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by Éditions Gallimard, 1938


© 2015 da tradução by Rita Braga

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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

S261n Sartre, Jean-Paul, 1905-1980


A náusea / Jean-Paul Sartre ; tradução Rita Braga. — [Ed. especial] — Rio de Janeiro : Nova
Fronteira, 2015.
(Coleção 50 anos)

Tradução de: La Nausée


ISBN 978-85-209-2276-7

1. Romance francês. I. Braga, Rita. II. Título. III. Série.

CDD: 843
CDU: 821.133.1-3
Ao Castor
“É um rapaz sem importância coletiva; é apenas um indivíduo.”

L.-F. Céline
L’Église
Nota dos editores

Esses cadernos foram encontrados entre os papéis de Antoine Roquentin, e estão


sendo publicados sem nenhuma alteração.
A primeira página não está datada, mas temos boas razões para supor que
ela antecede de algumas semanas o início do diário propriamente dito. Teria
então sido escrita, o mais tardar, por volta do início de janeiro de 1932.
Nessa época, Antoine Roquentin, após haver viajado pela Europa central,
África do Norte e Extremo Oriente, tinha se fixado havia três anos em Bouville
para aí concluir suas pesquisas históricas sobre o marquês de Rollebon.
Folha sem data

O melhor seria anotar os acontecimentos dia a dia. Manter um diário para que
possam ser percebidos com clareza. Não deixar escapar as nuanças, os pequenos
fatos, ainda quando pareçam insignificantes, e sobretudo classificá-los. É preciso
que diga como vejo esta mesa, a rua, as pessoas, meu pacote de fumo, já que foi
isso que mudou. É preciso determinar exatamente a extensão e a natureza desta
mudança.
Por exemplo, eis aqui um estojo de papelão que contém meu frasco de tinta.
Seria preciso tentar dizer como o via antes e como atualmente eu o .[1] Pois bem,
é um paralelepípedo retangular, destaca-se sobre — é tolo, não há o que dizer a
respeito. É isso que tem que ser evitado; é preciso não colocar estranheza onde
não existe nada. Creio que é esse o perigo, quando se faz um diário: exagera-se
tudo, vive-se à espreita, força-se constantemente a verdade. Por outro lado, é
certo que posso, de um momento para o outro — e precisamente em relação a
este estojo ou a qualquer outro objeto —, reencontrar a impressão de anteontem.
Tenho que estar sempre pronto; do contrário, ela mais uma vez me escorregaria
por entre os dedos. É preciso nada [2] mas anotar cuidadosamente, e com a maior
minúcia, tudo o que ocorre.
Naturalmente, já não posso escrever nada de preciso sobre aquelas histórias
de sábado e de anteontem, já estou muito distanciado delas; só posso dizer que,
tanto num caso como no outro, não houve nada do que se chama comumente um
acontecimento. Sábado, os meninos brincavam com pedras, fazendo-as
ricochetear, e eu queria imitá-los e jogar uma no mar. Nesse momento, detive-
me, deixei cair a pedra e fui embora. É provável que eu parecesse perdido, já que
os meninos riram quando lhes dei as costas.
É isso, quanto ao exterior. O que ocorreu em mim não deixou vestígios
claros. Havia algo que vi e que me desagradou, mas já não sei se estava olhando
para o mar ou para o seixo. O seixo era achatado, seco de um lado, úmido e
lamacento do outro. Eu o segurava pelas bordas, com os dedos muito afastados,
para não me sujar.
Anteontem foi muito mais complicado. E houve também essa sequência de
coincidências, de quiproquós que não consigo entender. Mas não vou me distrair
colocando tudo isso no papel. Enfim, é certo que tive medo ou algum sentimento
do gênero. Se pelo menos soubesse do que tive medo, já teria dado um grande
passo.
O curioso é que absolutamente não me sinto inclinado a me considerar louco
e vejo até, com toda evidência, que não estou louco: todas essas mudanças dizem
respeito aos objetos. Pelo menos é disso que gostaria de ter certeza.

Dez e meia[3]
É bem possível, afinal, que se trate de uma pequena crise de loucura. Já não há
vestígios dela. Meus estranhos sentimentos da outra semana me parecem hoje
bastante ridículos: já não me identifico com eles. Essa noite, estou muito à
vontade, burguesmente instalado no mundo. Esse é meu quarto, virado para o
nordeste. Embaixo, a rua dos Mutilés e o canteiro de obras da nova estação. De
minha janela, na esquina do bulevar Victor-Noir, vejo a flâmula vermelha e
branca do Rendez-vous des Cheminots. O trem de Paris acaba de chegar. As
pessoas saem da antiga estação e espalham-se pelas ruas. Ouço passos e vozes.
Muita gente espera o último bonde. Devem formar um grupinho triste em torno
do lampião de gás, bem embaixo de minha janela. Ainda terão que esperar
alguns minutos: o bonde não passa antes das 22h45. Tomara que não cheguem
caixeiros-viajantes essa noite: desejo tanto dormir e estou com o sono tão
atrasado!... Com uma noite bem-dormida, uma só, todas essas histórias seriam
varridas de minha cabeça.
Quinze para as onze: nada mais a temer, eles já teriam chegado, se fosse o
caso. A não ser que seja o dia do senhor de Rouen. Vem todas as semanas,
reservam-lhe o quarto nº 2, no primeiro andar, o que tem um bidê. Ainda pode
chegar: muitas vezes toma um chope no Rendez-vous des Cheminots antes de ir
se deitar. Aliás, ele não faz muito barulho. É baixinho e muito asseado, com
bigodes pretos encerados e uma peruca. Aí está ele.
Pois bem, quando o ouvi subindo a escada, meu coração bateu mais forte, tal
a tranquilidade que isso me proporcionava: o que se pode temer num mundo tão
regular? Creio que estou curado.
E eis o bonde 7, Abattoirs-Grands Bassins. Chega com a barulheira de suas
ferragens. Torna a partir. Agora, carregado de malas e de crianças adormecidas,
desaparece na escuridão do leste, em direção aos Grands Bassins, em direção às
fábricas. É o penúltimo bonde; o último passará dentro de uma hora.
Vou me deitar. Estou curado, desisto de escrever minhas impressões dia a
dia, como as meninas, num bonito caderno novo.
Somente num caso poderia ser interessante fazer um diário: seria se[4]
Diário

Segunda-feira, 25 de janeiro de 1932


Alguma coisa me aconteceu, já não posso mais duvidar. Isso veio como uma
doença, não como uma certeza comum, não como uma evidência. Instalou-se
pouco a pouco, sorrateiramente: sentime um pouco estranho, um pouco
incomodado, e foi tudo. Uma vez no lugar, não mais se mexeu, ficou quieto e
consegui me persuadir de que não tinha nada, de que era um alarme falso. E eis
que agora a coisa se expande.
Não creio que a profissão de historiador incite à análise psicológica. Em
nosso trabalho só lidamos com sentimentos inteiros, aos quais damos nomes
genéricos como Ambição, Interesse. No entanto, se tivesse um mínimo de
conhecimento de mim mesmo, seria esse o momento de utilizá-lo.
Em minhas mãos, por exemplo, há algo de novo, uma determinada maneira
de segurar meu cachimbo ou meu garfo. Ou então é o garfo que tem agora uma
determinada maneira de ser segurado, não sei. Ainda há pouco, quando ia
entrando em meu quarto, parei de repente, porque sentia em minha mão um
objeto frio que retinha minha atenção através de uma espécie de personalidade.
Abri a mão, olhei: estava segurando apenas o trinco da porta. Esta manhã, na
biblioteca, quando o Autodidata[5] veio me cumprimentar, levei dez segundos
para reconhecê-lo. Via um rosto desconhecido, apenas um rosto. E depois havia
sua mão, como um grande verme branco, em minha mão. Soltei-a logo e o braço
descaiu frouxamente.
Também nas ruas há uma quantidade de ruídos estranhos que persistem.
Portanto, ocorreu uma mudança durante essas últimas semanas. Mas onde? É
uma mudança abstrata que não se fixa em nada. Fui eu que mudei? Se não fui eu,
então foi esse quarto, essa cidade, essa natureza; é preciso decidir.

Acho que fui eu que mudei: é a solução mais simples. A mais desagradável
também. Mas enfim tenho que reconhecer que sou sujeito a essas transformações
súbitas. O que acontece é que penso muito raramente; então, uma infinidade de
pequenas metamorfoses se acumulam em mim, sem que eu me dê conta, e aí, um
belo dia, ocorre uma verdadeira revolução. Foi isso que deu à minha vida esse
aspecto vacilante, incoerente. Quando deixei a França, por exemplo, houve
muita gente que disse que minha partida era uma decisão irrefletida. E quando
retornei bruscamente, após seis anos de viagem, novamente isso poderia ter sido
considerado uma decisão irrefletida. Ainda me revejo, como Mercier, no
escritório desse funcionário francês que se demitiu no ano passado em
consequência do caso Pétrou. Mercier dirigia-se a Bengala com uma missão
arqueológica. Eu sempre desejei ir a Bengala, e ele insistia que eu fosse com ele.
Atualmente me pergunto por quê. Creio que ele não confiava em Portal e
contava comigo para mantê-lo sob vigilância. Não via nenhum motivo para
recusar. E ainda que tivesse pressentido, na ocasião, esse pequeno conluio com
relação a Portal, seria mais uma razão para aceitar com entusiasmo. Pois bem,
fiquei paralisado, não conseguia dizer uma palavra. Olhava para uma pequena
estatueta khmeriana sobre um pano verde, junto a um telefone. Parecia-me que
eu estava cheio de linfa ou de leite morno. Mercier me dizia, com uma paciência
angelical que disfarçava uma ponta de irritação:
— Tenho necessidade de uma definição oficial, não é? Sei que vai terminar
dizendo que sim: seria melhor que aceitasse imediatamente.
Ele tem uma barba preto-arruivada, muito perfumada. A cada movimento de
sua cabeça, eu respirava uma onda de perfume. E depois, de repente, despertei
de um sono de seis anos.
A estátua me pareceu desagradável e estúpida, e senti que me entediava
profundamente. Não conseguia entender por que estava na Indochina. O que
fazia ali? Por que falava com aquelas pessoas? Por que estava vestido de
maneira tão estranha? Minha paixão morrera. Durante anos, ela me submergira e
me arrastara; agora, me sentia vazio. Mas isso não era o pior: diante de mim,
instalada com uma espécie de indolência, havia uma ideia volumosa e insípida.
Não sei bem o que era, mas não podia encará-la, de tal modo me repugnava.
Tudo isso se confundia para mim com o perfume da barba de Mercier.
Recompus-me, extremamente indignado com ele, respondi secamente:
— Agradeço-lhe, mas creio que já viajei bastante: agora tenho que retornar à
França.
Dois dias depois tomava o navio para Marselha.
Se não estou equivocado, se todos os indícios que se acumulam são
precursores de uma nova reviravolta em minha vida, então tenho medo. Não que
minha vida seja rica, nem preciosa. Mas sinto medo do que vai nascer, se
apoderar de mim — e me arrastar para onde? Terei que partir novamente ou
abandonar minhas pesquisas, meu livro? Despertarei, dentro de alguns meses,
dentro de alguns anos, alquebrado, decepcionado, em meio a novas ruínas?
Gostaria de me entender com exatidão antes que seja tarde demais.

Terça-feira, 26 de janeiro
Nada de novo.
Trabalhei de nove à uma na biblioteca. Organizei o capítulo XII e tudo o que
diz respeito à estada de Rollebon na Rússia, até a morte de Paulo I. É trabalho
terminado: só terei que retomá-lo quando for passar a limpo.
É uma e meia. Estou no café Mably comendo um sanduíche, tudo está mais
ou menos normal. Aliás, nos cafés, tudo está sempre normal, particularmente no
Mably, por causa do gerente, o sr. Fasquelle, que traz estampada no rosto uma
expressão velhaca muito positiva e alentadora. Está quase na hora de sua sesta, e
seus olhos já estão avermelhados, mas continua a se movimentar com vivacidade
e decisão. Passeia entre as mesas e se aproxima dos fregueses com ar
confidencial:
— Está a seu gosto, senhor?
Sorrio ao vê-lo tão vivaz: nas horas em que seu estabelecimento se esvazia,
também sua cabeça se esvazia. De duas às quatro o café fica deserto; então o sr.
Fasquelle dá alguns passos, como que idiotizado, os garçons apagam as luzes e
ele mergulha na inconsciência: quando fica sozinho, esse homem dorme.
Há ainda uns vinte fregueses, celibatários, modestos engenheiros,
empregados de escritórios. Almoçam rapidamente em pensões familiares que
chamam de suas cantinas e, como têm necessidade de um pouco de luxo, vêm
aqui após a refeição, tomam um café e jogam pôquer; fazem um pouco de
barulho, um barulho inconsistente que não me incomoda. Também eles, para
existir, precisam estar reunidos.
Quanto a mim, vivo sozinho, inteiramente só. Nunca falo com ninguém; não
recebo nada, não dou nada. O Autodidata não conta. É verdade que existe
Françoise, a dona do Rendez-vous des Cheminots. Mas falo com ela? Algumas
vezes, após o jantar, quando me serve um chope, pergunto-lhe:
— Dispõe de tempo essa noite?
Ela nunca diz não e eu a sigo até um dos quartos grandes do primeiro andar,
que ela aluga por hora ou por dia. Não lhe pago: fazemos amor au pair.[6] Ela
sente prazer (necessita de um homem por dia e tem muitos outros além de mim)
e me purgo assim de certas melancolias cuja causa conheço muito bem. Mas
raramente conversamos alguma coisa. Para quê? Cada um por si; a seus olhos,
aliás, continuo sendo, antes de mais nada, um freguês do café. Ela me diz,
enquanto tira o vestido:
— Diga-me uma coisa, você conhece um aperitivo chamado Bricot? Porque
dois clientes pediram isso essa semana. A menina não sabia o que era, veio me
avisar. Eram caixeiros-viajantes, devem ter bebido em Paris. Mas não gosto de
comprar sem saber. Se não se incomoda, vou ficar de meias.
Em outras épocas — até muito tempo depois de ela ter me deixado — pensei
por Anny. Atualmente já não penso mais por ninguém; nem sequer me preocupo
em procurar palavras. Isso flui em mim, mais depressa ou mais devagar, não fixo
nada, deixo correr. A maioria das vezes, por não se ligarem a palavras, meus
pensamentos permanecem nebulosos. Desenham formas vagas e agradáveis,
submergem: esqueço-os imediatamente.
Esses jovens me maravilham: bebendo seu café, contam histórias inteligíveis
e verossímeis. Se lhes perguntamos o que fizeram ontem, não se perturbam:
informam-nos em duas palavras. No lugar deles, eu gaguejaria. É verdade que
faz já muito tempo que ninguém se preocupa com o que faço. Quando se vive
sozinho, já nem mesmo se sabe o que é narrar: a verossimilhança desaparece
junto com os amigos. Também os acontecimentos deixamos correr; vemos surgir
bruscamente pessoas que falam e que se vão, mergulhamos em histórias sem pé
nem cabeça: seríamos testemunhas execráveis. Em compensação, não nos escapa
tudo o que é inverossímil, tudo a que não dariam crédito nos cafés. Sábado, por
exemplo, por volta das quatro da tarde, na ponta da calçada, sobre a passagem de
tábuas do canteiro de obras da estação, uma mulherzinha vestida de azul-celeste
corria de costas, rindo e sacudindo um lenço. Ao mesmo tempo um negro, com
uma capa creme, sapatos amarelos e um chapéu verde, dobrava a esquina,
assobiando. A mulher, sempre de costas, chocou-se com ele sob um lampião
pendurado na paliçada e que é aceso à noite. Havia então ali, ao mesmo tempo,
essa paliçada com forte cheiro de madeira molhada, esse lampião, essa
mulherzinha loura nos braços de um negro, sob um céu flamejante. Se fôssemos
quatro ou cinco, creio que teríamos notado o choque, todas essas cores suaves, o
bonito casaco azul que parecia um edredom, a capa clara, os vidros vermelhos
do lampião; teríamos rido da estupefação que se estampava naqueles dois rostos
de criança.
Raramente um homem sozinho sente vontade de rir: a cena toda assumiu
para mim um sentido muito forte e até violento, mas puro. Depois se dissolveu;
só ficaram o lampião, a paliçada e o céu: ainda era bastante bonito. Uma hora
depois o lampião estava aceso, soprava o vento, o céu estava escuro: já não
restava mais nada.
Nada disso é novo; nunca rejeitei essas emoções inofensivas; ao contrário.
Para experimentá-las, basta que se esteja um pouco sozinho, o suficiente para se
livrar, no momento adequado, da verossimilhança. Mas eu me mantinha bem
perto das pessoas, na superfície da solidão, decidido, em caso de alarme, a me
refugiar em meio a elas: no fundo, até aqui, eu era um amador.
Agora, em toda parte, há coisas como este copo de cerveja aqui em cima da
mesa. Quando o vejo, tenho vontade de dizer: “Alto lá, estou fora do jogo.” Sei
perfeitamente que fui longe demais. Creio que não se pode “dar um espaço” para
a solidão. Isso não significa que olhe embaixo da cama antes de me deitar, ou
que tema ver a porta de meu quarto se abrir bruscamente no meio da noite.
Simplesmente, mesmo assim, me sinto intranquilo: faz uma meia hora que evito
olhar para esse copo de cerveja. Olho para cima, para baixo, para a direita, para
a esquerda: mas ele — o copo — não quero ver. E sei muito bem que todos os
celibatários que me rodeiam não podem me ajudar: é tarde demais, já não posso
me refugiar entre eles. Bateriam no meu ombro, dizendo: “Então, o que é que há
com esse copo de cerveja? É igual aos outros. É bisotado, tem uma asa, um
pequeno escudo com uma pá onde se lê Spatenbräu.”
Sei de tudo isso. Mas sei que há outra coisa. Quase nada. Mas não posso
mais explicar o que vejo. A ninguém. É isso: deslizo suavemente para o fundo da
água, para o medo.
Estou só, em meio a essas vozes alegres e sensatas. Todos esses sujeitos
passam o tempo se explicando, reconhecendo com satisfação que têm as mesmas
opiniões. Deus meu, que importância dão a pensar todos juntos as mesmas
coisas! Basta ver a cara que fazem quando passa por eles um desses homens com
olhos de peixe que parecem olhar para dentro e com os quais não é mais
possível, de forma alguma, se conciliar. Quando eu tinha oito anos e brincava no
Luxembourg, havia um desses que vinha se sentar numa guarita junto à grade
que ladeia a rua Auguste-Comte. Não falava, mas de quando em quando estendia
a perna e olhava para o pé com ar apavorado. Nesse pé usava uma botina e, no
outro, um chinelo. O guarda disse a meu tio que se tratava de um ex-inspetor de
colégio. Fora aposentado porque comparecera às salas de aula, para ler as notas
trimestrais, usando traje de acadêmico. Tínhamos um medo horrível dele, porque
sentíamos que era um homem sozinho. Um dia sorriu para Robert, estendendo-
lhe os braços de longe: Robert quase desmaiou. Não era o aspecto miserável do
sujeito que nos assustava, nem o tumor que tinha no pescoço e que roçava a
beira de seu colarinho: mas sentíamos que ele formava em sua cabeça
pensamentos de caranguejo ou de lagosta. E o fato de que alguém pudesse
formar pensamentos de lagosta a respeito da guarita, de nossos arcos, das moitas
de arbustos, nos aterrorizava.
É isso então o que me espera? Pela primeira vez me incomoda estar só.
Gostaria de falar com alguém sobre o que está me acontecendo, antes que seja
tarde demais, antes que eu comece a assustar os garotinhos. Gostaria que Anny
estivesse aqui.

É curioso: acabo de escrever dez páginas e não disse a verdade — pelo menos
não toda a verdade. Quando escrevia, sob a data, “Nada de novo”, fazia-o com a
consciência pesada: na verdade, uma pequena história, que não é nem
vergonhosa nem extraordinária, se recusava a sair. “Nada de novo.” Admira-me
como se pode mentir racionalizando. Evidentemente se pode dizer que não
ocorreu nada de novo: às 8h15, quando saía do hotel Printania para me dirigir à
biblioteca, quis — e não pude — apanhar um papel caído no chão. Isso é tudo e
sequer é um acontecimento. Sim; mas, para dizer toda a verdade, foi algo que me
impressionou profundamente: pensei que já não era livre. Na biblioteca, tentei
sem êxito me desvencilhar dessa ideia. Quis fugir dela no café Mably. Esperava
que se dissipasse sob as luzes. Mas ela permaneceu em mim, pesada e dolorosa.
Foi ela que me ditou as páginas precedentes.
Por que não a mencionei? Deve ter sido por orgulho e também um pouco por
desazo. Não tenho o hábito de contar para mim mesmo o que me acontece e
então me escapa um pouco a sucessão dos acontecimentos, não distingo o que é
importante. Mas agora acabou: reli o que escrevi no café Mably e senti
vergonha; não quero segredos, nem estados de alma, nem coisas indizíveis; não
sou nem virgem nem padre para brincar de vida interior.
Não há muito o que dizer: não pude pegar o papel, isso é tudo.
Gosto muito de apanhar do chão castanhas, velhos farrapos, sobretudo
papéis. Sinto prazer em pegá-los, fechá-los em minhas mãos; por pouco não os
levo à boca, como as crianças fazem. Anny se enfurecia quando eu pegava por
uma ponta papéis pesados e suntuosos, mas provavelmente sujos de merda.
Durante o verão ou no início do outono encontram-se nos jardins pedaços de
jornais crestados pelo sol, ressecados e quebradiços como folhas mortas, tão
amarelos que se poderia imaginar que tivessem sido mergulhados em ácido
pícrico. No inverno outras folhas de papel mostram-se pisadas, maceradas,
maculadas: retornam à terra. Outras ainda, muito novas e até brilhantes, muito
brancas, palpitantes, estão pousadas como cisnes, mas por baixo a terra já as
agarra. Torcem-se, arrancam-se da lama, mas só para cair um pouco mais
adiante, definitivamente. Tudo isso é bom de pegar. Às vezes simplesmente as
apalpo olhando-as bem de perto; outras vezes rasgo-as para ouvir sua longa
crepitação, ou então, se estão muito úmidas, ateio-lhes fogo, o que não é fácil;
depois limpo as palmas das mãos cheias de lama numa parede ou num tronco de
árvore.
Então hoje estava olhando para as botas fulvas de um oficial de cavalaria que
vinha saindo do quartel. Acompanhando-as com o olhar, vi um papel que jazia
ao lado de uma poça. Pensei que o oficial fosse enterrar o papel na lama com seu
salto, mas não: numa só passada ele ultrapassou o papel e a poça. Aproximei-
me: era uma página pautada, certamente arrancada de um caderno escolar. A
chuva a encharcara e retorcera, estava coberta de bolhas e de tumefações como
uma mão queimada. O traço vermelho da margem desbotara, transformando-se
numa umidade cor-de-rosa; a tinta escorrera em alguns lugares. A parte de baixo
da página estava coberta por uma crosta de lama. Abaixei-me, sentindo já a
satisfação de tocar naquela massa tenra e fresca que se enrolaria em bolinhas
cinzentas entre meus dedos... Não pude.
Permaneci curvado por um instante, li: “Ditado: a coruja branca”; depois me
ergui, as mãos vazias. Já não sou livre, já não posso fazer o que quero.
Os objetos não deveriam tocar, já que não vivem. Utilizamo-los, colocamo-
los em seus lugares, vivemos no meio deles: são úteis e nada mais. E a mim eles
tocam — é insuportável. Tenho medo de entrar em contato com eles exatamente
como se fossem animais vivos.
Agora vejo; lembro-me melhor do que senti outro dia, junto ao mar, quando
segurava aquela pedra. Era uma espécie de enjoo adocicado. Como era
desagradável! E isso vinha da pedra, tenho certeza, passava da pedra para as
minhas mãos. Sim, é isso, é exatamente isso: uma espécie de náusea nas mãos.

Quinta-feira de manhã, na biblioteca


Ainda agora, descendo a escada do hotel, ouvi Lucie fazendo pela centésima vez
suas lamentações à patroa, enquanto encerava os degraus. A patroa falava com
esforço e com frases curtas, porque ainda estava sem a sua dentadura; estava
praticamente nua, de roupão rosa e babuchas. Lucie, como de hábito, estava suja;
de quando em quando parava de esfregar e se endireitava sobre os joelhos para
olhar para a patroa. Falava ininterruptamente, com ar sensato.
— Preferia mil vezes que ele fosse mulherengo — dizia ela. — Isso me seria
indiferente, desde que não lhe fizesse mal.
Falava do marido: beirando os quarenta anos, essa mulher trigueira pescou,
com suas economias, um rapagão, ajustador de peças nas fábricas Lecointe. É
infeliz no casamento. O marido não bate nela, não a engana: bebe, volta para
casa embriagado todas as noites. Está mal de saúde; em três meses vi-o
amarelecer e definhar. Lucie pensa que é a bebida. Acho que está tuberculoso.
— É preciso reagir — dizia Lucie.
Tenho certeza de que isso a está corroendo, mas lenta, pacientemente: ela
reage, não consegue nem se consolar, nem se entregar à sua infelicidade. Pensa
nela um pouquinho de vez em quando, só um pouquinho, tira proveito dela.
Sobretudo quando está com alguém, porque as pessoas a consolam e também
porque o fato de falar a respeito, num tom ponderado, como quem dá conselhos,
a alivia um pouco. Quando está sozinha nos quartos, ouço-a cantarolar para se
impedir de pensar. Mas passa o dia todo morosa, fica logo cansada e emburrada.
— É aqui — diz tocando na garganta, como se tivesse um nó. — Não desce.
Sofre com avareza. Também deve ser avara em relação a seus prazeres.
Pergunto-me se algumas vezes não deseja se libertar dessa dor monótona, desses
resmungos que recomeçam tão logo para de cantar, se não deseja sofrer muito de
uma vez por todas, se afogar no desespero. Mas, de qualquer maneira, não
poderia fazê-lo: está atada.

Quinta-feira à tarde
“O sr. de Rollebon era muito feio. A rainha Maria Antonieta chamava-o
habitualmente de sua ‘querida macaquinha’. No entanto, ele possuía todas as
mulheres da corte, e não por bufonear como Voisenon, o macaco: por um
magnetismo que levava suas belas conquistas aos piores extremos da paixão. É
maquinador, tem um papel bastante suspeito no caso do Colar e desaparece em
1790, depois de ter mantido um intercâmbio regular com Mirabeau-Tonneau e
Nerciat. Tornamos a encontrá-lo na Rússia, onde é um pouco responsável pelo
assassinato de Paulo I, e de lá viaja para os países mais longínquos, para a Índia,
para a China, para o Turquestão. Trafica, conspira, espiona. Em 1813 retorna a
Paris. Em 1816 torna-se todo-poderoso: é o único confidente da duquesa de
Angoulême. Essa velha caprichosa, obcecada por terríveis recordações de
infância, tranquiliza-se e sorri quando o vê. Graças a ela Rollebon manda e
desmanda na corte. Em março de 1820 ele desposa a srta. de Roquelaure, que
tem 18 anos e é muito bonita. O sr. de Rollebon tem setenta; está no auge das
honrarias, no apogeu da vida. Sete meses depois, acusado de traição, é preso,
jogado numa masmorra, onde morre após cinco anos de cativeiro, sem que seu
processo tenha sido instruído.”
Reli com melancolia essa nota de Germain Berger.[7] Foi através dessas
poucas linhas que vim a conhecer o sr. de Rollebon. Como me pareceu sedutor, e
como gostei dele logo, só por essas poucas palavras! É por causa dele, desse
homenzinho, que estou aqui. Quando voltei de viagem, poderia perfeitamente ter
me instalado em Paris ou Marselha. Mas a maioria dos documentos referentes às
longas permanências do marquês na França está na biblioteca municipal de
Bouville. Rollebon era castelão de Marommes. Antes da guerra, ainda havia
nesse burgo um descendente seu, um arquiteto chamado Rollebon-Campouyré e
que, quando morreu, em 1912, deixou um importante legado para a biblioteca de
Bouville: cartas do marquês, um fragmento de diário, papéis de toda espécie.
Ainda não examinei tudo.
Estou contente por haver encontrado essas notas. Faz dez anos que não as
relia. Parece-me que minha caligrafia mudou: escrevia com letra mais apertada.
Como gostei do sr. de Rollebon naquele ano! Lembro-me de uma noite — uma
noite de terça-feira: tinha trabalhado o dia inteiro na biblioteca Mazarine;
acabava de perceber, por sua correspondência de 1789-1790, a maneira magistral
pela qual ele lograra Nerciat. Era de noite, eu descia a avenida do Maine e, na
esquina da rua da Gaîté, comprei castanhas. Sentia-me feliz! Ria sozinho
pensando na cara que Nerciat devia ter feito quando retornou da Alemanha. A
figura do marquês é como essa tinta: esmaeceu desde que me ocupo dela.
Em primeiro lugar, a partir de 1801 já não entendo seu comportamento. Não
é por falta de documentos: cartas, fragmentos de memórias, relatórios secretos,
arquivos de polícia. Ao contrário, tenho quase excesso disso. O que falta em
todos esses testemunhos é firmeza, consistência. Eles não se contradizem, mas
também não se conciliam; não parecem se referir à mesma pessoa. E no entanto
os outros historiadores trabalham com informações do mesmo tipo. Como
fazem? Serei mais escrupuloso ou menos inteligente? Aliás, colocada assim, a
pergunta não me perturba. No fundo, o que procuro? Não tenho ideia. Durante
muito tempo o homem Rollebon me interessou mais do que o livro por escrever.
Mas agora o homem... o homem começa a me entediar. Estou preso ao livro,
sinto uma necessidade cada vez mais intensa de escrevê-lo — à medida que
envelheço, diriam.
Evidentemente, é admissível que Rollebon tenha participado ativamente do
assassinato de Paulo I, que a seguir tenha aceitado uma missão de alta
espionagem no Oriente para o czar e que tenha traído constantemente Alexandre
em benefício de Napoleão. Pode ao mesmo tempo ter mantido uma
correspondência ativa com o conde de Artois e passado a ele informações pouco
importantes, para convencê-lo de sua fidelidade: nada disso é inverossímil; na
mesma época, Fouché representava uma comédia muito mais complexa e
perigosa. Talvez o marquês fizesse por conta própria o tráfico de fuzis com os
principados asiáticos.
Muito bem: ele pode ter feito tudo isso, mas não há provas: começo a achar
que nunca se pode provar nada. Trata-se de hipóteses honestas que explicam os
fatos: mas sinto tão claramente que provêm de mim, que são simplesmente uma
maneira de unificar meus conhecimentos!... Não vem lampejo algum da parte de
Rollebon. Lentos, preguiçosos, enfadonhos, os fatos se acomodam ao rigor da
ordem que quero lhes dar, mas lhes permanecem exteriores. Tenho a impressão
de estar fazendo um trabalho puramente imaginativo. Além do mais, estou
convencido de que personagens de romance pareceriam mais verdadeiros.
Seriam pelo menos mais agradáveis.

Sexta-feira
Três horas. Três horas é sempre muito tarde ou muito cedo para o que se quer
fazer. Um momento da tarde bastante peculiar. Hoje está intolerável.
Um sol frio clareia a poeira das vidraças. Céu pálido, mesclado de branco.
De manhã os córregos estavam congelados.
Estou digerindo pesadamente, perto do calefator; sei de antemão que será um
dia perdido. Não farei nada de bom, a não ser talvez ao cair da noite. É por causa
do sol; ele doura vagamente umas brumas brancas sujas, suspensas no ar, por
cima do canteiro de obras; penetra no meu quarto, muito louro, muito pálido,
espalhando em minha mesa quatro reflexos baços e falsos.
Meu cachimbo é revestido de um verniz dourado que de início atrai o olhar
por uma aparência de alegria: quando se olha para ele, o verniz se desfaz e fica
apenas um grande rastro esmaecido sobre um pedaço de madeira. E é tudo assim
— tudo —, até minhas mãos. Quando faz um sol desses, o melhor seria ir me
deitar. Mas dormi como uma pedra a noite passada e estou sem sono.
Agradava-me tanto o céu de ontem, um céu estreito, negro de chuva, que se
encostava nas vidraças como um rosto ridículo e comovente. O sol de hoje não é
ridículo, muito pelo contrário. Sobre todas as coisas que amo, sobre a sucata do
canteiro de obras, sobre as tábuas apodrecidas da paliçada, cai uma luz avara e
moderada, semelhante ao olhar que damos, após uma noite sem dormir, às
decisões tomadas no entusiasmo da véspera, às páginas que escrevemos sem
rasuras e de um só fôlego. Os quatro cafés do bulevar Victor-Noir que
resplandecem durante a noite lado a lado e que são muito mais do que cafés —
aquários, navios, estrelas ou grandes olhos brancos — perderam sua graça
ambígua.
Um dia perfeito para a introspecção: essas frias claridades que o sol projeta,
como um julgamento sem indulgência, sobre as criaturas, entram-me pelos
olhos; estou iluminado por dentro por uma luz empobrecedora. Tenho certeza de
que bastariam 15 minutos para que atingisse a suprema repugnância de mim
mesmo. Muito obrigado. Não estou interessado nisso. Também não relerei o que
escrevi ontem sobre a estada de Rollebon em São Petersburgo. Permaneço
sentado, balançando os braços, ou então escrevo sem entusiasmo algumas
palavras, bocejo, espero o cair da noite. Quando estiver escuro, os objetos e eu
sairemos do limbo.
Rollebon participou ou não do assassinato de Paulo I?
É essa a pergunta do dia: cheguei a ela e não posso prosseguir sem ter
decidido.
Segundo Tcherkoff, ele era pago pelo conde Pahlen. A maioria dos
conspiradores, diz Tcherkoff, se teria contentado em depor o czar e prendê-lo.
(Alexandre, efetivamente, parece ter sido partidário dessa solução.) Mas Pahlen
teria querido acabar de vez com Paulo. O sr. de Rollebon teria sido encarregado
de pressionar individualmente os conspiradores para que se decidissem pelo
assassinato.
“Foi visitar cada um deles e fez, com força incomparável, uma representação
da cena que ocorreria. Dessa maneira provocou ou desenvolveu neles a psicose
do assassinato.”
Mas não confio em Tcherkoff. Não é uma testemunha sensata, é um mago
sádico e um semilouco: transforma tudo em demoníaco. Absolutamente não vejo
o sr. de Rollebon nesse papel melodramático. Teria representado a cena do
assassinato? Ora vamos! É um homem frio, normalmente não empolga: não faz
ver, insinua; e seu método, pálido e sem cor, só pode ter êxito com homens de
sua espécie, conspiradores sensíveis a ponderações, políticos.
“Adhémar de Rollebon”, escreve a sra. de Charrières, “não representava
quando falava, não fazia gestos, não mudava de entonação. Conservava os olhos
semicerrados e mal se podia surpreender entre seus cílios a orla das pupilas
cinzentas. Faz poucos anos que ouso confessar a mim mesma que ele me
entediava ao extremo. Falava um pouco como o abade Mably escrevia”.
E foi esse homem que, por seu talento para representar... Mas então como
cativava as mulheres? E há também a história curiosa que Ségur relata e que me
parece verdadeira:
“Em 1787, num albergue perto de Moulins, estava à morte um velho, amigo
de Diderot, formado pelos filósofos. Os padres das redondezas estavam
extenuados: tinham tentado de tudo, inutilmente; o homenzinho se recusava a
receber os últimos sacramentos, era panteísta. O sr. de Rollebon, que passava por
ali e não acreditava em nada, apostou com o pároco de Moulins que não
precisaria nem de duas horas para converter o doente aos sentimentos cristãos. O
pároco aceitou a aposta e perdeu: entregue a ele às três da manhã, o doente se
confessou às cinco e morreu às sete. ‘É tão forte assim na arte da
argumentação?’, perguntou o pároco. ‘É melhor do que os nossos!’ O sr. de
Rollebon respondeu: ‘Não argumentei: fiz com que sentisse medo do inferno.’”
Mas terá ele tomado ou não parte ativa no assassinato? Aquela noite, por
volta das oito horas, um oficial amigo seu acompanhou-o até a porta de casa. Se
tornou a sair, como pôde atravessar São Petersburgo sem ser incomodado?
Paulo, meio enlouquecido, ordenara que a partir das nove horas da noite fossem
presos todos os transeuntes, exceto as parteiras e os médicos. Haveria que
acreditar na lenda absurda segundo a qual Rollebon teria tido que se disfarçar de
parteira para chegar até o palácio? Afinal, era capaz disso. De qualquer maneira,
não estava em casa na noite do assassinato, isso parece provado. Alexandre
devia suspeitar muito dele, já que um dos primeiros atos de seu reinado foi
afastar o marquês sob o vago pretexto de uma missão no Extremo Oriente.
O sr. de Rollebon me enfada. Levanto-me. Mexo-me sob essa luz pálida;
vejo-a mudar em minhas mãos e nas mangas de meu casaco: é indizível a que
ponto ela me desagrada. Bocejo. Acendo a lâmpada sobre a mesa: talvez a sua
claridade possa combater a do dia. Mas não: a lâmpada faz apenas uma poça
lamentável em torno de sua base. Apago-a; levanto-me. Na parede há um buraco
branco, o espelho. É uma armadilha. Sei que vou cair nela. Aí está. A coisa
cinzenta acaba de aparecer no espelho. Aproximo-me e olho para ela: já não
posso mais ir.
É o reflexo de meu rosto. Muitas vezes, nesses dias perdidos, fico a
contemplá-lo. Não entendo nada desse rosto. Os dos outros têm um sentido. O
meu, não. Sequer consigo decidir se é bonito ou feio. Acho que é feio, porque
me disseram. Mas isso não me impressiona. No fundo, até me choca que se
possam atribuir a ele qualidades desse gênero, como se chamassem de bonito ou
feio um pedaço de terra ou um bloco de rocha.
Ainda assim, há uma coisa que dá prazer ver, por cima das regiões flácidas
das faces, por cima da testa: é a bela chama vermelha que doura meu crânio: são
meus cabelos. Isso sim é agradável de olhar. É uma cor nítida pelo menos: gosto
de ser ruivo. Está aí no espelho, faz-se ver, brilha. Ainda tenho sorte: se minha
testa carregasse uma dessas cabeleiras sem brilho que não conseguem se decidir
entre o castanho e o louro, meu rosto se perderia no vago, me deixaria tonto.
Meu olhar desce lentamente, com tédio, para essa testa, para essas faces: não
encontra nada de firme, encalha. Evidentemente há um nariz, olhos, uma boca,
mas nada disso tem sentido, nem mesmo expressão humana. No entanto, Anny e
Vélines achavam que eu tinha um ar vivaz; é possível que eu esteja
excessivamente habituado ao meu rosto. Quando era pequeno, minha tia Bigeois
me dizia: “Se você se olhar demais no espelho, vai acabar vendo um macaco.”
Devo ter me olhado ainda mais tempo: o que vejo está muito abaixo do macaco,
na fronteira do mundo vegetal, no nível dos pólipos. Não digo que não tenha
vida; mas não era a esse tipo de vida que Anny se referia: vejo uns leves
estremecimentos, vejo uma carne insípida que se expande e palpita com
abandono. Sobretudo os olhos, assim de muito perto, são horríveis. São algo
vítreo, mole, cego, margeado de vermelho; pareceriam escamas de peixe.
Apoio-me com todo meu peso no rebordo de faiança, aproximo meu rosto do
espelho até encostar nele. Os olhos, o nariz e a boca desaparecem: não resta mais
nada de humano. Rugas amarronzadas de cada lado da tumescência febril dos
lábios, gretas, montículos. Uma penugem sedosa e branca cobre os grandes
declives das faces, dois pelos saem das narinas: é um mapa geológico em relevo.
E, apesar de tudo, esse mundo lunar me é familiar. Não posso dizer que
reconheço seus detalhes. Mas o conjunto me deixa uma impressão de coisa já
vista que me entorpece: mergulho suavemente no sono.
Gostaria de recuperar o controle: uma sensação viva e abrupta me libertaria.
Espalmo a mão esquerda em minha face, puxo a pele; faço uma careta para mim
mesmo. Toda uma metade de meu rosto cede, a metade esquerda da boca se
torce e aumenta de volume, deixando aparecer um dente, a órbita se abre sobre
um globo branco, sobre uma carne rosa e sanguinolenta. Não é o que eu
procurava: nada de forte, nada de novo; uma coisa suave, imprecisa, já vista. Vou
adormecendo de olhos abertos; já o rosto cresce, cresce no espelho, é um imenso
halo pálido que desliza na luz...
O que me acorda bruscamente é o fato de perder o equilíbrio. Estou
escarranchado numa cadeira, ainda estonteado. Será que os outros homens têm
tanta dificuldade em avaliar seus rostos? Parece-me que vejo o meu como sinto o
corpo, por uma sensação surda e orgânica. Mas e os outros? Rollebon, por
exemplo? Adormecê-lo-ia também o fato de olhar nos espelhos o que a sra. de
Genlis chama de “o seu rostinho enrugado, asseado, marcado de varíola, onde
havia uma malícia singular, que saltava aos olhos, por mais esforço que fizesse
para dissimulá-la. O marquês”, acrescenta ela, “cuidava muito de seu penteado e
nunca o vi sem peruca. Mas as faces eram de um azul que puxava para o preto,
porque a barba era espessa e ele gostava de se barbear pessoalmente, coisa que
fazia muito mal. Tinha o hábito de se pintar com alvaiade à moda de Grimm. O
sr. de Dangeville dizia que ele parecia, com todo esse branco e todo esse azul,
um queijo Roquefort”.
Acho que devia ser uma pessoa bem divertida. Mas afinal não era essa a
impressão que ele dava à sra. de Charrières. Creio que ela o achava bastante
apagado. Talvez seja impossível compreender o próprio rosto. Ou talvez seja
porque sou um homem sozinho? As pessoas que vivem em sociedade
aprenderam a se ver nos espelhos tal como aparecem a seus amigos. Não tenho
amigos: será por isso que minha carne é tão nua? Dir-se-ia — sim, dir-se-ia a
natureza sem os homens.

Não sinto mais vontade de trabalhar; não posso fazer mais nada, a não ser
esperar a noite.
Cinco e meia
As coisas não vão bem! Não vão bem de modo algum: estou com ela, com a
sujeira, com a Náusea. E dessa vez é diferente: me veio num café. Até agora os
cafés eram meu único refúgio, porque estão cheios de gente e são bem
iluminados: já não haverá nem isso; quando me sentir encurralado em meu
quarto, já não saberei aonde ir.
Vinha para trepar, mas mal empurrara a porta e Madeleine, a empregada,
gritou:
— A patroa não está, foi à cidade fazer compras.
Senti uma viva decepção no meu sexo, uma titilação longa e desagradável.
Ao mesmo tempo sentia a camisa roçando em meus mamilos, e era envolto,
tomado por um lento turbilhão colorido, um turbilhão de névoa, de luzes na
fumaça, nos espelhos, com os bancos que brilhavam ao fundo, e não via nem por
que aquilo estava ali, nem por que era assim. Estava no umbral da porta,
hesitante, e depois houve um remoinho, passou uma sombra no teto e me senti
empurrado para a frente. Flutuava atordoado pelas brumas luminosas que me
penetravam de todos os lados ao mesmo tempo. Madeleine veio flutuando para
tirar meu sobretudo e notei que puxara os cabelos para trás e colocara brincos: eu
não a reconhecia. Olhava suas faces, que se estiravam cada vez mais em direção
às orelhas.
Sob as maçãs do rosto havia duas manchas cor-de-rosa isoladas que pareciam
se entediar naquela carne pobre. As faces se estiravam, se estiravam em direção
às orelhas, e Madeleine sorria.
— O que vai tomar, sr. Antoine?
Então fui acometido pela Náusea, me deixei cair no banco, já nem sabia onde
estava; via as cores girando lentamente em torno de mim, sentia vontade de
vomitar. E é isso: a partir daí a Náusea não me deixou, se apossou de mim.
Paguei. Madeleine levou meu pires. Meu copo esmaga contra o mármore
uma poça de cerveja amarela onde flutua uma bolha. O banco está quebrado no
lugar em que me sentei e, para não escorregar, sou obrigado a apoiar com força
as solas de meus sapatos no chão; faz frio. À direita, algumas pessoas jogam
cartas sobre um pano de lã. Não as vi ao entrar; senti apenas que havia um
pacote morno, meio sobre o banco, meio sobre a mesa do fundo, com pares de
braços que se agitavam. Depois disso Madeleine trouxe-lhes os baralhos, o pano
e as fichas numa tigela de madeira. São três ou cinco, não sei, não tenho
coragem de olhá-los. Estou como uma mola quebrada: posso mover os olhos,
mas não a cabeça. A cabeça está mole, elástica: parece apenas pousada em meu
pescoço; se a giro, deixo-a cair. Ainda assim, ouço uma respiração curta e vejo
de quando em quando, com o canto do olho, um clarão rubro coberto de pelos
brancos. É uma mão.
Quando a patroa sai para as compras, é seu primo que a substitui no balcão.
Chama-se Adolphe. Comecei a olhá-lo ao me sentar e continuei a fazê-lo, porque
não podia virar a cabeça. Está em mangas de camisa, com suspensórios cor de
malva; arregaçou as mangas da camisa até acima do cotovelo. Quase não se
veem os suspensórios sobre a camisa azul, estão apagados, perdidos no azul, mas
trata-se de uma humildade falsa: na verdade, não passam despercebidos, me
irritam por sua obstinação de carneiros, como se, destinados a serem roxos,
tivessem parado no meio do caminho sem abandonar suas pretensões. Dá
vontade de lhes dizer: “Façam isso, tornem-se roxos, e assunto encerrado.” Mas
não, eles permanecem em suspenso, obstinados em seu esforço incompleto. Às
vezes o azul que os envolve os recobre inteiramente: fico um momento sem vê-
los. Mas é apenas uma onda: logo o azul esmaece aqui e ali, e vejo reaparecer
ilhotas de uma cor de malva hesitante, que aumentam de tamanho, se juntam e
reconstituem os suspensórios. O primo Adolphe não tem olhos: suas pálpebras
empapuçadas e levantadas deixam ver apenas um pouco do branco do olho. Sorri
com ar sonolento; de quando em quando se sacode, gane e se agita um pouco,
como um cachorro que sonha.
Sua camisa de algodão azul sobressai alegremente contra a parede cor de
chocolate. Também isso me dá a Náusea. Ou antes, é a Náusea. A Náusea não
está em mim: sinto-a ali na parede, nos suspensórios, por todo lado ao redor de
mim. Ela forma um todo com o café: sou eu que estou nela.
À minha direita, o pacote morno começa a fazer barulho, agita seus pares de
braços.
“Pronto, aí está seu trunfo. — Qual é o trunfo?” Grande espinha preta
curvada sobre o jogo: “Ha, ha! — O quê? Aí está o trunfo, ele acaba de jogá-lo.
— Não sei, não vi... — Sim, agora, acabo de jogar o trunfo. — Ah, bem, então o
trunfo é copas.” Cantarola: “Trunfo de copas, trunfo de copas.” Falando: “Como,
senhor? Como? A vaza é minha!”
Novamente o silêncio — o gosto de açúcar do ar no fundo da boca. Os
odores. Os suspensórios.
O primo se levantou, deu alguns passos, colocou as mãos atrás das costas,
sorri, levanta a cabeça e se inclina para trás, na ponta dos calcanhares. Nessa
posição ele dorme. Está ali, oscilando, sempre sorrindo, as bochechas tremendo.
Vai cair. Inclina-se para trás, inclina-se, inclina-se, o rosto inteiramente virado
para o teto; depois, no momento de cair, segura-se destramente na beira do
balcão e recupera o equilíbrio. Em seguida, tudo se repete. Estou farto, chamo a
garçonete:
— Madeleine, ponha uma música no gramofone, por favor. Sabe, aquela de
que eu gosto: “Some of these days.”
— Sim, mas talvez incomode esses senhores; esses senhores não gostam de
música quando estão jogando. Ah! Vou perguntar a eles.
Faço um grande esforço e viro a cabeça. São quatro. Ela se debruça sobre um
velho rubro que usa um lornhão com aro preto na ponta do nariz.
Ele esconde seu jogo contra o peito e me olha por baixo das lentes.
— À vontade, senhor.
Sorrisos. Seus dentes são podres. A mão vermelha não é dele, mas do
vizinho, um sujeito de bigode preto. Esse sujeito de bigode tem narinas imensas,
que poderiam sorver ar para toda uma família e que lhe cobrem a metade do
rosto, mas, apesar disso, ele respira pela boca, ofegando um pouco. Há também
com eles um rapaz com cara de cachorro. Não consigo distinguir o quarto
parceiro.
As cartas rodopiam ao cair sobre o pano de lã. Depois, mãos cobertas de
anéis as recolhem, arranhando o pano com suas unhas. As mãos formam
manchas brancas sobre o pano, parecem poeirentas e inchadas. Continuam a cair
outras cartas. As mãos vão e vêm. Que ocupação estranha: não parece um jogo,
nem um rito, nem um hábito. Acho que fazem isso simplesmente para encher o
tempo. Mas o tempo é muito longo, não se deixa encher. Tudo o que mergulha
nele amolece e se estira. Por exemplo, esse gesto da mão vermelha que recolhe
as cartas vacilando: é inteiramente frouxo. Seria preciso descosê-lo e cortar por
dentro para reduzi-lo.
Madeleine gira a manivela do gramofone. Espero que não tenha se enganado,
que não tenha colocado, como no outro dia, a grande ária da Cavalleria
Rusticana.
Não, está certo, reconheço a melodia já nos primeiros compassos. É um
antigo ragtime com estribilho cantado. Ouvi os soldados americanos assobiando-
o em 1917, nas ruas de La Rochelle. Deve ser de antes da guerra. Mas a
gravação é bem mais recente.
Mesmo assim, é o disco mais antigo da coleção, um disco Pathé para agulha
de safra.
Logo virá o estribilho: é dele que mais gosto, e da maneira abrupta pela qual
se lança como um penhasco para o mar. No momento é o jazz que toca; não há
melodia, apenas notas, uma miríade de curtas sacudidelas. Elas não param, uma
ordem inflexível as origina e as destrói, sem nunca permitir que se
recomponham, que existam por si. Elas correm, se apressam, de passagem me
dão um golpe seco e se obliteram. Gostaria muito de retê-las, mas sei que, se
conseguisse deter uma, só me ficaria entre os dedos um som apagado e vulgar.
Tenho que aceitar sua morte; tenho até que desejar essa morte: conheço poucas
impressões mais ásperas ou mais fortes.
Começo a me reanimar, a me sentir feliz. Ainda não é nada de extraordinário,
é uma pequena felicidade de Náusea: ela se espalha no fundo da poça viscosa, no
fundo de nosso tempo — o tempo dos suspensórios cor de malva e dos bancos
quebrados —, é feita de instantes amplos e frouxos, que se alastram pelas bordas
como uma mancha de azeite. Mal nasceu e já parece velha, tenho a impressão de
conhecê-la há vinte anos.
Há uma outra felicidade: fora há essa faixa de aço, a curta duração da música
que atravessa nosso tempo de um lado ao outro, e o recusa e o dilacera com suas
pontas secas e aguçadas; há um outro tempo.
— O sr. Randu joga copas, você coloca o ás.
A voz se insinua e desaparece. Nada morde a faixa de aço, nem a porta que
se abre, nem a lufada de ar frio que passa por meus joelhos, nem a chegada do
veterinário com sua neta: a música penetra essas formas vagas e as atravessa.
Mal se sentou, a menina foi tomada por ela: fica rígida, os olhos totalmente
abertos; escuta, esfregando o punho na mesa.
Mais alguns segundos e a negra vai cantar. Isso parece inevitável, tão forte é
a necessidade dessa música: nada pode interrompê-la, nada que venha desse
tempo no qual o mundo despencou; ela cessará por si mesma no momento exato.
Se amo essa bela voz é sobretudo por isso: não é nem por seu volume, nem por
sua tristeza; é porque ela é o acontecimento que tantas notas prepararam, de tão
longe, morrendo para que ela possa nascer. E no entanto estou intranquilo;
bastaria muito pouco para que o disco parasse: uma mola que se quebrasse, um
capricho do primo Adolphe. Como é estranho, como é comovente que essa
rigidez seja tão frágil. Nada pode interrompê-la e tudo pode aniquilá-la.
Extinguiu-se o último acorde. No breve silêncio que segue, sinto
intensamente que houve algo, que alguma coisa aconteceu.
Silêncio.
Some of these days
You’ll miss me honey!

O que acaba de ocorrer é que a Náusea desapareceu. Quando a voz se elevou no


silêncio, senti meu corpo se enrijecer e a Náusea se dissipou. Bruscamente: era
quase doloroso se tornar assim todo rijo e rutilante. Ao mesmo tempo a duração
da música se dilatava, se inflava como uma tromba. Enchia a sala com sua
transparência metálica, esmagando contra as paredes nosso tempo miserável.
Estou na música. Nos espelhos rolam globos de fogo; anéis de fumaça os cercam
e giram, encobrindo e descobrindo o sorriso duro da luz. Meu copo de cerveja
encolheu, se comprime sobre a mesa: sua aparência é densa, indispensável.
Quero pegá-lo e sentir seu peso, estendo a mão... Meu Deus! Foi sobretudo isso
que mudou: meus gestos. Esse movimento do meu braço se desenvolveu como
um tema majestoso, deslizou ao longo do canto da negra; pareceu-me que estava
dançando.
O rosto de Adolphe está ali contra a parede chocolate; dá impressão de estar
muito perto. No momento em que minha mão se fechava, vi sua cara; ela tinha a
evidência, a necessidade de uma conclusão. Aperto meus dedos em torno do
copo, olho para Adolphe: estou feliz.
— Aí está!
Uma voz se destaca de um rumor ao fundo. É meu vizinho que fala, o velho
rubicundo. Suas faces formam uma mancha violeta no couro marrom do banco.
Bate com uma carta na mesa. O ás de ouros.
Mas o rapaz com cara de cachorro sorri. O jogador rubicundo, curvado sobre
a mesa, espreita-o sorrateiramente, pronto para dar o bote.
— Aí está!
A mão do rapaz sai da sombra, plana um momento, branca, indolente, depois
desce de súbito, como um milhafre, e pressiona uma carta contra o pano. O
gordo rubicundo dá um salto:
— Merda! Ele está cortando.
A silhueta do rei de copas aparece entre os dedos crispados, depois é virada
de cabeça para baixo e o jogo continua. Belo rei, vindo de tão longe, preparado
por tantas combinações, por tantos gestos extintos. Ei-lo que desaparece por sua
vez, para que nasçam outras combinações e outros gestos, ataques, réplicas,
reviravoltas da sorte, uma quantidade de pequenas aventuras.
Estou emocionado, sinto meu corpo como uma máquina de precisão em
repouso. Posso dizer que tive verdadeiras aventuras. Não recordo detalhe
nenhum, mas percebo o encadeamento rigoroso das circunstâncias. Atravessei os
mares, deixei cidades para trás e subi rios, ou então me embrenhei em florestas,
e sempre me dirigia a outras cidades. Tive mulheres, me meti em brigas; e nunca
podia voltar atrás, da mesma maneira que um disco não pode girar ao contrário.
E tudo isso me levava aonde? A esse minuto, a esse banco, a essa bolha de
claridade zoante de música.
And when you leave me

Sim, eu que em Roma gostava tanto de me sentar às margens do Tibre; em


Barcelona, à noite, de descer e subir cem vezes as Ramblas; eu que perto de
Angkor, na ilhota do Baray de Prah-Kan, vi um baniano entrelaçar suas raízes
em torno da capela dos nagas, estou aqui, vivo no mesmo segundo que esses
jogadores, ouço uma negra cantar enquanto lá fora ronda a noite frágil.
O disco parou.
A noite entrou, melíflua, hesitante. Não se vê, mas está presente, encobre as
luzes; respira-se no ar algo de espesso: é ela. Faz frio. Um dos jogadores
empurra as cartas em desordem para um outro que as junta. Uma ficou de fora.
Será que não a verão? É o nove de copas. Finalmente alguém a pega e a dá ao
rapaz com cara de cachorro.
— Ah! É o nove de copas!
Bom, vou embora. O velho violáceo se inclina sobre uma folha de papel,
chupando a ponta de um lápis. Madeleine o fita com um olhar claro e vazio. O
rapaz vira e revira o nove de copas entre seus dedos. Meu Deus!
Levanto-me com dificuldade; no espelho, por cima da cabeça do veterinário,
vejo deslizar um rosto inumano.
Daqui a pouco irei ao cinema.

