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Portal Vermelho Dia: 04/02/2016 às 12:33:16

O clamor da radicalidade: emancipacionismo! Que


feminismo é esse?
Atualmente com a grande popularização do feminismo pela mídia,
é tempo de refle r sobre nossas bases teóricas, afinal, não existe
prá ca revolucionária sem teoria revolucionária. É tempo de
relembrar os ensinamentos deixados por Loreta Valadares (1943–
2004), que esteve a frente dos movimentos feministas, através da
UBM. A fim de o mizar nossos debates, proponho uma pequena
enciclopédia, através de uma breve exposição dos princípios
básicos do feminismo emancipacionista.

Por Rosita Schaefer*


Divulgação

"Em verdade, haverá mulher?",

Perguntava-se Simone de Beavouir em 1949. (perceba como faz tempo!). Quando ela escreveu O
Segundo Sexo não exis a o conceito de "gênero", justamente porque não exis am teorias
feministas empenhadas em analisar as origens e os métodos da opressão machista. Isso foi feito só
depois, é justamente por isso que seus livros foram um marco para os estudos feministas (e
con nuam sendo).

Mas afinal de contas, o que é gênero?

Gênero é uma hierarquia entre os sexos. Ele se apoia nas diferenças biológicas entre machos e
fêmeas para construir e naturalizar a elaboração social de determinados comportamentos, que
levam a um sistema de castas sexuais, no qual existe um grupo explorado (mulheres) e um grupo
explorador (homens). Ou seja, ele é uma forma de controlar socialmente os sexos, mais
especificadamente, o sexo feminino. Sendo assim, concordamos com Loreta quando ela diz que:
Cartaz que integrou série de publicidade sovié ca pelo empoderamento das mulheres. A frase diz: "O fascismo é o pior inimigo das mulheres"

"O gênero passa a ser construído alocando atributos culturais às dis nções de sexo,
estabelecendo um sistema de valores e prá cas que vão criar uma dis nção do feminino para
o masculino."

Podemos então voltar para a pergunta de Beavouir, e trazer completa uma de suas citações mais
importantes:

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum des no biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização
que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de
feminino”

Então, precisamos nos emancipar do gênero?

Exato! Isso significa que nossa prá ca precisa ter como obje vo final a abolição do gênero, ou seja,
só acreditamos que uma sociedade será plenamente livre de machismo quando nela também não
exis rem mais classes que nos dividam. Quando as diferenças raciais também não nos separem.
Quando as condições que criaram o gênero não existam mais.

"De modo que, assim como para assegurar a eliminação das classes econômicas, é preciso a
revolta da classe baixa (o proletariado) e, numa ditadura temporária, a tomada dos meios de
produção, assim é preciso a revolta da classe baixa (mulheres) e a tomada do controle da
reprodução: a res tuição às mulheres da propriedade dos seus corpos, bem como do controle
feminino da fer lidade humana (…) Assim como o obje vo final da revolução socialista seria
não somente a eliminação do privilégio de classe econômica mas a dis nção da classe em si
mesma, assim também o obje vo final da revolução feminista deve ser não somente a
eliminação do privilégio masculino mas a dis nção do sexo em si mesma:diferenças genitais
entre seres humanos não mais importariam culturalmente."(FIRESTONE)

Nesse mesmo sen do argumenta Loreta:

"Do ponto de vista marxista sobre a questão do gênero, surge o feminismo emancipacionista,
que visa a tão somente puxar o fio da radicalidade até o patamar da transformação da
sociedade e con nuar puxando até o processo de construção de uma nova, em todas as suas
etapas, enquanto persis r a força estrutural/cultural[ou dominação-exploração]da opressão
de gênero."

Como o feminismo emancipacionista analisa a sexualidade?

Nesse ponto, creio que a autora Catherine McKinnon conseguiu sinte zar com grande qualidade:

“A teoria feminista do poder é a de que a sexualidade é “generizada” e o gênero é sexualizado.


