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ENTRE O DISCURSO TEÓRICO E FÍLMICO: A INTERSECCIONALIDADE DOS

MOVIMENTOS SOCIAIS

Bruna Maria de Oliveira Campinho; Rosemary Lapa de Oliveira; Maria Fernanda de


Oliveira Campinho

Resumo: Ao falar de movimentos sociais, não podemos deixar de incluir a


discussão de interseccionalidades, uma vez que as diferentes formas de opressão
afetam de formas distintas os diferentes sujeitos, conforme o papel social que ocupam.
Através de um diálogo com o texto de Ângela Davis, de Chimamanda Ngozi Adiche e
Márcia de Vargas, entre outros, discutimos neste texto a construção da
interseccionalidade nos movimentos sociais, e, principalmente, a falta disso no
movimento feminista. Além disso, são trazidos para o diálogo os textos fílmicos na
forma de documentários: A 13ª emenda e She’s beautiful when she’s angry por seu
valor documental e de estudo aprofundado sobre o tema. O objetivo central das
discussões aqui levantadas é discutir a abordagem a partir de diferentes linguagens,
assim, são apresentadas discussões teóricas com as autoras citadas e análise fílmica
diante das questões apresentadas. A interseccionalidade atravessa a ideia de racismo
e feminismo, mostrando os perigos da invisibilidade de certos sujeitos sociais diante
de condições mais complexas de como olhamos as relações sociais, econômicas e de
poder. Assim, esse texto apresenta reflexões sobre como os movimentos, dos direitos
das mulheres, das lutas de classe então interligados com a luta antirracista. O que se
pretendeu aqui foi abrir uma discussão teórico-crítica das múltiplas contradições que
se expressam dentro do movimento feminista ainda hoje ao não reconhecer
intersecções e ao permenecer, em sua maioria, um movimento exclusivista. Os nexos
causais estabelecidos entre capitalismo, sexismo e racismo demarcam ademais os
conflitos provocados pelas classes elitistas capitalistas que, ao seu interesse próprio,
desejam divisão. Não há pretensão aqui de esgotar o assunto, ao invés disso, fazemos
coro com as discussões já amplamente levantadas, apontando para as produções
culturais que corroboram ou que explicitam as realidades que, como sociedade,
aprendemos a não enxergar e a naturalizar opressões.
Palavras-chave: teoria feminista; capitalismo; descriminação racial; construção social
da identidade étnica; debate