O ar me faz bem: não tem o gosto de açúcar nem o odor vinoso do vermute.
Mas, Santo Deus, como faz frio.
São sete e meia, estou sem fome, e o cinema só começa às nove: que farei?
Tenho que caminhar rápido, para me esquentar. Hesito: o bulevar atrás de mim
leva ao coração da cidade, aos grandes endereços famosos das ruas centrais, ao
Palácio Paramount, ao Imperial, aos Grands Magasins Jahan. Nada disso me
tenta: é a hora do aperitivo; as coisas vivas, os cachorros, os homens, todas as
massas moles que se movem espontaneamente, nesse momento me fartam.
Viro à esquerda, me enfio ali naquele buraco na extremidade da fileira dos
lampiões de gás: vou seguir pelo bulevar Noir até a avenida Galvani. Sopra um
vento glacial desse buraco: só há ali pedras e terra. As pedras são duras e não se
movem.
Há um trecho de caminho desagradável: na calçada da direita, uma massa
gasosa, acinzentada, com rastos de fogo, faz um ruído semelhante ao de uma
concha: é a antiga estação. Sua presença fecundou os cem primeiros metros do
bulevar Noir — desde o bulevar da Redoute até a rua Paradis —, fez com que
nascesse ali uma dezena de lampiões e, lado a lado, quatro cafés, o Rendez-vous
des Cheminots e três outros, que languescem o dia inteiro, mas que à noite se
iluminam e projetam retângulos luminosos sobre o calçamento. Ainda tomo três
banhos de luz amarela, vejo sair da mercearia-armarinho Rabache uma velha que
coloca seu fichu na cabeça e se põe a correr: agora terminou. Estou na beira da
calçada da rua Paradis, junto ao último lampião. A faixa de betume se
interrompe de chofre. Do outro lado da rua tudo é escuridão e lama. Atravesso a
rua Paradis. Enfio o pé direito numa poça d’água, minha meia se encharca; aqui
começa o passeio.
Não se mora nessa região do bulevar Noir. O clima é muito ingrato, o solo,
muito árido para que a vida se fixe e se desenvolva nele. As três serrarias dos
Irmãos Soleil (os Irmãos Soleil ofereceram a abóbada de lambris da igreja de
Santa Cecília do Mar, que custou cem mil francos) abrem-se, a oeste, com todas
as portas e todas as janelas, para a tranquila rua Jeanne-Berthe-Coeuroy, que
invadem com o rom-rom de suas máquinas. No bulevar Victor-Noir as três dão
as costas, que se encontram com paredões. Essas construções acompanham a
calçada da esquerda por uns quatrocentos metros: nenhuma janela, sequer uma
lucarna.
Dessa vez meti os dois pés na água. Atravesso a rua: na outra calçada, um
único lampião, como um farol numa ponta extrema de terra, ilumina uma
paliçada desconjuntada, desmantelada em alguns lugares.
Pedaços de cartazes ainda aderem às tábuas. Um belo rosto, cheio de ódio,
faz careta sobre um fundo verde, rasgado em forma de estrela; sob seu nariz
alguém desenhou uns bigodes de pontas retorcidas. Em outro fragmento ainda se
pode decifrar a palavra purâtre, em caracteres brancos, da qual caem gotas
vermelhas, talvez gotas de sangue. É possível que o rosto e a palavra tenham
feito parte do mesmo cartaz. Agora o cartaz está lacerado, os laços simples e
intencionais que os uniam desapareceram, mas uma outra unidade se estabeleceu
por si mesma entre a boca retorcida, as gotas de sangue, as letras brancas, a
desinência âtre; tem-se a impressão de que uma paixão criminosa e sem tréguas
procura se exprimir através desses sinais misteriosos. Por entre as tábuas podem-
se ver brilhar as luzes da via férrea. Uma parede comprida dá continuação à
paliçada. Uma parede sem aberturas, sem portas, sem janelas, que se interrompe
duzentos metros adiante, junto a uma casa. Ultrapassei o campo de ação do
lampião; penetro no buraco escuro. Vendo minha sombra a meus pés se fundir
nas trevas, tenho a impressão de estar mergulhando numa água gelada. À minha
frente, bem no fundo, através de camadas de negrume, distingo um palor cor-de-
rosa: é a avenida Galvani. Volto-me; por trás do lampião, muito ao longe, há uma
vaga claridade: é a estação com os quatro cafés. Atrás de mim, à minha frente,
há pessoas que bebem e jogam cartas nas brasseries. Aqui só há o negrume. O
vento me traz intermitentemente uma campainha solitária que vem de longe. Os
ruídos familiares, o ronco dos carros, os gritos, os latidos pouco se afastam do
calor das ruas iluminadas. Mas essa campainha atravessa as trevas e chega até
aqui: é mais dura, menos humana do que os outros ruídos.
Paro para ouvi-la. Sinto frio, as orelhas me doem; devem estar vermelhas.
Mas eu me sinto puro; estou tomado pela pureza que me cerca; nada vive; o
vento sopra, linhas rígidas fogem na noite. O bulevar Noir não parece indecente
como as ruas burguesas que seduzem os transeuntes. Ninguém se deu ao trabalho
de enfeitá-lo: é apenas um reverso. O reverso da rua Jeanne-Berthe-Coeuroy, da
avenida Galvani. Nas redondezas da estação, os habitantes de Bouville ainda
cuidam um pouco dele; limpam-no de quando em quando, por causa dos
viajantes. Mas logo depois o abandonam, e ele corre reto, cegamente, para ir
esbarrar na avenida Galvani. A cidade o esqueceu. Às vezes um grande
caminhão cor de terra o atravessa a toda velocidade, fazendo um barulho de
trovoada. Aqui sequer se assassina, por falta de vítimas e de assassinos. O
bulevar Noir nada tem de humano. É como um mineral. Como um triângulo. É
uma sorte que exista um bulevar como esse em Bouville. Normalmente só os
encontramos nas capitais, em Berlim, para os lados de Neukölln ou também de
Friedrichshain — em Londres, atrás de Greenwich. Corredores retos e sujos, em
plena corrente de ar, com amplas calçadas sem árvores. Situam-se quase sempre
fora do perímetro urbano, nesses bairros estranhos onde se fabricam as cidades,
perto das estações de cargas, das estações de bondes, dos matadouros, dos
gasômetros. Dois dias após um aguaceiro, quando a cidade toda está úmida sob o
sol, e irradia um calor também úmido, eles ainda estão frios, conservam sua lama
e suas poças. Há até poças d’água que nunca secam, a não ser um mês por ano,
em agosto.
A Náusea ficou lá, na luz amarela. Estou feliz: esse frio é tão puro, tão pura
essa noite; não sou eu mesmo uma onda de ar gelado? Não ter sangue, nem linfa,
nem carne. Correr por esse longo canal em direção àquele palor. Não ser senão
frio.
Aí vem gente. Duas sombras. Que necessidade tinham de vir aqui?
É uma mulherzinha que puxa um homem pela manga. Fala numa voz rápida
e diminuta. Não entendo o que diz, por causa do vento.
— Vai calar a boca? — diz o homem.
Ela continua a falar. Bruscamente ele a empurra. Eles se olham, hesitantes,
depois o homem enfia as mãos nos bolsos e vai embora sem se voltar.
O homem desapareceu. Apenas três metros me separam agora da mulher.
Subitamente sons roucos e graves a dilaceram, arrancam-se dela e invadem a rua
toda com uma violência extraordinária:
— Charles, por favor, sabe o que eu te disse? Charles, volta, não aguento
mais, estou muito infeliz!
Passo tão perto dela que poderia tocá-la. É... mas como acreditar que essa
carne em fogo, esse rosto que irradia sofrimento?... No entanto reconheço o
fichu, o casaco e o grande sinal vermelho que tem na mão direita; é ela, Lucie, a
faxineira. Não ouso lhe oferecer ajuda, mas é preciso que ela possa solicitá-la se
necessitar: passo lentamente em frente a ela, fitando-a. Seus olhos se fixam em
mim, mas ela não parece me ver; dá a impressão de estar perdida em seu
sofrimento. Dou alguns passos. Volto-me...
Sim, é ela, é Lucie. Mas transfigurada, fora de si, sofrendo com louca
generosidade. Invejo-a. Ali está ela, muito aprumada, os braços abertos como se
à espera dos estigmas; abre a boca, sufoca. Tenho a impressão de que as paredes,
de cada lado da rua, aumentaram de tamanho, se aproximando umas das outras, e
de que ela está no fundo de um poço. Aguardo alguns instantes: tenho medo de
que caia dura: é muito frágil para suportar essa dor insólita. Mas ela não se
move, parece mineralizada como tudo o que a rodeia. Por um instante me
pergunto se não me equivoquei a seu respeito, se não é sua verdadeira natureza
que subitamente me é revelada...
Lucie solta um pequeno gemido. Leva a mão à garganta, os olhos
arregalados numa expressão de espanto. Não, não é em si própria que encontra
forças para sofrer tanto. Isso lhe vem do exterior... é esse bulevar. Seria preciso
tomá-la pelos ombros, levá-la para as luzes, para o meio das pessoas, para as
ruas suaves e rosadas: lá não se pode sofrer tão intensamente; ela afrouxaria,
recuperaria seu ar positivo e o nível usual de seus sofrimentos.
Viro-lhe as costas. Afinal ela tem sorte. Quanto a mim, há três anos que
estou excessivamente calmo. Já nada posso receber dessas solidões trágicas, a
não ser um pouco de pureza inútil. Vou-me embora.

Quinta-feira, onze e meia


Trabalhei durante duas horas na sala de leitura. Desci ao pátio das Hipotecas
para fumar um cachimbo. Praça calçada de pedras cor-de-rosa. Os habitantes de
Bouville orgulham-se dela porque data do século XVIII. Na entrada da rua
Chamade e da rua Suspédard velhas correntes impedem o acesso de carros. As
senhoras de preto que vêm passear seus cachorros deslizam sob as arcadas, rente
às paredes. Raramente avançam até a plena claridade, mas de soslaio dirigem
olhares de mocinhas, furtivos e satisfeitos, à estátua de Gustave Impétraz. Não
devem saber o nome desse gigante de bronze, mas percebem, por sua
sobrecasaca e sua cartola, que foi alguém da alta sociedade. Ele segura o chapéu
com a mão esquerda e está com a mão direita pousada sobre uma pilha de in-
fólios, é um pouco como se seus avós estivessem ali, sobre esse soclo, moldados
em bronze. Elas não têm necessidade de olhá-lo por muito tempo para
compreender que ele pensava como elas, exatamente como elas, sobre todos os
assuntos. Ele colocou sua autoridade e a imensa erudição adquirida nos in-fólios,
que sua mão pesada comprime, a serviço das estreitas e sólidas ideiazinhas delas.
As senhoras de preto se sentem aliviadas, podem se dedicar tranquilamente aos
cuidados da casa, passear seus cachorros: já não têm a responsabilidade de
defender as santas ideias, as boas ideias que seus pais lhes legaram; um homem
de bronze se tornou o guardião delas.
A Grande enciclopédia consagra algumas linhas a esse personagem; li-as no
ano passado. Pousara o volume no parapeito de uma janela; através da vidraça
podia ver o crânio verde de Impétraz. Fiquei sabendo que ele florescia por volta
de 1890. Era inspetor de academia. Pintava frivolidades com requinte e escreveu
três livros: De la popularité chez les grecs anciens (1887), La pédagogie de
Rollin (1891) e um testamento poético, em 1899. Morreu em 1902, pranteado
por seus subordinados e pelas pessoas de bom gosto.
Encostei-me na fachada da biblioteca. Aspiro meu cachimbo que ameaça
apagar. Vejo uma velha senhora saindo timidamente da galeria de arcadas e
fitando Impétraz com ar sutil e obstinado. De repente toma coragem, atravessa o
pátio o mais depressa que pode e para um momento em frente à estátua,
movendo as mandíbulas. Depois vai embora, uma mancha preta sobre o
calçamento rosa, e desaparece numa fenda da parede.
Talvez essa praça tenha sido alegre por volta de 1800, com suas pedras cor-
de-rosa e suas casas. Atualmente tem algo de seco e de mau, uma ponta discreta
de horror. Isso vem desse sujeito lá em cima, sobre seu soclo. Ao modelarem
esse universitário em bronze, transformaram-no num feiticeiro.
Olho de frente para Impétraz. Não tem olhos, quase nada de nariz, uma barba
devastada por essa lepra estranha que às vezes ataca, como uma epidemia, todas
as estátuas de um bairro. Ele está cumprimentando; em seu colete, no lugar do
coração, há uma grande mancha verde-clara. Sua aparência é doentia e má. Não
está vivo, mas também não está inanimado. Emana dele uma força surda; é como
um vento que me empurra: Impétraz gostaria de me expulsar do pátio das
Hipotecas. Não irei antes de ter terminado esse cachimbo.
Uma grande sombra magra surge bruscamente atrás de mim. Tenho um
sobressalto.
— Desculpe, senhor, não queria incomodá-lo. Vi que seus lábios se mexiam.
Certamente estava repetindo frases de seu livro — dá um riso. — O senhor
estava em busca dos alexandrinos.
Olho estupefato para o Autodidata. Mas ele parece surpreso com minha
surpresa.
— Não é verdade, senhor, que os alexandrinos devem ser cuidadosamente
evitados na prosa?
Baixei ligeiramente em sua estima. Pergunto-lhe o que faz aqui a essa hora.
Ele me explica que o patrão lhe deu folga e que veio diretamente para a
biblioteca; que não vai almoçar, que vai ler até a hora de fechar. Já não o ouço,
mas ele deve ter se desviado de seu tema inicial, porque escuto de repente:
— ... ter como o senhor a felicidade de escrever um livro.
Preciso dizer alguma coisa.
— Felicidade... — repito com ar de dúvida.
Ele interpreta erroneamente o sentido de minha resposta e corrige
rapidamente:
— Senhor, o que eu queria dizer é mérito.
Subimos a escada. Não sinto vontade de trabalhar. Alguém deixou Eugénie
Grandet sobre a mesa, o livro está aberto na página 27. Pego-o maquinalmente,
começo a ler a página 27, depois a 28: não tenho ânimo para começar do início.
O Autodidata se dirigiu para as prateleiras da parede com passo rápido; traz dois
volumes que coloca sobre a mesa com ar de um cachorro que encontrou um
osso.
— O que está lendo?
Parece que reluta em me dizer: hesita um pouco, gira os olhos esgazeados,
depois me estende os livros com ar constrangido. São La tourbe et les tourbières,
de Larbalétrier, e Hitopadésa ou l’instruction utile, de Lastex. E então? Não vejo
o que o perturba: essas leituras me parecem bastante decentes. Por desencargo de
consciência, folheio Hitopadésa e só vejo nele coisas elevadas.

Três horas
Abandonei Eugénie Grandet. Pus-me a trabalhar, mas sem entusiasmo. O
Autodidata, que vê que estou escrevendo, me observa com uma concupiscência
respeitosa. De quando em quando ergo um pouco a cabeça, vejo o imenso
colarinho de onde sai seu pescoço de frango. Sua roupa está puída, mas a camisa
é de uma brancura impecável. Acaba de pegar outro volume, na mesma
prateleira, e consigo decifrar o título às avessas: La flèche de Caudebec, crônica
normanda, de Julie Lavergne. As leituras do Autodidata sempre me
desconcertam.
De repente voltam à minha memória os nomes dos últimos autores cujas
obras consultou: Lambert, Langlois, Larbalétrier, Lastex, Lavergne. É uma
iluminação; entendi o método do Autodidata: instrui-se por ordem alfabética.
Contemplo-o com uma espécie de admiração. Que vontade precisa ter para
realizar lentamente, obstinadamente, um plano de envergadura tão vasta! Um
dia, faz sete anos (ele me disse que estudava havia sete anos), entrou com grande
pompa nesta sala. Percorreu com o olhar os inúmeros livros que cobrem as
paredes e deve ter dito, mais ou menos como Rastignac: “Agora nós, Ciência
Humana.” Depois foi pegar o primeiro livro, da primeira prateleira da extrema
direita; abriu-o na primeira página, com um sentimento de respeito e terror,
acompanhado de uma decisão inquebrantável. Atualmente está na letra L. K
depois do J, L depois do K. Passou brutalmente do estudo dos coleópteros para o
da teoria dos quanta, de uma obra sobre Tamerlão a um panfleto católico contra
o darwinismo: em momento algum se desconcertou. Leu tudo; armazenou em
sua cabeça a metade do que se sabe sobre a partenogênese, a metade dos
argumentos contra a vivissecção. Atrás dele, diante dele, há um universo. E se
aproxima o dia em que dirá, fechando o último volume da última prateleira da
extrema esquerda: “E agora?”
É a hora de seu lanche; come, com ar cândido, pão e uma barra de Gala
Peter. Baixou as pálpebras e assim posso contemplar à vontade seus belos cílios
recurvos — cílios de mulher. Exala um cheiro de tabaco velho, ao qual se
mescla, quando expira, o perfume doce do chocolate.

Sexta-feira, três horas


Mais um pouco e eu caía na armadilha do espelho. Evito-o, mas é para cair na
armadilha da vidraça: ocioso, balançando os braços, me aproximo da janela. O
Canteiro de Obras, a Paliçada, a Estação Velha — a Estação Velha, a Paliçada, o
Canteiro de Obras. Bocejo com tanta força que me vem uma lágrima aos olhos.
Seguro meu cachimbo com a mão direita e o pacote de fumo com a mão
esquerda. Teria que encher esse cachimbo. Mas não tenho ânimo de fazê-lo.
Meus braços pendem, apoio a testa na vidraça. Aquela velha ali me irrita.
Caminha a passos curtos, com obstinação, o olhar perdido. Às vezes para com ar
assustado, como se um perigo invisível a tivesse tocado de leve. Ei-la sob minha
janela; o vento gruda sua saia nos joelhos. Ela para, compõe o fichu. As mãos
tremem. Recomeça a andar: agora vejo-a de costas. Velho bicho-de-conta!
Imagino que vai dobrar à direita no bulevar Noir. Tem que percorrer ainda uns
cem metros: no passo em que vai, levará bem uns dez minutos para isso, dez
minutos durante os quais ficarei assim como estou, a olhá-la, a testa colada na
vidraça. Ela vai parar vinte vezes, recomeçar a andar, parar...
Vejo o futuro. Está ali, pousado na rua, um nadinha mais pálido do que o
presente. Que necessidade tem de se realizar? Que vantagem lhe trará isso? A
velha se afasta coxeando, para, ajeita uma mecha grisalha que escapou do fichu.
Caminha, estava ali, agora está aqui... já me perdi: será que vejo seus gestos ou
os prevejo? Já não distingo o presente do futuro e no entanto isso tem uma
duração, realiza-se pouco a pouco; a velha avança na rua deserta; desloca seus
sapatões de homem. É isso o tempo, o tempo inteiramente nu, que vem
lentamente à existência, que se faz esperar e, quando chega, nos sentimos
enfastiados porque percebemos que já estava ali havia muito tempo. A velha se
aproxima da esquina da rua, já é apenas um montinho de panos pretos. Pois bem,
sim, admito, isso é novo: ela não estava ali ainda agora. Mas é um novo
embaciado, sem viço, que nunca pode surpreender. Ela vai dobrar a esquina da
rua, dobra — durante uma eternidade.
Afasto-me da janela e percorro o quarto vacilante; fico preso no espelho, me
olho, sinto repugnância: mais uma eternidade. Finalmente escapo à minha
imagem e me atiro na cama. Olho para o teto; gostaria de dormir.
Calmo. Calmo. Já não sinto o deslizar, o roçar do tempo. Vejo imagens no
teto. Primeiro, círculos de luz, depois cruzes. Tudo isso borboleteia. Depois eis
que se forma uma outra imagem; essa é no fundo de meus olhos. É um grande
animal ajoelhado. Vejo suas patas da frente e sua albarda. O resto está impreciso.
No entanto reconheço-o perfeitamente: é um camelo que vi em Marrakech,
amarrado a uma pedra. Ajoelhara-se e levantara-se seis vezes seguidas; meninos
riam e o excitavam com suas vozes.
Há dois anos era maravilhoso: bastava-me fechar os olhos e imediatamente
minha cabeça zumbia como uma colmeia; revia rostos, árvores, casas, uma
japonesa de Kamaishi que se lavava nua numa tina, um russo morto e vazado por
um grande ferimento hiante, todo seu sangue num charco ao lado. Recapturava o
gosto do cuscuz, o cheiro de azeite que invade as ruas de Burgos ao meio-dia, o
cheiro de funcho que flutua nas de Tetuan, os assobios dos pastores gregos; tudo
isso me emocionava. Faz muito tempo que essa alegria se extinguiu. Renascerá
hoje?
Em minha cabeça, um sol tórrido desliza rigidamente, como uma chapa de
lanterna mágica. Acompanha-o um fragmento de céu azul; depois de algumas
sacudidelas ele se imobiliza: fico todo dourado por dentro. De que dia
marroquino (ou argelino? ou sírio?) esse brilho se destacou subitamente? Deixo-
me resvalar no passado.
Meknès? Como era mesmo aquele montanhês que nos assustou numa ruela,
entre a mesquita Berdaine e aquela praça encantadora sombreada por uma
amoreira? Veio para cima de nós, Anny estava à minha direita. Ou à minha
esquerda?
Esse sol e esse céu azul eram puro engodo. É a centésima vez que me deixo
enganar. Minhas lembranças são como as moedas da bolsa do diabo: quando a
abriram só encontraram folhas secas.
Do montanhês vejo apenas um grande olho vazado, leitoso. Esse olho é
realmente dele? Também o médico que me expunha, em Baku, o princípio dos
abortadouros oficiais era zarolho e, quando quero me lembrar de seu rosto, o que
surge é também um globo esbranquiçado. Esses dois homens, como as Nornas,
têm apenas um olho que trocam entre si alternadamente.
No que se refere a essa praça de Meknès, onde no entanto eu ia diariamente,
as coisas são ainda mais simples: já não a vejo mais. Ficam-me a vaga sensação
de que era encantadora e essas cinco palavras indissoluvelmente ligadas: uma
praça encantadora de Meknès. Certamente, se fecho os olhos ou se fixo
vagamente o teto, posso reconstituir a cena: uma árvore ao longe, uma forma
escura e atarracada correndo em minha direção.
Mas tudo isso são invenções a que recorro. O marroquino era alto e seco,
aliás só o vi quando nos esbarramos. Assim ainda sei que era grande e seco:
algumas percepções abreviadas permanecem em minha memória. Mas já não
vejo nada mais: por mais que vasculhe meu passado, só extraio dele fragmentos
de imagens e não sei muito bem o que representam, nem se são recordações ou
ficções.
Aliás, muitas vezes, esses próprios fragmentos desapareceram: só restam
palavras; poderia ainda contar as histórias, contá-las muito bem (em matéria de
anedota, ninguém me ganha, a não ser os oficiais de marinha e os profissionais),
mas já não passam de carcaças. Referem-se a um sujeito que faz isso ou aquilo,
mas não sou eu, não tenho nada em comum com ele.
Ele passeia por países sobre os quais sei tanto quanto se nunca tivesse estado
lá.
Às vezes, em meus relatos, ocorre que pronuncie esses nomes bonitos que se
leem nos atlas: Aranjuez ou Canterbury. Provocam em mim imagens totalmente
novas como as que formam, a partir de suas leituras, pessoas que nunca
viajaram: construo sonhos a partir de palavras, isso é tudo.
Entre cem histórias mortas, ainda assim permanecem uma ou duas histórias
vivas.
Essas são evocadas por mim com precaução, algumas vezes, não com muita
frequência, por medo de desgastá-las. Pesco uma, revejo seus personagens, o
cenário, as atitudes. De repente paro: senti uma deterioração, vi apontar uma
palavra sob a trama das sensações. Posso adivinhar que essa palavra em breve
tomará o lugar de várias imagens que amo. Paro imediatamente, penso rápido em
outra coisa; não quero fatigar minhas recordações. É inútil; da próxima vez que
as evocar, boa parte delas se terá congelado.
Esboço um vago movimento para me levantar, para ir buscar minhas
fotografias de Meknès na caixa que coloquei embaixo de minha mesa. Para quê?
Esses afrodisíacos já não surtem efeito em minha memória. Outro dia encontrei
sob um mata-borrão uma pequena foto amarelada. Uma mulher sorria junto a um
laguinho. Durante um momento contemplei essa pessoa, sem reconhecê-la.
Depois li no verso: “Anny. Portsmouth, 7 de abril de 27.”
Nunca como hoje tive o sentimento tão forte de ser alguém sem dimensões
secretas, limitado a meu corpo, aos pensamentos superficiais que sobem dele
como bolhas. Construo minhas lembranças com meu presente. Sou repelido para
o presente, abandonado nele. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir
de mim mesmo.
Estão batendo à porta. É o Autodidata: tinha me esquecido dele. Havia
prometido lhe mostrar minhas fotografias de viagem. Que vá para o diabo.
Senta-se numa cadeira; suas nádegas tensas se encostam no espaldar e seu
busto teso se inclina para a frente. Salto da cama, acendo a luz:
— Mas por quê, senhor? Estávamos bem assim.
— Não para ver fotografias...
Não sabe o que fazer do chapéu: tomo-o de suas mãos.
— É verdade, senhor? Quer realmente mostrá-las a mim?
— Mas é claro.
É de caso pensado: espero que se conserve calado enquanto as estiver vendo.
Enfio-me sob a mesa, empurro a caixa para seus sapatos de verniz, coloco sobre
seus joelhos um monte de cartões-postais e de fotografias: Espanha e Marrocos
espanhol.
Mas vejo bem, por seu aspecto sorridente e aberto, que me enganei
redondamente pensando que o manteria em silêncio. Dá uma olhada para uma
vista de San Sebastián, tirada do monte Igueldo, coloca-a com precaução sobre a
mesa e fica um momento em silêncio. Depois suspira:
— Ah, senhor! O senhor tem sorte. Se é verdade o que dizem, não há melhor
escola do que as viagens. Está de acordo?
Faço um gesto vago. Felizmente ele não terminou.
— Deve ser uma reviravolta tão grande! Se alguma vez fizesse uma viagem,
acho que, antes de partir, gostaria de anotar os menores traços de meu caráter
para poder comparar, ao regressar, o que era antes com aquilo em que me
transformei. Li que há viajantes que mudaram tanto, física e moralmente, que ao
retornarem seus parentes mais próximos não os reconheciam.
Mexe distraidamente num grande pacote de fotografias. Pega uma e a coloca
sobre a mesa sem olhá-la; depois fixa intensamente a foto seguinte, que
representa um São Jerônimo esculpido num púlpito da catedral de Burgos.
— O senhor viu o Cristo de pele de animal que está em Burgos? Há um livro
muito curioso sobre essas estátuas de pele de animal e até de pele humana. E a
Virgem negra? Não está em Burgos, está em Zaragoza. Mas talvez haja uma em
Burgos? Os peregrinos a beijam, não é? Quero dizer: a de Zaragoza. E há uma
marca de seu pé numa laje? Que fica num buraco? Para o qual as mães
empurram os filhos?
Muito teso, empurra com as duas mãos uma criança imaginária. Parece estar
recusando os presentes de Artaxerxes.
— Ah! Os costumes são... coisa curiosa, senhor.
Um pouco esbaforido, aponta em minha direção sua grande mandíbula de
burro. Cheira a fumo e a água parada. Os belos olhos esgazeados brilham como
bolas de fogo e os cabelos ralos nimbam seu crânio de névoa. Sob esse crânio,
samoiedos, fueginos, malgaxes, niansnians celebram as solenidades mais
estranhas, comem seus velhos pais, seus filhos, rodopiam ao som do tantã até
perderem os sentidos, se entregam ao frenesi do amok, queimam seus mortos,
expõem-nos nos telhados, abandonam-nos na correnteza, numa barca iluminada
por um archote, se acasalam ao azar, mãe e filho, pai e filha, irmão e irmã, se
mutilam, se castram, distendem os lábios com pratos, esculpem no corpo animais
monstruosos.
— Pode-se dizer, como Pascal, que o hábito é uma segunda natureza?
Pregou seus olhos pretos nos meus, implora uma resposta.
— Isso depende — digo.
Ele respira aliviado.
— É o que eu pensava também. Mas confio tão pouco em mim mesmo; era
preciso ter lido tudo.
Mas delira com a fotografia seguinte. Solta um grito de alegria.
— Segóvia! Segóvia! Já li um livro sobre Segóvia.
Acrescenta com uma certa nobreza:
— Senhor, já não me lembro do nome do autor. Às vezes tenho lapsos. N...
No... Nod...
— Impossível — digo-lhe com vivacidade. — O senhor só chegou a
Lavergne...
Imediatamente lamento minha frase; afinal ele nunca me falou sobre esse
método de leitura, deve se tratar de um delírio secreto. De fato ele fica confuso e
seus lábios grossos se estendem numa expressão de choro. Depois baixa a
cabeça e olha uns dez cartões-postais sem dizer palavra.
Mas, ao fim de trinta segundos, percebo que um forte entusiasmo o invade e
que vai estourar se não falar:
— Quando terminar minha instrução (faltam ainda seis anos para isso), me
juntarei, se me permitirem, aos estudantes e professores que fazem um cruzeiro
anual ao Oriente Médio. Gostaria de tornar alguns conhecimentos mais exatos —
diz com unção — e adoraria também que me acontecessem coisas inesperadas,
coisas novas, aventuras, para ser verdadeiro.
Baixa a cabeça e adquire um ar maroto.
— Que espécie de aventuras? — pergunto-lhe, espantado.
— Todas as espécies, senhor. Tomar o trem errado. Descer numa cidade
desconhecida. Perder a carteira, ser preso por equívoco, passar a noite na cadeia.
Senhor, pensei que se podia definir a aventura: um acontecimento que sai do
ordinário sem ser necessariamente extraordinário. Fala-se da magia das
aventuras. Essa expressão lhe parece adequada? Gostaria de lhe fazer uma
pergunta.
— O que é?
Enrubesce e sorri.
— Talvez seja indiscreta...
— Faça-a assim mesmo.
Inclina-se para mim e pergunta com os olhos semicerrados:
— O senhor teve muitas aventuras?
— Algumas — respondo maquinalmente, me inclinando para trás para evitar
seu bafo pestilento.
Sim, disse isso maquinalmente, sem pensar. Na verdade, normalmente me
sinto orgulhoso por haver tido tantas aventuras. Mas hoje, mal pronunciei essas
palavras, sou tomado de uma grande indignação contra mim mesmo: parece-me
que estou mentindo, que em minha vida inteira não tive a menor aventura, ou
antes, que já nem sei o que significa essa palavra. Ao mesmo tempo pesa sobre
mim aquele mesmo desalento que senti em Hanói, há quase quatro anos, quando
Mercier insistia que o acompanhasse e eu fixava, sem responder, uma estatueta
khmeriana. E a ideia está aqui, essa grande massa branca que tanto me repugnara
então: faz quatro anos que não a revia.
— Poderia lhe pedir... — diz o Autodidata.
Deus meu! Quer que lhe conte uma dessas famosas aventuras. Mas não
quero dizer nem mais uma palavra sobre o assunto.
— Aqui — digo, inclinado sobre seus ombros estreitos e colocando o dedo
numa fotografia —, aqui é Santillana, a cidadezinha mais bonita da Espanha.
— A Santillana de Gil Bras? Não pensava que existisse. Ah, senhor, como
sua conversa é proveitosa! Bem se vê que viajou.

Despachei o Autodidata após haver entulhado seus bolsos de cartões-postais,


gravuras e fotografias. Ele se foi encantado e apaguei a luz. Agora estou sozinho.
Não inteiramente sozinho. Há ainda aquela ideia diante de mim, à espera.
Enroscou-se, fica ali como um gato gordo; não explica nada, não se mexe e se
contenta em dizer não. Não, não tive aventuras.
Encho meu cachimbo, acendo-o, me deito na cama com um casaco sobre as
pernas. O que espanta é o fato de me sentir tão triste e tão cansado. Ainda que
seja verdade que eu nunca tenha tido aventuras, que importância teria isso? Em
primeiro lugar parece-me que é puramente uma questão de palavras. Aquele caso
de Meknès, por exemplo, no qual estava pensando ainda agora: um marroquino
avançou para mim e quis me ferir com um grande canivete. Mas lhe dei um soco
que o atingiu embaixo de uma têmpora... Então ele começou a gritar em árabe e
apareceu um bando de piolhentos que nos perseguiu até o bazar Attarin. Muito
bem, pode-se dar ao caso o nome que se quiser, mas, de qualquer maneira, foi
um fato que me aconteceu.
Está inteiramente escuro e já não sei bem se meu cachimbo está aceso. Passa
um bonde: clarão vermelho no teto. Depois é um veículo pesado que estremece a
casa. Devem ser seis horas.
Não tive aventuras. Aconteceram-me histórias, fatos, incidentes, tudo o que
se quiser. Mas não aventuras. Não é uma questão de palavras; começo a
entender. Há algo que eu prezava mais do que todo o resto, sem perceber muito
bem. Não era o amor, Deus meu, nem a glória, nem a riqueza. Era... Enfim eu
imaginara que em determinados momentos minha vida podia assumir uma
qualidade rara e preciosa. Não eram necessárias circunstâncias extraordinárias:
tudo o que eu pedia era um pouco de rigor. Minha vida atual nada tem de muito
brilhante: mas de quando em quando, por exemplo quando tocavam música nos
cafés, eu evocava o passado e me dizia: em outras épocas, em Londres, em
Meknès, em Tóquio, vivi momentos admiráveis, tive aventuras. É isso que agora
tiram de mim. Acabo de descobrir, com brusquidão e sem razão aparente, que
menti a mim mesmo durante dez anos. As aventuras estão nos livros. E,
naturalmente, tudo o que se conta nos livros pode realmente acontecer, mas não
da mesma maneira. Era essa forma de acontecer que era tão importante para
mim, que eu prezava tanto.
Teria sido preciso inicialmente que os começos fossem verdadeiros começos.
Pobre de mim! Vejo tão claramente agora o que eu quis. Verdadeiros começos
surgindo como um toque de clarim, como as primeiras notas de uma melodia de
jazz, bruscamente cortando o tédio, fortalecendo a duração; essas noites, em
meio a outras noites, sobre as quais se diz mais tarde: “Estava passeando, era
uma noite de maio.” Estamos passeando, a lua acaba de surgir, estamos ociosos,
disponíveis, um pouco vazios. E de repente pensamos: “Algo aconteceu.” Seja o
que for: um estalido nas sombras, um vulto rápido que atravessa a rua. Mas esse
acontecimento diminuto não é igual aos outros: percebemos imediatamente que
ele antecede uma grande forma cujo desenho se perde na bruma e nos dizemos
também: “Alguma coisa está começando.”
Alguma coisa começa para terminar: a aventura não se deixa prolongar; só
tem sentido através de sua morte. Para essa morte, que será talvez também a
minha, sou arrastado inexoravelmente. Cada instante só surge para trazer os que
se lhe seguem. Apego-me a cada instante com todo o meu coração: sei que é
único; insubstituível — e no entanto não faria um gesto para impedi-lo de se
aniquilar. Esse último minuto que passo — em Berlim, em Londres — nos
braços de uma mulher que conheci na antevéspera — minuto que amo
apaixonadamente, mulher que estou perto de amar — vai terminar, eu sei.
Dentro em pouco partirei para outro país. Não tornarei a encontrar essa mulher,
nem essa noite, nunca mais. Debruço-me sobre cada segundo, tento esgotá-lo;
nada se passa que eu não capte, que não fixe para sempre em mim, nada, nem a
ternura fugaz desses belos olhos, nem os ruídos da rua, nem a claridade
titubeante do amanhecer: e no entanto o minuto se esgota e não o retenho, gosto
que passe.
E depois, subitamente, algo se quebra. A aventura terminou, o tempo retoma
sua languidez quotidiana. Viro-me; atrás de mim aquela forma melódica
mergulha inteira no passado. Diminui, contrai-se ao declinar, agora o fim se
confunde com o começo. Acompanhando com o olhar esse ponto dourado, penso
que aceitaria — ainda que tivesse estado ameaçado de morte, ou tivesse perdido
um amigo, uma fortuna — reviver tudo, nas mesmas circunstâncias, de cabo a
rabo. Mas uma aventura não recomeça, nem se prolonga.
Sim, é isso que eu queria — ai de mim! É isso que quero ainda. Sinto tanta
felicidade quando uma negra canta: que pináculos não atingiria, se minha
própria vida constituísse a matéria da melodia!
A Ideia continua ali, a inominável. Espera tranquilamente. No momento
parece estar dizendo:
— “Sim? É isso que você queria? Pois bem, é precisamente isso que você
nunca teve (lembre-se: você se iludia com palavras, chamava de aventura
ouropéis de viagem, amores de prostitutas, brigas, quinquilharias) e não terá
jamais — nem você nem ninguém.”
Mas por quê? POR QUÊ?

Sábado, meio-dia
O Autodidata não me viu entrar na sala de leitura. Estava sentado bem na ponta
da mesa do fundo; colocara um livro à sua frente, mas não lia. Olhava com um
sorriso para o vizinho da direita, um colegial de aspecto sujo que vem com
frequência à biblioteca. Este se deixou contemplar um momento; depois,
subitamente, lhe mostrou a língua, fazendo uma careta horrível. O Autodidata
enrubesceu, enfiou precipitadamente o nariz no livro e ficou absorto na leitura.
Voltei às minhas reflexões de ontem. Estava inteiramente frio: era-me
indiferente que não houvesse aventuras. Simplesmente estava curioso em saber
se não poderia haver.
Eis o que pensei: para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma
aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as
pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas
histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e
procura viver sua vida como se a narrasse.
Mas é preciso escolher: viver ou narrar. Por exemplo, quando estava em
Hamburgo, com aquela tal de Erna que tinha medo de mim e em quem eu não
confiava, levava uma existência extravagante. Mas eu estava dentro dessa
existência, não pensava nisso. E depois, uma noite, num café de San Pauli, Erna
me deixou um momento para ir ao toalete. Fiquei sozinho, havia um gramofone
tocando “Blue sky”. Comecei a narrar para mim mesmo o que ocorrera depois de
meu desembarque. Disseme: “Na terceira noite, ao entrar num dancing chamado
Grotte Bleu, minha atenção foi despertada por uma mulher grandalhona, meio
bêbada. E é essa a mulher que estou aguardando nesse momento, a ouvir “Blue
sky”, e que vai voltar a se sentar à minha direita e me enlaçar o pescoço com
seus braços.” Senti então com violência que vivia uma aventura. Mas Erna
retornou, se sentou ao meu lado, me enlaçou o pescoço com seus braços e
detestei-a sem saber bem por quê. Agora compreendo: é porque era preciso
recomeçar a viver e a impressão de aventura acabava de se dissipar.
Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e
saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem
razão: é uma soma monótona e interminável. De quando em quando se procede a
um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em
Bouville. Também não há fim: nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma
cidade, de uma só vez. E também tudo se parece: Xangai, Moscou, Argel, ao fim
de 15 dias é tudo igual. Por alguns momentos — raramente — avaliamos a
situação, percebemos que nos envolvemos com uma mulher, que nos metemos
numa confusão. Por um átimo. Depois disso o desfile recomeça, voltamos a
fazer as contas das horas e dos dias. Segunda, terça, quarta. Abril, maio, junho.
1924, 1925, 1926.
Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma
mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como
se fosse possível haver histórias verdadeiras; os acontecimentos ocorrem num
sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar do início:
“Era uma bela noite de outono de 1922. Eu era escrevente de tabelião em
Marommes.” E na verdade foi pelo fim que começamos. Ele está ali, invisível e
presente, é ele que confere a essas poucas palavras a pompa e o valor de um
começo. “Estava passeando, saíra do vilarejo sem perceber, pensava em meus
problemas de dinheiro.” Essas frases, tomadas simplesmente pelo que são,
significam que o sujeito estava absorto, deprimido, a cem léguas de uma
aventura, exatamente nesse tipo de estado de espírito em que se deixam passar os
acontecimentos sem vê-los. Mas o fim, que transforma tudo, já está presente.
Para nós o sujeito já é o herói da história. Sua depressão, seus problemas de
dinheiro são bem mais preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões
futuras.
E o relato prossegue às avessas: os instantes deixaram de se empilhar uns
sobre os outros ao acaso, foram abocanhados pelo fim da história que os atrai, e
cada um deles atrai por sua vez o instante que o precede: “Era noite, a rua estava
deserta.” As frases são lançadas negligentemente, parecem supérfluas; mas não
caímos no logro e as deixamos de lado: é uma informação cujo valor
compreenderemos depois. E temos a impressão de que o herói viveu todos os
detalhes dessa noite como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que
vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo que não
anunciava a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava ali; o sujeito
passeava numa noite sem presságios, que lhe proporcionava de cambulhada suas
riquezas monótonas, e ele não escolhia.
Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e uma ordem
como os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o
tempo.
Domingo
Essa manhã esqueci que era domingo. Saí e andei pelas ruas como de hábito.
Levara comigo Eugénie Grandet. Depois, subitamente, ao empurrar o portão de
ferro do jardim público, tive a impressão de que alguma coisa me fazia sinal. O
jardim estava deserto e nu. Mas... como dizer? Não tinha seu aspecto habitual,
sorria para mim. Fiquei um momento apoiado na grade e depois, bruscamente,
compreendi que era domingo. Isso se via nas árvores, na relva, como um leve
sorriso.
Era algo que não se podia descrever, seria preciso pronunciar muito depressa:
“Trata-se de um jardim público no inverno, numa manhã de domingo.”
Soltei a grade, voltei-me para as casas e as ruas burguesas e disse a meia-
voz: “É domingo.”
É domingo: por trás das docas, junto ao mar, perto da estação de cargas, em
volta da cidade, há depósitos vazios e máquinas paradas na escuridão. Em todas
as casas homens se barbeiam por trás das janelas; inclinam a cabeça para trás,
olham ora o espelho, ora o céu frio para saber se fará bom tempo. Os bordéis
recebem seus primeiros fregueses: camponeses e soldados. Nas igrejas, à luz das
velas, um homem bebe vinho diante de mulheres ajoelhadas. Em todos os
subúrbios, entre os muros intermináveis das fábricas, longas filas negras se
puseram em movimento, avançam lentamente para o centro da cidade. Para
recebê-las, as ruas assumiram seu aspecto dos dias de tumulto: todas as lojas,
exceto as da rua Tournebride, baixaram suas portas de ferro. Dentro em pouco,
em silêncio, as colunas negras invadirão essas ruas que se fingem de mortas:
virão primeiro os ferroviários de Tourville e suas mulheres que trabalham nas
saboarias de Saint-Symphorin, depois os pequeno-burgueses de Jouxtebouville,
depois os operários das Fiações Pinot, depois todos os biscateiros do bairro de
Saint-Maxence; os homens de Thiérache serão os últimos a chegar, no bonde das
11 horas. Dentro em pouco vai surgir a multidão dos domingos, entre lojas
aferrolhadas e portas fechadas.
Um relógio bate dez e meia e me ponho a caminho: aos domingos, a essa
hora, há em Bouville um espetáculo digno de ver, mas é preciso não chegar
muito depois da saída da missa cantada.
A ruazinha Joséphine-Soulary está deserta e cheira a adega. Mas, como todos
os domingos, está invadida por um ruído suntuoso, um ruído de marulho. Dobro
na rua do Président-Chamart, cujas casas têm três andares com longas persianas
brancas. Essa rua de tabeliões está inteiramente tomada pelo rumor volumoso do
domingo. Na galeria Gillet, o ruído aumenta ainda mais e posso reconhecê-lo: é
um ruído que os homens fazem. Depois, de repente, à minha esquerda, há como
que uma explosão de luzes e sons. Cheguei: eis aqui a rua Tournebride, só tenho
que tomar lugar entre meus semelhantes para ver os senhores distintos trocando
cumprimentos com seus chapéus.
Há apenas sessenta anos ninguém se atreveria a prever o miraculoso destino
da rua Tournebride, que os habitantes de Bouville chamam hoje de Pequeno
Prado. Vi um mapa datado de 1847 no qual ela sequer figurava. Devia ser nessa
época uma passagem estreita, escura e malcheirosa, com uma vala por onde
corriam, entre as pedras do calçamento, cabeças e entranhas de peixes. Mas, no
final de 1873, a Assembleia Nacional declarou de utilidade pública a construção
de uma igreja sobre a colina de Montmartre. Poucos meses depois a mulher do
prefeito de Bouville teve uma visão: santa Cecília, sua santa padroeira, de quem
lhe vinha o nome de batismo, vinha recriminá-la. Era admissível que a elite
tivesse que se enlamear todos os domingos para ir a Saint-Ré ou a Saint-
Claudien ouvir a missa com os lojistas? A Assembleia Nacional não dera o
exemplo? Bouville tinha agora, graças à proteção do Céu, uma situação
econômica de primeira ordem; não convinha construir uma igreja para dar graças
ao Senhor?
Tais argumentos foram acolhidos: o Conselho Municipal reuniu-se numa
sessão histórica e o bispo concordou em receber subscrições. Faltava escolher o
local. As velhas famílias de comerciantes e armadores eram de opinião que se
erguesse o edifício no cume do Coteau Vert, onde moravam, “para que santa
Cecília velasse por Bouville como o Sagrado Coração de Jesus por Paris”. Os
novos-ricos do bulevar Maritime, ainda pouco numerosos, mas bastante
opulentos, resistiram: dariam o que fosse preciso, mas a igreja seria construída
na praça Marignan; se pagavam por uma igreja, achavam que deveriam poder
utilizá-la; agradava-lhes mostrar sua força a essa burguesia altaneira que os
tratava como arrivistas. O bispo arquitetou uma solução conciliatória: a igreja foi
construída a meio caminho do Coteau Vert e do bulevar Maritime, na praça da
Halle-aux-Morues, que foi batizada de praça Santa Cecília do Mar. Esse edifício
monstruoso, que ficou pronto em 1887, não custou menos de 14 milhões.
A rua Tournebride, larga, mas suja e mal-afamada, teve que ser inteiramente
reconstruída, e seus moradores foram energicamente rechaçados para trás da
praça Santa Cecília; o Pequeno Prado tornou-se — sobretudo nas manhãs de
domingo — o ponto de encontro das pessoas importantes e elegantes. Uma a
uma, bonitas lojas foram inauguradas com a chegada da elite. Permanecem
abertas na Páscoa, na noite de Natal, em todos os domingos até o meio-dia. Ao
lado de Julien, o charcuteiro, cujos patês são famosos, o doceiro Foulon exibe
suas especialidades renomadas, admiráveis petits-fours cônicos, de manteiga cor
de malva, recobertos por uma violeta de açúcar. Na vitrine da livraria Dupaty,
estão expostas as novidades da editora Plon, alguns livros técnicos, tais como
uma teoria do navio ou um tratado do velame, uma grande história ilustrada de
Bouville e edições de luxo elegantemente dispostas: Kœnigsmark, encadernado
em couro azul; Le livre de mes fils, de Paul Doumer, encadernado em couro bege
com flores púrpuras. Ghislaine, “Alta costura, modelos parisienses”, separa
Piégeois, o florista, do antiquário Paquin. O cabeleireiro Gustave, que emprega
quatro manicures, ocupa o primeiro andar de um prédio novo pintado de
amarelo.
Há dois anos, na esquina do beco Moulins-Gémeaux com a rua Tournebride,
uma lojinha impudente ainda exibia um anúncio do Tu-pu-nez, um produto
inseticida. Ela florescera no tempo em que se ouviam os pregões de bacalhau na
praça Santa Cecília, e era centenária. Os vidros da fachada raramente eram
lavados: era preciso fazer um esforço para distinguir, através da poeira e do
embaçado, uma quantidade de pequenas figuras de cera vestindo gibões cor de
fogo, que representavam ratos e camundongos. Esses animais desembarcavam
de um navio de alto bordo apoiados em bengalas; mal pisavam em terra e uma
camponesa, graciosamente vestida, mas lívida e negra de sujeira, punha-os em
fuga, aspergindo-lhes Tu-pu-nez. Eu gostava muito dessa loja, tinha um ar cínico
e obstinado, lembrava com insolência os direitos dos vermes e da sujeira, a dois
passos da igreja mais cara da França.
A velha herborista morreu ano passado e seu sobrinho vendeu a casa. Bastou
derrubar algumas paredes: agora é uma pequena sala de conferências, a
Bonbonnière. No ano passado, Henry Bordeaux fez aí uma palestra sobre o
alpinismo.
Na rua Tournebride não se pode ter pressa: as famílias caminham lentamente.
Às vezes se avança uma fileira, porque uma família inteira entrou na loja de
Foulon ou na de Piégeois. Mas em outros momentos é preciso parar e marcar
passo, porque duas famílias, pertencentes uma à coluna que sobe, outra à coluna
que desce, se encontraram e se agarraram firmemente pelas mãos. Avanço a
passos curtos. Sobrelevo-me às duas colunas e vejo chapéus, um mar de
chapéus. A maioria deles é preta e rígida. De quando em quando um voa na
ponta de um braço, deixando aparecer o brilho suave de um crânio; em seguida,
após alguns instantes de um voo desajeitado, torna a pousar. No número 16 da
rua Tournebride, o chapeleiro Urbain, especialista em quepes, faz planar como
um símbolo um imenso chapéu vermelho de arcebispo, cujas borlas de ouro
pendem a dois metros do chão.
Faz-se alto: acaba de se formar um grupo sob as borlas. Meu vizinho espera
sem impaciência, balançando os braços: creio que esse velhinho pálido e frágil
como uma porcelana é Coffier, o presidente da Câmara de Comércio. Ele parece
intimidante, pois nunca diz nada. Mora no alto do Coteau Vert, numa grande
casa de tijolo aparente, cujas janelas estão sempre escancaradas. Terminou: o
grupo se desmanchou, recomeça-se a andar. Acaba de se formar outro, mas esse
ocupa menos espaço: tão logo se formou, encostou-se na vitrine de Ghislaine. A
coluna sequer para: faz apenas um ligeiro desvio; desfilamos diante de seis
pessoas que se dão as mãos: “Bom dia, senhor, bom dia, meu caro senhor; como
vai; mas ponha o chapéu, senhor, vai se resfriar; obrigado, senhora, realmente
não faz calor. Minha querida, quero lhe apresentar o dr. Lefrançois; doutor,
muito prazer em conhecê-lo, meu marido sempre me fala no dr. Lefrançois que o
tratou tão eficazmente, mas ponha o chapéu, doutor, esse frio pode lhe fazer mal.
Mas o doutor se curaria logo; não creia, senhora, os médicos são sempre os que
menos se tratam; o doutor é um músico notável. Meu Deus, doutor, eu não sabia
disso, toca violino? O doutor tem muito talento.”
O velhinho ao meu lado é certamente Coffier; uma das mulheres do grupo, a
morena, devora-o com os olhos, ao mesmo tempo em que sorri para o doutor.
Parece estar pensando: “Lá está o sr. Coffier, o presidente da Câmara de
Comércio; como seu aspecto é intimidante, dizem que é tão frio!” Mas o sr.
Coffier não se dignou a ver nada: essas pessoas são do bulevar Maritime, não
pertencem à sociedade. Com o tempo que venho a essa rua para ver os
cumprimentos de chapéu aos domingos, aprendi a distinguir as pessoas do
bulevar e as do Coteau. Quando um sujeito está usando um casaco novo em
folha, chapéu de feltro flexível, camisa resplandecente, é muito espaçoso, não há
o que errar: é alguém do bulevar Maritime. As pessoas do Coteau Vert se
distinguem por um não sei quê de lastimável e deprimido. Têm os ombros
estreitos e um ar de insolência nos rostos gastos. Juraria que o senhor grandalhão
que está segurando uma criança pela mão é do Coteau: seu rosto é inteiramente
cinza e ele dá o nó na gravata como se ela fosse um barbante.
O senhor grandalhão se aproxima de nós: olha fixamente para o sr. Coffier.
Mas, um pouco antes de cruzar com ele, desvia a cabeça e se põe a brincar
paternalmente com seu garotinho. Dá mais alguns passos, inclinado para o filho,
os olhos mergulhados nos dele, imbuído de seu papel de papai; depois, de
repente, virando-se lentamente para nós, dirige um olhar vivo para o velhinho e
faz um cumprimento amplo e seco, com um movimento circular de braço. O
garotinho, desconcertado, não esboça um cumprimento: isso é coisa de gente
grande.
Na esquina da rua Basse-de-Vieille, nossa coluna esbarra com uma coluna de
fiéis que estão saindo da missa: uma dezena de pessoas esbarram umas nas
outras e se cumprimentam rodopiando, mas os cumprimentos de chapéus são
muito rápidos para que eu possa detalhá-los; por cima dessa multidão gorda e
pálida, a igreja consagrada a santa Cecília ergue sua monstruosa massa branca:
um branco de giz sobre um céu escuro; por trás dessas paredes resplandecentes,
ela retém em seus flancos um pouco do negrume da noite. Retoma-se a
caminhada numa ordem ligeiramente modificada. O sr. Coffier foi empurrado
para trás de mim. Uma senhora de azul-marinho colou-se a meu flanco esquerdo.
Vem da missa. Pisca os olhos um pouco ofuscada ao se deparar com a luz da
manhã. O senhor que caminha à frente dela, e cuja nuca é muito magra, é seu
marido.
Na outra calçada, um senhor que dá o braço à sua mulher acaba de lhe
sussurrar algumas palavras ao ouvido e se pôs a sorrir. Imediatamente, ela
elimina qualquer expressão do rosto cremoso e dá alguns passos como se fosse
cega. Esses sinais não enganam: eles vão cumprimentar alguém. Efetivamente,
um instante depois o senhor ergue a mão. Quando os dedos estão próximos de
seu chapéu de feltro, hesitam um segundo antes de pousarem delicadamente na
copa. Enquanto levanta lentamente o chapéu, baixando um pouco a cabeça para
facilitar a remoção, a mulher dá um pulinho, inscrevendo no rosto um sorriso
jovem. Uma sombra passa por eles, inclinando-se, mas seus dois sorrisos gêmeos
não se apagam no ato: permanecem alguns instantes em seus lábios, por uma
espécie de remanência. Quando o senhor e a senhora cruzam comigo, já
retomaram sua impassibilidade, mas permanece-lhes ainda um ar alegre ao redor
da boca.
Terminou: a multidão é menos densa, os cumprimentos de chapéu se tornam
mais raros, as vitrines das lojas já não têm o mesmo encanto: estou no fim da rua
Tournebride. Vou atravessar e subir a rua pela outra calçada? Acho que já me
fartei, já vi o bastante desses crânios rosados, desses rostos miúdos, distintos,
apagados. Vou atravessar a praça Marignan. No que estou me separando, com
precaução, da coluna, uma cabeça de verdadeiro cavalheiro brota de um chapéu
preto bem ao meu lado. É o marido da senhora de azul-marinho. Ah! Que belo e
longo crânio de dolicocéfalo, coberto de cabelos curtos e bastos; que belo bigode
à americana, semeado de fios prateados! E sobretudo o sorriso, o admirável
sorriso cultivado. Há também um lornhão algures num nariz.
Ele estava voltado para a mulher, dizendo-lhe:
— É um novo desenhista da fábrica. Pergunto-me o que estará fazendo aqui.
É um bom rapazinho, um tímido; me diverte.
Junto à vitrine do charcuteiro Julien, o jovem desenhista que acaba de
recolocar seu chapéu, ainda corado, os olhos baixos, o ar obstinado, conserva
toda a aparência de uma intensa volúpia.
Sem dúvida alguma é o primeiro domingo em que ousa atravessar a rua
Tournebride. Seu aspecto é de alguém que está fazendo a primeira-comunhão.
Cruzou as mãos atrás das costas e virou o rosto para a vitrine com um ar pudico
positivamente excitante; olha, sem vê-las, quatro linguiças brilhantes em meio ao
gelo e desabrochando em sua guarnição de salsas.
Uma mulher sai da charcuteria e toma seu braço. É sua esposa. Ela é bastante
jovem apesar da pele consumida. Por mais que ronde pelas imediações da rua
Tournebride, ninguém a tomará por uma dama; ela é traída pelo fulgor cínico dos
olhos, pelo ar sensato e previdente. As verdadeiras damas não sabem os preços
das coisas, gostam das belas loucuras; os olhos delas são belas flores cândidas,
flores de estufa.
Ao dar uma hora, chego à Brasserie Vézelize. Lá estão os velhos, como de
hábito. Dois deles já começaram sua refeição. Há quatro jogando manilha,
tomando aperitivos. Os outros estão de pé e observam o jogo, enquanto esperam
que lhes preparem uma mesa. O mais alto, que tem uma barba interminável, é
corretor de valores. Outro é comissário aposentado da Capitania do Porto.
Comem e bebem como se ainda tivessem vinte anos. Aos domingos o prato
escolhido é chucrute. Os últimos a chegar interpelam os outros, que já estão
comendo:
— Então, o chucrute dominical, como sempre?
Sentam-se e dão um suspiro satisfeito.
— Mariette, minha querida, uma cerveja sem colarinho e um chucrute.
Mariette é brejeira. No que me sento numa mesa do fundo, um velho
escarlate começa a tossir furiosamente enquanto ela lhe serve um vermute.
— Encha mais, ora essa — diz a tossir.
Mas ela se zanga por sua vez: não tinha acabado de servir.
— Mas me deixe servir; por acaso eu disse alguma coisa? O senhor se
contraria por antecipação.
Os outros começam a rir.
— Touché!
O corretor de valores, ao ir se sentar, segura Mariette pelos ombros:
— É domingo, Mariette. Vai ao cinema essa tarde com seu namorado?
— Ah, sim!... É a folga de Antoinette. Namorado, é verdade... Vou ter que
aguentar o dia inteiro trabalhando!
O corretor de valores sentou-se diante de um velho muito escanhoado, de ar
infeliz. O velho escanhoado começa imediatamente um relato animado. O
corretor de valores não ouve: faz caretas, puxa a barba. Eles nunca se ouvem.
Reconheço meus vizinhos: são pequenos comerciantes dos arredores. Aos
domingos dão folga à empregada. Então vêm aqui e se instalam sempre na
mesma mesa. O marido está comendo uma bela côte-de-boeuf rosada. Examina-a
de perto e de quando em quando a cheira. A mulher lambisca seu prato. É uma
loura corpulenta de quarenta anos, as faces vermelhas e penugentas. Os seios,
sob a blusa de cetim, são belos e rijos. Em cada refeição ela entorna, como um
homem, sua garrafa de Bordeaux.
Vou ler Eugénie Grandet. Não que isso me dê muito prazer: mas é preciso
que faça alguma coisa. Abro o livro ao acaso: a mãe e a filha falam do amor que
está nascendo em Eugénie:

Eugénie beijou-lhe a mão dizendo:


— Como é boa, minha querida mamãe!
Essas palavras iluminaram o velho rosto materno, marcado por longas
dores.
— Tem boa impressão dele? — perguntou Eugénie.
A sra. Grandet respondeu apenas com um sorriso; em seguida, após um
momento de silêncio, disse em voz baixa:
— Já o estaria amando então? Isso seria mau.
— Mau — retorquiu Eugénie — por quê? Ele agrada à senhora, agrada a
Nanon, por que não me agradaria? Olhe, mamãe, vamos botar a mesa para o
almoço dele.
Pôs de lado seu bordado, a mãe fez o mesmo, dizendo-lhe:
— Você está louca!
Mas se comprouve em justificar a loucura da filha, compartilhando-a.
Eugénie chamou Nanon.
— Que é? Que deseja ainda, senhorita?
— Nanon, você terá o creme pronto para o meio-dia?
— Ah! Para o meio-dia, sim — respondeu a velha empregada.
— Muito bem, sirva-lhe café bem forte, ouvi o sr. de Grassins dizer que em
Paris se fazia café muito forte. Ponha bastante.
— E onde quer que o arranje?
— Compre.
— E se o patrão me encontra?
— Ele está em seus pastos...