Em outras palavras, o feminismo é uma teoria de como a ero zação da dominação e
submissão cria o gênero, cria mulheres e homens na forma social na qual nós os conhecemos.
Portanto, a diferença de sexo e a dinâmica dominação-submissão definem uma à outra. O
eró co é o que define o sexo como desigualdade e, por isso, como uma diferença significa va.
Isso é, na minha visão, o significado social da sexualidade, e a consideração dis ntamente
feminista da desigualdade de gênero.
(…)
A sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo: aquilo que mais nos
pertence, e o que mais nos é tomado. Assim como a expropriação organizada do trabalho de
alguns para o bene cio de outros define classe e trabalhadores, a expropriação organizada da
sexualidade de algumas mulheres para o uso de outros define sexo e mulheres.”

Como o feminismo emancipacionista encara as diversas relações entre as opressão, concebendo


suas contradições? (racismo-patriarcado-capitalismo, etc)

"um impera vo materialista: essas relações — gênero, “raça”, classe — são relações de produção.


Nelas, entrecruzam-se exploração, dominação e opressão." (KERGOAT)

As relações sociais são consubstanciais.O que isso quer dizer? Pode ser entendido como: unidade
de substância. Ou seja, o termo expressa o que todas essas relações tem comum: a sua própria
essência. Dizendo assim, reconhecemos que nossa luta é pela abolição da propriedade privada. É
nesse sen do que afirma Engels, em seu livro A origem da família, da propriedade privada e do
Estado:

“ O primeiro antagonismo de classe que apareceu na história coincide com o desenvolvimento


do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia e a primeira opressão de classe
coincide com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino.”

A importância em se perceber a heterogeneidade da classe não está no reconhecimento das


especificidades que nela existem, como geralmente as pessoas pensam. Trata-se de analisar, por
exemplo, que as discriminações do sexo no trabalho não são uma especificidade das mulheres mas
‘elementos fundamentais que estão na base da dominação da classe operária’ (Souza-Lobos). Muitas
vezes falamos de "classe" como conceito abstrato, e nos esquecemos: quem são as pessoas que
compõe a classe trabalhadora? Segundo relatórios mais recentes da ONU, 70% das pessoas mais
pobres do mundo são mulheres. A classe trabalhadora tem corpo, ela é real, ela tem raça também.
Até porque “a força de trabalho que se vende é indissociável do corpo que a porta, e as suas formas
de apropriação e exploração estão definidas não só pelas relações de classe como também de “raça”
e de gênero (ÁVILA)"

"Mas o fato de as relações sociais formarem um sistema não exclui a existência de


contradições entre elas: não há uma relação circular; a metáfora da espiral serve para dar
conta do fato de que a realidade não se fecha em si mesma." (KERGOAT)

Muitas vezes, as pessoas tendem a ver as relações como superpostas (ou seja, se acumulando umas
em cima das outras, de maneira quan ta va), na esperança de não perder nenhuma forma de
opressão. Porém, nessa busca, quase sempre caem no erro de não conceber a dinâmica das relações
sociais (ou seja, a dialé ca), transformando as opressões em eixos está cos e estruturas
desconectadas. Para não cair nesse erro, nós usamos a metáfora do nó:

“O nó, formado por estas três contradições, apresenta uma qualidade dis nta das
determinações que o integram. Não se trata de somar racismo + gênero + classe social, mas
de perceber a realidade composta e nova que resulta desta fusão. (…) Não se trata de
variáveis quan ta vas, mensuráveis, mas sim de determinações, de qualidades, que tornam a
situação destas mulheres muito mais complexa.” (SAFFIOTI, 2004).

Habitualmente, a questão do feminismo é encarada como um “problema das mulheres”, assim


como o racismo um “problema dos negros”, o que acaba impedindo o avanço da consciência
de classe, que precisa ser uma consciência feminista e an racista. “Essa perspec va permite,
ainda, que as discriminações não sejam mais atribuídas aos sujeitos específicos [mulheres,
negro(as),], mas, sejam consideradas problemas de toda a classe.” (CISNE)

O que é o trabalho reprodu vo?

Engels foi o primeiro a afirmar categoricamente que a primeira divisão social do trabalho é a que se
fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos. A propriedade privada surge nesse
contexto.