PONTOS IMPORTANTES QUE VOU FALAR

INTRODUÇÃO

METODOLOGIA

DESENVOLVIMENTO

OBJETIVOS/RESULTADOS

Ao falar de movimentos sociais, não podemos deixar de incluir a discussão de


interseccionalidades, uma vez que as diferentes formas de opressão afetam de formas
distintas os diferentes sujeitos, conforme o papel social que ocupam.
Através de um diálogo com o texto de Ângela Davis, de Chimamanda Ngozi
Adiche e Márcia de Vargas, entre outros, discutimos neste texto a construção da
interseccionalidade nos movimentos sociais, e, principalmente, a falta disso no
movimento feminista. Além disso, são trazidos para o diálogo os textos fílmicos na
forma de documentários: A 13ª emenda e She’s beautiful when she’s angry por seu
valor documental e de estudo aprofundado sobre o tema.
O objetivo central das discussões aqui levantadas é discutir a abordagem a
partir de diferentes linguagens, assim, são apresentadas discussões teóricas com as
autoras citadas e análise fílmica diante das questões apresentadas.
A interseccionalidade atravessa a ideia de racismo e feminismo, mostrando os
perigos da invisibilidade de certos sujeitos sociais diante de condições mais complexas
de como olhamos as relações sociais, econômicas e de poder. Assim, esse texto
apresenta reflexões sobre como os movimentos, dos direitos das mulheres, das lutas
de classe então interligados com a luta antirracista.
Davis (2016) produz uma análise da formação e manutenção das relações de
poder estruturadas através de um processo sócio histórico, que propõe expor, com
enquadramentos e estereótipos, as relações sociais embasadas na luta de classes, no
sexismo e, enraizada em ambos, a luta antirracista. Essa autora propõe romper com
essas assimetrias sociais e apontar o racismo estrutural, seguindo os acontecimentos
desde o processo de escravização da população negra dos Estados Unidos até as
lutas do movimento negro que ocorreram na década de 1970 e, diante de suas
reflexões sobre esses eventos moldadores da história conhecida hoje, atribui o
protagonismo à mulher negra como formadora da base estruturante da sociedade
moderna.
A autora lançou base para uma discussão que percorre as noções
estabelecidas para inferiorizar a figura da mulher negra, tal como sua suposta
promiscuidade sexual, ou como essas mulheres são injustamente correlacionadas à
figura do homem branco, ou são enquadradas apenas como corpos destinados à
reprodução da espécie, não sendo vistas como mães, mas sim como instrumentos
para alimentar o sistema escravocrata. Foi designado a elas, basicamente, o papel de
figurante, sendo que elas eram, e continuam sendo, a essência da sobrevivência da
comunidade e centro estrutural e multidimensional da família negra.
Essa autora ainda retrata como, no sistema escravocrata, as mulheres negras
eram iguais aos homens negros na opressão que sofriam no trabalho manual, pois,
para os senhores de escravos, o trabalho braçal não enxergava gênero. Entretanto,
elas também sofriam como vítimas de abusos sexuais e outros maus-tratos infligidos
exclusivamente relacionados ao seu gênero. O estupro, como aponta a autora, é uma
arma de terrorismo político de massa, trazendo a referência das atitudes dos soldados
estadunidenses na guerra do Vietnã em relação às mulheres vietnamitas. “A violência
sexual era utilizada como forma de dominação e poder, para poder controlar as
mulheres e diminuir sua força de resistência, assim como os senhores de escravos
faziam com as mulheres negras escravizadas” ressalta Davis (2016, p. 36).
Entretanto, a força de resistência dessas mulheres era subestimada. As
mulheres negras dão exemplo de luta e inteligência para superar as dificuldades
através do seu trabalho, acumulando ganhos, algumas conseguiam até comprar sua
própria alforria. Isso revela o quanto o espírito de luta da mulher negra era forte nesse
cenário de escravização e objetificação da mulher.
Apesar da crueldade e da insanidade do sistema escravista e do intenso
processo de dominação do povo preto, minimizada, pela literatura da escravidão, a
autora evoca as estratégias de resistência e de luta do povo negro, consubstanciadas
em revoltas, fugas e sabotagens, resgatando personagens importantes na história de
resistencia, como, por exemplo, a abolicionista Sojourner Truth ou a libertadora de
escravizados Harriet Tubman.
Essa autora, então, discorre como o movimento pelos direitos das mulheres foi
provocado pela ultrajante supremacia masculina no interior do movimento
abolicionista, procurando, dentro disto, a própria emancipação política enquanto
mulheres, porém acabando por sucumbir a ideologia racista da supremacia branca
dentro do próprio movimento.

RACISMO, FEMINISMO E O CAPITALISMO INDUSTRIAL*

Davis (2016) discute, em um ponto fundamental para o desenvolvimento da


obra, como a trajetória do movimento antiescravagista e do movimento pelos direitos
das mulheres é entrelaçada, inicialmente, pela influência ideológica do capitalismo
industrial.
Uma sociedade capitalista podia ser dividida em duas classes distintas:
a trabalhadora (proletariado) e a dominante (burguesia). Segundo ele
[Karl Marx], as classes dominantes, às quais pertenciam os
empresários, exploravam as classes trabalhadoras, que eram forçadas
a vender suas habilidades e a força de trabalho para sobreviver. É essa
busca incessante de lucro e riqueza que define o capitalismo como um
sistema social (YUILL & THORPE, 2019, p. 36).

