises e nas práticas frente aos efeitos psicossociais gerados nesses processos, sob pena de
naturalizarmos e mistificarmos os fenômenos psicológicos.

2. A dialética emancipação política-emancipação humana

Há um caráter ideológico que conforma a superestrutura jurídica a partir da forma jurídica


“sujeito de direitos”, a qual é base para a racionalização da exploração do trabalho (contrato entre
“iguais”: o detentor dos meios de produção contrata a força de trabalho do proletário).
Contraditoriamente, tal forma jurídica é também convocada como artífice na luta contra os efeitos
nefastos da exploração e superexploração do trabalho pelo capital. Nesse sentido, os Direitos
Humanos nada mais seriam que os direitos dos singulares seres humanos burgueses, direitos que
estariam restritos à particularidade, ou seja, aos limites da própria lógica do capital – é o que MARX
(1991) chama de emancipação política.

Sabemos que não há igualdade concreta se há desigualdade no momento da produção,


ou seja, numa sociedade em que os meios de produção estão sob a propriedade de poucos,
notadamente a “classe que vive do próprio trabalho” (ANTUNES, 2002) não efetiva nenhuma
condição de igualdade com a elite burguesa e o manto ideológico da igualdade jurídica cai por
terra numa análise mais cuidadosa da história.

Contudo, a história social dos direitos também aponta para a construção de perspectivas
que visam alargar o horizonte da emancipação política da classe trabalhadora frente aos
ditames da lógica do capital. Tendo como pressuposto a dialética exploração-opressão e toda
sorte de violações e processos de dominação que esta lógica imprime, é fundamental que
possamos compreender a relação entre emancipação política e emancipação humana não
como polos opostos de uma díade, mas como componentes contraditórios em seu movimento
dialético, em uma espiral dialética emancipação política-humana.
É nesse contexto que se inscrevem as lutas contra os retrocessos nas garantias individuais
(direitos civis), nos direitos sociais, econômicos e culturais (como a “de-forma” trabalhista e a

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“de-forma” da Previdência), os cortes na Educação, Saúde e Assistência Social, pela discussão


crítica de gênero nas escolas, pelo direito das mulheres, pelos direitos sexuais e direitos
reprodutivos, pela luta contra o encarceramento em massa, contra o armamento da população,
pela legalização das drogas (entendendo aqui a “guerra às drogas” como artífice para a guerra
contra os jovens negros periféricos da classe trabalhadora), só para citar alguns exemplos.

A experiência brasileira da pandemia pelo novo coronavírus pode ser considerada, na atualidade,
como um analisador sobre como a conflitiva social capital-trabalho se constitui na consubstancialidade
Classe Raça/Etnia e Sexo/Gênero, a partir da relação entre as formas políticas de resistências e lutas por
emancipação política e humana. Mesmo num contexto de pandemia e de distanciamento social, ao qual
a humanidade se encontra a partir de 2020, e de acordo com o Atlas da Violência 20202, o Brasil
apresentou aumento do número de homicídios e de feminicídios, sendo que a violência contra a mulher
encontrou um aumento exponencial (uma mulher é morta a cada duas horas no Brasil, sendo que 68%
das vítimas fatais são mulheres negras), além de uma subnotificação das violências de gênero ainda maior
na quarentena devido ao novo coronavírus. Importante destacar que entre 2008 e 2018, os homicídios
contra não-negros diminuíram 12,9% e aumentaram 11,5% contra os negros, e 75,7% das vítimas dos
homicídios em geral eram pessoas negras.

Aliado a isso está o processo de uberização do trabalho, a falta de acesso à saúde, transporte,
educação (que tem se dado na modalidade remota em 2020, o que já exclui o acesso de pessoas
periféricas que não tem equipamentos necessários e rede de banda larga de internet), só para citar
alguns exemplos. O “breque”3 dos entregadores de alimentos e compras, dos trabalhadores
plataformizados a partir dos aplicativos de “delivery”, suas reivindicações por equipamentos de
proteção individual (máscaras, álcool em gel etc.) e por alimentação, expressam bem essa luta por
garantias mínimas de reprodução da própria força de trabalho, para que ela continue sendo
explorada, talvez com menos barbárie.