Meus vizinhos haviam permanecido silenciosos desde minha chegada, mas de


repente a voz do marido me arrancou da leitura.
O marido, com ar divertido e misterioso:
— Escute, você viu?
A mulher estremece e olha para ele, saindo de um sonho. Ele come e bebe,
depois continua com o mesmo ar malicioso:
— Ha, ha!
Um silêncio, a mulher voltou a mergulhar em seu sonho.
De repente estremece e pergunta:
— Que está dizendo?
— Suzanne, ontem.
— Ah, sim! — diz a mulher. — Ela tinha ido ver Victor.
— Que é que eu tinha dito?
A mulher empurra o prato, impaciente.
— Não está bom.
As beiradas do prato estão cheias de bolinhas de carne cinza que ela cuspiu
de volta. O marido prossegue:
— Aquela mulherzinha...
Cala-se e dá um sorriso vago. Em frente a nós o velho corretor de valores
acaricia o braço de Mariette, arfando um pouco. Daí a um momento:
— Eu tinha dito a você outro dia.
— Tinha dito o quê?
— Que ela iria ver Victor. O que há — pergunta bruscamente, espantado —,
não gostou?
— Não está bom.
— Já não é a mesma coisa — diz pomposamente —, já não é como no tempo
de Hécart. Sabe por onde anda Hécart?
— Está em Domrémy, não?
— Sim, sim, quem lhe disse?
— Você, no domingo.
Ela come uma migalha de pão que ficara sobre a toalha de papel. Depois,
alisando com a mão o papel sobre a borda da mesa, diz com hesitação:
— Sabe, você está enganado; Suzanne é mais...
— É possível, minha filha, é bem possível — responde ele distraidamente.
Seu olhar procura Mariette; faz-lhe um sinal.
— Está calor.
Mariette se apoia com familiaridade na beira da mesa.
— Oh, sim, faz calor! — diz a mulher gemendo. — Está sufocante aqui, e
além do mais a carne não está boa, falarei com o patrão. Já não é a mesma coisa.
Abra um pouco a janela, Mariette.
O marido retoma seu ar divertido:
— Diga, você não viu seus olhos?
— Mas quando, meu lindo?
Ele a arremeda com impaciência:
— Mas quando, meu lindo? É bem você: no verão, quando neva.
— Está querendo dizer ontem? Ah, bom!
Ele ri, olha para longe, recita muito depressa, com uma certa aplicação:
— Olhos de gato que caga na brasa.
Está tão satisfeito que parece ter esquecido o que queria dizer. Ela ri por sua
vez, sem maldade.
— Ha, ha, seu maldoso.
Ela lhe dá palmadinhas nos ombros.
— Maldoso, maldoso.
Ele repete com mais segurança:
— De gato que caga na brasa.
Mas ela já não ri:
— Não, sem brincadeira, ela é séria.
Ele se inclina, cochicha uma história comprida em seu ouvido.
Ela o olha um momento, a boca aberta, o rosto um pouco tenso e risonho,
como alguém que vai cair na gargalhada; depois, bruscamente se inclina para
trás e arranha-lhe as mãos.
— Isso não é verdade, não é verdade.
Ele diz em tom sensato e ponderado:
— Escute, minha querida, foi ele mesmo quem disse: se não fosse verdade,
por que o diria?
— Não, não.
— Mas se foi ele mesmo quem disse: escute, imagine...
Ela começa a rir.
— Estou rindo porque pensei em René.
— Sim.
Ele também ri. Ela continua numa voz baixa e solene:
— Então, é porque percebeu isso na terça-feira.
— Quinta-feira.
— Não, terça-feira, você sabe, por causa do...
Desenha no ar uma espécie de elipse.
Longo silêncio. O marido embebe miolo de pão no molho. Mariette troca os
pratos e traz tortas. Daqui a pouco também vou aceitar uma torta. De repente a
mulher, com ar um pouco pensativo, um sorriso orgulhoso e um pouco
escandalizado nos lábios, pronuncia com voz arrastada:
— Oh, não! Você sabe...
Há tanta sensualidade em sua voz que ele se perturba e lhe acaricia a nuca
com a mão gorda.
— Charles, fique quieto, você me excita, meu querido — murmura ela,
sorrindo, de boca cheia.
Tento retomar minha leitura.

— E onde quer que o arranje?


— Compre.
— E se o patrão me encontra?

Mas ouço ainda a mulher dizendo:


— Vou fazer Marthe rir, vou lhe contar...
Meus vizinhos se calaram. Depois da torta Mariette serviu ameixas, e a
mulher está muito ocupada em depositar graciosamente os caroços em sua
colher. O marido, olhando para o teto, tamborila uma marcha na mesa. Dir-se-ia
que o estado normal deles é o silêncio e a palavra uma pequena febre que às
vezes os acomete.

— E onde quer que o arranje?


— Compre.

Fecho o livro, vou dar um passeio.


Quando saí da Brasserie Vézelize, eram quase três horas; senti a tarde em
todo o meu corpo pesado. Não a minha tarde: a deles, a que cem mil habitantes
de Bouville iam viver em comum. A essa mesma hora, após o longo e copioso
almoço de domingo, eles se levantavam da mesa e, para eles, algo morrera. O
domingo gastara sua leve juventude. Era preciso digerir a galinha e a torta,
vestir-se para sair.
A campainha do Cine Eldorado ressoava no ar límpido. É um ruído familiar
do domingo essa campainha em pleno dia. Mais de cem pessoas faziam fila ao
longo da parede verde. Aguardavam avidamente a hora das suaves trevas, do
relaxamento, do abandono, a hora em que a tela, brilhante como uma pedra
branca sob a água, falaria e sonharia por elas. Vão desejo: alguma coisa nelas
permaneceria contraída; tinham muito medo que estragassem seu belo domingo.
Daqui a pouco, como todos os domingos, ficariam decepcionadas: o filme seria
idiota, a pessoa do lado fumaria cachimbo e cuspiria entre os joelhos, ou então
Lucien se mostraria desagradável, não teria uma palavra amável, ou ainda, como
se de propósito, justamente hoje, logo no dia em que iam ao cinema, aquela dor
nas costas voltaria. Daqui a pouco, como todos os domingos, pequenas raivas
surdas cresceriam na sala escura.
Segui pela tranquila rua Bressan. O sol dissipara as nuvens, o tempo estava
bonito. Uma família acabava de sair da villa La Vague. A filha abotoava as luvas
na calçada. Devia ter mais ou menos trinta anos. A mãe, postada no primeiro
degrau da escadaria, olhava fixamente para a frente, o ar seguro, respirando
fundo. Do pai, eu via apenas as costas enormes. Inclinado sobre a fechadura,
passava a chave na porta. A casa permaneceria vazia e escura até o regresso
deles. Nas casas vizinhas, já desertas e com os ferrolhos passados, os móveis e
os parquês estalavam suavemente. Antes de sair, haviam apagado o fogo na
lareira da sala de jantar. O pai foi ter com as duas mulheres, e a família, sem
dizer uma palavra, se pôs a caminho. Aonde iam? Aos domingos, vai-se ao
cemitério ou visitam-se parentes, ou ainda, quando se está inteiramente livre,
passeia-se pelo quebra-mar. Eu estava livre: segui pela rua Bressan, que
desemboca no quebra-mar Promenade.
O céu estava azul-claro: algumas fumaças, alguns penachos; de vez em
quando uma nuvem à deriva passava diante do sol. Via-se ao longe a balaustrada
de cimento branco que corre ao longo do quebra-mar Promenade e o mar
brilhando através das aberturas. A família virou à direita na rua Aumônier-
Hilaire, que sobe para o Coteau Vert. Vi-os subir a passos lentos, formando três
manchas negras no brilho do asfalto. Dobrei à esquerda e me misturei à multidão
que desfilava à beira-mar.
A mistura era maior do que pela manhã. Parecia que todos aqueles homens já
não tinham força para manter a bela hierarquia social de que tanto se orgulhavam
antes de almoçar. Os negociantes e funcionários caminhavam lado a lado;
deixavam-se acotovelar, deixavam-se até empurrar ou desviar por modestos
empregados de aparência pobre. As aristocracias, as elites, os agrupamentos
profissionais tinham se fundido nessa multidão morna. Restavam apenas homens
quase sós, que já não representavam mais.
Uma poça de luz ao longe, este era o mar em maré baixa. Alguns escolhos, à
flor da água, furavam essa superfície de claridade com suas pontas. Barcos de
pesca jaziam na areia, perto dos viscosos blocos de pedra arremessados
desordenadamente na base do quebra-mar, para protegê-lo das ondas e que
deixam entre si buracos borbulhantes. Na entrada do anteporto, contra o céu
embranquecido pelo sol, recortava-se a sombra de uma draga. Todas as noites,
até meia-noite, ela uiva e geme, fazendo uma barulheira infernal. Mas aos
domingos os operários passeiam em terra, ficando apenas um vigia a bordo: ela
se cala.
O sol estava claro e diáfano: um vinhozinho branco. Sua luz mal aflorava os
corpos, não lhes dava sombras nem relevo: os rostos e as mãos formavam
manchas de ouro claro. Todos aqueles homens de sobretudo pareciam flutuar
suavemente a algumas polegadas do chão. De quando em quando o vento
empurrava em nossa direção sombras que tremulavam como água; os rostos se
apagavam por alguns instantes, ficavam cor de giz.
Era domingo; encaixada entre a balaustrada e os portões dos chalés de
recreio, a multidão se desfazia em pequenas vagas, para se perder em mil riachos
por trás do grande prédio da Companhia Transatlântica. Quantas crianças!
Crianças em carrinhos, no colo, levadas pela mão ou andando empertigadas em
grupos de dois ou três, à frente de seus pais. Eu vira todos esses rostos, poucas
horas antes, quase triunfantes no verdor de uma manhã de domingo. Agora,
banhados de sol, exprimiam apenas a calma, o relaxamento, uma espécie de
obstinação.
Poucos gestos: ainda se trocavam alguns cumprimentos de chapéu, mas sem
a amplidão, sem a alegria nervosa da manhã. Todas as pessoas se deixavam ficar
um pouco para trás, a cabeça erguida, o olhar distante, entregues ao vento que as
empurrava inflando os casacos. De quando em quando um riso seco,
rapidamente abafado; o grito de uma mãe, Jeannot, Jeannot quer fazer o favor...
Depois o silêncio. Leve cheiro de fumo suave: são os caixeiros fumando
Salammbô, Aïcha, cigarros de domingo. Em alguns rostos, mais expressivos, tive
a impressão de ler um pouco de tristeza: mas não, aquelas pessoas não estavam
nem tristes nem alegres: repousavam. Os olhos arregalados e fixos refletiam
passivamente o mar e o céu. Dentro em pouco iriam para casa, tomariam uma
xícara de chá em família, na mesa da sala de jantar. No momento desejavam
viver com o mínimo de dispêndio, economizar os gestos, as palavras, os
pensamentos, boiar: só dispunham de um único dia para apagar as rugas, os pés
de galinha, os vincos amargos que o trabalho da semana provoca. Um único dia.
Sentiam os minutos a lhes escapar por entre os dedos; teriam tempo de acumular
bastante juventude, para poder recomeçar tudo na segunda-feira de manhã?
Respiravam a plenos pulmões, porque o ar do mar revigora: apenas sua
respiração, regular e profunda como a de quem dorme, confirmava que estavam
vivos. Eu caminhava furtivamente, não sabia o que fazer de meu corpo rijo e
fresco, no meio dessa multidão trágica que repousava.
O mar agora estava cor de ardósia; subia lentamente. À noite atingiria a maré
cheia; essa noite o quebra-mar Promenade ficaria mais deserto do que o bulevar
Victor-Noir. Adiante e à esquerda uma luz vermelha brilharia no canal.
O sol descia lentamente sobre o mar. No caminho incendiava a janela de um
chalé normando. Uma mulher, ofuscada, levou, com ar cansado, a mão aos olhos
e sacudiu a cabeça.
— Gaston, estou ofuscada — disse com um riso hesitante.
— É um solzinho bom — disse o marido —, não aquece, mas mesmo assim
é agradável.
Ela disse ainda, voltando-se para o mar:
— Pensava que pudéssemos vê-la.
— Impossível — disse o homem —, ela está do lado do sol.
Deviam estar falando da ilha Caillebotte, cuja ponta meridional deveria ser
visível entre a draga e o cais do anteporto.
A luz tornou-se mais suave. Nessa hora instável algo anunciava a noite. O
domingo já tinha um passado. As villas e a balaustrada cinza pareciam
recordações muito recentes. Um a um, os rostos perdiam o ar de lazer, vários se
tornaram quase ternos.
Uma jovem mulher grávida se apoiava num rapaz louro de aspecto bruto.
— Ali, ali, ali, olhe — disse.
— O quê?
— Ali, as gaivotas.
Ele sacudiu os ombros: não havia gaivotas. O céu se tornara quase puro, um
pouco rosado no horizonte.
— Ouvi-as. Escute, estão gritando.
Ele respondeu:
— Foi qualquer coisa que rangeu.
Um lampião de gás brilhou. Julguei que o acendedor dos lampiões tivesse
passado. As crianças o aguardam com impaciência, porque é ele que dá o sinal
da hora de regressar. Mas era apenas um último reflexo do sol. Embora o céu
ainda estivesse claro, a terra mergulhava na penumbra. A multidão escasseava,
ouvia-se distintamente o estertor do mar. Uma mulher jovem, apoiada com as
duas mãos na balaustrada, ergueu para o céu o rosto azulado riscado quase de
preto pela pintura dos lábios. Perguntei-me por um momento se iria amar os
homens. Mas afinal o domingo era deles, não meu.
A primeira luz que se acendeu foi a do farol Caillebotte; um garotinho parou
perto de mim e murmurou com ar extasiado: “Oh! O farol!”
Então senti meu coração inflado por um grande sentimento de aventura.

Dobro à esquerda e vou dar no Pequeno Prado pela rua dos Voiliers. Colocaram
os taipais nas vitrines. A rua Tournebride está clara, mas deserta, perdeu sua
glória efêmera da manhã; a essa hora nada a distingue das ruas vizinhas.
Levantou-se um vento bastante forte. Ouço ranger o chapéu do arcebispo.
Estou sozinho, a maioria das pessoas voltaram para seus lares; estão lendo o
jornal da tarde e ouvindo rádio. O domingo que termina deixou-lhes um gosto de
cinzas e seu pensamento se volta para a segunda-feira. Mas para mim não
existem segunda-feira nem domingo: existem dias que se atropelam
desordenadamente e, além disso, lampejos como esse.
Nada mudou e no entanto tudo existe de uma outra maneira. Não consigo
descrever; é como a Náusea e no entanto é exatamente o contrário: finalmente
me acontece uma aventura e, quando me interrogo, vejo que me acontece que
sou eu e que estou aqui; sou eu que fendo a noite, estou feliz como um herói de
romance.
Algo vai suceder: na obscuridade da rua Basse-de-Vieille há alguma coisa à
minha espera, é ali, exatamente na esquina desta rua tranquila, que minha vida
vai começar. Vejo-me avançar com o sentimento da fatalidade. Na esquina da rua
há uma espécie de marco branco. De longe parecia todo preto, e, a cada passada,
tende mais e mais para o branco. Esse corpo obscuro que se ilumina pouco a
pouco me causa uma impressão extraordinária: quando estiver totalmente claro,
totalmente branco, me deterei exatamente a seu lado e então começará a
aventura. Esse farol branco que emerge das sombras está tão próximo agora que
quase sinto medo: por um instante penso em dar meia-volta. Mas não é possível
quebrar o encantamento. Avanço, estendo a mão, toco no marco.
Eis a rua Basse-de-Vieille e a massa enorme da igreja de Santa Cecília
escondida nas sombras e cujos vitrais brilham. O chapéu do arcebispo range.
Não sei se o mundo se estreitou de repente ou se sou eu que ponho uma unidade
tão forte entre os sons e as formas: nem sequer posso conceber que algo do que
me rodeia seja diferente do que é.
Paro um instante, espero, sinto meu coração bater; vasculho com o olhar a
praça deserta. Não vejo nada. Levantou-se um vento bastante forte. Equivoquei-
me, a rua Basse-de-Vieille era apenas uma escala: a coisa está à minha espera no
fundo da praça Ducoton.
Não tenho pressa de recomeçar a andar. Parece-me que atingi o cume de
minha felicidade. Em Marselha, em Xangai, em Meknès, o que não fiz para
obter um sentimento tão pleno? Hoje já não espero nada, volto para casa ao fim
de um domingo vazio: ele está comigo.
Torno a caminhar. O vento me traz o grito de uma sirene. Estou inteiramente
sozinho, mas caminho como uma tropa que irrompe numa cidade. Neste
momento, há navios ressonantes de música sobre o mar; luzes se acendem em
todas as cidades da Europa; comunistas e nazistas trocam tiros nas ruas de
Berlim; desempregados perambulam pelas ruas de Nova Iorque; num quarto
aquecido, diante de suas penteadeiras, mulheres colocam rímel nos cílios. E eu
estou aqui, nessa rua deserta, e cada tiro disparado de uma janela de Neukölln,
cada soluço sangrento dos feridos que são transportados, cada gesto preciso e
diminuto das mulheres que se enfeitam corresponde a cada um de meus passos, a
cada batida de meu coração.
Diante da galeria Gillet já não sei o que fazer. Estarão à minha espera no
fundo da galeria? Mas há também, na praça Ducoton, no fim da rua Tournebride,
certa coisa que necessita de mim para nascer. Estou cheio de angústia: o menor
gesto me compromete. Não posso adivinhar o que querem de mim. No entanto é
preciso escolher: sacrifico a galeria Gillet, ignorarei para sempre o que ela me
reservava.
A praça Ducoton está vazia. Será que me enganei? Acho que não o
suportaria. Será que não vai acontecer nada? Aproximo-me das luzes do café
Mably. Estou desorientado, não sei se vou entrar: dou uma olhada através das
grandes vidraças embaciadas.
A sala está abarrotada. O ar está azulado por causa da fumaça dos cigarros e
do vapor exalado pelas roupas úmidas. A empregada que se encarrega da caixa
está em seu balcão. Conheço-a bem: é ruiva como eu; tem uma doença no
ventre. Apodrece suavemente sob as saias, com um sorriso melancólico
semelhante ao cheiro de violeta que às vezes exalam os corpos em
decomposição. Arrepio-me da cabeça aos pés: era... era ela que me esperava.
Estava ali, erguendo o busto imóvel por cima do balcão, sorrindo. Do fundo
desse café algo retrocede para os momentos esparsos desse domingo e solda-os
uns aos outros, dá-lhes um sentido: atravessei todo esse dia para chegar a esse
momento, a testa apoiada nessa vidraça, para contemplar esse rosto delicado que
desabrocha sobre uma cortina grená. Tudo parou; minha vida parou: esse grande
vidro, esse ar pesado, azul como a água, essa planta carnuda e branca no fundo
da água e eu próprio formamos um todo imóvel e pleno: estou feliz.
Quando estava no bulevar da Redoute só subsistia em mim um amargo pesar.
Dizia-me: “Talvez não exista nada no mundo que seja tão importante para mim
como esse sentimento de aventura. Mas ele vem quando quer; desaparece tão
rapidamente! Como fico seco quando ele me deixa! Será que me faz essas curtas
visitas irônicas para me mostrar que minha vida é um fracasso?”
Atrás de mim, na cidade, nas grandes ruas retas, na claridade fria dos
lampiões, um fantástico acontecimento social agonizava: era o fim do domingo.

Segunda-feira
Como pude escrever ontem essa frase absurda e pomposa:
“Estava inteiramente sozinho mas caminhava como uma tropa que irrompe
numa cidade.”
Não preciso fazer frases. Escrevo para esclarecer certas circunstâncias. Há
que ter cuidado com a literatura. É preciso escrever ao correr da pena; sem
escolher as palavras.
No fundo o que me desagrada é ter sido sublime ontem à noite. Quando tinha
vinte anos, me embriagava e depois explicava que era um sujeito no gênero de
Descartes. Sentia perfeitamente que me inflava de heroísmo, mas não me
continha: isso me agradava. Depois, no dia seguinte, me sentia tão enojado como
se tivesse acordado numa cama cheia de vômito. Quando estou bêbado, não
vomito — antes o fizesse. Ontem não tinha sequer a desculpa da embriaguez.
Entusiasmei-me como um imbecil. Preciso me limpar com pensamentos
abstratos, transparentes como a água.
Esse sentimento de aventura decididamente não se origina dos
acontecimentos: isso ficou provado. É antes a maneira pela qual os instantes se
encadeiam. Eis, creio eu, o que ocorre: bruscamente se sente que o tempo se
esgota, que cada instante leva a outro instante, esse a outro, e assim
sucessivamente; que cada instante se aniquila, que é inútil tentar retê-lo etc. E
então se atribui essa propriedade aos acontecimentos que nos surgem nos
instantes; transportamos para o conteúdo o que pertence à forma. Em suma, fala-
se muito dessa famosa passagem do tempo, mas não a vemos. Vemos uma
mulher, pensamos que um dia será velha, mas não a vemos envelhecer. Mas por
alguns momentos parece que a vemos envelhecer e que nos sentimos envelhecer
com ela: é o sentimento de aventura.
Se bem me lembro, chama-se isso de irreversibilidade do tempo. O
sentimento da aventura seria simplesmente o da irreversibilidade do tempo. Mas
por que não o temos permanentemente? É possível que o tempo não seja sempre
irreversível? Há momentos em que temos a impressão de que podemos fazer o
que queremos, avançar ou retroceder, que isso não tem importância; e outros em
que diríamos que as malhas se apertaram; nesses casos não há que perder a
chance, porque esta não voltaria a se apresentar.
Anny fazia com que o tempo lhe desse tudo o que era possível. Na época em
que estava em Djibouti, e eu em Aden, quando ia vê-la por 24 horas, ela
utilizava todos os recursos para multiplicar os mal-entendidos entre nós, até o
momento em que só faltavam exatamente sessenta minutos para minha partida;
sessenta minutos, rigorosamente o tempo necessário para que se sintam passar os
segundos um a um. Lembro-me de uma dessas noites terríveis. Eu tinha que
partir à meia-noite. Tínhamos ido a um cinema ao ar livre; ambos estávamos
desesperados. Só que quem dava as cartas era ela. Às 11 horas, quando ia
começar o filme, ela segurou minha mão e apertou-a entre as suas sem uma
palavra. Sentime invadido por uma alegria amarga e compreendi, sem
necessidade de olhar o relógio, que eram 11 horas. A partir desse instante
começamos a sentir os minutos passarem. Daquela vez estávamos nos separando
por três meses. Em dado momento foi projetada na tela uma imagem
extremamente branca, a escuridão tornou-se menos intensa e vi que Anny estava
chorando. Depois, à meia-noite, soltou minha mão, após havê-la apertado
violentamente; levantei-me e saí sem lhe dizer uma única palavra. Era um
trabalho bem-feito.
Sete da noite
Dia de trabalho. Não correu muito mal; escrevi seis páginas com certo prazer.
Tanto mais que se tratava de considerações abstratas sobre o reinado de Paulo I.
Depois da orgia de ontem passei o dia inteiro cuidadosamente abotoado. Não era
indicado recorrer a meu coração. Mas me sentia muito à vontade desmontando
as molas da autocracia russa.
Só que esse Rollebon me irrita. Finge-se de misterioso nas mínimas coisas.
Que terá ido fazer na Ucrânia no mês de agosto de 1804? Fala de sua viagem em
termos velados:
“A posteridade julgará se meus esforços, que o sucesso não podia
recompensar, mereciam uma renegação brutal e as humilhações que tive que
suportar em silêncio, quando dispunha de meios para calar os escarnecedores e
amedrontá-los.”
Caí na armadilha uma vez: ele se mostrava cheio de reticências pomposas a
respeito de uma pequena viagem que fizera a Bouville em 1790. Perdi um mês
investigando suas atividades. Afinal ele tinha engravidado a filha de um de seus
rendeiros. Não se tratará simplesmente de um cabotino?
Esse pretensiosozinho tão mentiroso me deixa irado; talvez seja por despeito:
encantava-me que mentisse aos outros, mas teria gostado que abrisse uma
exceção para mim; tinha imaginado que nós dois nos entenderíamos às mil
maravilhas, fartos de todos esses mortos, e que a mim ele terminaria por dizer a
verdade. Ele não disse nada, absolutamente nada; nada mais do que dizia a
Alexandre ou a Luís XVIII, a quem enganava. É importante para mim que
Rollebon tenha sido uma pessoa de valor. Velhaco certamente: quem não o é?
Mas um grande velhaco ou um pequeno velhaco? Não aprecio suficientemente
as pesquisas históricas para perder meu tempo com um morto cuja mão, se
estivesse vivo, eu não me dignaria a apertar. O que sei dele? Não se pode
imaginar vida mais bela do que a sua: mas a terá vivido realmente? Se pelo
menos suas cartas não fossem tão afetadas... Ah! Teria sido preciso conhecer seu
olhar, talvez tivesse uma maneira atraente de inclinar a cabeça sobre o ombro, ou
de colocar, com ar astuto, o indicador ao lado do nariz, ou ainda, de deixar
transparecer entre duas mentiras delicadas uma rápida violência que ele logo
abafava. Mas ele morreu: o que sobra dele são apenas o Traité de stratégie e as
Réflexions sur la vertu.
Se me descontraísse, o imaginaria muito bem: sob sua ironia brilhante, e que
fez tantas vítimas, trata-se de um simplório, quase um ingênuo. Pouco pensa,
mas em todas as circunstâncias, por um dom profundo, faz exatamente o que
deveria fazer. Sua velhacaria é cândida, espontânea, generosa, tão sincera quanto
seu amor pela virtude. E quando traiu seus benfeitores e amigos, relembrou os
acontecimentos com gravidade, para extrair deles uma moral. Nunca achou que
tivesse o menor direito sobre os outros nem estes sobre ele: considera
injustificadas e gratuitas as dádivas que a vida lhe propicia. Liga-se fortemente a
tudo, mas se desvincula com facilidade. E suas cartas, suas obras, nunca foram
escritas por ele: um escritor público[8] as redigiu.
Mas se era para chegar a isso, mais valia que eu escrevesse um romance
sobre o marquês de Rollebon.
Onze da noite
Jantei no Rendez-vous des Cheminots. Como a patroa estivesse lá, tive que
trepar com ela, mas foi só por delicadeza. Ela me repugna um pouco: é muito
branca e também cheira um pouco a recém-nascido. Num arroubo de paixão, me
apertava a cabeça contra seu peito: acha que isso é o que se deve fazer. Quanto a
mim, manuseava distraidamente seu sexo sob as cobertas; depois meu braço
ficou dormente. Estava pensando no marquês de Rollebon: afinal o que me
impede de escrever um romance sobre sua vida? Deslizei meu braço pelo quadril
da patroa e vi de repente um pequeno jardim com árvores baixas e tufadas de
onde pendiam folhas imensas cobertas de pelos. Corriam por toda parte
formigas, centopeias e traças. Havia bichos ainda mais horríveis: seus corpos
eram feitos de uma fatia de pão tostado, como as que se servem como canapé,
com pedaços de pombo; andavam de lado com patas de caranguejo. As folhas
grandes estavam pretas de bichos. Por trás dos cactos e dos nopais, a Véleda do
jardim público apontava para seu sexo com o dedo. “Esse jardim cheira a
vômito”, gritei.
— Não queria acordá-lo — disse a patroa —, mas você estava com uma
dobra do lençol debaixo das nádegas e além disso tenho que descer por causa
dos fregueses do trem de Paris.

Terça-feira de carnaval
Açoitei Maurice Barrès. Éramos três soldados e um de nós tinha um buraco no
meio do rosto. Maurice Barrès se aproximou e nos disse: “Está bom!” E deu a
cada um de nós um buquê de violetas. “Não sei onde enfiá-lo”, disse o soldado
com a cara esburacada. Então Maurice Barrès falou: “Enfie-o no buraco que
você tem no rosto.” O soldado respondeu: “Vou enfiá-lo no seu cu.” E pusemos
Maurice Barrès de bruços e tiramos suas calças. Por baixo ele tinha uma veste
vermelha de cardeal. Levantamos a veste e Maurice Barrès começou a gritar.
“Cuidado, minhas calças são de presilhas.” Mas nós o açoitamos até que
sangrasse e desenhamos em seu traseiro, com pétalas de violeta, a cara de
Déroulède.
De uns tempos para cá, lembro-me com frequência de meus sonhos. Aliás,
devo me agitar muito durante o sono, porque todas as manhãs encontro minhas
cobertas no chão. Hoje é terça-feira de carnaval, mas em Bouville isso pouco
significa; quando muito há em toda a cidade umas cem pessoas que se fantasiam.
No que descia a escada, a patroa me chamou: “Há uma carta para o senhor.”
Uma carta: a última que recebi foi do administrador da biblioteca de Rouen
no último mês de maio. A patroa me leva até seu escritório; estende-me um
envelope amarelo comprido e grosso: Anny me escreveu. Há cinco anos não
tinha notícias dela. A carta foi me procurar em meu antigo domicílio de Paris; a
data do carimbo é 1º de fevereiro.
Saio; estou com o envelope na mão, não me atrevo a abri-lo; Anny não
mudou seu papel de cartas; pergunto-me se continua a comprá-lo na pequena
papelaria de Piccadilly. Imagino que conserva o mesmo penteado, os bastos
cabelos louros que não queria cortar. Deve lutar pacientemente diante dos
espelhos para salvar seu rosto: não se trata de vaidade nem de medo de
envelhecer; ela deseja se manter como é, exatamente como é. Talvez fosse isso o
que eu preferia nela: essa fidelidade intensa e severa ao menor traço de sua
imagem.
A letra firme do endereço, escrita com tinta roxa (ela também não mudou de
tinta), ainda brilha um pouco.
Senhor Antoine Roquentin

Como gosto de ler meu nome num envelope! Numa espécie de bruma revi um
daqueles sorrisos, adivinhei seus olhos, sua cabeça inclinada: quando estava
sentado, ela se postava à minha frente sorrindo, me tomava pelos ombros e me
sacudia estendendo os braços.
O envelope é pesado, deve conter pelo menos seis páginas. Por sobre essa
letra bonita veem-se os garranchos de minha antiga porteira:

Hotel Printania — Bouville.

Essas letras não têm brilho.


Quando abro a carta, minha desilusão me rejuvenesce seis anos:
“Não sei como Anny consegue inflar assim seus envelopes: nunca há nada
dentro.”
Disse essa frase cem vezes na primavera de 1924, lutando, como hoje, para
extrair do forro do envelope um pedaço de papel quadriculado. O forro é um
esplendor: verde-escuro com estrelas de ouro; dir-se-ia um tecido pesado
engomado. Por si só toma três quartos do peso do envelope.
Anny escreveu a lápis:
“Passarei por Paris dentro de alguns dias. Venha me ver no hotel d’Espagne,
no dia 20 de fevereiro. Por favor (o ‘por favor’ foi acrescentado por cima da
linha e juntado ao ‘me ver’ por uma curiosa espiral). Preciso vê-lo. Anny.”
Em Meknès, em Tânger, quando voltava para casa à noite, encontrava às
vezes um bilhete sobre minha cama: “Quero vê-lo imediatamente.” Ia ter com
Anny correndo, ela abria a porta, as sobrancelhas levantadas num ar de espanto:
não tinha mais nada a me dizer; ficava com um pouco de raiva de mim por ter
vindo. Irei; ela talvez não queira me receber. Ou então me dirão na portaria do
hotel: “Ninguém com esse nome se hospedou aqui.” Não creio que ela fizesse
isso. Mas pode me escrever dentro de oito dias dizendo que mudou de ideia e
que fica para outra vez.
As pessoas estão em seu trabalho. Anuncia-se uma terça-feira de carnaval
bem sem graça. A rua dos Mutilés está com um cheiro forte de madeira úmida,
como todas as vezes que vai chover. Não gosto desses dias excepcionais: há
matinês nos cinemas, é feriado para as crianças das escolas; há nas ruas um vago
ar de festa que não cessa de solicitar a atenção e se dissipa tão logo atentamos
nele.
Sem dúvida reverei Anny, mas não posso dizer que essa ideia me torne
exatamente alegre. Desde que recebi sua carta, me sinto ocioso. Felizmente é
meio-dia; não estou com fome, mas vou comer para passar o tempo. Entro no
Camille, na rua dos Horlogers.
É um lugar muito tranquilo; serve-se, durante toda a noite, chucrute e
cassoulet. À saída do teatro as pessoas vêm cear aqui; os policiais encaminham
para cá os viajantes que chegam de noite e estão com fome. Oito mesas de
mármore. Um banco de couro acompanha a parede. Dois espelhos carcomidos
por manchas avermelhadas. As duas janelas e a porta são envidraçadas. O balcão
fica numa reentrância. Há também um cômodo de um lado. Mas nunca entrei lá;
é para os casais.
— Traga-me uma omelete de presunto.
A empregada, uma moça grandalhona de faces coradas, sempre ri quando
fala com um homem.
— Desculpe. Quer uma omelete de batatas? O presunto ainda não foi aberto:
só quem o corta é o patrão.
Peço um cassoulet. O patrão se chama Camille e é intratável.
A empregada se vai. Fico sozinho na velha sala escura. Em minha carteira há
uma carta de Anny. Uma falsa vergonha me impede de relê-la. Tento me lembrar
das frases uma a uma.
Meu querido Antoine

Sorrio: claro que não, claro que Anny não escreveu “meu querido Antoine”.
Há seis anos — acabávamos de nos separar de comum acordo — decidi
partir para Tóquio. Escrevi-lhe um bilhete. Já não podia chamá-la de “meu amor
querido”; comecei, muito inocentemente, por “minha querida Anny”.
“Admira-me o seu desembaraço” — respondeu-me ela —; “nunca fui e não
sou sua querida Anny. E quanto a você, peço-lhe que acredite que não é meu
querido Antoine. Se não sabe como me chamar, seria melhor que não me
chamasse de nada”.
Pego sua carta em minha carteira. Ela não escreveu “meu querido Antoine”.
No fim da carta não há também nenhuma fórmula de cortesia: “Preciso vê-lo.
Anny.” Nada que possa me informar sobre seus sentimentos. Não posso me
queixar: reconheço nisso seu amor pelo perfeito. Ela sempre queria realizar
“momentos perfeitos”. Se o instante não se prestava para isso, se desinteressava
de tudo, a vida desaparecia de seus olhos, ela se arrastava preguiçosamente como
uma meninona na idade ingrata. Ou então provocava uma discussão:
“Você se assoa como um burguês, solenemente, e tosse em seu lenço com
satisfação.”
Era preciso não responder, era preciso esperar: de repente, a algum sinal que
me escapava, ela estremecia, endurecia suas belas feições lânguidas e começava
seu trabalho de formiga. Tinha uma magia imperiosa e encantadora; cantarolava
entre dentes olhando para todos os lados, depois se endireitava com um sorriso,
vinha me sacudir os ombros, e, durante alguns instantes, parecia estar dando
ordens aos objetos que a rodeavam. Explicava-me, em voz baixa e rápida, o que
esperava de mim.
“Escute, você está disposto a fazer um esforço, não é? Foi tão tolo da última
vez. Vê como esse momento poderia ser belo? Olhe o céu, olhe a cor do sol no
tapete. Botei justamente o vestido verde e não estou pintada, estou pálida.
Chegue para trás, vá se sentar na sombra; entende o que tem que fazer? Então?
Como você é tolo! Fale comigo.”
Eu sentia que o êxito do que se empreendia estava em minhas mãos: o
instante tinha um sentido obscuro que era preciso elucidar e completar:
determinados gestos tinham que ser feitos, determinadas palavras pronunciadas:
o peso de minha responsabilidade me esmagava, eu arregalava os olhos e não via
nada, debatia-me em meio aos ritos que Anny inventava na hora e esgarçava-os
com meus grandes braços como teias de aranha. Nesses momentos ela me
odiava.
Irei vê-la certamente. Estimo-a e ainda gosto dela do fundo do coração.
Desejo que outro tenha tido mais sorte e mais habilidade no jogo dos momentos
perfeitos.
“Seus malditos cabelos estragam tudo”, dizia ela. “Que se pode fazer com
um homem ruivo?”
Ela sorria. Perdi primeiro a lembrança de seus olhos, depois a do seu corpo
esguio. Guardei, o mais que pude, seu sorriso, e finalmente, há três anos, perdi-o
também. Ainda agora, bruscamente, no que pegava a carta das mãos da patroa,
ele retornou; julguei ver Anny sorrindo. Tento lembrá-lo novamente: preciso
sentir toda a ternura que Anny me inspira; essa ternura está presente, está bem
perto, pedindo para nascer. Mas o sorriso não retorna: terminou. Permaneço
vazio e seco.
Entrou um homem, friorento.
— Bom dia a todos.
Senta-se sem tirar o sobretudo esverdeado. Esfrega as mãos compridas
entrelaçando os dedos.
— O que vou lhe servir?
Ele estremeceu, os olhos inquietos.
— Hem? Traga-me um Byrrh com água.
A empregada nem se mexe. Seu rosto no espelho parece dormir. Na verdade,
os olhos estão abertos, mas são apenas duas fendas. Ela é assim, não tem pressa
em servir os fregueses, fica sempre um momento como que abstraída, pensando
no que pediram. Deve estar pensando na garrafa que vai pegar em cima do
balcão, no rótulo branco com letras vermelhas, no espesso xarope preto que vai
servir: é um pouco como se ela própria bebesse.
Enfio a carta de Anny em minha carteira: ela me deu o que podia; não posso
remontar à mulher que a teve nas mãos, dobrou-a, colocou-a no envelope. Será
possível pensar em alguém no passado? Enquanto nos amamos, não permitimos
que o mais ínfimo de nossos instantes, a mais leve de nossas dores se
desligassem de nós e ficassem para trás. Os sons, os odores, os matizes do dia,
até os pensamentos que não nos dissemos, tudo isso nos acompanhava e tudo
permanecia vivo: não cessávamos de desfrutá-los ou de sofrer por eles no
presente. Nenhuma lembrança; um amor implacável e tórrido, sem sombras, sem
recuo, sem refúgio. Três anos presentes ao mesmo tempo. Foi por isso que nos
separamos: já não tínhamos forças suficientes para suportar esse fardo. E então,
quando Anny me deixou, de repente, de uma só vez, os três anos, como um todo,
desmoronaram no passado. Sequer sofri: me sentia vazio. Depois o tempo
recomeçou a passar e o vazio aumentou. A seguir, em Saigon, quando decidi
regressar à França, tudo que ainda permanecia — rostos estranhos, praças, cais à
beira de longos rios —, tudo se aniquilou. E aí está: meu passado é apenas um
enorme buraco. Meu presente: essa empregada de corpete preto entregue a seus
devaneios perto do balcão, esse homenzinho. Parece-me que tudo o que sei de
minha vida foi aprendido nos livros. Os palácios de Benares, o terraço do Rei
Leproso, os templos de Java com suas grandes escadarias quebradas, refletiram-
se um instante em meus olhos, mas ficaram lá longe, onde estavam. O bonde que
passa em frente ao hotel Printania não leva consigo à noite, no vidro de suas
janelas, o reflexo do anúncio em néon; inflama-se um instante e se afasta com as
vidraças negras.
Esse homem não para de me olhar: me incomoda. Faz-se de muito
importante para o tamanho que tem. A empregada se decide finalmente a servi-
lo. Ergue preguiçosamente seu grande braço escuro, pega a garrafa e a traz com
um copo.
— Aqui está, senhor.
— Sr. Achille — diz ele com civilidade.
Ela serve sem responder; de repente ele retira rápido o dedo do nariz e
espalma as duas mãos na mesa. Inclina a cabeça para trás e seus olhos brilham.
Diz com voz fria:
— Pobre moça.
A empregada estremece e eu também: há nele uma expressão indefinível,
talvez de espanto, como se fosse outra pessoa que tivesse acabado de falar. Os
três estamos constrangidos.
A empregada gorda é a primeira a recuperar a presença de espírito: não tem
imaginação. Olha o sr. Achille de alto a baixo, com dignidade: ela sabe
perfeitamente que com uma só mão poderia arrancá-lo de seu lugar e botá-lo
para fora.
— E por que seria eu uma pobre moça?
Ele hesita. Olha para ela, embaraçado, depois ri. Seu rosto se franze em mil
rugas, ele faz pequenos gestos com os punhos.
— Isso a ofendeu. É algo que se diz por dizer. Diz-se: pobre moça. Não é por
mal.
Mas ela lhe vira as costas e vai para trás do balcão: está realmente ofendida.
Ele ri novamente.
— Ha, ha! Saiu sem querer. Está zangada? Ela está zangada — diz,
dirigindo-se vagamente a mim.
Desvio a cabeça. O homem ergue um pouco o copo, mas não se decide a
beber: pisca os olhos com ar surpreso e intimidado; parece que está procurando
se lembrar de algo. A empregada sentou-se na caixa; pega uma costura. Tudo
retornou ao silêncio: mas já não é o mesmo silêncio. Começou a chover: a água
bate de leve nas vidraças; se ainda houver crianças fantasiadas nas ruas, a chuva
vai amolecer e borrar suas máscaras de papelão.
A empregada acende a luz; são somente duas horas, mas o céu está
inteiramente escuro e já não há claridade suficiente para costurar. Suave luz; as
pessoas estão em casa, certamente também acenderam as suas. Leem, olham o
céu através da janela. Para eles... é outra coisa. Envelheceram diferentemente.
Vivem no meio de legados, de presentes, e cada um de seus móveis é uma
recordação. Relógios de sala, medalhas, retratos, conchas, pesos de papel,
biombos, xales. Têm armários cheios de garrafas, de tecidos, de velhas roupas,
de jornais; guardaram tudo. O passado é um luxo de proprietários.
Onde poderia eu conservar o meu? Não se pode colocar o passado no bolso;
preciso ter uma casa, arrumá-lo nela. Só possuo meu corpo; um homem
inteiramente sozinho, só com seu corpo, não pode reter as lembranças; elas
passam através dele. Não deveria me queixar: tudo o que quis foi ser livre.
O homenzinho se agita e suspira. Está enroscado em seu casaco, mas de
quando em quando se endireita e assume um ar altivo. Tampouco tem ele um
passado. Procurando bem, certamente se encontraria, em casa de primos que já
não o frequentam, uma fotografa dele num casamento, com colarinho de pontas
viradas, camisa de peitilho e bigodes esticados de rapaz. De mim creio que não
resta nem isso.
Ele ainda olha para mim. Dessa vez vai falar comigo, me sinto enrijecer. Não
é simpatia o que há entre nós: somos parecidos, só isso. Ele está só como eu,
porém mais enterrado na sua solidão do que eu. Deve estar à espera de sua
Náusea ou algo no gênero. Há agora, portanto, pessoas que me reconhecem, que
pensam, depois que me encararam: “Esse é dos nossos.” E então? O que ele
quer? Deve saber que nada podemos fazer um pelo outro. As famílias estão em
suas casas, em meio às suas recordações. E nós aqui, dois destroços sem
memória. Se ele se levantasse de repente, se me dirigisse a palavra, eu daria um
pulo.
A porta se abre com estrépito: é o dr. Rogé.
— Bom dia a todos.
Entra, arisco e desconfiado, vacilando um pouco sobre as pernas compridas
que mal conseguem sustentar seu torso. Vejo-o com frequência, aos domingos,
na Brasserie Vézelize, mas ele não me conhece. Tem o físico dos antigos
instrutores de Joinville: braços que parecem coxas, 110 centímetros de tórax, e
não se aguenta em pé.
— Jeanne! Jeanne!
Caminha a passos miúdos e rápidos até o cabide para pendurar o chapelão de
feltro. A empregada dobrou sua costura e vem sem pressa, dormindo, tirar o
doutor de seu impermeável.
— O que vai tomar, doutor?
Ele a examina gravemente. Eis o que chamo um belo rosto de homem. Gasto,
vincado pela vida e pelas paixões. Mas o doutor compreendeu a vida, dominou
suas paixões.
— Não tenho a menor ideia do que vou querer — diz com voz profunda.
Deixou-se cair no banco em frente a mim; enxuga a testa. Quando já não está
apoiado em suas pernas, sente-se mais à vontade. Seus olhos intimidam, uns
grandes olhos pretos e imperiosos.
— Vai ser... Vai ser, vai ser, vai ser... um Calvados, minha filha.
A empregada, sem fazer um movimento, contempla aquele enorme rosto
enrugado. Está pensativa. O homenzinho ergueu a cabeça com um sorriso
aliviado. E é verdade: esse colosso nos libertou. Havia aqui algo de horrível que
ia se apoderar de nós. Respiro com força: agora estamos entre homens.
— Então, esse Calvados vem ou não vem?
A empregada estremece e vai embora. Ele estendeu os braços grandes,
agarrando a mesa pelas bordas. O sr. Achille está todo contente; ele gostaria de
chamar a atenção do doutor. Mas, por mais que balance as pernas e pule no
banco, é tão miúdo que não faz barulho.
A empregada traz o Calvados. Com um movimento de cabeça mostra ao
doutor seu vizinho. O dr. Rogé gira o busto com lentidão: não pode mexer o
pescoço.
— Ora vejam, é você, velho imundo — grita ele. — Então não morreu?
Dirige-se à empregada:
— Recebe isso em sua casa?
Olha para o homenzinho com seus olhos ferozes. Um olhar direto, que põe as
coisas em seu devido lugar. Explica:
— Um velho maluco, é isso que ele é.
Nem sequer se dá ao trabalho de mostrar que está brincando. Sabe que o
velho maluco não se zangará, que vai sorrir. E é o que ocorre: o outro sorri com
humildade. Um velho maluco: ele se descontrai, se sente protegido contra si
próprio; nada lhe acontecerá hoje. O curioso é que também eu me tranquilizo.
Um velho maluco: então era isso, era só isso.
O doutor ri, me lança um olhar insinuante e cúmplice: certamente por causa
de meu tamanho — e também porque estou com uma camisa limpa — consente
em me associar à sua brincadeira.
Não rio, não respondo às suas investidas: então, sem deixar de rir, ele dardeja
sobre mim o fogo terrível de suas pupilas. Examinamo-nos em silêncio durante
alguns segundos; ele me olha de alto a baixo, se fazendo de míope, me classifica.
Na categoria dos malucos? Na dos vagabundos?
Apesar de tudo, é ele quem desvia a cabeça: um pequeno fraquejo diante de
um sujeito sozinho, sem importância social, nem merece ser comentado, se
esquece logo. Enrola um cigarro e o acende, depois permanece imóvel com os
olhos duros e fixos, como fazem os velhos.
Que belas rugas! Ele as tem todas: os riscos transversais na testa, os pés de
galinha, os vincos amargos de cada lado da boca, sem mencionar os cordões
amarelos que pendem sob seu queixo. Eis um homem de sorte: mesmo vendo-o a
distância, dizemo-nos que deve ter sofrido e que é alguém que viveu. Aliás,
merece o rosto que tem, porque nem por um instante se iludiu quanto à maneira
de reter e utilizar seu passado: simplesmente empalhou-o, converteu-o em
experiência para uso das mulheres e dos jovens.
O sr. Achille está feliz como certamente não deve ter se sentido há muito
tempo. Está boquiaberto de admiração; bebe seu Byrrh em pequenos goles,
inflando as bochechas. Muito bem, o doutor soube levá-lo. Não seria o doutor
que se deixaria fascinar por um velho maluco, a ponto de ter sua crise; um bom
empurrão, algumas palavras bruscas e fustigantes: é disso que precisam. O
doutor tem experiência. É um profissional da experiência: os médicos, os padres,
os magistrados e os oficiais conhecem o homem como se o tivessem feito.
Sinto vergonha pelo sr. Achille. Somos da mesma espécie, deveríamos nos
unir contra eles. Mas ele me abandonou, passou para o lado deles: acredita
honestamente na Experiência. Não na sua, nem na minha. Na do dr. Rogé. Ainda
agora o sr. Achille se sentia estranho, tinha a impressão de estar inteiramente
sozinho; agora sabe que houve outros como ele, muitos outros: o dr. Rogé os
conheceu, poderia contar ao sr. Achille a história de cada um deles e lhe dizer
como terminou. O sr. Achille é simplesmente um caso — e que se deixa reduzir
com facilidade a algumas noções comuns.
Como gostaria de lhe dizer que o enganam, que ele faz o jogo dos
importantes. Profissionais da experiência? Arrastaram suas vidas num torpor,
meio adormecidos, se casaram precipitadamente, por impaciência, e fizeram
filhos ao acaso. Encontraram os outros homens nos cafés, nos casamentos, nos
enterros. De quando em quando, apanhados num rodamoinho, se debateram sem
compreender o que lhes acontecia. Tudo que ocorreu à sua volta começou e
terminou fora de sua vista; longas formas obscuras, acontecimentos que vinham
de longe roçaram-nos rapidamente e, quando eles quiseram olhar, tudo já
terminara. E depois, por volta dos quarenta anos, batizam suas pequenas
obstinações e alguns provérbios com o nome de experiência, começam a se fazer
de distribuidores automáticos: dois níqueis na fenda da esquerda e eis que saem
anedotas embrulhadas em papel prateado; dois níqueis na fenda da direita e
recebem-se preciosos conselhos que grudam nos dentes como caramelos
pegajosos. Também eu, por esse mesmo processo, poderia ser convidado pelas
pessoas e estas se diriam, entre elas, que sou um grande viajante diante do
Eterno. Sim: os muçulmanos mijam de cócoras; as parteiras hindus utilizam, à
guisa de ergotina, vidro moído na bosta de vaca; em Bornéu, quando uma moça
menstrua, passa três dias e três noites em cima do telhado da sua casa. Vi em
Veneza enterros em gôndola, em Sevilha as festas da Semana Santa, vi a Paixão
de Oberammergau. Naturalmente tudo isso é apenas uma pequena amostra de
meu saber: poderia me recostar numa cadeira e começar entretidamente:
— Conhece Jihlava, prezada senhora? É uma curiosa cidadezinha da
Morávia onde passei uma temporada em 1924...
E o presidente do tribunal que presenciou tantos casos tomaria a palavra no
fim de minha história:
— Como isso é verdadeiro, caro senhor, como é humano! Vi um caso
semelhante no início de minha carreira. Foi em 1902. Eu era juiz-substituto em
Limoges...
Mas sucede que me aborreceram demais com esse tipo de coisa em minha
juventude. No entanto eu não pertencia a uma família de profissionais. Mas
existem também os amadores. São os secretários, os empregados de escritórios,
os comerciantes, os que ouvem os outros no café: sentem-se inflados, ao se
aproximar dos quarenta anos, por uma experiência a que não podem dar vazão.
Felizmente fizeram filhos e obrigam-nos a consumi-la ali mesmo. Gostariam de
nos fazer crer que o passado deles não se perdeu, que suas recordações se
condensaram, convertendo-se suavemente em Sabedoria. Cômodo passado!
Passado de bolso, livreto dourado cheio de belas máximas. “Acredite-me, estou
falando por experiência, tudo o que sei foi a vida que me ensinou.” Teria a Vida
se encarregado de pensar por eles? Explicam o novo pelo antigo — e o antigo,
eles o explicaram pelos acontecimentos mais antigos ainda, como esses
historiadores que fazem de Lenin um Robespierre russo e de Robespierre um
Cromwell francês: no fim das contas, nunca entenderam nada de nada... Por trás
de sua importância adivinha-se uma preguiça melancólica: veem desfilar
aparências, bocejam, acham que não há nada de novo sob o sol. “Um velho
maluco” — e o dr. Rogé pensava vagamente em outros velhos malucos, sem se
lembrar de nenhum em particular. Agora, nada do que o sr. Achille fizesse nos
surpreenderia: já que é um velho maluco!
Não é um velho maluco: tem medo. De que tem medo? Quando queremos
compreender alguma coisa, colocamo-nos diante dela, sozinhos, sem auxílio;
todo o passado do mundo de nada adiantaria. E depois ela desaparece e o que
pudemos compreender desaparece com ela.
As ideias gerais são mais agradáveis. Depois os profissionais, e até os
amadores, sempre acabam tendo razão. Sua sabedoria recomenda que chamemos
o mínimo de atenção, que vivamos o mínimo possível, que nos deixemos
esquecer. Suas melhores histórias se referem a imprudentes, a tipos originais que
foram castigados. Pois muito bem: é assim que as coisas se passam e ninguém
pode negá-lo. Talvez o sr. Achille não tenha a consciência muito tranquila.
Talvez diga a si mesmo que não estaria como está se tivesse ouvido os conselhos
de seu pai e de sua irmã mais velha. O doutor tem o direito de falar: não falhou
na vida; soube se tornar útil. Sobreleva-se, calmo e poderoso, a esse pequeno
destroço; é um rochedo.
O dr. Rogé bebeu seu Calvados. Seu corpo grande relaxa e suas pálpebras
caem pesadamente. Pela primeira vez vejo seu rosto sem os olhos: dir-se-ia uma
máscara de papelão como as que se vendem hoje nas lojas. Suas faces têm uma
terrível cor rosada... A verdade me surge bruscamente: esse homem vai morrer
dentro em breve. Certamente sabe disso, basta que se tenha olhado num espelho:
a cada dia se parece um pouco mais com o cadáver que se tornará. Eis o que é a
experiência deles, eis por que disse a mim mesmo, tantas vezes, que ela cheira a
morte: trata-se de sua última defesa. O doutor bem gostaria de acreditar nela,
gostaria de esconder de si mesmo a realidade insustentável: que ele está sozinho,
sem cabedal, sem passado, com uma inteligência que se embota, um corpo que
se desfaz. Então ele construiu muito bem, arrumou muito bem, acolchoou muito
bem seu pequeno delírio compensatório: diz a si mesmo que vai progredindo.
Tem lapsos de pensamento, momentos em que sua cabeça fica oca? É que seu
julgamento já não tem a precipitação da juventude. Já não compreende o que lê
nos livros? É que está tão afastado dos livros agora. Já não pode fazer amor?
Mas fez amor. Ter feito amor é muito melhor do que fazê-lo ainda: com a
distância, julga-se, compara-se e reflete-se. E quanto a esse terrível rosto de
cadáver, para poder suportar sua imagem nos espelhos, esforça-se para acreditar
que as lições da experiência estão gravadas nele.
O doutor vira um pouco a cabeça. Suas pálpebras se entreabrem, ele me olha
com olhos avermelhados de sono. Sorrio-lhe. Gostaria que esse sorriso lhe
revelasse tudo o que tenta esconder de si mesmo. Ele despertaria se se pudesse
dizer: “Eis aí alguém que sabe que vou morrer!” Mas suas pálpebras tornam a
baixar: ele adormece. Vou embora, deixo o sr. Achille a velar o sono do doutor.
A chuva parou, está um ar agradável, o céu faz girar lentamente belas
imagens negras: é mais do que o suficiente para o quadro de um momento
perfeito; para refletir essas imagens, Anny faria com que surgissem em nossos
corações pequenas marés sombrias. Mas não sei aproveitar a ocasião: vou ao
acaso, vazio e calmo, sob esse céu inutilizado.