Por um lado, o capitalismo industrial foi o principal desenvolvedor da ideia


rigorosa de inferioridade feminina, sugando o prestígio produtivo que as mulheres
tinham no ambiente doméstico, passando a colocá-las em um papel passivo de mães,
esposas e donas de casa. Diante disso, as mulheres brancas começaram a discursar
a analogia de que a escravidão não era muito pior que o casamento e, portanto,
sentiam afinidade para com o movimento abolicionista, entretanto desprezaram o fato
de que a escravidão, para mulheres e homens negros significavam chicotes e
correntes.
Por outro lado, o sistema capitalista se interessava pela população negra como
agentes ativos e explorados, uma vez que, sistemas de opressão, tais como o racista,
se reinventam de forma velada para permanecer reprimindo da forma mais proveitosa,
sem incitar suspeitas de que a escravização da população negra no Sul, a exploração
da mão de obra barata no Norte e a opressão social das mulheres estivessem
interligados de forma sistemática.
Em outra instância, a autora mostra, contando o percurso da história através de
personagens significativos, como o ativista Frederick Douglass, figura importante no
movimento negro, foi responsável por introduzir oficialmente a questão dos direitos
das mulheres no movimento da libertação negra. Contudo, a partir da declaração da
Convenção de Seneca Falls que ocorreu em 1848 e reuniu ativistas para a
conscientização dos direitos das mulheres, foi estampado que a proposta era uma
análise do papel social da condição feminina de classe média sem considerar as
circunstâncias das mulheres trabalhadoras pobres, das imigrantes (período que estava
iniciando o imperialismo moderno estadunidense de dominação sobre outros países)
e “das mulheres negras tanto do Sul quanto do Norte, que lutavam pelo direito de
sobreviver” (DAVIS, 2016, p. 64).
Como refletido no documentário She’s beautiful when she’s angry (2014), o
movimento pelo direito das mulheres foi criado em razão das vozes das mulheres não
serem ouvidas dentro do movimento abolicionista, porém, as mulheres brancas de
classe média não entendiam a luta das mulheres negras e nem a luta de classes, não
procurando compreender o que essas mulheres vivenciavam e como desafiavam a
supremacia masculina de um modo relacionado às outras lutas que precisavam
enfrentar.
Isso foi elaborado por Davis (2016), com uma eficaz crítica da ausência das
mulheres negras nas convenções e sociedades de mulheres antiescravistas,
enfatizando a sua supremacia branca e seu fracasso em promover ampla
conscientização antirracista ao reproduzir atos, ideias e falas racistas. Tal como uma
diretora de uma escola em Nova York, que se declarava abolicionista, mas, na época,
recusou-se a admitir que uma criança negra assistisse às aulas com as crianças
brancas. Além disso, Davis ainda dá o protagonismo para figuras importantes, como
Maria Stewart, que foi a primeira oradora negra a se dirigir a plateias de homens e
mulheres em prol da luta antirracista e da luta contra o machismo.
Por intermédio de uma análise histórica consistente, Davis (2016, p. 81), ao
mesmo tempo em que aborda o “profundo vínculo ideológico, entre racismo, viés de
classe e supremacia masculina”, discute o racismo presente no movimento sufragista
feminino. Ao ser conquistada a abolição da escravatura, foi óbvia a carência de
políticas públicas necessárias para suprir a opressão econômica sobre a população
negra, que precisava de poder político como uma forma de proteção diante dos
linchamentos e violências que eram praticados por grupos racistas. O direito ao voto
para o homem negro, por exemplo, (ainda excludente com as mulheres negras – algo
ignorado pelas mulheres brancas), que lhes dava um novo papel como membro ativo
da nação.
Porém, o Estado não demonstrou interesse em promover ações e políticas para
apoiar essa população recém liberada, e a autora comenta isso, retratando o novo
sistema econômico capitalista como interessado nessa população negra para suprir
as bases da estrutura hierárquica socioeconômica – para votar, para indústria, mas
não para elencar. Tal situação, além de evidenciar o conhecimento superficial de
questões raciais que as sufragistas possuíam, abriu um precedente de propaganda,
apoiadas por reprodução de ideias racistas, de que era mais importante o direito ao
voto das mulheres – aqui lê-se especificamente brancas – do que os negros e que a
promoção nada mais era do que uma jogada estratégica do partido republicano para
garantir hegemonia política, não por preocupação sincera da falta de direitos políticos
da comunidade negra. “Todavia, o atrito interno entre ambos movimentos irrompeu em
uma luta ideológica aberta e ruidosa, com a influência ameaçadora da ideologia racista
sobre as sufragistas” (DAVIS, 2016, p. 84).
Exposto, por Davis, através da fala de uma das líderes do movimento pelo
direito das mulheres, Elizabeth Cady Stanton:
[...] você está disposta a ver o homem de cor obter o direito ao voto
antes das mulheres? Eu digo que não; eu não confiaria a ele meus
direitos; desvalorizado, oprimido, ele poderia ser mais despótico do
que nossos governantes anglo-saxões já são. Se as mulheres ainda
devem ser representadas pelos homens, então eu digo: deixemos
apenas o tipo mais elevado de masculinidade assumir o leme do
Estado (DAVIS, 2016, p. 92).