"(…) portanto, está dada a propriedade, que já tem seu embrião, sua primeira forma, na família,
onde a mulher e os filhos são escravos do homem. A escravidão na família, ainda latente e
rús ca, é a primeira propriedade, que aqui, diga-se de passagem, corresponde já à definição
dos economistas modernos, segundo a qual a propriedade é o poder de dispor da força de
trabalho alheia. Além do mais, divisão do trabalho e propriedade privada são expressões
idên cas — numa é dito com relação à própria a vidade aquilo que, noutra, é dito com relação
ao produto da a vidade" (ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado)

Porém, engana-se quem pensa que o "trabalho reprodu vo" se limita ao ato de parir crianças.
Podemos entender o trabalho reprodu vo como sendo o trabalho dispendido para recompor uma
força de trabalho. Por exemplo, o pai de família (patriarca) precisa ter suas roupas limpas, jantar na
mesa, casa arrumada, enfim, todas as necessidades básicas para estar na manhã seguinte em seu
escritório, cumprindo sua extensa jornada de trabalho. Ele também não tem tempo para levar seus
filhos para a escola, ou para cuidar dos idosos da família. Tudo isso é sempre trabalho de sua
esposa.

Pôster sovié co idealizado por Alexander Rodchenko e Lilia Brik (que aparece na foto) para incen var a leitura

E observem que interessante: quando a sociedade começou a se organizar em torno do salário, da


maneira como conhecemos hoje no sistema capitalista, o trabalho executado pelas mulheres em
casa não foi levado em consideração. Ou seja, com o advento da inclusão das mulheres no mercado
de trabalho, agora estamos subme das a fazer dupla jornada de trabalho (e muitas vezes tripla), isso

É
sem receber salário pelo trabalho domés co. Tudo isso cons tui o trabalho reprodu vo. É
importante notar também que, ao percebermos como as mulheres são sugadas para manter o
sistema capitalista funcionando, também estamos combatendo a visão economicista sobre a
questão da mulher, que erroneamente é atribuído a Marx e Engels:

"(…) segundo a concepção materialista da história, o fator que, em úl ma instância, determina


a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez se
quer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fator econômico é o único
fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda."

Sendo assim, aqui temos explícito outra base na qual o feminismo emancipacionista se situa: a
divisão sexual do trabalho. Precisamente como formulou Loreta:

Na compreensão de que à divisão sexual do trabalho entrelaça-se a divisão social do trabalho


e que mulheres e homens irão par cipar de modo desigual da produção e da reprodução
(VALADARES)

Desta forma, sustentamos que a tese do feminismo emancipacionista fala por si mesma: emancipar
as mulheres para emancipar a sociedade, e emancipar a sociedade para emancipar as mulheres. Os
ensinamentos de Loreta Valadares ainda são muito atuais, e são base fundamental para que nós,
feministas que estamos encarando novas questões de nossa geração, saibamos elaborar uma
resposta que vá na raiz do problema: ou seja, a propriedade privada, em todas as suas formas. Afinal
de contas, assim como Loreta, concordamos que “(…) mesmo tendo sido derrotado em sua primeira
experiência histórica, o socialismo é, ainda o único projeto capaz de abrir passagem ao processo
que vise fim das discriminações de gênero, de raça e de classe".

Referências Bibliográficas:

BEAVOUIR, Simone. O Segundo Sexo, Nova Fronteira, Fio, 1980.


VALADARES, Loreta. “A visibilidade do invisível” in: Presença da Mulher, Anita Garibaldi, SP, 1998.
ENGELS, F. “A origem da família, da propriedade privada e o estado” , Expressão popular, 2010,
tradutor: Leandro Konder
FIRESTONE, Shulamith. A dialé ca do sexo: Um Estudo da Revolução Feminista (1976), EDITORA
LABOR DO BRASIL.
MACKINNON, Catherine. Feminism Unmodified: Discourses on Life and Law. Harvard University
Press, 1987.
CISNE, Mirla. Feminismo, Luta de Classes e Consciência Militante Feminista no Brasil. Tese de
doutorado em Serviço Social defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de
Janeiro: UERJ, 2013. 409 f.

*Rosita Schaefer é militante da UBM e da UJS

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