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Compromisso
ético-político da
Psicologia e práxis
Adriana Eiko Matsumoto1
Para podermos qualificar uma breve reflexão, que não se pretende esgotar nesse ensaio,
sobre a práxis e possível contribuição da Psicologia frente aos fenômenos psicossociais
produzidos a partir do acirramento do modo de produção capitalista, é fundamental se ter em vista
as vicissitudes postas pelas relações de sexo/gênero e raça/etnia enquanto constitutivas do processo
de exploração a que está submetida a classe trabalhadora. Assim, partiremos da concepção de que
a categoria classe não é monolítica, na medida em que racismo, etnocídio, sexismo e patriarcado
constituem distintos eixos da realidade concreta e que operam por determinações que não
se encerram com a superação do modo de produção capitalista – embora se complexifiquem nele
e constituam características próprias da forma do antagonismo de classe se dar.
1. A dialética exploração-opressão
Muito se fala na controvérsia das assim chamadas “pautas identitárias” no contexto das lutas
sociais da classe trabalhadora, apontando um suposto sentido de fragmentação e de perda de foco
na estratégia de luta contra o capital. Partindo-se dessa posição, que poderíamos chamar de mais
“ortodoxa”, não há que se perder tempo discutindo os “nós” raça/etnia e sexo/gênero no campo
marxista, pois a exploração do trabalho e a questão de classe tomada como universal e genérica é
que deveriam ser foco das análises e dos enfrentamentos.
De acordo com HIRSCH (2010), o conflito entre capital e trabalho assalariado não
é o único existente na sociedade capitalista, pois há outros que se articulam com as relações
de dominação e exploração que não se originam nas relações de classe e tampouco
“desapareceriam com ela”: são os conflitos raciais, étnicos, sexuais, religiosos, culturais e regionais
que acabam conformando uma configuração especificamente capitalista.
relação dialética de unidade na diferença. Elas cumprem um papel no capitalismo e são cruciais
para compreendermos os fenômenos psicossociais da precarização, da violência e do sofrimento
psíquico nesse contexto, bem como para analisarmos perspectivas para a práxis.
Partimos das reflexões das autoras feministas marxistas como Heleieth SAFIOTTI
(1992, 2001, 2015), Angela DAVIS (2016) e de autoras que partem das reflexões epistemológicas
críticas do materialismo, como como Danièle KERGOAT (2010), Helena HIRATA (2014),
entre outras, que nos ensinam que a unidade dialética entre opressão e exploração se dá na
medida em que a opressão é uma condição para a exploração, constituindo uma unidade de
substância entre as contradições postas entre classe, raça/etnia e sexo/gênero. Assim, não há
como hierarquizar, nem como negar qualquer uma dessas contradições, pois elas são
coextensivas e consubstanciais.
pessoas que têm útero, na atividade de mediação da socialização primária das crianças e
adolescentes da classe trabalhadora e pelo trabalho doméstico não remunerado – este último,
parte constitutiva da reposição da força de trabalho explorada. Tais atividades de reprodução
social da força de trabalho mormente são realizadas pela ação das pessoas que são identificadas
e constituídas, num padrão dominante e opressor de socialização de relações de sexo/gênero,
a partir da condição concreta da vida das mulheres.
Ora, o capital precisa da reprodução da força de trabalho para que ele continue a se efetivar
e, nesse sentido, a manutenção de estruturas patriarcais, machistas e sexistas servem para
a continuidade da própria dinâmica da exploração. Assim como a escravização dos povos
africanos, dizimação dos povos originários e a colonização foram meios para a constituição de uma
realidade em que a acumulação de excedentes pudesse gerar as bases para o surgimento
do modo de produção capitalista, a exploração do trabalho livre a partir dos nós raça/etnia e gênero
se configuram como características morfológicas da dominação da colonialidade contemporânea
e contribuem para a garantia da manutenção do capitalismo.
A respeito das relações sociais de raça/etnia, temos que pontuar algumas questões
preliminares. Conforme Kabenguele MUNANGA(2004) nos ensina, a etimologia da palavra
“raça” remete ao latim ratio, que significa, dentre outros verbetes, categoria e espécie. Do ponto
de vista científico, a partir do século XX não há como sustentar atributos biológicos que
justifiquem a categoria raça, contudo, esta se constitui como importante ferramenta ideológica
de dominação na contemporaneidade.