Adichie (2014) aborda o perigo de uma narrativa unilateral ao criar a limitação


por estereótipos. Ou seja, assim como antes os Republicanos se utilizaram da
ascendência do sufrágio negro como conveniência para o momento econômico e
político da época, eles também adaptaram seu racismo para os objetivos capitalistas.
Com esse depoimento, Davis (2016) aborda a visão limitada das sufragistas
brancas ao não enxergar o racismo de forma tão forte e significante na sociedade
quanto, ou até mais, que o machismo. Raça é o centro do debate político, sem isso
não tem como entender a história política de vários países, tais como os Estados
Unidos e o Brasil, que passaram pelo sistema escravocrata semelhante. O movimento
sufragista reafirmou atitudes segregacionistas das mulheres brancas, principalmente
do Sul dos EUA, em prol de atraí-las para a luta, motivadas pela conveniência. A
autora, então, critica a postura neutra das líderes da Nawsa (Associação Nacional pelo
Sufrágio das Mulheres Americanas) em relação à questão de cor, “quando na
realidade encorajava a proliferação de ideias racistas nas campanhas sufragistas”
(DAVIS, 2016, p. 120), acabando por abraçar a supremacia branca para dentro do
movimento, carregando responsabilidade para salvaguardar tais ideias. Porém,
complementa a autora que “Com a chegada do século XX, um casamento ideológico
sólido uniu o racismo e o sexismo, que ganharam influência como nunca” (Ibdem, p.
127)
A partir disso, as mulheres negras se viram obrigadas, após serem traídas,
menosprezadas e rejeitadas pelas líderes brancas, a criar uma organização que as
contemplassem, já que ser Mulher era o critério, mas nem toda mulher parecia estar
qualificada. “As mulheres negras eram praticamente invisíveis no interior da longa
campanha pelo sufrágio feminino” (DAVIS, 2016, p. 146). No fim do século XIX, Ida B.
Wells e Mary Church Terrell, as duas mulheres negras mais importantes do seu tempo,
segundo Davis (2016, p. 142), criaram a União da Lealdade Feminina, algo que
influenciou, nos anos 70, a explosão da procura dos direitos dos movimentos sociais.
Adichie (2014) defende que acrescentar a luta feminista em direitos humanos
seria negar a especificidade e particularidade do problema de gênero, fato que se
encaixa também na luta pela libertação negra (protagonismo atribuído pelo movimento
Black Lives Matter), assim como na luta de classes, na luta LGBTQIA+, e quaisquer
outros movimentos de minorias sociais que, ao se destacar diante daqueles que os
oprimem, merecem um reconhecimento de sua própria luta, afinal o nome que é
atribuído ao movimento é tão essencial e informativo quanto seu corpo político.
O ativista Malcolm X, em seu discurso em relação à escravização da população
negra, afirma: "Fomos trazidos aqui contra a nossa vontade. Não fomos trazidos aqui
para nos tornarmos cidadãos. Não fomos trazidos aqui para usufruir das dádivas
constitucionais de que tanto falam”1. Essa fala tem referência ao fato de que, no fim
da escravidão nos Estados Unidos, foi criada a 13ª emenda da Constituição
estadunidense de 1787, a qual representa para o país, o que a Lei Áurea representou
para o Brasil em 1888. Ambos dispositivos legais preveem ser inconstitucional manter
pessoas escravizadas. Porém, a 13ª emenda estadunidense acrescenta em seu texto
uma exceção: a escravidão é inconstitucional, exceto como punição para crime, ou
seja, criminosos são passiveis de serem escravizados.
Davis (2016) retrata, em seu livro, com uma profundidade de alguém que já
sofreu o encarceramento injustamente, que, a partir da 13ª emenda, se tem a
possibilidade de utilizar mão de obra carcerária para otimizar o potencial lucrativo.
Portanto, a população negra, que representa 2/3 da população carcerária, foi forçada
a representar os mesmos papeis que a escravidão havia atribuído a seus ancestrais.
O que estipulou uma deturpação do sistema de justiça criminal opressivo e a criação
da imagem visceral da criminalidade, conectada a imagem da pessoa negra. “Todos
os mitos de homens negros como estupradores se originaram do fato de a elite política
branca e a reconstrução do comércio precisarem do trabalho negro” (A 13ª emenda,
2016, 05:59 - 06:09).
Como exemplo no sistema jurídico brasileiro, o Código de Processo Penal de
1941 tem como influência o código de processo penal italiano do governo totalitário de
Mussolini de 1930 que traz em si os resquícios de um regime fascista e foi um dos
principais percussores da cultura inquisitória vigente, a qual não dá ao sujeito o

