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BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, n. 26.

Campinas:
Unicamp, 2006 (329-376).

Um dos problemas do essencialismo:

[...] uma noção de essência última que transcenderia os limites históricos e culturais
(BRAH, 2006, p. 331).

[...] os feminismos negro e branco [entre outras vertentes do movimento de mulheres]


não devem ser vistos como categorias essencialmente fixas e em oposição, mas antes
como campos historicamente contingentes de contestação dentro de práticas discursivas
e materiais (BRAH, 2006, p. 331).

[...] a importância de analisar a problemática da subjetividade e identidade para


compreender a dinâmica de poder da diferenciação social (BRAH, 2006, p. 332).

Culturas nas diásporas sempre têm sua própria especificidade (BRAH, 2006, p. 336).

Nosso gênero é constituído e representado de maneira diferente segundo nossa


localização dentro de relações globais de poder. Nossa inserção nessas relações globais
de poder se realiza através de uma miríade de processos econômicos, políticos e
ideológicos. Dentro dessas estruturas de relações sociais não existimos simplesmente
como mulheres, mas como categorias diferenciadas, tais como “mulheres da classe
trabalhadora”, “mulheres camponesas” ou “mulheres imigrantes”. Cada descrição está
referida a uma condição social específica. Vidas reais são forjadas a partir de
articulações complexas dessas dimensões. É agora axiomático na teoria e prática
feministas que “mulher” não é uma categoria unitária. Mas isso não significa que a
própria categoria careça de sentido. O signo “mulher” tem sua própria especificidade
constituída dentro e através de configurações historicamente específicas de relações de
gênero (BRAH, 2006, p. 341).

O objetivo principal do feminismo tem sido mudar as relações sociais imbricadas no


gênero. Como as desigualdades de gênero penetram em todas as esferas da vida, as
estratégias feministas envolvem um enfrentamento da posição subordinada das
mulheres tanto dentro das instituições do estado como da sociedade civil. A força por
trás da teoria e da prática feminista no período pós-guerra tem sido seu compromisso de
erradicar desigualdades derivadas da noção de diferença sexual inerente a teorias
biologicamente deterministas, que explicam a posição social das mulheres como
resultado de diferenças inatas [...] As feministas, é claro, não ignoram a biologia das
mulheres, mas questionam ideologias que constroem e representam a subordinação das
mulheres como resultado de suas capacidades biológicas (BRAH, 2006, p. 342).

As relações de poder entre homens e mulheres são vistas como a principal dinâmica da
opressão das mulheres, levando às vezes quase à exclusão de outros determinantes
como classe e racismo (BRAH, 2006, p. 343).

[...] a natureza humana não é essencial, mas socialmente produzida. O significado de ser
mulher – biológica, social, cultural e psiquicamente – é considerado uma variável
histórica (BRAH, 2006, p. 343) – feministas socialistas – new left

A racialização da subjetividade branca não é muitas vezes manifestamente clara para os


grupos brancos, porque “branco” é um significante de dominância, mas isso não torna o
processo de racialização menos significativo. É necessário, portanto, analisar que nos
constroem como, digamos, “mulher branca” ou “mulher negra”, como “homem branco”
ou “homem negro”. Tal desconstrução é necessária se quisermos decifrar como e por
que os significados dessas palavras mudam de simples descrições a categorias
hirarquicamente organizadas em certas circunstâncias econômicas, políticas e culturais
(BRAH, 2006, p. 345-346).

O problema da violência masculina contra mulheres e crianças, a desigual divisão


sexual do trabalho em casa, questões de dote e de casamento forçados, a clitoridectomia,
o heterossexismo e a supressão das sexualidades lésbicas: todas eram questões que
demandavam atenção imediata (BRAH, 2006, p. 348).

Relações patriarcais são uma forma específica de relação de gênero em que as mulheres
estão em uma posição subordinada. Em teoria, pelo menos, deverias ser possível
imaginar um contexto social em que relações de gênero não estejam associadas à
desigualdade. Além disso, tenho sérias reservas sobre a utilidade analítica ou política de
manter fronteiras de sistema entre “patriarcado” e a particular formação socioeconômica
e política (por exemplo, o capitalismo ou o socialismo de estado) de que ela é parte.
Seria muito mais útil compreender como relações patriarcais se articulam com outras
formas de relações sociais num contexto histórico determinado. Estruturas de classe,
racismo, gênero e sexualidade não podem ser tratadas como “variáveis independentes”
porque a opressão de cada uma está inscrita dentro da outra – é constituída pela outra e
é constitutiva dela (BRAH, 2006, p. 351).