A ideia de raça é, pois, uma categoria da modernidade, sendo que seu sentido atual foi
formulado no desenvolvimento da colonização da América pela Europa e constitui poderosa
ideologia no controle social da classe trabalhadora. As nações dominadas pelo colonialismo
europeu no século XVI, quando da conformação e objetivação do capitalismo em seus
territórios, tiveram na ideologia do racismo um importante dispositivo que regulou as relações
sociais assimétricas. De acordo com Aníbal QUIJANO (2005):
A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da
América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas
entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito
cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais
entre esses grupos. A formação de relações sociais fundadas nessa ideia,
produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e
mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais
tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país
de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades,
De acordo com Ruy Mauro MARINI (2000) em sua Teoria Marxista da Dependência,
temos que nos contornos do capitalismo periférico encontramos outra forma da exploração se
dar, pela via da superexploração do trabalho. A superexploração se caracteriza por três
mecanismos: a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação
de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho, não havendo
nenhum investimento no desenvolvimento de sua capacidade produtiva.
Isso significa dizer que, além da intensificação do trabalho e sua expressão na superexploração,
os retrocessos nos direitos sociais e a falta de acesso às políticas públicas, as estatísticas
de criminalização e de encarceramento em massa, de psiquiatrização e de internação
Em outras palavras, as bases concretas nas quais se constituem as relações sociais e a dimensão
subjetiva da realidade, a partir da dialética exploração-opressão devem ser consideradas nas
análises e nas práticas frente aos efeitos psicossociais gerados nesses processos, sob pena de
naturalizarmos e mistificarmos os fenômenos psicológicos.
Contudo, a história social dos direitos também aponta para a construção de perspectivas
que visam alargar o horizonte da emancipação política da classe trabalhadora frente aos
ditames da lógica do capital. Tendo como pressuposto a dialética exploração-opressão e toda
sorte de violações e processos de dominação que esta lógica imprime, é fundamental que
possamos compreender a relação entre emancipação política e emancipação humana não
como polos opostos de uma díade, mas como componentes contraditórios em seu movimento
dialético, em uma espiral dialética emancipação política-humana.
É nesse contexto que se inscrevem as lutas contra os retrocessos nas garantias individuais
(direitos civis), nos direitos sociais, econômicos e culturais (como a “de-forma” trabalhista e a
A experiência brasileira da pandemia pelo novo coronavírus pode ser considerada, na atualidade,
como um analisador sobre como a conflitiva social capital-trabalho se constitui na consubstancialidade
Classe Raça/Etnia e Sexo/Gênero, a partir da relação entre as formas políticas de resistências e lutas por
emancipação política e humana. Mesmo num contexto de pandemia e de distanciamento social, ao qual
a humanidade se encontra a partir de 2020, e de acordo com o Atlas da Violência 20202, o Brasil
apresentou aumento do número de homicídios e de feminicídios, sendo que a violência contra a mulher
encontrou um aumento exponencial (uma mulher é morta a cada duas horas no Brasil, sendo que 68%
das vítimas fatais são mulheres negras), além de uma subnotificação das violências de gênero ainda maior
na quarentena devido ao novo coronavírus. Importante destacar que entre 2008 e 2018, os homicídios
contra não-negros diminuíram 12,9% e aumentaram 11,5% contra os negros, e 75,7% das vítimas dos
homicídios em geral eram pessoas negras.
Aliado a isso está o processo de uberização do trabalho, a falta de acesso à saúde, transporte,
educação (que tem se dado na modalidade remota em 2020, o que já exclui o acesso de pessoas
periféricas que não tem equipamentos necessários e rede de banda larga de internet), só para citar
alguns exemplos. O “breque”3 dos entregadores de alimentos e compras, dos trabalhadores
plataformizados a partir dos aplicativos de “delivery”, suas reivindicações por equipamentos de
proteção individual (máscaras, álcool em gel etc.) e por alimentação, expressam bem essa luta por
garantias mínimas de reprodução da própria força de trabalho, para que ela continue sendo
explorada, talvez com menos barbárie.
Ainda em relação aos dados específicos sobre os efeitos nefastos do COVID-19, embora no
início os dados não estivessem sendo gerados pelo Ministério da Saúde a partir dos quesitos raça/
cor, a partir de abril de 2020 temos a informação de que a maioria das mortes se concentra nas
pessoas negras e pobres. Em um estudo realizado por pesquisadores da PUC/RJ4, revelou-se que
pretos e partos sem escolaridade morrem quatro vezes mais pelo novo coronavírus do que brancos
com nível superior.
Assim, a assertiva “direitos humanos para humanos direitos”, veiculada por setores
conservadores e até reacionários da política nacional brasileira e amplificada pelos
indivíduos identificados com a moralização do discurso político e perpetradores de preconceitos
de classe, sexo/gênero e raça/etnia arraigados nas relações sociais, é um dos exemplos
mais atuais da expressão da contradição da forma-jurídica sujeito de direitos em tempos
de acirramento da luta de classes na contemporaneidade.