1
MALCOLM X, “The ballot or the bullet”, [1964]. Tradução. Disponível em: https://elibrary.tips/o-
discurso-abaixo-foi-realizado-por-malcolm-x-meses-antes-de-seu-assassinato-
le121e2db2f5c7da858b2167f4520d7cb0-23328.html. Acesso em: 27 set. 2020.)
benefício da dúvida de sua inocência, portanto, cria-se a raiz de uma cultura ao redor
da criminalidade, que foi atrelada à imagem do homem negro.
Após a emenda constitucional estadunidense entrar em vigor, tanto
empregadores como autoridades estatais adquiriram um forte interesse econômico em
ampliar a população carcerária. Desde então, pessoas negras têm sido alvos de
autoridades policiais, inclusive pelos motivos mais irrisórios, para serem encarceradas
e se tornarem mão de obra barata, promovendo encarceramento em massa de
populações marginalizadas pela sociedade. A partir disso, se dá espaço para a
brutalidade policial, que, além da questão racial estrutural, também conta com o
incentivo de autoridades estatais para cumprir a cota de presidiários e alimentar o
sistema capitalista.
Para fomentar essa imagem deturpada, criaram-se mitologias ao redor da figura
da pessoa preta, como o mito do estuprador negro, inventado e incentivado pelas
mídias, ao exemplo do filme racista Birth of a Nation (1983) que retrata a imagem da
população negra, principalmente do homem negro, como criminoso, estuprador,
ameaça à mulher branca, e inimigo da civilização a ser eliminado pelo herói e salvador
branco. O filme reacendeu a popularidade do Ku Klux Klan na época, o que trouxe o
renascimento dos linchamentos de pessoas negras, que eram julgadas e executadas
por esse grupo, sem consequências, o que evidentemente demonstra o poder da mídia
em espalhar clichês e construir a imagem negativa de toda uma raça, ao representar
pessoas negras, por exemplo, como animais sendo presos.
Quanto ao papel do governo, como a própria Ângela Davis comenta no
documentário A 13ª Emenda (2016, 15:07- 15:15): “Na era Nixon e no período de lei e
ordem, o crime começa a ser definido pela raça”. É nesse governo que se inicia a
suposta guerra às drogas, implantada também no Brasil. Todavia, o subproduto dentro
dessas questões é que, na realidade, negros são atingidos como foco velado das
guerras antidrogas – algo que se tornou cultural. Ademais, foi exposta, ainda na época,
como uma clara guerra do presidente Nixon contra a população negra, admitido pelo
membro do seu governo, John Ehrlichman, como sendo um genocídio das
comunidades não brancas (ELIAS & SCOTSON, 2000).
Uma outra grande política contra essa população advinda do Estado foi a Lei
Jim Crow, que promovia a segregação racial, impedindo pessoas negras de
conviverem nos mesmos espaços que pessoas brancas, assim como operou o
apartheid na África do Sul. As consequências sociais e segregativas dessa Lei, mais
tarde, influenciaram a luta pelos direitos civis negros nos anos 1970. Sobre a relação
entre racismo e política, Almeida (2019, p. 74) afirma: “O racismo é processo político.
Político porque, como processo sistêmico de discriminação que influencia a
organização da sociedade, depende de poder político; caso contrário seria inviável a
discriminação sistemática de grupos sociais inteiros”.
Para as mulheres negras, os ataques dos sistemas político e judiciário eram
ainda mais brutais. Davis (2016) retrata como o legado da escravidão ficou marcado
nos corpos dessas mulheres e como os abusos sexuais rotineiros sofridos nesse
período não se interromperam pelo advento da emancipação, os homens brancos
continuavam acreditando que possuíam algum tipo de direito de violentá-las. Caso
elas resistissem aos ataques, com frequência eram jogadas na prisão, para servir a
um sistema prisional parecido ao escravocrata, como dito anteriormente.
Outras formas de opressão para as mulheres negras trabalhadoras, igualmente
marcadas pela escravidão, trazida por essa autora ao expor o funcionamento do
racismo de modo intricado, é o serviço doméstico. Essas mulheres passavam mais de
catorze horas servindo a família branca, podendo visitar raramente a própria família,
