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Texto 3: HILLS COLLINS, Patricia. Em direção a uma nova visão: raça, classe
e gênero como categorias de análise e conexão. Reflexões e práticas de
transformação feminista/ Renata Moreno (org.). São Paulo: SOF, 2015. 96p.
(Coleção Cadernos Sempreviva. Série Economia e Feminismo, 4)
Trata-se de um dos textos que são parte de uma coletânea que, como o
nome já diz, propõe reflexões e práticas de transformação feminista. A
apresentação da obra já preconiza o tom de compromisso com a construção e
reconstrução de epistemologias feministas que fundamentem as mudanças
sociais efetivas.
Preliminarmente, aponta-se para a inexistência de uma estrutura linear no
processo de conquistas das mulheres. Os debates femininos e feministas
estariam, assim, intrinsecamente ligados às agendas políticas de seus tempos.
Nas últimas décadas, por exemplo, cita-se a colocação do feminismo no centro
das lutas contra o neoliberalismo e o livre comércio na América Latina, devido ao
contexto de reorganização da vida dos sujeitos pelo mercado, de modo que a
teoria avança conforme as patentes mazelas sociais se complexificam diante das
questões de gênero – e para além delas. A resistência nacional se coloca,
segundo a autora, frente ao “avanço do capitalismo patriarcal sobre os nossos
corpos, trabalho e territórios” (p. 8).
Nesse sentido, frisa-se a diversidade das mulheres que têm se colocado
como protagonistas da militância no Brasil, na busca pela liberdade de todas elas
concomitantemente, apesar das diferenças, e o modo como essa união
representa uma intensificação da resistência feminista. Isso, de certo modo, já
introduz o que vai ser dito no texto em questão, sobre não apenas gênero, mas
raça e classe como categorias de análise essenciais para a liberdade de todas
as mulheres.
Ainda na apresentação do texto, a autora menciona que mesmo havendo
análises sobre as recentes lutas feministas – e suas conquistas – que insistem
em categorizá-las como um fenômeno novo, “é inegável que trata-se de um
processo de acúmulo político do feminismo que conecta diferentes gerações
políticas e diversas mulheres em movimento” (p. 9). O uso da expressão
“mulheres em movimento” alude à obra homônima de Sueli Carneiro (2003),
onde ela enfatiza como o feminismo esteve por um longo tempo, aprisionado na
“visão eurocêntrica e universalizante das mulheres” (p. 118), e ainda, afirma que:
[...] A conseqüência disso foi a incapacidade de reconhecer as
diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a despeito
da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e os corpos
estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão
além do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibilidade (ibidem).
1Em um olhar crítico, o uso da palavra “grau” não me parece tão apropriada a princípio, diante
do objetivo de se afastar de hierarquização e quantificação de opressões. Apesar de ser
evidente, na exploração sobre escravidão e plantations, que existe sim o fator da variação na
gravidade das punições e privilégios, imagino que esta seja mais uma consequência do fator que
se pretende enfatizar, que é a diferenciação entre as categorias de raça classe e gênero e,
especialmente, a maneira como elas se entrelaçam.
Quanto à dimensão simbólica da opressão2, explica-se que esta consiste
nas “ideologias socialmente validadas [...] para justificar relações de dominação
e subordinação” (p. 24), que no caso, se tratam de estereótipos de categorias
supostamente universais. Ao comparar as imagens de masculinidades e
feminilidades, nesse contexto, a autora evidencia a invisibilização das
experiencias de pessoas negras e de mulheres e homens brancos não
privilegiados, e revela a responsabilidade sobre o processo de desumanização:
Quando, então, nos recusamos a lidar com raça ou classe porque elas
não parecem ser diretamente relevantes ao gênero, estamos, na
verdade, nos tornando parte do problema de outras pessoas (p. 26).
3 Flores, Nilton Cesar. Bortoloti, Jose Carlos Kraemer. Direito e(m) alteridade: o individualismo
exacerbado e a abstração dos Direitos Humanos. Direito, Estado e Sociedade n.43 p. 119 a
134 jul/dez 2013.
4 “E na projeção do reconhecer-se-no-outro, Axel Honneth, acompanhando o jovem Hegel, aduz
que “a luta por reconhecimento e concebida como um processo social que leva a um aumento
da comunitarização, no sentido de um descentramento das formas individuais da consciência”
(FLORES, BORTOLOTI, p. 131 apud HONNETH, 2003. p. 64).
5 “Nós temos consideravelmente menos experiências de nos relacionarmos com pessoas
diferentes, mas iguais. A sala de aula é, potencialmente, um espaço poderoso e seguro para que
diálogos aconteçam entre pessoas com relações de poder desigual” (p. 33-34).
6 “Os privilegiados se tornam ‘voyeurs’, espectadores passivos que não se relacionam com os
menos poderosos, mas que estão interessados em observar como o ‘diferente’ vive” (p. 32).
invisibilizá-las, e 2º membros de grupos subordinados não estão dispostos a
participar desse tipo de troca, pela própria consciência de certa forma imposta a
eles, do seu lugar de oprimido7.
O desafio proposto pela Patricia Hills Collins, por fim, é a transposição
desse tipo de barreira a partir da “auto fiscalização de nossas complacências”,
citando, mais uma vez, a autora Audre Lorde, que incita a enfrentar a dificuldade
de reconhecer em nós o já citado “pedaço do opressor”, no sentido de questionar
a nossa posição na sociedade, por mais que acreditemos que estamos “do lado
correto” (p. 41); nos livrando das dicotomias que nos impedem de avançar nas
mudanças sociais efetivas e profundas.
Em análise do método científico que a Hills Collins lança mão nesse texto,
nota-se que essencialmente faz uma revisão de literatura e valoriza as suas
experiências pessoais como plano de fundo epistemológico, o que é bem
coerente inclusive com a própria proposta teórica do texto, que perpassa pelo
movimento de valorização das subjetividades alheias na observação do
fenômeno macro. Ao apresentar ao leitor as suas experiências, ela incita o
diálogo com ele, no movimento de possibilitar paralelamente a sua identificação
e a não-identificação, dinâmica que para ela, parece mais real e efetiva.
O objeto da pesquisa parece ser a perspectiva – que considera limitante
– da raça, classe e gênero como categorias de análise da opressão. O que ela
parece se perguntar é como se poderia redefinir essas categorias de modo a
alcançar o objetivo de transcender as barreiras criadas pela visão particular das
opressões vividas. Justifica a importância da sua pesquisa pela proposta de uma
possibilidade de construção dos tipos de coalizões que são essenciais para as
mudanças sociais. A hipótese inicial tendia ao caminho da valorização da
experiência de todos os grupos – definidos pelas distintas interações entre as
categorias – e o resultado apontou para a necessidade do exame não apenas
da alheia, mas da própria posição – ou seja, não apenas o lugar de todos como
oprimidos, mas, eventualmente, o de opressor.