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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO


DOUTORADO INTEGRADO

MARCOS TEÓRICOS EM TEORIAS DO DIREITO E DA JUSTIÇA


CLARINDO EPAMINONDAS DE SA NETO

ANGELA VAN ERVEN CABALA


(202302873)
KALITA MACÊDO PAIXÃO
(202302878)

Aula 3: 26/05 e 27/05

Tema 1: Direito e Relações Raciais.

Texto 3: HILLS COLLINS, Patricia. Em direção a uma nova visão: raça, classe
e gênero como categorias de análise e conexão. Reflexões e práticas de
transformação feminista/ Renata Moreno (org.). São Paulo: SOF, 2015. 96p.
(Coleção Cadernos Sempreviva. Série Economia e Feminismo, 4)

Trata-se de um dos textos que são parte de uma coletânea que, como o
nome já diz, propõe reflexões e práticas de transformação feminista. A
apresentação da obra já preconiza o tom de compromisso com a construção e
reconstrução de epistemologias feministas que fundamentem as mudanças
sociais efetivas.
Preliminarmente, aponta-se para a inexistência de uma estrutura linear no
processo de conquistas das mulheres. Os debates femininos e feministas
estariam, assim, intrinsecamente ligados às agendas políticas de seus tempos.
Nas últimas décadas, por exemplo, cita-se a colocação do feminismo no centro
das lutas contra o neoliberalismo e o livre comércio na América Latina, devido ao
contexto de reorganização da vida dos sujeitos pelo mercado, de modo que a
teoria avança conforme as patentes mazelas sociais se complexificam diante das
questões de gênero – e para além delas. A resistência nacional se coloca,
segundo a autora, frente ao “avanço do capitalismo patriarcal sobre os nossos
corpos, trabalho e territórios” (p. 8).
Nesse sentido, frisa-se a diversidade das mulheres que têm se colocado
como protagonistas da militância no Brasil, na busca pela liberdade de todas elas
concomitantemente, apesar das diferenças, e o modo como essa união
representa uma intensificação da resistência feminista. Isso, de certo modo, já
introduz o que vai ser dito no texto em questão, sobre não apenas gênero, mas
raça e classe como categorias de análise essenciais para a liberdade de todas
as mulheres.
Ainda na apresentação do texto, a autora menciona que mesmo havendo
análises sobre as recentes lutas feministas – e suas conquistas – que insistem
em categorizá-las como um fenômeno novo, “é inegável que trata-se de um
processo de acúmulo político do feminismo que conecta diferentes gerações
políticas e diversas mulheres em movimento” (p. 9). O uso da expressão
“mulheres em movimento” alude à obra homônima de Sueli Carneiro (2003),
onde ela enfatiza como o feminismo esteve por um longo tempo, aprisionado na
“visão eurocêntrica e universalizante das mulheres” (p. 118), e ainda, afirma que:
[...] A conseqüência disso foi a incapacidade de reconhecer as
diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a despeito
da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e os corpos
estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão
além do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibilidade (ibidem).

A reflexão proposta pela autora vai além, no sentido de trabalhar o tema


da interseccionalidade em uma nova perspectiva, na qual "além de identificar
uma somatória das opressões”, dedica-se a “compreender a imbricação das
mesmas no terreno das relações sociais, que são dinâmicas." (p. 10). A sua tese
é a de que "a hierarquização entre as opressões é infrutífera e [...] contribui muito
pouco para transformações sociais profundas” (p. 11). Isso por entender que
“muitas vezes as conexões entre gênero e raça, ou gênero e classe, se dão de
forma paralela no feminismo” (ibidem).
O texto começa e termina fazendo referência à obra de Audre Lorde,
destacando trechos em que, inicialmente, ela denuncia a existência de um
“pedaço do opressor” em cada um de nós e (p. 13), posteriormente, nos convida
a uma “auto fiscalização de nossas complacências” (p. 41).
A priori, na agenda identitária, identifica-se que os grupos fazem esse
movimento de eleição das opressões mais fundamentais ou mais graves – com
base no influxo destas na própria realidade, desconsiderando a subjetividade
das outras pessoas. Por esse motivo, aponta para a necessidade de redefinir
raça, classe e gênero como categorias de análise, para ampliar o olhar sobre as
opressões na medida em que esses fatores “moldaram as experiências não
apenas de mulheres negras, mas de todos os grupos” (p. 16), pois:
Como Audre Lorde aponta, as mudanças começam dentro de si e as
relações que temos com aquelas/es que estão a nossa volta devem
sempre ser o primeiro e privilegiado lugar para a mudança social
(ibidem).