recebendo salários abaixo do que era justo, sem receber respeito pela sua posição
como profissional e tendo ainda o seu corpo objetificado, seja para cuidar das crianças
que não eram suas, seja para estar suscetível a abusos sexuais cometido pelo homem
da casa, mostrando a condição de vulnerabilidade, que acabou por ser usado contra
elas ao sustentar o mito da imoralidade e da promiscuidade das mulheres negras.
Essas ideias ainda eram apoiadas pela literatura e a mídia nos Estados Unidos e em
outros países do mundo, ao retratar mulheres negras como gratas por servir a boa
patroa/patrão branco.
O filme E o vento levou (1939), retrata a população negra liberta após a Guerra
Civil estadunidense como dependente de seus antigos senhores, insinuando que a
vida pós escravidão era mais difícil para eles. Por isso, dois negros recém libertos
decidem voltar a servir a mocinha branca e heroína da história, pelo simples fato de
ela ser uma boa patroa e precisar de ajuda para reerguer sua fazenda destruída pela
guerra, atribuindo aos personagens negros do filme apenas o papel de coadjuvantes
ao dar suporte à missão da garota branca principal. Ou seja, a romantização das
formas de opressão e das relações de poder desiguais como artifícios da ideologia
racista, que, com frequência, converge com o sexismo.
Nos anos de 1970, como retratado no documentário She’s beautiful when she’s
angry (2014), ocorreu uma explosão de movimentos sociais, seja pelo sentimento de
antiguerra (acarretado pela guerra do Vietnã), seja pelos estudantes universitários,
seja pelos direitos civis, que desencadeou uma nova onda pela aclamação da
libertação negra. Todos esses movimentos inspiraram também o movimento pela
libertação da mulher, cinquenta anos após a conquista do direito ao voto. Porém, agora
como um foco do movimento das mulheres surge a pauta dos direitos trabalhistas e,
principalmente, como uma forma de emancipação e direito ao próprio corpo, a pauta
do controle de natalidade, a partir da defesa da ideia da “maternidade voluntaria” –
com uma visão associada ao privilegio que gozavam as mulheres de classe média e
da burguesia – e com o apelo por aborto legalizado e de fácil acesso.
Entretanto, a verdade está escondida nas bases ideológicas do próprio
movimento pelo controle da natalidade. Davis (2016) escancara o fracasso da
campanha em fazer uma autoavaliação sócio-histórica, do que significa o aborto para
a trajetória da mulher negra, “se algum dia as mulheres viessem a desfrutar do direito
de planejar sua gravidez, tanto as medidas legais e facilmente acessíveis de controle
de natalidade quanto o aborto teriam de ser complementados pelo fim da prática
abusiva da esterilização” (Ibdem, p. 206). Incluindo o fato de que a maioria das mortes
causadas por abortos ilegais envolvem mulheres negras e latinas.
O aborto era levado ao interior de uma discussão entre conservadorismo e
liberalismo, enquanto isso as esterilizações cirúrgicas forçadas abusivas, das
mulheres não-brancas, principalmente as negras, as porto-riquenhas (que serviam
como “teste”), as indígenas e as mexicanas eram apoiadas pelas ideias do movimento
eugenista.
Relacionando Ângela Davis como marxista, em suas ideias sobre as lutas de
classes, a autora relata como o capitalismo implantado sistematizou a opressão
estrutural racista moderna, separando a economia familiar doméstica, definido como
forma inferior, e a economia voltada ao lucro do capitalismo, como evidência do conflito
entre as relações sociais provocadas. O filme de 2019, Os Miseráveis, traz a urgência
que uma luta de classes precisa para ter sua premissa discutida em pleno século XXI,
mostrando um retrato do contraste social que acomete a França, escancarando a
marginalização coesiva dessa população. A obra de Victor Hugo, com mais de cento
e cinquenta anos, ganha roupagem sutil e útil às discussões que ultrapassam os muros
de Paris.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As pessoas dizem: “Como as pessoas podem ter tolerado a