Quarta-feira
É preciso não sentir medo.

Quinta-feira
Escrevi quatro páginas. A seguir um longo momento de felicidade. Não refletir
muito sobre o valor da História. Corre-se o risco de perder o gosto por ela. Não
esquecer que o sr. de Rollebon representa hoje em dia a única justificativa de
minha existência.
Daqui a oito dias vou ver Anny.

Sexta-feira
O nevoeiro está tão denso no bulevar da Redoute que achei prudente caminhar
rente aos muros do quartel; à minha direita, os faróis dos automóveis projetavam
uma luz molhada e era impossível saber onde terminava a calçada. Havia gente à
minha volta; ouvia o ruído de seus passos, ou às vezes o leve zumbido de suas
palavras: mas não via ninguém. Uma vez um rosto de mulher se delineou à
altura de meu ombro, mas logo a bruma o engoliu; outra vez alguém me roçou
arfando muito. Eu não sabia para onde ia, estava muito absorto: era preciso
avançar com precaução, tatear o chão com a ponta do pé e até estender as mãos
para a frente. Esse exercício, aliás, não me proporcionava prazer algum. No
entanto não pensava em voltar para casa, estava como que seduzido. Finalmente,
depois de uma meia hora vislumbrei ao longe uma névoa azulada. Guiando-me
por ela, alcancei logo a borda de um grande clarão: no centro deste, traspassando
a bruma com suas luzes, reconheci o café Mably.
O café Mably tem 12 lâmpadas elétricas; mas só duas estavam acesas, uma
sobre a caixa, outra na luminária do teto. O único garçom me empurrou à força
para um canto escuro.
— Aqui não, senhor, estou limpando.
Estava de casaco, sem colete nem colarinho postiço, com uma camisa branca
de listras roxas. Bocejava e me olhava com ar aborrecido, passando os dedos
pelo cabelo.
— Um café e croissants.
Esfregou os olhos sem responder e se afastou. Eu estava mergulhado até os
olhos na sombra, uma desagradável sombra glacial. O radiador certamente não
estava ligado.
Não estava só. Em frente a mim estava sentada uma mulher de tez cor de
cera que não parava de agitar as mãos, ora para alisar a blusa, ora para compor o
chapéu preto. Estava acompanhada de um louro alto que comia um brioche sem
dizer palavra. O silêncio me pareceu pesado. Sentia vontade de acender meu
cachimbo, mas me seria desagradável chamar a atenção deles riscando um
fósforo.
O telefone tocou. As mãos se detiveram: ficaram agarradas na blusa. O
garçom não se apressava. Acabou de varrer calmamente antes de levantar o fone.
“Alô, é o sr. Georges? Bom dia, sr. Georges... Sim, sr. Georges... O patrão não
está aqui... Sim, já devia ter descido... Ah! Com esse nevoeiro... Normalmente
desce por volta das oito... Sim, sr. Georges, darei o recado. Até logo, sr.
Georges.”
O nevoeiro se adensava sobre os vidros como uma pesada cortina de veludo
cinza. Um rosto colou-se por um instante na vidraça e desapareceu.
A mulher disse com voz queixosa:
— Amarre meu sapato.
— Não está desamarrado — disse o homem sem olhar. Ela se enervou. Suas
mãos percorriam sua blusa e seu pescoço como se fossem grandes aranhas.
— Está sim, amarre meu sapato.
Ele se abaixou com ar irritado e lhe tocou levemente no pé por baixo da
mesa:
— Pronto.
Ela sorriu satisfeita. O homem chamou o garçom.
— Garçom, quanto é?
— Quantos brioches? — disse o garçom.
Eu baixara os olhos para não parecer que estava observando-os. Após alguns
instantes ouvi rangidos e vi surgir a fímbria de uma saia e duas botinhas
maculadas de lama seca. Seguiram-se as do homem, envernizadas e bicudas.
Avançaram para mim, se imobilizaram e deram meia-volta: ele estava colocando
o sobretudo. Nesse momento, uma mão começou a descer ao longo da saia, uma
mão na ponta de um braço rígido; hesitou um pouco, roçava a saia com as unhas.
— Está pronta? — perguntou o homem.
A mão se abriu, veio tocar uma grande estrela de lama na botinha direita,
depois desapareceu.
— Ufa! — disse o homem.
Tinha pegado uma valise que estava perto do cabide de pé. Saíram, vi-os
penetrar no nevoeiro.
— São artistas — diz o garçom, trazendo meu café. — Foram eles que
fizeram o número de entreato no Cine Palace. A mulher venda os olhos e lê o
nome e a idade dos espectadores. Vão embora hoje, porque é sexta-feira e os
programas mudam.
Foi buscar um prato de croissants na mesa que os artistas tinham ocupado.
— Não é preciso.
Não tinha a menor vontade de comer aqueles croissants.
— Tenho que apagar a luz. Duas lâmpadas para um único freguês às nove da
manhã: o patrão brigaria comigo.
A penumbra invadiu o café. Uma leve claridade, manchada de cinza e
marrom, descia agora dos vidros altos.
— Gostaria de falar com o sr. Fasquelle.
Não vira entrar aquela velha. Uma lufada de ar gelado me arrepiou.
— O sr. Fasquelle ainda não desceu.
— Venho da parte da sra. Florent — retorquiu ela. — A sra. Florent não está
passando bem. Não virá hoje.
A sra. Florent é a empregada da caixa, a ruiva.
— Esse tempo é ruim para a barriga dela — diz a velha.
O garçom tomou um ar importante:
— É o nevoeiro — responde —, é como o sr. Fasquelle; espanta-me que não
tenha descido. Telefonaram para ele. Normalmente desce às oito horas.
A velha olha maquinalmente para o teto.
— Está lá em cima?
— Sim, seu quarto é lá.
A velha diz com voz arrastada, como se falasse consigo mesma:
— E se tivesse morrido...
— Essa agora — o rosto do garçom exprimiu a mais viva indignação. —
Essa agora, muito obrigado!
E se tivesse morrido... Esse pensamento me ocorrera. É bem o tipo de ideia
que o tempo de nevoeiro estimula.
A velha se foi. Deveria tê-la imitado: estava frio e escuro. O nevoeiro
infiltrava-se por debaixo da porta, ia subir lentamente e afogar tudo. Na
biblioteca municipal eu teria encontrado luz e calor.
Novamente um rosto gruda no vidro; estava fazendo caretas.
— Espere aí — diz o garçom furioso e sai correndo.
O rosto desapareceu, fiquei sozinho. Arrependi-me amargamente de não ter
ficado em meu quarto. Agora a bruma certamente o invadiu; sentiria medo de
voltar para lá.
Por trás da caixa, no escuro, algo estalou. Um ruído que vinha da escada
particular; teria o patrão descido finalmente? Mas não: não apareceu ninguém;
os degraus estalavam por si sós. O sr. Fasquelle ainda dormia. Ou então estava
morto por cima de minha cabeça. Encontrado morto na cama, numa manhã de
neblina. Subtítulo: No café os fregueses tomavam suas bebidas sem suspeitar de
nada...
Mas estaria ainda na cama? Não teria caído, levando consigo os lençóis e
batendo com a cabeça no chão?
Conheço muito bem o sr. Fasquelle; algumas vezes perguntou por minha
saúde. É um gorducho alegre, com uma barba muito cuidada: se morreu, só pode
ter sido de um ataque. Estará roxo, com a língua de fora. A barba eriçada; o
pescoço violáceo sob os pelos encrespados.
A escada particular se perdia na escuridão. Mal se distinguia o corrimão. Era
preciso atravessar essa escuridão. A escada rangeria. Lá em cima encontraria a
porta do quarto...
O corpo ali está, por cima de minha cabeça. Acenderia a luz: tocaria aquela
pele morna, para ver. Não aguento mais, levanto-me. Se o garçom me pega na
escada, direi que ouvi um barulho.
O garçom retornou bruscamente, esbaforido.
— Sim, senhor! — gritou.
Que imbecil! Dirige-se a mim.
— São dois francos.
— Ouvi barulho lá em cima — digo.
— Não é tão cedo assim.
— Sim, mas acho que há algo errado: como se fosse um estertor e depois um
ruído surdo.
Nessa sala escura, com o nevoeiro por trás das janelas, aquilo parecia muito
natural. Nunca esquecerei seu olhar.
— Deveria subir para ver — acrescentei maldosamente.
— Ah, não — disse ele.
E depois:
— Ele pode me repreender. Que horas são?
— Dez horas.
— Se ele não tiver descido, irei lá às dez e meia.
Fiz menção de ir embora.
— O senhor já vai? Não fica mais um pouco?
— Não.
— Era realmente um estertor?
— Não sei — digo-lhe já saindo —, talvez tenha sido imaginação minha.
O nevoeiro se dissipara um pouco. Apressava-me em chegar à rua
Tournebride: tinha necessidade de suas luzes. Foi uma decepção: havia luz
realmente, banhando as vitrines das lojas. Mas já não era uma luz alegre: estava
tudo branco por causa do nevoeiro e aquela luz nos caía sobre os ombros como
uma ducha.
Muita gente, sobretudo mulheres: empregadas, faxineiras, patroas também,
daquelas que dizem: “Eu mesma faço as compras, é mais seguro.” Farejavam um
pouco as vitrines e acabavam entrando.
Parei em frente à Charcuteria Julien. De quando em quando, via através do
vidro uma mão que apontava para as linguiças e os pés de porco trufados. Então
uma moça loura e corpulenta se inclinava, o peito descoberto, e pegava com seus
dedos o pedaço de carne morta. Em seu quarto, a cinco minutos dali, o sr.
Fasquelle estava morto.
Procurava ao meu redor um apoio sólido, uma defesa contra os meus
pensamentos. Não havia nenhuma: pouco a pouco o nevoeiro se dissolvera, mas
alguma coisa de inquietante permanecia na rua. Talvez não se tratasse de uma
verdadeira ameaça: era algo apagado, transparente. Mas era exatamente isso que
acabava dando medo. Apoiei minha testa na vitrine. Vi sobre a maionese de um
ovo à russa uma gota de um vermelho escuro: era sangue. O vermelho sobre o
amarelo me embrulhava o estômago.
Bruscamente tive uma visão: alguém tinha caído de cara e sangrava sobre os
pratos. O ovo rolara no sangue; a rodela de tomate que o coroava se soltara,
caíra, vermelho sobre vermelho. A maionese escorrera um pouco: um charco de
creme que dividia o rego de sangue em dois braços.
— É tolo demais, tenho que reagir. Vou trabalhar na biblioteca.
Trabalhar? Bem sabia que não escreveria uma linha. Mais um dia perdido.
Ao atravessar o jardim público vi uma grande pelerine azul, imóvel, no banco
em que me sento geralmente. Aí está um que não sente frio.
Quando entrei na sala de leitura, o Autodidata estava saindo. Precipitou-se
sobre mim.
— Tenho que lhe agradecer, senhor. Suas fotografias me proporcionaram
horas inesquecíveis.
Ao vê-lo, tive um momento de esperança: a dois talvez fosse mais fácil
atravessar o dia. Mas com o Autodidata só aparentemente se está a dois.
Ele bateu num in-quarto. Era uma história das religiões.
— Senhor, ninguém estava mais qualificado do que Nouçapié para tentar
essa vasta síntese. Isso é verdade?
Parecia cansado e suas mãos tremiam:
— O senhor não está com bom aspecto — disse-lhe.
— Ah, senhor, não é de admirar! É que me aconteceu uma coisa abominável.
O guarda vinha em nossa direção: um corso baixinho, irascível, com bigodes
de tambor-mor. Passeia horas inteiras entre as mesas, batendo os calcanhares. No
inverno cospe nos lenços que depois põe para secar no calefator.
O Autodidata se aproximou tanto que sentia em meu rosto o sopro de sua
respiração:
— Não lhe direi nada diante desse homem — disse em tom confidencial. —
Se o senhor quisesse...
— O quê?
Enrubesceu e suas ancas ondularam graciosamente:
— Ah, senhor! Estou me precipitando. Aceitaria almoçar comigo na quarta-
feira?
— Com muito prazer.
Tinha tanta vontade de almoçar com ele quanto de me enforcar.
— Fico muito feliz — disse o Autodidata.
Acrescentou rapidamente:
— Irei buscá-lo se quiser.
E desapareceu, certamente com medo de que eu mudasse de opinião se me
desse tempo.
Eram onze e meia. Trabalhei até quinze para as duas. Trabalho medíocre:
estava com um livro à minha frente, mas meus pensamentos voltavam
incessantemente ao café Mably. O sr. Fasquelle já teria descido agora? No fundo,
não estava muito convencido de sua morte e era precisamente isso que me
irritava. Era uma ideia flutuante da qual não podia nem me convencer nem me
libertar. Os sapatos do corso rangiam no assoalho. Várias vezes ele veio se
postar à minha frente, com ar de querer falar comigo. Mas reconsiderava e se
afastava.
Por volta de uma hora os últimos leitores foram embora. Eu não estava com
fome; sobretudo, não queria ir. Trabalhei ainda um pouco; depois tive um
sobressalto: sentia-me sepultado no silêncio.
Ergui a cabeça: estava sozinho. O corso certamente descera para ir ter com
sua mulher, que é porteira da biblioteca; eu ansiava pelo ruído de seus passos.
Ouvi apenas o do carvão caindo no calefator. O nevoeiro invadira a sala: não o
verdadeiro nevoeiro que se dissipara fazia muito — o outro, o que ainda enchia
as ruas, o que saía das paredes, do calçamento. Uma espécie de inconsistência
das coisas. Os livros continuavam ali, arrumados nas prateleiras por ordem
alfabética, com suas lombadas pretas ou marrons e suas etiquetas UP lf. 7996
(Uso público — literatura francesa) ou UP cn (Uso público — ciências naturais).
Mas... como explicar? Normalmente, potentes e maciças, junto com o calefator,
as lâmpadas verdes, as grandes janelas, as escadas — tudo isso forma um dique
para conter o futuro. Enquanto permanecermos entre essas paredes, o que
ocorrer ocorrerá à direita ou à esquerda do calefator. Se o próprio são Dionísio
entrasse, trazendo sua chave nas mãos, teria que entrar pela direita, caminhar
entre as prateleiras destinadas à literatura francesa e a mesa reservada às leitoras.
E se não tocar no chão, se flutuar a vinte centímetros do assoalho, seu pescoço
ensanguentado chegará exatamente à altura da terceira prateleira de livros.
Assim, esses objetos servem pelo menos para fixar os limites do verossímil.
Pois bem, hoje já não fixavam nada: parecia que até sua existência era
discutível, que tinham a maior dificuldade em passar de um instante para o
outro. Apertei com força em minhas mãos o volume que estava lendo: mas as
sensações mais violentas estavam amortecidas. Nada parecia verdadeiro; eu me
sentia rodeado por um cenário de papelão que podia ser bruscamente
transplantado. O mundo esperava, retendo a respiração, encolhendo —
aguardava sua crise, sua Náusea, como o sr. Achille outro dia.
Levantei-me. Já não conseguia ficar quieto em meio àquelas coisas
desvigoradas. Fui dar uma olhada pela janela para o crânio de Impétraz.
Murmurei: Tudo pode se produzir, tudo pode acontecer. Evidentemente, não o
gênero de horror que os homens inventaram; Impétraz não ia se pôr a dançar em
seu soclo: seria outra coisa.
Olhei com terror para aqueles seres instáveis que, dentro de uma hora, dentro
de um minuto, talvez desabassem: isso mesmo; eu estava ali, vivia entre aqueles
livros cheios de conhecimentos, alguns dos quais descreviam as formas
imutáveis das espécies animais, outros explicavam que a quantidade de energia
se conserva integralmente no universo; estava ali, de pé em frente a uma janela
cujas vidraças tinham um índice de refração determinado. Mas que barreiras
frágeis! Creio que é por preguiça que o mundo parece o mesmo de um dia para o
outro. Hoje parecia querer mudar. E então tudo, tudo podia acontecer.
Não tenho tempo a perder: na origem desse mal-estar há a história do café
Mably. Tenho que voltar lá, tenho que ver o sr. Fasquelle vivo; se necessário,
tenho que tocar em sua barba ou em suas mãos. Então talvez me liberte.
Peguei meu sobretudo às pressas e joguei-o sobre os ombros sem enfiá-lo;
estou fugindo. Ao atravessar o jardim público, encontrei no mesmo lugar o
homenzinho da pelerine; seu rosto era enorme e lívido, entre duas orelhas
escarlates de frio.
O café Mably cintilava ao longe: dessa vez as 12 lâmpadas deviam estar
acesas. Apressei o passo: era preciso acabar com aquilo. Dei primeiro uma
olhadela pela janela envidraçada; a sala estava deserta. A empregada da caixa
não estava lá, tampouco o garçom — nem o sr. Fasquelle.
Tive que fazer um grande esforço para entrar; não me sentei. Gritei:
“Garçom!” Ninguém respondeu. Uma xícara vazia numa mesa. Um torrão de
açúcar no pires.
— Há alguém aí?
Um sobretudo estava pendurado num gancho. Numa mesinha revistas
estavam empilhadas em caixas de papelão preto. Agucei os ouvidos para
perceber o menor ruído, retendo a respiração. A escada particular rangeu
levemente. Lá fora a sirene de um barco. Saí andando de costas, sem tirar os
olhos da escada.
Bem sei: às duas da tarde são raros os fregueses. O sr. Fasquelle estava
gripado; certamente mandara o garçom em alguma incumbência — procurar um
médico talvez. Sim, mas acontecia que eu precisava ver o sr. Fasquelle. No
começo da rua Tournebride me voltei, contemplei com repugnância o café
cintilante e deserto. No primeiro andar as persianas estavam baixadas.
Fui tomado de verdadeiro pânico. Já não sabia aonde ia. Corri ao longo das
docas, me enfiei pelas ruas desertas do bairro Beauvoisis: as casas me viam fugir
com seus olhos apagados. Repetia para mim mesmo com angústia: aonde ir?
Aonde ir? Tudo pode acontecer. De quando em quando, com o coração batendo,
dava meia-volta bruscamente: o que estava acontecendo atrás de mim? Talvez
aquilo começasse às minhas costas e quando eu me virasse de repente seria tarde
demais. Enquanto pudesse fixar os objetos, nada aconteceria: olhava o máximo
possível o calçamento, as casas, os lampiões de gás; meus olhos iam
rapidamente de uns para outros, para poder surpreendê-los e detê-los no meio de
sua metamorfose. Sua aparência não era inteiramente natural, mas eu me dizia
com força: é um lampião de gás, é uma bica, e tentava, com a força de meu
olhar, reduzi-los a seu aspecto quotidiano. Por várias vezes encontrei bares em
meu caminho: o Café des Bretons, o Bar de la Marine. Parava, hesitava diante de
suas cortinas de tule cor-de-rosa: talvez aqueles lugares bem fechados tivessem
sido poupados, talvez ainda contivessem uma parcela do mundo de ontem,
isolada, esquecida. Mas teria sido preciso empurrar a porta, entrar. Não ousava
fazê-lo; prosseguia. As portas das casas, sobretudo, me assustavam. Temia que
se abrissem sozinhas. Acabei andando pelo meio da rua.
Desemboquei bruscamente no cais das Bassins du Nord. Barcos de pesca,
pequenos iates. Apoiei o pé numa argola incrustada numa pedra. Aqui, longe das
casas, longe das portas, me desafogaria por um momento. Uma rolha boiava
sobre a água calma e salpicada de manchas pretas.
“E debaixo da água? Não pensou no que pode haver debaixo da água?”
Um animal? Uma grande carapaça meio enterrada na lama? Doze pares de
patas revolvem lentamente o lodo. De quando em quando o animal se ergue um
pouco. No fundo da água. Aproximei-me, espreitando um remoinho, uma leve
ondulação. A rolha permanecia imóvel entre as manchas pretas.
Nesse momento ouvi vozes. Era tempo. Dei meia-volta e recomecei a correr.
Alcancei os dois homens que falavam na rua Castiglione. Ao ruído dos meus
passos, estremeceram violentamente e se voltaram ao mesmo tempo. Vi seus
olhos inquietos se dirigindo para mim, depois para atrás de mim, para ver se
vinha alguma outra coisa. Então estavam como eu, então sentiam medo? Quando
passei por eles, nos olhamos: um pouco mais e nos teríamos falado. Mas de
repente os olhares exprimiram desconfiança: num dia como esse não se fala com
desconhecidos.
Dei por mim na rua Boulibet, sem fôlego. Muito bem, a sorte estava lançada:
retornaria à biblioteca, pegaria um romance, tentaria ler. Andando junto às
grades do jardim público, vislumbrei o homenzinho da pelerine. Continuava ali,
no jardim deserto; o nariz se tornara tão vermelho quanto as orelhas.
Ia empurrar o portão, mas a expressão de seu rosto me paralisou: franzia os
olhos, um meio sorriso de escárnio, um ar idiota e meloso. Mas ao mesmo tempo
fixava à sua frente qualquer coisa que eu não via, com um olhar tão duro e de tal
intensidade que me voltei bruscamente.
Em frente a ele, um pé no ar, a boca entreaberta, uma menina de uns dez
anos examinava-o, fascinada, puxando nervosamente seu fichu e avançando o
rosto afilado.
O homenzinho sorria consigo mesmo, como alguém que vai pregar uma boa
peça. De repente se levantou, as mãos nos bolsos de sua pelerine que quase lhe
chegava aos pés. Deu dois passos e seus olhos se reviraram. Pensei que ia cair.
Mas continuava a sorrir, com ar sonolento.
Subitamente entendi: a pelerine! Queria impedir aquilo. Bastava que tossisse
ou empurrasse o portão. Mas estava fascinado, por minha vez, pelo rosto da
menina. Suas feições estavam retesadas pelo medo, seu coração devia estar
batendo horrivelmente: só que eu lia também, naquele focinho de rato, algo de
potente e de mau. Não era curiosidade, era antes uma espécie de expectativa
segura. Sentime impotente: estava do lado de fora, à margem do jardim, à
margem do pequeno drama deles; mas eles estavam pregados um ao outro pela
força obscura de seus desejos, formavam um par. Contive a respiração, queria
ver o que se estamparia naquele rosto de menina-velha quando o homenzinho, às
minhas costas, afastasse as abas de sua pelerine.
Mas, subitamente, liberada, a menina sacudiu a cabeça e se pôs a correr. O
sujeito da pelerine me vira: fora isso que o detivera. Por um segundo
permaneceu imóvel no meio da aleia, depois foi embora, as costas encurvadas.
Sua pelerine batia-lhe na barriga da perna.
Empurrei o portão e alcancei-o de um pulo.
— Ei, você aí! — gritei.
Ele começou a tremer.
— Uma grande ameaça pesa sobre a cidade — disse delicadamente ao passar
por ele.
Entrei na sala de leitura e peguei A cartuxa de Parma que estava sobre uma
mesa. Tentava me absorver na leitura, encontrar um refúgio na Itália luminosa de
Stendhal. Conseguia-o por momentos, em breves alucinações, depois recaía
nesse dia ameaçador, em frente a um velhinho que pigarreava, a um rapaz que
devaneava reclinado em sua cadeira.
As horas passavam, as vidraças tinham escurecido. Éramos quatro, sem
contar o corso que carimbava em sua mesa as últimas aquisições da biblioteca.
Estávamos ali aquele velhinho, o rapaz louro, uma jovem mulher que prepara
sua licenciatura — e eu. De quando em quando um de nós erguia a cabeça, dava
uma olhadela rápida e desconfiada para os outros três, como se tivesse medo
deles. Em dado momento o velhinho começou a rir: vi a mulher estremecer da
cabeça aos pés. Mas eu decifrara, de trás para diante, o título do livro que ele
estava lendo: era um romance cômico.
Dez para as sete. Pensei bruscamente que a biblioteca fechava às sete horas.
Mais uma vez ia ser atirado na cidade. Aonde iria? O que faria?
O velho terminara seu romance. Mas não ia embora. Tamborilava na mesa
em pancadinhas secas e regulares.
— Senhores, já vamos fechar — disse o corso.
O rapaz estremeceu e me dirigiu um rápido olhar. A mulher se virara para o
corso, depois tornou a pegar no livro parecendo mergulhar na leitura.
— Está na hora — disse o corso cinco minutos depois.
O velho sacudiu a cabeça com ar indeciso. A mulher afastou o livro, mas não
se levantou.
O corso estava surpreso. Deu alguns passos hesitantes, depois desligou um
interruptor. As lâmpadas se apagaram nas mesas de leitura. Só o globo central
permanecia aceso.
— Temos que ir embora? — perguntou baixinho o velho.
O rapaz se levantou lentamente, a contragosto. Cada qual levava mais tempo
para enfiar seu sobretudo. Quando saí, a mulher ainda estava sentada com uma
mão espalmada sobre seu livro.
Embaixo, a porta de entrada se escancarava para a noite. O rapaz que ia na
frente se voltou, desceu lentamente a escada, atravessou o vestíbulo; deteve-se
um momento na soleira, depois se precipitou na noite e desapareceu.
Ao chegar embaixo da escada, ergui a cabeça. Passado um momento, o
velhinho deixou a sala de leitura, abotoando o sobretudo. Quando já tinha
descido os três primeiros degraus, tomei impulso e mergulhei de olhos fechados.
Senti em meu rosto uma leve carícia fresca. Ao longe alguém assoviava.
Descerrei as pálpebras: chovia. Uma chuva calma e suave. A praça estava
placidamente iluminada por seus quatro lampiões. Uma praça de interior sob a
chuva. O rapaz se afastava a passos largos; era ele que estava assoviando: tive
vontade de gritar para os outros dois, que ainda não sabiam, que podiam sair sem
medo, que a ameaça passara.
O velhinho apareceu na soleira. Coçou o rosto com ar embaraçado, depois
deu um sorriso largo e abriu o guarda-chuva.
Sábado de manhã
Um sol deleitável, com uma leve bruma que promete um dia de tempo bom.
Tomei meu café da manhã no Mably.
A sra. Florent, a encarregada da caixa, me dirigiu um sorriso amável. Gritei
de minha mesa:
— O sr. Fasquelle está doente?
— Sim, senhor; uma gripe muito forte: vai ter que ficar alguns dias de cama.
A filha dele chegou esta manhã de Dunquerque. Vai ficar instalada aqui para
cuidar dele.
Pela primeira vez, desde que recebi a carta, me sinto francamente feliz por
rever Anny. O que terá feito durante esses seis anos? Ficaremos constrangidos
quando nos encontrarmos? Anny ignora o que seja constrangimento. Vai me
receber como se eu a tivesse deixado ontem. Oxalá eu não me comporte como
um tolo, não a descontente logo de cara. Lembrar bem de não lhe estender a mão
ao chegar: ela detesta isso.
Quantos dias permaneceremos juntos? Talvez a traga a Bouville. Bastaria
que vivesse algumas horas aqui; que dormisse uma noite no hotel Printania.
Depois tudo seria diferente; eu já não poderia sentir medo.
De tarde
No ano passado, quando visitei pela primeira vez o museu de Bouville, o retrato
de Olivier-Blévigne me chamou a atenção. Falta de proporções? De perspectiva?
Não saberia dizer, mas algo me incomodava: esse deputado não parecia estável
em sua tela.
Desde então vim vê-lo muitas vezes. Mas meu desagrado persistia. Não
queria admitir que Bordurin, que recebera o prêmio de Roma, e era detentor de
seis medalhas, tivesse cometido uma falha de desenho.
Ora, esta tarde, folheando uma velha coleção do Satirique Bouvillois, jornal
de chantagem, cujo proprietário foi acusado de alta traição durante a guerra,
vislumbrei a verdade. Deixei a biblioteca imediatamente e fui dar uma volta pelo
museu.
Atravessei rapidamente a penumbra do vestíbulo. Meus passos não faziam o
menor ruído sobre as lajes brancas e pretas. Ao meu redor, todo um povo de
gesso torcia os braços. Ao passar por dois grandes arcos, entrevi vasos de
esmalte craquelê, pratos, um sátiro azul e amarelo sobre um soclo. Era a sala
Bernard-Palissy, consagrada à cerâmica e às artes menores. Mas a cerâmica não
me atrai. Um senhor e uma senhora de luto contemplavam respeitosamente esses
objetos cozidos.
Sobre a entrada do grande salão — ou salão Bordurin-Renaudas — haviam
pendurado, recentemente sem dúvida, uma grande tela que eu não conhecia.
Estava assinada por Richard Séverand e chamava-se La mort du célibataire.
Tratava-se de uma doação do Estado.
Nu até a cintura, o torso um pouco esverdeado como condiz com os mortos,
o celibatário jazia numa cama desfeita. Os lençóis e as cobertas desfeitas
atestavam uma longa agonia. Sorri pensando no sr. Fasquelle. Esse não estava
só: sua filha estava cuidando dele. Na tela, a empregada, uma governanta de
fisionomia marcada pelo vício, tinha aberto a gaveta de uma cômoda e contava
dinheiro. Uma porta aberta deixava ver na penumbra um homem de boné que
aguardava, um cigarro grudado no lábio inferior. Junto à parede um gato bebia
leite com indiferença.
Aquele homem só vivera para si mesmo. Por um castigo severo e merecido,
ninguém viera lhe fechar os olhos no leito de morte. Esse quadro me dava um
último aviso: ainda era tempo, eu podia retroceder. Mas se prosseguisse, que
atentasse bem para isto: no grande salão onde ia entrar, mais de 150 retratos
estavam pendurados nas paredes; excetuando alguns jovens arrebatados
prematuramente de suas famílias e a madre superiora de um orfanato, nenhum
dos que ali estavam representados morrera celibatário, nenhum deles morrera
sem filhos nem intestado, nenhum sem os últimos sacramentos. Quites com
Deus e com o mundo, naquele dia como nos outros, aqueles homens tinham
deslizado suavemente para a morte, para ir exigir a parte de vida eterna a que
tinham direito.
Pois tinham tido direito a tudo: à vida, ao trabalho, à riqueza, ao mando, ao
respeito e, para terminar, à imortalidade.
Recolhi-me por um instante e entrei. Um guarda dormia perto de uma janela.
Uma luz amarelada que vinha das vidraças fazia manchas nos quadros. Nada de
vivo na grande sala retangular, exceto um gato que se assustou com a minha
entrada e fugiu. Mas senti sobre mim o olhar de 150 pares de olhos.
Todos os que pertenceram à elite de Bouville entre 1875 e 1910 estavam ali,
homens e mulheres, escrupulosamente pintados por Renaudas e Bordurin.
Os homens construíram Santa Cecília do Mar. Fundaram em 1882 a
Federação dos Armadores e dos Negociantes de Bouville, “para reunir num feixe
poderoso todas as boas vontades, cooperar na obra do ressurgimento nacional e
paralisar os partidos de desordem...”. Fizeram de Bouville o porto comercial
francês mais bem aparelhado para o descarregamento de carvão e madeira. O
prolongamento e alargamento dos cais foram obras deles. Deram toda a extensão
desejável à estação marítima e aumentaram para 10,70m, através de dragagens
perseverantes, a profundidade do ancoradouro em baixa-mar. Em vinte anos,
graças a eles, a tonelagem dos barcos de pesca, que era de 5.000 tonéis em 1869,
subiu para 18.000 tonéis. Não recuando ante qualquer sacrifício para facilitar a
ascensão dos melhores representantes da classe operária, criaram, por iniciativa
própria, diversos centros de ensino técnico e profissional que prosperaram sob
sua proteção. Dominaram a famosa greve das docas em 1898 e deram seus filhos
à pátria em 1914.
As mulheres, dignas companheiras desses lutadores, fundaram a maioria dos
patronatos, das creches, dos ouvroirs.[9] Mas, antes de mais nada, foram esposas
e mães. Criaram belos filhos, ensinaram-lhes seus deveres e seus direitos, a
religião, o respeito pelas tradições que fizeram a França.
De um modo geral a cor dos retratos puxava para o marrom-escuro. As cores
vivas haviam sido banidas por uma preocupação com a decência. No entanto,
nos retratos de Renaudas, que pintava preferencialmente velhos, a neve dos
cabelos e das suíças sobressaíam de fundos pretos; ele era magnífico na
representação de mãos. No que se refere a Bordurin, que tinha menos método, as
mãos eram um pouco sacrificadas, mas os colarinhos reluziam como mármore
branco.
Fazia muito calor e o guarda ressonava suavemente. Dei uma olhada circular
para as paredes: vi mãos e olhos; aqui e ali uma mancha de luz escondia um
rosto. No que me dirigia para o retrato de Olivier Blévigne, algo me reteve: do
cimácio, o negociante Pacôme deixava cair sobre mim um olhar claro.
Ele estava de pé, a cabeça ligeiramente inclinada para trás, e segurava numa
das mãos, contra as calças cinza-pérola, uma cartola e luvas. Não pude evitar
uma certa admiração: não via nada de medíocre nele, nada que merecesse crítica:
pés pequenos, mãos finas, ombros largos de lutador, elegância discreta com um
toque de extravagância. Oferecia cortesmente aos visitantes a limpidez de seu
rosto sem rugas; aflorava-lhe aos lábios a sombra de um sorriso. Mas seus olhos
cinzentos não sorriam. Devia ter uns cinquenta anos: mantinha-se jovem e cheio
de viço como aos trinta. Era bonito.
Desisti de lhe descobrir alguma falha. Mas ele não me largou. Li em seus
olhos um julgamento calmo e implacável.
Compreendi então tudo que nos separava: o que eu podia pensar a seu
respeito não o atingia; não passava de psicologia como a que se faz nos
romances. Mas seu julgamento me trespassava como um gládio e questionava
até meu direito de existir. E era verdade, sempre me apercebera disso: eu não
tinha o direito de existir. Surgira por acaso, existia como uma pedra, uma planta,
um micróbio. Minha vida se desenvolvia ao acaso e em todos os sentidos.
Enviava-me às vezes sinais vagos; outras vezes eu percebia apenas um zumbido
sem importância.
Mas para aquele belo homem sem falhas, atualmente morto, para Jean
Pacôme, filho do Pacôme da Defesa Nacional, tudo tinha sido diferente: as
batidas de seu coração e os rumores surdos de seus órgãos chegavam-lhe sob a
forma de pequenos direitos instantâneos e puros. Durante sessenta anos,
infalivelmente, usara do direito de viver. Que magníficos olhos cinzentos! Nunca
a menor dúvida os cruzara. Nunca também Pacôme se equivocara.
Sempre cumprira seu dever, todo o seu dever, seu dever de filho, de esposo,
de pai, de chefe. Também exigira seus direitos sem tibieza: quando criança, o
direito de ser bem-criado, numa família unida, o de herdeiro de um nome sem
mácula, de um negócio próspero; como marido, o direito de ser bem cuidado,
cercado de terna afeição; como pai, o de ser venerado; como chefe, o direito de
ser obedecido sem contestação. Porque um direito é sempre apenas o outro
aspecto de um dever. Seu êxito extraordinário (os Pacômes são atualmente a
família mais rica de Bouville) certamente nunca o surpreendeu. Nunca disse a si
mesmo que era feliz e, quando se entregava a um prazer, fazia-o com moderação,
dizendo: “Estou me distraindo.” Assim, o prazer, passando também para a
categoria de direito, perdia sua futilidade agressiva. À esquerda, um pouco acima
de seus cabelos de um cinza-azulado, vi alguns livros sobre uma prateleira. As
encadernações eram bonitas; eram certamente clássicos. Pacôme, sem dúvida,
relia à noite, antes de dormir, algumas páginas de “seu velho Montaigne” ou uma
ode de Horácio no texto latino. Algumas vezes também devia ler uma obra
contemporânea para se informar. Foi assim que conheceu Barrès e Bourget. Ao
cabo de um momento largava o livro. Sorria. Seu olhar, perdendo sua admirável
vigilância, se tornava quase sonhador. Ele dizia: “Como é mais simples e mais
difícil cumprir o nosso dever!”
Jamais refletira retrospectivamente sobre seus atos: era um chefe.
Havia outros chefes pendurados nas paredes: aliás, era só o que havia.
Aquele velho grande, cor de azinhavre, em sua poltrona, era um chefe. Seu
colete branco era uma evocação feliz de seus cabelos prateados. (Esses retratos
pintados sobretudo com fins de edificação moral e cuja exatidão tocava as raias
do escrúpulo não excluíam a preocupação artística.) Sua mão fina e longa estava
pousada na cabeça de um menininho. Um livro aberto repousava sobre os
joelhos envoltos numa manta. Mas o olhar vagava ao longe. Ele via todas essas
coisas que são invisíveis para os jovens. Seu nome fora escrito no losango de
madeira dourada por baixo de seu retrato: devia chamar-se Pacôme ou Parrottin
ou Chaigneau. Não me ocorreu ir ver: para os seus parentes, para aquela criança,
para si mesmo era simplesmente o Avô; em breve, se achasse que era chegada a
hora de fazer entrever ao neto a extensão de seus futuros deveres, falaria de si
próprio na terceira pessoa.
“Você vai prometer ao seu avô, meu querido, que será muito ajuizado,
estudará com afinco no próximo ano. Talvez no próximo ano seu avô já não
esteja aqui.”
No ocaso da vida ele espargia sua indulgente bondade sobre cada um. Até eu,
se ele me visse — mas eu era transparente ao seu olhar — cairia em suas graças:
se lembraria de que também eu tinha tido avós outrora. Já não exigia nada: não
se têm mais desejos nessa idade. Nada, exceto que se baixasse ligeiramente a
voz quando ele entrava, exceto que houvesse à sua passagem uma nuança de
ternura e de respeito nos sorrisos; nada, exceto que sua nora dissesse às vezes:
“O pai é extraordinário; é mais jovem do que todos nós”; exceto ser o único
capaz de acalmar as fúrias do neto colocando as mãos sobre sua cabeça, e poder
dizer a seguir: “Grandes desgostos como esses é o avô que sabe consolar”; nada,
exceto que o filho, várias vezes por ano, viesse solicitar seus conselhos sobre
questões delicadas; nada, enfim, exceto se sentir sereno, em paz, infinitamente
sábio. A mão do velho senhor mal pesava sobre os cachos do neto: era quase
uma bênção. Em que estaria pensando? Em seu passado honrado que lhe
conferia o direito de falar sobre tudo e de dar a última palavra sobre tudo. Eu não
me estendera suficientemente o outro dia: a experiência era bem mais do que
uma defesa contra a morte; era um direito: o direito dos velhos.
O general Aubry, pendurado no cimácio com seu grande sabre, era um chefe.
Um chefe também o presidente Hébert, fino letrado, amigo de Impétraz. Seu
rosto era longo e simétrico, com um queixo interminável, pontuado, bem sob o
lábio, por uma pera; avançava um pouco o maxilar, com ar divertido, como se
estivesse fazendo um distinguo, meditando uma objeção de princípio, como um
discreto arroto. Estava pensativo, segurando uma pena de pato para escrever:
também ele tinha sua distração, que consistia em fazer versos. Mas tinha o olhar
de águia dos chefes.
E os soldados? Encontrava-me no centro da sala, ponto de mira de todos
aqueles olhos graves. Não era um avô, nem um pai, nem sequer um marido. Não
votava, mal pagava alguns impostos: não podia me vangloriar nem dos direitos
do contribuinte, nem dos do eleitor, nem mesmo do humilde direito à
honorabilidade que vinte anos de obediência conferem ao empregado. Minha
existência começava a me espantar seriamente. Não seria eu uma simples
aparência?
— Ei — disse a mim mesmo subitamente —, o soldado sou eu!
Isso me fez rir, sem ressentimento.
Um quinquagenário roliço me respondeu delicadamente com um bonito
sorriso. Renaudas o pintara com amor, não havia tintas demasiado suaves para as
orelhinhas carnudas e cinzeladas, para as mãos sobretudo. Longas, nervosas,
com os dedos delgados, eram verdadeiras mãos de sábio ou de artista. Seu rosto
me era desconhecido: certamente passara muitas vezes diante da tela sem reparar
nela. Aproximei-me, li: “Rémy Parrottin, nascido em Bouville em 1849,
professor da Escola de Medicina de Paris.”
Parrottin: o dr. Wakefield me falara nele: “Encontrei uma vez na vida um
grande homem. Foi Rémy Parrottin. Cursei suas aulas durante o inverno de 1904
(sabe que passei dois anos em Paris para estudar obstetrícia). Ele me fez
compreender o que é um chefe. Tinha magnetismo, juro-lhe. Eletrizava-nos, com
ele teríamos ido até os confins do mundo. E além disso era um gentleman: tinha
uma fortuna imensa, boa parte da qual consagrava a ajudar os estudantes
pobres.”
Foi assim que esse príncipe da ciência me inspirou alguns sentimentos fortes
da primeira vez que ouvi mencioná-lo. Agora estava diante dele e ele me sorria.
Que inteligência e afabilidade em seu sorriso! Seu corpo rechonchudo repousava
molemente numa grande poltrona de couro. O sábio despretensioso deixava
imediatamente as pessoas à vontade. Poderia até ser tomado por um homenzinho
qualquer, não fosse a espiritualidade de seu olhar.
Não era preciso muito tempo para adivinhar a razão de seu prestígio: era
amado porque compreendia tudo; podia dizer-se tudo a ele. Parecia-se um pouco
com Renan, em suma, mas com mais distinção. Era desses que dizem: “Os
socialistas? Muito bem, vou mais longe do que eles.” Quem o acompanhava por
esse caminho perigoso logo tinha que abandonar, dominado pela emoção, a
família, a pátria, o direito de propriedade, os valores mais sagrados. Duvidava-se
até por um momento do direito de comandar da elite burguesa. Mais um passo e
subitamente tudo era restabelecido, maravilhosamente fundamentado em sólidas
razões, à antiga. Voltando-se, quem o acompanhava distinguia atrás de si os
socialistas já longe, muito pequenos, agitando seus lenços e gritando: “Esperem-
nos.”
Eu aliás sabia, por Wakefield, que o Mestre gostava, como ele mesmo dizia
com um sorriso, de “dar à luz as almas”. Tendo permanecido jovem, rodeava-se
de juventude: recebia com frequência jovens de boa família que se destinavam à
medicina. Wakefield almoçara várias vezes em sua casa. Terminada a refeição
passava-se para o fumoir. O professor tratava como homens adultos aqueles
estudantes que já não estavam muito longe de seus primeiros cigarros: oferecia-
lhes charutos. Estirava-se num divã e falava demoradamente, os olhos
semicerrados, rodeado pela multidão ávida de discípulos. Evocava recordações,
contava anedotas, das quais extraía uma moralidade picante e profunda. E, se
entre esses jovens bem-educados, surgia algum de caráter um pouco mais
rebelde, Parrottin se interessava especialmente por ele. Fazia-o falar, ouvia-o
atentamente, fornecia-lhe ideias, temas de meditação. Sucedia forçosamente que
um dia o rapaz, transbordando de ideias generosas, excitado pela hostilidade dos
seus, cansado de pensar sozinho e contra todos, pedia ao professor que o
recebesse a sós; então, balbuciando de timidez, contava-lhe seus pensamentos
mais íntimos, suas indignações, suas esperanças. Parrottin apertava-o contra o
peito. Dizia: “Compreendo-o, compreendi-o desde o primeiro dia.”
Conversavam, Parrottin ia mais longe, mais longe ainda — tão longe que o rapaz
tinha dificuldade em acompanhá-lo. Com algumas conversas dessa espécie era
possível constatar uma melhora sensível no jovem revoltado. Ele adquiria uma
visão clara de si mesmo, aprendia a conhecer os vínculos profundos que o
ligavam a sua família, a seu meio; compreendia, enfim, o admirável papel da
elite. E para terminar, como por encanto, a ovelha desgarrada, que acompanhara
Parrottin passo a passo, se encontrava de volta no redil, esclarecida, arrependida.
“Ele curou mais almas”, concluía Wakefield, “do que eu curei corpos”.
Rémy Parrottin me sorria afavelmente. Hesitava, procurava compreender
minha posição, para modificá-la suavemente e me levar para o aprisco. Mas eu
não sentia medo dele: eu não era uma ovelha. Olhei para sua bonita testa,
tranquila e sem rugas, para seu pequeno ventre, para sua mão espalmada sobre o
joelho. Devolvi-lhe o sorriso e deixei-o.
Jean Parrottin, seu irmão, presidente da S.A.B., apoiava-se com as duas mãos
na beira de uma mesa repleta de papéis; por toda a sua atitude, fazia sentir ao
visitante que a audiência terminara. Seu olhar era extraordinário; era como que
abstrato e brilhava de puro direito. Seus olhos deslumbrantes devoravam-lhe
todo o rosto. Distingui sob esse fulgor dois lábios finos e apertados de místico.
“É engraçado”, pensei, “ele se parece com Rémy Parrottin”. Virei-me para o
professor: examinando-o à luz dessa parecença, fazia-se surgir bruscamente em
seu rosto suave um não sei quê de árido e desolado, o ar da família. Voltei-me
novamente para Jean Parrottin.
Esse homem tinha a simplicidade de uma ideia. Só restavam nele ossos,
carnes mortas e o Direito Puro. Um verdadeiro caso de possessão, pensei.
Quando o direito se apodera de um homem, não há exorcismo capaz de expulsá-
lo; Jean Parrottin dedicara toda a sua vida a conceber seu direito: nada mais. Em
lugar da ligeira dor de cabeça que eu sentia despontar, como todas as vezes que
visito um museu, ele teria sentido em suas têmporas o direito doloroso de ser
bem tratado. Era preciso que não o fizessem pensar muito, que não chamassem
sua atenção para realidades desagradáveis, para a possibilidade de sua morte,
para os sofrimentos de outrem. Certamente, em seu leito de morte, naquela hora
em que é de praxe, desde Sócrates, pronunciar algumas palavras elevadas, ele
dissera à sua mulher, como um de meus tios à dele, que o velara durante 12
noites: “A você, Thérèse, não agradeço; só cumpriu seu dever.” Quando um
homem chega a esse ponto, há que se lhe tirar o chapéu.
Seus olhos, que eu fixava com assombro, me indicavam que era hora de me
retirar. Não parti, fui resolutamente indiscreto. Sabia, por ter contemplado
longamente um determinado retrato de Filipe II na biblioteca do Escorial, que,
quando se olha de frente um rosto resplandecente de direito, passado um
momento, esse resplendor se extingue, fica apenas um resíduo como que de
cinzas: era esse resíduo que me interessava.
Parrottin oferecia uma bela resistência. Mas de repente seu olhar se apagou,
o quadro se tornou baço. Que restava? Dois olhos cegos, a boca fina como uma
serpente morta e as faces. Bochechas pálidas e rechonchudas de criança:
espalhavam-se na tela. Os empregados da S.A.B. nunca suspeitaram que
existissem: não ficavam tempo bastante no escritório de Parrottin. Quando
entravam, deparavam-se com esse olhar terrível, como se fosse um muro. Por
trás deste, as bochechas estavam protegidas, brancas e flácidas. Ao fim de
quantos anos sua mulher reparara nelas? Dois anos? Cinco anos? Um dia,
imagino, quando o marido dormia ao seu lado e um raio de luar lhe acariciava o
nariz, ou então, quando fazia a digestão com dificuldade, na hora do calor,
reclinado numa poltrona, os olhos semicerrados, com uma poça de sol no
queixo, ela ousara olhá-lo de frente: toda aquela carne aparecera sem defesa,
balofa, babosa, vagamente obscena. A partir desse dia, certamente a sra.
Parrottin assumira o comando.
Dei alguns passos para trás, envolvi num só olhar todos aqueles grandes
personagens: Pacôme, o presidente Hébert, os dois Parrottins, o general Aubry.
Todos tinham usado cartolas; aos domingos encontravam na rua Tournebride a
sra. Gratien, a mulher do prefeito, que viu santa Cecília em sonhos. Dirigiam-lhe
grandes cumprimentos cerimoniosos cujo segredo se perdeu.
Tinham sido pintados com grande exatidão; e no entanto, sob o pincel, seus
rostos haviam perdido a misteriosa fragilidade dos rostos humanos. Suas faces,
mesmo as menos vigorosas, eram nítidas como faianças: em vão eu procurava
nelas qualquer parentesco com as árvores e os animais, com os pensamentos da
terra ou da água. Sabia que em vida não tinham tido essa necessidade. Mas, no
momento de passar para a posteridade, se tinham confiado a um pintor de
renome para que este operasse discretamente em seus rostos aquelas dragagens,
aquelas escavações, aquelas irrigações, através das quais, em torno de toda
Bouville, eles haviam transformado o mar e os campos. Assim, com o concurso
de Renaudas e de Bordurin, haviam subjugado toda a Natureza: fora deles e
neles mesmos. O que aquelas telas escuras ofereciam a meus olhos era o homem
repensado pelo homem, com a mais bela conquista do homem como único
ornamento: o buquê dos Direitos do Homem e do Cidadão. Admirei sem
reservas o reino humano.
Tinham entrado um senhor e uma senhora. Estavam vestidos de preto e
procuravam não chamar a atenção. Pararam extasiados na soleira da porta, e o
senhor tirou o chapéu maquinalmente.
— Oh! — disse a senhora, muito emocionada.
O senhor recuperou mais depressa seu sangue-frio. Disse em tom respeitoso:
— É toda uma época!
— Sim — disse a senhora —, é a época de minha avó.
Deram alguns passos e se depararam com o olhar de Jean Parrottin. A
senhora continuava boquiaberta, mas o senhor parecia constrangido: tinha ares
de humilde; devia conhecer bem esses olhares intimidantes e as audiências
abreviadas. Puxou suavemente a mulher pelo braço:
— Olhe este — disse.
O sorriso de Rémy Parrottin sempre deixara os humildes à vontade. A
mulher se aproximou e leu com atenção:
“Retrato de Rémy Parrottin, nascido em Bouville em 1849, professor da
Escola de Medicina de Paris, por Renaudas.”
— Parrottin, da Academia de Ciências — disse o marido —, por Renaudas,
do Instituto. Isso é História!
A senhora sacudiu a cabeça, depois olhou para o professor.
— Como é distinto! — disse. — E que ar inteligente!
O marido fez um gesto amplo.
— Foram todos esses que fizeram Bouville — disse com simplicidade.
— Foi boa ideia terem reunido todos aqui — disse a senhora enternecida.
Éramos três soldados em manobras na sala imensa. O marido que ria com
respeito, silenciosamente, me lançou um olhar inquieto e parou bruscamente de
rir. Virei-me para outro lado e fui me postar diante do retrato de Olivier
Blévigne. Um suave prazer me invadiu: muito bem, eu tinha razão. Era
realmente muito engraçado!
A mulher se aproximara de mim.
— Gaston — disse, subitamente ousada. — Venha cá!
O marido veio em nossa direção.
— Olhe — prosseguiu ela —, esse aí tem sua rua: Olivier Blévigne. Sabe
qual é? Aquela ruazinha que sobe ao Coteau Vert, logo antes de chegar a
Jouxtebouville.
Acrescentou passado um momento:
— Ele não devia ser muito ameno.
— Não! Devia ser um bom interlocutor para os rezingões.
A frase era dirigida a mim. O senhor me olhou de esguelha e começou a rir,
um pouco ruidosamente dessa vez, com ar presumido e esmiuçador, como se
fosse o próprio Olivier Blévigne.
Olivier Blévigne não ria. Apontava seu maxilar contraído em nossa direção,
e seu pomo de adão ressaltava.
Houve um momento de silêncio e de êxtase.
— Parece até que vai se mexer — disse a senhora.
O marido explicou amavelmente:
— Era um negociante atacadista de algodão. Depois fez política, foi
deputado.
Eu sabia disso. Há dois anos consultei a respeito dele o Pequeno dicionário
dos grandes homens de Bouville, do abade Morellet. Copiei o artigo.
“Blévigne Olivier-Martial, filho do precedente, nascido e falecido em
Bouville (1849-1908), estudou direito em Paris e obteve o grau de licenciado em
1872. Profundamente impressionado pela insurreição da Comuna, que o
obrigara, como a tantos parisienses, a se refugiar em Versalhes sob a proteção da
Assembleia Nacional, jurou a si mesmo, na idade em que os jovens só pensam
no prazer, ‘dedicar sua vida ao restabelecimento da Ordem’. Cumpriu a palavra:
tão logo retornou à nossa cidade, fundou o famoso Clube da Ordem, que reuniu
todas as noites, durante longos anos, os principais negociantes e armadores de
Bouville. Esse círculo aristocrático, do qual se chegou a dizer, como pilhéria,
que era mais fechado do que o Jockey, exerceu até 1908 uma influência salutar
sobre os destinos de nosso grande porto comercial. Olivier Blévigne desposou
em 1880 Marie-Louise Pacôme, filha caçula do negociante Charles Pacôme (ver
esse nome) e fundou, por ocasião da morte deste, a casa Pacôme-Blévigne e
Filhos. Pouco depois se voltou para a política ativa e se candidatou a deputado.
“‘O país’ — disse num discurso célebre — ‘sofre da mais grave das doenças:
a classe dirigente já não quer comandar. E quem então comandará, senhores, se
aqueles cuja hereditariedade, cuja educação, cuja experiência tornaram mais
aptos para o exercício do poder, se afastam deste por resignação ou lassidão? Já
o disse muitas vezes: comandar não é um direito da elite; é seu principal dever.
Senhores, eu vos conjuro: restauremos o princípio da autoridade!’.
“Eleito no primeiro escrutínio a 4 de outubro de 1885, foi em seguida
constantemente reeleito. De uma eloquência enérgica e rude, pronunciou
inúmeros e brilhantes discursos. Encontrava-se em Paris em 1898, quando
estourou a terrível greve. Transportou-se com urgência para Bouville, onde foi o
incitador da resistência. Tomou a iniciativa de negociar com os grevistas. Essas
negociações, animadas por um espírito de ampla conciliação, foram
interrompidas pelos tumultos de Jouxtebouville. Sabe-se que uma intervenção
discreta da tropa acalmou os ânimos.
“A morte prematura de seu filho Octave, que entrara muito jovem para a
Escola Politécnica e de quem ele pretendia ‘fazer um chefe’, foi um golpe
terrível para Olivier Blévigne: não se recuperaria dele e morreu dois anos depois,
em fevereiro de 1908.
“Compilações de discursos: As forças morais (1894. Esgotado); O dever de
punir (1900. Os discursos dessa compilação foram todos pronunciados a
propósito do caso Dreyfus. Esgotado); Vontade (1902. Esgotado). Depois de sua
morte foram reunidos seus últimos discursos e algumas cartas a seus íntimos sob
o título Labor improbus (Ed. Plon, 1910). Iconografia: existe um excelente
retrato seu, por Bordurin, no museu de Bouville.”
Um excelente retrato, seja! Olivier Blévigne usava um bigodinho preto e seu
rosto azeitonado se parecia um pouco com o de Maurice Barrès. Os dois homens
certamente se haviam conhecido: ocupavam as mesmas bancadas. Mas o
deputado de Bouville não tinha a mesma despreocupação que o presidente da
Liga dos Patriotas. Era rígido como um pedaço de pau e parecia irromper da tela
como no brinquedo em que um diabo de mola pula de sua caixa de surpresa.
Seus olhos faiscavam: a pupila era preta, a córnea avermelhada. Franzia os
pequenos lábios carnudos e apertava a mão direita contra o peito.
Como esse retrato me obcecara! Algumas vezes Blévigne me parecera muito
grande e outras muito pequeno. Mas hoje compreendia o porquê.
Soube a verdade folheando o Satirique Bouvillois. O número de 6 de
novembro de 1905 era inteiramente dedicado a Blévigne. Representavam-no na
capa, minúsculo, agarrado à juba de Combes, com a legenda: O Piolho do Leão.
E já na primeira página tudo se explicava: Olivier Blévigne media um metro e
cinquenta e três. Escarneciam de sua pequena estatura e de sua voz coaxante que
mais de uma vez fizera morrer de rir a Câmara inteira. Acusavam-no de
introduzir saltos de borracha em suas botas. Em contraposição, a sra. Blévigne,
Pacôme de solteira, era um cavalo. “É o caso de se dizer”, acrescentava o
cronista, “que ele tem o dobro de si por cara-metade”.
Um metro e cinquenta e três! Pois bem: Bordurin, com um cuidado
meticuloso, o rodeara de objetos que não deixam sobressair a pequenez; um
pufe, uma poltrona baixa, uma prateleira com alguns livros de formato in-doze,
uma mesinha persa. Só que lhe dera o mesmo tamanho que o seu vizinho Jean
Parrottin, e as duas telas tinham as mesmas dimensões. Daí resultava que a
mesinha redonda de uma era quase tão grande quanto a imensa mesa da outra, e
o pufe teria chegado ao ombro de Parrottin. O olhar fazia instintivamente a
comparação entre os dois retratos: isso explicava meu mal-estar.
Agora sentia vontade de rir: um metro e cinquenta e três! Se eu tivesse
querido falar com Blévigne, teria sido obrigado a me inclinar ou a dobrar os
joelhos. Já não me espantava que empinasse o nariz para o ar tão
impetuosamente: o destino dos homens dessa estatura se decide sempre algumas
polegadas acima de suas cabeças.
Admirável poder da arte. Desse homenzinho de voz esganiçada, nada
passaria para a posteridade, a não ser um rosto ameaçador, um gesto soberbo e
olhos sanguinolentos de touro.
O estudante aterrorizado pela Comuna, o deputado minúsculo e irascível, eis
o que a morte levara. Mas, graças a Bordurin, o presidente do Clube da Ordem, o
orador das Forças Morais, era imortal.
— Oh! Coitadinho do Pipo![10]
A senhora soltara um gemido abafado: sob o retrato de Octave Blévigne,
“filho do precedente”, uma mão piedosa traçara estas palavras:
“Morto na Politécnica em 1904.”
— Morreu! Foi como o jovem Arondel. Parecia inteligente. Como sua mãe
deve ter sentido. Também, eles têm que se esforçar demais nessas escolas
superiores. O cérebro não para de trabalhar nem durante o sono. Gosto muito
desses bicornes, são chiques. Chamam-se casuares, não é?
— Não; os casuares são em Saint-Cyr.
Contemplei por minha vez o retrato do estudante da Politécnica morto
prematuramente. Sua tez amarelada e seu bigode convencional teriam bastado
para sugerir a ideia de uma morte próxima. Aliás, ele previra seu destino: em
seus olhos claros que viam longe lia-se uma certa resignação. Mas ao mesmo
tempo tinha a cabeça erguida; com aquele uniforme ele representava o exército
francês.
Tu Marcellus eris! Manibus date lilia plenis...
Uma rosa cortada, um estudante da Politécnica morto: que pode haver de
mais triste?
Segui lentamente pela longa galeria, cumprimentando ao passar, sem me
deter, os rostos distintos que emergiam da penumbra: o sr. Bossoire, presidente
do Tribunal de Comércio; o sr. Faby, presidente do Conselho de Administração
do Porto Autônomo de Bouville; o sr. Boulange, negociante, com sua família; o
sr. Rannequin, prefeito de Bouville; o sr. de Lucien, nascido em Bouville,
embaixador da França nos Estados Unidos e poeta; um desconhecido em trajes
de prefeito; a madre Sainte-Marie-Louise, superiora do Grande Orfanato; o sr. e
sra. Théréson; o sr. Thiboust-Gouron, presidente-geral da Junta de Conciliação;
o sr. Bobot, administrador da Capitania do Porto; os srs. Brion, Minette, Grelot,
Lefèbvre; o dr. e sra. Pain; o próprio Bordurin pintado por seu filho Pierre
Bordurin. Olhares claros e frios, traços delicados, bocas finas, o sr. Boulange era
econômico e paciente, madre Sainte-Marie-Louise de uma devoção industriosa.
O sr. Thiboust-Gouron era duro para consigo mesmo e para com os outros. A sra.
Théréson lutava sem arrefecer contra um mal profundo. A boca infinitamente
cansada indicava bem seu sofrimento. Mas nunca essa mulher devota dissera:
“Estou sofrendo.” Reagia: organizava menus e presidia sociedades de
beneficência. Às vezes, no meio de uma frase, baixava lentamente as pálpebras e
seu rosto tornava-se sem vida. Tal fraqueza não durava mais do que um segundo;
logo a sra. Théréson reabria os olhos, retomava sua frase. E as pessoas
cochichavam: “Coitada da sra. Théréson! Nunca se queixa.”
Eu percorrera o salão Bordurin-Renaudas de ponta a ponta. Voltei-me.
Adeus, belos lírios tão delicados em seus pequenos santuários pintados; adeus,
belos lírios, nosso orgulho e nossa razão de ser. Adeus, Salafrários.