Ainda em relação aos dados específicos sobre os efeitos nefastos do COVID-19, embora no
início os dados não estivessem sendo gerados pelo Ministério da Saúde a partir dos quesitos raça/
cor, a partir de abril de 2020 temos a informação de que a maioria das mortes se concentra nas
pessoas negras e pobres. Em um estudo realizado por pesquisadores da PUC/RJ4, revelou-se que
pretos e partos sem escolaridade morrem quatro vezes mais pelo novo coronavírus do que brancos
com nível superior.

2. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/


3. Greve dos entregadores de aplicativos realizada em 2020 durante a pandemia pelo novo coronavírus.
4. Disponível em: http://www.ctc.puc-rio.br/diferencas-sociais-confirmam-que-pretos-e-pardos-morrem-mais-de-covid-19-do-
que-brancos-segundo-nt11-do-nois/

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Assim, a assertiva “direitos humanos para humanos direitos”, veiculada por setores
conservadores e até reacionários da política nacional brasileira e amplificada pelos
indivíduos identificados com a moralização do discurso político e perpetradores de preconceitos
de classe, sexo/gênero e raça/etnia arraigados nas relações sociais, é um dos exemplos
mais atuais da expressão da contradição da forma-jurídica sujeito de direitos em tempos
de acirramento da luta de classes na contemporaneidade.

Dessa forma, discutir e agir no enfrentamento ao genocídio negro e indígena, e também


em relação ao feminicídio e formas machistas de dominação de gênero, articuladas com o nó
da exploração do trabalho pelo capital, é atuar visando emancipação política, o que, nesse
contexto, significa também ponto de partida para qualquer intervenção no campo que se
propõe voltada à emancipação humana. Os dados estatísticos sobre acesso à saúde, educação,
seguridade social, encarceramento, homicídios etc. já demonstram qual a luta que se deve
enfrentar para garantir a permanência da vida desses sujeitos que, potencialmente, têm todo
interesse em poder superar as condições que determinam seu sofrimento.

Em uma análise que relaciona estrutura e conjuntura, também temos que ter em conta
os efeitos da colonização presentes em nossas práticas e leituras sobre a realidade, os ditames
do patriarcado, da estrutura racista e eugenista presentes na sociabilidade tipicamente brasileira,
e compreender que, embora nossa práxis se presentifique nos contornos da particularidade
calcada na reprodução da barbárie, ela deve estar prenhe de condições de superação visando
à emancipação humana.

Ou seja, ainda que a forma política dominante das lutas sociais da classe trabalhadora,
consubstanciada pelas relações socias de raça/etnia e sexo/gênero, esteja na expressão da luta
por direitos (emancipação política), temos que tais lutas, potencialmente e em uma relação
dialética, carregam condições para construção da práxis ao enfrentamento da superexploração
do trabalho no contexto brasileiro e latino-americano, na medida em que visam garantir a vida
e a “re-xistência” dos seres humanos da classe que vive do trabalho e que são ainda mais
aviltados em sua condição de vida. Eis uma seara em que a Psicologia, como ciência e profissão,
pode contribuir em seu compromisso ético-político.

3. O compromisso ético-político da psicologia em tempos de barbárie

MARTÍN-BARÓ (1990), em Psicología social de la guerra, apontava para as características


psicossociais de contextos de conflitos declarados, ao analisar a condição de El Salvador.
Embora não estejamos sob estado de declarada guerra no nosso país, mas tendo em vista todos

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os dados de mortes e interrupções de vida da nossa juventude negra, bem como do feminicídio,
podemos articular os apontamentos de MARTÍN-BARÓ com as questões aqui apresentadas
ao analisar o contexto de barbárie em que nos encontramos e ao buscar pistas sobre quais são
nossas tarefas enquanto psicólogas(os) nesse contexto.

MARTÍN-BARÓ (1990) comenta que, em condições de conflitos declarados, se observam


três processos que podem ser alvo de intervenção psi junto à população atendida: processos
de militarização da vida cotidiana e “das mentes”, a veiculação de mentiras institucionalizadas
a partir das expressões midiáticas da ideologia dominante, e a cristalização das relações sociais,
redundando numa polarização social, a qual determina, por exemplo, quais são os sujeitos que
devem ser encarcerados, exterminados, aniquilados da sociedade.