Outra autora, Sandra Harding, é chamada à contribuição. O seu


argumento aqui aplicado é o de que a opressão de gênero é estruturada ao longo
de três dimensões: a institucional, a simbólica e a individual.
Ao se dedicar à dimensão institucional, Hills Collins recorre ao exemplo
da escravidão e a metáfora do sistema de plantations para ilustrar como as três
categorias em pauta posicionam os grupos em nichos institucionais distintos, que
segundo ela, “tem graus1 variados de punições e privilégios” (p. 20).
Cita-se que “a escravidão foi uma instituição profundamente patriarcal,
que “se apoiava no princípio dual da autoridade do homem branco e em sua
propriedade”; “a heterossexualidade era presumida”; “o controle sobre a
sexualidade das mulheres brancas abastadas foi central”; “mulheres afro-
americanas compartilhavam o status desvalorizado de escravas com seus
maridos, pais e filhos” e, “enquanto isso, homens e mulheres brancos/as, não-
proprietários, da classe trabalhadora assistiam de longe [...] enquanto negros
eram submetidos aos mais duros tratamentos na escravidão” (p. 21-22).
Nesse ínterim, categorizam-se, ainda, os grupos homens negros,
mulheres negras, mulheres brancas da elite, homens brancos da elite, homens
da classe trabalhadora e mulheres da classe trabalhadora como relações
básicas persistentes.

1Em um olhar crítico, o uso da palavra “grau” não me parece tão apropriada a princípio, diante
do objetivo de se afastar de hierarquização e quantificação de opressões. Apesar de ser
evidente, na exploração sobre escravidão e plantations, que existe sim o fator da variação na
gravidade das punições e privilégios, imagino que esta seja mais uma consequência do fator que
se pretende enfatizar, que é a diferenciação entre as categorias de raça classe e gênero e,
especialmente, a maneira como elas se entrelaçam.
Quanto à dimensão simbólica da opressão2, explica-se que esta consiste
nas “ideologias socialmente validadas [...] para justificar relações de dominação
e subordinação” (p. 24), que no caso, se tratam de estereótipos de categorias
supostamente universais. Ao comparar as imagens de masculinidades e
feminilidades, nesse contexto, a autora evidencia a invisibilização das
experiencias de pessoas negras e de mulheres e homens brancos não
privilegiados, e revela a responsabilidade sobre o processo de desumanização:
Quando, então, nos recusamos a lidar com raça ou classe porque elas
não parecem ser diretamente relevantes ao gênero, estamos, na
verdade, nos tornando parte do problema de outras pessoas (p. 26).

Na mesma oportunidade, Hills Collins cita John Langston Gwaltney:


Minha mãe costumava dizer que mulheres negras são as mulas dos
homens brancos e que as mulheres brancas são suas cadelas. Agora,
ela dizia isso querendo dizer que nós fazemos o trabalho pesado e
apanhamos, tendo feito o trabalho bem ou não. Mas as mulheres
brancas estão mais perto dos senhores, que as afaga e as deixa dormir
dentro de casa, entretanto ele não vai tratar nem a uma nem a outra
como se estivesse lidando de fato com uma pessoa. (1980, p. 148)

Em resumo, portanto, a cada grupo é atribuída uma porção designada de


privilégios e punições variadas, inerentes às suas respectivas imagens
simbólicas, e a depender da interação entre as categorias de análise.
Quanto à dimensão individual da opressão, afirma-se que a raça, classe
e gênero moldam de múltiplas maneiras as nossas biografias individuais, que,
por isso mesmo, variam enormemente. Além disso, constata-se que “como um
resultado de nosso status simbólico e institucional, todas as nossas escolhas se
tornam atos políticos”, de modo que a autora encoraja a transformação que parte
de nós mesmos, voltada ao mundo em que vivemos:
Mesmo que um pedaço do opressor esteja plantado profundamente
dentro de nós, cada um de nós tem a escolha de aceitar esse pedaço
ou desafiá-lo como parte do “verdadeiro foco da mudança
revolucionária” (p. 29).

A necessidade de transcender as barreiras criadas por nossas


experiências de opressão de raça, classe e gênero, objetivando as mudanças
sociais, envolve reconhecer as diferenças de poder e privilégio, identificar
coalizões ao redor de causas comuns, e, por fim, construir empatia.

2 “Somadas, a dimensão institucional e a simbólica da opressão criam um pano de fundo


estrutural contra o qual todos/as nós vivemos nossas vidas” (p. 28).
Oportunamente, fazendo um adendo sobre a abordagem do tema da
empatia, me recordo de um texto3 que outrora tratava do “individualismo
exacerbado e a abstração dos Direitos Humanos” na perspectiva do “direito e(m)
alteridade”. Apesar de empatia e alteridade serem conceitos distintos, sendo a
primeira um componente da segunda, ambas se entrelaçam no objetivo de
cultivar relacionamentos saudáveis entre as pessoas, na medida em que nos
tornamos sensíveis às experiências alheias. E isso tem a ver com a promoção
da justiça social porque permite o desvelamento das mais variadas opressões;
a quem elas afetam e de quais maneiras o fazem.
A benesse do pensar-no-outro e do reconhercer-no-outro4 traz a
possibilidade/ necessidade de “admitir que para alem das solucoes
tecnicas e legislativas, [...] encontra-se um espaco que remete
diretamente aos fundamentos morais da pessoa, da sociedade, do
Estado e dos direitos humanos”, contemplando uma abordagem ampla
e coerente com as estruturas sociais em constante (re)leitura
(FLORES, BORTOLOTI, p. 131).