Segunda-feira
Já não estou escrevendo meu livro sobre Rollebon; isso terminou, já não posso
escrevê-lo. Que vou fazer de minha vida?
Eram três horas. Estava sentado à minha mesa, tinha colocado ao meu lado a
pilha de cartas que roubei em Moscou; escrevia:
“Tinham sido cuidadosamente espalhados os boatos mais sinistros. O sr. de
Rollebon deve ter sido vítima dessa manobra, já que escreveu a seu sobrinho, em
carta de 13 de setembro, que acabava de redigir seu testamento.”
O marquês estava presente: enquanto aguardava instalá-lo definitivamente na
existência histórica, emprestava-lhe minha vida. Sentia-a como um leve calor na
cavidade do estômago.
De repente me apercebi de uma objeção que não deixariam de me fazer:
Rollebon estava longe de ser franco com seu sobrinho, de quem queria se
utilizar, se o golpe falhasse, como testemunha de defesa junto a Paulo I. Era bem
possível que tivesse inventado a história do testamento para passar por ingênuo.
Era uma pequena objeção sem importância; uma coisinha à toa. No entanto,
foi suficiente para me mergulhar em devaneios soturnos. Subitamente revi a
empregada corpulenta do Chez Camille, a cara esgazeada do sr. Achille, a sala
onde eu sentira tão nitidamente que estava esquecido, abandonado no presente.
Disseme com lassidão:
— Como então, eu que não tive forças para reter meu próprio passado, posso
esperar salvar o de outra pessoa?
Peguei na caneta e tentei continuar a trabalhar; estava farto dessas reflexões
sobre o passado, sobre o presente, sobre o mundo. Só pedia uma coisa: que me
deixassem acabar meu livro em paz.
Mas, quando meu olhar pousou sobre o bloco de folhas brancas, seu aspecto
me impressionou e fiquei com a caneta no ar, contemplando aquele papel
deslumbrante: como era duro e vistoso, como estava presente. Não havia nada
nele que não fosse presente. As letras que acabava de traçar ali ainda não
estavam secas e já não me pertenciam.
“Tinham sido cuidadosamente espalhados os boatos mais sinistros...”
Essa frase fora pensada por mim, fora primeiro um pouco de mim mesmo.
Agora estava gravada no papel, fazia parte de uma coligação contra mim. Já não
a reconhecia. Sequer podia repensá-la. Estava ali, na minha frente; inutilmente
teria buscado nela uma marca de origem. Qualquer um poderia tê-la escrito. Mas
eu, eu já não estava seguro de tê-la escrito. Agora as letras já não brilhavam,
estavam secas. Isso também desaparecera: nada mais restava de seu brilho
efêmero.
Lancei um olhar ansioso ao meu redor: só o presente, nada além do presente.
Móveis leves e sólidos, incrustados em seu presente, uma mesa, uma cama, um
armário de espelho — e eu próprio. Revelava-se a verdadeira natureza do
presente: era o que existe e tudo o que não era presente não existia. O passado
não existia. De modo algum. Nem nas coisas, nem mesmo em meu pensamento.
Por certo fazia muito tempo que eu compreendera que o meu me escapara. Mas
até então pensava que simplesmente se retirara do meu alcance. Para mim o
passado era apenas uma aposentadoria: era uma outra maneira de existir, um
estado de férias e de inação; cada acontecimento, quando seu papel findava, se
arrumava sensatamente, por si próprio, numa caixa e se tornava acontecimento
honorário: é tão difícil imaginar o nada! Agora eu sabia: as coisas são
inteiramente o que parecem — e por trás delas... não existe nada.
Esse pensamento me absorveu durante mais alguns minutos. Depois fiz um
movimento de ombros violento para me libertar e puxei para mim o bloco de
papel.
“... que acabava de redigir seu testamento.”
Uma imensa repugnância me invadiu subitamente e a caneta me caiu da mão
cuspindo tinta. Que acontecera? Estava com a Náusea? Não, não era isso, o
quarto estava com sua aparência protetora de todos os dias. A mesa quase não
me parecia mais pesada, mais espessa, e minha caneta mais compacta. Só que o
sr. de Rollebon acabava de morrer pela segunda vez.
Ainda agora estava ali, em mim, tranquilo e quente, e de quando em quando
o sentia mexer. Estava bem vivo, mais vivo para mim do que o Autodidata ou a
dona do Rendez-vous des Cheminots. Tinha, sem dúvida, seus caprichos, era
capaz de permanecer vários dias sem aparecer; mas muitas vezes, em misteriosos
dias de sol, botava o nariz de fora como o capuchinho higrométrico, e eu
distinguia seu rosto pálido e suas bochechas azuis. E mesmo quando não
aparecia, sentia seu peso em meu coração e me sentia cheio.
Agora não restava mais nada dele. Assim como não restava nos traços de
tinta seca a lembrança de seu brilho recente. A culpa era minha: havia
pronunciado as únicas palavras que não deviam ser ditas: dissera que o passado
não existia. E, de repente, sem ruído, o sr. de Rollebon retornara ao seu nada.
Peguei suas cartas, apalpei-as com uma espécie de desespero:
— Foi ele — disse a mim mesmo —, no entanto foi ele que traçou esses
sinais um por um. Apoiou-se sobre esse papel, colocou seu dedo nas folhas para
impedir que girassem sob a caneta.
Tarde demais: essas palavras já não tinham sentido. Nada mais existia a não
ser um maço de folhas amarelas que eu apertava nas mãos. Havia na verdade
aquela história complicada: o sobrinho de Rollebon assassinado em 1810 pela
polícia do czar, seus papéis confiscados e transportados para os arquivos
secretos; depois, 110 anos mais tarde, depositados pelos sovietes, que assumiram
o poder na biblioteca do Estado de onde os roubo em 1923. Mas aquilo não
parecia verdadeiro e, desse roubo que eu próprio cometi, não me ficara nenhuma
verdadeira lembrança. Para explicar a presença desses papéis em meu quarto,
não teria sido difícil encontrar cem outras histórias mais admissíveis: todas,
diante dessas folhas enrugadas, pareceriam vazias e frágeis como bolhas. Ao
invés de contar com elas para me comunicar com Rollebon, mais valia recorrer
imediatamente às mesas que rodam.[11] Rollebon já não existia. Se ainda
restavam dele alguns ossos, existiam por si próprios, totalmente independentes,
já não passavam de um pouco de fosfato e de carbonato de cálcio com sais e
água.
Fiz uma última tentativa; repeti para mim mesmo as palavras da sra. de
Genlis com as quais — geralmente — evoco o marquês: “Seu rostinho enrugado,
asseado, marcado de varíola, onde havia uma malícia singular, que saltava aos
olhos, por mais esforço que fizesse para dissimulá-la.”
O rosto dele me apareceu docilmente, o nariz pontiagudo, as bochechas
azuis, o sorriso. Conseguia formar suas feições à vontade, talvez até com mais
facilidade do que antes. Só que já não era senão uma imagem em mim, uma
ficção. Suspirei, deixei-me cair para trás contra o espaldar da cadeira, com a
sensação de uma falta intolerável.

Soam quatro horas. Faz uma hora que estou aqui, os braços caídos, em minha
cadeira. Começa a escurecer. Afora isso, nada mudou nesse quarto: o papel
branco continua na mesa, ao lado da caneta e do tinteiro... Mas nunca mais
escreverei na folha começada. Nunca mais, seguindo pela rua dos Mutilés e pelo
bulevar da Redoute, me dirigirei à biblioteca para consultar os arquivos.
Sinto vontade de dar um salto e sair, de fazer qualquer coisa para me
atordoar. Mas, se levanto um dedo, se não me mantiver absolutamente imóvel,
sei bem o que vai me acontecer. Não quero que isso me aconteça ainda. Isso virá
sempre cedo demais. Não me mexo; leio maquinalmente, na folha do bloco, o
parágrafo que deixei inacabado:
“Tinham sido cuidadosamente espalhados os boatos mais sinistros. O sr. de
Rollebon deve ter sido vítima dessa manobra, já que escreveu a seu sobrinho, em
carta de 13 de setembro, que acabava de redigir seu testamento.”
O grande caso Rollebon terminou como uma grande paixão. Será necessário
descobrir outra coisa. Há alguns anos, em Xangai, no escritório de Mercier, de
repente saí de um sonho, acordei. Depois tive outro sonho, vivia na corte dos
czares, em velhos palácios tão frios que no inverno se formavam estalactites de
gelo por cima das portas. Hoje acordo diante de um bloco de papel branco.
Desapareceram os archotes, as festas glaciais, os uniformes, os belos ombros
tiritantes. Em seu lugar, algo permanece no quarto morno, algo que não quero
ver.
O sr. de Rollebon era meu sócio: precisava de mim para ser, e eu precisava
dele para não sentir meu ser. Eu fornecia a matéria bruta, essa matéria que eu
tinha para dar e vender, da qual não sabia o que fazer: a existência, minha
existência. A parte dele consistia em representar. Ficava em frente a mim e se
apoderara de minha vida para me representar a dele. Eu já não me apercebia de
que existia, já não existia em mim, mas nele; era para ele que comia, para ele
que respirava, cada um de meus movimentos tinha seu sentido fora de mim, ali,
bem em frente de mim, nele; já não via minha mão que traçava as letras no
papel, nem sequer a frase que escrevera — mas por trás, para além do papel, via
o marquês, que solicitara esse gesto e cuja existência esse gesto prolongava,
consolidava. Eu era apenas um meio de fazê-lo viver, ele era minha razão de ser,
me libertara de mim mesmo. Que farei agora?
Sobretudo não me mexer, não me mexer... Ah!
Não pude impedir esse movimento de ombros...
A coisa, que estava à espera, alertou-se, precipitou-se sobre mim, penetra em
mim, estou pleno dela. — Não é nada: a Coisa sou eu. A existência, liberada,
desprendida, reflui sobre mim. Existo.
Existo. É suave, tão suave, tão lento. E leve: dir-se-ia que isso flutua no ar
por si só. Mexe-se. São leves toques, por todo lado, toques que se dissolvem e se
desvanecem. Suavemente, suavemente. Há uma água espumosa em minha boca.
Engulo-a, ela desliza por minha garganta, me acaricia — e eis que renasce em
minha boca, tenho perpetuamente na boca uma pequena poça de água
esbranquiçada — discreta — que roça minha língua. E essa poça também sou eu.
E a língua também, e a garganta, sou eu.
Vejo minha mão que desabrocha sobre a mesa. Ela vive — sou eu. Abre-se,
os dedos se estendem e apontam. Ela está pousada de costas. Mostra-me seu
ventre gordo. Parece um animal de pernas para o ar. Os dedos são as patas.
Divirto-me fazendo-os mexer muito rápido, como as patas de um caranguejo
caído de costas. O caranguejo morreu: as patas se crispam, vêm para o ventre de
minha mão. Vejo as unhas — a única coisa de mim que não vive. E mesmo
assim... Minha mão se vira, estende-se de barriga para baixo, me oferece agora
suas costas. Costas prateadas, um pouco brilhantes — dir-se-ia um peixe, se não
houvesse os pelos ruivos no início das falanges. Sinto minha mão. Esses dois
animais que se agitam na ponta de meus braços sou eu. Minha mão coça uma de
suas patas com a unha de uma outra pata; sinto seu peso na mesa que não sou eu.
Essa impressão de peso persiste, não passa, persiste. Não há razão para que
passe. Com o tempo, isso se torna intolerável... Retiro minha mão, coloco-a em
meu bolso. Mas sinto logo, através do tecido, o calor de minha coxa. Faço saltar
imediatamente minha mão de meu bolso; deixo-a caída junto ao espaldar da
cadeira. Agora sinto seu peso na ponta de meu braço. Ela puxa um pouco, muito
pouco, mole, maciamente ela existe. Não insisto: onde quer que a ponha, ela
continuará a existir e eu continuarei a sentir que ela existe; não posso suprimi-la,
nem suprimir o resto de meu corpo, o calor úmido que suja minha camisa, nem
toda essa gordura quente que se move preguiçosamente como se uma colher a
remexesse, nem todas as sensações que passeiam lá dentro, que vão e vêm,
sobem de meu flanco até minha axila, ou então vegetam silenciosamente, da
manhã à noite, em seu canto habitual.
Levanto-me de chofre: se pelo menos pudesse parar de pensar, já seria
melhor. Os pensamentos são o que há de mais insípido. Mais insípido ainda do
que a carne. Prolongam-se interminavelmente e deixam um gosto esquisito. E
depois, dentro dos pensamentos, há as palavras, as palavras inacabadas, os
esboços de frases que retornam constantemente: “Tenho que termi... Eu ex...
Morr... O sr. de Roll morreu... Não estou... Eu ex...” E assim por diante... e não
termina nunca. É pior que o resto, porque me sinto responsável e cúmplice. Por
exemplo, essa espécie de ruminação dolorosa: existo — sou eu que a alimento.
Eu. O corpo vive sozinho, uma vez que começou a viver. Mas o pensamento, sou
eu que o continuo, que o desenvolvo. Existo. Penso que existo. Oh! Que
serpentina comprida esse sentimento de existir — e eu a desenrolo muito
lentamente... Se pudesse me impedir de pensar! Tento, consigo: parece-me que
minha cabeça se enche de fumaça... e eis que tudo recomeça: “Fumaça... não
pensar... Não quero pensar... Penso que não quero pensar... Não devo pensar que
não quero pensar. Porque isso também é um pensamento.” Será que não termina
nunca?
Meu pensamento sou eu: eis por que não posso parar. Existo porque penso...
e não posso me impedir de pensar. Nesse exato momento — é terrível — se
existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me extraio do nada a
que aspiro: o ódio, a repugnância de existir são outras tantas maneiras de me
fazer existir, de me embrenhar na existência. Os pensamentos nascem por trás de
mim como uma vertigem, sinto-os nascer atrás de minha cabeça... se eu cedo,
virão para a frente, aqui entre meus olhos — e sempre cedo, o pensamento
cresce, cresce e fica imenso, me enchendo por inteiro e renovando minha
existência.
Minha saliva está açucarada, meu corpo está morno; sinto-me insípido. Meu
canivete está sobre a mesa. Abro-o. Por que não? De toda maneira seria uma
mudança. Coloco minha mão esquerda sobre o bloco e me desfiro uma boa
canivetada na palma. O gesto foi muito nervoso; a lâmina escorregou, a ferida é
superficial. Sangra. E afinal? O que foi que mudou? De toda maneira olho com
satisfação na folha branca, por entre as linhas que tracei há pouco, essa
poçazinha de sangue que finalmente deixou de ser eu. Quatro linhas numa folha
branca, uma mancha de sangue, é assim que se forma uma bela recordação. Terei
de escrever embaixo: “Nesse dia desisti de fazer meu livro sobre o marquês de
Rollebon.”
Farei um curativo em minha mão? Hesito. Olho para o monótono veiozinho
de sangue. Está exatamente começando a coagular. Terminou. Minha pele, em
torno do corte, está como que enferrujada. Sob a pele resta apenas uma pequena
sensação semelhante às outras, talvez ainda mais apagada.
Soam cinco e meia. Levanto-me, minha camisa fria se cola à minha carne.
Saio. Por quê? Bem, porque também não tenho razão alguma para não fazê-lo.
Ainda que fique, ainda que me encolha em silêncio num canto, não me
esquecerei de mim. Estarei aqui, pesarei sobre o assoalho. Eu sou.
Compro um jornal no caminho. Sensacional. O corpo da pequena Lucienne
foi encontrado! Cheiro de tinta, o papel se amarrota entre meus dedos. O ignóbil
indivíduo fugiu. A criança foi violada. Encontraram seu corpo com os dedos
crispados na lama. Faço uma bola com o jornal; meus dedos estão crispados no
jornal; cheiro de tinta; Deus meu, como as coisas hoje existem com intensidade.
A pequena Lucienne foi violada. Estrangulada. Seu corpo ainda existe, sua carne
pisada. Ela já não existe. Suas mãos. Ela já não existe. As casas. Caminho entre
as casas, estou entre as casas muito teso sobre o calçamento; o calçamento sob
meus pés existe, as casas tornam a se fechar sobre mim, como a água se fecha
sobre mim sobre o papel em forma de montanha de cisne, eu sou. Sou, existo,
penso, logo sou: sou porque penso, por que penso? Já não quero pensar, sou
porque penso que não quero ser, penso que eu... porque... bah! Fujo, o ignóbil
indivíduo fugiu, seu corpo violado. Ela sentiu aquela outra carne que penetrava
na sua. Eu... eis que eu... Violada. Um suave desejo sangrento de estupro que se
apodera de mim por trás, muito suave, por trás das orelhas, as orelhas correm
atrás de mim, os cabelos ruivos são ruivos em minha cabeça, uma relva molhada,
uma relva ruiva, isso ainda sou eu? E esse jornal ainda sou eu? Segurar o jornal,
existência contra existência, as coisas existem encostadas umas nas outras, solto
esse jornal. A casa brota, ela existe; à minha frente passo rente ao muro, ao longo
do longo muro, existo, em frente ao muro, um passo, o muro existe à minha
frente, um, dois, atrás de mim, o muro está atrás de mim, um dedo que coça em
minha calça, coça, coça e puxa o dedo da criança maculado de lama, a lama em
meu dedo que saía do riacho lamacento e torna a cair suavemente, suavemente,
amolecia, coçava com menos força que os dedos da menina que estrangulavam,
ignóbil indivíduo, raspavam a lama, a terra com menos força, o dedo desliza
suavemente, cai de cabeça e acaricia, rolo quente junto a minha coxa; a
existência é mole e rola e se sacode, eu me sacudo entre as casas, eu sou, existo,
penso, logo me sacudo, sou, a existência é uma queda caída, não cairá, cairá, o
dedo raspa na lucarna, a existência é uma imperfeição. O senhor. O belo senhor
existe. O senhor sente que existe. Não, o belo senhor que passa, altivo e suave
como uma ipomeia, não sente que existe. Desabrochar; minha mão cortada dói,
existe, existe, existe. O belo senhor existe, Legião de Honra, existe bigode, é só;
como deve ser feliz quem é apenas uma Legião de Honra e um bigode e o resto
ninguém vê, ele vê as duas pontas finas de seu bigode dos dois lados do nariz;
não penso, logo sou um bigode. Não vê nem seu corpo magro nem seus pés
grandes, vasculhando no fundo das calças se encontraria um par de borrachinhas
cinzentas. Ele tem a Legião de Honra, os Salafrários têm o direito de existir.
“Existo, porque isso é um direito meu.” Tenho o direito de existir, logo tenho o
direito de não pensar: o dedo não se ergue. Será que vou... acariciar na plenitude
dos lençóis brancos a carne branca plena que se inclina suave, tocar a umidade
florida das axilas, os elixires e os licores e as florescências da carne, entrar na
existência de outrem, nas mucosas vermelhas com o forte, doce, doce odor de
existência, me sentir existir entre os suaves lábios molhados, os lábios vermelhos
de sangue pálido, os lábios palpitantes que bocejam todos molhados de
existência, todos molhados de pus claro, entre os lábios molhados açucarados
que lacrimejam como olhos? Meu corpo de carne que vive, a carne que fervilha
e mexe suavemente licores, que mexe creme, a carne que mexe, mexe, mexe, a
água doce e açucarada de minha carne, o sangue de minha mão, dói-me, suave
em minha carne pisada que mexe, anda, eu ando, fujo, sou um ignóbil indivíduo
com a carne pisada, pisada de existência contra essas paredes. Sinto frio, dou um
passo, sinto frio, um passo, viro à esquerda, ele vira à esquerda, ele pensa que
vira à esquerda, louco, estou louco? Ele diz que tem medo de estar louco, a
existência, você vê a existência? Ele para, o corpo para, ele pensa que para, de
onde vem? Que faz? Recomeça a andar, sente medo, muito medo, o ignóbil
indivíduo, o desejo como uma bruma, o desejo, o nojo, ele diz que está enojado
de existir. Está enojado? Cansado e enojado de existir. Está correndo. Que
espera? Corre para fugir de si mesmo, para se jogar no lago? Corre, o coração, o
coração que bate é uma festa. O coração existe, as pernas existem, a respiração
existe, eles existem correndo, respirando, batendo muito frouxo, muito lento,
perde o fôlego, perco o fôlego, ele diz que perde o fôlego; a existência agarra
meus pensamentos por trás e os desenvolve lentamente por trás; me agarram por
trás, me forçam por trás a pensar, portanto a ser alguma coisa, atrás de mim, que
respira em leves bolhas de existência, ele é bolha de bruma de desejo, no espelho
é pálido como um morto, Rollebon morreu, Antoine Roquentin não morreu,
desmaiar; ele disse que queria desmaiar, está correndo, o furão corre (por trás)
por trás por trás, a pequena Lucienne atacada por trás, violada pela existência
por trás, ele pede misericórdia, tem vergonha de pedir misericórdia, piedade,
socorro, socorro logo existo, entra no Bar de la Marine, os espelhinhos do
bordelzinho, está pálido nos espelhinhos do bordelzinho, o ruivo grandalhão e
mole que se deixa cair no banco, o pick-up tocando existe, tudo gira, existe o
pick-up, o coração bate: girem, girem licores da vida, girem gelatinas, xaropes de
minha carne, doçuras... O pick-up.

When the low moon begins to beam


Every night I dream a little dream.

A voz grave e rouca surge bruscamente e o mundo se desvanece, o mundo das


existências. Uma mulher de carne teve essa voz, cantou diante de um disco, com
sua roupa mais bonita, e gravaram sua voz. A mulher: ora! ela existia como eu,
como Rollebon, não desejo conhecê-la. Mas há isso. Não se pode dizer que isso
existe. O disco que gira existe, o ar atingido pela voz que vibra existe, a voz que
se imprimiu no disco existiu. Eu, que escuto, existo. Tudo está cheio, existência
por todo lado, densa e pesada e suave. Mas, para além de toda essa suavidade,
inacessível, bem perto, tão longe, lamentavelmente, jovem, impiedoso e sereno,
existe esse... esse rigor.

Terça-feira
Nada. Existido.

Quarta-feira
Há um círculo de sol sobre a toalha de papel. No círculo uma mosca se arrasta
entorpecida, se aquece e esfrega uma na outra as patas dianteiras. Vou lhe fazer o
favor de esmagá-la. Ela não vê surgir o indicador gigante, cujos pelos dourados
brilham ao sol.
— Não a mate, senhor! — exclama o Autodidata.
A mosca rebenta, as tripinhas brancas emergem de seu ventre; libertei-a da
existência. Digo secamente ao Autodidata:
— Era um favor a prestar a ela.
Por que estou aqui? E por que não estaria aqui? É meio-dia, estou à espera da
hora de dormir. (Felizmente não perco o sono.) Dentro de quatro dias reverei
Anny: no momento é essa a minha única razão de viver. E depois? Quando Anny
me tiver deixado? Sei muito bem o que espero sorrateiramente: espero que ela
nunca mais me deixe. No entanto deveria saber que Anny jamais aceitará
envelhecer diante de mim. Sinto-me fraco e só, preciso dela. Teria gostado de
revê-la em pleno vigor: Anny não tem piedade dos destroços.
— O senhor está bem? Sente-se bem?
O Autodidata me olha de soslaio com olhos sorridentes. Está um pouco
ofegante, a boca aberta, como um cachorro esbaforido. Confesso: essa manhã me
sentia quase feliz por revê-lo, tinha necessidade de falar.
— É um grande prazer tê-lo à minha mesa — disse ele. — Se sente frio,
podemos nos instalar perto do calefator. Aqueles senhores já estão para ir
embora, pediram a conta.
Alguém se preocupa comigo, pergunta se sinto frio; falo com outro homem:
há anos que isso não me acontece.
— Estão indo embora, quer que mudemos de lugar?
Os dois senhores acenderam cigarros. Saem: ei-los no ar puro, ao sol.
Passam pelas vitrines, segurando seus chapéus com as duas mãos. Riem; o vento
enfuna seus sobretudos.
Não, não quero mudar de lugar. Para quê? E depois, através dos vidros, por
entre os tetos brancos das cabines de banho, vejo o mar, verde e compacto.
O Autodidata tirou de sua carteira dois retângulos de papelão cor de violeta.
Daqui a pouco vai entregá-los à caixa. Num deles decifro de trás para diante:

Maison Bottanet, comida caseira.


Almoço a preço fixo: 8 francos.
Hors-d’œuvre variados, à escolha.
Carne e guarnição.
Queijo ou sobremesa.
20 cachets: 140 francos.