Tendo em vista o poder manipulatório dos usos indevidos das redes sociais e dos dados
capturados por estas ferramentas, postos à serviço da disseminação das chamadas “fake news”
nas eleições majoritárias do Brasil em 2019 (assim como em outros países do mundo,
notadamente Inglaterra e EUA), sabemos que a Psicologia pode contribuir com análises críticas
e discussões acerca da democratização da comunicação, do desvelamento das mentiras
institucionalizadas e das intervenções psicossociais junto a coletivos, grupos, movimentos
no intuito de fortalecer suas ações de base junto à população.

A banalização da violência, principalmente a de manifestação estatal como a letalidade


policial e operações de guerra nas favelas, bem como seus efeitos psicossociais (tanto naqueles
que são alvos dessa violência, como junto aos que disseminam uma autorização social para tal
violência), estão, cada vez mais, sendo incorporados como questões relevantes para Psicologia
como ciência e profissão. Contudo, no contexto da prática nas políticas públicas, debates sobre
a reparação psicossocial frente a tais violências e sobre os processos de desumanização a que
estão submetidos estes sujeitos alvos da violência de Estado, ou como MARTÍN-BARÓ nomeia:
os “traumas psicossociais”, ainda estão longe de serem incorporados como dispositivos
de intervenção psicológica.

Para o ator, os traumas psicossociais são a “cristalização traumática nas pessoas e nos
grupos das relações desumanizadas” (MARTÍN-BARÓ, 1984, p. 123). Ainda de acordo com
o autor, alguns componentes destes traumas psicossociais são encontrados em várias
das histórias de vida que chegam aos equipamentos das políticas públicas (sejam da Saúde,
Assistência Social, Educação, Justiça), a saber: sua heterogeneidade (se manifesta de maneira
diversa no corpo social, de maneira multideterminada e histórica), opera-se a partir de uma
sequencialidade (diferentes experiências de violências e traumas vão se complexificando e se

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acumulando em sequência), e o seu caráter de transgeracionalidade (os efeitos das violências


atingem diferentes gerações, com diferentes matizes).

No lugar da produção de diagnósticos nosológicos e intervenções de caráter medicalizantes


e manicomiais, no lugar das intervenções que reproduzem relação de tutela e subalternização
dos sujeitos que são beneficiários de direitos sociais, no lugar da hierarquização do saber
a partir de uma direção social do conhecimento que privilegia a elite e retira da classe
trabalhadora o direito a uma educação pública e de qualidade, no lugar da falta de acesso à
justiça e aos direitos arduamente conquistados pela classe trabalhadora na história de suas
lutas emancipatórias, no lugar da individualização e naturalização das contradições sociais
a partir da leitura de um fenômeno psicológico apriorístico e destacado das relações sociais - a
psicologia precisa urgentemente se inscrever com proposições que visem superar a lógica
de controle, objetificação e desumanização que seguem instituídas.

Em outro texto, MARTÍN-BARÓ (1997) ao discutir o papel do psicólogo, pontua que é


fundamental que partamos de uma crítica que ponha a própria psicologia em análise, em sua
história e formas de responder às demandas sociais, para que se possa, a partir disso, assumir
a posição das maiorias populares e de suas lutas, nos contornos mesmo de uma Psicologia
(Popular) da Libertação. De acordo com o autor:

Não se trata de abandonar a psicologia; trata-se de colocar o saber psicológico


a serviço da construção de uma sociedade em que o bem estar dos menos não
se faça sobre o mal estar dos mais, em que a realização de alguns não requeira
a negação dos outros, em que o interesse de poucos não exija a desumanização
de todos. (MARTÍN-BARÓ, 1997, p. 23)

Resgatamos aqui o sentido do compromisso ético-político de nossa profissão, calcado


na radicalidade da compreensão dos determinantes histórico-sociais a que estão submetidos
os povos latino-americanos, a partir da especificidade de como isso se desdobra em nosso
país. Nesse sentido, há que se partir das vozes das resistências, dos enfrentamentos e das
transformações realizadas no interior de nossa prática profissional em diálogo com os coletivos
e grupos atendidos em sua história de lutas, confrontos, e insurgências... Cabe-nos apontar,
nesse contexto, para uma psicologia que se pretenda “indisciplinar” e “indisciplinada”,
uma psicologia popular de libertação/emancipação humana.