Em uma análise que relaciona estrutura e conjuntura, também temos que ter em conta
os efeitos da colonização presentes em nossas práticas e leituras sobre a realidade, os ditames
do patriarcado, da estrutura racista e eugenista presentes na sociabilidade tipicamente brasileira,
e compreender que, embora nossa práxis se presentifique nos contornos da particularidade
calcada na reprodução da barbárie, ela deve estar prenhe de condições de superação visando
à emancipação humana.
Ou seja, ainda que a forma política dominante das lutas sociais da classe trabalhadora,
consubstanciada pelas relações socias de raça/etnia e sexo/gênero, esteja na expressão da luta
por direitos (emancipação política), temos que tais lutas, potencialmente e em uma relação
dialética, carregam condições para construção da práxis ao enfrentamento da superexploração
do trabalho no contexto brasileiro e latino-americano, na medida em que visam garantir a vida
e a “re-xistência” dos seres humanos da classe que vive do trabalho e que são ainda mais
aviltados em sua condição de vida. Eis uma seara em que a Psicologia, como ciência e profissão,
pode contribuir em seu compromisso ético-político.
os dados de mortes e interrupções de vida da nossa juventude negra, bem como do feminicídio,
podemos articular os apontamentos de MARTÍN-BARÓ com as questões aqui apresentadas
ao analisar o contexto de barbárie em que nos encontramos e ao buscar pistas sobre quais são
nossas tarefas enquanto psicólogas(os) nesse contexto.
Tendo em vista o poder manipulatório dos usos indevidos das redes sociais e dos dados
capturados por estas ferramentas, postos à serviço da disseminação das chamadas “fake news”
nas eleições majoritárias do Brasil em 2019 (assim como em outros países do mundo,
notadamente Inglaterra e EUA), sabemos que a Psicologia pode contribuir com análises críticas
e discussões acerca da democratização da comunicação, do desvelamento das mentiras
institucionalizadas e das intervenções psicossociais junto a coletivos, grupos, movimentos
no intuito de fortalecer suas ações de base junto à população.
Para o ator, os traumas psicossociais são a “cristalização traumática nas pessoas e nos
grupos das relações desumanizadas” (MARTÍN-BARÓ, 1984, p. 123). Ainda de acordo com
o autor, alguns componentes destes traumas psicossociais são encontrados em várias
das histórias de vida que chegam aos equipamentos das políticas públicas (sejam da Saúde,
Assistência Social, Educação, Justiça), a saber: sua heterogeneidade (se manifesta de maneira
diversa no corpo social, de maneira multideterminada e histórica), opera-se a partir de uma
sequencialidade (diferentes experiências de violências e traumas vão se complexificando e se
A articulação orgânica entre Psicologia e Direitos Humanos, bem como a atuação na garantia
por direitos por meio das políticas públicas, precisa se inscrever nessa dimensão que compreende
as dialéticas exploração-opressão e emancipação política-humana, sob pena de reproduzir
uma posição e uma apropriação liberal (por vezes progressista, em outras, conservadora)
do projeto do compromisso social da psicologia, o qual trago aqui sob a insígnia do Compromisso
Ético-Político da profissão.
Outro dado importante e que deve constar em nossa reflexão, é o fato de sermos
uma categoria predominantemente feminina (89% de mulheres, de acordo com publicação do Conselho
Federal de Psicologia, 20125), que predominantemente atua em 2 ou mais locais de trabalho
para garantir renda, que está empregada, em sua maioria, em trabalhos vinculados às políticas
públicas (SUS, SUAS, entre outros – ou seja, atendendo a parcela da classe trabalhadora que
é superexplorada). Categoria de mulheres em que 38% alegou já ter perdido oportunidade
de trabalho pelo fato de terem filhos, que dedica o dobro do tempo para o trabalho doméstico,
em comparação com os psicólogos homens, que 26% referiu ter sofrido violência de gênero
(como agressões verbais, físicas, morais e sexuais), sendo que 73% avalia que o impacto dessa
violência é grave ou muito grave e que 13% localiza sendo o chefe ou superior hierárquico
o autor dessa violência (apenas para ficar dos dados relativos ao ambiente de trabalho).
Não há fórmulas ou síntese conclusiva possível para a consecução desses objetivos, mas
quero terminar deixando mais uma pista, trazida pelo movimento de pessoas com deficiência,
que nos ensina: “nada sobre nós, sem nós”. Se queremos fortalecer essa psicologia que trabalha
para a superação das opressões e da exploração, ao cuidar dos seus efeitos nefastos nos sujeitos
5. Disponível em: https://site.cfp.org.br/publicacao/quem-e-a-psicologa-brasileira/
e grupos atendidos e ao buscar potencializar suas qualidades e força política de vida, que
façamos isso “com” e não “para”.
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