Estou reconhecendo agora o sujeito que está comendo na mesa redonda perto da
porta: fica muitas vezes no hotel Printania, é um caixeiro-viajante. De quando
em quando seu olhar atento e sorridente pousa em mim; mas ele não me vê; está
muito absorvido em examinar o que está comendo. Do outro lado da caixa, dois
homens atarracados e sanguíneos saboreiam mexilhões, bebendo vinho branco.
O mais baixo, que usa um bigode fino e amarelado, está contando uma história
que o diverte. Faz uma pausa e ri, exibindo dentes brilhantes. O outro não ri;
seus olhos são duros. Mas seguidamente faz que sim com a cabeça. Perto da
janela, um homem magro e moreno, de feições finas e bonitos cabelos brancos
puxados para trás, lê seu jornal com ar pensativo. No banco a seu lado colocou
uma pasta de couro. Está bebendo água de Vichy. Dentro em pouco todas essas
pessoas se irão, sentindo o peso da comida, acariciadas pela brisa, de sobretudo
aberto, a cabeça um pouco quente, um pouco ressoante, caminharão junto à
balaustrada, olhando para as crianças na praia e os barcos no mar; irão para seu
trabalho. Eu não irei a parte alguma, não tenho trabalho.
O Autodidata ri inocentemente e o sol brinca em seus cabelos ralos.
— Quer escolher sua comida?
Estende-me o cardápio: tenho direito a um hors-d’œuvre à escolha: cinco
pedacinhos de salsichão ou de rabanetes ou de camarões miúdos ou um pratinho
de aipo rémoulade. Os escargots de Bourgogne são extraordinários.
— Traga-me um salsichão — digo à empregada.
Ele me arranca das mãos o cardápio:
— Não há nada melhor? Há escargots de Bourgogne.
— É que não gosto muito de escargots.
— Ah! Então, que tal ostras?
— São mais quatro francos — diz a empregada.
— Muito bem, ostras, senhorita, e rabanetes para mim.
Explica-me enrubescendo:
— Gosto muito de rabanetes.
Eu também.
— E depois? — pergunta.
Percorro a lista das carnes.
Uma carne estufada me tentaria. Mas sei de antemão que vou comer frango à
caçadora, é o único prato de carne extraordinário.
— Traga um frango à caçadora para o senhor — diz ele. — Para mim uma
carne estufada, senhorita.
Vira o cardápio: a lista de vinhos está no verso.
— Vamos tomar vinho — diz com ar um pouco solene.
— Deve ser um dia especial — diz a empregada. — O senhor nunca toma
vinho.
— Mas posso perfeitamente tolerar um copo de vinho de vez em quando.
Senhorita, quer nos trazer uma garrafa de Rosé d’Anjou?
O Autodidata larga o cardápio, pica o pão em pequenos pedaços e limpa os
talheres com o guardanapo. Dá uma olhadela para o homem de cabelos brancos
que lê o jornal, depois sorri para mim:
— Habitualmente trago um livro para cá, embora um médico me tenha
desaconselhado isso: come-se muito depressa, não se mastiga. Mas tenho um
estômago de avestruz, posso engolir qualquer coisa. Durante o inverno de 1917,
quando eu estava preso, a comida era tão ruim que todo mundo adoeceu. É claro
que me fingi de doente como os outros: mas não tinha nada.
Foi prisioneiro de guerra... É a primeira vez que me fala disso; custa-me
acreditar: só posso imaginá-lo como um autodidata.
— Onde esteve preso?
Ele não responde. Pousou o garfo e me olha com uma intensidade
prodigiosa. Vai me contar seus problemas: lembro-me agora que algo o aborrecia
na biblioteca. Sou todo ouvidos: tudo o que quero é me compadecer com os
problemas dos outros; isso representará uma mudança para mim. Não tenho
problemas, tenho dinheiro, fruto de rendas, não tenho patrão, nem mulher, nem
filhos; existo, é tudo. E esse tédio é tão vago, tão metafísico que me sinto
envergonhado.
O Autodidata não parece querer falar. É curioso o olhar que me lança: não é
um olhar para ver, é mais de comunhão de almas. A alma do Autodidata subiu-
lhe até os magníficos olhos de cego, onde aflora. Que a minha faça o mesmo,
que venha grudar o nariz nas vidraças e ambas trocarão gentilezas.
Não desejo comunhão de almas, não caí tão baixo. Recuo. Mas o Autodidata
avança o busto por cima da mesa, sem tirar os olhos de mim. Felizmente chega a
garçonete com seus rabanetes. Ele torna a descair sobre a cadeira, sua alma
desaparece de seus olhos, ele começa a comer docilmente.
— Resolveu seus problemas?
Ele estremece:
— Que problemas, senhor? — pergunta com ar assustado.
— O senhor sabe muito bem, falou-me a esse respeito outro dia...
Ele enrubesce violentamente.
— Ah! — diz com voz seca. — Ah! Sim, outro dia. Pois é, é esse corso,
senhor, esse corso da biblioteca.
Hesita uma segunda vez, com ar teimoso de carneiro.
— São mexericos, senhor. Não quero importuná-lo com isso.
Não insisto. Embora não pareça, ele come com uma rapidez extraordinária.
Já acabou seus rabanetes quando me trazem as ostras. Em seu prato resta apenas
um feixe de talos verdes e um pouco de sal molhado.
Lá fora dois jovens pararam em frente ao cardápio que um cozinheiro de
papelão lhes apresenta com a mão esquerda (na direita segura uma frigideira).
Hesitam. A mulher está com frio, encolhe o queixo na gola de pele. O rapaz é o
primeiro a se decidir, abre a porta e se afasta para deixar passar a companheira.
Ela entra. Olha em torno de si com ar amável e tem um pequeno arrepio:
— Está quente — diz com voz grave.
O rapaz torna a fechar a porta.
— Bom dia a todos — diz ele.
O Autodidata se vira e responde delicadamente:
— Bom dia.
Os outros fregueses não respondem, mas o senhor distinto baixa um pouco o
jornal e examina os recém-chegados com um olhar profundo.
— Obrigado, não perca seu tempo.
Antes que a garçonete, que acorrera para ajudá-lo, pudesse ter tido tempo de
esboçar um gesto, o rapaz se desembaraçou agilmente de seu impermeável. Em
vez de casaco está usando um blusão de couro de fecho ecler. A garçonete, um
pouco decepcionada, se volta para a moça. Mas ele se antecipa uma vez mais e
com gestos suaves e precisos ajuda a acompanhante a tirar o casaco. Sentam-se
perto de nós, encostados um no outro. Não dão a impressão de se conhecerem há
muito tempo. A moça tem uma expressão cansada e pura, um pouco amuada. De
repente tira o chapéu e sacode os cabelos pretos sorrindo.
O Autodidata os contempla demoradamente, com bondade; depois se vira
para mim e dá uma piscadela enternecida, como se quisesse dizer: “Como são
belos!”
Não são feios. Estão ambos calados, sentem-se felizes por estarem juntos,
por serem vistos juntos. Às vezes, quando Anny e eu entrávamos num
restaurante de Piccadilly, sentíamo-nos objeto de contemplações enternecidas.
Anny se irritava com isso, mas confesso que eu sentia um certo orgulho. Sentia-
me sobretudo surpreso: nunca tive a aparência cuidada que assenta tão bem
nesse rapaz; nem mesmo se pode dizer que minha feiura seja comovente.
Acontece que éramos jovens: agora atingi a idade em que nos enternecemos com
a juventude dos outros. Não me enterneço. A mulher tem olhos escuros e doces;
o rapaz, uma pele alaranjada, um pouco granulosa, e um queixinho voluntarioso
encantador. Eles me tocam — é verdade —, mas também me desagradam um
pouco. Sinto-os tão longe de mim: o calor os enlanguesce, em seus corações eles
alimentam o mesmo sonho, tão doce, tão frágil. Estão à vontade, olham
confiantes para as paredes amarelas, para as pessoas, acham que o mundo está
bem como está, exatamente como é, e cada um deles provisoriamente colhe o
sentido de sua vida na do outro. Dentro em breve constituirão uma só vida para
ambos, uma vida lenta e morna que não terá qualquer sentido — mas eles não se
aperceberão disso.
Parecem se intimidar reciprocamente. Para terminar com isso, o rapaz, com
ar desajeitado e decidido, agarra com a ponta dos dedos a mão de sua
companheira. Ela respira fundo e ambos se põem a olhar o cardápio. Sim, estão
felizes. Mas e depois?
O Autodidata assume um ar divertido, um pouco misterioso:
— Vi-o anteontem.
— Onde?
— Ha, ha! — diz com certa implicância respeitosa.
Faz-me esperar um momento; depois:
— O senhor estava saindo do museu.
— Ah, sim — digo. — Não foi anteontem, foi sábado.
Anteontem obviamente não estava com disposição para percorrer museus.
— Viu a famosa reprodução em talha do atentado de Orsini?
— Não a conheço.
— Impossível! Está numa sala pequena, à direita de quem entra. É obra de
um insurrecto da Comuna que viveu em Bouville até a anistia, escondido num
sótão. Projetara embarcar para a América, mas aqui a polícia do porto é muito
organizada. Um homem admirável. Utilizou seu ócio forçado para esculpir um
grande painel em carvalho. Os únicos instrumentos de que dispunha eram seu
canivete e uma lima de unhas. Fazia as partes mais delicadas — mãos, olhos —
com a lima. O painel tem um metro e cinquenta de comprimento por um metro
de largura; o trabalho todo é numa peça só; há setenta personagens, cada um
deles do tamanho de minha mão, sem contar os dois cavalos que puxam a
carruagem do imperador. E os rostos, senhor, aqueles rostos feitos com uma
lima, todos têm uma fisionomia, um ar humano. Senhor, se posso tomar a
liberdade, é uma obra que merece ser vista.
Não quero me comprometer:
— Minha intenção foi apenas rever os quadros de Bordurin.
O Autodidata se entristece bruscamente:
— Os retratos do salão? — diz com um sorriso trêmulo. — Eu não entendo
nada de pintura. É claro que não ignoro que Bordurin é um grande pintor, vejo
que sabe usar as cores, é habilidoso, tem boa mão, é assim que se diz? Mas o
prazer, senhor, o prazer estético é algo que me escapa.
Digo-lhe com simpatia:
— Ocorre o mesmo comigo em relação à escultura.
— Ah! Senhor! Comigo também. E igualmente com a música e com a dança.
No entanto, tenho alguns conhecimentos. Pois bem, é inconcebível: vi jovens
que não sabiam a metade do que sei e que, postados diante de um quadro,
pareciam sentir prazer.
— Deviam estar fingindo — digo para animá-lo.
— Talvez...
O Autodidata devaneia por um momento:
— O que me desola não é tanto me sentir privado de uma determinada
espécie de prazer, mas sim o fato de que todo um ramo da atividade humana me
seja estranha... No entanto sou homem e esses quadros foram feitos por
homens...
Ele continua, alterando a voz de repente:
— Senhor, uma vez ousei pensar que a beleza era apenas uma questão do
gosto. Não existem regras diferentes para cada época? Dá licença, senhor?
Surpreso, vejo-o tirar do bolso um caderninho preto. Folheia-o um instante:
muitas páginas em branco e de longe em longe algumas linhas traçadas com tinta
vermelha. Ficou inteiramente pálido. Colocou o caderninho na toalha e pousa a
mão grande sobre a página aberta. Tosse, mostrando-se embaraçado:
— Às vezes me vêm à mente... não ouso dizer pensamentos. E curioso: estou
em algum lugar, lendo, e de repente, não sei de onde vem isso, me sinto como
que iluminado. De início não dava atenção a isso, depois resolvi comprar um
caderninho.
Para e olha para mim: está à espera.
— Ha, ha! — digo.
— Senhor, naturalmente essas máximas são provisórias: minha instrução
ainda não terminou.
Pega o caderninho com as mãos trêmulas, está muito emocionado:
— Eis exatamente algo sobre a pintura. Ficaria muito feliz se me permitisse
que lesse para o senhor.
— Com prazer — digo.
Ele lê:
“Ninguém mais acredita no que o século XVIII considerava verdadeiro. Por
que se desejaria que ainda experimentássemos prazer com as obras que eles
consideravam belas?”
Olha-me com ar de súplica.
— O que acha, senhor? Talvez seja um pouco paradoxal? É que me pareceu
poder dar à minha ideia a forma de um dito espirituoso.
— Bem, eu... acho isso muito interessante.
— Já leu isso em algum lugar?
— Não, claro que não.
— De verdade, nunca, em parte alguma? Então, senhor — diz contristado —,
é porque isso não é verdade. Se fosse verdade, alguém já o teria pensado.
— Espere um pouco — digo. — Pensando melhor, acho que li algo no
gênero.
Seus olhos brilham; ele puxa seu lápis.
— Em que autor? — pergunta-me em tom objetivo.
— Em... em Renan.
Ele está no céu.
— Poderia ter a bondade de me citar a passagem exata? — diz, mordendo a
ponta do lápis.
— Sabe, li isso há muito tempo.
— Oh! Isso não tem importância, isso não tem importância.
Escreve o nome de Renan no caderninho, por baixo de sua máxima.
— Encontrei-me com Renan! Escrevi o nome a lápis — explica em tom
encantado —, mas essa noite vou passá-lo a tinta vermelha.
Olha um momento para o caderninho, extasiado, fico aguardando que me
leia outras máximas. Mas ele o fecha com precaução e enfia-o no bolso. Sem
dúvida, acha que já é felicidade bastante para uma só vez.
— Como é agradável — diz com ar íntimo — poder às vezes conversar
assim, livremente.
Essa observação, que cai como uma pedra, como era de supor, aniquila nossa
conversa já pouco animada. Segue-se um longo silêncio.
Desde que os dois jovens chegaram, a atmosfera do restaurante se
transformou. Os dois homens rubros se calaram; examinam sem
constrangimento os atrativos da moça. O senhor distinto pousou o jornal e olha
para o casal com benevolência, quase com cumplicidade. Pensa que a velhice é
sábia, que a juventude é bela, sacode a cabeça com ar levemente sedutor: bem
sabe que ainda é bonito, admiravelmente conservado, que com sua tez morena e
seu corpo delgado ainda pode atrair. Faz-se de paternal. Os sentimentos da
empregada parecem mais simples: postou-se em frente aos jovens e contempla-
os boquiaberta.
Eles falam em voz baixa. Serviram-lhes hors-d’œuvre, mas nem provaram.
Aguçando o ouvido, posso ouvir trechos de sua conversa. Percebo melhor o que
diz a mulher com sua voz rica e velada.
— Não, Jean, não.
— Por quê? — murmura o rapaz com vivacidade apaixonada.
— Já lhe disse.
— Isso não é motivo.
Algumas palavras me escapam, depois a jovem faz um gracioso gesto
cansado:
— Já tentei demais. Já passei da idade em que se pode recomeçar a vida.
Estou velha, sabe...
O rapaz ri com ironia. Ela continua:
— Não toleraria uma... decepção.
— Você tem que confiar — diz o rapaz. — Da maneira como está agora,
você não está vivendo.
Ela suspira:
— Eu sei!
— Pense em Jeannette.
— Sim — diz ela com um muxoxo.
— Pois bem, acho muito bonito o que ela fez. Ela teve coragem.
— Sabe — diz a mulher —, acho que ela aproveitou a ocasião. Se quer saber,
se eu tivesse querido, teria tido centenas de ocasiões desse tipo. Preferi esperar.
— Fez bem — diz ele com ternura —, fez bem em esperar por mim.
Ela ri por sua vez:
— Pretensioso! Não foi isso que eu disse.
Já não os ouço: me irritam. Vão dormir juntos. Sabem disso. Cada um dos
dois sabe que o outro sabe. Mas, como são jovens, castos e decentes, como cada
um deles quer manter sua autoestima e a do outro, como o amor é uma grande
coisa poética que é preciso não chocar, eles vão várias vezes por semana aos
bailes e aos restaurantes, para oferecer o espetáculo de suas dancinhas rituais e
mecânicas...
Afinal é preciso matar o tempo. São jovens, de boa compleição, ainda têm
uns trinta anos pela frente. Então não se apressam, dão tempo ao tempo, e não
estão errados nisso. Quando tiverem dormido juntos, terão que descobrir outra
coisa para encobrir o enorme absurdo de suas existências. Ainda assim... será
absolutamente necessário mentir a si mesmos?
Percorro a sala com os olhos. É uma farsa! Todas essas pessoas estão
sentadas numa atitude séria; estão comendo. Não, não estão comendo: recobram
suas forças para levar a bom termo a tarefa que lhes cabe. Cada uma delas tem
sua pequena obstinação pessoal que as impede de perceber que existem; não há
um só que não se julgue indispensável a alguém ou a alguma coisa. Não era o
Autodidata que me dizia outro dia: “Ninguém estava mais qualificado do que
Nouçapié para tentar essa vasta síntese”? Cada um deles faz uma coisinha e
ninguém mais qualificado do que o próprio para fazê-la. Ninguém é mais
qualificado do que aquele caixeiro-viajante que lá está, para vender a pasta
dental Swan. Ninguém melhor qualificado do que esse rapaz interessante para
introduzir a mão sob as saias de sua vizinha. E eu estou entre eles, e, se olham
para mim, devem pensar que ninguém é melhor qualificado do que eu para fazer
o que faço. Mas eu sei. Pareço insignificante, mas sei que existo e que eles
existem. E se tivesse a arte da persuasão, iria me sentar perto do belo senhor de
cabelos brancos e lhe explicaria o que é a existência. Caio na gargalhada,
imaginando a cara que ele faria. O Autodidata me olha com ar surpreso. Gostaria
de parar de rir, mas não consigo: choro de rir.
— O senhor está alegre — diz o Autodidata com ar circunspecto.
— É porque estou pensando — digo rindo — que aqui estamos, todos nós,
comendo e bebendo, para conservar nossa preciosa existência, e que não há
nada, nada, nenhuma razão para existir.
O Autodidata assumiu um ar grave, se esforça para me compreender. Eu ri
muito alto: vi várias cabeças se voltando para mim. E também lamento ter falado
tanto. Afinal, ninguém tem nada com isso.
Ele repete lentamente:
— Nenhuma razão para existir... Certamente o senhor quer dizer que a vida
não tem finalidade? Não é isso que chamam de pessimismo?
Ele reflete ainda um momento, depois diz com afabilidade:
— Li há alguns anos um livro de um autor americano que se chamava A vida
vale a pena ser vivida? Não é essa a pergunta que o senhor se faz?
Evidentemente não, não é esta a pergunta que me faço. Mas não quero
explicar nada.
— Ele concluía — diz o Autodidata em tom de consolo — optando pelo
otimismo voluntário. A vida tem sentido, se quisermos lhe dar um. Em primeiro
lugar é preciso agir, se lançar num empreendimento qualquer. Se em seguida
refletirmos, a sorte está lançada, estamos comprometidos. Não sei o que é que o
senhor pensa a esse respeito.
— Nada — digo.
Ou por outra, penso que é precisamente o tipo de mentira que utilizam para
si mesmos, perpetuamente, os caixeiros-viajantes, os dois jovens e o senhor de
cabelos brancos.
O Autodidata sorri com um pouco de malícia e muita solenidade:
— Também não sou dessa opinião. Acho que não temos que ir buscar tão
longe o sentido de nossa vida.
— Como?
— Há uma finalidade, senhor, há uma finalidade... há os homens.
É verdade: estava esquecendo que ele é um humanista. Permanece um
momento em silêncio, o tempo de fazer desaparecer cuidadosamente,
inexoravelmente, a metade de sua carne estufada e uma fatia inteira de pão. “Há
os homens...” Esse homem sensível acaba de pintar um autorretrato. Sim, mas
não sabe se expressar bem. É indiscutível que seus olhos transbordam de alma,
mas a alma não basta. No passado frequentei humanistas parisienses, ouvi-os
dizer mais de cem vezes: “há os homens”; e era diferente! Virgan era
inigualável. Tirava os óculos, como para se mostrar nu em sua carne de homem,
me encarava com seus olhos comoventes, com um olhar grave e fatigado, que
parecia me despir para captar minha essência humana, depois murmurava
melodiosamente: “Há os homens, meu velho, há os homens.” E dava ao há uma
espécie de força canhestra, como se seu amor pelos homens, perpetuamente
novo e admirado, se enredasse em suas asas gigantescas.
A mímica do Autodidata não adquiriu esse aveludado; seu amor pelos
homens é ingênuo e bárbaro: um humanista de província.
— Os homens — digo-lhe —, os homens, de toda maneira, não parecem
preocupá-lo tanto: o senhor está sempre sozinho, sempre enfiado num livro.
O Autodidata bate palmas, começa a rir maliciosamente:
— O senhor se equivoca. Ah! Permita que lhe diga: como se equivoca!
Recolhe-se um momento e acaba de deglutir discretamente. Seu rosto está
radioso como uma aurora. Atrás dele a jovem mulher dá uma risada. Seu
companheiro se inclinou para ela e cochicha em seu ouvido.
— Seu equívoco é muito natural — diz o Autodidata. — Há muito que devia
ter lhe dito... Mas sou tão tímido, senhor: esperava uma ocasião.
— Agora a encontrou — digo delicadamente.
— Também acho. Também acho! O que vou lhe dizer, senhor... —
Interrompe-se, enrubescendo. — Mas talvez o esteja importunando?
Tranquilizo-o. Ele solta um suspiro de felicidade.
— Não é todos os dias que se encontram homens como o senhor, em quem a
largueza de vistas se alia à penetração da inteligência. Faz meses que queria lhe
falar, lhe explicar o que fui, o que me tornei...
Seu prato está vazio e limpo como se acabassem de trazê-lo. Descubro de
repente, ao lado do meu, uma travessinha de metal, onde uma coxa de frango
nada num molho escuro. Tenho que comer isso.
— Ainda agora lhe falava de meu cativeiro na Alemanha. Foi lá que tudo
começou. Antes da guerra eu estava só e não me dava conta disso; vivia com
meus pais, que eram boas pessoas, mas não me entendia bem com eles. Quando
penso naqueles anos... Como pude viver assim? Estava morto, senhor, e não
percebia; tinha uma coleção de selos.
Olha para mim e se interrompe:
— O senhor está pálido, parece cansado. Não o estarei aborrecendo?
— Estou muito interessado no que me diz.
— Veio a guerra e me engajei sem saber por quê. Passei dois anos sem
entender, porque a vida no front deixava pouco tempo para refletir e, além disso,
os soldados eram muito rudes. No final de 1917 fui feito prisioneiro. Disseram-
me mais tarde que muitos soldados no cativeiro recuperaram a fé de sua infância.
Senhor — diz o Autodidata, baixando as pálpebras sobre as pupilas inflamadas
—, não creio em Deus; sua existência é desmentida pela ciência. Mas no campo
de concentração aprendi a acreditar nos homens.
— Suportavam seu destino com coragem?
— Sim — disse ele com ar grave —, também havia isso. Aliás, éramos bem
tratados. Mas queria falar de outra coisa; nos últimos meses de guerra já quase
não nos davam trabalho. Quando chovia, nos metiam num galpão de madeira
onde cabíamos quase duzentos, nos apertando. Fechavam a porta, nos deixavam
ali comprimidos uns contra os outros, numa escuridão quase total.
Hesitou um momento.
— Não saberia explicar, senhor. Todos aqueles homens estavam ali, mal se
viam, mas os sentíamos encostados em nós, ouvíamos o ruído de sua
respiração... Uma das primeiras vezes que nos fecharam nesse galpão, era tal o
aperto que inicialmente pensei que ia sufocar; depois, subitamente, uma forte
alegria surgiu em mim, quase desfaleci: senti então que amava aqueles homens
como irmãos, gostaria de beijá-los a todos. Depois disso, cada vez que lá
retornava, experimentava a mesma alegria.
Tenho que comer meu frango que já deve estar frio. Há muito que o
Autodidata terminou e a empregada está à espera para trocar os pratos.
— Para mim aquele galpão revestira-se de um caráter sagrado. Algumas
vezes consegui burlar a vigilância de nossos guardas, penetrei lá sozinho e, na
escuridão, com a lembrança das alegrias que ali experimentei, caía numa espécie
de êxtase. As horas passavam, mas eu não me dava conta. Houve momentos em
que solucei.
Devo estar doente: não há outra explicação para essa raiva intensa que acaba
de me invadir. Sim, uma raiva de doente: minhas mãos tremiam, o sangue me
subiu à cabeça e, para completar, também meus lábios começaram a tremer.
Tudo isso simplesmente porque o frango estava frio. Aliás, eu também estava
frio, e isso era o mais penoso: o que quero dizer é que o fundo permanecera
como estava há 36 horas: absolutamente frio, gelado. A raiva me atravessou num
turbilhão, era como um arrepio, um esforço de minha consciência para provocar
uma reação, para lutar contra essa queda de temperatura. Esforço inútil:
certamente teria sido capaz de espancar o Autodidata ou a garçonete, cobrindo-
os de injúrias por um motivo fútil. Mas não teria entrado inteiramente nesse
jogo. Minha raiva se debatia na superfície e durante um momento tive a
impressão penosa de ser um bloco de gelo envolto em fogo — uma omelette-
surprise. Essa agitação superficial se dissipou e ouvi o Autodidata dizendo:
— Ia à missa todos os domingos. Nunca fui crente, senhor. Mas não se
poderia dizer que o verdadeiro mistério da missa é a comunhão entre os homens?
Um capelão francês, que só tinha um braço, celebrava. Tínhamos um órgão.
Ouvíamos de pé, a cabeça descoberta, e, enquanto os sons do órgão me
transportavam, sentia que formava um todo com os homens que me rodeavam.
Ah! Senhor! Como gostava daquelas missas! Hoje em dia ainda, para recordá-
las, vou às vezes à igreja no domingo de manhã. Temos um organista notável em
Santa Cecília.
— Deve ter sentido saudade dessa vida muitas vezes.
— Sim, senhor, em 1919. Foi o ano de minha libertação. Passei meses muito
sofridos. Não sabia o que fazer, definhava. Em toda parte, onde via homens
reunidos, me enfiava no grupo. Cheguei até — acrescenta com um sorriso — a
acompanhar o enterro de um desconhecido. Num dia de desespero atirei no fogo
minha coleção de selos... Mas encontrei meu caminho.
— É mesmo?
— Alguém me aconselhou... Senhor, sei que posso confiar em sua discrição.
Sou... Talvez o senhor não compartilhe essas ideias, mas tem uma mentalidade
tão aberta... Sou um socialista.
Baixou os olhos e seus longos cílios se agitaram.
— Estou inscrito no partido socialista S.F.I.O. desde setembro de 1921. Era
isso que queria lhe dizer.
Está radiante de orgulho. Fitando-me, a cabeça inclinada para trás, os olhos
semicerrados, a boca entreaberta, parece um mártir.
— Isso é ótimo — digo. — Isso é muito bonito.
— Senhor, sabia que teria sua aprovação. E como se poderia censurar alguém
que vem confessar: dispus de minha vida de tal e tal maneira e agora me sinto
perfeitamente feliz?
Abriu os braços e me oferece as palmas da mão, os dedos apontando para o
chão, como se fosse receber os estigmas. Seus olhos estão vidrados, vejo rolar
em sua boca uma massa escura e rosada.
— Bem — digo —, uma vez que está feliz...
— Feliz? — Seu olhar é constrangedor; ele levantou as pálpebras e me olha
com ar duro. — O senhor poderá julgar. Antes de tomar essa decisão, sentia uma
solidão tão terrível que pensei em me suicidar. O que me reteve foi a ideia de
que ninguém, absolutamente ninguém, se comoveria com minha morte, que eu
estaria ainda mais só na morte do que na vida.
Endireita-se, suas faces se inflam.
— Já não estou só, senhor. Nunca mais estarei só.
— Ah, conhece muita gente? — digo.
Ele sorri e percebo imediatamente minha ingenuidade:
— Quero dizer, senhor, que já não me sinto só. Mas naturalmente não é
necessário para isso que esteja com alguém.
— No entanto, na seção socialista...
— Ah! Lá conheço todo mundo. Mas a maioria só de nome. Senhor — diz
com uma certa malícia —, será que somos obrigados a escolher companheiros de
maneira tão rígida? Meus amigos são todos os homens. Quando vou para o
escritório pela manhã, há diante de mim, atrás de mim, outros homens que estão
indo para o trabalho. Vejo-os; se me atrevesse, lhes sorriria, penso que sou
socialista, que todos eles são a finalidade de minha vida, de meus esforços, e que
ainda não sabem disso. É uma festa para mim, senhor.
Interroga-me com os olhos: aprovo, abaixando a cabeça, mas sinto que está
um pouco decepcionado, que desejaria mais entusiasmo. Que posso fazer? É
culpa minha se em tudo o que ele diz reconheço incidentalmente citações, ideias
alheias? Se vejo reaparecerem, enquanto fala, todos os humanistas que conheci?
E conheci tantos! O humanista radical é particularmente amigo dos funcionários.
O humanista dito “de esquerda” tem como principal preocupação conservar os
valores humanos; não adere a nenhum partido, pois não quer trair o humano,
mas suas simpatias se voltam para os humildes; é aos humildes que dedica sua
maravilhosa cultura clássica. Geralmente é um viúvo de belos olhos sempre
úmidos de lágrimas; chora nos aniversários. Gosta também dos gatos, dos
cachorros, de todos os mamíferos superiores. O escritor comunista gosta dos
homens, desde o segundo plano quinquenal: castiga porque ama. Pudico, como
todos os fortes, sabe ocultar seus sentimentos, mas sabe também, através de um
olhar, de uma inflexão de voz, fazer pressentir, por trás das palavras rudes de
justiceiro, sua paixão agridoce por seus irmãos. O humanista católico, o
retardatário, o benjamim, fala dos homens com ar embevecido. Que belo conto
de fadas, diz ele, é a mais humilde das vidas, como a de um estivador londrino
ou a de uma operária que pesponta botas! Escolheu o humanismo dos anjos;
escreve, para edificação dos anjos, longos romances tristes e belos, que
frequentemente recebem o prêmio Fémina.
Esses são os grandes papéis principais. Mas há outros, enorme quantidade de
outros: o filósofo humanista que vela por seus irmãos como um irmão mais
velho e que tem o senso de suas responsabilidades; o humanista que ama os
homens tais como são; o que os ama tais como deveriam ser; o que quer salvá-
los com sua concordância e o que os salvará, quer queiram quer não; o que
deseja criar novos mitos e o que se satisfaz com os antigos; o que ama no
homem sua morte; o que ama no homem sua vida; o humanista alegre, que tem
sempre uma coisa engraçada para dizer; o humanista sombrio que encontramos
sobretudo nos velórios. Todos eles se odeiam entre si: como indivíduos,
naturalmente — não como homens. Mas o Autodidata não sabe disso: fechou-os
todos dentro de si mesmo como gatos num saco de couro e eles se
entredilaceram sem que ele perceba.
Ele me olha já com menos confiança.
— O senhor não partilha meus sentimentos?
— Deus meu...
Diante de seu ar intranquilo, um pouco rancoroso, por um minuto lamento tê-
lo decepcionado. Mas ele continua amavelmente:
— Eu sei: o senhor tem suas pesquisas, seus livros, o senhor serve à causa de
outra maneira.
Meus livros, minhas pesquisas... Que imbecil! Não podia ter feito uma gafe
maior.
— Não é por isso que escrevo.
No mesmo instante o rosto do Autodidata se transformou; dir-se-ia que
farejou o inimigo. Nunca lhe tinha visto tal expressão. Entre nós algo morreu.
Ele pergunta, fingindo surpresa:
— Mas... se é que não estou sendo indiscreto, por que escreve então, senhor?
— Bem... não sei: por nada, por escrever.
Ele se permite sorrir, acha que me desconcertou:
— Escreveria numa ilha deserta? Quem escreve, não o faz sempre para ser
lido?
Foi por hábito que deu à frase um tom interrogativo. Na realidade, está
afirmando. Seu verniz de suavidade e de timidez se desfez; já não o reconheço.
Seus traços deixam transparecer uma grande obstinação; é um muro de
suficiência. Ainda não me refiz de minha surpresa e já o ouço dizer:
— Que me digam: escrevo para uma determinada categoria social, para um
grupo de amigos. Ótimo. Talvez o senhor escreva para a posteridade... Mas,
querendo ou não, escreve para alguém.
Aguarda uma resposta. Como esta não vem, sorri sem entusiasmo.
— Talvez o senhor seja um misantropo?
Sei bem o que esse falacioso esforço de conciliação dissimula. Em suma, ele
me pede pouco: simplesmente que aceite um rótulo. Mas isso é uma armadilha:
se consinto, o Autodidata triunfa, sou imediatamente contornado, recapturado,
ultrapassado, porque o humanismo retoma e funde juntas todas as atitudes
humanas. Se o enfrentamos, entramos em seu jogo; ele vive de seus adversários.
Há uma raça de pessoas teimosas e limitadas, de desonestos, que perdem sempre
contra ele: todas as violências, seus piores excessos, são digeridos por ele,
transformados numa linfa branca e espumosa. Digeriu assim o anti-
intelectualismo, o maniqueísmo, o misticismo, o pessimismo, o anarquismo, o
egotismo; tudo isso já não passa de etapas, de pensamentos incompletos que só
encontram sua justificação nele. Também a misantropia tem seu lugar nesse
concerto: ela é apenas uma dissonância necessária à harmonia do todo. O
misantropo é homem: portanto, em certa medida é preciso que o humanista seja
misantropo. Mas é um misantropo científico, que soube dosar seu ódio, que só
começou a odiar os homens para poder amá-los melhor depois.
Não quero que me integrem, nem que meu belo sangue vermelho vá
engordar esse animal linfático: não cometerei a tolice de me declarar “anti-
humanista”. Eu não sou humanista, eis tudo.
— Acho — digo ao Autodidata — que não se pode odiar nem amar os
homens.
O Autodidata me olha com ar protetor e distante. Murmura, como se não se
desse conta de suas palavras:
— É preciso amá-los, é preciso amá-los...
— É preciso amar quem? As pessoas que estão aqui?
— Também elas. Todos.
Volta-se para o casal de radiosa juventude: eis o que é preciso amar.
Contempla por um momento o senhor de cabelos brancos. Depois dirige
novamente seu olhar para mim; leio em seu rosto uma interrogação muda. Faço
que não com a cabeça. Ele parece sentir piedade de mim.
— Também o senhor não os ama — digo irritado.
— Realmente, senhor? Permite que discorde de sua opinião?
Tornou-se outra vez respeitoso até a raiz dos cabelos, mas faz o olhar irônico
de alguém que estivesse se divertindo enormemente. Odeia-me. Teria sido um
erro me enternecer com esse maníaco. Interrogo-o por minha vez:
— Então ama esses dois jovens que estão atrás do senhor?
Olha-os novamente, reflete:
— O senhor quer que eu diga — replica com desconfiança — que os amo
sem conhecê-los. Pois bem, senhor, confesso que não os conheço... A não ser,
justamente, que o amor seja o verdadeiro conhecimento — acrescenta com um
riso presunçoso.
— Mas o que é que o senhor ama?
— Vejo que são jovens e é a juventude que amo neles. Entre outras coisas,
senhor.
Interrompeu-se e ficou à escuta.
— Percebe o que dizem?
Se percebo! Encorajado pela simpatia que o rodeia, o rapaz está descrevendo
com voz cheia um jogo de futebol que seu time ganhou no ano passado jogando
contra um time do Havre.
— Ele está contando uma história — digo ao Autodidata.
— Ah! Não ouço bem. Mas ouço as vozes, a voz suave, a voz grave: elas se
alternam. É... é tão simpático.
— Só que eu também ouço o que dizem, infelizmente.
— E então?
— E então estão fingindo, representando uma comédia.
— Realmente? A comédia da juventude talvez? — pergunta com ironia. —
Se me permite, senhor, acho-a muito proveitosa. Basta representá-la para
retornar à idade deles?
Ignoro sua ironia; prossigo:
— O senhor está de costas para eles, o que estão dizendo lhe escapa... De
que cor são os cabelos da jovem mulher?
Ele se perturba:
— Bem, eu... — olha de relance para os dois jovens e recupera a segurança.
— Pretos!
— O senhor bem vê!
— Como?
— Bem vê que não ama esses dois. Talvez nem os reconhecesse na rua. São
apenas símbolos para o senhor. Não é absolutamente com eles que está se
comovendo; comove-se com a Juventude do Homem, com o Amor do Homem e
da Mulher, com a Voz Humana.
— E então? Essas coisas não existem?
— Claro que não, nada disso existe. Nem a Juventude, nem a Idade Madura,
nem a Velhice, nem a Morte...
O rosto do Autodidata, amarelo e duro como um marmelo, cristalizou-se
num tétano reprovador.
Apesar disso, prossigo:
— É como o velho atrás do senhor, bebendo água de Vichy. Suponho que o
que ama nele é o Homem Maduro; o Homem Maduro que caminha
corajosamente para o seu declínio e que se veste com esmero porque não quer se
abandonar?
— Exatamente — diz em tom de desafio.
— E não vê que é um salafrário?
Ele ri, me acha estouvado, lança um olhar rápido para o belo rosto
emoldurado de cabelos brancos:
— Mas, senhor, admitindo que ele pareça o que o senhor diz, como pode
julgar um homem por sua fisionomia? Um rosto em repouso não exprime nada.
Cegos humanistas! Aquele rosto é tão eloquente, tão claro — mas nunca suas
almas sensíveis e abstratas se deixaram tocar pelo sentido de um rosto.
— Como pode — diz o Autodidata — limitar um homem, dizer que é isso ou
aquilo? Quem pode esgotar um homem? Quem pode conhecer os recursos de um
homem?
Esgotar um homem! De passagem, cumprimento o humanismo católico do
qual, sem sabê-lo, o Autodidata tirou essa frase.
— Sei — digo-lhe —, sei que todos os homens são admiráveis. O senhor é
admirável. Eu sou admirável. Enquanto criaturas de Deus, naturalmente.
Ele me olha sem compreender, depois com um leve sorriso:
— Certamente está brincando, senhor, mas é verdade que todos os homens
têm direito à nossa admiração. É difícil, senhor, muito difícil ser um homem.
Afastou-se, sem se dar conta, do amor dos homens em Cristo; sacode a
cabeça e, por um curioso fenômeno de mimetismo, se parece com o pobre
Guéhenno.[12]
— Desculpe — digo-lhe —, mas então não estou muito certo de ser um
homem: nunca tinha achado isso muito difícil. Parecia-me que bastava se deixar
levar.
O Autodidata ri francamente, mas seus olhos permanecem malignos.
— É muito modesto, senhor. Para suportar sua condição, a condição humana,
precisa de muita coragem, como todo mundo. O próximo instante pode ser o de
sua morte, o senhor sabe disso e consegue sorrir: não é admirável? Na mais
insignificante de suas ações — acrescenta com acrimônia — há uma imensidade
de heroísmo.
— O que vão querer de sobremesa? — diz a empregada.
O Autodidata está branco, suas pálpebras semicerradas sobre olhos de pedra.
Faz um pequeno gesto com a mão, como para me convidar a escolher.
— Um queijo — digo com heroísmo.
— E o senhor?
Ele estremece.
— Hem? Ah! sim: bem, não quero nada, já terminei.
— Louise!
Os dois homens corpulentos pagam e vão embora. Um deles manca. O patrão
os leva até a porta: são fregueses importantes, serviram-lhes uma garrafa de
vinho num balde de gelo.
Contemplo o Autodidata com uma ponta de remorso: ele passou a semana
inteira antegozando esse almoço, no qual poderia comunicar a outro homem seu
amor pelos homens. É tão raro que tenha ocasião de falar! E vejam só: estraguei
seu prazer. No fundo, é tão só quanto eu; ninguém se preocupa com ele. Apenas
ele não percebe sua solidão. Sim, muito bem: mas não competia a mim lhe abrir
os olhos. Sinto-me pouco à vontade: é verdade que estou furioso, mas não com
ele, com os Virgans e os outros, todos aqueles que envenenaram esse pobre
cérebro. Se pudesse tê-los aqui, diante de mim, teria tanta coisa a lhes dizer! Ao
Autodidata não direi nada; só merece a minha simpatia: é uma pessoa do tipo do
sr. Achille, alguém que estava do meu lado e que traiu por ignorância, por boa
vontade!
Uma risada do Autodidata me faz sair de meus devaneios sombrios:
— Desculpe, mas quando penso na profundidade de meu amor pelos
homens, na força dos impulsos que me aproximam deles e nos vejo aqui
raciocinando, argumentando... sinto vontade de rir.
Calo-me, sorrio constrangido. A empregada põe diante de mim um prato com
um pedaço de camembert gredoso. Percorro a sala com o olhar e um asco
violento me invade. Que estou fazendo aqui? Por que me meti a discutir sobre o
humanismo? Por que estão aqui essas pessoas? Por que comem? É verdade que
elas não sabem que existem. Sinto vontade de ir embora, de ir a algum lugar
onde pudesse estar realmente em meu lugar, onde me encaixasse... Mas meu
lugar não é em parte alguma; eu estou sobrando.
O Autodidata se acalma. Receara uma resistência maior de minha parte. Está
disposto a passar uma esponja sobre tudo o que eu disse. Inclina-se para mim
com ar confidencial:
— No fundo, o senhor os ama, ama-os como eu: estamos separados por
palavras.
Já não posso falar, inclino a cabeça. O rosto do Autodidata está bem perto do
meu. Sorri com ar fátuo, bem perto de meu rosto, como nos pesadelos. Mastigo
com dificuldade um pedaço de pão que não me decido a engolir. Os homens. É
preciso amar os homens. Os homens são admiráveis. Sinto vontade de vomitar
— e de repente aqui está ela: a Náusea.
Uma bela crise: me sacode de alto a baixo. Há uma hora que a sentia se
aproximar, só que não queria confessá-lo a mim mesmo. Esse gosto de queijo em
minha boca... O Autodidata tagarela e sua voz é um zumbido suave em meus
ouvidos. Mas já não tenho a mínima ideia do que diz. Aprovo maquinalmente
com a cabeça. Minha mão está crispada no cabo da faca de sobremesa. Sinto o
cabo de madeira preta. É minha mão que o segura. Minha mão. Pessoalmente
estaria pronto a largar a faca: para que estar sempre tocando em alguma coisa?
Os objetos não são feitos para que os toquemos. É preferível se esgueirar entre
eles, evitando-os o mais possível. Às vezes seguramos um nas mãos e somos
obrigados a soltá-lo depressa. A faca cai no prato. Com o barulho o senhor de
cabelos brancos estremece e olha para mim. Torno a pegar a faca, apoio a lâmina
na mesa e envergo-a.
Então é isso a Náusea: essa evidência ofuscante? Como quebrei a cabeça!
Como escrevi a respeito dela! Agora sei: Existo — o mundo existe — e sei que o
mundo existe. Isso é tudo. Mas tanto faz para mim. É estranho que tudo me seja
tão indiferente: isso me assusta. Foi a partir do famigerado dia em que quis fazer
ricocheteios. Ia atirar o seixo, olhei para ele, foi então que tudo começou: senti
que ele existia. E a seguir, depois disso, houve outras Náuseas; de quando em
quando os objetos se põem a existir em nossa mão. Houve a Náusea do Rendez-
vous des Cheminots e depois uma outra, antes, uma noite em que eu olhava pela
janela; e depois mais outra no jardim público, um domingo, e depois outras. Mas
nunca tinha sido tão forte como hoje.
— ... da Roma antiga, senhor?
Creio que o Autodidata está me fazendo uma pergunta. Viro-me para ele e
lhe sorrio. Mas o que há? O que é que ele tem? Por que se encolhe na cadeira?
Estarei assustando-o, agora? Tinha que acabar assim. Aliás, isso me é
indiferente. Eles não estão inteiramente errados em sentir medo: sei que seria
capaz de fazer qualquer coisa. Por exemplo, enfiar essa faca de queijo no olho do
Autodidata. Depois disso todas essas pessoas me pisoteariam, quebrariam meus
dentes com pontapés. Mas não é isso que me detém: não faz diferença, um gosto
de sangue na boca em lugar desse gosto de queijo. Só que seria necessário fazer
um gesto, dar origem a um acontecimento supérfluo: seria indesejável o grito
que soltaria o Autodidata — e o sangue que escorreria em seu rosto e o
sobressalto de todas essas pessoas. Já há coisas demais existindo sem isso.
Todo mundo olha para mim; os dois representantes da juventude
interromperam seu doce diálogo. A mulher está fazendo beicinho. No entanto
deveriam perceber que sou inofensivo.
Levanto-me. Está tudo girando em torno de mim. O Autodidata me olha com
seus olhos arregalados que não furarei.
— Já vai? — murmura.
— Estou um pouco cansado. O senhor foi muito amável em me convidar.
Até logo.
Ao ir, percebo que conservei na mão esquerda a faca de sobremesa. Jogo-a
em meu prato que se põe a tinir. Atravesso a sala em meio ao silêncio. Eles já
não comem: olham para mim, perderam o apetite. Tenho certeza de que, se me
dirigisse à mulher e fizesse “Hon!”, ela começaria a berrar. Não vale a pena.
Ainda assim, antes de ir, me viro e lhes mostro meu rosto, para que possam
gravá-lo na memória.
— Até logo a todos.
Não respondem. Vou embora. Agora as cores voltarão a seus rostos,
começarão a tagarelar.
Não sei aonde ir. Fico postado junto ao cozinheiro de papelão. Não tenho
necessidade de me voltar para saber que estão me olhando através das vidraças:
olham para as minhas costas com surpresa e asco; pensavam que eu era como
eles, que eu era um homem, e os enganei. De repente perdi minha aparência de
homem e eles viram um caranguejo que fugia, recuando, dessa sala tão humana.
Agora o intruso desmascarado fugiu: a reunião continua. Irrita-me sentir em
minhas costas todo esse formigamento de olhos e de pensamentos assustados.
Atravesso a rua. A outra calçada acompanha a praia e as cabines de banho.
Há muitas pessoas passeando à beira-mar, virando para o mar rostos
primaveris, poéticos; é por causa do sol; estão em festa. Há mulheres em seus
vestidos claros da última primavera; passam esguias e brancas como luvas de
pelica; há também rapazotes que frequentam o liceu, a escola de comércio,
velhos com condecorações. Eles não se conhecem, mas se olham com ar de
conivência. Porque o dia está bonito e porque todos eles são homens. Os homens
se abraçam, sem se conhecer, nos dias de declaração de guerra; sorriem-se a cada
primavera. Um padre avança a passos lentos lendo o breviário. De quando em
quando levanta a cabeça e olha para o mar com ar de aprovação: também o mar é
um breviário, fala de Deus. Cores suaves, perfumes suaves, almas de primavera.
“O dia está lindo, o mar está verde, prefiro esse frio seco à umidade.” Poetas! Se
pegasse um pelas lapelas de seu casaco e lhe dissesse: “Ajude-me”, ele pensaria:
“O que significa esse caranguejo?” e fugiria deixando seu casaco em minhas
mãos.
Viro-lhes as costas, me apoio com as duas mãos na balaustrada. O verdadeiro
mar é frio e negro, cheio de animais; rasteja sob essa fina película verde que é
feita para enganar as pessoas. Os silfos que me rodeiam caíram no logro: só
veem a fina película, é ela que prova a existência de Deus. Vejo o que está por
baixo! Os vernizes se dissolvem, as pelezinhas aveludadas e brilhantes, as
pelezinhas de pêssego do bom Deus se rompem por todos os lados sob meu
olhar, se fendem e se entreabrem. Lá está o bonde de Saint-Élémir, giro sobre
mim mesmo e as coisas giram comigo, pálidas e verdes como ostras. Inútil, é
inútil subir nesse bonde, já que não quero ir a parte alguma.
Por trás das vidraças desfilam aos solavancos objetos azulados, muito rígidos
e quebradiços. Pessoas, paredes; através das janelas abertas, uma casa me
oferece seu coração negro; e vidraças empalidecem, tornam azulado tudo o que é
negro, tornam azulado esse grande edifício de tijolos amarelos que avança
hesitante, estremecendo, e que para de repente, e desce em picada. Sobe um
senhor e se senta em frente a mim. O prédio amarelo se põe em movimento
novamente, num salto se cola aos vidros, está tão perto que só se vê uma parte
sua, escureceu. As vidraças estremecem. Ele se ergue, esmagador, muito mais
alto do que se pode ver, com centenas de janelas abertas para corações negros;
desliza ao longo da caixa, roça-a; fez-se noite entre as vidraças que estremecem.
Desliza interminavelmente, amarelo como a lama, e as vidraças estão azul-
celeste. E de repente já não está ali, ficou para trás, uma forte claridade cinzenta
invade a caixa e se espalha por todo lado com uma justiça inexorável: é o céu;
através dos vidros veem-se ainda camadas e camadas de céu porque se sobe a
encosta de Éliphar e se vê claramente os dois lados, à direita até o mar, à
esquerda até o campo de aviação. Proibido fumar até mesmo um Gitane.
Apoio minha mão no banco, mas retiro-a precipitadamente: isso existe. Essa
coisa na qual estou sentado, na qual apoiava minha mão chama-se banco.
Fizeram-no especialmente para que possamos nos sentar, arranjaram couro,
molas, tecido, se puseram a trabalhar, com a ideia de fazer um assento e, quando
terminaram, era isso que tinham feito. Trouxeram isso para cá, para essa caixa, e
a caixa agora anda e sacoleja, com suas vidraças trepidantes, e traz em seus
flancos aquela coisa vermelha. Murmuro: é um banco, um pouco como se fosse
um exorcismo. Mas a palavra permanece em meus lábios: se recusa a ir pousar
na coisa. Ela continua sendo o que é, com sua pelúcia vermelha, milhares de
patinhas vermelhas, para o ar, muito rígidas, patinhas mortas. Esse ventre
enorme, de barriga para cima, sangrando, inchado — intumescido por todas
essas patas mortas, ventre que flutua nessa caixa, nesse céu cinza, não é um
banco. Podia perfeitamente ser um burro morto, por exemplo, inchado pela água
e flutuando à deriva, de barriga para cima, num grande rio cinza, um rio de
inundação; e eu estaria sentado num ventre de burro e meus pés mergulhariam na
água clara. As coisas se libertaram de seus nomes. Estão ali, grotescas,
obstinadas, gigantescas, e parece imbecil chamá-las de bancos ou dizer o que
quer que seja a respeito delas: estou no meio das Coisas, das inomináveis.
Sozinho, sem palavras, sem defesas, estou cercado por elas: por baixo de mim,
por trás de mim, por cima de mim. Não exigem nada, não se impõem: estão ali.
Sob a almofada do banco, junto à divisória de madeira, há uma pequena linha de
sombra, uma pequena linha preta que corre ao longo do banco com ar misterioso
e travesso, quase como se fosse um sorriso. Sei perfeitamente que não é um
sorriso e no entanto é algo que existe, que corre sob as vidraças esbranquiçadas,
sob a zoeira das vidraças, que persiste sob as imagens azuis que desfilam por trás
das vidraças e param e recomeçam a se mover, que persiste como a lembrança
imprecisa de um sorriso, como uma palavra meio esquecida da qual só
lembramos a primeira sílaba, e o melhor a fazer é desviar os olhos e pensar em
outra coisa, nesse homem meio deitado no banco à minha frente, ali. Sua cabeça
de terracota com olhos azuis. Todo o lado direito de seu corpo descaiu, o braço
direito está grudado no corpo, o lado direito vive com dificuldade, com dor, com
avareza, como se estivesse paralisado. Mas em todo o lado esquerdo há uma
pequena existência parasita que prolifera, um câncer: o braço começou a tremer
e depois se ergueu, e a mão estava rígida em sua ponta. E depois também a mão
começou a tremer e, quando atingiu a altura do crânio, um dedo se estendeu e se
pôs a coçar o couro cabeludo com a unha. Uma espécie de careta voluptuosa se
instalou no lado direito da boca, e o lado esquerdo permanecia morto. As
vidraças tremem, o braço treme, a unha coça, coça, a boca sorri sob os olhos
fixos e o homem suporta, sem perceber, essa pequena existência que intumesce
seu lado direito, que se utilizou de seu braço direito e de sua face direita para se
realizar. O condutor me barra o caminho.
— Aguarde a parada.
Mas empurro-o e salto do bonde. Não aguentava mais. Já não podia suportar
que as coisas estivessem tão próximas. Empurro um portão de ferro, entro,
existências leves se erguem de um salto e se empoleiram nos cimos. Agora me
reconheço, sei onde estou: estou no jardim público. Deixo-me cair num banco
entre os grandes troncos negros, entre as mãos negras e nodosas que se erguem
para o céu. Uma árvore raspa a terra, sob meus pés, com uma unha preta.
Gostaria tanto de me abandonar, de esquecer de mim mesmo, de dormir. Mas
não posso, sufoco: a existência penetra em mim por todos os lados, pelos olhos,
pelo nariz, pela boca...
E subitamente, de uma só vez, o véu se rasga: compreendi, vi.
Seis da tarde
Não posso dizer que me sinta aliviado nem contente; ao contrário, me sinto
esmagado. Só que meu objetivo foi atingido: sei o que desejava saber;
compreendi tudo o que me aconteceu a partir do mês de janeiro. A Náusea não
me abandonou e não creio que me abandone tão cedo; mas já não estou
submetido a ela, já não se trata de uma doença, nem de um acesso passageiro: a
Náusea sou eu.
Estava então, ainda agora, no jardim público. A raiz do castanheiro se
enfiava na terra bem por baixo de meu banco. Já não me lembrava de que era
uma raiz. As palavras se haviam dissipado e com elas o significado das coisas,
seus modos de emprego, os frágeis pontos de referência que os homens traçaram
em sua superfície. Estava sentado, um pouco curvado, a cabeça baixa, sozinho
diante dessa massa negra e nodosa, inteiramente bruta e assustadora. E depois
tive essa iluminação.
Fiquei sem respiração. Nunca, antes desses últimos dias, tinha pressentido o
que queria dizer “existir”. Era como os outros, como os que passeiam à beira-
mar com suas roupas de primavera. Dizia como eles: o mar é verde; aquele
ponto branco lá no alto é uma gaivota, mas eu não sentia que aquilo existisse,
que a gaivota fosse uma “gaivota-existente”; em geral a existência se esconde.
Está aqui, à nossa volta, em nós, ela somos nós, não podemos dizer duas
palavras sem mencioná-la, e afinal não a tocamos. Quando julgava estar
pensando nela, creio que não pensava em nada, tinha a cabeça vazia ou apenas
uma palavra na cabeça, a palavra “ser”. Ou então pensava... como dizer?
Pensava na pertinência, dizia a mim mesmo que o mar pertencia à classe dos
objetos verdes ou que o verde fazia parte das qualidades do mar. Mesmo quando
olhava para as coisas, estava muito longe de sonhar que essas existiam:
apareciam-me como um cenário. Tomava-as nas mãos, elas me serviam de
utensílios, eu previa suas resistências. Mas tudo isso ocorria na superfície. Se me
tivessem perguntado o que era a existência, teria respondido de boa-fé que não
era nada, apenas uma forma vazia que vinha se juntar às coisas exteriormente,
sem modificar em nada sua natureza. E depois foi isto: de repente, ali estava,
claro como o dia: a existência subitamente se revelara. Perdera seu aspecto
inofensivo de categoria abstrata: era a própria massa das coisas, aquela raiz
estava sovada em existência. Ou antes, a raiz, as grades do jardim, o banco, a
relva rala do gramado, tudo se desvanecera; a diversidade das coisas, sua
individualidade, eram apenas uma aparência, um verniz. Esse verniz se
dissolvera, restavam massas monstruosas e moles, em desordem — nuas, de uma
nudez apavorante e obscena.
Abstinha-me de fazer o menor movimento, mas não precisava me mexer para
ver por trás das árvores as colunas azuis e o lampadário do coreto de música, e a
Véleda, no meio de uma moita de loureiros. Todos esses objetos... como dizer?
Incomodavam-me; teria desejado que existissem com menos intensidade, de uma
maneira mais seca, mais abstrata, com mais recato. O castanheiro me entrava
pelos olhos. Uma ferrugem verde cobria-o até meia altura; a casca, preta e
empolada, parecia de couro fervido. O ruído discreto da água da fonte Masqueret
penetrava em meus ouvidos, fazia neles um ninho, enchia-os de suspiros; minhas
narinas transbordavam de um odor verde e pútrido. Todas as coisas, suavemente,
ternamente, se entregavam à existência como essas mulheres cansadas que se
entregam ao riso e dizem com voz comovida: “É bom rir”; exibiam-se, umas em
frente às outras, faziam-se a abjeta confidência de sua existência. Compreendi
que não havia meio-termo entre a inexistência e aquela abundância extática.
Existindo, era necessário existir até aquele ponto, até o bolor, a tumidez, a
obscenidade. Num outro mundo os círculos, as melodias conservam suas linhas
puras e rígidas. Mas a existência é uma vergadura. Árvores, pilares azulados, o
estertor feliz de uma fonte, aromas vivos, pequenas névoas de calor que
flutuavam no ar frio, um homem ruivo digerindo em seu banco: todas essas
sonolências, todas essas digestões, consideradas em conjunto, ofereciam um
aspecto vagamente cômico. Cômico... não: não chegava a esse ponto, nada do
que existe pode ser cômico; era como uma analogia flutuante, quase inacessível,
com certas situações de vaudeville. Éramos um amontoado de entes incômodos,
estorvados por nós mesmos, não tínhamos a menor razão para estar ali, nem uns
nem outros, cada ente confuso, vagamente inquieto, se sentia demais em relação
aos outros. Demais: era a única relação que podia estabelecer entre aquelas
árvores, aquelas grades, aquelas pedras. Tentava inutilmente contar os
castanheiros e situá-los com relação à Véleda; tentava comparar sua altura com a
dos plátanos: cada um deles escapava das relações em que procurava encerrá-los,
isolava-se, extravasava. Eu sentia o arbitrário dessas relações (que me obstinava
em manter para retardar o desabamento do mundo humano, das medidas, das
quantidades, das direções); elas já não tinham como agir sobre as coisas.
Demais, o castanheiro, ali em frente a mim um pouco à esquerda. Demais, a
Véleda...
E eu — fraco, lânguido, obsceno, digerindo, revolvendo pensamentos
sombrios —, também eu era demais. Felizmente não o sentia, sobretudo não o
compreendia, mas não estava à vontade, porque temia senti-lo (mesmo agora
temo isso — temo que esse sentimento me agarre pela nuca e me erga súbita e
violentamente como um maremoto). Pensava vagamente em me suprimir, para
aniquilar pelo menos uma dessas existências supérfluas. Mas até mesmo minha
morte teria sido demais. Demais, meu cadáver, meu sangue sobre aquelas pedras,
entre aquelas plantas ao fundo daquele jardim risonho. E a carne corroída teria
sido demais na terra que a recebesse, e meus ossos, finalmente, limpos,
descarnados, asseados e imaculados como dentes, também teriam sido demais:
eu era demais para a eternidade.

A palavra “Absurdo” surge agora sob minha caneta; há pouco no jardim não a
encontrei, mas também não a procurava, não precisava dela: pensava sem
palavras, sobre as coisas, com as coisas. O absurdo não era uma ideia em minha
cabeça, nem um sopro de voz, mas sim aquela longa serpente morta aos meus
pés, aquela serpente de lenho. Serpente ou garra, ou raiz, ou gafa de abutre,
pouco importa. E sem formular nada claramente, compreendi que havia
encontrado a chave da Existência, a chave de minhas Náuseas, de minha própria
vida. De fato, tudo o que pude captar a seguir liga-se a esse absurdo
fundamental. Absurdo: ainda uma palavra; debato-me com as palavras; lá eu
tocava a coisa. Mas desejaria fixar aqui o caráter absoluto desse absurdo. Um
gesto, um acontecimento no pequeno mundo colorido dos homens não é jamais
senão relativamente absurdo: em relação às circunstâncias que o acompanham.
Os discursos de um louco, por exemplo, são absurdos em relação à situação em
que este se encontra, mas não em relação ao seu delírio. Mas eu, ainda agora,
tive a experiência do absoluto: o absoluto ou o absurdo. Aquela raiz — não
havia nada em relação a ela que não fosse absurdo. Oh! Como poderei fixar isso
com palavras? Absurdo: com relação às pedras, aos tufos de relva amarela, à
lama seca, à árvore, ao céu, aos bancos verdes. Absurdo, irredutível; nada —
nem mesmo um delírio profundo e secreto da natureza — podia explicá-lo.
Evidentemente eu não sabia tudo, não assistira à germinação nem ao crescimento
da árvore. Mas diante daquela grande pata rugosa, nem a ignorância nem o saber
importavam: o mundo das explicações e das razões não é o da existência. Um
círculo não é absurdo, é perfeitamente explicável pela rotação de um segmento
de reta em torno de uma de suas extremidades. Mas também um círculo não
existe. A raiz, ao contrário, existia na medida em que eu não podia explicá-la.
Nodosa, inerte, sem nome, ela me fascinava, enchia-me os olhos, reconduzia-me
constantemente para sua própria existência. Era inútil que repetisse: “É uma
raiz” — isso não surtia efeito. Bem via que não era possível passar de sua função
de raiz, de bomba aspirante, àquilo, àquela pele dura e compacta de foca, àquele
aspecto oleoso, caloso, obstinado. A função nada explicava: possibilitava que se
compreendesse grosso modo o que era uma raiz, mas não aquela raiz. Aquela,
com sua cor, sua forma, seu movimento paralisado, estava... abaixo de qualquer
explicação. Cada uma de suas qualidades escapava-lhe um pouco, escorria para
fora dela, semissolidificava-se, tornava-se quase uma coisa; cada uma era demais
na raiz e o cepo inteiro me dava agora a impressão de sair um pouco de si
mesmo, de se negar, de se perder num estranho excesso. Raspei o salto do sapato
naquela garra preta: gostaria de esfolá-la um pouco. Por nada, por desafio, para
fazer surgir no couro curtido o rosa absurdo de uma escoriação: para brincar
com o absurdo do mundo. Mas quando afastei meu pé, vi que a casca continuava
preta.
Preta? Senti que a palavra se esvaziava, perdia seu sentido com uma rapidez
extraordinária. Preta? A raiz não era preta, o que havia naquele pedaço de lenho
não era o preto — era... outra coisa: o preto, assim como o círculo, não existia.
Eu olhava para a raiz: era mais que preta ou quase preta? Mas logo deixei de me
interrogar, porque tinha a impressão de estar em terreno conhecido. Sim, já
perscrutara com aquela inquietação inúmeros objetos, já tentara — inutilmente
— pensar algo acerca deles: e já sentira suas qualidades frias e inertes se
esquivando, escorregando entre meus dedos. Os suspensórios de Adolphe, outra
noite, no Rendez-vous des Cheminots. Não eram roxos. Revi as duas manchas
indefiníveis sobre a camisa. E o seixo, o famigerado seixo, a origem de toda essa
história: não era... não me lembrava exatamente o que se recusava a ser. Mas não
esquecera sua resistência passiva. E a mão do Autodidata; segurara-a e apertara-
a um dia na biblioteca e depois me ficara a impressão de que não se tratava
exatamente de uma mão. Lembrara-me um grande verme branco, mas também
não era isso. E a transparência equívoca do copo de cerveja no café Mably.
Equívocos: eis o que eram os sons, os perfumes, os sabores. Quando nos
passavam rapidamente pelo nariz, como lebres assustadas e não lhes
prestávamos muita atenção, se poderia acreditar que eram muito simples e
tranquilizadores, se poderia acreditar que havia no mundo um verdadeiro azul,
um verdadeiro vermelho, um verdadeiro odor de amêndoa ou de violeta. Mas tão
logo os retínhamos um instante, esse sentimento de conforto e segurança era
substituído por um profundo mal-estar: as cores, os sabores, os odores nunca
eram verdadeiros, nunca eram simplesmente eles mesmos e nada mais do que
eles mesmos. A qualidade mais simples, a mais indecomponível, encerrava um
excesso em si mesma, em relação a si mesma, em seu âmago. Aquele preto, ali,
junto ao meu pé, não parecia ser preto, mas o esforço confuso para imaginar o
preto da parte de alguém que nunca tivesse visto a cor preta e que não tivesse
sabido se deter, que tivesse imaginado um ser ambíguo para além das cores.
Aquilo se assemelhava a uma cor, mas também... a uma equimose ou ainda a
uma secreção, a uma suarda — e a outra coisa, um odor, por exemplo, aquilo se
fundia em odor de terra molhada, de madeira morna e molhada, em odor preto
espalhado como um verniz sobre aquela madeira nervosa, em sabor de fibra
mascada, adocicada. Eu não me limitava a ver aquele preto: a visão é uma
invenção abstrata, uma ideia esvaziada, simplificada, uma ideia de homem.
Aquele preto, presença amorfa e tíbia, excedia de longe a visão, o olfato e o
gosto. Mas essa riqueza se transformava em confusão e finalmente aquilo já não
era nada porque era demais.
Esse momento foi extraordinário. Eu estava ali, imóvel e gelado, mergulhado
num êxtase horrível. Mas, no próprio âmago desse êxtase, algo de novo acabava
de surgir; eu compreendia a Náusea, possuía-a. A bem dizer, não me formulava
minhas descobertas. Mas creio que agora me seria fácil colocá-las em palavras.
O essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência
não é a necessidade. Existir é simplesmente estar aqui; os entes aparecem,
deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. Creio que há
pessoas que compreenderam isso. Só que tentaram superar essa contingência
inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser necessário
pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que
se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é
gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio. Quando ocorre que nos
apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhado, e tudo se põe a flutuar
como na outra noite no Rendez-vous des Cheminots: é isso a Náusea; é isso que
os Salafrários — os do Coteau Vert e os outros — tentam esconder de si mesmos
com sua ideia de direito. Mas que mentira pobre: ninguém possui o direito; eles
são inteiramente gratuitos, como os outros homens, não conseguem deixar de se
sentir demais. E em si mesmos, secretamente, são demais, isto é, amorfos e
vagos, tristes.
Quanto tempo durou essa fascinação? Eu era a raiz de castanheiro. Ou antes,
era por inteiro consciência de sua existência. Ainda separado dela — já que tinha
consciência dela — e no entanto perdido nela, nada mais senão ela. Uma
consciência pouco à vontade e que todavia se abandonava com todo o seu peso,
numa situação instável, sobre aquele pedaço de lenho inerte. O tempo parara:
uma pequena poça preta aos meus pés; era impossível que alguma coisa viesse
após aquele momento. Teria desejado me subtrair àquele prazer atroz, mas
sequer imaginava que isso fosse possível; eu estava dentro; o cepo preto não
passava, permanecia ali em meus olhos, como um pedaço demasiado grande fica
atravessado numa garganta. Não podia nem aceitá-lo nem recusá-lo. À custa de
que esforço ergui os olhos? E realmente os ergui? Não me teria antes aniquilado
durante um instante, para renascer no instante seguinte com a cabeça inclinada
para trás e os olhos virados para cima? De fato, não tive consciência de uma
transição. Mas de repente tornou-se impossível para mim conceber a existência
da raiz. Ela se apagara, por mais que eu repetisse: ela existe, ainda está aí, sob o
banco, junto de meu pé direito — isso já não significava nada mais. A existência
não é algo que se deixe conceber de longe: tem que nos invadir bruscamente,
tem que se deter sobre nós, pesar intensamente sobre nosso coração como um
grande animal imóvel — do contrário não há absolutamente nada mais.
Não havia nada mais, meus olhos estavam vazios, e minha libertação me
encantava. E depois, subitamente, aquilo começou a se mexer diante de meus
olhos, movimentos leves e incertos: o vento sacudia a copa da árvore.
Não me desagradava ver algo se mover, isso me desviava de todas aquelas
existências imóveis que me olhavam como olhos fixos. Dizia a mim mesmo,
acompanhando o balanço dos galhos: os movimentos nunca existem
inteiramente, são passagens, intermediações entre duas existências, tempos
fracos. Preparava-me para vê-los sair do nada, amadurecer progressivamente,
desabrochar: ia finalmente surpreender existências no ato de nascer.
Não foram necessários mais de três segundos para que todas as minhas
esperanças fossem varridas. Não conseguia captar uma “passagem” à existência
naqueles galhos hesitantes que tateavam como cegos. Essa ideia de passagem era
também uma invenção dos homens. Uma ideia muito clara. Todas aquelas
pequenas agitações se isolavam, se afirmavam por si mesmas. Excediam por
todos os lados os galhos e ramos. Turbilhonavam em torno daquelas mãos secas,
envolviam-nas em pequenos ciclones. É claro que um movimento era algo
diferente de uma árvore. Mas ainda assim era um absoluto. Uma coisa. Meus
olhos só encontravam plenitudes. Era um fervilhamento de existências, na ponta
dos galhos, de existências que se renovavam permanentemente e que nunca
nasciam. O vento existente vinha pousar na árvore como uma imensa mosca, e a
árvore se arrepiava. Mas o arrepio não era uma qualidade nascente, uma
passagem da potência ao ato; era uma coisa; uma coisa-arrepio que se introduzia
na árvore, se apoderava dela, sacudia-a e subitamente a abandonava, ia rodopiar
mais adiante. Tudo estava pleno, tudo em ato, não havia tempo fraco, tudo, até o
mais imperceptível estremecimento, era feito com existência. E todos esses entes
que se azafamavam em torno da árvore não vinham de parte alguma, não iam a
parte alguma. De repente existiam e a seguir, bruscamente, já não existiam: a
existência não tem memória; não conserva nada dos desaparecidos — sequer
uma recordação. A existência em toda parte, ao infinito, demais, sempre e em
toda parte; a existência — que nunca é limitada a não ser pela existência.
Abandonava-me no banco, atordoado, afligido por essa profusão de seres sem
origem: eclosões por todo lado, desabrochamentos; meus ouvidos zumbiam de
existência, minha própria carne palpitava e se entreabria, se abandonava à
germinação universal: era repugnante. “Mas por que”, pensei, “por que tantas
existências, já que todas se parecem?” Para que tantas árvores, todas iguais?
Tantas existências fracassadas e obstinadamente recomeçadas e novamente
fracassadas — como os esforços desajeitados de um inseto caído de costas? (Eu
era um desses esforços.) Aquela abundância não dava impressão de
generosidade, ao contrário. Era melancólica, miserável, estorvada por si mesma.
Aquelas árvores, aqueles grandes corpos canhestros... Comecei a rir, porque de
repente me lembrei das primaveras fantásticas que se descrevem nos livros,
cheias de crepitações, de explosões, de eclosões gigantescas. Havia imbecis que
vinham me falar de vontade de poder e de luta pela vida. Então nunca tinham
olhado para um animal ou uma árvore? Desejariam que eu tomasse aquele
plátano, com suas placas de alopecia, aquele carvalho meio apodrecido, por
forças jovens e ardentes se erguendo impetuosamente para o céu? E aquela raiz?
Certamente seria preciso que me fosse representada como uma garra voraz,
dilacerando a terra, arrancando-lhe seu alimento.
Impossível ver as coisas dessa maneira. Molezas, fraquezas, sim. As árvores
flutuavam. Um jorrar para o céu? Antes um desmoronamento; a cada instante
esperava ver os troncos se encarquilharem como pênis cansados, se encolherem
e desabarem no chão, formando um amontoado preto e mole, enrugado. Eles não
desejavam existir, só que não podiam evitá-lo; era isso. Então realizavam suas
pequenas funções, devagar, sem entusiasmo; a seiva subia lentamente pelos
veios, a contragosto, e as raízes se enfiavam lentamente na terra. Mas a cada
momento eles pareciam a ponto de abandonar tudo e se aniquilar. Cansados e
velhos, continuavam a existir, de má vontade, simplesmente porque eram muito
fracos para morrer, porque a morte só podia atingi-los do exterior; só as melodias
trazem orgulhosamente a morte em si mesmas, como uma necessidade interna;
apenas elas não existem. Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e
morre por acaso. Inclinei-me para trás e fechei as pálpebras. Mas as imagens,
imediatamente alertadas, de um salto vieram encher de existências meus olhos
fechados: a existência é uma plenitude que o homem não pode abandonar.
Estranhas imagens. Representam uma imensidão de coisas. Não coisas
verdadeiras, outras que se lhes assemelham. Objetos de madeira que se
assemelham a cadeiras, a tamancos, outros objetos que se assemelham a plantas.
E depois dois rostos: era o casal que almoçava perto de mim outro domingo na
Brasserie Vézelize. Gordos, quentes, sensuais, absurdos, com as orelhas
vermelhas. Via os ombros e o busto da mulher. Existência nua. Aqueles dois —
bruscamente isso me horrorizou —, aqueles dois continuavam a existir em
algum lugar de Bouville; em algum lugar — em meio a que odores? — aquele
busto suave continuava a se acariciar no contato de tecidos frescos, a se enroscar
nas rendas, e a mulher continuava a sentir seu busto existir em seu corpete, a
pensar: “meus peitinhos, meus belos frutos”, a sorrir misteriosamente, atenta ao
desabrochar de seus seios que lhe faziam cócegas; e depois gritei e dei por mim
de olhos arregalados.
Essa enorme presença terá sido um sonho? Ela estava ali, pousada no jardim,
desabada nas árvores, toda mole, lambuzando tudo, toda espessa, uma compota.
E eu e todo o jardim estávamos dentro dela? Sentia medo, mas estava sobretudo
com raiva, achava aquilo tão idiota, tão despropositado, odiava aquela geleia
ignóbil. Era muita, muita! Subia até o céu, se espalhava por todo lado, enchia
tudo com seu escorrer gelatinoso, e eu via profundidades e profundidades dela,
muito mais longe do que os limites do jardim e as casas e Bouville, eu já não
estava em Bouville, nem em lugar algum, flutuava. Não estava surpreso, bem
sabia que aquilo era o Mundo, o Mundo inteiramente nu que se mostrava de
repente, e sufocava de raiva desse ser grande e absurdo. Sequer se podia
perguntar de onde saía aquilo, tudo aquilo, nem como era possível que existisse
um mundo ao invés de coisa alguma. Aquilo não tinha sentido, o mundo estava
presente em toda parte, à frente, atrás. Antes dele não houvera nada. Nada. Não
houvera um momento em que ele pudesse não existir. Era isso que me irritava:
obviamente não havia nenhuma razão para que aquela larva corrediça existisse.
Mas não era possível que não existisse. Isso era impensável: para imaginar o
nada, era preciso estar já ali, em pleno mundo, vivo e de olhos bem abertos; o
nada era apenas uma ideia em minha cabeça, uma ideia existente flutuando
naquela imensidão: esse nada não veio antes da existência, era uma existência
como outra qualquer e surgida depois de muitas outras. Gritei “que imundície,
que imundície!” e me sacudi para me livrar dessa imundície pegajosa, mas ela
resistia e era tanta, toneladas e toneladas de existência, indefinidamente: eu
sufocava no fundo desse tédio imenso. E depois, de repente, o jardim se esvaziou
como que através de um grande buraco, o mundo desapareceu da mesma
maneira que surgira, ou então eu acordei — de toda maneira não o vi mais;
restava uma terra amarela ao meu redor, de onde saíam galhos mortos apontando
para o alto.
Levantei-me, saí. Chegando ao portão de ferro, voltei-me. Então o jardim
sorriu para mim. Apoiei-me na grade e fitei-o longamente. O sorriso das árvores,
da moita de loureiros, queria dizer alguma coisa; era isso o verdadeiro segredo
da existência. Lembrei-me que num domingo, não há mais de três semanas, eu já
percebera uma espécie de ar de cumplicidade nas coisas. Era a mim que se
dirigia? Sentia, aborrecido, que não tinha nenhum meio de compreender.
Nenhum meio. No entanto aquilo estava ali, à espera, parecia um olhar. Estava
ali, no tronco do castanheiro... era o castanheiro. Parecia que as coisas eram
pensamentos que paravam no caminho, que se esqueciam o que tinham querido
pensar e que permaneciam assim, balouçantes, com um sentidozinho estranho
que os ultrapassava. Esse sentidozinho me irritava: não podia compreendê-lo,
ainda que permanecesse 107 anos apoiado na grade; ficara sabendo sobre a
existência tudo o que podia saber. Fui embora, voltei para o hotel, e escrevi.