Assumir uma posição política específica significa que se está fazendo certas suposições
sobre a natureza dos vários processos que sublinham um fenômeno social, de que um
evento particular pode ser um efeito. Um foco apenas nos “efeitos” pode tornar invisível
a operação de tais processos ideológicos e materiais, assim dificultando nossa
compreensão das complexas bases das desigualdades. Ainda que cruciais na
mobilização de grupos específicos, as lutas sobre questões isoladas como fins em si
mesmas podem limitar enfrentamentos mais amplos às desigualdades sociais. A
linguagem dos “efeitos”, de qualquer modo, não escapa de um subtexto implícito de
“causas” (BRAH, 2006, p. 354).

As fronteiras de um círculo de pessoas formado em torno de preocupações específicas


dependem da natureza das preocupações e sua importância e significação na vida dessas
pessoas (BRAH, 2006, p. 356).

Múltiplas localizações marcaram a formação de novas subjetividades e identidades


diaspóricas; e ele produziu um novo sujeito político poderoso. Como a maioria dos
sujeitos políticos, este também carregava sua própria contradição – dentro e fora da
multiplicidade (BRAH, 2006, p. 357).

[...] os feminismos “negro” e “branco” sejam tratados como práticas discursivas não
essencialistas e historicamente contingentes implica que mulheres negras e brancas
podem trabalhar em conjunto pela criação de teoria e prática feministas não-racistas. A
questão-chave, então, não diz respeito à “diferença” em si, mas a quem definia a
diferença, como diferentes categorias de mulheres são representadas dentro dos
discursos da “diferença” e se a “diferença” diferencial lateral ou hierarquicamente.
Precisamos de maior clareza conceitual na análise da diferença (BRAH, 2006, p. 358).
[...] a diferença pode ser conceituada: diferença como experiência, diferença como
relação social, diferença como subjetividade e diferença como identidade (BRAH, 2006,
p. 359).

Experiência é um conceito-chave no feminismo. Movimentos de mulheres têm tido


como alvo dar uma voz coletiva às experiências pessoais das mulheres com forças
sociais psíquicas que constituem a “fêmea” em “mulher”. O cotidiano das relações
sociais de gênero – desde o trabalho doméstico e o cuidado das crianças, emprego mal
pago e dependência econômica até a violência sexual e a exclusão das mulheres de
centros-chave de poder político e cultural – ganhou um novo significado através do
feminismo à medida que deixou o domínio do “tido como certo” para ser interrogado e
enfrentado (BRAH, 2006, p. 359-360).

O que importa é que a conscientização trouxe para o primeiro plano um dos mais
poderosos insights do feminismo, que é a experiência não reflete de maneira
transparente uma realidade pré-determinada, mas é uma construção cultural. De fato,
“experiência” é um processo de significação que é a condição mesma para a
constituição daquilo a que chamamos de “realidade”. Donde a necessidade de re-
enfatizar uma noção de experiência não como diretriz imediata para a “verdade” mas
como uma prática de atribuir sentido, tanto simbólica como narrativamente: como uma
luta sobre condições materiais e significado (BRAH, 2006, p. 360).

[...] a experiência é o lugar de formação do sujeito (BRAH, 2006, p. 360).

Não é de surpreender que tais discursos fracassem ou resultem em “diálogos de surdos”


quando lidam com as contradições da subjetividade e da identidade (BRAH, 2006, p.
360-361).

[...] a experiência como um lugar de contestação: um espaço discursivo onde posições


de sujeitos e subjetividades diferentes e diferenciais são inscritas, reiteradas ou
repudiadas. É essencial então enfrentar as questões de que matrizes ideológicas ou
campos de significação e representação estão em jogo na formação de sujeitos
diferentes, e quais são os processos econômicos, políticos e culturais que inscrevem
experiências historicamente variáveis (BRAH, 2006, p. 361).

Pensar a experiência e a formação do sujeito como processos é reformular a questão da


“agência”. O “eu” e o “nós” que agem não desaparecem, mas o que desaparece é a
noção de que essas categorias são entidades unificadas, fixas e já existentes, e não
modalidades de múltipla localidade, continuamente marcada por práticas culturais e
políticas cotidianas (BRAH, 2006, p. 361).