É preciso então que se note como as diferentes experiências com a


opressão5 criam problemas nos relacionamentos entre as pessoas, de modo que
reconhecer algo como “o lugar de fala” de cada um – em seu sentido formal,
voltado à perspectiva particular; desigual – há de reestabelecer a sua conexão –
condição para a relação empática. Além disso, a presença de um inimigo comum
também é apontada como um catalisador importante em gerar solidariedade
entre grupos. A construção de empatia, por fim, é o processo no qual se insere
o “esforço consciente de arrancar aquele pedaço do opressor” (p. 39) plantado
dentro de nós.
Não se nega, contudo, que há dificuldades que incidem nessas questões.
O olhar sobre o poder e privilégio, por exemplo, sofre interferências a partir das
constatações de que: 1º membros de grupos privilegiados tendem a reduzir as
experiências dos menos privilegiados ao valor de “entretenimento”6, e até

3 Flores, Nilton Cesar. Bortoloti, Jose Carlos Kraemer. Direito e(m) alteridade: o individualismo
exacerbado e a abstração dos Direitos Humanos. Direito, Estado e Sociedade n.43 p. 119 a
134 jul/dez 2013.
4 “E na projeção do reconhecer-se-no-outro, Axel Honneth, acompanhando o jovem Hegel, aduz

que “a luta por reconhecimento e concebida como um processo social que leva a um aumento
da comunitarização, no sentido de um descentramento das formas individuais da consciência”
(FLORES, BORTOLOTI, p. 131 apud HONNETH, 2003. p. 64).
5 “Nós temos consideravelmente menos experiências de nos relacionarmos com pessoas

diferentes, mas iguais. A sala de aula é, potencialmente, um espaço poderoso e seguro para que
diálogos aconteçam entre pessoas com relações de poder desigual” (p. 33-34).
6 “Os privilegiados se tornam ‘voyeurs’, espectadores passivos que não se relacionam com os

menos poderosos, mas que estão interessados em observar como o ‘diferente’ vive” (p. 32).
invisibilizá-las, e 2º membros de grupos subordinados não estão dispostos a
participar desse tipo de troca, pela própria consciência de certa forma imposta a
eles, do seu lugar de oprimido7.
O desafio proposto pela Patricia Hills Collins, por fim, é a transposição
desse tipo de barreira a partir da “auto fiscalização de nossas complacências”,
citando, mais uma vez, a autora Audre Lorde, que incita a enfrentar a dificuldade
de reconhecer em nós o já citado “pedaço do opressor”, no sentido de questionar
a nossa posição na sociedade, por mais que acreditemos que estamos “do lado
correto” (p. 41); nos livrando das dicotomias que nos impedem de avançar nas
mudanças sociais efetivas e profundas.
Em análise do método científico que a Hills Collins lança mão nesse texto,
nota-se que essencialmente faz uma revisão de literatura e valoriza as suas
experiências pessoais como plano de fundo epistemológico, o que é bem
coerente inclusive com a própria proposta teórica do texto, que perpassa pelo
movimento de valorização das subjetividades alheias na observação do
fenômeno macro. Ao apresentar ao leitor as suas experiências, ela incita o
diálogo com ele, no movimento de possibilitar paralelamente a sua identificação
e a não-identificação, dinâmica que para ela, parece mais real e efetiva.
O objeto da pesquisa parece ser a perspectiva – que considera limitante
– da raça, classe e gênero como categorias de análise da opressão. O que ela
parece se perguntar é como se poderia redefinir essas categorias de modo a
alcançar o objetivo de transcender as barreiras criadas pela visão particular das
opressões vividas. Justifica a importância da sua pesquisa pela proposta de uma
possibilidade de construção dos tipos de coalizões que são essenciais para as
mudanças sociais. A hipótese inicial tendia ao caminho da valorização da
experiência de todos os grupos – definidos pelas distintas interações entre as
categorias – e o resultado apontou para a necessidade do exame não apenas
da alheia, mas da própria posição – ou seja, não apenas o lugar de todos como
oprimidos, mas, eventualmente, o de opressor.

7 “Membros de grupos subordinados relutam em abandonar uma desconfiança básica dos


membros de grupos poderosos, porque essa desconfiança básica tem sido, tradicionalmente,
fundamental para sua sobrevivência.” (p. 39).

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