À noite
Tomei uma decisão: já não tenho motivos para permanecer em Bouville, posto
que desisti de escrever meu livro; vou morar em Paris. Sexta-feira, tomarei o
trem das cinco horas, sábado verei Anny; creio que passaremos alguns dias
juntos. Depois voltarei aqui para pôr algumas coisas em ordem e fazer minhas
malas. Dia 1º de março, o mais tardar, estarei definitivamente instalado em Paris.

Sexta-feira
No Rendez-vous des Cheminots. Meu trem parte em vinte minutos. O
gramofone. Forte impressão de aventura.

Sábado
Anny vem abrir, usando um vestido preto longo. Naturalmente não me estende a
mão, não me cumprimenta. Conservei a mão direita no bolso de meu sobretudo.
Ela diz em tom amuado e muito depressa, para se livrar das formalidades: —
Entre e sente-se onde quiser, exceto na poltrona junto à janela.
É ela, é bem ela. Está com os braços caídos, com a cara emburrada que
antigamente lhe dava um ar de menina na idade ingrata. Mas agora ela já não
parece uma menina. Está gorda, com os seios volumosos.
Fecha a porta, diz para si mesma com ar meditativo:
— Não sei se vou me sentar na cama...
Finalmente se deixa cair numa espécie de arca coberta com um tapete. Seu
andar já não é o mesmo: caminha com uma lentidão majestosa não desprovida
de graça: parece embaraçada com sua gordura recente. No entanto, apesar de
tudo, é bem ela, é Anny.
Anny solta uma gargalhada.
— Por que está rindo?
Ela não responde imediatamente, como é seu hábito, assume um ar
zombeteiro.
— Diga, por quê?
— É por causa desse largo sorriso que você ostenta desde que entrou. Parece
um pai que acaba de casar a filha. Vamos, não fique de pé. Ponha seu casaco em
qualquer lugar e sente-se. Sim, ali se quiser.
Segue-se um silêncio que Anny não tenta romper. Como esse quarto é nu!
Antigamente Anny levava em todas as suas viagens uma imensa mala cheia de
xales, turbantes, mantilhas, máscaras japonesas, estampas. Mal chegava a um
hotel — e ainda que só fosse passar uma noite nele — seu primeiro cuidado era
abrir essa mala e tirar dela todos os seus tesouros, que pregava nas paredes,
pendurava nas lâmpadas, estendia sobre as mesas ou no chão de acordo com uma
ordem variável e complicada; em menos de meia hora, o quarto mais banal se
revestia de uma personalidade marcante e sensual, quase intolerável. Talvez a
mala se tenha perdido, talvez tenha ficado no depósito de bagagens... Esse
cômodo frio, com a porta que se entreabre para o banheiro, tem algo de sinistro.
Parece, sendo mais luxuoso e mais triste, com meu quarto de Bouville.
Anny torna a rir. Reconheço perfeitamente esse risinho muito estridente e um
pouco fanhoso.
— Pois é, você não mudou. O que está procurando com esse ar aflito?
Sorri, mas seus olhos me fitam com uma curiosidade quase hostil.
— Estava apenas pensando que esse quarto não parece habitado por você.
— Ah! Sim? — responde com ar vago.
Novo silêncio. Agora está sentada na cama, muito pálida em seu vestido
preto. Não cortou os cabelos. Continua a me fitar com ar calmo, erguendo um
pouco as sobrancelhas. Não terá nada a me dizer? Por que me fez vir? Esse
silêncio é insuportável.
Digo subitamente, lamentavelmente:
— Estou contente por ver você.
A última palavra se estrangula em minha garganta: se era para isso, teria sido
melhor que me calasse. Ela certamente vai se zangar. Bem me parecia que os
primeiros 15 minutos seriam penosos. Antigamente, quando revia Anny, fosse
após uma ausência de 24 horas, fosse de manhã ao acordar, nunca sabia
encontrar as palavras que ela esperava, aquelas que combinavam com sua roupa,
com o tempo, com as últimas palavras que tínhamos pronunciado na véspera.
Mas o que quer ela? Não posso adivinhar.
Levanto os olhos. Anny me fita com uma espécie de ternura.
— Então você não mudou nada? Continua tão tolo como sempre?
Seu rosto exprime satisfação. Mas como parece cansada!
— Você é um marco — diz ela —, um marco à beira de uma estrada. Você
explica imperturbavelmente, e explicará a vida inteira, que Melun fica a 27
quilômetros de distância e Montargis a 42. É por isso que preciso tanto de você.
— Precisa de mim? Precisou de mim durante esses quatro anos em que não
nos vimos? Pois bem, você foi de uma discrição a toda prova.
Falei sorrindo: ela poderia pensar que estou ressentido. Sinto em meus lábios
esse sorriso muito falso, estou pouco à vontade.
— Como você é tolo! Naturalmente não preciso ver você, se é o que quer
dizer. Sabe, você não tem nada de particularmente agradável à vista. Preciso que
você exista e que não mude. Você é como esse metro de platina que é
conservado em algum lugar, em Paris, ou nos arredores. Não creio que alguém
tenha tido vontade de vê-lo algum dia.
— É aí que você se engana.
— Enfim, pouco importa. Eu nunca me interessei. Gosto de saber que ele
existe, que mede exatamente a décima milionésima parte do quarto do meridiano
terrestre. Penso nisso cada vez que tomam medidas num apartamento ou que me
vendem um tecido a metro.
— Ah, sim? — digo friamente.
— Mas, sabe, eu poderia perfeitamente só pensar em você como numa
virtude abstrata, uma espécie de limite. Você pode me agradecer que todas as
vezes me lembre de seu rosto.
Aí estão outra vez as discussões bizantinas que no passado era preciso
suportar, quando meu coração tinha desejos simples e banais, como o de lhe
dizer que a amava, como o de tomá-la em meus braços. Hoje não tenho nenhum
desejo. A não ser talvez o de me calar e olhar para ela, realizar em silêncio toda a
importância desse acontecimento extraordinário: a presença de Anny em frente a
mim. E para ela será esse dia semelhante aos outros? As mãos dela não tremem.
Ela devia ter algo a me dizer no dia em que me escreveu — ou talvez se tratasse
simplesmente de um capricho. Agora há muito que isso não mais existe.
Anny me sorri de repente, com uma ternura tão visível que me vêm lágrimas
aos olhos.
— Pensei em você com muito mais frequência do que no metro de platina.
Não houve um só dia em que não tivesse pensado em você. E me lembrava
distintamente de sua pessoa até o menor detalhe.
Levanta-se e vem apoiar suas mãos em meus ombros:
— Ouse dizer que você se lembrava de meu rosto, você que se queixa.
— Isso não vale — digo. — Você bem sabe que tenho má memória.
— Está confessando: você me esqueceu completamente. Teria me
reconhecido na rua?
— Naturalmente. Não se trata disso.
— Lembrava-se pelo menos da cor de meus cabelos?
— Claro que sim! São louros.
Ela começa a rir.
— Você diz isso orgulhosamente. Agora que os vê, não tem muito mérito.
Passa a mão em meus cabelos.
— E seus cabelos são ruivos — diz me imitando —; a primeira vez que o vi,
você estava com um chapéu de feltro, nunca me esquecerei, um chapéu mole de
um tom meio malva, que destoava atrozmente de seus cabelos ruivos. Era
horrível de ver. Onde está seu chapéu? Quero ver se continua com o mesmo mau
gosto.
— Já não uso chapéu.
Ela assobia baixinho, arregalando os olhos.
— Você não chegou a isso sozinho. Não é? Pois bem, felicito-o.
Naturalmente! Só que tinha que pensar nisso. Esses seus cabelos não toleram
nada, destoam dos chapéus, das almofadas das poltronas, até da tapeçaria das
paredes que lhes serve de fundo. Ou então seria preciso que você enterrasse o
chapéu até as orelhas, como aquele de feltro inglês que comprou em Londres.
Você botava as madeixas para dentro da copa e já nem se sabia se ainda tinha
cabelos.
Acrescenta no tom decidido com que se terminam velhas querelas:
— Ele não ficava nada bem em você.
Já não sei de que chapéu se trata.
— Eu dizia que ficava?
— Claro que dizia! Aliás, só falava nisso. E se olhava disfarçadamente nos
espelhos, quando achava que eu não o estava vendo.
Esse conhecimento do passado me oprime. Anny nem parece estar evocando
lembranças, seu tom não tem o matiz enternecido e distante que convém a esse
tipo de ocupação. Parece estar falando de hoje, no máximo de ontem; conservou
bem vivas suas opiniões, suas teimosias, seus rancores de antigamente. Para
mim, ao contrário, tudo mergulhou numa atmosfera poética; estou disposto a
todas as concessões.
Ela me diz bruscamente, numa voz sem entonação:
— Você vê, engordei, envelheci, tenho que me cuidar.
Sim. E como parece cansada! Quando vou falar, ela acrescenta rapidamente:
— Fiz teatro em Londres.
— Com Candler?
— Não, com Candler não. Isso é bem você. Meteu na cabeça que eu faria
teatro com Candler. Quantas vezes será preciso dizer que Candler é um maestro?
Não, num teatrinho da Soho Square. Representamos Emperor Jones, peças de
Sean O’Casey, de Synge, e Britannicus.
— Britannicus? — digo surpreso.
— Pois é, Britannicus. Foi por causa disso que me afastei. Fui eu que lhes
dei a ideia de montar Britannicus; e eles quiseram que eu fizesse o papel de
Junie.
— Ah, sim?
— Ora, naturalmente, eu só podia fazer o papel de Agrippine.
— E agora, o que está fazendo?
Fiz mal em perguntar isso. Seu rosto fica inteiramente sem vida. No entanto
ela responde imediatamente:
— Já não represento. Viajo. Tenho um sujeito que me sustenta.
Sorri:
— Oh! Não me olhe com essa solicitude, não é trágico. Sempre lhe disse que
não me importaria de ser sustentada por algum homem. Aliás, é um sujeito
velho, não me incomoda.
— Inglês?
— Mas que diferença faz? — diz com irritação. — Não vamos falar desse
homenzinho. Ele não tem importância alguma, nem para você, nem para mim.
Quer um chá?
Entra no banheiro. Ouço-a andar de um lado para o outro, mexendo em
caçarolas, falando sozinha; um murmúrio agudo e ininteligível. Na mesinha de
cabeceira, ao lado de sua cama, há como sempre um volume da Histoire de
France, de Michelet. Sobre a cama, noto agora que pendurou uma fotografia, só
uma, uma reprodução do retrato de Emily Brontë pelo irmão.
Anny retorna e me diz bruscamente:
— Agora fale de você.
Depois torna a desaparecer no banheiro. Disso me lembro, apesar de minha
má memória: ela fazia perguntas diretas assim, que me constrangiam muito,
porque sentia ao mesmo tempo um interesse sincero e o desejo de encerrar
rapidamente o assunto. De toda maneira, depois dessa pergunta, já não posso ter
dúvidas: ela deseja algo de mim. Por enquanto estamos apenas nas preliminares:
ela já se livrou do que poderia incomodar; organiza definitivamente as perguntas
secundárias: “Agora fale de você.” Daqui a pouco vai me falar dela. De repente
já não sinto a menor vontade de lhe contar nada. Para quê? A Náusea, o medo, a
existência... Mais vale que guarde tudo isso para mim.
— Ande logo com isso — grita através da divisória.
Retorna trazendo um bule de chá.
— O que é que você faz? Mora em Paris?
— Moro em Bouville.
— Bouville? Por quê? Espero que não tenha casado.
— Casado? — digo num sobressalto.
Desagrada-me muito que Anny tenha podido pensar isso. Digo-lhe:
— É absurdo. É exatamente o gênero de imaginações naturalistas que você
me censurava antigamente. Lembra-se? Quando eu a imaginava viúva e mãe de
dois meninos. E todas aquelas histórias que lhe contava sobre o que viria a nos
acontecer. Você detestava isso.
— E você adorava — responde ela sem se perturbar. — Você dizia tudo isso
para se exibir. Aliás, você se indigna assim em conversa, mas é bastante traidor
para ser capaz de se casar um dia às escondidas. Durante um ano você protestou
com indignação que não iria ver Violetas imperiales. Depois, num dia em que eu
estava doente, foi ver o filme sozinho num cineminha do bairro.
— Estou em Bouville — digo com dignidade — porque estou escrevendo
um livro sobre o sr. de Rollebon.
Anny me olha com um interesse diligente.
— O sr. de Rollebon? Viveu no século XVIII?
— Sim.
— De fato você me tinha falado a respeito — diz vagamente. — Então é um
livro de história?
— Sim.
— Ha, ha!
Se me fizer mais uma pergunta, conto-lhe tudo. Mas ela não pergunta mais
nada. Aparentemente acha que já sabe o suficiente sobre mim. Anny sabe escutar
muito bem, mas só quando quer. Olho para ela: baixou as pálpebras, está
pensando no que vai me dizer, na maneira como começará. Devo interrogá-la por
minha vez? Não creio que ela o deseje. Falará quando julgar que chegou a hora
de fazê-lo. Meu coração bate com força. _
Ela diz bruscamente:
— Eu mudei.
Aí está o começo. Mas ela se cala agora. Serve o chá em xícaras de
porcelana branca. Aguarda que eu fale: tenho que dizer alguma coisa. Não
qualquer coisa, mas exatamente o que ela espera. É um suplício. Terá ela
realmente mudado? Engordou, parece cansada: certamente não é a isso que se
refere.
— Não sei. Não acho. Já reconheci seu riso, sua maneira de se levantar e
colocar as mãos em meus ombros, sua mania de falar sozinha. Você continua
lendo a Histoire de Michelet. E uma porção de outras coisas...
Esse interesse profundo que ela dedica à minha essência eterna e sua
indiferença total por tudo o que pode me acontecer na vida — e depois esse
preciosismo, ao mesmo tempo pedante e encantador — e também essa maneira
de suprimir logo no primeiro contato todas as fórmulas mecânicas de cortesia, de
amizade, tudo o que facilita as relações entre os homens, de obrigar seus
interlocutores a uma perpétua invenção.
Ela dá de ombros:
— Mudei sim — diz secamente. — Mudei completamente. Já não sou a
mesma pessoa. Pensava que você perceberia desde o primeiro olhar. E você vem
me falar da Histoire de Michelet.
Posta-se em frente a mim:
— Vamos ver se esse homem é tão sagaz como pretende. Procure: em que foi
que mudei?
Hesito; ela bate com o pé no chão, ainda sorrindo, mas sinceramente irritada.
— Há algo que era um suplício para você antigamente. Pelo menos era o que
dizia. E agora isso terminou, desapareceu. Você deveria se dar conta. Não se
sente mais à vontade?
Não ouso lhe responder que não; estou, exatamente como no passado,
sentado na ponta da cadeira, preocupado em evitar ciladas, em esconjurar iras
inexplicáveis.
Ela voltou a se sentar.
— Pois bem — diz sacudindo a cabeça com convicção —, se você não
compreende é porque esqueceu muitas coisas. Mais ainda do que eu imaginava.
Vejamos, já não se lembra de suas faltas de antes? Você vinha, falava, ia embora:
tudo inoportunamente. Imagine que nada tivesse mudado: você teria entrado,
haveria máscaras e xales na parede, eu estaria sentada na cama e teria dito (joga
a cabeça para trás, dilata as narinas e fala com voz teatral como que para caçoar
de si própria): “Então? Que está esperando? Sente-se.” E naturalmente teria
evitado cuidadosamente lhe dizer: “Exceto na poltrona junto à janela.”
— Você me preparava armadilhas.
— Não eram armadilhas... Então, naturalmente você teria ido se sentar
diretamente ali.
— E que me teria acontecido? — digo, virando-me e contemplando a
poltrona com curiosidade.
Tem uma aparência comum, um ar protetor e confortável.
— Só coisas ruins — responde Anny concisamente.
Não insisto: Anny sempre se rodeou de objetos tabus.
— Creio — digo-lhe de repente — que estou adivinhando algo. Mas seria tão
extraordinário. Espere, me deixe procurar: de fato esse quarto está inteiramente
nu. Essa justiça você me fará: notei isso imediatamente. Bem, teria entrado, teria
visto realmente aquelas máscaras nas paredes, e os xales, e tudo o mais. O hotel
sempre acabava em sua porta. Seu quarto era outra coisa... Você não teria ido
abrir a porta. Eu a teria vislumbrado encolhida num canto, talvez sentada no
chão na moquette vermelha que sempre a acompanhava, me olhando sem
indulgência, aguardando... Mal tivesse pronunciado uma palavra, feito um gesto,
tomado fôlego, você teria começado a franzir as sobrancelhas e eu me teria
sentido profundamente culpado sem saber por quê. Depois, de minuto em
minuto teria acumulado as gafes, me teria enterrado em meu erro...
— Quantas vezes isso aconteceu?
— Cem vezes.
— No mínimo! Você agora é mais habilidoso, mais aguçado?
— Não!
— Gosto que diga isso. Então!
— Então, o que já não há...
— Ha, ha! — exclama com voz teatral. — Mal se atreve a acreditar!
Acrescenta com suavidade:
— Pois bem, pode acreditar em mim: não há mais isso.
— Acabaram-se os momentos perfeitos?
— Sim.
Estou estupefato. Insisto.
— Enfim, você não... Acabaram aquelas... tragédias, aquelas tragédias
instantâneas onde as máscaras, os xales, os móveis e eu próprio
representávamos, cada um, nosso pequeno papel — e você um grande papel?
Ela sorri.
— Que ingrato! Dei-lhe algumas vezes papéis mais importantes do que o
meu: mas não percebeu. Pois bem, sim: terminou. Você está surpreso?
— Ah! Sim, estou surpreso! Pensava que isso fizesse parte de você mesma;
que, se lhe tirassem isso, teria sido como se lhe tivessem arrancado o coração.
— Eu também pensava — diz com ar de quem não sente saudade de nada.
Acrescenta com uma espécie de ironia que me causa uma impressão muito
desagradável:
— Mas, como vê, posso viver sem isso.
Cruzou os dedos e segura um dos joelhos com as mãos. Olha para o ar, com
um vago sorriso que rejuvenesce todo o seu rosto. Parece uma menina gorda,
misteriosa e satisfeita.
— Sim, estou contente por você ter permanecido o mesmo. Se tivessem
mudado você de lugar, repintado, enfiado na beira de uma outra estrada, eu não
teria mais nada de fixo para me orientar. Você me é indispensável: eu mudo;
quanto a você, está estabelecido que permanece imutável e eu meço minhas
mudanças com referência a você.
Ainda assim me sinto um pouco melindrado.
— Pois bem, isso é bastante inexato — digo com vivacidade. — Pelo
contrário, evoluí muito esses últimos tempos, no fundo, eu...
— Oh! — diz com um desprezo esmagador. — Mudanças intelectuais! Eu
mudei dos pés à cabeça.
Dos pés à cabeça... O que foi então que me perturbou em sua voz? De toda
maneira, bruscamente dei um salto! Deixo de procurar uma Anny desaparecida.
É essa moça, essa moça gorda de aparência deteriorada que me toca e que eu
amo.
— Tenho uma espécie de certeza... física. Sinto que não há momentos
perfeitos. Sinto isso até em minhas pernas quando caminho. Sinto isso
permanentemente, até quando durmo. Não consigo esquecer. Nunca houve nada
que fosse como uma revelação; não posso dizer: a partir de tal dia, de tal hora
minha vida se transformou. Mas agora me sinto sempre um pouco como se isso
me tivesse sido bruscamente revelado na véspera. Sinto-me deslumbrada, pouco
à vontade, não me habituo.
Diz essas palavras com voz calma onde permanece uma sombra de orgulho
por haver mudado tanto. Balança o corpo na arca em que está sentada com uma
graça extraordinária. Em momento algum, desde que entrei, se pareceu tanto à
Anny do passado, a de Marselha. Reconquistou-me, mergulhei novamente em
seu estranho universo, para além do ridículo, do preciosismo, da sutileza. Voltei
a sentir até aquela pequena exaltação que sempre me agitava em sua presença e o
gosto amargo no fundo de minha boca.
Anny descruza as mãos e solta o joelho. Cala-se. É um silêncio planejado;
como quando, na Opera, o palco permanece vazio durante exatamente sete
compassos de orquestra. Bebe seu chá. Depois pousa a xícara e se mantém tesa,
apoiando as mãos fechadas na beira da arca.
Subitamente faz aparecer em suas faces o soberbo rosto de Medusa que eu
amava tanto, totalmente intumescido de ódio, retorcido, venenoso. Anny não
muda nada de expressão; muda de rosto; como os atores antigos mudavam de
máscara: de repente. E cada uma dessas máscaras se destina a criar a atmosfera,
a dar o tom do que se seguirá. Surge e se mantém, sem se modificar enquanto ela
fala. Depois cai, se desliga dela.
Ela me fixa sem parecer me ver. Vai falar. Espero um discurso trágico, alçado
à dignidade de sua máscara, um canto fúnebre.
Ela diz apenas uma frase:
— Sobrevivo a mim mesma.
O tom não corresponde absolutamente ao rosto. Este não é trágico, é...
horrível: exprime um desespero seco, sem lágrimas, sem piedade. Sim, há nela
algo de irremediavelmente dessecado.
A máscara cai, ela sorri.
— Absolutamente não estou triste. Muitas vezes isso me espantou, mas eu
estava errada: por que ficaria triste? Antigamente era capaz de paixões de uma
grande beleza. Odiei apaixonadamente minha mãe. Aliás, a você — diz num
desafio — amei apaixonadamente.
Aguarda uma réplica. Não digo nada.
— Tudo isso terminou, é claro.
— Como pode saber?
— Eu sei. Sei que nunca mais encontrarei nada nem ninguém que me inspire
uma paixão. Você sabe, não é tarefa fácil amar alguém. É preciso ter uma
energia, uma generosidade, uma cegueira... Há até um momento, bem no início,
em que é preciso saltar por cima de um precipício: se refletimos, não o fazemos.
Sei que nunca mais saltarei.
— Por quê?
Ela me lança um olhar irônico e não responde.
— Atualmente — diz — vivo rodeada por minhas paixões defuntas. Tento
recuperar aquela bela fúria que me precipitou do terceiro andar, quando tinha 12
anos, um dia em que minha mãe me chicoteara. Acrescenta, sem ligação
aparente, com ar distante: — Também não é bom que fixe os objetos durante
muito tempo. Olho para eles para saber o que são, depois tenho que desviar
rapidamente os olhos.
— Mas por quê?
— Eles me repugnam.
Mas não pareceria que... De toda maneira, certamente há semelhanças. Já
uma vez, em Londres, isso ocorreu, pensamos separadamente as mesmas coisas
sobre os mesmos assuntos, mais ou menos no mesmo momento. Gostaria tanto
que... Mas o pensamento de Anny faz inúmeros desvios; nunca se tem certeza de
havê-lo compreendido inteiramente. Preciso ter certeza.
— Escute, gostaria de lhe dizer: você sabe que eu nunca soube exatamente o
que eram os momentos perfeitos; você nunca me explicou.
— Sim, eu sei, você não fazia nenhum esforço. Era uma estaca a meu lado.
— Só eu sei o que isso me custou.
— Bem mereceu tudo o que lhe aconteceu, você tinha muita culpa; me
irritava com seu ar sólido. Parecia dizer: eu sou normal; e se dedicava a respirar
saúde, você destilava saúde de espírito.
— Ainda assim, lhe pedi mais de cem vezes que me explicasse o que era
um...
— Sim, mas em que tom — diz com raiva — você condescendia em se
informar... É essa a verdade. Perguntava com uma amabilidade distraída, como
as velhas senhoras que me perguntavam de que estava brincando, quando eu era
pequena. No fundo — diz com ar pensativo — me pergunto se não foi você
quem mais odiei.
Faz um esforço para se dominar, controla-se e sorri, com as faces ainda
inflamadas. Está muito bonita.
— Quero muito lhe explicar o que é isso. Atualmente já tenho idade
suficiente para falar, sem raiva, com as boas velhotas como você, sobre as
brincadeiras de minha infância. Fale, o que quer saber?
— O que era aquilo.
— Falei com você sobre situações privilegiadas, não foi?
— Acho que não.
— Sim — diz com segurança. — Foi em Aix, naquela praça de cujo nome já
não me lembro. Estávamos no jardim de um café, debaixo de guarda-sóis
alaranjados, na hora do sol forte. Você não se lembra: estávamos tomando
limonada e achei moscas mortas no açúcar.
— Ah! Sim, talvez...
— Pois bem, falei de tudo isso nesse café. Já o tinha mencionado a você a
propósito da grande edição da Histoire de Michelet, a que eu tinha quando era
pequena. Era muito maior do que essa aqui, e suas folhas eram de uma cor
pálida, como o interior de um cogumelo, e também cheiravam a cogumelo.
Quando meu pai morreu, meu tio Joseph se apossou dela e levou todos os
volumes. Foi nesse dia que o chamei de velho porco e minha mãe me chicoteou
e eu pulei pela janela.
— Sim, sim... você deve ter me falado dessa Histoire de France... Você não a
lia num sótão? Como vê, me lembro. Vê que estava sendo injusta ainda agora
quando me acusava de ter esquecido tudo.
— Cale-se. Então eu levava, como você se lembrou muito bem, aqueles
livros enormes para o sótão. Tinham muito poucas figuras, talvez três ou quatro
em cada volume. Mas cada uma delas ocupava sozinha uma página inteira, uma
página cujo verso ficara em branco. Isso me impressionava ainda mais, porque
nas outras folhas o texto fora disposto em duas colunas para ganhar espaço.
Tinha um amor extraordinário por essas gravuras; conhecia todas de cor e,
quando relia um livro de Michelet, já as aguardava com cinquenta páginas de
antecedência; sempre me parecia um milagre tornar a encontrá-las. E depois
havia um requinte: a cena que elas representavam nunca se referia ao texto das
páginas imediatas, era preciso procurar o acontecimento umas trinta páginas
adiante.
— Suplico-lhe, fale-me dos momentos perfeitos.
— Estou falando de situações privilegiadas. Eram as que estavam
representadas nas gravuras. Fui eu que as chamei de privilegiadas, dizia-me que
deviam ter uma importância bastante considerável para que tivessem consentido
em utilizá-las como assunto daquelas imagens tão raras. Tinham sido escolhidas
entre todas, entende? E no entanto havia muitos episódios que tinham um valor
plástico maior, outros que tinham mais interesse histórico. Por exemplo, para
todo o século XVI havia apenas três figuras: uma referente à morte de Henrique
II, outra ao assassinato do duque de Guise, e uma à entrada de Henrique IV em
Paris. Então imaginei que aqueles acontecimentos eram de uma natureza
particular. Aliás, as gravuras confirmavam minha ideia: seu desenho era tosco,
os braços e as pernas nunca estavam bem ligados aos troncos. Mas tinham uma
imensa grandeza. Quando o duque de Guise é assassinado, por exemplo, os
espectadores manifestam seu estupor e sua indignação, estendendo, todos eles,
as palmas das mãos para a frente e desviando a cabeça; é muito bonito, parecia
um coro. E não creia que tenham esquecido os detalhes engraçados ou
anedóticos. Viam-se pajens caindo ao chão, cachorrinhos fugindo, bufões
sentados nos degraus do trono. Mas todos esses detalhes eram tratados com
tamanha grandeza e também tamanha falta de jeito, que se harmonizavam
perfeitamente com o resto da figura: não me lembro de ter visto quadros que
tivessem unidade tão rigorosa. Pois bem, foi daí que tudo se originou.
— As situações privilegiadas?
— Enfim, a ideia que fazia disso. Eram situações que tinham uma qualidade
totalmente rara e preciosa, estilo, se preferir. Quando eu tinha oito anos, ser rei,
por exemplo, me parecia uma situação privilegiada. Ou então morrer. Você ri,
mas havia tantas pessoas desenhadas no momento da morte, e há tantas que
pronunciaram palavras sublimes nesse momento, que eu acreditava de boa-fé...
Enfim, pensava que entrando em agonia a pessoa era transportada mais acima de
si mesma. Aliás, bastava estar no quarto de um morto: a morte era uma situação
privilegiada, algo emanava dela e era comunicado a todas as pessoas presentes.
Uma espécie de grandeza. Quando meu pai morreu, me fizeram subir a seu
quarto para vê-lo pela última vez. Ao subir a escada, me sentia muito infeliz,
mas estava como que embriagada por uma espécie de êxtase religioso;
finalmente entrava numa situação privilegiada. Apoiei-me na parede, tentei fazer
os gestos que se impunham. Mas lá estavam minha mãe e minha tia, ajoelhadas
junto à cama, estragando tudo com seus soluços.
Ela disse essas últimas palavras com azedume, como se a lembrança ainda
fosse pungente. Interrompeu-se; o olhar fixo, as sobrancelhas erguidas, aproveita
a ocasião para reviver a cena uma vez mais.
— Mais tarde, ampliei tudo isso; acrescentei-lhe primeiro uma situação nova,
o amor (refiro-me ao ato de fazer amor). Olhe, se nunca entendeu por que me
recusava a... algumas de suas solicitações, agora é uma boa ocasião para
entendê-lo: para mim havia algo que tinha que ser salvo. E depois, então, disse a
mim mesma que devia haver muito mais situações privilegiadas do que eu
poderia contar; finalmente admiti uma infinidade delas.
— Sim, mas afinal de que se tratava?
— Ora essa! Já lhe disse — diz com ar de espanto —, faz 15 minutos que
estou lhe explicando.
— Enfim, era preciso sobretudo que as pessoas estivessem muito
apaixonadas, arrebatadas pelo ódio ou pelo amor, por exemplo; ou então o
aspecto exterior do acontecimento tinha que ser grande, quero dizer, o que se
pode ver dele...
— As duas coisas... isso dependia — responde de má vontade.
— E os momentos perfeitos? O que têm a ver com isso?
— Eles vêm depois. Há primeiro sinais que os anunciam. Depois a situação
privilegiada, lentamente, majestosamente entra na vida das pessoas. Então a
pergunta que se coloca é de saber se queremos fazer disso um momento perfeito.
— Sim — digo —, compreendi. Em cada uma das situações privilegiadas há
certos atos que é preciso fazer, atitudes que é preciso tomar, palavras que é
preciso dizer — e outras atitudes, outras palavras são estritamente proibidas. É
isso?
— Pode ser...
— Em suma, a situação é a matéria: é algo que exige ser trabalhado.
— É isso — diz ela. — Primeiro seria preciso estar mergulhado em algo de
excepcional e sentir que se poderia organizar isso. Se todas as condições
tivessem sido cumpridas, o momento teria sido perfeito.
— Em suma, é uma espécie de obra de arte.
— Você já me disse isso — diz com irritação. — Mas não: era... um dever...
Era preciso transformar as situações privilegiadas em momentos perfeitos. Era
uma questão de moral. Sim, pode rir à vontade: de moral.
Absolutamente não estou rindo.
— Ouça — digo espontaneamente —, também vou reconhecer meus erros.
Nunca a entendi muito bem, nunca tentei sinceramente ajudá-la. Se tivesse
sabido...
— Obrigada, muito obrigada — diz com ironia. — Não espera que me sinta
reconhecida por esses remorsos tardios. Aliás, não lhe quero mal; nunca lhe
expliquei nada com clareza, estava atada, não podia falar a respeito com
ninguém, nem mesmo com você — sobretudo com você. Sempre havia algo que
soava falso naqueles momentos. Então eu ficava como que perdida. No entanto,
tinha a impressão de estar fazendo tudo o que me era possível.
— Mas o que era preciso fazer? Que ações?
— Como você é tolo, não se pode dar exemplo, isso depende.
— Mas me conte o que tentava fazer.
— Não, não quero falar disso. Mas, se quiser, lhe conto uma história que me
impressionou muito quando estava no colégio. Havia um rei que perdera uma
batalha e tinha sido preso. Estava ali, num canto, no campo do vencedor. Vê
passar seu filho e sua filha acorrentados. Não chorou, não disse nada. A seguir,
vê passar, também acorrentado, um de seus servos. Então começou a gemer e a
arrancar os cabelos. Você mesmo pode inventar exemplos. Está vendo: há casos
em que não se deve chorar — ou então somos imundos. Mas se nos cai uma acha
no pé, podemos fazer o que quisermos, gemer, soluçar, pular num pé só. O que
seria tolo era ser o tempo todo estoico: ficaríamos esgotados por nada.
Ela sorri:
— Em outras ocasiões, seria preciso ser mais do que estoico. Naturalmente
você não se lembra da primeira vez que o beijei?
— Sim, muito bem — digo triunfalmente. — Foi nos jardins de Kew, às
margens do Tâmisa.
— Mas o que você nunca soube é que eu me sentara sobre umas urtigas: meu
vestido estava levantado, minhas coxas estavam cobertas de picadas e, ao menor
movimento, havia novas picadas. Pois bem, nesse caso, o estoicismo não teria
bastado. Você absolutamente não me excitava, eu não sentia um desejo especial
por seus lábios, o beijo que ia lhe dar era de uma importância muito maior, era
um engajamento, um pacto. Então você compreenderá que aquela dor era
impertinente, eu não podia pensar em minhas coxas num momento como aquele.
Não bastava não demonstrar meu sofrimento: era preciso não sofrer.
Ela me olha orgulhosamente, ainda muito surpresa com o que fez:
— Durante mais de vinte minutos, durante todo o tempo em que você insistia
para receber aquele beijo que eu estava decidida a lhe dar, todo o tempo que me
fiz de rogada — porque era preciso dar o beijo segundo as regras —, consegui
me anestesiar completamente. No entanto Deus sabe como minha pele é
sensível: não senti nada até nos levantarmos.
É isso, é exatamente isso. Não há aventuras — não há momentos perfeitos...
Perdemos as mesmas ilusões, seguimos os mesmos caminhos. Adivinho o resto
— posso até tomar a palavra em lugar dela e dizer eu mesmo o que ela ainda tem
a dizer: — E então você se deu conta de que havia sempre mulherezinhas aos
prantos, ou um sujeito ruivo, ou qualquer outra coisa para estragar seus efeitos?
— Sim, naturalmente — diz sem entusiasmo.
— Não é isso?
— Oh! Sabe, a longo prazo eu talvez pudesse ter me conformado com as
inadequações de um sujeito ruivo. Afinal me interessava pela maneira como os
outros representavam seu papel... Não, é antes...
— Que não há situações privilegiadas?
— Aí está. Eu pensava que o ódio, o amor ou a morte se abatiam sobre nós
como línguas de fogo da Sexta-feira Santa. Pensava que era possível
resplandecer de ódio ou de morte. Que erro! Sim, eu realmente pensava que isso
existisse — “o Ódio” —, que pousava nas pessoas e as erguia acima delas
mesmas. Naturalmente só existo eu, eu que odeio, eu que amo. E então essa
coisa, eu, é sempre a mesma coisa, uma massa que se estira, se estira... é uma
coisa tão semelhante a si mesma que é de admirar que as pessoas tenham tido a
ideia de inventar nomes, de fazer distinções.
Pensa como eu. Parece-me que nunca a deixei.
— Ouça bem — digo-lhe —, faz um momento que estou pensando numa
coisa que me agrada muito mais do que o papel de marco que você
generosamente me atribuiu: é que nós mudamos juntos e de maneira idêntica.
Prefiro isso, sabe, do que ver você se afastar cada vez mais e eu ficar condenado
a marcar eternamente seu ponto de partida. Eu vinha lhe contar tudo o que você
me contou — com outras palavras, é verdade. Encontramo-nos na chegada. Não
posso lhe dizer o quanto isso me dá prazer.
— Sim? — diz baixinho, mas com ar obstinado. — Pois bem, de toda
maneira eu preferiria que você não mudasse; era mais cômodo. Não sou como
você, me desagrada saber que alguém pensou as mesmas coisas que eu. Aliás,
você deve estar equivocado.
Conto-lhe minhas aventuras, falo-lhe da existência, talvez me alongando
demasiadamente. Ela ouve com atenção, os olhos muito abertos, as sobrancelhas
levantadas.
Quando termino, parece aliviada.
— Pois é, mas você absolutamente não pensa as mesmas coisas que eu. Você
se queixa porque as coisas não se dispõem ao seu redor como um buquê de
flores, sem que você se dê ao trabalho de fazer nada. Mas eu nunca pedi tanto:
queria agir. Lembra quando brincávamos de aventureiro e de aventureira? Você
era aquele a quem as aventuras aconteciam, eu a que as fazia acontecer. Eu dizia:
“Sou um homem de ação.” Lembra-se? Pois bem, agora digo apenas: não se
pode ser um homem de ação.
Aparentemente não pareço convencido, pois ela se entusiasma e continua
com mais força:
— E também há uma quantidade de coisas que não lhe disse, porque levaria
muito tempo para explicar. Por exemplo, teria sido preciso que eu pudesse me
dizer, no exato momento em que agia, que o que estava fazendo teria
consequências... fatais. Não consigo explicar-lhe direito...
— Mas isso é inteiramente inútil — digo com ar bastante pedante —,
também eu pensei isso.
Ela me olha com desconfiança.
— A acreditar em você, teria pensado tudo da mesma maneira que eu: você
me surpreende.
Não posso convencê-la, só a irritarei se insistir. Calo-me. Sinto vontade de
tomá-la em meus braços.
De repente ela me olha com ar ansioso:
— E então, se pensou tudo isso, que podemos fazer?
Baixo a cabeça.
— Eu me... eu me sobrevivo — repete pesadamente.
Que posso lhe dizer? Sei de razões para viver? Não estou, como ela,
desesperado, porque não esperava muito. Estou antes... surpreso, diante dessa
vida que me é dada — dada por nada. Conservo a cabeça baixa, não quero ver o
rosto de Anny nesse momento.
— Viajo — prossegue com voz sombria —; estou voltando da Suécia. Fiquei
oito dias em Berlim. Há esse sujeito que me sustenta...
Tomá-la em meus braços... Para quê? Não posso fazer nada por ela. Está
sozinha como eu.
Anny diz com voz mais alegre:
— O que é que está resmungando?
Ergo os olhos. Ela me olha com ternura.
— Nada. Estava apenas pensando em algo.
— Ó personagem misterioso! Muito bem, fale ou cale-se, mas decida-se.
Falo-lhe do Rendez-vous des Cheminots, do velho ragtime que ponho para
tocar no gramofone, da estranha felicidade que me proporciona.
— Perguntava-me se por esse lado não se poderia encontrar ou enfim
procurar...
Não responde nada, acho que não se interessou muito pelo que lhe disse.
Ainda assim reata, passado um momento, e não sei se prossegue em seus
pensamentos ou se é uma resposta ao que acabo de lhe dizer.
— Os quadros, as estátuas, tudo isso é inutilizável: é belo em frente a mim. A
música...
— Mas no teatro...
— No teatro o quê? Quer enumerar todas as belas-artes?
— Antigamente você dizia que queria fazer teatro, porque no palco deviam
se realizar momentos perfeitos!
— Sim, realizei-os: para os outros. Ficava na poeira, na corrente de ar, sob as
luzes cruas, entre armações de papelão. Em geral contracenava com Thorndyke.
Creio que você o viu representar no Covent Garden. Sempre tinha medo de cair
na gargalhada na cara dele.
— Mas nunca se sentia arrebatada por seu papel?
— Um pouco, por momentos: nunca muito intensamente. O essencial para
todos nós era o buraco preto, bem à nossa frente, no fundo do qual havia pessoas
que não víamos; a elas, evidentemente, era apresentado um momento perfeito.
Mas, sabe, elas não viviam dentro dele: o momento se desenrolava diante delas.
E pensa que nós, os atores, vivíamos dentro? Afinal ele não estava em parte
alguma, nem de um lado nem do outro da ribalta, não existia; no entanto todo
mundo pensava nele. Então, entende, meu querido — diz com voz arrastada e
quase cínica —, mandei tudo passear.
— Quanto a mim, tinha tentado escrever esse livro...
Interrompe-me.
— Vivo no passado. Recordo tudo o que me aconteceu e ordeno-o. Assim de
longe não dói, e quase nos deixaríamos enganar. Toda a nossa história é bastante
bela. Dou-lhe uns retoques e o que fica é uma sequência de momentos perfeitos.
Então fecho os olhos e tento imaginar que ainda vivo dentro deles. Tenho outros
personagens também. É preciso saber se concentrar. Sabe o que li? Os Exercícios
espirituais de Loyola. Foi muito útil para mim. Há uma maneira de colocar
primeiro o cenário, depois de fazer aparecer os personagens. Consegue-se ver —
acrescentou com ar maníaco.
— Pois bem, isso absolutamente não me satisfaria — digo.
— E acha que a mim satisfaz?
Ficamos um momento em silêncio. Cai a noite; mal distingo a mancha pálida
de seu rosto. Sua roupa preta se confunde com a sombra que invade o quarto.
Pego maquinalmente minha xícara na qual restou ainda um pouco de chá e levo-
a aos lábios. O chá está frio. Sinto vontade de fumar, mas não me atrevo. Tenho
a impressão dolorosa de que já não temos nada mais a nos dizer. Ainda ontem
tinha tantas perguntas a lhe fazer: onde estivera, que fizera, quem encontrara?
Mas isso só me interessava na medida em que Anny se tivesse dado
inteiramente, de todo o coração. Agora não sinto curiosidade: todos esses países,
todas essas cidades por onde passou, todos esses homens que a cortejaram e que
ela talvez tenha amado, tudo isso era inconsistente para ela, tudo isso, no fundo,
lhe era tão indiferente: pequenos clarões de sol na superfície de um mar sombrio
e frio. Anny está diante de mim, há quatro anos que não nos víamos e não temos
mais nada a nos dizer.
— Agora — diz Anny de repente — você tem que ir embora. Estou
esperando uma pessoa.
— Está esperando...
— Não, estou esperando um alemão, um pintor.
Começa a rir. Esse riso soa estranho no quarto escuro.
— Olhe, esse é um que não é como nós — ainda não é. Esse age, se esforça.
Levanto-me a contragosto.
— Quando a revejo?
— Não sei, parto para Londres amanhã à noite.
— Por Dieppe?
— Sim, e creio que depois irei para o Egito. Talvez torne a passar por Paris
no próximo inverno, lhe escreverei.
— Amanhã estou livre o dia inteiro — digo timidamente.
— Sim, mas eu tenho muito que fazer — responde com voz seca. — Não,
não posso vê-lo. Escreverei do Egito. Basta que me dê seu endereço.
— Sim.
Rabisco meu endereço, na penumbra, num pedaço de envelope. Terei que
dizer no hotel Printania que me remetam as minhas cartas quando deixar
Bouville. No fundo, sei muito bem que ela não escreverá. Talvez a reveja dentro
de dez anos. Talvez a esteja vendo pela última vez. Não estou apenas arrasado
por deixá-la; sinto um medo pavoroso de voltar à minha solidão.
Ela se levanta; na porta, me beija de leve na boca.
— É para me lembrar de seus lábios — diz sorrindo. — Tenho que
rejuvenescer minhas lembranças para os meus “exercícios espirituais”.
Puxo-a pelo braço e aproximo-a de mim. Ela não resiste mas faz que não
com a cabeça.
— Não. Isso já não me interessa. Não se recomeça... E também, aliás, quanto
ao que as pessoas servem, o primeiro rapaz atraente que se apresente vale tanto
quanto você.
— Mas então o que vai fazer?
— Já lhe disse, vou para a Inglaterra.
— Não, me refiro...
— Ah! Sim, nada.
Não soltei seus braços, digo-lhe baixinho:
— Então tenho que me separar de você depois de havê-la reencontrado.
Agora distingo nitidamente seu rosto. De repente torna-se lívido e
consumido. Um rosto de velha, absolutamente pavoroso; esse, tenho certeza de
que ela não conjurou: está ali sem que ela tenha consciência disso ou talvez
contra a sua vontade.
— Não — diz lentamente —, não. Você não me reencontrou.
Liberta os braços. Abre a porta. O corredor está inundado de luz.
Anny começa a rir.
— Coitado! Não tem sorte. Pela primeira vez que representa bem seu papel,
não recebe o menor reconhecimento. Vamos, vá embora.
Ouço a porta se fechar atrás de mim.
Domingo
Esta manhã consultei o guia ferroviário: supondo que não me tenha mentido, ela
partiria pelo trem de Dieppe às 5h38. Mas talvez o sujeito dela a levasse de
automóvel? Perambulei a manhã toda pelas ruas de Ménilmontant e depois, à
tarde, pelos cais. Alguns passos, alguns muros me separavam dela. Às 5h38
nosso encontro de ontem se transformaria numa lembrança, a mulher opulenta
cujos lábios haviam roçado minha boca iria ter, no passado, com a menina magra
de Meknès, de Londres. Mas nada ainda era passado, já que ela ainda estava ali,
já que ainda era possível revê-la, convencê-la, levá-la comigo para sempre.
Ainda não me sentia sozinho.
Queria desviar meu pensamento de Anny, porque, à força de imaginar seu
corpo e seu rosto, caíra num extremo nervosismo: minhas mãos tremiam e
arrepios gelados percorriam meu corpo. Pus-me a folhear livros nos mostruários
de segunda mão, especialmente as publicações obscenas, pois, apesar de tudo,
isso ocupa a mente.
Quando soaram cinco horas no relógio da estação d’Orsay, eu estava olhando
as gravuras de uma obra intitulada Le docteur au fouet. Eram pouco variadas: na
maioria um grandalhão barbudo brandia uma chibata em monstruosos traseiros
nus. Tão logo percebi que eram cinco horas, joguei o livro no meio dos outros e
pulei num táxi que me levou à estação Saint-Lazare.
Passeei pela plataforma durante uns vinte minutos, depois os vi. Anny estava
com um pesado casaco de peles que lhe dava a aparência de uma senhora. E um
chapéu com véu. O sujeito, com um sobretudo de pelo de camelo. Era
bronzeado, jovem ainda, muito alto, muito bonito. Um estrangeiro certamente,
mas não um inglês; talvez um egípcio. Subiram no trem sem me ver. Não se
falavam. Depois o sujeito tornou a descer e comprou jornais. Anny abaixou o
vidro de seu compartimento; viu-me. Olhou-me demoradamente, sem raiva, com
olhos inexpressivos. Depois o sujeito voltou a subir no vagão e o trem partiu.
Nesse momento vi nitidamente o restaurante de Piccadilly onde almoçávamos no
passado; depois tudo ruiu. Caminhei. Quando me senti cansado, entrei nesse café
e dormi. O garçom acaba de me acordar e estou escrevendo isso
semiadormecido.
Regressarei a Bouville amanhã pelo trem de meio-dia. Basta que fique dois
dias lá: para fazer minhas malas e pôr em ordem os assuntos de banco. Creio que
no hotel Printania vão querer que pague duas semanas a mais, porque não os
preveni com antecedência. Também tenho que devolver à biblioteca os livros
que me emprestaram. De toda maneira estarei de volta a Paris antes do fim da
semana.
O que lucrarei com a mudança? Continua a ser uma cidade: esta é cortada
por um rio, a outra é margeada pelo mar; afora isso, parecem-se. Escolhe-se uma
terra pelada, estéril, e empurram-se para lá grandes pedras ocas. Nessas pedras
estão aprisionados odores, odores mais pesados do que o ar. Às vezes jogam-nos
nas ruas, pelas janelas, e eles lá ficam até que os ventos os tenham dilacerado.
Com tempo claro os ruídos entram por uma ponta da cidade e saem pela outra
ponta, após terem atravessado todas as paredes; outras vezes rodopiam entre
essas pedras que o sol cozinha e o gelo fende.
Tenho medo das cidades. Mas é preciso não sair delas. Se nos aventuramos
até muito longe, encontramos o círculo da Vegetação. A Vegetação rastejou
durante quilômetros na direção das cidades. Está à espera. Quando a cidade tiver
morrido, a Vegetação a invadirá, trepará nas pedras, irá encerrá-las, esquadrinhá-
las, despedaçá-las com suas longas pinças pretas; cegará os buracos e deixará
pender patas verdes por todo lado. É preciso permanecer nas cidades enquanto
estão vivas, não se deve penetrar sozinho sob a grande cabeleira que está às suas
portas: é preciso deixá-la ondular e estalar sem testemunhas. Nas cidades, se
sabemos como fazer, se escolhemos as horas em que os animais digerem ou
dormem em seus buracos, por trás dos amontoados de detritos orgânicos, quase
só encontramos minerais, os menos apavorantes dos entes.
Vou retornar a Bouville. A Vegetação cerca Bouville somente por três lados.
No quarto lado há um grande buraco, cheio de água preta que se mexe sozinha.
O vento assobia entre as casas. Os odores permanecem menos tempo do que em
outros lugares: enxotados para o mar pelo vento, correm rente à água preta como
pequenos nevoeiros doidivanas. Chove. Deixaram crescer plantas entre quatro
grades. Plantas castradas, domesticadas, inofensivas, de tão carnudas que são.
Têm enormes folhas esbranquiçadas que pendem como orelhas. Ao tato
pareceria cartilagem. Tudo é gordo e branco em Bouville por causa de toda essa
água que cai do céu. Vou retornar a Bouville. Que horror!
Acordo sobressaltado. É meia-noite. Faz seis horas que Anny deixou Paris. O
barco está no mar. Ela dorme numa cabine e, no tombadilho, o belo sujeito
bronzeado fuma cigarros.