O significado atribuído a um dado evento varia enormemente de um indivíduo para o


outro. Quando falamos da constituição do indivíduo em sujeito através de múltiplos
campos de significação estamos invocando inscrição e atribuição como processos
simultâneos através dos quais o sujeito adquire significado em relações
socioeconômicas e culturais no mesmo momento em que atribui significado dando
sentido a essas relações na vida cotidiana. Em outras palavras, como uma pessoa
percebe ou concebe um evento varia segundo como “ela” é culturalmente construída: a
miríade de maneiras impresivisíveis em que tais construções podem se configurar no
fluxo de sua psique; e, invariavelmente, em relação ao repertório político dos discursos
culturais à sua disposição (BRAH, 2006, p. 362).

O conceito de “diferença como relação social” se refere à maneira como a diferença é


construída e organizada em relações sistemáticas através de discursos econômicos,
culturais e políticos e práticas institucionais. Isso quer dizer que destaca a
sistematicidade através das contingências. Um grupo geralmente mobiliza o conceito
de diferença neste sentido quando trata das genealogias históricas de sua experiência
coletiva. De fato, a diferença e comunalidade são signos relacionais, entretecendo
narrativas de diferença com aquelas de um passado e destinos coletivos compartilhados
(BRAH, 2006, p. 362).

[...] o conceito de “diferença como relação social” sublinha a articulação historicamente


variável de micro e macro regimes de poder, dentro dos quais modos de diferenciação
tais como gênero, classe ou racismo são instituídos em termos de formações
estruturadas (BRAH, 2006, p. 363).
A diferença como relação social pode ser entendida como as trajetórias históricas e
contemporâneas das circunstâncias materiais e práticas culturais que produzem as
condições para a construção das identidades de grupo. O conceito se refere ao
entretecido de narrativas coletivas compartilhadas dentro de sentimentos de
comunidade, seja ou não essa “comunidade” constituída em encontros face a face ou
imaginada (BRAH, 2006, p. 363).

Os efeitos das relações sociais não estão confinados às operações aparentemente


distantes das economias, da política ou das instituições culturais nacionais ou globais,
mas também estão presentes nas arenas altamente localizadas do local de trabalho da
casa (que, em alguns casos, como os trabalhadores domésticos ou executivos muito bem
pagos, “trabalhando em casa, se torna tanto uma unidade de trabalho – ainda que com
remunerações diferentes – quanto de residência), tanto quanto nos interstícios da mente
onde a intersubjetividade é produzida e contestada. Todas essas esferas sempre foram
interligadas, mas se articulam de maneira única no momento histórico presente (BRAH,
2006, p. 364).

Relações sociais, então, são constituídas e operam em todos os lugares de uma formação
social. Isso significa que, na prática, a experiência como relação social e como o
cotidiano da experiência vivida não habitam espaços mutuamente exclusivos (BRAH,
2006, p. 364).

[...] a grande questão é saber como a diferença é definida. Atuam as percepções da


diferença como meio de afirmar a diversidade ou como mecanismos de práticas
excludentes e discriminatórias? Legitimam os discursos da diferença políticas de estado
progressistas ou opressivas? De que modo são representadas diferentes categorias de
mulheres em tais discursos? Como respondem as próprias mulheres a essas
representações? (BRAH, 2006, p. 365).

[...] a ideia de diferença como relação social pode não ser vista como privilegiando o
“estrutural” como centro de comando de uma formação social, em favor de uma
perspectiva que põe em primeiro plano a articulação dos diferentes elementos (BRAH,
2006, p. 365).
Questões de diferença foram centrais para o debate teórico em torno da subjetividade
(BRAH, 2006, p. 365).

[...] o sujeito não existe sempre como um dado, mas é produzido no discurso (BRAH,
2006, p. 366).

A subjetividade então não é nem unificada nem fixada, mas fragmentada e


constantemente em processo. Para as feministas, tal entendimentos e tornou
especialmente atraente, pois elas problematizam a “diferença sexual”: a diferença sexual
é algo a ser explicado e não suposto (BRAH, 2006, p. 368).

E algumas feministas continuam céticas sobre a psicanálise como um todo. O debate


continua aceso (BRAH, 2006, p. 368).