A articulação orgânica entre Psicologia e Direitos Humanos, bem como a atuação na garantia
por direitos por meio das políticas públicas, precisa se inscrever nessa dimensão que compreende
as dialéticas exploração-opressão e emancipação política-humana, sob pena de reproduzir

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uma posição e uma apropriação liberal (por vezes progressista, em outras, conservadora)
do projeto do compromisso social da psicologia, o qual trago aqui sob a insígnia do Compromisso
Ético-Político da profissão.

Outro dado importante e que deve constar em nossa reflexão, é o fato de sermos
uma categoria predominantemente feminina (89% de mulheres, de acordo com publicação do Conselho
Federal de Psicologia, 20125), que predominantemente atua em 2 ou mais locais de trabalho
para garantir renda, que está empregada, em sua maioria, em trabalhos vinculados às políticas
públicas (SUS, SUAS, entre outros – ou seja, atendendo a parcela da classe trabalhadora que
é superexplorada). Categoria de mulheres em que 38% alegou já ter perdido oportunidade
de trabalho pelo fato de terem filhos, que dedica o dobro do tempo para o trabalho doméstico,
em comparação com os psicólogos homens, que 26% referiu ter sofrido violência de gênero
(como agressões verbais, físicas, morais e sexuais), sendo que 73% avalia que o impacto dessa
violência é grave ou muito grave e que 13% localiza sendo o chefe ou superior hierárquico
o autor dessa violência (apenas para ficar dos dados relativos ao ambiente de trabalho).

Também de acordo com a mesma publicação do Conselho Federal de Psicologia (2012),


a maioria das psicólogas se autodeclara branca (67%), e, tendo em vista a ausência de espaços
na formação acadêmica que discutam as relações raciais e étnicas, é fundamental que
a branquitude da Psicologia seja posta em análise (tanto no momento da formação em
graduação, como nos espaços de orientação profissional, ou de pós-graduação), para que se
possa, concretamente, construir processos de intervenções e pesquisas a partir das demandas
concretas da população por meio da análise crítica e implicada da categoria frente aos efeitos
do racismo que é estruturante para a constituição das subjetividades.

Somos muitas(os) e diferentes psicólogas(os) e para conseguirmos avançar nesse projeto


de construção de nossa profissão, que é contínuo e que deve incorporar por superação
as conquistas já realizadas no decorrer de sua história, tendo em vista a demanda concreta de nossa
população atendida, temos que também discutir a constituição subjetiva de nossa própria
categoria, atuando ao lado da classe que vive do trabalho em suas lutas, com toda a potência e força
necessária para estes enfrentamentos.

Não há fórmulas ou síntese conclusiva possível para a consecução desses objetivos, mas
quero terminar deixando mais uma pista, trazida pelo movimento de pessoas com deficiência,
que nos ensina: “nada sobre nós, sem nós”. Se queremos fortalecer essa psicologia que trabalha
para a superação das opressões e da exploração, ao cuidar dos seus efeitos nefastos nos sujeitos
5. Disponível em: https://site.cfp.org.br/publicacao/quem-e-a-psicologa-brasileira/

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e grupos atendidos e ao buscar potencializar suas qualidades e força política de vida, que
façamos isso “com” e não “para”.

Referências
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho. 6a ed. São Paulo: Boitempo Editorial. (Coleção Mundo do Trabalho), 2002.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe, trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

HIRATA, H. Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais . Tempo Social,
v. 26, n.1, p. 61-73, 1 jun. 2014.

HIRSCH, J. Teoria Materialista do Estado. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 2010.

IZQUIERDO, Maria Jesús . Sin vuelta de hoja. La biblioteca del ciudadano. Barcelona, Edicions Bellaterra, 2001.

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n.3 OUT | 2020

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