Terça-feira em Bouville
Será isso a liberdade? Por baixo de mim os jardins descem languidamente em
direção à cidade e em cada jardim se ergue uma casa. Vejo o mar pesado,
imóvel, vejo Bouville. O dia está bonito.
Sou livre: já não me resta nenhuma razão para viver, todas as que tentei
cederam e já não posso imaginar outras. Ainda sou bastante jovem, ainda tenho
força bastante para recomeçar. Mas recomeçar o quê? Só agora compreendo o
quanto, no auge de meus terrores, de minhas náuseas, tinha contado com Anny
para me salvar. Meu passado está morto. O sr. de Rollebon está morto, Anny só
retornou para me tirar toda esperança. Estou sozinho nessa rua branca
guarnecida de jardins. Sozinho e livre. Mas essa liberdade se assemelha um
pouco à morte.
Hoje minha vida chega ao fim. Amanhã terei deixado essa cidade que se
estende a meus pés, onde vivi durante tanto tempo. Ela passará a ser apenas um
nome, atarracado, burguês, bem francês, um nome em minha memória, menos
rico que os de Florença ou de Bagdá. Chegará uma época em que me
perguntarei: “Mas, afinal, quando estava em Bouville, o que era mesmo que
fazia durante o dia?” E desse sol, dessa tarde, não restará nada, nem mesmo uma
lembrança.
Toda a minha vida está atrás de mim. Vejo-a inteiramente, vejo sua forma e
seus movimentos lentos que me trouxeram até aqui. Há pouco a dizer sobre ela:
é uma partida perdida, eis tudo. Faz três anos que entrei solenemente em
Bouville. Tinha perdido o primeiro jogo. Quis jogar o segundo e também perdi:
perdi a partida. Concomitantemente aprendi que se perde sempre. Só os
Salafrários pensam que ganham. Agora vou fazer como Anny, vou sobreviver a
mim mesmo. Comer, dormir. Dormir, comer. Existir lentamente, suavemente,
como essas árvores, como uma poça d’água, como o banco vermelho do bonde.
A Náusea me concede uma trégua curta. Mas sei que voltará: é meu estado
normal. Só que hoje meu corpo está muito extenuado para suportá-la. Também
os doentes têm fraquezas bem-vindas que lhes tiram por algumas horas a
consciência de seu mal. Entedio-me, isso é tudo. De quando em quando bocejo
com tanta força que as lágrimas me escorrem pelo rosto. É um tédio profundo,
profundo, o coração profundo da existência, a própria matéria de que sou feito.
Não me desleixo, muito pelo contrário: essa manhã tomei banho, me barbeei. Só
que, quando considero todos esses pequenos atos diligentes, não compreendo
como pude fazê-los: são tão inúteis. Certamente foram os hábitos que os fizeram
por mim. Estes não morreram, continuam a se azafamar, a tecer silenciosamente,
insidiosamente, suas tramas; lavam-me, secam-me, vestem-me, como amas-
secas. Também terão sido eles que me trouxeram a essa colina? Já não me
lembro como vim. Certamente pela escadaria Dautry: terei realmente subido, um
a um, esses 110 degraus? O que talvez seja ainda mais difícil de imaginar é que
daqui a pouco vou descê-los. No entanto eu sei: dentro de um momento estarei
no sopé do Coteau Vert, erguendo a cabeça poderei ver ao longe as janelas
dessas casas que estão tão próximas se iluminarem. Ao longe. Por cima de
minha cabeça; e esse instante, do qual não posso sair, que me prende e me limita
por todos os lados, esse instante do qual sou feito já não será senão um sonho
indistinto.
Olho aos meus pés as cintilações cinzas de Bouville. Pareciam, sob o sol,
montículos de conchas, de escamas, de esquírolas de ossos, de saibro. Perdidos
entre esses destroços, minúsculos estilhaços de vidro ou de mica emitem
intermitentemente leves lampejos. Os regos, as valas, os sulcos estreitos que
correm entre as conchas, dentro de uma hora serão ruas, e caminharei por essas
ruas entre paredes. Dentro de uma hora serei um daqueles homenzinhos pretos
que distingo na rua Boulibet.
Como me sinto longe deles, do alto dessa colina. Parece-me que pertenço a
uma outra espécie. Eles estão saindo dos escritórios, depois de seu dia de
trabalho, olham para as casas e para as praças com ar satisfeito, pensam que essa
é a sua cidade, uma “bela urbe burguesa”. Não têm medo, sentem-se em casa.
Nunca viram senão a água domada que corre das torneiras, a luz que jorra das
lâmpadas quando se aperta o interruptor, as árvores mestiças, bastardas,
sustentadas por espeques. Eles comprovam, cem vezes por dia, que tudo se faz
por mecanismo, que o mundo obedece a leis fixas e imutáveis. Os corpos
abandonados no vazio caem todos na mesma velocidade, o jardim público é
fechado todos os dias às 16 horas no inverno e às 18 horas no verão, o chumbo
funde a 335°, o último bonde sai da prefeitura às 23h05. Eles são sossegados, um
pouco taciturnos, pensam no Amanhã, isto é, simplesmente num novo hoje; as
cidades dispõem apenas de um único dia que retorna igualzinho todas as
manhãs. Só o enfeitam um pouco aos domingos. Que imbecis! Repugna-me
pensar que vou rever seus rostos espessos e tranquilos. Eles legislam, escrevem
romances populistas, casam-se, cometem a extrema tolice de fazer filhos. No
entanto a grande natureza vaga penetrou em sua cidade, infiltrou-se por todo
lado, em suas casas, em seus escritórios, neles próprios. Não se mexe, mantém-
se quieta, e eles estão bem dentro dela, respiram-na e não a veem, imaginam que
ela está lá fora, a vinte léguas da cidade. Mas eu vejo essa natureza, vejo-a... Sei
que sua submissão é preguiça, que ela não tem leis: o que acreditam ser sua
constância... Ela tem apenas hábitos e pode mudá-los amanhã.
E se acontecesse alguma coisa? E se de repente ela começasse a palpitar?
Então eles perceberiam que ela está ali e teriam a impressão de que seus
corações iam se quebrar. Então de que lhes serviriam seus diques e suas
muralhas e suas centrais elétricas e seus altos-fornos e seus martelos-pilões? Isso
pode acontecer em qualquer momento, talvez imediatamente: os presságios aí
estão. Por exemplo, um pai de família, passeando, verá vir em sua direção,
através da rua, um trapo vermelho como que empurrado pelo vento. E quando o
trapo estiver bem perto dele, verá que é um pedaço de carne podre maculada de
poeira, que se arrasta saltitando, um pedaço de carne torturada que rola nos
riachos projetando, por espasmos, jatos de sangue. Ou então uma mãe olhará
para a face de seu filho e lhe perguntará: “O que você tem aí? É uma espinha?” e
verá a carne empolar um pouco, fender-se, entreabrir-se e, no fundo da fenda,
um terceiro olho, um olho risonho surgirá. Ou então sentirão suaves roçaduras
por todo o corpo, como as carícias que nos rios os juncos fazem nos nadadores.
E perceberão que suas roupas se transformaram em coisas vivas. Outro sentirá
que há algo arranhando sua boca. E se aproximará de um espelho, abrirá a boca:
e sua língua se terá tornado uma enorme centopeia viva, que baterá com as
pernas e lhe arranhará o céu da boca. Tentará cuspir, mas a centopeia será uma
parte dele mesmo e terá que arrancá-la com as mãos. E quantidades de coisas
surgirão, para as quais será preciso encontrar novos nomes, o olho de pedra, o
grande braço tricorne, o artelho-muleta, a aranha-maxilar. E quem estiver
dormindo em sua boa cama, em seu tranquilo quarto quente, acordará
inteiramente nu num chão azulado, numa floresta de pênis estrepitosos,
vermelhos e brancos, erguidos para o céu como as chaminés de Jouxtebouville,
com grandes testículos meio saídos da terra, peludos e bulbosos como cebolas. E
pássaros esvoaçarão em torno desses pênis e os picarão com seus bicos e os
farão sangrar. Escorrerá esperma desses ferimentos, lentamente, suavemente,
esperma misturado com sangue, vítreo e morno, com pequenas bolhas. Ou então
nada de tudo isso acontecerá, não ocorrerá nenhuma mudança apreciável, mas as
pessoas, uma manhã, ao abrirem suas persianas, serão surpreendidas por uma
espécie de sentido terrível, pesadamente pousado nas coisas e que parecerá estar
à espera. Apenas isso: mas por pouco tempo que isso dure, haverá centenas de
suicídios. Pois bem; sim! Só desejo que tudo isso mude um pouco, para ver em
que dará. Ver-se-ão outros então mergulhados bruscamente na solidão. Homens
inteiramente sós, sós com suas horríveis monstruosidades, correrão pelas ruas,
passarão pesadamente diante de mim, os olhos fixos, fugindo de seus males e
trazendo-os consigo, a boca aberta, com sua língua-inseto batendo as asas. Então
estourarei de rir, mesmo se meu corpo estiver coberto de nojentas crostas
suspeitas, que se abrem em flores de carne, em violetas, em ranúnculos.
Encostar-me-ei numa parede e lhes gritarei ao passarem: “Que fizeram de sua
ciência? Que fizeram de seu humanismo? Onde está sua dignidade de caniço
pensante?” Não sentirei medo — ou pelo menos não mais do que nesse
momento. Não será tudo isso sempre existência, variações sobre a existência?
Todos esses olhos que devorarão lentamente um rosto certamente serão demais,
mas não mais do que os dois primeiros. É da existência que sinto medo.
Cai a noite, acendem-se as primeiras luzes na cidade. Deus meu! Como a
cidade parece natural, apesar de todas as suas geometrias; como parece
esmagada pela noite. Isso é tão... evidente daqui; será possível que eu seja o
único a percebê-lo? Não haverá em nenhum lugar nenhuma outra Cassandra no
cume de uma colina, olhando a seus pés uma cidade submergida no fundo da
natureza? Aliás, que me importa? Que poderia lhe dizer?
Meu corpo lentamente se volta para o leste, oscila um pouco e se põe a
caminho.

Quarta-feira: meu último dia em Bouville


Percorri a cidade inteira para encontrar o Autodidata. Certamente não voltou
para casa. Deve estar perambulando por aí, arrasado de vergonha e de horror,
esse pobre humanista que os homens já não aceitam. A bem dizer, não fiquei
muito surpreendido quando a coisa aconteceu: há muito sentia que seu rosto
suave e temeroso atraía o escândalo. Ele era tão pouco culpado: quase não se
pode dizer que fosse sensualidade seu humilde amor contemplativo pelos
rapazinhos — era antes uma forma de humanismo. Mas era preciso que um dia
ele se encontrasse sozinho. Como o sr. Achille, como eu: ele é de minha raça,
tem boa vontade. Agora entrou na solidão — e para sempre. De repente tudo
desabou, seus sonhos de cultura, seus sonhos de compreensão com relação aos
homens. Primeiro haverá o medo, o horror e as noites insones, e em seguida,
depois disso, a longa sequência de dias de exílio. À noite ele voltará a
perambular pelo pátio das Hipotecas; olhará de longe para as janelas cintilantes
da biblioteca e se sentirá arrasado quando se lembrar das longas fileiras de
livros, de suas encadernações de couro, do cheiro de suas páginas. Lamento não
ter podido acompanhá-lo, mas ele não quis: foi ele quem me suplicou que o
deixasse sozinho: estava começando o aprendizado da solidão. Estou escrevendo
isso no café Mably. Entrei aqui cerimoniosamente, queria contemplar o gerente,
a empregada da caixa e sentir intensamente que os via pela última vez. Mas não
posso desviar meu pensamento do Autodidata, tenho permanentemente seu rosto
desfeito diante dos olhos, seu rosto de reprovação e seu colarinho
ensanguentado. Então pedi que me trouxessem papel e vou contar o que lhe
aconteceu.
Cheguei à biblioteca por volta das duas da tarde. Estava pensando: “A
biblioteca. Entro aqui pela última vez.”
A sala estava quase deserta. Custava-me reconhecê-la, porque sabia que
nunca mais voltaria lá. Ela estava leve como uma névoa, quase irreal, toda
avermelhada; o sol poente tingia de vermelho a mesa reservada às leitoras, a
porta, as lombadas dos livros. Por um segundo tive a impressão agradável de
penetrar num bosque cheio de folhas douradas; sorri. Pensei: “Há quanto tempo
não sorrio!” O corso olhava pela janela com as mãos atrás das costas. O que via?
O crânio de Impétraz? “Eu já não verei o crânio de Impétraz, nem sua cartola,
nem sua sobrecasaca. Dentro de seis horas terei deixado Bouville.” Coloquei
sobre a mesa do sub-bibliotecário os dois volumes que solicitara o mês passado.
Ele rasgou uma ficha verde e me entregou seus pedaços: — Aí está, sr.
Roquentin.
— Obrigado.
Pensei: “Agora não lhes devo mais nada. Não devo mais nada a ninguém
daqui. Dentro em pouco irei me despedir da dona do Rendez-vous des
Cheminots. Estou livre.” Hesitei alguns instantes: utilizaria esses últimos
momentos dando um longo passeio por Bouville, revendo o bulevar Victor-Noir,
a avenida Galvani, a rua Tournebride? Mas aquele bosque estava tão calmo, tão
puro: parecia-me que quase não existia e que a Náusea o poupara. Fui me sentar
perto do calefator. O Journal de Bouville fora deixado sobre a mesa. Estendi a
mão, peguei-o.
“Salvo por seu cachorro.
“O sr. Dubosc, proprietário em Remiredon, regressava ontem à noite para
casa, de bicicleta, vindo da feira de Naugis...”
Uma senhora corpulenta veio se sentar à minha direita. Colocou o chapéu de
feltro a seu lado. Seu nariz parecia enfado em seu rosto como uma faca numa
maçã. Sob o nariz um buraquinho obsceno franzia-se desdenhosamente. Ela tirou
da bolsa um livro encadernado, fincou os cotovelos na mesa, apoiando o rosto
nas mãos gordas. Em frente a mim um senhor velho dormia. Eu o conhecia:
estava na biblioteca no dia em que sentira tanto medo. Creio que também ele
sentira medo. Pensei: “Como tudo isso ficou longe.”
Às quatro e meia o Autodidata entrou. Teria gostado de lhe apertar a mão e
me despedir dele. Mas, ao que parece, nosso último encontro lhe deixara uma
recordação desagradável: dirigiu-me um cumprimento distante e foi depositar
bastante longe de mim um pacotinho branco que devia conter, como de hábito,
uma fatia de pão e uma barra de chocolate. Passado um momento, retornou com
um livro ilustrado que pousou junto de seu embrulho. Pensei: “Vejo-o pela
última vez.” Amanhã à noite, depois de amanhã à noite, por todas as noites
seguintes, ele tornaria a vir ler nessa mesa, comendo seu pão e seu chocolate,
prosseguiria pacientemente suas roeduras de rato, leria as obras de Nabaud,
Naudeau, Nodier, Nys, interrompendo-se de quando em quando para anotar uma
máxima em seu caderninho. E eu caminharia por Paris, pelas ruas de Paris, veria
rostos novos. Que me aconteceria, enquanto ele estivesse aqui, com a lâmpada a
iluminar-lhe o grande rosto circunspecto? Senti a tempo que ia sucumbir
novamente à miragem da aventura. Dei de ombros e retomei minha leitura.
“Bouville e seus arredores.
“Monistiers.
“Atividade da brigada de gendarmaria durante o ano de 1931. O sargento de
cavalaria, chefe Gaspard, comandando a brigada de Monistiers, e seus quatro
gendarmes, srs. Lagoutte, Nizan, Pierpont e Ghil, não descansaram durante o ano
de 1931. Efetivamente nossos gendarmes registraram sete crimes, 82 delitos, 159
contravenções, seis suicídios e 15 acidentes de automóvel, três dos quais
mortais.”
“Jouxtebouville
“Grupo amistoso dos Trombeteiros de Jouxtebouville.
“Hoje, ensaio-geral, entrega dos convites para o concerto anual.”
“Compostel
“Entrega da Legião de Honra ao prefeito.”
“O turista bouvilês (Fundação Escoteira de Bouville 1924):
“Hoje à noite, às 20h45, reunião mensal na sede social, à rua Ferdinand
Byron, 10, sala A. Ordem do dia: leitura da última ata. Correspondência;
banquete anual, contribuição de 1932, programa de excursões em março;
assuntos diversos; adesões.”
“Proteção dos animais (Sociedade de Bouville):
“Na próxima quinta-feira, das 15h às 17h, sala C, na rua Ferdinand Byron,
10, Bouville, serviço público permanente. Dirigir a correspondência ao
presidente, para a sede ou para a avenida Galvani, 154.”
“Clube bouvilês do cão de guarda... Associação bouvilesa dos incapacitados
de guerra... Sindicato dos proprietários de táxis... Comitê Bouvilês dos Amigos
das Escolas Normais...”
Entraram dois meninos com pastas. Alunos do liceu. O corso gosta muito dos
alunos do liceu, porque pode exercer uma vigilância paternal sobre eles. Muitas
vezes, por prazer deixa que conversem e se agitem em suas cadeiras, depois, de
repente vai, na ponta dos pés, se colocar atrás deles e os repreende: “Isso são
maneiras de garotos crescidos? Se não querem mudar de comportamento, o sr.
bibliotecário está decidido a apresentar queixa ao sr. reitor.” E, se eles protestam,
fita-os com seu olhar terrível: “Deem-me seus nomes.” Também controla suas
leituras: na biblioteca determinados volumes estão marcados com uma cruz
vermelha, é o Inferno: obras de Gide, Diderot, Baudelaire, tratados de medicina.
Quando um aluno de liceu pede para consultar um desses livros, o corso lhe faz
um sinal, leva-o para um canto e o interroga. Um momento depois explode e sua
voz enche a sala de leitura: “No entanto há livros mais interessantes, quando se
tem sua idade. Livros instrutivos. E em primeiro lugar terminou seus deveres?
Em que ano está? No segundo? E não tem nada para fazer depois das quatro
horas? Seu professor vem aqui com frequência e eu lhe falarei de você.”
Os dois garotos permaneciam postados junto ao calefator. O mais jovem
tinha bonitos cabelos castanhos, a pele quase que demasiadamente delicada e
uma boca muito pequena, arrogante e dura. Seu colega, um grandalhão
espadaúdo com uma sombra de bigode, cutucou-o e murmurou algumas
palavras. O moreninho não respondeu, mas deu um sorriso imperceptível, cheio
de soberba e presunção. Depois os dois displicentemente escolheram um
dicionário numa das prateleiras e se aproximaram do Autodidata que os fitava
com olhar cansado. Eles fingiam ignorar sua existência, mas sentaram-se bem ao
seu lado, o moreninho à esquerda dele e o grandalhão espadaúdo à esquerda do
moreninho. Começaram imediatamente a folhear o dicionário. O Autodidata
deixou errar o olhar pela sala, depois retornou à sua leitura. Nunca uma sala de
biblioteca ofereceu espetáculo mais tranquilizador: eu não ouvia um ruído, a não
ser a respiração curta da senhora corpulenta, só via cabeças inclinadas sobre in-
oitavos. No entanto, a partir desse momento, tive a impressão de que ia ocorrer
um fato desagradável. Todas aquelas pessoas que baixavam os olhos com ar
aplicado pareciam estar representando: poucos instantes antes eu sentira passar
sobre nós como que um sopro de crueldade.
Tinha terminado minha leitura, mas não me decidia a ir embora: estava à
espera, fingindo ler meu jornal. O que aumentava minha curiosidade e meu mal-
estar era que os outros também estavam à espera. Parecia-me que minha vizinha
virava mais rapidamente as páginas de seu livro. Passaram-se alguns minutos,
depois ouvi cochichos. Ergui prudentemente a cabeça. Os dois meninos tinham
fechado o dicionário. O moreninho não falava, estava com o rosto voltado para a
direita com uma expressão de deferência e interesse. Meio escondido por trás de
seu ombro, o louro aguçava o ouvido e ria silenciosamente. “Mas quem está
falando?”, pensei.
Era o Autodidata. Estava inclinado para seu jovem vizinho, fitando-o nos
olhos, sorrindo-lhe; via-o mexer os lábios e de quando em quando seus longos
cílios estremeciam. Não lhe conhecia esse ar de juventude, ele estava quase
atraente. Mas por momentos, se interrompia e lançava um olhar inquieto para
atrás de si. O rapazinho parecia beber suas palavras. Essa pequena cena nada
tinha de extraordinário e eu ia voltar à minha leitura, quando vi o rapazinho
deslizar lentamente a mão por trás de suas costas pela beira da mesa. Assim, sem
que os olhos do Autodidata pudessem vê-la, ela caminhou um instante e se pôs a
tatear à sua volta; depois, tendo encontrado o braço do louro grandalhão,
beliscou-o com força. O outro, muito absorvido em desfrutar silenciosamente as
palavras do Autodidata, não a vira se aproximar. Deu um salto e sua boca se
abriu desmesuradamente sob o efeito da surpresa e da admiração. O moreninho
mantivera sua expressão de interesse respeitoso. Seria possível duvidar que
aquela mão travessa lhe pertencesse. “O que vão lhe fazer?”, pensei. Percebia
claramente que algo de ignóbil ia ocorrer, também via claramente que ainda
havia tempo para impedir que aquilo ocorresse. Mas não conseguia adivinhar o
que é que era preciso impedir. Por um segundo pensei em me levantar, ir bater
no ombro do Autodidata e entabular uma conversa. Mas no mesmo momento ele
surpreendeu meu olhar. Parou abruptamente de falar e franziu os lábios com ar
irritado. Desencorajado, desviei rapidamente o olhar e peguei outra vez meu
jornal, para disfarçar. No entanto a senhora corpulenta afastara seu livro e
erguera a cabeça. Parecia fascinada. Senti claramente que o drama ia estourar:
todos queriam que estourasse. Que podia fazer? Dei uma olhadela para o corso:
ele já não estava olhando pela janela, estava meio virado para nós.
Passaram-se 15 minutos. O Autodidata recomeçara seus cochichos. Já não
me atrevia a olhá-lo, mas imaginava muito bem seu ar jovem e terno e aqueles
olhares carregados que pesavam sobre ele sem que ele o soubesse. Em dado
momento ouvi seu riso, um risinho esganiçado e pueril. Aquilo me deu um
aperto no coração: parecia-me que uns meninos sórdidos iam afogar um gato.
Depois, de repente os cochichos cessaram. Esse silêncio me pareceu trágico: era
o fim, o golpe de morte. Eu baixava a cabeça para o meu jornal e fingia ler; mas
não lia: erguia as sobrancelhas e levantava os olhos o mais alto que podia, para
tentar surpreender o que estava sucedendo naquele silêncio à minha frente.
Virando ligeiramente a cabeça, consegui distinguir algo com o rabo do olho: era
uma mão, a mãozinha branca que pouco antes deslizara ao longo da mesa. Agora
estava pousada de palma para cima, descontraída, suave e sensual, com a nudez
indolente de uma banhista que se aquece ao sol. Um objeto escuro e peludo
aproximou-se hesitantemente dela. Era um grande dedo amarelado pelo fumo;
tinha, ao lado dessa mão, toda a desgraciosidade de um falo. Deteve-se um
instante, rígido, apontando para a frágil palma, depois, de repente, timidamente,
começou a acariciá-la. Eu não estava surpreso, estava sobretudo furioso com o
Autodidata: então aquele imbecil não podia se conter? Então não percebia o
perigo que corria? Só lhe restava uma possibilidade, uma pequena possibilidade:
se pousasse as duas mãos na mesa, uma de cada lado de seu livro, se se
mantivesse absolutamente quieto, talvez escapasse ao seu destino dessa vez. Mas
eu sabia que ele ia perder sua oportunidade: o dedo passava suavemente,
humildemente, pela carne inerte, mal a roçava, sem se atrever a fazer pressão
sobre ela: parecia ter consciência de sua feiura. Ergui bruscamente a cabeça, já
não podia suportar aquele pequeno vaivém obstinado: buscava os olhos do
Autodidata e tossia com força para avisá-lo. Mas ele cerrara as pálpebras, sorria.
Sua outra mão desaparecera sob a mesa. Os garotos já não riam, tinham ficado
muito pálidos. O moreninho franzia os lábios, sentia medo, parecia ter perdido o
controle da situação. No entanto não retirava sua mão, deixava-a sobre a mesa,
imóvel, só um pouco crispada. Seu colega estava de boca aberta, com ar de
estupefação e horror.
Foi então que o corso começou a berrar. Sem que o ouvissem, ele viera se
postar atrás da cadeira do Autodidata. Estava escarlate e tinha uma expressão de
riso, mas seus olhos faiscavam. Dei um salto em minha cadeira, mas me senti
quase aliviado: a espera fora muito penosa. Queria que aquilo terminasse o mais
breve possível, que o pusessem na rua, se quisessem, mas que aquilo terminasse.
Os dois meninos, brancos de susto, pegaram suas pastas num abrir e fechar de
olhos e desapareceram.
— Eu o vi — gritava o corso, louco de fúria —, dessa vez o vi, o senhor não
poderá negar. Vai dizer que é mentira dessa vez? Pensa que não estava vendo sua
manobra? Não sou cego, seu ingênuo. Paciência, dizia para comigo, paciência,
quando o agarrar isso vai lhe custar caro. Oh! Sim, isso vai lhe custar caro. Sei
seu nome, seu endereço, me informei, entende? Sei também quem é seu patrão, o
sr. Chuillier. Ele é que vai ficar surpreso, amanhã de manhã, quando receber uma
carta do sr. bibliotecário. Hem? Cale-se — disse-lhe revirando os olhos. — Em
primeiro lugar não pense que isso vai parar aqui. Na França há tribunais para
gente de sua espécie. O cavalheiro se instruía! O cavalheiro completava sua
cultura! O cavalheiro me importunava o tempo todo pedindo informações sobre
livros. Fique sabendo que nunca me enganou.
O Autodidata não parecia surpreso. Certamente fazia anos que esperava por
esse desenlace. Devia ter imaginado mais de cem vezes o que aconteceria no dia
em que o corso se insinuasse, de mansinho, por trás dele e uma voz furiosa
retumbasse de repente em seus ouvidos. E no entanto ele retornava todas as
tardes, prosseguia febrilmente suas leituras e, vez por outra, como um ladrão,
acariciava a mão branca ou talvez a perna de um menino. O que eu lia em seu
rosto era antes resignação.
— Não sei o que está querendo insinuar — balbuciou. — Há anos que venho
aqui...
Simulava indignação, surpresa, mas sem convicção. Bem sabia que o fato lá
estava e que nada mais poderia detê-lo, que era preciso vivê-lo minuto por
minuto.
— Não lhe dê ouvidos, eu vi — disse minha vizinha. Ela se levantara com
dificuldade. — Ah! Não. Não é a primeira vez que o vejo; ainda na segunda-
feira passada vi o que ele fazia e não quis dizer nada porque não acreditava em
meus olhos, e não podia imaginar que numa biblioteca, um lugar sério, onde as
pessoas vêm para se instruir, ocorressem coisas de fazer corar. Eu não tenho
filhos, mas me compadeço das mães que mandam os seus estudar aqui e que
pensam que estão sossegados, protegidos, enquanto há monstros que não
respeitam nada e os impedem de fazer seus deveres.
O corso se aproximou do Autodidata:
— Está ouvindo o que diz a senhora? — gritou-lhe no rosto. — Inútil fingir.
Viram-no, seu porco!
— Senhor, exijo que seja mais delicado — disse o Autodidata com
dignidade.
Isso fazia parte de seu papel. Talvez tivesse querido confessar, fugir, mas
tinha que representar seu papel até o fim. Não olhava para o corso: seus olhos
estavam quase fechados. Tinha os braços caídos; estava terrivelmente pálido. E
então, de repente uma onda de sangue lhe subiu ao rosto.
O corso sufocava de furor.
— Delicado? Seu porco! Talvez pense que não o vi. Já lhe disse que estava à
espreita. Há meses que o espreitava.
O Autodidata sacudiu os ombros e fingiu mergulhar novamente na leitura.
Escarlate, os olhos cheios de lágrimas, assumira um ar de profundo interesse e
olhava atentamente para uma reprodução de um mosaico bizantino.
— Ele continua a ler, tem topete — disse a senhora olhando para o corso.
Este estava indeciso. Ao mesmo tempo o sub-bibliotecário, um rapaz tímido
e respeitável, a quem o corso aterrorizava, levantara-se lentamente de sua mesa e
gritava: “Paoli, o que foi?” Houve um segundo de hesitação e tive esperança de
que o caso acabasse ali. Mas o corso deve ter examinado rapidamente a sua
conduta e deve ter se sentido ridículo. Nervoso, já não sabendo o que dizer à sua
vítima muda, se endireitou todo e deu um soco no ar. O Autodidata se virou
apavorado. Olhava para o corso, boquiaberto: havia em seus olhos um medo
horrível.
— Se me bater, darei queixa — disse com dificuldade —; quero ir embora
voluntariamente.
Eu me levantara por minha vez, mas era tarde demais: o corso soltou um
pequeno gemido voluptuoso e subitamente deu um murro no nariz do
Autodidata. Por um segundo vi apenas os olhos deste, seus magníficos olhos
arregalados de dor e vergonha, por cima de uma manga e de um punho escuro.
Quando o corso retirou o punho, o nariz do Autodidata começava a espirrar
sangue. Ele quis levar as mãos ao rosto, mas o corso bateu-lhe de novo no canto
dos lábios. O Autodidata se deixou cair na cadeira e olhou para a frente com seus
olhos tímidos e doces. O sangue lhe escorria do nariz sobre a roupa. Ele tateou
com a mão direita para encontrar seu embrulho, enquanto a mão esquerda
tentava obstinadamente enxugar suas narinas, de onde o sangue não parava de
escorrer.
— Vou embora — disse como que para si mesmo.
A mulher ao meu lado estava pálida e seus olhos brilhavam.
— Bem feito, seu porco — disse.
Eu tremia de raiva. Dei a volta à mesa, peguei o corso pelo pescoço e ergui-o
no ar, a espernear: poderia tê-lo arrebentado contra a mesa. Ele ficara roxo e se
debatia, tentava me arranhar; mas seus braços curtos não chegavam até meu
rosto. Eu não dizia palavra, mas queria esmurrar seu nariz, desfigurá-lo. Ele
percebeu, levantou o cotovelo para proteger o rosto: sentia-me contente porque
via que ele estava com medo. De repente começou a gaguejar: — Solte-me, seu
bruto! Também é maricas?
Ainda me pergunto por que o soltei. Terei tido medo de complicações? Esses
anos de ócio em Bouville me terão enferrujado? Se fosse antigamente, não o
teria soltado sem lhe haver quebrado os dentes. Virei-me para o Autodidata, que
finalmente se levantara. Mas ele evitava meu olhar; cabisbaixo foi tirar o casaco
do cabide. Passava constantemente a mão esquerda pelo nariz, como que para
estancar o sangue. Mas o sangue continuava a esguichar e eu temia que ele se
sentisse mal. Ouvi-o murmurar sem olhar para ninguém: — Faz anos que venho
aqui...
Mas, mal se libertara, o homenzinho voltara a se achar dono da situação...
— Rua! — disse para o Autodidata. — E não volte a pôr os pés aqui, porque
senão chamo a polícia para expulsá-lo.
Alcancei o Autodidata no fim da escada. Sentia-me constrangido,
envergonhado por sua vergonha, não sabia o que lhe dizer. Ele não pareceu
perceber minha presença. Finalmente tirara seu lenço e cuspia algo. Seu nariz
sangrava um pouco menos.
— Venha comigo até a farmácia — disse-lhe desajeitadamente.
Ele não respondeu. Chegava até nós um grande burburinho da sala de leitura.
Toda aquela gente devia estar falando ali ao mesmo tempo. A mulher soltou uma
gargalhada estridente.
— Nunca mais poderei voltar aqui — disse o Autodidata.
Virou-se e olhou com ar perplexo para a escadaria de entrada da sala de
leitura. Esse movimento fez que escorresse sangue entre seu colarinho e seu
pescoço. Sua boca e suas faces estavam sujas de sangue.
— Venha — disse-lhe, segurando seu braço.
Ele estremeceu e se soltou com violência.
— Deixe-me!
— Mas não pode ficar sozinho. É preciso que lhe lavem o rosto, que o
tratem.
Ele repetia:
— Deixe-me, por favor, senhor, deixe-me.
Estava à beira de uma crise de nervos; deixei-o afastar-se. O sol poente
iluminou-lhe um momento as costas encurvadas, depois ele desapareceu. Na
soleira da porta havia uma mancha de sangue em forma de estrela.
Uma hora depois
O céu está cinza, o sol se põe; dentro de duas horas parte o trem. Atravessei pela
última vez o jardim público e estou passeando pela rua Boulibet. Sei que é a rua
Boulibet, mas não a reconheço. Geralmente, quando entrava nela, tinha a
impressão de estar atravessando uma profunda espessura de bom senso: pesada e
sólida, a rua Boulibet se parecia, com sua seriedade tão desgraciosa, seu
calçamento arqueado e asfaltado, às rodovias nacionais, quando estas atravessam
os povoados ricos e são ladeadas, em mais de um quilômetro, por grandes casas
de dois andares; eu a chamava uma rua de camponeses e ela me encantava
porque era tão deslocada e tão paradoxal num porto comercial. Hoje as casas
continuam ali, mas perderam seu aspecto rural: são apenas prédios. No jardim
público tive ainda agora uma impressão do mesmo gênero: as plantas, os
gramados, a fonte de Olivier Masqueret tinham um ar obstinado, tão
inexpressivos eram. Compreendo: é a cidade que toma a iniciativa de me
abandonar. Ainda não deixei Bouville e já não estou aqui. Bouville se cala. Acho
estranho ter que permanecer ainda duas horas nessa cidade que, sem se
preocupar mais comigo, arruma seus móveis e os cobre com capas para poder
descobri-los em toda a sua frescura, essa noite, amanhã, para pessoas recém-
chegadas. Sinto-me mais esquecido do que nunca.
Dou alguns passos e paro. Saboreio esse esquecimento total em que caí.
Estou entre duas cidades, uma me ignora, a outra já não me conhece. Quem se
lembra de mim? Talvez uma mulher pesada e jovem, em Londres. E mesmo
essa, será realmente em mim que ela pensa? Aliás, há esse sujeito, esse egípcio.
Talvez tenha acabado de entrar em seu quarto, talvez a tenha tomado em seus
braços. Não sinto ciúmes; sei perfeitamente que ela sobrevive a si mesma. Ainda
que o amasse de todo o coração, seria um amor de morta. Eu tive seu último
amor vivo. Mas ainda assim há algo que ele pode lhe dar: o prazer. E se ela
agora está desfalecendo e sucumbindo à emoção do desejo, então não há nada
mais nela que a prenda a mim. Ela goza, e para ela existo tanto como se nunca a
tivesse encontrado; esvaziou-se de mim de vez, e todas as outras consciências do
mundo estão também vazias de mim. Isso é esquisito. No entanto sei
perfeitamente que existo, que eu estou aqui.
Agora, quando digo “eu”, isso me parece oco. Já não consigo muito bem me
sentir, de tal modo estou esquecido. Tudo o que resta de real em mim é
existência que se sente existir. Bocejo silenciosamente, demoradamente.
Ninguém. Antoine Roquentin não existe para ninguém. Isso me diverte. E o que
é exatamente Antoine Roquentin? É algo de abstrato. Uma pálida lembrança de
mim vacila em minha consciência. Antoine Roquentin... E de repente o Eu
esmaece, esmaece e, pronto, se apaga.
Lúcida, imóvel, deserta, a consciência se encontra entre as paredes; perpetua-
se. Já ninguém a habita. Ainda agora alguém dizia eu, dizia minha consciência.
Quem? Exteriormente havia ruas falantes, com cores e odores conhecidos.
Restam paredes anônimas, uma consciência anônima. Eis o que há: paredes, e
entre as paredes, uma pequena transparência viva e impessoal. A consciência
existe como uma árvore, como um fragmento de relva. Está sonolenta, entedia-
se. Pequenas existências fugitivas a povoam como pássaros em galhos. Povoam-
na e desaparecem. Consciência esquecida, abandonada entre essas paredes, sob
esse céu cinza. E eis aqui o sentido de sua existência: é que ela é consciência de
ser demais. Dilui-se, dispersa-se, procura se perder na parede escura, junto ao
lampião ou lá no nevoeiro da noite. Mas nunca se esquece de si mesma; é
consciência de ser uma consciência que se esquece de si mesma. Este é o seu
quinhão. Há uma voz abafada que diz: “O trem parte daqui a duas horas”, e há
consciência dessa voz. E há também consciência de um rosto. Ele passa
lentamente, cheio de sangue, manchado, e seus grandes olhos lacrimejam. Ele
não está entre as paredes, não está em parte alguma. Desvanece-se, um corpo
encurvado o substitui com uma cabeça ensanguentada, afasta-se a passos lentos,
a cada passo parece parar, não para nunca. Há consciência desse corpo que
caminha lentamente por uma rua escura. Ele caminha, mas não se afasta. A rua
escura não termina, perde-se no nada. Não está entre as paredes, não está em
parte alguma. E há consciência de uma voz abafada que diz: “O Autodidata
perambula pela cidade.”
Não, não na mesma cidade, entre essas paredes átonas: o Autodidata
caminha por uma cidade feroz, que não o esquece. Há pessoas que pensam nele,
o corso, a senhora corpulenta; talvez todo mundo na cidade. Ele ainda não
perdeu, não pode perder seu eu, esse eu que sangra, esse eu supliciado que eles
não quiseram acabar de matar. Doem-lhe os lábios, as narinas, ele pensa: “Estou
sofrendo.” Caminha, tem que caminhar. Se parasse, ainda que por um instante,
as paredes altas da biblioteca se ergueriam bruscamente à sua volta, encerrá-lo-
iam; o corso surgiria ao seu lado e a cena recomeçaria exatamente igual em
todos os seus pormenores, e a mulher diria com desprezo: “Essas imundícies
deviam ser condenadas a trabalhos forçados.” Ele caminha, não quer voltar para
casa: o corso o espera em seu quarto, com a mulher e os dois jovens: “É inútil
negar, eu o vi.” E a cena recomeçaria. Ele pensa: “Meu Deus, se não tivesse feito
aquilo, se pudesse não ter feito aquilo, se tudo pudesse não ser verdade!”
O rosto atormentado passa e repassa diante da consciência: “Talvez vá se
matar.” Mas não: essa alma suave e acossada não pode pensar na morte.
Há conhecimento da consciência. Ela se vê de um lado ao outro, tranquila e
vazia entre as paredes, libertada do homem que a habitava, monstruosa, porque
não é ninguém. A voz diz: “As malas foram despachadas, o trem parte daqui a
duas horas.” As paredes deslizam à direita e à esquerda. Há consciência do
macadame, consciência da loja de ferragens, das seteiras do quartel e a voz diz:
“Pela última vez.”
Consciência de Anny, de Anny a gorda, da velha Anny, em seu quarto de
hotel, há consciência do sofrimento, o sofrimento é consciente entre as
compridas paredes que se vão e jamais retornarão: “Então isso não acaba
nunca?”; a voz canta entre as paredes uma melodia de jazz, “Some of these
days”; isso não acaba nunca? E a melodia volta suavemente, por trás,
insidiosamente, retoma a voz e a voz canta sem poder parar e o corpo caminha e
há consciência de tudo isso e consciência, Deus meu, da consciência. Mas não há
ninguém para sofrer e contorcer as mãos e sentir piedade de si mesmo. Ninguém.
É um puro sofrimento de encruzilhadas, um sofrimento esquecido — que não
pode se esquecer de si mesmo. E a voz diz: “Eis o Rendez-vous des Cheminots”,
e o Eu brota na consciência, sou eu, Antoine Roquentin, parto para Paris daqui a
pouco; venho me despedir da patroa.
— Venho me despedir.
— Está de partida, sr. Antoine?
— Vou me instalar em Paris, para mudar um pouco.
— Felizardo!
Como pude premir meus lábios sobre esse rosto amplo? Seu corpo já não me
pertence. Ainda ontem teria sabido adivinhá-lo sob o vestido de lã preta. Hoje o
vestido se tornou impenetrável. Esse corpo branco com veias à flor da pele teria
sido um sonho?
— Vamos sentir falta do senhor — diz a patroa. — Não quer tomar alguma
coisa? É oferta minha.
Sentamo-nos, brindamos. Ela baixa um pouco a voz.
— Eu tinha me habituado ao senhor — diz lastimando polidamente. —
Entendíamo-nos bem.
— Virei vê-la.
— Venha, sr. Antoine. Quando passar por Bouville, venha nos fazer uma
visitinha. Dirá com os seus botões: “Vou cumprimentar a sra. Jeanne, isso a
deixará contente.” É verdade, gostamos de saber o que é feito das pessoas. Aliás,
aqui as pessoas voltam sempre. Temos marujos, empregados da Transat: às vezes
fico dois anos sem revê-los, ora estão no Brasil, ora em Nova Iorque, ou então
estão trabalhando em Bordéus num cargueiro. E depois, um belo dia, revejo-os.
“Como está, sra. Jeanne?” Bebemos alguma coisa juntos. Acredite se quiser:
lembro-me do que costumam tomar. E isso passados dois anos! Digo a
Madeleine: “Sirva um vermute seco ao sr. Pierre, um Noilly-Cinzano ao sr.
Léon.” Eles me dizem: “Como se lembra disso?” E eu lhes digo: “É a minha
profissão.”
No fundo da sala há um homem grandalhão que se deita com ela de pouco
tempo para cá. Chama-a:
— Patroazinha!
Ela se levanta:
— Com licença, sr. Antoine.
A empregada se aproxima de mim:
— Então vai nos deixar?
— Vou para Paris.
— Morei em Paris — diz com orgulho. — Dois anos. Trabalhava na Casa
Siméon. Mas sentia falta daqui.
Hesita um segundo, depois percebe que não tem nada mais a me dizer:
— Então, até a vista, sr. Antoine.
Enxuga a mão em seu avental e estende-a.
— Até a vista, Madeleine.
Vai embora. Puxo para mim o Journal de Bouville e depois o afasto: ainda há
pouco na biblioteca li-o da primeira à última linha.
A patroa não retorna: abandona ao amigo suas mãos rechonchudas, que ele
aperta com paixão.
O trem parte daqui a 45 minutos.
Faço minhas contas para me distrair.
Mil e duzentos francos por mês não é grande quantia. No entanto, se me
restringir um pouco, deverá ser suficiente. Um quarto por trezentos francos,
quinze francos por dia para alimentação: sobrarão quatrocentos e cinquenta
francos para lavagem de roupa, pequenas despesas e cinema. Por muito tempo
não precisarei de roupa. Meus dois ternos estão apresentáveis, embora um pouco
lustrosos nos cotovelos: durarão ainda três ou quatro anos se for cuidadoso.
Deus meu! Sou eu que vou levar essa existência de cogumelo? Que farei de
meus dias? Passearei, irei me sentar nas Tulherias numa cadeira de ferro — ou
antes, num banco, por economia. Irei ler nas bibliotecas. E depois? Uma vez por
semana o cinema. E depois? Irei me permitir um charuto Voltigeur aos
domingos? Irei jogar croqué com os aposentados do Luxembourg? Aos trinta
anos! Tenho pena de mim. Há momentos em que me pergunto se não seria
melhor que gastasse num ano os trezentos mil francos que me restam — e
depois... Mas o que me proporcionaria isso? Roupas novas? Mulheres? Viagens?
Tive tudo isso e agora terminou, são coisas que já não invejo: considerando-se o
que ficaria disso tudo... Em um ano me encontraria novamente tão vazio quanto
hoje, sem uma lembrança sequer e acovardado diante da morte.
Trinta anos! E 14.400 francos de renda. Cupons a receber todos os meses. No
entanto não sou um velho! Que me deem alguma coisa para fazer, qualquer
coisa... Melhor seria que pensasse em outra coisa, porque nesse momento estou
representando para mim mesmo. Sei muito bem que não quero fazer nada: fazer
alguma coisa é criar existência — e já há existência suficiente sem isso.
A verdade é que não posso soltar minha caneta: acho que vou ter a Náusea e
tenho a impressão de retardá-la enquanto escrevo. Então escrevo o que me passa
pela cabeça.
Madeleine, que quer ser amável comigo, grita de longe, mostrando um disco:
— Seu disco, sr. Antoine, aquele de que o senhor gosta, quer ouvido pela
última vez?
— Sim, por favor.
Disse isso por delicadeza, mas não me sinto em boa disposição para ouvir
uma melodia de jazz. De toda maneira vou prestar atenção, porque, como diz
Madeleine, ouço esse disco pela última vez: é muito velho; demasiadamente
velho, até para uma cidade do interior; será inútil procurá-lo em Paris. Madeleine
vai colocá-lo no prato do gramofone, ele vai girar; a agulha de aço vai começar a
saltar e a ranger em suas ranhuras e depois, quando a tiverem guiado em espiral
até o centro do disco, estará terminado, a voz rouca que canta “Some of these
days” se calará para sempre.
Está começando.
Pensar que há imbecis que tiram consolo das belas-artes. Como minha tia
Bigeois: “Os Prelúdios de Chopin representaram uma tal ajuda para mim na
morte de seu pobre tio.” E as salas de concerto transbordam de humilhados, de
ofendidos que, com os olhos fechados, procuram transformar seus rostos pálidos
em antenas receptoras. Imaginam que os sons captados correm neles, suaves e
nutrientes, e que seus sofrimentos se transformam em música, como os do jovem
Werther; pensam que a beleza é compassiva para com eles. Imbecis.
Gostaria que me dissessem se acham essa música compassiva. Ainda agora
estava certamente muito longe de nadar na beatitude. Na superfície fazia minhas
contas mecanicamente. Por baixo disso se estagnavam todos aqueles
pensamentos desagradáveis que assumiram a forma de interrogações não
formuladas, de espantos mudos e que já não me abandonam dia e noite.
Pensamentos sobre Anny, sobre minha vida estragada. E depois, mais embaixo
ainda, a Náusea, tímida como uma aurora. Mas naquele momento não havia
música, eu estava melancólico e sossegado. Todos os objetos que me rodeavam
eram feitos da mesma matéria que eu, de uma espécie de sofrimento lastimoso.
O mundo era tão feio fora de mim, tão feios aqueles copos sujos em cima das
mesas, e as manchas escuras no espelho, e o avental de Madeleine, e o ar amável
do amante gordo da patroa, tão feia a própria existência do mundo, que eu me
sentia à vontade, em família.
Agora há essa melodia de saxofone. E sinto vergonha. Acaba de nascer um
sofrimentozinho glorioso, um sofrimento-modelo. Quatro notas de saxofone.
Vão e vêm, parecem dizer: “É preciso fazer como nós, sofrer em compasso.”
Muito bem, sim! Naturalmente eu gostaria muito de sofrer dessa maneira, em
compasso, sem complacência, sem pena de mim mesmo, com uma pureza árida.
Mas é culpa minha se a cerveja está morna no fundo de meu copo, se há
manchas escuras no espelho, se estou sobrando, se o mais sincero de meus
sofrimentos, o mais seco se arrasta e se entorpece, com excesso de carne e a pele
muito larga ao mesmo tempo, como a vaca-marinha, com grandes olhos úmidos
e comovedores, mas tão feios? Não, certamente não se pode dizer que essa
dorzinha de diamante, que gira sobre o disco e me deslumbra, seja compassiva.
Nem sequer irônica: ela gira alegremente, toda ocupada consigo mesma; cortou
como uma foice a insossa intimidade do mundo e agora gira, e todos nós,
Madeleine, o homem grandalhão, a patroa, eu mesmo e as mesas, os bancos, o
espelho manchado, os copos, todos nós que nos abandonávamos à existência,
porque estávamos entre nós, somente entre nós, fomos surpreendidos por ela no
desalinho, no relaxamento quotidiano: tenho vergonha por mim e pelo que existe
diante dela.
Ela não existe. É até irritante; se me levantasse, se arrancasse esse disco do
prato que o sustenta e o quebrasse em dois, ela não seria atingida por mim. Ela
está para além — sempre para além de alguma coisa, de uma voz, de uma nota
de violino. Revela-se, delgada e firme, através de espessuras e espessuras de
existência e, quando queremos captá-la, encontramos apenas entes, esbarramos
em entes desprovidos de sentido. Ela está por trás deles: sequer a ouço, ouço
sons, vibrações do ar que a revelam. Ela não existe, posto que nela nada é
demais: é todo o resto que é demais em relação a ela. Ela é.
E também eu quis ser. Aliás, só quis isso; eis a chave de minha vida: no
fundo de todas essas tentativas que parecem desvinculadas, encontro o mesmo
desejo: expulsar a existência para fora de mim, esvaziar os instantes de sua
gordura, torcê-los, secá-los, me purificar, endurecer, para produzir finalmente o
som claro e preciso de uma nota de saxofone. Isso poderia até constituir um
apólogo: era uma vez um pobre sujeito que se enganou de mundo. Existia, como
as outras pessoas, no mundo dos jardins públicos, dos bistrôs, das cidades
comerciais, e queria se persuadir de que vivia alhures, atrás da tela dos quadros,
com os doges de Tintoretto, com os dignos florentinos de Gozzoli, atrás das
páginas dos livros, com Fabrice del Dongo e Julien Sorel, atrás dos discos de
gramofone, com os lamentos longos e secos do jazz. E depois, após ter se
comportado muito tempo como um imbecil, compreendeu, abriu os olhos e viu
que havia um mal-entendido: ele estava num bistrô, exatamente, diante de um
copo de cerveja morna. Ficou prostrado no banco; pensou: sou um imbecil. E
nesse exato momento, do outro lado da existência, nesse outro mundo que se
pode ver de longe, mas sem nunca se aproximar dele, uma pequena melodia
começou a dançar, a cantar: “É preciso ser como eu; e preciso sofrer em
compasso.”
A voz canta:
Some of these days
You’ll miss me honey

Devem ter arranhado o disco nesse lugar, pois há um barulho estranho. E há algo
que deixa o coração apertado: é que a melodia absolutamente não é afetada por
essa tossezinha da agulha sobre o disco. Ela está tão longe — tão lá atrás.
Também isso eu compreendo: o disco se arranha e se gasta, a cantora talvez
esteja morta; eu vou embora, vou tomar meu trem. Mas por trás do ente que cai
de um presente para o outro, sem passado, sem futuro, por trás desses sons que
dia a dia se decompõem, se lascam e deslizam para a morte, a melodia
permanece a mesma, jovem e firme, como uma testemunha implacável.
A voz se calou. O disco arranha um pouco, depois para. Libertado de um
sonho importuno, o café rumina, remastiga o prazer de existir. A patroa está
rubra, estapeia as faces gordas e brancas de seu novo amante, mas sem conseguir
colori-las. Faces de morto. Quanto a mim apodreço, semiadormeço. Daqui a 15
minutos estarei no trem, mas não penso nisso. Penso num americano
escanhoado, de espessas sobrancelhas pretas, que sufoca de calor no vigésimo
andar de um prédio de Nova Iorque. O céu arde por cima de Nova Iorque, o azul
do céu se infamou, enormes chamas amarelas vêm lamber os telhados: os
meninos do Brooklyn, de calção de banho, se colocam debaixo dos jatos das
mangueiras. O quarto escuro no vigésimo andar está uma fornalha. O americano
de sobrancelhas pretas suspira, ofega, e o suor lhe escorre pelas faces. Está
sentado em mangas de camisa diante do piano; está com gosto de fumo na boca
e, vagamente, vagamente, um fantasma de melodia na cabeça. “Some of these
days.” Dentro de uma hora, Tom vai chegar daqui a uma hora com sua garrafa de
bolso sobre a nádega; então ambos afundarão nas poltronas de couro e beberão
grandes tragos de álcool e o fogo do céu virá flamejar em suas gargantas, eles
sentirão o peso de um imenso sono tórrido. Mas primeiro é preciso anotar essa
música. “Some of these days.” A mão úmida agarra o lápis no piano. “Some of
these days, you’ll miss me honey.”
Foi assim que aconteceu. Assim ou de outra maneira, mas pouco importa.
Foi assim que ela nasceu. Foi o corpo gasto desse judeu de sobrancelhas de
carvão que ela escolheu para nascer. Ele segurava o lápis molemente, e gotas de
suor caíam de seus dedos cobertos de anéis sobre o papel. E por que não eu? Por
que era preciso exatamente aquele bezerro gordo, cheio de cerveja imunda e de
álcool, para que esse milagre se produzisse?
— Madeleine, quer tornar a botar o disco? Só uma vez, antes que eu me vá.
Madeleine começa a rir. Gira a manivela e a música recomeça. Mas já não
estou pensando em mim. Penso naquele sujeito lá longe que compôs essa
melodia, num dia de julho, no calor negro de seu quarto. Tento pensar nele
através da melodia, através dos sons brancos e acidulados de um saxofone. Ele
fez isso. Tinha problemas, as coisas não lhe corriam como deveriam: contas para
pagar — e também devia haver em algum lugar uma mulher que não pensava
nele da maneira que ele teria desejado —, e havia também essa terrível onda de
calor que transformava os homens em charcos de banha se derretendo. Tudo isso
nada tem de muito bonito ou de muito glorioso. Mas, quando ouço a canção e
penso que foi aquele sujeito que a fez, acho seu sofrimento e sua transpiração...
comoventes. Ele teve sorte. Aliás, não deve ter percebido isso. Deve ter pensado:
com um pouco de sorte esse negócio poderá me render uns cinquenta dólares!
Pois muito bem, é a primeira vez, há anos, que um homem me parece
comovente. Gostaria de saber alguma coisa sobre esse sujeito. Teria interesse em
conhecer o tipo de problema que tinha, se tinha uma mulher ou se vivia sozinho.
Absolutamente não por humanismo: ao contrário. Mas porque ele fez isso. Não
sinto desejo de conhecê-lo — aliás ele talvez já tenha morrido. Apenas obter
algumas informações sobre ele e poder pensar nele de quando em quando,
ouvindo esse disco. Acho que para ele não faria diferença se alguém lhe dissesse
que na sétima cidade da França, nas imediações da estação, há alguém que pensa
nele. Mas eu me sentiria feliz se estivesse em seu lugar; invejo-o. Tenho que ir
embora. Levanto-me, hesito por um momento; gostaria de ouvir a negra cantar.
Pela última vez.
Ela canta. Eis dois que se salvaram: o judeu e a negra. Salvos. Talvez se
tenham julgado perdidos de todo, afogados na existência. E no entanto ninguém
poderia pensar em mim como penso neles, com essa doçura. Ninguém, nem
mesmo Anny. Eles são um pouco como mortos para mim, um pouco como
heróis de romance; purificaram-se do pecado de existir. Não completamente, é
claro — mas na medida em que um homem pode fazê-lo. Essa ideia me perturba
de repente, porque já não esperava nem isso. Sinto que algo me roça
timidamente, e não ouso me mexer porque temo que isso se vá. Algo que já não
conheço: uma espécie de alegria.
A negra canta. Então pode-se justificar sua existência? Só um pouquinho?
Sinto-me extraordinariamente intimidado. Não é que tenha muita esperança. Mas
estou como um sujeito completamente gelado após uma viagem na neve que
estivesse entrando de repente num quarto aquecido. Creio que permaneceria
imóvel perto da porta, ainda frio, e que arrepios lentos percorreriam seu corpo
todo.
Some of these days
You’ll miss me honey

Será que poderia tentar... Naturalmente não se trataria de uma música... mas será
que não poderia, num outro gênero? Teria que ser um livro: não sei fazer outra
coisa. Mas não um livro de história, isso fala do que existiu — jamais um ente
pode justificar a existência de outro ente. Meu erro foi querer ressuscitar o sr. de
Rollebon. Outro tipo de livro. Não sei bem qual — mas seria preciso que se
adivinhasse, por trás das palavras impressas, por trás das páginas, algo que não
existisse, que estaria acima da existência. Uma história, por exemplo, como as
que não podem acontecer, uma aventura. Seria preciso que fosse bela e dura
como aço e que fizesse com que as pessoas se envergonhassem de sua
existência.
Vou embora, sinto-me vago. Não me atrevo a tomar uma decisão. Se tivesse
certeza de ter talento... Mas nunca — nunca escrevi nada nesse gênero; artigos
históricos sim — e mesmo assim... Um livro. Um romance. E haveria pessoas
que leriam esse romance e diriam: “Foi Antoine Roquentin que o escreveu, era
um sujeito ruivo que estava sempre nos cafés.” E pensariam em minha vida,
como eu penso na dessa preta: como em algo precioso e meio lendário. Um
livro. Naturalmente, no início seria um trabalho tedioso e cansativo; não me
impediria de existir nem de sentir que existo. Mas chegaria o momento em que o
livro estaria escrito, estaria atrás de mim, e creio que um pouco de claridade
iluminaria meu passado. Então, talvez através dele eu pudesse evocar minha vida
sem repugnância. Talvez um dia, pensando exatamente nesse momento, nessa
hora sombria em que aguardo, as costas encurvadas, o momento de subir no
trem, talvez sentisse meu coração batendo mais rápido e dissesse a mim mesmo:
“Foi naquele dia, naquela hora, que tudo começou.” E conseguiria — no
passado, somente no passado — me aceitar.
Cai a noite. No primeiro andar do hotel Printania duas janelas acabam de se
iluminar. O canteiro de obras da Nova Estação cheira intensamente a madeira
úmida: amanhã choverá em Bouville.
JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980) nasceu em Paris e formou-se em filosofia pela prestigiada Escola
Normal Superior, em 1928. Sartre inspirou-se em filósofos como Husserl, Heidegger e Kierkegaard
para elaborar a sua teoria existencialista. Na Escola Normal, conheceu a escritora Simone de Beauvoir,
sua companheira por toda a vida. Quando a França entrou na Segunda Guerra Mundial, em 1939,
Sartre foi convocado e, um ano depois, se tornou prisioneiro dos alemães. Ao escapar do campo de
concentração de Trier, na Alemanha, no ano seguinte, fundou o movimento Socialismo e Liberdade,
que atuava na Resistência. O ser e o nada, publicado em 1943, é obra fundamental e representa
singular contribuição para o pensamento filosófico ocidental. Em 1964, o escritor ganhou o Prêmio
Nobel de Literatura, mas recusou a honraria.
DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro

EDITORA RESPONSÁVEL
Maria Cristina Antonio Jeronimo

PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Mônica Surrage

REVISÃO
Frederico Hartje

DIAGRAMAÇÃO
Filigrana

Capa: Sérgio Campante


Imagens de capa: Tobias Titz / Getty Images e
Alexey Kazakov / EyeEm / Getty Images
[1] Uma palavra deixada em branco.

[2] Uma palavra está rasurada (talvez “forçar” ou “forjar”); uma outra, escrita por cima, está ilegível.

[3] Da noite, evidentemente. O parágrafo seguinte é muito posterior aos precedentes. Estamos inclinados a
crer que foi escrito, no mínimo, no dia seguinte.

[4] O texto da folha sem data interrompe-se aqui.

[5] Ogier P..., que será citado com frequência neste diário. Era um escrevente de oficial de justiça.
Roquentin o conheceu em 1930 na biblioteca de Bouville.

[6] Trabalho que se faz em troca de casa e comida, sem salário. (N.T.)

[7] Germain Berger: Mirabeau-Tonneau et ses amis, página 406, nota 2. Champion, 1906. (N.E.)

[8] Écrivain public: pessoa que redige textos (cartas, etc.) para quem não sabe escrever. (N.T.)

[9] Ateliês de caridade onde se costura para indigentes. (N.T.)

[10] Em gíria estudantil, a Escola Politécnica ou quem a cursa. (N.T.)

[11] Na manifestação de fenômenos ditos ocultos, tais como a comunicação com o espírito dos mortos.
(N.T.)

[12] Trata-se do escritor francês Jean Guéhenno. (N.T.)

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