Questões de identidade estão intimamente ligadas a questões de experiência,


subjetividade e relações sociais. Identidades são inscritas através de experiências
culturalmente construídas em relações sociais. A subjetividade – o lugar do processo de
dar sentido a nossas relações com o mundo – é a modalidade em que a natureza precária
e contraditória do sujeito-em-processo ganha significado ou é experimentada como
identidade. As identidades são marcadas pela multiplicidade de posições de sujeito que
constituem o sujeito. Portanto, a identidade não é fixa nem singular; ela é uma
multiplicidade relacional em constante mudança (BRAH, 2006, p. 371).

[...] as identidades assumem padrões específicos, como num caleidoscópio, diante de


conjuntos particulares de circunstâncias pessoais, sociais e históricas. De fato, a
identidade pode ser entendida como o próprio processo pelo qual a multiplicidade,
contradição e instabilidade da subjetividade é significada como tendo coerência,
continuidade, estabilidade; como tendo um núcleo – um núcleo em constante mudança,
mas de qualquer maneira um núcleo – que a qualquer momento é enunciado como o
“eu” (BRAH, 2006, p. 371 – grifo nosso).

[...] identidades coletivas não são redutíveis à soma das experiências individuais.
Identidade coletiva é o processo de significação pelo qual experiências comuns em
torno de eixos específicos de diferenciação – classe, casta ou religião – são investidas de
significados particulares. Nesse sentido, uma dada identidade coletiva parcialmente
apaga traços de outras identidades, mas também carrega outros traços delas (BRAH,
2006, p. 372).

[...] a identidade é um processo, então é problemático falar de uma identidade existente


como se ela estivesse sempre já constituída. É mais apropriado falar de discursos,
matrizes de significado e memórias históricas que, uma vez em circulação, podem
formar a base de identificação num dado contexto econômico, cultural e político. Mas a
identidade que é proclamada é uma re-leitura, uma construção contexto-específica. A
proclamação de uma identidade coletiva específica é um processo na e da
subjetividade. O processo político da proclamação de uma identidade coletiva
específica envolve a criação de uma identidade coletiva a partir de uma miríade de
fragmentos (como colagens) da mente (BRAH, 2006, p. 372).

[...] a mobilização política diz respeito centralmente a tentativas de re-inscrever a


subjetividade através de apelos à experiência coletiva (BRAH, 2006, p. 372).

Toda formação discursiva é um lugar de poder, e não há nenhum lugar de poder onde a
dominação, subordinação, solidariedade e filiação baseadas em princípios igualitários,
ou as condições de afinidade, convivialidade e sociabilidade sejam produzidas e
asseguradas de uma vez por todas. Antes, o poder é constituído performativamente em
práticas econômicas, políticas e culturais, e através delas. As subjetividades de
dominantes e dominados são produzidas nos interstícios desses múltiplos lugares de
poder que se intersectam. A precisa interação desse poder em instituições e relações
interpessoais específicas é difícil de prever. Mas se a prática é também um meio de
enfrentar as práticas opressivas de poder [...] o discurso é prática [...] uma imagem
visual também é uma prática. A imagem visual também produz poder, donde a
importância de entender o movimento do poder nas tecnologias do olho – artes visuais
como a pintura e a escultura, prática do cinema e dança, e os efeitos visuais das
tecnologias da comunicação (BRAH, 2006, p. 373).

[...] o corpo inteiro, em sua fisicabilidade, mentalidade e espiritualidade é produtivo de


poder, e é dentro desse espaço relacional que desaparece o dualismo mente/corpo. Uma
“identidade” particular ganha forma na prática política a partir da relacionalidade
fragmentária da subjetividade e se dissolve para surgir como um traço em outra
formação de identidade (BRAH, 2006, p. 373-374).

[...] o sujeito pode ser o efeito de discursos, instituições e práticas, mas a qualquer
momento o sujeito-em-processo experimenta a si mesmo como o “eu”, e tanto
consciente como inconscientemente desempenha novamente posições em que está
situado e investido, e novamente lhes dá significado (BRAH, 2006, p. 374).

O conceito de diferença, então, se refere à variedade de maneiras como discursos


específicos da diferença são constituídos, contestados, reproduzidos e ressignificados
(BRAH, 2006, p. 374).

[...] a diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Portanto, é uma


questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade,
exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas demorcráticas de
agência política (BRAH, 2006, p. 374).

Parece imperativo que não compartimentalizemos opressões, mas em lugar disso


formulemos estratégias para enfrentar todas elas na base de um entendimento de como
se interconectam e articulam [...] uma perspectiva que requer a contínua interrogação do
essencialismo em todas as suas variedades (BRAH, 2006, p. 376).

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