escravidão? Como podem ter aceitado isso? Como as pessoas podem
ter participado de linchamentos? Como as pessoas justificavam a
segregação, a separação de negros e brancos... Isso é loucura. Se eu
vivesse naquela época, nunca teria tolerado algo assim.” A verdade é
que estamos vivendo nessa época e estamos tolerando. (A 13ª
Emenda, 2016, 1:35:42 – 1:36:06)

Ao entender a origem do movimento pelo direito da mulher, é necessário


considerar e desenvolver uma autocrítica e autoconhecimento de feministas brancas
em relação à questão racial e de classes, que deveriam ser peças centrais ao abrir
qualquer discussão sobre o papel da mulher na sociedade. Nas campanhas feministas
dos anos 1970, por exemplo, as mulheres brancas acabavam perpetuando a mesma
opressão pelas quais lutavam contra, ao convenientemente ignorar a causa dessas
trabalhadoras, explorando suas próprias empregadas. Como a famosa imagem de
uma mulher negra, como serviçal doméstica, arrumando a “patroa” para a
manifestação feminista. Davis, brilhantemente, retrata “enquanto o serviço doméstico
fosse a regra para a população negra, a emancipação permaneceria uma abstração
conceitual” (DAVIS, 2016, p.106).
O que se pretendeu aqui foi abrir uma discussão teórico-crítica das múltiplas
contradições que se expressam dentro do movimento feminista ainda hoje ao não
reconhecer intersecções e ao permenecer, em sua maioria, um movimento
exclusivista. Os nexos causais estabelecidos entre capitalismo, sexismo e racismo
demarcam ademais os conflitos provocados pelas classes elitistas capitalistas que, ao
seu interesse próprio, desejam divisão. Não há pretensão aqui de esgotar o assunto,
ao invés disso, fazemos coro com as discussões já amplamente levantadas,
apontando para as produções culturais que corroboram ou que explicitam as
realidades que, como sociedade, aprendemos a não enxergar e a naturalizar
opressões.

REFERÊNCIAS

A 13ª emenda. Direção: Ava DuVernay. Produção: Howard Barish, Ava


DuVernay; Spencer Averick. Roteiro: Ava DuVernay; Spencer Averick.
Música: Jason Moran. Cinematografia: Hans Charles e Kira Kelly. Edição:
Spencer Averick: Kandoo Films. Estados Unidos: Netflix, 2016.
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo, Pólen, 2019.
Birth of a Nation. Direção: Mike Newell. Roteiro: David Leland. Elenco: Jim
Broadbent e outros [S.I.]. Reino Unido: ITV, 1983.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. Trad. Cristina Baum.
São Paulo: Companhia das letras, 2014.
DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São
Paulo: Boitempo, 2016.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders:
sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio
de Janeiro: Zahar, 2000.
O vento levou. Direção: Victor Fleming, George Cukor e Sam Wood. Produção
David O. Selznick. Roteiro Sidney Howard, Bem Hecht, Oliver H. P. Garrett, Jo
Swerling e John Van Druten. Elenco: Vivien Leigh, Clark Gable, Olivia de Havilland,
entre outros [S.I.]. Estados Unidos: Metro-Goldwyn-Mayer, 1939
Os Miseráveis. Direção: Ladj Ly. Produção Christophe Barral e Toufik Ayadi.
Roteiro: Alexis Manenti e Ladj Ly. Elenco: Damien Bonard, Jeanne Balibar, entre
outros [S.I.]. França: Wild Brunch, 2019.
She’s beautiful when she’s angry. Direção: Mary Dore. Produção: Mary Dore e
Nancy Kennedy. Estados Unidos, Netflix, 2014.
VARGAS, Márcia De. A história das mulheres negras no Brasil, no
enfrentamento da discriminação e violência. Curitiba: Universidade Federal do
Paraná, 2016.
YULL, Chris; THORPE, Christopher. Se liga na sociologia. Trad. Bruno
Alexander. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

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